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1/61 Políticas de Segurança Pública Índice Apresentação 2 Contextualização 2 Relevância 3 Bibliografia 4 Avaliação 7 Aula 1: Abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública e seu controle democrático interno e externo 8 Aula 2: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público 17 Aula 3: Policiamento comunitário 25 Aula 4: Discussão e análise crítica das concepções de Política de Segurança Pública 31 Aula 5: Política de Segurança Pública cidadã e política de extermínio do inimigo 38 Aula 6: Formulação e análise de políticas no campo da Segurança Pública 45 Aula 7: A intersetorialidade das Políticas de Segurança Pública 51 Aula 8: A Municipalização das políticas de segurança 56 Trabalho final 60 2/61 Apresentação Depois de termos estudado os papéis dos profissionais de Segurança Pública e suas diferentes relações no processo de gestão integrada, e de termos analisado a relação desses atores com a ética, os Direitos Humanos e a cidadania, hoje, iniciaremos o estudo crítico das Políticas de Segurança Pública. A despeito da polêmica que o tema provoca na mídia, ainda é raro encontrarmos discussões técnicas sobre como construir uma Política de Segurança Pública eficiente e democrática. É sobre isso que pretendemos pensar e discutir com vocês nesta disciplina. A proposta é compreendermos fatores socioculturais relacionados às instituições de Segurança Pública para, a partir disso, analisarmos: quais os passos necessários à formulação de políticas voltadas à repressão da criminalidade com respeito aos Direitos Humanos; qual o papel da polícia nesse processo; e a que estamos nos referindo quando falamos em Municipalização da Segurança Pública. Contextualização A violência urbana representa um dos principais temas de debate da atualidade. Seu controle e sua redução se tornaram um dos maiores desafios dos gestores públicos, que passaram a desenvolver discursos e ações materializadas em políticas que parecem estar distantes de objetivos propalados. O conteúdo desta disciplina pretende esclarecer concepções relacionadas à temática das Políticas de Segurança Pública por meio da abordagem sociocultural das instituições de Segurança Pública e da análise do processo de formulação e manutenção dessas políticas como o conjunto de ações intersetoriais na sociedade. Estudos das Ciências Sociais e da Criminologia, realizados durante as duas últimas décadas, indicam a necessidade de evolução dos modelos de análise e tratamento do crime e da violência. Essa conclusão se deve ao fracasso do modelo repressivo clássico, baseado em uma política penal dissuasória de pretensão punitiva do Estado como única resposta ao problema do aumento do delito e seus efeitos. Esse modelo enfrenta, demasiadamente tarde, o problema do delito bem como privilegia a polarização Estado versus infrator, desconsiderando a questão da cidadania quando não ampara a vítima e não busca reintegrar o criminoso à sociedade. O elevado custo social e a extemporaneidade das ações desse modelo não interferem no ambiente situacional. Estudar as diferentes concepções de políticas desenvolvidas e os problemas relacionados ao fenômeno da violência significa aprofundar os conhecimentos, buscar soluções e preparar os gestores, os operadores de segurança e a própria sociedade para este desafio: controlar e reduzir a violência em nossa sociedade. 3/61 Relevância É indiscutível a presença da temática da criminalidade no cotidiano dos moradores das zonas urbanas e rurais das cidades brasileiras, mas ainda se discute muito sobre quais as formas ideais de abordá-la. Nesse contexto, é indispensável analisar, de forma crítica, os desafios institucionais e socioeconômicos da elaboração de Políticas de Segurança Pública que tenham como objetivo a prevenção da violência e o combate à criminalidade com respeito aos Direitos Humanos. 4/61 Bibliografia ALVITO, Marcos; VELHO, Gilberto (Orgs.). Cidadania e violência. 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Mapa da violência 2006: os jovens do Brasil. Brasília: Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2006. 7/61 Avaliação Em todas as disciplinas da pós-graduação online, existem: Avaliação formativa Não vale ponto, mas é importante para o aprofundamento e a fixação do conteúdo. Essa avaliação contém: Atividades de fixação – atividades de passagem, presentes dentro das aulas; são testes contextualizados ao conteúdo explorado; Exercícios de autocorreção – questões para verificação da aprendizagem; são essenciais, pois marcam sua presença em cada aula. Avaliação somativa Forma sua nota final na disciplina. Essa avaliação inclui: Temas para discussão em fórum – que aprofundam e atualizam os temas estudados em aula; trata-se de um espaço para tirar suas dúvidas. Sua participação vale ponto; Prova em data especificada no calendário acadêmico do curso, que será realizada em seu Polo; Trabalho final da disciplina – resenha em 1 lauda (arquivo Word) do capítulo III do livro A síndrome da rainha vermelha: policiamento e Segurança Pública no século XXI, indicado na bibliografia do curso; ou uma resenha em 1 lauda (arquivo Word) do artigo O processo de gestão da segurança municipal, da pesquisadora Miriam Guindani. Orientações sobre a realização do trabalho podem ser obtidas com o professor no ambiente online, no Fórum de Discussão , no tópico Orientações do Trabalho. 8/61 Aula 1: Abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública e seu controle democrático interno e externo Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Estabelecer uma abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública; 2. Identificar quais as formas de controle democrático interno e externo das instituições policiais. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à primeira aula da disciplina Políticas de Segurança Pública. Quando falamos em instituições de Segurança Pública1, imediatamente fazemos a associação com as polícias em seus diferentes âmbitos. Isso pode ocorrer em razão da representação coletiva2 que temos tanto do que significa Segurança Pública quanto do que entendemos como o papel da polícia na sociedade. Trataremos mais adiante das concepções de Políticas de Segurança Pública. Por ora, abordaremos alguns pontos-chave da história da polícia no Brasil e de suas formas de controle social3 e institucional. Pronto para começar? 1 Acesse a lista de sites oficiais das principais instituições de Segurança Pública no Brasil, disponível em: http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/90. 2 Segundo Durkheim (1978, p. 79), a representação coletiva: “[...] traduz a maneira como o grupo se pensa em suas relações com os objetos que o afetam. Para compreender como a sociedade representa a si própria e ao mundo que a rodeia, precisamos considerar a natureza da sociedade, e não a dos indivíduos. Os símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com sua natureza [...]. Se ela aceita ou condena certos modos de conduta, é porque entram em choque ou não com alguns de seus sentimentos fundamentais, sentimentos estes que pertencem à sua constituição”. Contemporaneamente, esse conceito tem sido usado por autores da Psicologia Social como representações sociais: “Um sistema de valores, ideias e práticas com uma dupla função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientarem-se em seu mundo material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um código para nomear e classificar, sem ambiguidade, os vários aspectos de seu mundo e de sua história individual”. (MOSCOVICI, 2005, p. 21) 3 Conceito aqui entendido como o controle que a sociedade faz das instituições de Segurança Pública por meio de Organizações Não Governamentais, Conselhos etc. 9/61 A polícia4 surge no século XIX, nos países europeus, como estrutura pública, profissional e permanente, voltada à manutenção da ordem pública5 e à garantia da segurança pública. Sua primeira função foi administrar as revoltas populares que, até então, eram abordadas pelo Exército. No Brasil, as polícias foram estruturadas no período imperial com a criação da Intendência de Polícia da Corte. No Período Colonial6, as polícias desenvolviam atividades judiciárias e investigativas. Após a Proclamação da Independência, foi criada a Guarda Nacional, formada por cidadãos eleitores7, que discriminava a maioria absoluta da população que não votava por não possuir renda. Recuemos, entretanto, um pouco no tempo para salientar a primazia histórica da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro8. Em reconhecimento à singularidade dessa trajetória, vale citar o relato que a própria instituição divulga, em seu site9, sobre sua formação orgulhosa dos200 anos que, em 2009, foram celebrados: “No início do século XIX, como consequência da campanha Napolêonica de conquista do continente europeu, a Família Real portuguesa, juntamente com sua Corte, decidiram se mudar para o Brasil. Chegando aqui, a Corte instalou-se no Rio de Janeiro, iniciando a reorganização do Estado no dia 11 de março de 1808, com a nomeação de Ministros. Na época, a segurança pública era executada pelos chamados quadrilheiros – grupos formados por bons homens do Reino, armados de lanças e bastões, responsáveis pelo patrulhamento das vilas e cidades da metrópole portuguesa, cujo modelo foi estendido ao Brasil colonial. Eles eram responsáveis pelo policiamento das 75 ruas e alamedas da cidade do Rio. Com a chegada dessa nova população, os quadrilheiros não eram mais suficientes para fazer a proteção da Corte, até então, com cerca de 60.000 pessoas – mais da metade escravos. Em 13 de maio de 1809, dia do aniversário do Príncipe Regente, D. João VI criou a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte (DMGRP), formada por 218 guardas com armas e trajes idênticos aos da Guarda Real Portuguesa. A DMGRP era composta por 1 Estado-Maior, 3 regimentos de infantaria, 1 de artilharia e 1 esquadrão de cavalaria. Seu primeiro comandante foi José Maria Rebello de Andrade Vasconcellos e Souza, ex- 4 Etimologicamente, o termo deriva da expressão grega politeia: a arte de governar a cidade ou a arte de tratar da “coisa pública”. 5 M. Rolim (2006, p. 21) discute quais as funções e responsabilidades da polícia, entendendo que a manutenção da ordem pública é uma noção insuficiente, tendo em vista que a “manutenção da ordem” pode estar sustentada em uma injustiça flagrante, como é o caso do apartheid ou outras práticas totalitárias. 6 O Período Colonial começa com a expedição de Martim Afonso de Souza, em 1530, e vai até a Proclamação da Independência por Dom Pedro I, em 7 de setembro de 1822. 7 A Constituição do Império, de 1824, determinava que apenas os cidadãos com renda mínima definida em seus artigos poderiam ser eleitores. A Guarda Nacional não fugia à regra de que a riqueza e a propriedade estabeleciam o grau de direitos políticos. 8 Para uma análise profunda desse complexo processo histórico, recomendamos a leitura do artigo do professor Marcos Luiz Bretas A polícia carioca no Império, publicado na Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 219-234, 1998. 9 Acesse o site da Polícia Militar, disponível em: http://www.policiamilitar.rj.gov.br/historia.asp. 10/61 capitão da Guarda de Portugal. Um brasileiro nato foi escolhido como seu auxiliar: o Major de Milícias Miguel Nunes Vidigal”. O aparelho repressivo estatal foi estruturado para agir frente aos “não eleitores”, ou seja, aos excluídos sociais, principalmente a população de etnia negra que, submetida à escravidão10, não era entendida como parte da raça humana, e sim como uma raça inferior que poderia ser vendida como mercadoria e forçada a trabalhar sem remuneração. O regime escravocrata durou 300 anos no Brasil. Nesse período, os negros foram torturados e assassinados, física e simbolicamente, assim como as populações indígenas11, que também tiveram suas tradições massacradas e suas terras roubadas. Quando conseguiam fugir de seus “donos”, os negros, índios e miseráveis protegiam-se em Quilombos12, no intuito de sobreviver e de resistir aos senhores de terras. Durante o Império, foram criados os Corpos de Guardas Municipais, a Intendência de Polícia e instituições de estrutura militar, como a Força Pública, por exemplo. A estrutura organizacional e de competências desses órgãos encontra-se presente até hoje: cada instituição policial desenvolve ações distintas, e nenhuma das polícias cumpre o ciclo completo da atividade policial, que se caracteriza pela investigação e o policiamento ostensivo. Não há concentração de atividades em uma instituição policial: com a institucionalização do inquérito policial13, a Intendência de Polícia – hoje Polícia Civil – passou a ter a competência legal de investigar e de realizar diligências para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias, seus autores e cúmplices. Por outro lado, o 10 O Estado brasileiro possui uma dívida irreparável em sua plenitude com a população de etnia negra escravizada e massacrada no Brasil. Com seu trabalho, os negros construíram o que hoje chamamos de economia do País. Em troca disso, foram privados do direito à integridade física e psicológica e ao estudo (pois eram proibidos de frequentar escolas e faculdades); de possuir bens materiais; do cultivo de suas religiões africanas etc. Com a Abolição, em 1888, os negros continuaram sem ter direitos civis e sem poder estudar, e foram novamente condenados à miséria no País. 11 Sugestões de leitura: O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil, do antropólogo Darcy Ribeiro; e as obras históricas do professor Marcos Bretas, como Ordem na cidade. O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. 1. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 221 p. 12 Sugestão de leitura: Do Quilombo à favela: a produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro. 13 Instituído pela Reforma Judiciária do Império – Lei n° 2.033, de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto n° 4.824, de 22 de novembro de 1871. Trata-se do Instituto do Código de Processo Penal, no qual são constituídas provas sem o crivo do contraditório – provas que vêm a ganhar caráter definitivo, orientando toda prova judicial. Esse Instituto atribui à polícia poder sem controle, pois sua elaboração não conta com a presença do Ministério Público e do advogado de defesa. Além disso, mesmo sem implicar juízo de culpa definitiva, o indiciamento pode trazer danos irreparáveis aos cidadãos, que terão contra si o preconceito estampado nas “folhas corridas”, ainda que diante de eventual pronunciamento posterior de inocência. Disponível em: http://www.soleis.adv.br/codigoprocessopenal.htm#DO%20INQU%C9RITO%20POLICIAL. Acesso em: 05 ago. 2007. Texto para reflexão: O princípio do contraditório e o inquérito policial. Disponível em: http://www.fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista10/Discente/MargaridaMaria.pdf. 11/61 policiamento ostensivo, uniformizado, de patrulhamento nas ruas e de atendimento das demandas urgentes da população, era – como é hoje – de competência das instituições policiais militares, cuja organização se baseava – como ainda hoje se baseia – nas regras do Exército, com treinamento para enfrentamento de inimigos (sustentado na lógica repressiva de combate com o uso de violência). O modelo dualizado – investigação e policiamento ostensivo – teve continuidade no período republicano. A mudança se deu em relação à centralidade da organização policial nos estados federados – antigas províncias do Império. Sendo assim, foi instituída a Polícia Federal, com caráter investigativo e judiciário. No período da Ditadura Militar14, de 1964 a 1985 – caracterizado pela supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contrários ao regime militar –, foram extintas as guardas civis em 15 Estados brasileiros. Em alguns casos, elas se somaram às forças militares estaduais, dando origem a Polícias Militares, comandadas por oficiais superiores do Exército e coordenadas pela Inspetoria- Geral das Polícias Militares (IGPM)15, que “acompanhava” a execução das atividades dessasnovas instituições – as PMs –, de forma a não permitir desvios dos propósitos que lhes fossem estabelecidos pela União, na legislação pertinente. A partir do Decreto nº 88.777 de 198316, editado pelo Presidente João Figueiredo – que aprova o regulamento para Polícias Militares e Corpos de Bombeiros –, os governos estaduais (via Secretarias de Segurança Pública ou diretamente) ficaram incumbidos apenas da orientação e do planejamento das PMs, ou seja, do estabelecimento de diretrizes para as respectivas Polícias Militares estaduais. A Constituição Federal17 de 1988 (CF) foi um avanço no que tange aos direitos individuais e coletivos, e aos direitos sociais (Artigo 5º ao Artigo 11). Entretanto, no que se refere à estrutura institucional do setor de segurança, podemos afirmar que não houve mudanças significativas, inclusive, em certo sentido, a Carta Magna foi mais conservadora que a anterior (de 1969) no que tange às Justiças militares estaduais, ao garantir foro privilegiado para julgamento de policiais (Artigo 125, Parágrafos 3º e 4º). No Capítulo III da CF – Da Segurança Pública18 –, foi mantida a vinculação das Polícias Militares ao Exército, e, em relação à Polícia Civil, permaneceu a mesma orientação do período de arbítrio: preservou-se seu papel de polícia judiciária na elaboração do inquérito policial. A dualidade (constitucional) da atividade policial – cuja determinação indica que uma (Polícia Civil) realiza a investigação e a outra (Polícia Militar), o policiamento ostensivo – representa o maior obstáculo para o trabalho integrado das atividades policiais. Isso se 14 Sugestão de leitura: Brasil nunca mais – um relato para a história. Rio de Janeiro: Vozes. 15 Criada pelo Decreto n° 61.245, de 28 de agosto de 1967, com o objetivo de o Exército coordenar as ações das forças militares estaduais. 16 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto/D88777.htm. 17 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. 18 Artigo 144, Parágrafo 6º. 12/61 deve ao fato de que as Polícias Militares criam mecanismos de investigação, assim como as polícias civis recorrem à formação de unidades de policiamento ostensivo. O controle democrático interno e externo das instituições de Segurança Pública não ocorre apenas por regulamentos normativos, preceitos jurídicos ou sanções formais, mas como o produto de instituições, relações e processos sociais mais amplos. Esses processos vão desde a criação de ouvidorias e corregedorias até a atuação de Conselhos, a vigilância constante da mídia, o trabalho das ONGs/OSCIPs19 e de outras organizações da sociedade civil organizada – como os movimentos GLBTT, Social Negro, de defesa dos povos indígenas, de defesa dos Direitos Humanos, feministas e do hip hop. Nesse contexto, é preciso distinguir o que é Corregedoria do que é Ouvidoria, em termos de objeto, finalidade, proposta e atribuições. A destinação da Ouvidoria é canalizar, escutar, perceber e detectar problemas (ainda que também possa receber e registrar elogios e sugestões) para encaminhá-los à Corregedoria (ou aos comandos pertinentes, quando se trata de elogios e recomendações), que é quem tem atribuição para tomar medidas investigativas. Em outros países – como a Irlanda, por exemplo –, a Ouvidoria tem mais peso, autonomia e autoridade para investigar e acusar diretamente a Justiça. O ouvidor (ou a ouvidora) é eleito(a), tendo mandato e recursos correspondentes às responsabilidades. No Brasil, as Ouvidorias da polícia foram criadas a partir de meados da década de 1990, com a finalidade de receber reclamações ou elogios relacionados a policiais civis e militares. Mesmo quando os ouvidores têm mandato, não são eleitos e carecem de autonomia, autoridade e recursos para investigar por conta própria. Trata-se de uma atividade técnica, cujas atribuições são: ouvir as reclamações de qualquer cidadão contra os abusos de autoridades e agentes policiais, civis e militares; receber denúncias contra os atos arbitrários, ilegais e de improbidade administrativa – praticados por servidores públicos vinculados à Segurança Pública – ou elogios relativos a atos virtuosos. Já as Corregedorias têm como competência promover as ações necessárias à apuração da veracidade das reclamações e denúncias, e, nesse caso, tomar as medidas necessárias ao saneamento das irregularidades, ilegalidades e arbitrariedades constatadas, para responsabilização civil, administrativa e criminal dos imputados. Se forem realmente autônomas e tiverem poder de auditar e fiscalizar as polícias, as Ouvidorias e Corregedorias de Polícia representarão um instrumento de controle democrático da população sobre as instituições de Segurança Pública, podendo vir a ser um dos principais mecanismos para garantir o controle da atividade policial na ótica dos Direitos Humanos. Para tanto, as Ouvidorias e Corregedorias precisam ser independentes Isso só ocorrerá se houver mandato na execução das atividades e se o ouvidor e o 19 ONG é a sigla de Organização Não Governamental. Sua designação negativa (Não Governamental) revela a ideia inicial de independência e ocupação do espaço público por quem não é do governo. No direito brasileiro, não há qualquer designação de ONG, mas um reconhecimento de cunho cultural, político e sociológico. OSCIP, por sua vez, é a sigla de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, conforme disposto pela Lei nº 9.790/99. Trata-se de grupo e subgrupo, gênero e espécie. A OSCIP é reconhecida como tal por ato do governo federal, emitido pelo Ministério da Justiça, ao analisar o estatuto da instituição. Para tanto, é necessário que o estatuto atenda a certos pré-requisitos que estão descritos nos Artigos 1º, 2º, 3º e 4º da Lei nº 9.790/99. 13/61 corregedor não estiverem subordinados ao comando das polícias, à Secretaria de Segurança ou ao Governador do Estado, o que dificultará o andamento de denúncias contra o setor intermediário e superior das instituições policiais. Outro “ator” fundamental para o controle democrático das instituições policiais é o Ministério Público – instituição do Estado cuja finalidade é verificar se a lei está sendo obedecida e, em caso contrário, provocar (geralmente através do Poder Judiciário) os órgãos do Estado, com incumbência de obrigá-los a cumprir a lei. Nesse sentido, o Ministério Público promove a aplicação das leis, a fim de que suas orientações estejam presentes nas relações sociais, e não apenas nos textos legais. A partir da Constituição Federal (Artigo 127)20, o Ministério Público tornou-se uma instituição independente, não se vinculando a nenhum dos poderes do Estado, com garantias de autonomia administrativa e funcional. A autonomia baseia-se no fato de que o recrutamento de seus membros está em suas mãos. Da mesma forma, a independência funcional e as garantias constitucionais manifestam-se sob as formas de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Entretanto, isso tudo é discutível, pelo menos até certo ponto, quando observamos que cabe ao Executivo escolher o Procurador Geral da Justiça, com base em uma lista tríplice encaminhada pela própria instituição. Por outro lado, a capacidade efetiva de cumprir suas atribuições é limitada por fatores como a dependência em relação a outras instituições – particularmente o Judiciário e a Polícia –, já que elas podem facilitar, dificultar ou mesmoimpedir o andamento de uma investigação, além da possibilidade de vulnerabilidade a pressões políticas. Sendo assim, 20 Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1º – São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. § 2º – Ao Ministério Público, é assegurada a autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no Art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998). § 3º – O Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias. § 4º – Se o Ministério Público não encaminhar a respectiva proposta orçamentária dentro do prazo estabelecido na Lei de Diretrizes Orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 3º. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 5º – Se a proposta orçamentária de que trata este Artigo for encaminhada em desacordo com os limites estipulados na forma do § 3º, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 6º – Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). 14/61 para que seja realizado o controle democrático eficiente, é necessário que ele seja interno e externo, como forma de evitar os riscos provocados pelo corporativismo. Quanto mais independente e fortalecida for a instituição que fará o controle, menos riscos haverá para seu funcionamento eficiente. Daremos continuidade ao tema das instituições de Segurança Pública na próxima aula, cujo tema abordado será: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público. Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao filme Quase dois irmãos. Sinopse: Miguel, senador da República, visita seu amigo de infância Jorge – que se tornou um poderoso traficante de drogas do Rio de Janeiro – para lhe propor um projeto social nas favelas. Apesar de suas origens diferentes, eles se tornaram amigos quando crianças, nos anos 1950, pois o pai de Miguel tinha paixão pela cultura negra e o pai de Jorge era compositor de sambas. Nos anos 1970, eles se encontraram novamente na prisão de Ilha Grande. Ali, as diferenças raciais eram mais evidentes: enquanto a maior parte dos prisioneiros brancos estava lá por motivos políticos, a maioria dos prisioneiros negros era de criminosos comuns. Este filme é um retrato da relação entre a classe média e a favela carioca, marcado pela música popular e pela história política recente. Assista ao documentário Vlado: 30 anos depois. Sinopse: Este documentário conta a história do jornalista Vladimir Herzog através de depoimentos de pessoas que conviveram com ele. Herzog foi assassinado na prisão, em 1975, durante o Regime Militar brasileiro. Disponível em: http://www.adorocinema.com. Acesso em: 05 ago. 2010. 15/61 ATIVIDADE PROPOSTA Suponha que uma pesquisa tenha sido realizada com os moradores das zonas mais ricas e das localidades mais pobres da cidade do Rio de Janeiro. Nessa pesquisa, cada morador teria sido questionado sobre o que entendia quanto às principais demandas em relação às polícias. Nesse caso, as respostas seriam certamente diferentes. Cada grupo social parte de sua realidade, ou seja, alguns – que possuem segurança privada no prédio em que moram – podem entender que o problema da polícia é a falta de estrutura para investigar os crimes. Outros – que não estão preocupados com a polícia judiciária e que nunca tiveram advogado – querem chegar às suas casas sem que sejam atingidos por balas perdidas. Esses moradores almejam uma polícia próxima, honesta, que proteja a comunidade dos bandidos. Pense nisso e responda: 1. Da maneira como estão constituídas hoje, as polícias atendem a todos do mesmo modo? Justifique sua resposta. 2. O papel das Ouvidorias é importante nesse processo? Justifique sua resposta. Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre as seguintes questões: A integração do ciclo completo das atividades policiais – investigação e policiamento ostensivo – poderia ser feita pela mesma instituição? Quais as vantagens e desvantagens dessa integração? Ao desempenharem suas funções, as polícias reproduzem as desigualdades econômicas e sociais? 16/61 Nesta aula, você: Compreendeu o contexto em que as instituições policiais foram criadas; Entendeu qual a função de cada instituição; Conheceu as formas de controle externo e interno das polícias como órgãos imprescindíveis para a sociedade. Após termos estudado as questões relacionadas à abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública e seu controle democrático interno e externo, daremos continuidade ao assunto na próxima Aula, cujo tema abordado será: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público. 17/61 Aula 2: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Definir Estado Democrático de Direito, democracia e lei; 2. Avaliar o papel das polícias no espaço público e os limites legais a que estão submetidas; 3. Identificar a importância da discricionariedade da função policial. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público. Devido ao sentimento coletivo de insegurança e ao destaque dado pela mídia, nos últimos anos, ao aumento de casos de criminalidade nas cidades, discute-se, especialmente no meio acadêmico e em algumas instituições de Segurança Pública, o que se espera das polícias. Dependendo das diretrizes político-institucionais que determinam suas linhas de atuação junto à sociedade, as polícias podem ter vários papéis que não necessariamente se excluem, como, por exemplo, prender criminosos e, ao mesmo tempo,priorizar estratégias de prevenção da violência. Entretanto, independente dessas ”opções”, tanto as instituições de Segurança Pública quanto a sociedade civil estão submetidas ao Estado Democrático de Direito, ou seja, a lei é soberana. Portanto, o arbítrio do policiamento não é ilimitado. Com o advento da Constituição Federal do Brasil de 198821, foram incorporados ao Ordenamento Jurídico pátrio os princípios universais do Estado Democrático de Direito. O 21 Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 18/61 conceito de Estado Democrático deriva da etimologia do termo democracia e significa que nenhum indivíduo – presidente ou cidadão comum – está acima da lei. Os três grandes movimentos político-sociais responsáveis pela condução ao Estado Democrático foram: a Revolução Inglesa, com influência de John Locke22 e expressão mais significativa em Bill of Rights23 (1689); a Revolução Americana, com seus princípios expressos na Declaração de Independência das 13 colônias (1776); e a Revolução Francesa, com influência de Jean Jacques Rousseau24, que deu universalidade a seus princípios devidamente expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)25. A democracia é um sistema político no qual o povo inteiro tem o direito de tomar as decisões básicas, determinantes, por sua vez – pela mediação da representação –, das decisões políticas do país. Esse direito é garantido por um conjunto de regras fundamentais, tais como a Constituição brasileira e de outros países26. Como o coletivo é heterogêneo, normalmente, leva-se em conta a vontade da maioria, seguindo o entendimento de que o número maior está mais perto de representar o todo. Essa posição gera críticas, pois o todo não é a maioria, mas necessita de consenso e conciliação. Para que isso ocorra, é necessário que os indivíduos estejam em pé de igualdade relativamente às decisões fundamentais. Em outras palavras, há democracia em uma sociedade na qual exista um grau razoável de igualdade social, econômica e cultural. 22 Suas ideias fundamentam-se na noção de governo consentido dos governados, diante da autoridade constituída, e do respeito ao direito natural do ser humano – de vida, liberdade e propriedade. Sem perder de vista o contexto histórico em que viveu, é importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que Locke defendia a igualdade entre os homens, também era defensor da escravidão – mas não aquela determinada pela raça, como ocorreu no período escravocrata do Brasil. Como sugestão, leia o texto sobre e de Locke, disponível em: http://www.geocities.com/spaprado/textoslocke.html 23 Declaração de Direito de 1689, proclamada na Inglaterra pelo Parlamento que determinou, entre outras coisas, a liberdade, a vida e a propriedade privada, assegurando o poder da burguesia na Inglaterra. Acesse o texto da Declaração, disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/decbill.htm. 24 De acordo com Rousseau, (2001, p.17): “Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, inclusive a seus deveres. Não há nenhuma compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana, e é arrebatar toda moralidade a suas ações bem como subtrair toda liberdade à sua vontade. Enfim, não passa de vã e contraditória convenção estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites.” Acesse, na íntegra, a obra Contrato social: princípios do Direito político, de Jean-Jacques Rousseau, disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf. 25 Acesse a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm. 26 Leia sobre as Constituições e seus contextos, de José Saramago, disponível em: http://caderno.josesaramago.org/2008/10/20/constituicoes-e-realidades/ 19/61 No Brasil, a democracia foi tolhida por um conjunto de obstáculos como renda, propriedade, gênero, educação, idade e diversidade étnica, que levaram os grupos socialmente discriminados a se organizarem no que hoje chamamos de movimentos sociais – cada um com sua história, mas todos ligados pela exclusão do processo democrático e pela discriminação. A partir da democracia e da luta dos movimentos sociais organizados, foi conquistado o Estado Democrático de Direito – bandeira de luta contra o Regime Militar no Brasil e em outros lugares do mundo, em que governos tiranos27 imperaram sobre a vontade do povo. O Estado de Direito promove os direitos fundamentais, políticos, sociais e econômicos, protegendo o povo da tirania e da ilegalidade, e garantindo que os governos não tenham poder ilimitado, isto é, que também estejam submetidos às normas legais. Nesse sentido, o princípio da legalidade28 – presente no rol dos princípios do Estado Democrático de Direito – atua não só com regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio autoritário do Estado enquanto meio de ordenação racional, mas também como alicerce para a construção da igualdade social29 no país. Além disso, o Estado Democrático é considerado, pelo menos em teoria, como possível transformador da realidade, agindo como fomentador da participação pública para sustentar a democracia, tendo em vista que esta implica necessariamente o combate à desigualdade nas condições materiais de existência dos cidadãos. Para chegarmos à ideia atual de Estado Democrático, foram necessárias inúmeras rupturas e transformações no Estado de Direito. Diferentemente da ideia a que se prendiam os outros modelos de Estado (liberal e social), o Estado Democrático de Direito apresenta a incorporação de conteúdos novos, com o aumento de direitos e mudanças no próprio conteúdo do Direito. Verificamos uma mudança no caráter da regra jurídica, substituindo-se o preceito genérico e abstrato pelo predomínio de um direito interpretado à luz de um conjunto de valores e princípios. A concepção formal é submetida à predominância de concepção material ou substancial. O Estado adquire um caráter mais dinâmico e mais forte do que previa sua concepção formal, ou seja, privilegia-se a visão segundo a qual as normas devem estar submetidas às variações sociopolíticas, analisando-as de acordo com os princípios democráticos de Direito. Nesse contexto, o papel do policiamento no espaço público pode ser analisado por vários ângulos. A maior parte das pessoas espera que a polícia prenda os que cometeram condutas tipificadas como crimes “inaceitáveis”. Isso porque alguns tipos penais30 são 27 Oposto de democracia. Trata-se de uma forma de governo em que há poder ilimitado por parte dos chefes de Estado. 28 Sobre o princípio da legalidade, o Artigo 5º, Inciso II, da Constituição afirma: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. 29 Por igualdade social, entende-se uma situação em quetodos (homens e mulheres de todas as etnias, negros, índios, ciganos etc.) tenham as mesmas condições de acesso à educação, à saúde, ao mercado de trabalho, à Segurança Pública, ao lazer, e, como defende o escritor Eduardo Galeano, ao direito de sonhar. Acesse o texto O Direito de Sonhar, disponível em: http://www.dhnet.org.br/desejos/sonhos/dsonhar.htm. 30 Modelo pelo qual o Estado, por meio da lei penal, descreve e classifica o comportamento humano transgressor. Veja um exemplo no Código Penal: 20/61 mais aceitos que outros pela opinião pública, como, por exemplo, a sonegação fiscal31 e o estelionato32. Com o princípio nullum crimen sine lege33, a Lei Penal34 impede que o arbítrio de cada um defina o que deve ou não ser considerado como crime, limitando, de forma positiva, a atuação policial, mesmo sabendo que ela não impede mecanismos culturais de seleção do que é ou não condenável. Por outro lado, os policiais não lidam apenas com questões relacionadas à criminalidade, mas desempenham tarefas burocráticas, auxiliam em eventos públicos, buscam desaparecidos, escoltam autoridades, controlam multidões em jogos de futebol, transportam doentes aos hospitais etc. Diante da complexidade de demandas com as quais os policiais se deparam cotidianamente, é equivocado pensar que as polícias desempenham apenas atividades de combate à criminalidade35. Suas funções não podem ser reduzidas à luta contra o crime, pois, normalmente, abrangem uma enorme diversidade de tarefas. As polícias atuam segundo a legislação e seus estatutos, mas esses, como qualquer norma formal, necessitam da interpretação do indivíduo que irá aplicá-los. Essa sistemática chama-se poder discricionário dos profissionais de Segurança Pública. A discricionariedade é inerente ao trabalho; não se trata de descompromisso com a legalidade. A interpretação humana é parte do conjunto de fatores de que é composto o trabalho dos policiais. Para ser aplicada, a lei necessita de um agente que o faça. Isso implica escolha entre diferentes interpretações possíveis do fato. Por exemplo, alguém foi agredido ou, na verdade, sofreu as consequências da resistência de sua vítima? O pedido da presença policial tinha o intuito de salvar uma vida ou de proteger um cidadão e preservar direitos e liberdades, ou tinha a velada intenção de incriminar alguém, fazendo com que aparências ocultassem o que realmente aconteceu? Seria melhor apoiar a liderança local para obter a paz momentaneamente suprimida ou seria recomendável solicitar reforço e agir, diretamente, para restaurar a ordem pública? Haveria, de fato, riscos envolvidos em determinada situação, objeto de reclamação de alguns moradores e comerciantes, Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. 31 Veja a tipificação da sonegação fiscal, disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/1950- 1969/L4729.htm. 32 Veja a tipificação do estelionato, disponível em: http://www.dji.com.br/codigos/1940_dl_002848_cp/cp171a179.htm. Para refletir sobre estelionato e impunidade, acesse : http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6223 33 Expressão latina que significa: não haverá crime sem lei anterior que o defina. Em outras palavras, alguém só pode ser preso se a lei (anterior ao fato) disser que sua ação ou omissão constitui um fato delituoso (Artigo 2º do Código Penal Brasileiro). 34 Acesse, na íntegra, o Código Penal Brasileiro, disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto- Lei/Del2848compilado.htm. 35 Acesse o site da Revista do Fórum de Brasileiro de Segurança Pública, com artigos sobre o tema, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/pdf/revista_3/RBSP_BAIXAres.pdf. 21/61 em uma certa rua, ou se trata de preconceito contra adolescentes pobres, que apenas se divertiam na área, sem cometer qualquer crime ou irregularidade? O atributo da discricionariedade na função policial36 não pode ser entendido como medida arbitrária. Embora tenha caráter subjetivo, trata-se de uma prerrogativa legal conferida à Administração Pública para a prática de atos administrativos quanto à conveniência, à oportunidade e ao conteúdo desses atos. A discricionariedade37 é a liberdade de ação administrativa dentro dos limites estabelecidos pela lei. Portanto, não se confunde com arbitrariedade. Cabe salientar que os profissionais de segurança, tanto no momento de interpretar as normas quanto no atendimento ao público, podem adotar comportamentos desiguais, de acordo com as características de cada indivíduo-alvo da abordagem – por exemplo, se for pobre, negro, profissional do sexo ou estrangeiro (especialmente de países latino- americanos). Essa postura não representa, necessariamente, um desejo consciente do indivíduo profissional de polícia ou uma exigência de seus superiores. Essa postura pode ser a reprodução do sistema sociocultural perverso e excludente no qual está inserido de forma involuntária, o que, por outro lado, não exclui sua responsabilidade enquanto cidadão e profissional. Da mesma forma, nenhum preconceito culturalmente reproduzido deve servir de justificativa para a prática de qualquer crime (como, por exemplo, o crime de racismo). No cotidiano das cidades, é visível que a percepção de segurança está sendo construída por estratégias particulares, as quais utilizam – muitas vezes, de forma ilegal – a segregação em vias públicas para proteger condomínios por meio de cancelas e guaritas, com seguranças privados que, arbitrariamente, decidem quem pode transitar no local. Essas situações refletem um dos maiores desafios a serem enfrentados na construção do papel do policiamento no espaço público, pois dizem respeito à herança autoritária e elitista na concepção do trabalho policial. Um aspecto a ser considerado – porque pode influir no reforço da tradição autoritária – é a natureza militar de uma das Polícias Estaduais (o que não significa que não haja problemas relativos a essa questão nas Polícias Civis). As instituições policiais podem-se utilizar de características organizacionais do militarismo – como o uniforme e a hierarquia –, sem que isso exerça qualquer impacto negativo sobre o comportamento e a postura adequados à democracia. O que ameaça a atuação democrática e compatível com os Direitos Humanos por parte das polícias é a perniciosa influência do Exército sobre os assuntos de Segurança Pública, que desconsidera as especificidades do trabalho policial. Dessa forma, partindo da ideia de que vivemos em um Estado Democrático de Direito, entendemos que, mesmo a atividade policial sendo regida por estatutos legais, os policiais possuem poder discricionário legítimo para desempenhar suas funções, as quais envolvem fatores complexos. 36 Para refletir sobre o tema, leia um artigo sobre a função policial militar como operador do Direito, disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9539. 37 Para refletir sobre o tema, leia um artigo sobre a discricionariedade da autoridade policial no inquérito policial, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/artigos/o-sigilo-do-inquerito-policial. 22/61 Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao documentárioNotícias de uma guerra particular. Sinopse: Produzido pelo cineasta João Moreira Salles e pela produtora Kátia Lund, em 1999, este documentário tem como principais personagens os policiais, traficantes de drogas e os moradores das favelas. Nele, mostram-se, também, a vida no Morro Dona Marta, em Botafogo, na zona sul da cidade. Assista ao documentário Ônibus 174. Sinopse: Produzido por José Padilha, este documentário apresenta uma investigação cuidadosa, baseada em imagens de arquivo, entrevistas e documentos oficiais, sobre o sequestro de um ônibus em plena zona sul do Rio de Janeiro. O incidente, que aconteceu em 12 de junho de 2000, foi filmado e transmitido ao vivo por quatro horas, paralisando o País. 23/61 ATIVIDADE PROPOSTA Leia a seguinte tirinha: Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre as seguintes questões: Sabemos que as polícias devem desenvolver suas atividades de acordo com a legislação, mas é isso o que acontece na prática? Se não, por que isso ocorre? Quais são os atores envolvidos nesse processo? Quais os o maiores desafios da democracia em relação à Segurança Pública? Esta tirinha é de autoria do argentino Quino, criador da personagem Mafalda. Por meio de histórias em quadrinho, Quino imortalizou o período pós-ditadura vivenciado na Argentina. Nessa tirinha, vemos Mafalda surpresa com o significado da palavra democracia encontrado no dicionário. Por que será que a personagem achou tão engraçado o que leu? Qual a realidade dos países democráticos em relação à soberania do povo? 24/61 Nesta aula, você: Compreendeu que o Brasil é um Estado Democrático de Direito; Entendeu que todos estamos submetidos ao ordenamento legal, inclusive as instituições policiais e as autoridades políticas. Dando continuidade à reflexão sobre o papel do policiamento no espaço público, na próxima aula, o tema abordado será: O policiamento comunitário. Analisaremos, com especial atenção, a diferença entre policiamento comunitário e o policiamento entendido como militar, e o conceito de comunidade. 25/61 Aula 3: Policiamento comunitário Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Definir policiamento comunitário; 2. Identificar os desafios para implementação de ações voltadas ao policiamento comunitário; 3. Descrever as vantagens desse tipo de policiamento; 4. Avaliar o papel da comunidade nesse processo. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula Policiamento comunitário. O papel do policiamento nas cidades brasileiras está contaminado pela falta de credibilidade da polícia perante a população. Se, por um lado, as polícias deixam a desejar, por outro, os policiais não possuem condições materiais e humanas para dar conta das demandas que a sociedade lhes dirige no cotidiano. A população, da qual os policiais fazem parte, não reconhece ou valoriza o trabalho da polícia, principalmente dos policiais honestos, os quais, mesmo sem condições, querem diminuir a criminalidade e a violência. A partir do reconhecimento da importância dessa relação entre cidadão comum e polícia, foi idealizado o chamado policiamento comunitário – um conjunto de ações que visam prevenir a violência por meio da criação de canais de integração e de participação social, sustentados pela confiança mútua e pela colaboração entre polícia e comunidade. Há uma distância cultural que afasta os policiais dos cidadãos e vice-versa. São muitos os obstáculos para essa aproximação, como o descrédito das polícias e a falta de espaços de diálogo. A polícia comunitária surge como resposta a esse conjunto de problemas, visando oferecer, a um só tempo: melhores serviços de segurança, em uma perspectiva, sobretudo, preventiva; novas bases para a restauração da confiança abalada ou perdida (o que, caso se concretize, terá efeito sobre a própria qualidade do trabalho policial, fortalecendo-o com boa dose de renovada legitimidade); e novos canais de comunicação direta com cada comunidade local. A polícia comunitária é um novo modelo de policiamento que ganhou força nas décadas de 1970 e 1980, quando as organizações policiais, em diversos países da América do Norte e da Europa Ocidental, começaram a promover uma série de inovações em sua estrutura e na forma de lidar com o problema da criminalidade. Em distintos países, as organizações policiais promoveram experiências e inovações diversificadas, ou seja, os contextos de cada lugar foram levados em conta na elaboração de estratégias a serem desenvolvidas. 26/61 No Brasil, o policiamento comunitário38 é normalmente entendido como uma filosofia de atuação e construção de estratégias de policiamento baseadas na cooperação entre a polícia e a comunidade. Essa filosofia estaria voltada para a melhoria da Segurança Pública através da identificação e resolução dos problemas da comunidade que aumentam o risco de crimes. A proposta desse policiamento é associar, de forma inteligente, elementos para prevenção de crimes, que, frequentemente, são dissociados e desvalorizados pela polícia – como a participação popular e parcerias entre a polícia e a comunidade (vale reiterar) na identificação e resolução de problemas locais. Por essa razão, o policiamento comunitário também é chamado de policiamento orientado para a comunidade, policiamento orientado Para a identificação e resolução de problemas da comunidade e policiamento orientado para a manutenção da ordem pública e para a melhoria da qualidade de vida da comunidade39. A proposta do policiamento comunitário não exclui ou substitui, nas instituições policiais, o indispensável investimento em recursos humanos e materiais. Pelo contrário, essa proposta visa, justamente, qualificar os profissionais e suas condições de trabalho como forma de alcançar maior eficiência, mas também como um meio de reconquistar a credibilidade pública – o que se cumpre com melhores resultados na provisão de segurança, com abordagens mais adequadas, inteligentes, civilizadas, eficientes e de acordo com a legalidade. O policiamento comunitário constitui uma metodologia, uma concepção e até mesmo um paradigma técnico-profissional alternativo ao modelo atual, que pode ser entendido como algo militarizado e de combate do inimigo. A ideia de policiais atuarem em colaboração com a comunidade supõe uma mudança40 de paradigma41 da polícia tradicional. Para isso, muitos obstáculos têm de ser superados. Ao longo dos 200 anos de sua história, as organizações policiais do Brasil42 estiveram quase sempre voltadas para a proteção do Estado contra a sociedade. Até mais ou menos a década de 1970, essas organizações foram, por força de lei, forçadas a abandonar seu lugar de polícia em favor de outro lugar, cuja função poder-se-iadefinir 38 Para refletir sobre o policiamento comunitário, leia um artigo disponível em: http://www.upis.br/nusp/downloads/nusp10.pdf. 39 O quality of life policing valoriza e chama a atenção para a importância de manter a ordem pública e melhorar a qualidade de vida da comunidade, a fim de promover a Segurança Pública. Esse tipo de policiamento ficou conhecido principalmente através dos programas Tolerância Zero, inspirados na teoria das janelas quebradas que será abordada na Aula 4. 40 “[...] mudar quer dizer alterar o modo corrente de interação no seio do sistema com os usuários e a população em geral. Trata-se de diminuir a dependência em relação à lógica burocrática e de confiar, cada vez mais, em consenso e participação, transformando a experiência de todos e cada um com o sistema de justiça.” Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359. Acesso em: 05 ago. 2007. 41 Para refletir sobre o assunto, leia o artigo Reinventando a polícia: a implementação de um programa de policiamento comunitário, disponível em: http://www.crisp.ufmg.br/reinventando.pdf. 42 Sobre as organizações sociais do Brasil, acesse a entrevista com a antropóloga Jacqueline Muniz, disponível em: http://www.comciencia.br/entrevistas/jacquelinemuniz.htm. 27/61 como a imposição da ordem do Estado. Dessa forma, o processo de afastamento da polícia em relação à sociedade teve curso, no País, desde a fundação das instituições policiais. A ideia que se tinha – e que vigorou por um bom tempo como única forma de entender as polícias – é que essas instituições deveriam proteger-se de uma sociedade insurreta e rebelde, porque os germes da desordem poderiam contaminá-las ou poluí-las. A partir da década de 1990, as instituições policiais procuraram estabelecer novos caminhos de atuação e buscar sua identidade como instituição que deve proteger o cidadão e garantir-lhe sua liberdade e seus direitos, através de um protocolo vinculado a uma prática cidadã. Resgatando sua função essencial para o Estado Democrático de Direito, os processos de reestruturação da polícia tentam romper com práticas abusivas utilizadas rotineiramente, naturalizadas no âmbito das culturas corporativas tradicionais e forjadas em períodos autoritários da vida nacional. O modelo de policiamento comunitário – como o próprio nome diz – concede à comunidade ou às comunidades um papel central. Esse lugar lhes é concedido a título duplo: como vítimas diretas da atuação do Estado em suas vidas e como participantes da construção de novas formas de administrar os conflitos locais – entendendo-se que, quando alguém é afetado por alguma forma de violência criminal, esta atinge não só a pessoa diretamente prejudicada pela criminalidade mas também a comunidade mais ou menos próxima da vítima direta. Essa ideia de que a comunidade será lesada, indiretamente, pela violência baseia-se em uma orientação que desloca o foco de uma justiça clássica punitiva – na qual o Estado é tido como a entidade prejudicada pelo crime – para um movimento restaurativo43, no qual as pessoas e suas comunidades, junto à polícia, sofrem os contragolpes da violência e da criminalidade. Para que exista, efetivamente, uma polícia comunitária, não é demais repetir: é preciso construir, desde que haja vontade política, canais de participação e colaboração da população com a polícia, entendendo que os policiais também são cidadãos e estão ali desempenhando suas funções de profissionais de Segurança Pública. O desafio é inserir os policiais enquanto membros das comunidades, e não como seus inimigos. Resta a pergunta: o que é uma comunidade e o que seria uma comunidade genuína44? O conceito de comunidade é comumente utilizado para identificar um grupo de pessoas que, convivendo em um mesmo local, compartilham dos mesmos interesses e problemas. Há a expectativa de que, nas comunidades, todos sejam fraternos entre si e 43 Movimento referente à justiça restaurativa e à resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam àqueles que foram prejudicados por um incidente ou transgressão a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteçam novamente. A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal. O engajamento cooperativo é elemento essencial da justiça restaurativa. Trata-se, enfim, de suprir as necessidades emocionais e materiais das vítimas e, ao mesmo tempo, fazer com que o infrator assuma a responsabilidade por seus atos, mediante compromissos concretos. 44 Na obra A ideologia alemã (apud BOTTOMORE, 2001), Marx e Engels afirmam: “[...] em uma comunidade genuína, os indivíduos conquistam sua liberdade na/e através de sua associação.” 28/61 vivam em concordância com os mesmos valores, mas sabemos que não é essa a realidade. Uma comunidade caracteriza-se justamente pela diversidade. É a partir do diálogo entre diferentes opiniões, religiões e concepções que se torna possível criar canais de interlocução com a comunidade em seu conjunto – entendida como uma rede de segmentos diferenciados. Se as instituições policiais desejam criar fluxos positivos e abertos de interlocução, têm de fazê-lo respeitando e trabalhando com essa pluralidade constitutiva da comunidade. As relações internas às comunidades são complexas por natureza, e não haverá uma harmonia comunitária idealizada para interagir com a polícia. A palavra comunidade evoca, muitas vezes, tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para vivermos seguros e confiantes no mundo moderno. O conceito de comunidade não pode ser idealizado de forma cálida45, ou seja, um lugar em que todos se entendem bem, no qual podemos confiar no que ouvimos, no qual não há estranhamento entre os indivíduos e onde todos vivem em harmonia. Geralmente, as pessoas esperam das polícias um atendimento individualizado, pautado por ocorrências, com culpados punidos imediatamente. A expectativa da opinião pública é a de que se efetue o combate à criminalidade de forma tradicional (militarizada). Em outras palavras, da forma como tem atuado até este momento, se a polícia não conquistou a confiança da população, certamente não foi por falta de sintonia ideológica com o pensamento médio da sociedade, mas por suas deficiências, inclusive, na execução do modelo tradicional de segurança, bem como por conta das limitações intrínsecas a esse modelo. Ignorando-o, a opinião social média acaba atribuindo às polícias os defeitos do modelo que ela mesma idealiza. Ainda não vivemos a cultura da prevenção, do trabalho em parceria para cuidar de todos, e não do individual. A diferença do que é público para o que é privado constitui um desafio importante a ser superado para aproximar as instituições policiais do cidadão comum, até porque, no Brasil, o que é público não necessariamente o é para todos da mesma forma. A maioria da população não conhece os museus, os teatros, não pode entrar nos shoppings, não frequenta as universidades públicas etc. Nesse processo, a construção da comunidade passa pelo entendimento de que cuidar do que é público e coletivo é também cuidar do privado e do individual. Sendo assim, para falarmos de polícia comunitária, temos de analisar não só o papel dos policiais mas também o papel da comunidade, que, nãoraro, espera apenas a ação reativa e repressiva, cuja lógica da punição é a única forma de atender as demandas de Segurança Pública. O investimento deve ser intersetorial46, abrangendo desde a redução 45 Nas palavras de Bauman (2003, p. 8): “[...] em uma comunidade, podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé novamente. Ninguém rirá de nós nem ridicularizará nossa falta de jeito e alegrar-se-á com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicação e pedir desculpas, arrepender-nos se, necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre.” 46 Para problemas com causas complexas, devem ser oferecidas resoluções que atendam a multiplicidade de fatores envolvidos. 29/61 da rotatividade de pessoal – para que os policiais possam conhecer, aos poucos, as pessoas, estabelecendo vínculos de confiança com os moradores – até o aumento de efetivos, viaturas, coletes etc. ou mesmo a realização de melhorias no bairro e a revitalização de espaços públicos abandonados – com a participação dos moradores não como mão de obra, mas na construção do conceito do que se espera para o local. Outra decisiva exigência para um policiamento comunitário é a valorização do policial como cidadão e trabalhador, para que, sentindo-se respeitado como profissional e membro da sociedade, também o seja pela comunidade na qual desenvolve suas atividades. Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao filme Justiça. Sinopse: Este documentário, de Maria Augusta Ramos, pousa a câmera onde muitos brasileiros jamais puseram os pés – o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro –, acompanhando o cotidiano de alguns personagens. Há os que trabalham ali diariamente (defensores públicos, juízes, promotores) e os que estão de passagem (réus). Disponível em: http://www.justicaofilme.com.br. Acesso em: 05 ago. 2010. ATIVIDADE PROPOSTA Lei o fragmento a seguir: “[...] em uma comunidade, podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé novamente. Ninguém rirá de nós nem ridicularizará nossa falta de jeito e alegrar-se-á com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicação e pedir desculpas, arrepender-nos se, necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre.” (BAUMAN, 2003, p. 8) Comunidade não é sinônimo de homogeneidade e paz entre os moradores. Sendo assim, as ações de policiamento comunitário devem ser desenvolvidas apenas nos locais em que há respeito e integração entre os moradores? Justifique sua resposta. Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. 30/61 Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre o seguinte tema: O policiamento comunitário não exclui outras formas de policiamento, apenas abre espaço para que seja criado um novo paradigma, no qual a polícia desempenha suas atividades em colaboração com a comunidade. Quais os benefícios dessa nova forma de pensar a polícia? Nesta aula, você: Conheceu o novo paradigma de atuação das polícias; Realizou uma análise crítica do papel das polícias junto às comunidades; Entendendo que, no processo de prevenção à violência, a responsabilidade não é só da polícia mas também da população como um todo. Nesta aula, analisamos a transformação do papel do Estado e de suas funções de controle da ordem pública, por meio da ideia de policiamento comunitário, entendendo que não há a comunidade idealizada, e sim uma diversidade de fatores que devem ser levados em conta. Na próxima aula, abordaremos o tema das Políticas públicas como processo de escolha das ações do Estado. 31/61 Aula 4: Discussão e análise crítica das concepções de Política de Segurança Pública Ao final desta aula, você será capaz de: Definir o caminho teórico-histórico percorrido até chegarmos aos modelos de Políticas de Segurança Pública conhecidos na atualidade. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula Discussão e análise crítica das concepções de Política de Segurança Pública. Na aula anterior, abordamos o tema do policiamento comunitário como o conjunto de ações que envolvem tanto o Estado – por meio das polícias – quanto a população – por meio de suas comunidades. Nesta aula, abordaremos a temática das concepções de política de segurança, buscando analisar aspectos teóricos relevantes para a construção do que hoje entendemos que deva ser, no Estado Democrático de Direito, a relação entre o Estado – responsável por garantir a segurança dos cidadãos – e a população. As políticas atuais pensadas para controlar a criminalidade urbana no mundo estão baseadas nas teorias construídas ao longo da história do pensamento social, particularmente em suas concepções sobre as relações sociedade-indivíduo e sobre as ideias de consenso e conflito. A relação entre o Estado e a administração da violência vem sendo abordada, de formas diversas, por filósofos e cientistas sociais. A problemática que envolve a relação entre violência e Estado foi introduzida no pensamento social moderno por Thomas Hobbes e Nicolau Maquiavel. Nicolau Maquiavel47 tratou o tema da violência, desnudando as hipocrisias vigentes e trazendo à luz o fato de que a força é o recurso elementar e inevitável do poder. Segundo suas teses, a violência ocupa função destacada nas disputas e estratégias para comover o povo ou acuá-lo, e produzir reações de acordo com as conveniências políticas. A tese hobbesiana48 atravessou, com revisões e 47 Acesse o texto completo de O príncipe, disponível em: http://www.culturabrasil.org/zip/oprincipe.pdf. 48 A tese de Thomas Hobbes afirma: “Sem a força, os pactos não passam de palavras sem substância para dar qualquer segurança a ninguém. Apesar das leis naturais – que cada um respeita quando tem vontade e o faz com segurança –, se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará e poderá, legitimamente, confiar apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros”. Acesse o texto completo, disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/leviata.html. 32/61 mudanças, os séculos do pensamento social, baseando-se na ideia-chave de que a concentração despótica da violência no Leviatã-Estado representa condição indispensável para a domesticação da violência selvagem e ilimitada – concebida como ameaça, por excelência, à ordem social. A violência por parte do Estado não é subsidiária à ordem social estabelecida entre os indivíduos. Pelo contrário, os indivíduos necessitam ser controlados, de forma ostensiva, para viverem em sociedade com harmonia ou, no mínimo, sem a guerra generalizada de todos contra todos. Para Hobbes, o meio encontradopara concentrar esse poder central foi o estabelecimento do Estado político. Hobbes propôs, então, a necessidade de criação do Leviatã: monstro que morreria se não realizasse sua missão – proporcionar a segurança dos súditos, isto é, evitar a guerra. Leviatã é considerado um ser artificial e age de acordo com sua vontade, porque sua autoridade foi consentida pelos membros da sociedade. Dessa cláusula, Hobbes deduz que todos os atos do Leviatã-Estado representam, necessariamente, os desejos de toda a coletividade e, como consequência, quem o contestasse estaria se opondo a si mesmo. Se o estado de natureza – ou seja, a situação anárquica, sem Estado – corresponde à guerra generalizada, em que o ser humano se torna lobo do ser humano, a solução autoritária e centralizadora (o Estado-Leviatã) emerge, via contrato social, como uma derivação da natureza humana – mediada pela razão e animada pelo desejo de viver e o medo de morrer – enquanto realidade coletiva. Por outro lado, o francês Jean Jacques Rousseau entendeu a ordem social como um direito sagrado que serve a todos, mas que não advém da natureza, e sim de convenções – a base de toda autoridade legítima entre os homens. Na teoria rousseauniana49, o Estado constitui uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus membros por meio do pacto social, que dá ao corpo político poder sobre todos. Esse mesmo poder – dirigido pela vontade geral – recebe o nome de soberania. Essas diferentes teorias sobre a relação entre Estado e violência mostram-se como o reflexo da preocupação a respeito de como poderia ser construída uma forma de proporcionar segurança estatal para os indivíduos em sociedade e quais as repercussões que ela teria no poder do próprio Estado. Vemos que, historicamente, o Estado foi entendido, por filósofos e cientistas sociais e políticos, como detentor da força e regulador das relações tidas como potencialmente violentas. Ainda hoje, esse tema está sendo abordado de forma analítica no que tange às possíveis repercussões da utilização de mecanismos controladores ou estimuladores da coação física do Estado em relação à população. As teorias clássicas de Maquiavel, Hobbes e Rousseau serviram de base para novas perspectivas de análise da relação entre Estado, violência e população. Exemplo disso é a 49 A convenção seria um acordo em que as forças existentes estariam unidas em prol do coletivo. Nas palavras de Rousseau: “Trata-se de encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes.” Acesse, na íntegra, a obra de Rousseau, disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf. 33/61 Escola de Criminologia Clássica, que teve sua origem na filosofia iluminista, na qual os direitos do homem tinham de ser protegidos da corrupção e dos excessos das instituições, como penas arbitrárias e delitos mal definidos. Nesse contexto, César Beccaria50, em sua obra Dos delitos e das penas51, formulou, pela primeira vez, os princípios da criminologia clássica, baseados nas teorias de Hobbes, Rousseau e Montesquieu52, e escreveu o primeiro texto sobre prevenção do delito: Dos meios de prevenir o crime53. A ideia principal defendida pelo autor é a de que é melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los, e todo o legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo. Beccaria afirma ainda que uma boa legislação é a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males da vida. Os princípios clássicos da criminologia se limitaram à concentração do foco no ato delitivo, desdenhando as diferenças individuais entre os atores tidos como delinquentes. Isso fez com que advogados e penalistas da época imprimissem esforços e expandissem suas ideias, desenvolvendo o que se convencionou denominar Escola Neoclássica, que forneceu os parâmetros para a maioria dos regimes jurídicos do Ocidente. Os neoclássicos focaram sua preocupação em introduzir a ideia de que o contexto dos atos delitivos, os antecedentes do autor do delito e sua capacidade de atuar livremente exigiam a atenção prioritária dos magistrados no momento de impor penalidades. Da mesma forma que a clássica, a teoria neoclássica entende que o homem deve responder por seus atos, mas introduz a importância de seus antecedentes e as circunstâncias em que foi cometido o ato delitivo como determinantes da possibilidade da pena. Em outras palavras, o delinquente não era mais o indivíduo isolado e racional da teoria clássica pura. Enfim, esse modelo trouxe a ampliação da forma de abordar a relação entre o delito e a pena, entendendo o homem dentro de um contexto complexo, e não de forma isolada da sociedade. Foi a partir dessa nova abordagem que surgiu a Escola Positivista da Criminologia, que teve o papel de desvincular o estudo do delito do funcionamento e da 50 Ligado ao movimento filosófico-humanitário, da segunda metade do século XVIII, que reagia contra as distinções sociais exclusivamente baseadas nos privilégios de certas classes, o filósofo italiano denunciava: a falta de preocupação com as irregularidades dos processos criminais; os abusos de poder sem limites; e o fazer cessar os exemplos bem frequentes de frias atrocidades que os homens poderosos encararam como seus direitos. O autor entendia essas situações como uma barbárie absoluta em relação à liberdade do homem. Em razão disso, Beccaria buscou investigar: quais eram as origens das penas e do fundamento de punir; quais seriam as punições aplicáveis aos diferentes crimes; se a pena de morte era verdadeiramente útil, necessária e indispensável para a segurança e a boa ordem da sociedade; se os tormentos e as torturas eram justos; quais eram os melhores meios de prevenir os delitos; e quais as influências que esses meios exerciam sobre os costumes. 51 Acesse, na íntegra, esse texto, disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf. 52 Sua principal obra é O Espírito das Leis, disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_montesquieu_o_espirito_das_leis.pdf 53 De acordo com Beccaria (1950, p. 196): “[...] o meio mais seguro, mas, ao mesmo tempo, mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal, é aperfeiçoar a educação. Se prodigalizardes luzes ao povo, a ignorância e a calúnia desaparecerão diante delas, a autoridade injusta tremerá e só as leis permanecerão inabaláveis, todo-poderosas. O homem esclarecido amará uma constituição cujas vantagens são evidentes, uma vez conhecidos seus dispositivos – uma constituição que dá bases sólidas à Segurança Pública”. 34/61 teoria do Estado. Nesse contexto, outra teoria importante é a positivista radical, que rompe com a ideia, até então tida como pressuposto pela teoria criminológica, de que o delito é fundamentalmente uma atividade própria de pessoas jovens, do sexo masculino, pertencentes à classe trabalhadora, para entendê-lo como manifestação de desvio em todos os setores da sociedade. Essa linha teórica compreendeu que a eficácia do controle social, em toda sociedade, não era tão grande quanto parecia, e que os juízes não aplicavam critérioscientíficos, baseados no consenso moral incorporado à legislação nas decisões tomadas sobre o destino dos delinquentes. Em relação ao que as duas teorias abordam, a diferença está em que a teoria clássica determina que o caráter delitivo dos atos realizados livremente define-se pelas normas morais implícitas no contrato social e supõe que quem age de forma delituosa é malvado e ignorante, e assim faz por ser impulsionado por forças de que nem ele próprio tem consciência. Disso resulta a importância de se investigar a motivação. Por outro lado, os teóricos positivistas entendem que a vida social deve-se explicar por si só, e as causas dos atos delituosos não estão relacionadas a questões morais, mas o delito pode ser explicado cientificamente – da mesma forma que os fenômenos, seres ou objetos do mundo natural. Na mesma linha de raciocínio, um grupo de sociólogos da Universidade de Chicago iniciou estudos sobre as condições sociais urbanas e as possibilidades de formulação de políticas públicas na cidade. Essas investigações focavam o que foi batizado de Ecologia Social54 da cidade. A ideia da cultura diferente ou subcultura foi desenvolvida também pela Escola de Chicago, a partir da hipótese de que a sociedade não era consensual, e os valores que não faziam parte do consenso também existiam como tais. Em outras palavras, essa teoria importante, que surgiu no começo do século XX, repelia a tese segundo a qual haveria um grupo de pessoas culturalmente organizado e outro desorganizado, que não possuíam normas culturais ou valores. O pressuposto da consensualidade estava presente nas teorias anteriores. Nesse sentido, a Escola de Chicago constituiu um avanço, ainda que, nela, mesmo com o mérito de a reconhecer, a questão da diversidade seja tratada em termos limitados. O fato é que nenhuma dessas teorias se propôs a buscar, objetivamente, o que acontece dentro desses indivíduos que cometem delitos e de que forma essa motivação está relacionada à opressão do Estado, da lei, à desigualdade social e às estruturas da sociedade. A partir disso, surgem questionamentos que não mais se baseiam na ideia de consenso, e sim de conflito, negando o pressuposto de que a sociedade se estrutura com o objetivo de manter-se funcionando em harmonia. Trata-se das chamadas teorias do conflito, que surgem em razão de acontecimentos reais, e não do intuito de reexaminar teorias criminológicas clássicas. A teoria do conflito pressupõe a inexistência de um consenso ou um acordo valorativo entre as pessoas em sociedade. Seus teóricos, como o sociólogo 54 Na opinião de Ian Taylor (1990), a teoria ecológica da Escola de Chicago está baseada em conceitos positivistas que se traduzem pela quantificação e codificação de dados utilizados para explicar a estrutura social da cidade e os agrupamentos humanos, de forma analógica com a ecologia e a vida vegetal. Essa teoria tem como precursor Robert Ezra Park, que defende a ideia de que, se, nas comunidades vegetais, a simbiose perfeita é o equilíbrio – situação que surge quando todos os processos que intervêm na reprodução das plantas estão em estado de equilíbrio –, a tarefa do sociólogo é descobrir esses mecanismos mediante os quais se poderia alcançar e manter o equilíbrio biológico na vida urbana. 35/61 alemão Ralf Dahrendorf55, estavam interessados em elaborar uma teoria que desse conta dos atos delituosos ou desviados. A teoria do conflito de Dahrendorf (1974) introduziu novas questões que, até então, não haviam sido abordadas, mas foi apenas a partir da teoria denominada nova criminologia que o político passou a fazer parte das origens e processos dos atos desviados. A nova criminologia56 tem como proposta ser uma teoria normativa que possa oferecer possibilidades de resolver, teórica e socialmente, questões relacionadas ao delito. Para tanto, essa teoria se dividiu em duas tendências: a social-democrática e a revolucionária (de ação direta). A primeira tem seu alicerce na premissa de que a função dos criminologistas é indicar os problemas, e não solucioná-los. Essa tendência também entende que os cientistas sociais são semelhantes aos artistas e aos escritores – trabalhadores da cultura que apenas observam e problematizam a sociedade. Por outro lado, a tendência revolucionária da ação direta entende que as causas do delito estão diretamente relacionadas aos ordenamentos sociais de seu contexto. Nesse sentido, a intenção é a de que, além de investigar as causas do delito, deve-se investir em mudanças sociais estruturais para aboli-lo, considerando-o não algo anormal ou patológico, mas uma simples manifestação a mais da diversidade humana e cultural da sociedade. Dessa forma, a partir da nova criminologia e da emergência da problemática da criminalidade urbana, surgiram pesquisas que buscavam descobrir não só o papel do Estado relativo às condutas desviantes mas também formas alternativas de abordar o tema na prática. Diferente de outras teorias criminológicas – como a clássica e a positivista, para as quais os atos delituosos contaminavam a estrutura social, e o consenso valorativo estabelecido entre os indivíduos deveria ser mantido –, a nova criminologia sustenta-se na ideia de diversidade de valores na sociedade, concebendo-os como vinculados a interesses econômicos e sociais não apenas diferentes, mas contraditórios – o que configura a distinção básica com a Escola de Chicago. Além disso, do ponto de vista da nova criminologia, quando fala em desvios de conduta, o cientista social não pode negar as questões político-estruturais. Por isso, a proposta é a de que se procure, além de observar e problematizar as questões sociais, construir alternativas para solucionar os problemas atinentes à criminalidade. Por meio do reconhecimento das distintas formas de abordagem do papel do Estado no que tange ao controle da violência, a conclusão a que chegamos é a de que, em 55 Se, para explicar os atos delituosos, a Sociologia vinha trabalhando com os conceitos de consenso, norma e sanção, havia a necessidade de se abordar uma terceira categoria para a análise sociológica: o poder institucional. Por isso, em sua obra Ensaios da teoria da sociedade, Dahrendorf afirma que o fato de a sociedade ser regida por valores e normas dominantes indica que o poder institucionalizado é intrinsecamente explosivo e desorganizador, e não um fator integrador da organização social – como defendido em teorias funcionalistas. 56 Também chamada de criminologia interacionista ou labeling approch, por considerar que as questões centrais da teoria e da prática criminológicas não se devem voltar ao crime e ao delinquente, mas, particularmente, ao sistema de controle adotado pelo Estado no campo preventivo, no campo normativo e na seleção dos meios de reação à criminalidade. No lugar de se indagar os motivos pelos quais as pessoas se tornam criminosas, deve- se buscar explicações sobre os motivos pelos quais determinadas pessoas são estigmatizadas como delinquentes, qual a fonte da legitimidade e as consequências da punição imposta a essas pessoas. São os critérios ou mecanismos de seleção das instâncias de controle que importam, e não dar primazia aos motivos da delinquência. 36/61 consequência dessa heterogeneidade57, consolidam-se, também, formas distintas de se conceber as Políticas de Segurança Pública. Sendo assim, entendemos que, a partir dessas diferentes teorias a respeito do que representa o ato desviante e delituosopara um grupo social, configuram-se, nesse contexto, concepções sobre o papel do aparato estatal enquanto responsável por garantir a segurança aos indivíduos. Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula, sugerimos as seguintes leituras: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. La nueva criminología: contribución a una teoría social de la conducta desviada. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. SOARES, Luiz Eduardo. Violência e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. Para complementar o estudo desta aula: Assista ao filme Ilha das flores. Sinopse: Produzido por Jorge Furtado, este filme é um ácido e divertido retrato da mecânica da sociedade de consumo. Acompanhando a trajetória de um simples tomate, desde sua plantação até ele ser jogado fora, o curta escancara o processo de geração de riqueza e as desigualdades que surgem no meio do caminho. 57 Segundo a interpretação de Soares no livro Violência e política no Rio de Janeiro, as divergências de opinião podem expressar mais do que discordâncias quanto aos diagnósticos e às terapias voltadas ao tratamento da problemática da violência urbana – expressam uma ideologia que pode ser encontrada nas diferentes teorias criminológicas ou de ciências e políticas. Ouça o Hino da Campanha da Fraternidade 2009 que aborda o tema Segurança Pública. 37/61 ATIVIDADE PROPOSTA Leia o texto disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/007/07mauricio.htm. Em seguida, aponte a relação desse texto com o que foi estudado nesta aula, na qual fizemos um percorrido histórico sobre as principais teorias do pensamento social no que tange ao delito e ao papel do Estado. Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre o seguinte tema: Qual a importância do conhecimento científico e teórico para a construção de Políticas de Segurança Pública eficazes? Nesta aula, você: Percorreu as principais teorias do pensamento social sobre a relação entre Estado e sociedade no que tange à violência; Entendeu, a partir de um embasamento teórico, o que são as Políticas de Segurança Pública – de onde surgiram e quais os passos para sua formulação e implementação. Após termos percorrido as principiais teorias da criminologia moderna, chegamos ao tema em pauta nos debates acadêmicos e políticos de diversas partes do mundo: a discussão sobre o papel do Estado frente a um tipo específico de violência – a criminalidade urbana. A discussão se faz em torno de quais seriam as possibilidades de gerenciar o problema de forma eficaz, tendo em vista que a postura até então adotada pelo Estado não está trazendo soluções que viabilizem o controle ou a diminuição da violência urbana. No meio acadêmico, o debate gira em torno de dois principais modelos de Políticas Públicas de Segurança: A Política de Segurança Pública cidadã e a política de extermínio do inimigo – tema que será abordado na próxima aula. 38/61 Aula 5: Política de Segurança Pública Cidadã e Política de Extermínio do Inimigo Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Identificar as diferentes concepções de Políticas de Segurança Pública; 2. Diferenciar uma política de prevenção à violência e uma de combate e extermínio do inimigo. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula Política de Segurança Pública cidadã e política de extermínio do inimigo. Na última aula, percorremos, em sentido amplo, as principais teorias sobre a relação do Estado com o controle da violência, entendendo que, sendo projetos estatais, as Políticas Públicas de Segurança podem ser analisadas, teoricamente, como um desdobramento desse processo. Nesta aula, abordaremos os modelos de Políticas Públicas de Segurança que vêm sendo discutidos no País, buscando entender o que caracteriza cada paradigma enquanto conjunto de ações estatais58 para proporcionar segurança59 aos cidadãos. As Políticas de Segurança Pública são projetos estatais que visam manter a ordem social, a fim de controlar o que é considerado crime60 pelas sociedades, utilizando, para isso, meios organizacionais, recursos humanos e instrumentos de poder. As concepções de Políticas Públicas de Segurança são resultados de um processo histórico construído por grupos sociais a partir de suas experiências e ideologias a respeito de qual seria o papel do Estado em relação à segurança urbana. No Brasil, tem-se abordado, com mais ênfase, dois conceitos de políticas: a chamada Política de Segurança Pública cidadã – terminologia utilizada por vários organismos internacionais latino-americanos – e outra entendida como política militarizada de extermínio do inimigo. Essas políticas também são denominadas, principalmente no meio 58 As possibilidades de relacionar o ato delituoso com outros fatores sociais – como a exclusão e a relação social – foram abordadas como objeto de estudo pelas Ciências Sociais, especialmente nas obras dos clássicos: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. 59 Como sugestão, leia o texto O impacto da televisão sobre o sentimento de insegurança, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/se/v20n2/v20n2a14.pdf. 60 Émile Durkheim foi o primeiro a analisar o crime como um fato social que ofende o sentimento coletivo. O autor entendia que era a sociedade que qualificava os atos como criminosos, de acordo com a consciência coletiva determinante. 39/61 acadêmico, como política de nova prevenção61 e de tolerância zero62. A primeira é uma formulação teórica, e a segunda é a política implementada na cidade de Nova Iorque pelo então prefeito Rudolph Giuliani. Entretanto, essas concepções não são absolutas e se cruzam, uma vez que podemos entender uma ação como preventiva e pró-tolerância zero ao mesmo tempo. Por exemplo: o investimento em armamento por parte da polícia pode-se caracterizar como uma ação voltada para a repressão, mas o que determinará sua finalidade serão suas características e o tipo de treinamento dado aos policiais que o utilizarão. A mesma ação – nesse caso, a aquisição de armas – pode ser destinada a um policiamento comunitário – que busca a prevenção do crime – ou ao confronto com o inimigo. Ambas as políticas – de tolerância zero ou de nova prevenção – tiveram resultados negativos e positivos, dependendo da perspectiva em que se faça a análise. Por exemplo, na política de tolerância zero adotada em Nova Iorque, os números da criminalidade diminuíram, e a sensação de segurança da população aumentou. Por essas razões, o prefeito responsável pela implantação da política foi reeleito e ganhou fama mundial. As concepções de Políticas Públicas de Segurança, por sua vez, provenientes dos Estados Unidos, tornaram-se uma referência e um mito. Por outro lado, houve críticas de humanistas às posturas tidas como racistas e preconceituosas por parte de policiais, que fizeram com que fossem duplicados os índices de prisões de pessoas de etnia negra naquelacidade e naquele período, e limitada a liberdade de ir e vir das pessoas mais pobres63. A política militarizada de extermínio do inimigo não pretende abordar as motivações que conduzem os indivíduos aos crimes. Pelo contrário, essa política parte do pressuposto de que as pessoas agem racionalmente e que, dada a oportunidade, todos podem enveredar por atos criminosos. Portanto, devemos manter a ordem de forma autoritária e eficiente. A questão é que se entende por desordem a condição marginalizada a que muitas pessoas são submetidas por não fazerem parte das camadas privilegiadas da sociedade, como é o caso de mendigos, profissionais do sexo que atendem na rua, alcoólatras e usuários de drogas (pobres), menores abandonados e imigrantes ilegais etc. As ações militarizadas caracterizaram-se pelo combate à delinquência por meio de repressão estatal, pela vigilância constante dos possíveis criminosos e pela repressão fulcrada no regime punitivo-retributivo do Direito Penal64. Esse combate tem como 61 Sobre a política de nova prevenção, leia o texto Em busca de um conceito de nova prevenção, do professor Theodomiro Dias Neto, disponível em: http://www2.mp.ma.gov.br/ampem/artigos/artigos2006/Baratta- Espanha%20artigo%20theodomiro%5B1%5D.pdf. 62 Sobre a política de tolerância zero, leia o texto Dissecando a tolerância zero, de Loïc Wacquant, disponível em: http://diplo.uol.com.br/2002-06,a336. 63 Segundo a antropóloga Alba Zaluar: “[...] a pobreza perdeu seu sinal positivo mais forte e adquiriu, mais claramente, o sentido negativo de falta, estendida, também, ao plano moral, o que fez desaparecer as fronteiras entre o pobre honesto e o marginal ou criminoso”. Não ter dinheiro para consumir os bens cada vez mais oferecidos no mercado equivale, para os pobres – especialmente aqueles pertencentes a grupo raciais (como os negros) e residenciais (como os favelados), mas, principalmente, os despojados menores de rua –, a ser objeto da suspeita de cometer atos ilegais ou ilícitos ou, pior, a ser agente da violência. (ZALUAR, Alba. Cidadãos não vão ao Paraíso. São Paulo: Editora da Unicamp, 1994) 40/61 principal fundamento a ideia de que a violência nas cidades somente poderá ser controlada através de leis severas que imponham pena de morte, redução da maioridade penal e longas penas privativas de liberdade. Esses seriam os únicos meios eficazes para intimidar e neutralizar os criminosos, e para fazer justiça às vítimas e aos homens de bem, ou seja, aos que não delinquem e não fazem parte do grupo entendido como desviante65. O foco desse tipo de política é o combate e a repressão dos pequenos e grandes delitos, bem como de seus agentes. Essa, portanto, é a principal estratégia de combate à criminalidade urbana e à manutenção da ordem nas ruas pela polícia. O policiamento não está dirigido à causa do crime, mas à proteção e à defesa de determinados segmentos da sociedade. Para tanto, é feito investimento público em armamento pesado, em treinamento voltado para o enfrentamento do inimigo e em ações estratégicas dirigidas à apreensão de armas e drogas em locais habitados por comunidades mais pobres. Outro fator importante é que não há participação da população na construção das políticas de combate à criminalidade urbana. O resultado é que o cidadão pode ser alvo do enfrentamento, e a Segurança Pública não é oferecida, com equidade, para todos. Ela acaba sendo distribuída de forma assimétrica, privilegiando os mesmos que têm acesso aos demais direitos fundamentais, como saúde, educação, lazer e cultura. Por outro lado, uma política entendida como de segurança cidadã tem como objetivo a prevenção e o combate da criminalidade de forma multidiscilplinar e com respeito aos Direitos Humanos. O crime e a violência não são entendidos de forma simplista. Quando o tema é Segurança Pública, as ações das polícias e dos demais órgãos responsáveis levam em conta a multiplicidade de fatores envolvidos. O investimento ocorre na aproximação entre o Estado e o cidadão comum, por meio da participação da população e de estratégias de prevenção, como o policiamento comunitário dirigido à elaboração de iniciativas junto às comunidades locais. As polícias atuam como atores centrais na constituição de redes de prevenção, que envolvem diversos segmentos da sociedade – como ONGs e Associações de bairros – na elaboração e implementação de ações cujo intuito é identificar e buscar soluções para as principais demandas da população, sempre visando garantir a segurança de todos. A ideia de respeito a todos os cidadãos permeia essa política, que visa à sincronia entre ações policiais, governamentais e da sociedade civil organizada para a prevenção da violência – entendida como um problema sem culpados que devam ser exterminados –, atendendo às expectativas de segurança de todos os segmentos da sociedade, sendo eles desviantes ou não. Para tanto, também são consideradas as medidas de prevenção situacional, que intervêm nas características físicas do local de acordo com as 64 Para aprofundar o tema, leia o texto Política criminal, criminologia e vitimologia: caminhos para um Direito Penal humanista, disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/view/28580/28136. 65 Segundo a interpretação do antropólogo Gilberto Velho, o indivíduo desviante é visto a partir de uma perspectiva de anormalidade, como se fosse portador de patologia: alguns seriam desviantes incuráveis e outros, passíveis de recuperação, mas, em ambos os casos, o mal estaria no indivíduo, e não na sociedade. (VELHO, Gilberto. O estudo do comportamento desviante: a contribuição da Antropologia Social. In: VELHO, Gilberto (Org.). Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985) 41/61 necessidades de seus moradores, proporcionando iluminação adequada, espaço de convívio comunitário, e postos policiais e de saúde dentro das comunidades mais estigmatizadas como violentas. Essas estratégias de prevenção social estão correlacionadas à transversalidade da problemática da segurança urbana, cuja natureza multidimensional exige, para seu enfrentamento, políticas sociais, culturais e econômicas, simultaneamente, para que as causas da criminalidade sejam alcançadas. Não afirmamos, aqui, que é a pobreza66 a causadora da violência nas cidades. Pelo contrário, as comunidades mais pobres, normalmente, são as que mais sofrem com a criminalidade67: a principal vítima da falta de Políticas de Segurança cidadã é o morador da favela. Não é a classe média ou alta que perde seus filhos para o tráfico68, seja pelo consumo ou pela morte. Hoje, segundo relatório69 da Organização dos Estados Ibero-americanos (OIE), quem mais morre assassinado no Brasil70 são os jovens negros71 moradores da periferia das grandes cidades. Pesquisas nacionais concordam: trata-se de jovens pobres, frequentemente negros, do sexo masculino, entre 15 e 29 anos, mais especificamente entre 15 e 24 anos. Estudos72 recentes sobre juventude a caracterizam como apática, individualista e hedonista. Entretanto, não raro, é negligenciada a articulação dos jovens em torno de ações coletivas que ocorrem fora do âmbito da política partidária – como na área da cultura73, por exemplo –, o que fortalece a expressão de identidadeétnica e territorial. Se é verdade que os que se assemelham ao socialmente aceito ou se aproximam dos ideais morais merecem respeito e têm suas condutas aprovadas, há, em contrapartida, a ideia de que os que se afastam dos modelos ideais devem ser reprovados como transgressores, anormais e criminosos. Convém não esquecer que, apesar da enorme 66 Como sugestão, leia o texto Pobreza como privação de liberdade, disponível em: http://www.uff.br/cpgeconomia/novosite/arquivos/tese/2007-larissa_martins.pdf. 67 Acesse a entrevista com Loïc Wacquant sobre A criminalização da pobreza, disponível em: http://www.uff.br/maishumana/loic1.htm. 68 Como sugestão, leia texto sobre o tráfico, disponível em: http://www.comunidadesegura.org/pt- br/node/37775. 69 Acesse o mapa da violência, disponível em: http://www.oei.org.br/mapaviolencia.pdf. 70 Acesse o relatório de homicídios de crianças e jovens no Brasil (NEV/USP), disponível em: http://www.ovp- sp.org/relatorio_nevusp_homicidios_jovens.pdf. 71 Como sugestão, leia o texto sobre a mortalidade de jovens negros, disponível em: http://circulopalmarinoes.wordpress.com/2009/06/06/juventude-negra-e-a-luta-contra-o-exterminio/. 72 Para um estudo mais aprofundado do tema, leia, na íntegra, o texto Juventude, violência e cidadania: os jovens de Brasília, de Julio Jacobo Waiselfisz, disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001308/130866por. 73 A principal ação coletiva que ocorre, hoje, na área da cultura é o movimento hip hop. Para conhecer o trabalho de alguns desses grupos, acesse os seguintes materiais online: Movimento enraizados do Rio de Janeiro: http://www.enraizados.com.br/Default2.asp; Ksulo – casa da cultura hip hop de Porto Alegre/RS: http://www.hiphop470.com.br/. 42/61 desigualdade socioeconômica no Brasil, pouquíssimos são os jovens pobres que enveredam pela criminalidade. As políticas de segurança preventivas visam construir ações quer aproveitam o capital social74 de cada localidade, partindo da ideia de que a sociedade é heterogênea e não dicotômica, isto é, não se divide entre o bem e o mal. Do ponto de vista desse paradigma, a segurança deve ser oferecida para todos – para os usuários de drogas e para quem as vende –, diferentemente do que sustenta a política de combate ao inimigo, segundo a qual quem compra não é necessariamente criminoso, mas quem vende e mora em favelas sempre o é. O primeiro pode ser dependente ou apenas um usuário eventual, mas o mesmo não acontece do outro lado do balcão, em que a dependência e a intenção são de ordens menos nobres e apontam a necessidade de combate à criminalidade – entendida como se fosse produzida por um grupo específico da sociedade contra outro. Segundo a ótica da Política de Segurança cidadã, todos são vítimas da falta de segurança – um problema de responsabilidade do Estado, ao qual cabe proporcionar a convivência democrática entre grupos distintos em um mesmo espaço territorial, afirmando a tolerância entre diferentes ideologias e modos de entender a Segurança Pública. Cada grupo diferentemente posicionado tem uma experiência ou um ponto de vista particular acerca das políticas de segurança mais adequadas, precisamente porque cada um faz parte desses processos sociais e contribui para produzir suas configurações. Especialmente quando estão situadas em diferentes lados das relações de desigualdade estrutural75, as pessoas entendem essas relações e suas consequências de modos distintos. Agentes que estão próximos no campo social têm pontos de vista semelhantes sobre esse campo e sobre o que ocorre em seu âmbito; enquanto aqueles que estão socialmente distantes tendem a ver as coisas de modo diverso. Sendo assim, na discussão pública sobre o problema da criminalidade, tanto a população quanto os estudiosos se dividem entre os que advogam políticas sociais para combater a criminalidade e os que defendem uma polícia e uma justiça mais vigorosas e eficazes institucionalmente. As políticas sociais devem ser implementadas não porque os pobres constituam um perigo permanente76 à segurança ou porque sejam a classe perigosa, mas porque um país democrático e justo não pode existir sem tais políticas. 74 Segundo Putnam, um dos pioneiros nos estudos sobre capital social, este se reflete no grau de confiança existente entre os diversos atores sociais – seu grau de associativismo – e no acatamento às normas de comportamento cívico, tais como o pagamento de impostos e os cuidados com que são tratados os espaços públicos e os bens comuns. 75 Na obra Desigualdade reexaminada (p. 50), o economista Amrtya Sem explica: “[...] os seres humanos diferem uns dos outros de modos distintos. Diferimos quanto às características externas e circunstâncias. Começamos a vida com diferentes dotações de riqueza e responsabilidade herdadas. Vivemos em ambientes naturais diferentes – alguns mais hostis do que outros. As sociedades e comunidades às quais pertencemos oferecem oportunidades bastante diferentes quanto ao que podemos e ao que não podemos fazer”. 76 Para um aprofundamento maior sobre o tema, leia o texto Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas, de Alba Zaluar, disponível em: http://books.google.com.br/books?id=nIH34JXjXzEC&printsec=frontcover. 43/61 Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao documentário Tiros em Columbine. Sinopse: Sob a ótica do diretor Michael Moore, este documentário faz uma análise sobre a obsessão americana às armas de fogo. Foi vencedor do Oscar de Melhor Documentário. ATIVIDADE PROPOSTA Veja, a seguir, dois quadros construídos de forma ideal, ou seja, formatos que não existem na realidade – apenas uma construção teórica do que se entende por nova prevenção e por tolerância zero: http://www.lume.ufrgs.br/bistream/handle/10183/12087/000618596.pdf?sequence=1 Observe os dois tipos ideais e, a partir do compreendido nesta aula com relação às concepções de Políticas de Segurança Pública, responda: A quais conclusões podemos chegar sobre a eficácia desses modelos transformados em ações governamentais? Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre o seguinte tema: Uma mesma política de segurança pode ter características preventivas e de combate ao inimigo? Pense em exemplos reais e nas ações governamentais implementadas no cotidiano. 44/61 Nesta aula, você: Conheceu, teoricamente, as principais concepções de Políticas de Segurança Públicas discutidas na atualidade; Entendeu a importância do papel do Estado no processo de gerenciamento do problema da violência e da criminalidade na sociedade. Pode haver divergências sobre qual é a concepção de política de segurança ideal a ser implementada: se é a política militarizada – que visa ao enfrentamento do inimigo – ou aquela voltada à implementação de ações compatíveis com o respeito aos Direitos Humanos. Entretanto, dificilmente haverá divergência quando se afirma a necessidade de implementação de políticas que diminuam a criminalidade e aumentem a segurança da população. Nesse sentido, a partir da análise apresentada ao longo desta aula, abordaremos, na próxima aula, o tema Formulaçãoe análise de políticas no campo da Segurança Pública, no intuito de analisarmos os fatores sociais e políticos envolvidos na elaboração de Políticas de Segurança Pública. 45/61 Aula 6: Formulação e Análise de Políticas no Campo da Segurança Pública Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Avaliar o processo de formulação e análise de Políticas de Segurança Pública; 2. Identificar a importância da elaboração de diagnósticos à eficácia de Políticas de Segurança Pública. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula Formulação e análise de políticas no campo da Segurança Pública. Dando continuidade ao conteúdo trabalhado na aula anterior, na qual analisamos diferentes concepções sobre Políticas de Segurança Pública, abordaremos o tema da formulação e análise de uma Política de Segurança Pública cidadã, voltada à implementação de ações comprometidas com a prevenção da violência e o respeito aos Direitos Humanos. A implantação de uma Política de Segurança Pública77 mobiliza um conjunto complexo de fatores que só podem ser conhecidos na realidade empírica de cada local. A experiência de uma política pode-se caracterizar por ações preventivas e de combate à violência, em razão das demandas de cada comunidade em que é implementada ou, ainda, da ideologia dos governantes responsáveis por sua gestão. A formulação de Políticas de Segurança Pública cidadã caracteriza-se por duas etapas principais: a realização de diagnóstico da situação da criminalidade local; e a promoção da intersetorialidade em políticas sociais, culturais e econômicas – tema que será abordado na próxima aula. O requisito fundamental à formulação de uma Política de Segurança Pública cidadã é a vontade política dos gestores responsáveis pela área. Havendo compromisso, o primeiro passo é a elaboração de um diagnóstico ou a realização de uma pesquisa de vitimização78, com o objetivo de buscar informações detalhadas sobre a violência e a 77 Para aprofundar o tema, sugerimos as seguintes leituras: SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general; 500 dias no front da Segurança Pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ______. Legalidade libertária. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. ______. Segurança tem saída. Rio de Janeiro: Sextante, 2006. 46/61 criminalidade praticadas no local, no qual será implantada a política de segurança formulada. É imprescindível saber qual o objetivo e quais as metas a serem alcançadas. Por mais que saibamos que o Brasil tem experimentado problemas crescentes quanto à Segurança Pública, esses não são os mesmos problemas de todas as regiões e de todas as cidades. Pelo contrário, o que observamos é o surgimento de tendências diversas na evolução do crime e da violência em cada região. Mais amplo que uma pesquisa de vitimização, o diagnóstico busca – além de informações sobre os crimes – dados sobre outras variáveis potencialmente significativas, como, por exemplo: a presença de jovens na composição demográfica; os índices de mobilidade social; os indicadores relativos à escolaridade e a acesso ao emprego; a disponibilidade de armas; as taxas de impunidade e as características culturais formadoras das identidades e dos valores dos moradores de determinado local; o grau de eficiência policial e de credibilidade das polícias. Podemos afirmar que, a par das semelhanças e dos problemas comuns, cada local possui seus próprios problemas, devendo produzir suas próprias soluções. A participação da sociedade é indispensável nesse processo, tanto na elaboração do diagnóstico quanto na construção do planejamento pensado a partir dele. É o diagnóstico que viabiliza o planejamento de ações concretas que permitem avaliações regulares do desempenho da política como um todo. A falta de avaliação impede que os gestores aprendam com seus erros e os corrijam, acumulando, racionalmente, experiência e criando uma história institucional – uma política de Estado79 que não desapareça com a mudança dos governos e que não seja personalizada. Reconhecer a desigualdade é determinante para que possamos chegar às características de cada território, para o qual está sendo pensada a política de segurança. Temos de entender a relação desigual no nível da alteridade, e não como expressão de inferioridade. Para ser chamada de convivência, a relação entre pessoas deve ser horizontal, baseada no respeito à diversidade. Mesmo que haja dissenso quanto às políticas a serem definidas, escolhidas e implementadas, elas serão mais eficazes do que a improvisação reativa80, comum nas políticas militarizadas e de combate ao inimigo, as quais, para alguns, sequer merecem o título de Políticas de Segurança Pública. A pluralidade estará refletida nas diferentes opiniões sobre o que se espera da Segurança Pública. Cada grupo possui sua história e seus valores, e, para ser democrática, a política terá de alcançar as mais diversas expectativas81. Por exemplo, a definição do que é 78 Entre outras descrições que só a investigação apresentará, o conteúdo da pesquisa de vitimização deverá conter: as vítimas dos crimes; o perfil dos agressores; as circunstâncias nas quais os crimes ocorreram; as condições de infraestrutura urbana dos locais em que os crimes ocorreram; as experiências das vítimas com o sistema de Segurança Pública e de atendimento de emergência hospitalar; as medidas tomadas pelas pessoas, que visam à prevenção dos crimes. 79 Sobre a política de Estado, leia o texto O outro Estado da Nação, do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, disponível em: http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/024en.php. 80 Sobre a improvisação reativa, leia o texto Notas sobre a problemática da Segurança Pública, do professor Luiz Eduardo Soares, disponível em: http://desafios.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/bpsociais/bps_02/ensaio3_notas.pdf. 47/61 vandalismo varia de um grupo para outro dentro de uma mesma aglomeração habitacional, particularmente por idade e gênero. O desenvolvimento de sociedades pluralistas envolve conflitos disseminados entre grupos em torno do que é comportamento ordeiro e desordeiro. A necessidade de tolerância entre os grupos torna- se uma questão fundamental, enquanto os limites de tolerância passam a ser cada vez mais disputados. A ordem de um é desordem para outro; o comportamento normal de um grupo cria condições intoleráveis para outros. É inútil pensar em uma Política de Segurança Pública sem que as polícias funcionem como parte da solução, atuando em conjunto com a sociedade na construção de um planejamento eficaz baseado em dados confiáveis – levantados pelo diagnóstico. Para tanto, os policiais devem operar com base em modelos racionais de gerenciamento, agindo a partir de informações sistemáticas, diagnósticos rigorosos, inserções planejadas e avaliações regulares, e dispondo dos equipamentos e da tecnologia correspondentes ao tamanho das responsabilidades. Essa mudançade paradigma do trabalho policial e a reconstrução da credibilidade das polícias junto à sociedade constituem, talvez, um dos principais desafios à formulação de uma política comprometida com a prevenção da violência por meio de ações que respeitem os Direitos Humanos e contem com a participação da sociedade – entendendo que os policiais são cidadãos com direitos comuns. Os dados disponíveis são – quase todos – aqueles produzidos pelas polícias a partir dos Boletins de Ocorrência (BOs). Portanto, trata-se de uma base frágil, na qual é impossível lidar com o volume de crimes ou de ocorrências violentas que não são comunicados à polícia. Essa subnotificação82 esconde problemas da maior gravidade, como, por exemplo, a violência doméstica que vitima crianças e mulheres, além de muitos outros delitos que, em regra, não são comunicados. Muitas vezes, as vítimas simplesmente deixam de registrar a ocorrência porque não confiam na polícia e não desejam perder tempo com isso. Em outras oportunidades, as vítimas temem eventuais represálias e sentem-se inseguras para efetuar alguma queixa. Mas há, também, situações muito comuns em que as vítimas conhecem os agressores e não desejam o envolvimento da polícia, seja porque entendem que podem resolver melhor o problema sozinhas, seja porque não desejam a punição do agressor com quem mantêm algum vínculo. Há, ainda, situações nas quais o registro policial deixa de ser feito, porque as vítimas sequer possuem as informações necessárias a respeito dos recursos existentes para a garantia de seus direitos ou porque não se podem deslocar até uma delegacia. Além disso, há um 81 Sobre a questão, Carlos Drummond de Andrade afirma: “A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim, não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia”. (FAVELÁRIO Nacional de Carlos Drummond de Andrade. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. O corpo. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 47) 82 Sobre a dark rate (cifra escura), sugerimos a seguinte leitura: ROLIM, Marcos. A síndrome da rainha vermelha: policiamento e Segurança Pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, 2006. p. 40 e ss.) 48/61 conjunto de crimes sem vítima, como, por exemplo, o tráfico de drogas e o jogo ilegal. Por fim, há crimes que afetam comunidades inteiras, a médio e longo prazos, mas que não atingem, individualmente, esta ou aquela pessoa e que, portanto, igualmente não ensejam queixas policiais. Tal é o caso, por exemplo, da poluição ambiental, da sonegação de impostos, da corrupção etc. No mais, os BOs podem-se prestar a uma série de distorções, voluntárias ou não. Muitas vezes, eles registram um grande aumento de determinados crimes apenas porque a polícia passou a dar mais atenção àquele tipo de delito ou porque os policiais passaram a trabalhar melhor, despertando, por isso, a confiança das vítimas, que passam a denunciar com mais frequência. Em outros momentos, os BOs permitirão concluir que determinados delitos estão diminuindo, quando, na verdade, o que diminui é a taxa de registro. Além disso, os registros policiais costumam reproduzir a tipologia do Código Penal, o que pode fazer, por exemplo, com que um assalto praticado por uma quadrilha que empregou armamento pesado apareça na mesma totalização em que se encontra um crime de roubo praticado na rua, mediante ameaça, por um adolescente pobre e dependente de crack83. Sendo assim, os dados policiais são fundamentais, porque se referem a uma parte dos problemas reais. Entretanto, esses dados não podem oferecer a base única e suficiente para um diagnóstico a respeito das tendências criminais, suas naturezas e incidências. Para formar uma base mais completa e confiável, é necessária a coleta de outros dados estatísticos de instituições governamentais e não governamentais, além da investigação qualitativa por meio de grupos focais e entrevistas. O conteúdo do diagnóstico identificará a situação da criminalidade e será o ponto de partida para a elaboração da política. Esse primeiro momento é o alicerce para que possamos planejar ações concretas de prevenção e de enfrentamento da violência. Não só os dados representam o fundamento técnico para o planejamento da política; as relações de confiança construídas nesse processo também são o que legitima essa política na sociedade. Os problemas diagnosticados serão complexos e multifatoriais, o que gerará a necessidade de políticas também complexas, intersetoriais e transversais84, para dar conta da complexidade das demandas, dos atores e das instituições envolvidos no contexto. Sempre que possível, o plano de intervenções deve envolver as três esferas administrativas: federal, estadual e municipal. De acordo com a Constituição Federal, as prefeituras não têm competência para traçar Políticas de Segurança Pública. Isso, no entanto, não impede que os Municípios participem da elaboração e efetivação das políticas públicas na área – como veremos na Aula 08. As administrações municipais são as mais próximas da criminalidade cotidiana, da população e dos problemas que a afetam diretamente, o que permite não só conhecer melhor a realidade das pessoas mas também investir em estratégias caracterizadas pela pluriagencialidade e interdisciplinaridade de ações, e pela capacidade de mobilizar instituições envolvidas na complexidade dos fatores relativos ao tema da segurança. 83 Sobre o crack, sugerimos o filme: A maldição da pedra. 84 Estudaremos sobre políticas intersetoriais e transversais na próxima aula. 49/61 Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao vídeo de apresentação da Primeira Conferência de Segurança Pública. Assista aos seguintes filmes: Quanto vale ou é por quilo? (2005) – De Sérgio Bianchi Estamira (2006) – De Marcos Prado O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) – De Glauber Rocha Atos dos homens (2006) – De Kiko Goifman 50/61 ATIVIDADE PROPOSTA Assista, no ambiente online, aos vídeos sobre a Lei Maria da Penha e a violência contra as mulheres do Brasil: Retratos de uma Lei (parte 1) e Retratos de uma Lei (parte 2). A partir do compreendido nesta aula, discorra sobre a importância da elaboração do diagnóstico da situação de cada local à formulação de Políticas de Segurança cidadã que atendam às demandas de todos – nesse caso, especialmente às mulheres que sofrem violência doméstica. Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online.Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre os seguintes temas: Qual a importância da Lei Maria da Penha para a sociedade brasileira? Quais as mudanças que essa Lei causou à realidade? Quais os principais desafios à diminuição da violência contra a mulher e da violência doméstica? Nesta aula, você: Conheceu os principais passos para a formulação de Políticas de Segurança Pública voltadas à prevenção da violência e da criminalidade; Estabeleceu requisitos fundamentais para identificar se uma política é comprometida com medidas preventivas e cidadãs ou, por outro lado, se é apenas uma ação sem pretensão real de resolver os problemas atinentes à segurança nas cidades. Tendo abordado os fatores que envolvem a primeira etapa da formulação das políticas de segurança, daremos continuidade ao tema, analisando, na próxima aula, o que é A intersetorialidade das Políticas de Segurança Pública e qual sua importância nesse processo. 51/61 Aula 7: A intersetorialidade das Políticas de Segurança Pública Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Identificar a importância da intersetorialidade nas Políticas de Segurança Pública; 2. Definir as ações afirmativas para além da discussão sobre cotas raciais; 3. Diferenciar as políticas interdisciplinares das políticas transversais. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Assista ao vídeo do coordenador Luiz Eduardo Soares; 3. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 4. Realize a atividade proposta; 5. Leia a síntese desta aula; 6. Leia a chamada para a aula seguinte; 7. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula A intersetorialidade das Políticas de Segurança Pública. Na aula anterior, analisamos a importância da elaboração de diagnósticos como o único caminho para a formulação de Políticas de Segurança Pública cidadã que correspondam às necessidades concretas da população, permitindo a avaliação das ações e a construção de intervenções eficazes no controle e na prevenção da criminalidade. Nesta aula, abordaremos o tema intersetorialidade85 das políticas de segurança, partindo do pressuposto de que, para problemas complexos e multidimensionais – como aqueles atinentes à Segurança Pública –, são necessárias soluções também complexas, isto é, intersetoriais. A sociedade é heterogênea e, nela, mantêm-se e reproduzem-se históricas desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais. Em razão disso, torna-se necessário que o Estado desenvolva políticas públicas que contemplem a universalidade, a indivisibilidade e a integralidade dos Direitos Humanos. Para que uma política de segurança tenha condições de proporcionar novas formas de relação entre grupos excluídos socialmente, necessita ter um caráter afirmativo, investindo em ações afirmativas86. Em outras palavras, essa política deve tratar de forma desigual os socialmente desiguais, por meio de políticas públicas que, em tese, têm o objetivo de concretizar o princípio constitucional da igualdade material, minimizando ou neutralizando (quando e se possível) os efeitos da discriminação – seja esta qual for: de gênero, racial, de idade, de origem nacional ou de estratificação social. Para ser cidadã, uma política pensada a partir de dados concretos 85 De acordo com o Jurista Alessandro Baratta: “[...] uma política de proteção e desenvolvimento de bens jurídicos – na qual agem, sinergicamente, em sentido preventivo ou reativo, diversas agências do Estado e da sociedade – é a real alternativa ao monopólio das agências do sistema punitivo sobre os problemas de segurança; à legislação simbólica; à falta de medida; e às tendências autoritárias do Direito Penal. (apud DIAS NETO, 2005, p. 115). 86 Sobre ações afirmativas, leia o texto de Maria Berenice Dias, disponível em: http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?id=8459. 52/61 deve promover ações que garantam o atendimento às expectativas de segurança de todos os segmentos da sociedade, sem reduzir a segurança à proteção de um determinado grupo frente ao perigo representado por outros. A intersetorialidade rompe com o isolamento das iniciativas em Segurança Pública, para que se trabalhe a partir de uma rede de atores sociais, desde as agências públicas de policiamento e os diferentes serviços oferecidos pelo Estado até as agências privadas e os próprios cidadãos. O foco das ações deixa de ser o modelo reativo de segurança – centrado na repressão e na multiplicação das prisões – para voltar-se à concepção de estratégias comunitárias de segurança que busquem, de forma participativa e democrática, a transversalidade87. Diferente da interdisciplinaridade88 nas ações governamentais, nas quais há um diálogo entre vários segmentos governamentais – o que já é, em si, importante –, a transversalidade das políticas de segurança pressupõe que a preocupação com a prevenção da violência deve estar presente na elaboração e na execução das demais políticas públicas do executivo municipal, estadual ou federal. A transversalidade deve ser entendida como um dos princípios norteadores da execução das políticas destinadas a objetivos e metas determinados, mas não pode ser tomada como um fim em si mesmo. Quando falamos em prevenção no Brasil, é muito comum que isso seja compreendido como sinônimo de programas sociais ou de políticas públicas que aumentem a oferta de educação, saúde, habitação, lazer etc. Por esse caminho, os governos já estariam fazendo prevenção sempre que investissem em programas sociais. Isso não é rigorosamente verdadeiro. É claro que melhorias alcançadas na situação econômica e social da população tendem a produzir resultados positivos, concorrendo para a redução do crime e da violência. Ocorre que crime e violência não podem ser compreendidos como resultados diretos e exclusivos das carências sociais. Reduzir essas carências pode ajudar muito, mas isso não é, ainda, a prevenção a qual nos referimos. Aliás, quando imaginamos que o crime e a violência podem ser enfrentados apenas com reformas sociais, passamos a menosprezar a necessidade de uma política de segurança, e o mais provável é que nunca a tenhamos. Em função disso, falamos em agenciamentos do crime e da violência, e não em causas, a não ser em um sentido bastante amplo e genérico, em contextos nos quais isso facilite a comunicação. As causas de problemas complexos são, necessariamente, complexas e envolvem muitas mediações. Normalmente, elas remetem a problemas estruturais, cuja solução é tarefa para gerações inteiras – ou seja, problemas cujas soluções demandam décadas. Entretanto, quando o tema é segurança, não podemos aguardar por uma resolução tão demorada. Afirmar o contrário seria o mesmo que propor uma sentença de sofrimento e morte para a maioria das pessoas que se sentem inseguras e que, também por isso, têm pressa. 87 De acordo com Theodomiro Dias Neto (2005, p. 115): “O confronto público das diversas experiências profissionais desbloqueia a criatividade social para novos tratamentos e permite que as diversas instituições – não somente a policial – possam enxergar os problemas além das dimensões estreitas de seus focos”. 88 Sobre a interdisciplinaridade, leia o texto A interdisciplinaridade como uma das bases da inteligência policial, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/artigos/a-interdisciplinaridade-como-uma-das-bases-da-inteligencia-policial. 53/61 No Guia para a prevenção da violência89, assumido pela SENASP como orientação geral para políticas de segurança dos Municípios brasileiros, encontramos o seguinte exemplo para ilustrar o sentido do termo agenciamento: “Imaginemos uma ocorrência como um incêndio em uma favela. Tragédias do tipo são, ainda hoje, comuns em todo o País. Em várias dessas ocorrências, centenas de pessoas perdem o pouco que conseguiram juntar em suas vidas. Muitas outras ficam desabrigadas, e algumas, muito frequentemente crianças, morrem queimadas. Parece evidente que esses resultados estão relacionados a uma causa econômico-social. Se as pessoas não vivessem em favelas e morassem em casas de alvenaria, em bairros servidos por uma adequada infraestrutura, não ocorreriam incêndios e, ainda que eles ocorressem, os resultados não seriam tão devastadores. Isso é evidente. O que não é evidente é que a grande maioria dos incêndios desse tipo é produzida, no Brasil, por dois agenciamentos: problemas na instalação dos botijões de gás ou deficiências nas instalações elétricas e uso de velas para iluminação. Se tivermos uma política que assegure às residências mais humildes energia elétrica fortemente subsidiada – acabando com cortes de energia por falta de pagamento e com instalações clandestinas – e desenvolvermos uma política proativa com o Corpo de Bombeiros para visitação domiciliar – com inspeção e troca gratuita de mangueiras e válvulas de gás –, reduziremos os incêndios em favelas para algo próximo a zero. Os moradores seguiriam sendo muito pobres, mas nenhum entre eles morreria queimado. Quando falamos em prevenção queremos nos referir, então, à necessidade de identificar, em cada local, os agenciamentos equivalentes para o crime e a violência e, a partir desse diagnóstico, elaborar políticas específicas que, tanto quanto possível, os previnam”. A configuração de Políticas de Segurança Pública envolve o Estado e a população por meio de espaços de participação, da atribuição de um papel comunitário às polícias e de ações interagenciais que envolvem instituições governamentais e da sociedade organizada. Essa configuração pressupõe um canal de comunicação das políticas de segurança com diferentes códigos culturais dos distintos grupos sociais. No intuito de promover, de forma democrática, a convivência entre grupos distintos, o reconhecimento da heterogeneidade social e sua abordagem são essenciais para que uma política de segurança seja considerada preventiva e promotora dos Direitos Humanos. A implementação desse novo caminho para a formulação intersetorial de políticas de segurança – pensadas a partir de dados concretos e da realidade empírica de cada local específico – conta, de forma indispensável, com os Municípios como promotores, coordenadores e executores de boa parte dessas políticas. São as administrações municipais as mais próximas da população, as que melhor conhecem as necessidades dos moradores de cada local. Portanto, elas possuem capacidade e legitimidade para coordenar ações que envolvem instituições policiais, projetos governamentais e comunidades locais. A experiência recente em alguns Municípios brasileiros tem comprovado isso, e o caso de Diadema (SP) parece ser, entre eles, o mais significativo. A partir de um diagnóstico correto das especificidades do Município quanto à incidência do crime e da violência, Diadema apresentou uma resposta notadamente eficaz quanto à 89 Acesse o Guia para prevenção do crime e da violência, do Ministério da Justiça, disponível em: http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ3F6F0588ITEMID576243E3FB8448E88D550DB118AB37F3PTBRNN.htm. 54/61 redução das taxas de homicídio. Tais resultados foram rapidamente percebidos pela população como uma conquista coletiva dos diversos segmentos da sociedade. Nesse contexto, em que estão sendo buscadas novas formas de gerir a problemática da segurança, surge a discussão sobre a importância dos Municípios como atores fundamentais na construção de modos alternativos de enfrentar os problemas afetos à violência e à criminalidade nas cidades. Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista aos seguintes filmes: Última parada 174 (2008) – De Bruno Barreto Ganga Zumba (1964) – De Cacá Diegues Juízo (2008) – De Maria Augusta Ramos 55/61 ATIVIDADE PROPOSTA Para realizar esta atividade, leia, no ambiente online, uma notícia sobre o tema estudado nesta aula. Como vimos, a intersetorialidade é fundamental na formulação de Políticas de Segurança cidadã. Sendo assim, qual a importância da participação de detentos na elaboração de políticas de segurança? Qual seu papel nesse processo? Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre o seguinte tema: Quando afirmamos que, para serem cidadãs, as políticas de segurança devem ser intersetoriais, estamos falando de quais agenciamentos e de quais fatores envolvidos nesse processo? Nesta aula, você: Conheceu outra etapa fundamental à formulação de políticas no campo da Segurança Pública – a construção de ações intersetoriais que atendam às demandas identificadas no momento da elaboração do diagnóstico; Aprendeu a diferenciar os conceitos de intersetorialidade, interdisciplinariedade, transversalidade e ações afirmativas – algo indispensável para pensar o desenho das ações voltadas à prevenção da violência e ao controle da criminalidade. No contexto atual, em que estão sendo buscadas novas formas de gerir a problemática da segurança, surge a discussão sobre a importância dos Municípios como atores fundamentais na construção de modos alternativos de enfrentar os problemas afetos à violência e à criminalidade nas cidades. Este será o tema abordado na próxima aula: A Municipalização das políticas de segurança. 56/61 Aula 8: A Municipalização das políticas de segurança Ao final desta aula, você será capaz de: Compreender o papel dos Municípios no que tange às políticas de prevenção da violência. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Realize o trabalho final; 5. Leia a síntese desta aula; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à última aula da disciplina Políticas de Segurança Pública. Já estudamos o conceito de intersetorialidade nas Políticas de Segurança Pública e sua relevância no processo de implementação de ações concretas, pensadas a partir de diagnósticos locais. Nesta aula, abordaremos questões relacionadas ao tema da Municipalização da Segurança Pública, seu histórico e a importância dos Municípios na construção de um novo paradigma de ações voltadas à prevenção da violência. A implantação de políticas de segurança nos Municípios brasileiros é recente e possui poucos exemplos no Brasil. A despeito da legislação federal – que determina as competências na administração da Segurança Pública –, nos últimos 10 anos, as demandas crescentes de alguns segmentos da sociedade impulsionaram os Municípios a se manifestarem sobreo tema. A partir desse momento, algumas prefeituras começaram a construir estratégias no intuito de propor à população alternativas complementares às ações desenvolvidas pelos governos estadual e federal. Da mesma forma, em função do aumento da criminalidade urbana e da preocupação em torno do assunto, nos últimos 20 anos, começaram a se desenvolver pesquisas acadêmicas sobre a problemática que envolve as políticas de segurança urbana e seus limites. Como já analisado em aulas anteriores, a partir da década de 1980, o aumento dos índices de violência urbana no País, somado à crise no sistema penitenciário, fez com que grupos da população brasileira e parcela significativa da opinião pública demandassem respostas imediatas do Estado para o combate à violência nas cidades. Os problemas relacionados à segurança do cidadão passaram a gerar preocupação política e acadêmica, até então muito limitada no Brasil. Iniciaram-se pesquisas científicas sobre violência urbana, doméstica e ambiental, sobre tráfico de drogas etc. Da mesma forma, a criação de ONGs voltadas para esses temas tem crescido bastante, o que demonstra mudanças da sociedade civil, até então mera espectadora das decisões estatais em relação à segurança dos cidadãos. Os governos federal e estadual começaram a demonstrar preocupação com a elaboração de políticas para tratar do problema da violência, com um espectro de abrangência ampliado em função da gravidade do problema social. Essas políticas se traduziram, inicialmente, na criação de delegacias de polícia especializadas e em investimentos em equipamentos, ou seja, corresponderam a uma aposta no aparelhamento da polícia para 57/61 combater a violência em detrimento da elaboração de novas abordagens e soluções eficazes. Antes de 1988, as Constituições Federais não explicitavam, claramente, as competências do Município90 como integrante da federação, ainda que fosse consensual que as mesmas competências atribuídas aos demais entes federados também diziam respeito aos Municípios. Foi a Constituição Federal de 198891 que inseriu, expressamente, nos Artigos 1º e 18, o Município como ente federativo. A demanda por políticas municipais para segurança do cidadão esteve, por muito tempo, distante das administrações municipais, uma vez que a Segurança Pública, historicamente, era responsabilidade dos governos estaduais, especialmente das polícias. A partir de 1988, a concepção de Segurança Pública como tarefa do Estado inscreve-se em um contexto conceitual e axiológico, marcado pelos princípios da harmonia e da complementaridade entre as funções das organizações políticas, nomeadamente: União, Estados e Municípios. Em outras palavras, considerando-se o contexto mais amplo do sistema normativo constitucional, pareceria legítimo sugerir uma interpretação elástica, segundo a qual a Segurança Pública poderia passar a ser entendida como atribuição das três esferas de governo (federal, estadual e municipal), assim como, por vias distintas, caberia aos três poderes republicanos: Executivo, Legislativo e Judiciário. Qualquer que seja a posição de cada leitor e exegeta da Constituição, o fato é que, na vida prática, a despeito da prerrogativa estadual, o tema Segurança Pública apareceu com força em várias cidades, nas eleições municipais de 2000. Com o início dos novos mandatos, começaram a ser elaborados Planos Municipais de Direitos Humanos e Segurança Pública92. Em 2003, o Projeto de Segurança Pública para o Brasil – apresentado ao País pelo presidente Lula, em 2002, como candidato –, começou a ser implementado. Entre suas propostas, destacam-se: a normatização do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP); a instalação, nos Estados, dos Gabinetes de Gestão Integrada de Segurança Pública (essa proposta foi elaborada pela SENASP, sob a direção do então secretário nacional, Luiz Eduardo Soares, já em 2003); a integração territorial, com a criação, em nível estadual, de Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs); a desconstitucionalização93 90 Sobre as competências do Município, leia o texto Segurança Pública: um desafio para os Municípios brasileiros, de Carolina de Mattos Ricardo e Haydee Caruso, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/pdf/artigo8_seguranca_publica.pdf. 91 Acesse, na íntegra, a Constituição Federal de 1988, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. 92 Sobre os Planos Municipais de Direitos Humanos e Segurança Pública, sugerimos as seguintes leituras: PLANO Nacional de Segurança Municipal. In: SOARES, Luiz Eduardo. Legalidade libertária. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. KAHN, Túlio. Indicadores em prevenção municipal de criminalidade. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=nIphnLkIHdAC&printsec=frontcover. Acesso em: 05 ago. 2009. 93 A desconstitucionalização das polícias transferiria para os Estados a tarefa de prever, em seus respectivos diplomas legais, o modelo policial apropriado, o que poderia resultar na unificação das Polícias Estaduais bem como na criação de Polícias Municipais ou Metropolitanas, encarregadas tanto da investigação quanto do patrulhamento ostensivo uniformizado – denominadas polícias de ciclo completo. 58/61 das polícias; o foco na capacitação e valorização profissional das polícias; a ênfase na integração do conhecimento e no compartilhamento das informações; o estímulo às penas alternativas; o suporte aos mecanismos de controle das polícias através de Ouvidorias independentes e Corregedorias unificadas; o investimento em políticas preventivas no policiamento comunitário e na atuação das Guardas Municipais. O que está listado acima são apenas alguns pontos de um Projeto94 marcado pela amplitude e profundidade no encaminhamento dos problemas levantados. Esse Projeto estabelece um roteiro das questões a serem enfrentadas, o qual, de uma maneira ou de outra, vem servindo como norteador das políticas indutoras propostas pelo governo federal no âmbito da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Esses planos objetivaram articular iniciativas de vários setores do executivo federal, de modo que programas de várias áreas pudessem convergir em empreendimentos selecionados a partir de demandas formuladas por Estados e pelas próprias municipalidades, por meio da ação coordenada do Poder Público local95 com a sociedade civil. As reformas propostas na esfera municipal estão votadas à redefinição de papéis: a administração local passaria a ser gestora e operadora da Segurança Pública em nível local, sem descuidar de sua articulação com as Polícias Estaduais e com as políticas integradas, propostas no âmbito federal. As propostas valorizam a qualificação, estruturação e o protagonismo das Guardas Municipais, que deixam de ser – exclusivamente – responsáveis pela tutela dos bens patrimoniais das prefeituras, passando a ter papel determinante nas ações de prevenção da violência e construindo relações de diálogo e parceria entre o executivo municipal e a população. Nas Políticas Municipais de segurança, o trabalho análogo ao policiamento vinculado à administração local é feito pela Guarda Municipal. Atualmente, menos de 20% dos Municípios possuem Guardas, o que tende a limitar (ainda que esteja longe de impedir) a atuação das prefeituras em relação à segurança urbana, fazendo com que dependam inteiramente das Polícias Civil e Militar, e, é claro, das políticas preventivas intersetoriais que venham a implementar. Legalmente,as atribuições das polícias nos espaços públicos são determinadas pela Constituição Federal de 1988, que estipula que as ações ostensivas de controle da criminalidade são atribuições dos governos federal e estadual, cabendo ao Município, no entanto, o papel de preservação do patrimônio público e de seus bens e serviços. Nesse sentido, o caráter preventivo da Guarda Municipal surge do entendimento de que, por meio de um atendimento direcionado às escolas e aos postos de saúde, ela pode executar projetos de inclusão social e cidadania como formas de prevenir a violência. A partir desse movimento nacional de repensar estratégias, nas quais os Municípios se tornariam protagonistas das políticas de segurança, algumas iniciativas voltadas para a 94 Acesse, na íntegra, o Projeto Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI), disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJF4F53AB1PTBRNN.htm. 95 Sobre o Poder Público local, leia o texto O papel dos Municípios na Segurança Pública, de Túlio Kahn e André Zanetic, disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas_/downloads/manual_estudos_criminologicos_4.pdf. 59/61 prevenção da violência no âmbito municipal96 já demonstraram resultado no Brasil. Além da já referida Diadema (SP), bons exemplos (ainda que alguns não tenham sido seguidos) são os casos de Santo André (SP), Vitória (ES), Recife (PE), Porto Alegre e Canoas (RS), São Paulo, Belo Horizonte, Nova Iguaçu e São Gonçalo (RJ), entre outros. A demanda e sua urgência passaram a pressionar os executivos municipais com um vigor antes desconhecido. Nesse aspecto, há uma situação política nova que exige uma resposta precisa por parte dos gestores municipais. De um lado, as prefeituras não podem assumir para si a responsabilidade de resolver um problema cujas causas estruturais mais importantes estão distantes das possibilidades abertas às políticas públicas municipais. De outro, seria simplesmente um erro contornar o problema como se ele não dissesse respeito aos Municípios e repetir que cabe ao Estado e à União apresentarem soluções. Como vimos, já temos, no Brasil, casos de administrações comprometidas com a população, conhecedoras das angústias vividas pelos munícipes, que foram capazes de construir uma abordagem específica dos problemas de segurança, oferecendo uma contribuição real para seu enfrentamento. Mas a história recente da participação dos Municípios na segurança não foi marcada só por sucesso e inovação. Na tentativa de oferecer uma resposta aos problemas da criminalidade e da violência, alguns Municípios investiram na reprodução de máquinas repressivas, organizando as Guardas Municipais como pequenas PMs em desvio de função, e as concebendo, desde sua formação/treinamento, como estruturas espelhadas no modelo reativo de policiamento. Nesses casos, os Municípios gastaram recursos significativos na compra de armas, coletes e viaturas, montando Guardas vocacionadas para perseguir e prender suspeitos, quando seu papel primordial, enquanto agente de prevenção da violência, deveria estar voltado para as ações de policiamento comunitário e de prevenção situacional do crime97. Não raro, tais experiências produziram apenas mais violência e se mostraram, de um modo geral, incapazes de construir um caminho que sustentasse, a partir do próprio interesse público, os gastos efetuados. Sendo assim, discutimos o tema da Municipalização das políticas de segurança após: cumprirmos um percurso histórico-cultural pelo campo vasto e complexo das instituições de Segurança Pública e de seu controle democrático, interno e externo; abordarmos o tema O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público, entendendo a que nos referimos quando falamos em policiamento comunitário; analisarmos, criticamente, as concepções de políticas de segurança urbana, buscando evidenciar as diferenças entre Política de Segurança Pública cidadã e política de extermínio do inimigo; até avançarmos para o exame das políticas intersetoriais no campo da Segurança Pública. 96 Sobre violência no âmbito municipal, leia o texto O processo de gestão da Segurança Municipal, de Miriam Guindani, disponível em: http://www.politicasuece.com/v6/admin/publicacao/mapps_Mirian_103.pdf. 97 Como explica Theodomiro Dias Neto (2005), as medidas de prevenção situacional são aquelas voltadas a intervir nas características físicas de um local ou a introduzir mecanismos de vigilância (câmeras, alarmes, trancas) com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população e de evitar a prática de crimes. 60/61 ATIVIDADE PROPOSTA Assista, no ambiente online, aos vídeos sobre o papel das Guardas Municipais nas Políticas de Segurança Pública: Vídeo Institucional da Guarda Municipal e GCM de São Paulo denuncia descaso. Como vimos, as Guardas Municipais possuem um papel de grande importância na Municipalização das Políticas de Segurança Pública. Reflita sobre o assunto e responda: Como o poder local pode proporcionar que a Guarda Municipal deixe de ser a protetora do patrimônio do Município para ser a protagonista de ações de prevenção à violência? Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre os seguinte temas: O papel dos Municípios nas Políticas de Segurança Pública ainda é recente. Quais as mudanças significativas que essa reforma de competências pode trazer? Tendo em vista que a administração municipal é a „porta‟ na qual a população bate, podemos pensar que a comunidade terá mais acesso às políticas de segurança? Como é vista a atuação das Guardas Municipais para além da proteção ao patrimônio? Escreva uma resenha em 1 lauda (arquivo Word) do capítulo III do livro indicado na bibliografia do curso: A síndrome da rainha vermelha: policiamento e Segurança Pública no século XXI; ou uma resenha em 1 lauda (arquivo Word) do artigo da pesquisadora Miriam Guindani, intitulado O processo de gestão da segurança municipal. Orientações sobre a realização do trabalho podem ser obtidas com o professor, no ambiente online, no Fórum de Discussão – tópico Orientações do Trabalho. 61/61 Nesta aula, você: Percorreu o caminho histórico e político até chegarmos à Municipalização das Políticas de Segurança Pública; Conheceu algumas experiências brasileiras e compreendeu como ocorre a competência dos Municípios nesse processo, tendo em vista que, historicamente, os protagonistas das questões atinentes à segurança nas cidades eram os governos estadual e federal. Aqui, encerramos a última aula da disciplina Políticas de Segurança Pública, para abordarmos, na próxima disciplina, a relação entre o Ordenamento Jurídico brasileiro e a Segurança Pública.