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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 
 
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA 
 
PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA 
 
 
 
 
 
 
FERNANDO MASCARENHAS 
 
 
 
ENTRE O ÓCIO E O NEGÓCIO: 
TESES ACERCA DA ANATOMIA DO LAZER 
 
 
 
 
Tese apresentada à Faculdade de Educação 
Física como requisito final para obtenção do 
título de Doutor em Educação Física. 
 
 
 
Orientador: Professor Doutor Lino Castellani Filho 
 
 
 
 CAMPINAS - SÃO PAULO 
 
 Junho - 2005 
 
 ii
 
 iii
 
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 
 
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA 
 
PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA 
 
 
 
 
AUTOR: FERNANDO MASCARENHAS 
 
 
TÍTULO DA TESE: 
“ENTRE O ÓCIO E O NEGÓCIO: TESES ACERCA DA ANATOMIA DO 
LAZER” 
 
 
 
 
 Este exemplar corresponde à redação final da tese de 
doutorado defendida por Fernando Mascarenhas e aprovada pela 
Comissão Julgadora em 3 de junho de 2005. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Dr. Lino Castellani Filho 
(orientador) 
 
 
 
 iv
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA 
BIBLIOTECA da F.E.F. - UNICAMP 
 
 
 
Mascarenhas, Fernando. 
M373e 
 
Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do 
lazer / Fernando Mascarenhas. - Campinas, SP: [s.n], 
2005. 
 
 Orientador: Lino Castellani Filho. 
Tese (doutorado) – Faculdade de Educação Física, 
Universidade Estadual de Campinas. 
 
 1. Lazer. 2. Trabalho. 3. Mercado. 4. Educação. 5. 
Lazer-Aspectos sociais. 6. Lazer-História I. Castellani Filho, 
Lino, 1951-. II. Universidade Estadual de Campinas, 
Faculdade de Educação Física. III. Título. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 v
DEDICATÓRIA 
Este trabalho é dedicado a Ennio Helio Alves, um operário 
técnico especializado que acreditou na promessa integradora da educação 
e, apesar das dificuldades que a vida lhe impôs, é bom que se diga 
também, sob a influência e rigidez da razão-trabalho fordista, ao seu 
modo, soube cuidar da formação de seus filhos. 
 vi
 vii
AGRADECIMENTOS 
Ao PICD-CAPES, pela concessão do financiamento para a 
realização deste trabalho, tornando estruturalmente possível meu 
afastamento e deslocamento para a cidade de Campinas-SP. 
Aos companheiros de trabalho na Faculdade de Educação 
Física da Universidade Federal de Goiás, que se desdobraram para 
garantir minha licença apesar de todas as dificuldades que apanham a 
Universidade Pública em nosso país. 
Aos amigos da Educação Física de Goiânia, lembrando da 
Anegleyce, Lenir, Nivaldo, Guego e Alvina, Marcus e Fabiana, Marcus 
Fraga, Paulo Ventura, Alcir e Helena, Pitias, Renato, Marcelo, Laerson, 
Luzia, Jussara, Guina e Luciana, Chico e Climene, Antônio Celso, 
Waltinho, Zé Pedro, Almandino, Nilva, Marília, Margarete, dentre tantos 
outros que, seja pelas reuniões, pelos encontros, pelas conversas, pelas 
discussões, pelas festas, pelo futebol, pelos conflitos, pelo trabalho coletivo 
etc., de uma forma ou de outra, estão presentes nas entrelinhas deste 
estudo. 
Aos amigos do Lazer Marcelo Húngaro, Wilson Lino, Simone 
Rechia, Tereza França e Gustavo Coppola pelos momentos descontraídos 
de aprendizado mútuo através do envolvimento com o Grupo de Trabalho 
Temático do CBCE ou em outras atividades divididas. 
 viii
 ix
Aos companheiros de moradia em Campinas-SP, Edgard, 
Sandoval e Roberto Liao pela amizade, cumplicidade e solidariedade 
compartilhada. 
Às professoras Ana Márcia Silva, Anita Azevedo Resende, Silvia 
Cristina do Franco Amaral, Valquíria Padilha e professor César Aparecido 
Nunes, pelas críticas, sugestões e contribuições oferecidas como membros 
da banca de qualificação ou de defesa desta tese. 
Ao amigo e Professor Lino Castellani Filho que, para além de 
orientador, é alguém que admiro pela inquietude, esperança, engajamento 
e habilidade diante das relações de hegemonia e contradições da vida 
acadêmica e política brasileira, autêntico sujeito de seu tempo. 
E, em especial, a Luciana Marcassa, pela ajuda na cansativa 
leitura e revisão deste texto, por suas críticas e sugestões sempre 
pertinentes e competentes, pelos poemas declamados, pela música 
entoada, por sua presença sempre marcante de paciência, sensibilidade, 
companheirismo e ternura, além, é claro, por seu amor de mulher e pessoa 
linda que é. 
 x
 
 xi
RESUMO 
Este trabalho aborda a transição que apanha o lazer na 
sociedade contemporânea, tendo em vista as mudanças econômicas, 
políticas e culturais ocorridas ao longo das últimas décadas. Trata-se de 
uma investigação histórico-filosófica estruturada sobre revisão de 
literatura, pesquisa documental e discussão teórica que abarca momentos 
de classificação epistemológica, análise categorial e debate político em 
torno do lazer. Procura contribuir para a compreensão e explicação das 
novas práticas de divertimento e manifestações da cultura lúdica 
emergentes no Brasil a partir dos anos 1990, quando tal fenômeno, 
anteriormente vinculado às necessidades de produção e reprodução da 
força de trabalho – subsunção formal –, passa a subordinar-se diretamente 
à produção e reprodução do capital, sucumbindo à forma mercadoria – 
subsunção real. Ao discutir as transformações econômicas provocadas 
pela reestruturação produtiva, as mudanças políticas ditadas pela 
hegemonia do ideário neoliberal e as modificações culturais, cuja 
expressão se dá pela dinâmica da mundialização, tenta desvelar os 
fundamentos ocultos e contradições que estão na base deste processo de 
mercantilização, como também confrontar o desenvolvimento desta 
tendência com uma perspectiva superadora de lazer, buscando apontar os 
limites e as possibilidades de ação política colocadas para sua realização. 
 
 xii
 xiii
ABSTRACT 
This work is concerned with leisure transition in 
contemporany society, considering the economical, political and cultural 
changes in the last decades. It was used a historical-phylosofical 
investigação supported by a literature review, documental research and 
theoretical discussion about epistemological classification, categorial 
analysis and political debate around leisure. This works contributes to a 
better comprehension and explanation about the new leisures activities 
and manifestations of the playful culture growing in Brazil since 1990 
years, when this phenomenum, previously related to production and 
reproduction necessities of the work force – formal subordination – 
becomes directly subordinated to production and reproduction of capital, 
defeated by the commodity - real subordination. Discussing the 
economical transformations related to productives reestruturation, the 
politicals transformations related to neoliberal politics and cultural 
changes, whose expression is influenced by the dynamic of globalization, 
try uncover the hidden basis and contradictions that are the fundaments 
of the trading process. Besides, they also compare the development of this 
tendency with a new perspective of leisure, in order to expose the 
limitations and possibilities of a political action essential to their 
accomplishment. 
 
 xiv
 
 
 
 xv
SUMÁRIO 
LISTA DE SIGLAS 1 
 
INTRODUÇÃO 4 
 
CAPÍTULO I – O PEDAÇO SITIADO 26 
 
1. Identidade mutante 27 
2. Pedaço despedaçado 33 
3. Periferia é periferia 42 
4. Gritos na multidão 53 
 
CAPÍTULO II – CAPITALISMO EM FÚRIA 56 
 
1. A nova (des)ordem 57 
2. O presente do trabalho 66 
3. A sociedade involucral 84 
4. Exclusão social clube 94 
5. A cultura das saídas 112 
 
CAPITULO III – DOMÍNIOS DO MERCOLAZER 140 
 
1. Explosão divertida 142 
2. O epicentro do boom 146 
3. A mercogênese do lazer 150 
4. Tudo vira shopping 160 
5. Lazer monopolista 171 
6. Fetichismo do mercolazer 177 
7. Na balada do êxtase-lazer 200 
 
CAPÍTULO IV - EM BUSCA DO ÓCIO PERDIDO 207 
 
1. Espectro skholé 208 
2. A miséria do ócio 213 
 xvi
 xvii
 
3. Anatomia do macaco 223 
4. O reino da liberdade 234 
 
CAPÍTULO V - LAZERANIA TAMBÉM É CONQUISTA 2411. Outro lazer é possível 243 
2. Política de lazerania 251 
3. Por uma pedagogia crítica do lazer 269 
 
CONCLUSÃO 276 
 
REFERÊNCIAS 287 
 
 
 1
LISTA DE SIGLAS 
AABB – Associação Atlética do Banco do Brasil 
ABRASCE – Associação Brasileira de Shopping Centers 
ADIBRA – Associação das Empresas de Parques de Diversões do Brasil 
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento 
BNDES – Banco Nacional para o Desenvolvimento 
CBCE – Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte 
CBV – Confederação Brasileira de Voleibol 
CELAR – Centro de Estudos de Lazer e Recreação 
CELAZER – Centro de Estudos do Lazer 
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho 
CNI – Confederação Nacional da Indústria 
CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico 
CUT – Central Única dos Trabalhadores 
DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-
Econômicos 
DORT – Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho 
EMBRATUR – Instituto Brasileiro de Turismo 
 2
EPT – Esporte Para Todos 
FECEG – Federação dos Clubes do Estado de Goiás 
FIPE – Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas 
FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço 
FGV – Fundação Getúlio Vargas 
FMI – Fundo Monetário Internacional 
IAAPA – Associação Internacional de Parques de Diversões e Atrações 
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada 
LER – Lesões por Esforço Repetitivo 
MCT – Ministério de Ciência e Tecnologia 
MET – Ministério do Esporte e Turismo 
OIT – Organização Internacional do Trabalho 
OMC – Organização Mundial do Comércio 
OMS – Organização Mundial de Saúde 
OMT – Organização Mundial do Turismo 
ONG – Organização Não Governamental 
ONU – Organização das Nações Unidas 
OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte 
PUC-RS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 
PDV – Programa de Demissão Voluntária 
PIB – Produto Interno Bruto 
 3
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 
POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares 
PT – Partido dos Trabalhadores 
SESC – Serviço Social do Comércio 
SESI – Serviço Social da Indústria 
UFG – Universidade Federal de Goiás 
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a 
Cultura 
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas 
UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo 
USP – Universidade de São Paulo 
WLRA – Associação Mundial de Lazer e Recreação 
 
 4
INTRODUÇÃO 
Todo começo é difícil em ciência. Essa é uma asserção marxiana 
que também vale para os estudos do lazer. Muito embora figure aqui no 
início de nosso trabalho, esteve acompanhando toda sua construção, uma 
vez que foram vários os nossos recomeços desde a escrita do projeto de 
pesquisa que serviu de ponto de partida para sua realização. Como se não 
bastassem os limites que se impõem à atividade investigativa, através da 
qual buscamos apreender, sob a mediação do conhecimento, determinados 
aspectos da realidade experienciada pelo homem que, para nós, revelam-se 
como problemáticos, a exposição sistemática do conjunto dos dados 
organizados, dos nexos estabelecidos, das interpretações produzidas, das 
alternativas colocadas em perspectiva e dos sentidos atribuídos a partir 
deste processo constitui, igualmente, tarefa por demais desafiadora e 
complexa. Assim, a fim de dissolver possíveis dificuldades que podem 
surgir ao longo do texto é que trazemos ao cenário desta introdução o 
contexto social e epistemológico do qual este trabalho emerge, reavendo 
motivações, antecipando notas ao seu entendimento, identificando o 
caminho metodológico percorrido e anunciando a forma que julgamos a 
mais apropriada à sua exposição. 
Vale então começar localizando o leitor de que os estudos do 
lazer no Brasil se desenvolvem e se consolidam, sobretudo, na década de 
1970, quando emergem grupos, laboratórios, pesquisas, livros, teses, 
 5
eventos etc. envidando esforços para a descrição, avaliação e organização 
dos usos do tempo livre. Destaca-se, neste período, a criação de dois 
centros, o Celazer, em São Paulo-SP, no ano de 1970, e o Celar, em Porto 
Alegre-RS, no ano de 1973. O primeiro foi resultado de uma ação 
institucional do SESC, reunindo seu quadro pessoal especializado em 
torno do francês J. Dumazedier, uma das maiores referências do mundo 
em se tratando do assunto. O segundo, foi uma promoção conjunta da 
PUC-RS e da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, responsável pela 
organização, em 1974, do primeiro Curso de Especialização em Lazer no 
país, visando a capacitação de profissionais para atuação nos Centros de 
Comunidade,1 projeto precursor dos Centros Sociais Urbanos, uma rede 
nacional de educação comunitária implantada em 1975 pelo governo 
federal. 
Já no cenário internacional, os primeiros estudos voltados à 
problemática do lazer datam das décadas de 1920 e 1930, nos Estados 
Unidos e na França, igualmente orientados para o ajustamento dos 
trabalhadores ao uso moral e utilitário do tempo livre. Mas é no pós-2a 
guerra, a partir da década de 1950, que a chamada sociologia do lazer 
toma corpo, com pesquisas sobre o assunto alastrando-se por outros 
países e estabelecendo interface com outros temas.2 Há de se registrar que 
a preocupação com o lazer, ainda que sob o viés da recreação, já havia 
motivado também no Brasil, em datação anterior, estudos realizados por 
profissionais de diversas áreas.3 Todavia, mais do que um objeto de estudo 
constante de iniciativas individuais e particulares, só algumas décadas 
 
1 Para saber mais sobre os Centros de Comunidade, bem como de suas relações com o Projeto 
Nacional dos Centros Sociais Urbanos, ver Molina (2004). 
2 Sobre o desenvolvimento dos estudos do lazer no cenário internacional, consultar Parker (1978), 
Munné (1980) e Dumazedier (1999). 
3 Merecem menção pela importância e visibilidade alcançada as obras de Sussekind, Marinho e 
Góes (1952), Marinho (1957) e Ferreira (1959). 
 6
mais tarde o lazer passaria a ser encarado como um campo de estudos 
capaz de aglutinar pesquisadores e estimular a realização de investigações, 
projetos e ações coletivas e institucionais (GOMES & MELO, 2003). 
O marco inicial deste movimento – e isto parece ser consensual 
entre aqueles que têm se dedicado a analise da constituição do campo do 
lazer em nosso país4 – foi o Seminário de 1969, um congresso intitulado 
“Seminário sobre Lazer: perspectiva para uma cidade que trabalha”, 
realizado em São Paulo-SP, numa promoção conjunta do SESC e da 
Secretaria do Bem-Estar daquele município, um evento que, para além da 
participação individual de sociólogos, arquitetos, assistentes sociais, 
psicólogos, educadores etc., contou com várias representações de 
instituições ligadas à área social. Segundo Requixa (1977, p. 95), é deste 
momento em diante que a consciência social percebe a importância do 
lazer. “A própria palavra lazer passou a fazer parte do vocabulário dos 
profissionais da área do social e integrou-se, com destaque, no vocabulário 
da imprensa”. É certo que antes mesmo que o lazer se tornasse objeto de 
explicação e interpretação científica, ele já existia para as pessoas. 
Contudo, o que se intentava agora era difundir uma teoria do lazer que 
reorientasse os saberes inerentes a tal fenômeno a partir das experiências 
realizadas, analisando seus limites, possibilidades, falhas e êxitos, tudo 
em nome do bem-estar social, do desenvolvimento, do progresso, da 
integração e da produtividade. 
A partir da separação e exclusão de certos programas de lazer, da 
crítica a certos usos do tempo livre, foi se delineando a 
necessidade de uma única e modelar identidade ao lazer e uma 
definição das diversões e do lúdico pautada pelas regras de um 
lazer responsável pelo desenvolvimento e integração social nos 
moldes dos planos de governo dos anos 1970. Tratava-sede uma 
 
4 Ver, dentre outros, Sant’Anna (1994) e Gomes e Melo (2003). 
 7
operação dupla e simultânea: a verdade do lazer (aquilo que ele 
deveria ser) passava a prescrever e a conferir legitimidade à 
verdade dos discursos sobre ele, ao mesmo tempo em que o 
discurso verdadeiro (aquele que falava em nome do melhor lazer e 
dos legítimos programas de lazer) passava a constituir a verdade 
de seu objeto, que é o próprio lazer (SANT’ANNA, 1994, p. 59-60). 
Em outras palavras, o lazer e seus discursos procuravam auto-
sustentar-se na direção de uma definição e de uma prática que se 
admitiam e que se queriam como verdadeiras para os usos do tempo livre. 
O forte viés ideológico da teoria do lazer que ocupa a cena histórica da 
década de 1970 forja, consequentemente, uma dada “verdade” sobre o 
lazer, determinando suas representações e práticas. E esta “verdade” 
afirmada ancorava-se, justamente, naquilo que se esperava das práticas de 
lazer, algo não apenas lúdico e alegre, mas algo disciplinador e 
compensatório, contribuindo moral e fisicamente para a produção e 
reprodução da força de trabalho. Em sendo assim, a teoria do lazer que se 
desenvolveu nesta época tinha por base a crítica e a oposição a todo e 
qualquer tipo de lazer que expressasse hábitos e modos de vida 
dissonantes daqueles que não fossem a obediência e o rendimento. De tal 
modo, entrava em luta direta contra as concepções subjetivistas e 
hedonistas de lazer, via de regra, consideradas como um entrave à 
formação do operário-massa por se alicerçarem em teorias negadoras do 
trabalho. 
Isto quer dizer que a teoria hegemônica de lazer, ditada a partir 
do aparelho estatal, organizada por suas instituições assessoras, como o 
SESI e o SESC, e difundida por ações e campanhas de massa, não era um 
todo homogêneo. Na margem da contradição, corriam outras concepções. 
O entendimento deste conflito começa a aparecer em Marcellino (1987), 
quando são colocadas lado a lado duas grandes linhas disputando o 
 8
conceito de lazer, uma que o considera uma atitude e outra que o define 
em relação ao tempo. Quando da abordagem em que se privilegia o aspecto 
tempo, o lazer tende a ser explicado a partir das informações resultantes 
da observação empírica dos comportamentos objetivamente empreendidos 
no tempo livre. Por outro lado, o enfoque ligado ao aspecto atitude, valoriza 
a interpretação dos sentidos que as pessoas atribuem e que orientam sua 
ação na experiência vivida de lazer. Entram em luta, portanto, duas 
diferentes visões de mundo, uma realista-objetivista e outra idealista-
subjetivista, em maior ou menor escala, cada qual deixando suas 
influências sobre a pesquisa e a teoria do lazer. 
Sob o ponto de vista epistemológico, vejamos o que está implícito 
em tal embate. Ao concebermos o lazer restritamente em sua dimensão 
subjetiva, encarando-o sob o enfoque privilegiado da atitude, este se 
constitui como a vivência de um estado subjetivo de liberdade em que 
predomina um tipo de relação onde o sujeito se coloca em atividades cujas 
finalidades esgotam-se em si mesmas, sempre marcadas pelo prazer e pela 
satisfação resultantes da escolha individual ou do livre arbítrio inerentes à 
fruição que se experimenta. Neste caso, o significado que as pessoas 
atribuem ao lazer, como sendo uma atividade desinteressada, voluntária e 
autônoma, eminentemente prazerosa e divertida, converte-se na sua 
verdade ou conceito. Logo, confundindo-se aparência com essência, a 
representação que o sujeito possui de tal fenômeno passa a ser 
apresentada como expressão autêntica daquilo que é o lazer. 
 No que se refere ao aspecto temporal, sob o ponto de vista 
subjetivista, o tempo livre não possui o significado de um tempo liberado 
do trabalho, mas do tempo que o indivíduo dispõe para si mesmo. Nesta 
direção, uma vez que o lazer não é definido em relação ao trabalho, 
percebe-se que não existe a antinomia tempo livre e tempo de trabalho, 
mas tempo livre e tempo das obrigações. Assim, da simples contemplação 
 9
até o trabalho, tudo aquilo que for prazeroso e gratificante, percebido como 
não-obrigação, insere-se no tempo livre. Por sua vez, se toda experiência 
prazerosa e gratificante vivenciada pelo indivíduo é igualmente identificada 
como lazer, este último acaba por ocupar a totalidade do tempo livre, o que 
faz com que ambos sejam tomados como sinônimos. Resguardadas as 
características do prazer e da satisfação, até o trabalho pode ser 
considerado como lazer. Tudo depende do sentido que o sujeito atribui à 
sua própria atitude perante uma determinada prática. 
Embora trabalho e lazer possam ser confundidos, destaca-se que 
a tendência à identificação ou localização do prazer e da felicidade somente 
na esfera do lazer é o que predomina. Como o trabalho nos remete ao 
indesejável espaço da aparência e do público, fica a promessa de que o 
lazer, apresentando-se como um outro do trabalho, constitui-se como o 
tempo e o espaço da experiência privada, lugar da autonomia. O lazer se 
encontra, portanto, nas práticas opostas ao processo de produção, na 
entrega às experiências da fruição, onde silenciam as relações essenciais 
entre os homens originárias do processo de trabalho. Entretanto, nesta 
relação com as atividades de lazer, o indivíduo não se posiciona como 
sujeito autocondicionado, pois ao se exteriorizar no objeto da fruição – isto 
é, a própria atividade de lazer –, não se reconhece, muito pelo contrário, 
nega-se em um conjunto de atividades que são necessidades 
heterocondicionadas, em sua maioria, inventadas pela sociedade de 
consumo, não pertencentes a nós mesmos como pessoas. 
Por outro lado, a liberdade não se apresenta como uma forma de 
comportamento em que o indivíduo orienta o seu sentir, pensar e agir de 
modo responsável, consciente das necessidades que determinam o seu 
modo de vida, mas como um princípio metafísico onde a ação espontânea e 
arbitrária do fazer o que se quer é o que prevalece. A satisfação de que se 
fala, não é aquela provocada e estimulada pelo acesso e apropriação da 
 10
cultura elaborada, nem se refere à alegria da criação, do triunfo, do 
conhecimento, da participação, do prazer estético e da qualidade, mas, 
predominantemente, do consumo, do egoísmo e do hedonismo. O homem 
foge de todas as situações que possam provocar dor e sofrimento – ou seja, 
as obrigações – buscando a imperturbabilidade pessoal das não-
obrigações, quando somente pela posse e exercício dos sentidos, do gosto, 
dos sons, dos apetites, da satisfação das necessidades individuais e da 
total entrega à fruição conseguiria atingir o ideal de felicidade humana. 
Enfim, para a visão idealista-subjetivista o acesso ao objeto é 
possibilitado mediante a compreensão do sentido que as pessoas atribuem 
à sua respectiva vivência. Incorre assim o pesquisador em um tipo de 
interpretação em que é recuperado o sentido ou acordo social – isto é, 
sentidos consensuais – construído em torno do lazer dentro de contextos 
restritos de significação. Desta forma, o aspecto atitude relaciona-se à 
subjetividade fundante do sentido atribuído à ação no lazer. A verdade está 
na mente do sujeito. Não queremos negar a validade e importância da 
subjetividade para os estudos do lazer, mas devemos reivindicar a 
autenticidade de seu significado.5 Queremos dizer com isto que a 
problemática do indivíduo, enquanto ser genérico, diz respeito ao 
conhecimento e reconhecimento de si mesmo sob determinadas condições 
e possibilidades da produção, sendo que na base deste processo está o 
trabalho, práxis primeira pela qual o homem supera sua condição de ser 
natural e se converte em ser social. 
No outro extremo, está o olhar da sociologia empírica do lazer, 
portadora da perspectiva realista-objetivista que hegemonizou o campo à5 A subjetividade não se traduz como o elemento exclusivo de explicação do indivíduo e da 
sociedade. O grande desafio é levar a subjetividade à objetividade, identificando nela a sociedade e a 
história (RESENDE, 2001). Este esforço aponta para uma teoria objetiva da subjetividade, sem o 
auxílio da qual o lazer não pode ser entendido em seu contraditório e complexo movimento no 
concreto real Tal perspectiva destaca a importância da categoria trabalho na compreensão e 
apreensão concreta da subjetividade. 
 11
época. Em lugar da interpretação pela compreensão dos sentidos, opta-se 
pela observação controlada dos usos do tempo livre. Conforme anuncia 
Dumazedier (1999), tendo em vista que nas sociedades urbano-industriais 
o trabalho acabou por se distinguir de outras atividades do cotidiano, 
possuindo um limite não regulado pela natureza, sua organização e 
disposição no tempo ganharam uma especificidade própria, de tal maneira 
que o tempo livre nitidamente se separou deste, ganhando também um 
contorno bem definido. Desta forma, pela determinação de um conjunto de 
leis para os comportamentos empreendidos no tempo livre, normalmente 
construídas com o auxílio de categorias a priori e a partir do controle e 
tratamento quantitativo de dados obtidos pela observação empírica6, 
chegamos à definição ou conceito de lazer. 
Assim como a realização das atividades ligadas diretamente à 
esfera da produção material da vida, tidas como obrigatórias e 
economicamente rentáveis, comprova a ocorrência de um tempo de 
trabalho, o conjunto das outras tarefas, obrigações e atividades que não se 
relacionam diretamente ao trabalho aponta para a existência de um tempo 
livre. Este último, por sua vez, é considerado como todo o tempo de não-
trabalho dedicado ao estudo, destinado às tarefas domésticas, às 
obrigações cívicas, familiares, religiosas, políticas, sociais etc., bem como 
aquele reservado às atividades de lazer. Já o lazer é visto como um 
conjunto de atividades opostas ao trabalho e que se diferenciam das 
obrigações, possuindo determinado valor e cumprindo funções bem 
específicas no interior da nossa estrutura social, promovendo o descanso, 
 
6 Como adverte Sant’Anna (1994, p. 69), “cabe lembrar que Dumazedier optou por uma sociologia 
empírica do lazer que, diferentemente da sociologia não empírica, exige a construção de categoriais 
operatórias e de uma teoria anterior ao percurso da pesquisa. Aqui, teoria e prática não estão numa 
relação em que uma informa a outra, mas separadas e numa posição de dominação e de 
enquadramento da primeira sobre a segunda”. 
 12
a diversão e o desenvolvimento7 através do correto preenchimento das 
horas livres residuais, aquelas que não foram tomadas pelas obrigações. 
Ocorre que ao procurar neutralizar a interferência dos erros e 
ilusões da subjetividade, buscando sua explicação naquilo que já está 
dado na realidade como fato, a perspectiva realista-objetivista toma um 
caminho exterior aos indivíduos na definição das propriedades ditas 
dominantes de uma atividade de lazer. Confrontando aquilo que é positivo 
e negativo no tempo livre, abandonando-se o particular em favor do 
generalizável e replicável, dentro de uma lógica estritamente formal, 
busca-se anular a possibilidade da contradição. “Segue-se daí que, se o 
lazer obedece parcialmente a um fim lucrativo, utilitário ou engajado, sem 
se converter em obrigação, não é mais inteiramente lazer. Torna-se lazer 
parcial: chamá-lo-emos então de semilazer” (DUMAZEDIER, 1999, p. 95). 
Por outro lado, se na experiência de lazer, no lugar do descanso, da 
diversão e do desenvolvimento, ocorrem, por exemplo, o desgaste, a 
frustração e a violência, ou mais, se nela estão presentes os valores 
corruptores dos modismos e do consumismo, esta também deixa de ser 
lazer, assumindo agora o caráter de um antilazer. 
O lazer tem seu conceito dado por uma utilidade social que o 
difere e o opõe ao trabalho, em uma relação que se coloca como 
contrapartida deste último. Não é definido pelo modo como o sujeito o 
representa, mas pela forma como se materializa objetivamente na 
realidade e por seu respectivo valor de uso, tendo o poder de compensação 
e reequilíbrio do indivíduo produtor. Mas se por um lado o lazer 
proporcionava a reposição da força de trabalho e promovia a circulação de 
 
7 Os famosos três D podem, resumidamente, assim ser caracterizados: o lazer enquanto descanso 
libera o sujeito do cansaço físico criado pelas exigências do trabalho; já como diversão rompe com a 
monotonia e o tédio de toda rotina diária; finalmente, ao assumir sua função de desenvolvimento, 
em oposição aos automatismos gerados pela ação cotidiana, promove uma maior participação social 
das pessoas (DUMAZEDIER, 1976). 
 13
idéias e mensagens conformistas, por outro, já era percebido também 
como mercadoria ou tempo e espaço potencial de consumo. Não por acaso, 
a perspectiva em questão travava luta direta contra a mercantilização do 
lazer, uma vez que tal processo subtraia a utilidade desejada para o lazer, 
reduzindo-o a mero valor de troca e deixando vulneráveis os trabalhadores 
ante as características degradantes, passivas, imorais e viciosas dos 
prazeres e divertimentos mercantis. 
A crítica em torno dos usos do tempo livre também ocorreu em 
detrimento às formas de conceber o lazer desenvolvidas pela 
indústria cultural [...]. Justamente com a ampliação do consumo 
de televisores, o investimento publicitário massivo ocorrido em 
torno do futebol e a construção dos shopping centers [...], é 
possível perceber uma preocupação em avaliá-los criticamente, de 
classifica-los segundo padrões e medidas que visam a implantação 
de um lazer verdadeiro. [...] Uma verdade capaz, em última 
análise, de justificar o lazer como um valor social imprescindível 
(SANT’ANNA, 1994, p. 62-63). 
Instaurou-se, assim, uma compreensão que atravessou toda a 
década de 1970 e que alcançou a década de 1980, chegando até mesmo na 
década de 1990, sempre distinguindo, classificando e prescrevendo o lazer 
mais adequado, melhor e verdadeiro. Como representante da perspectiva 
hegemônica, o pensamento de Dumazedier (1976, 1980, 1994, 1999) 
tornou-se referência de várias instituições, estudiosos e educadores. 
Todavia, ao final da década de 1980 desponta uma nova vertente, 
imprimindo algumas alterações no modo de se conceber o lazer. Ocupam 
aí lugar de destaque as críticas dirigidas por Marcellino (1987) ao 
componente funcionalista da abordagem em questão, colocando as 
discussões em um outro patamar. De qualquer modo, o que não se 
percebe é que a funcionalidade criticada – fosse em seu viés romântico, 
moralista, compensatório ou utilitário – já dava seus sinais de fraqueza, não 
 14
só por causa do pensamento que lhe foi contra-posto pelo autor, mas, 
principalmente, pelas novas condições objetivas e subjetivas dadas pelo 
processo de mercantilização que apanhava o lazer. 
É certo que o pensamento de Marcellino (1983, 1987, 1997) 
exerceu enorme influência no campo8, trazendo importantes contribuições 
para a constituição de um olhar mais crítico em relação aos estudos do 
lazer. Entretanto, o que se argumenta é que justamente aquilo que sua 
obra apresenta de descontinuidade e ruptura com o funcionalismo da 
sociologia empírica, acaba por ter o seu poder explicativo enfraquecido ao 
passo que, a partir da década de 1990, assistimos uma refuncionalização 
do lazer dada por sua subsunção à forma mercadoria. Seu antigo valor e 
utilidade sociais, propugnados como verdade e enormemente difundidos 
nas décadas anteriores como força auxiliar para a produção e reprodução 
da força de trabalho, passam a se subordinar aos interesses econômicos 
de uma heterogênea e crescente indústria do lazer. Além de ressignificar 
ou até mesmo implodir coma “verdade” e o mundo do lazer anteriormente 
edificados, tal indústria resgata e confere nova vida às concepções 
subjetivistas, uma vez que a afirmação do prazer do indivíduo e de sua 
liberdade de escolha no mercado se misturam ao enaltecimento e 
estandardização de práticas de lazer cada vez mais individualistas e 
hedonistas, diante do objetivo primeiro da troca e do lucro, pouco 
importando seu valor moral e utilitário. 
Voltando ao tema do olhar mais crítico que se propôs para o 
lazer, em que pese o tamanho da citação que destacamos a seguir, é 
instigante o fato de como ela levanta pontos interessantes para avaliarmos 
como este viés questionador, que veio a influenciar a pesquisa e os estudos 
 
8 Para se ter uma amostra desta influência, segundo pesquisa de P. C. Almeida, citada por Pinto 
(1999), com base no levantamento dos trabalhos apresentados por ocasião do Encontro Nacional de 
Recreação e Lazer e do Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, ambos realizados em 1997, N. 
C. Marcellino é o autor mais citado nos textos produzidos sobre o tema do lazer no país. 
 15
do lazer a partir da década de 1990, enxergava o processo de 
mercantilização deste fenômeno: 
Godbey chega mesmo a afirmar que o que vem aumentando nos 
últimos anos não é o lazer, mas o que ele denomina de “antilazer”, 
atividade compulsiva e realizada a partir de necessidades impostas 
exteriormente, com baixo grau de autonomia pessoal e altos graus 
de pressões e preocupações com o tempo. Posições como essa são 
questionadoras da hipótese de que estamos caminhando para uma 
sociedade onde os valores do lazer exerçam influências 
significativas, em termos de mudança social. Parker, na sua 
“Sociologia do Lazer”, embora ponderando que esse não é o quadro 
da maioria da população, nem mesmo nas sociedades 
desenvolvidas, afirma que “é difícil dizer quando o antilazer irá 
superar o lazer, mas” – complementa – “parece cada vez mais 
provável que isso ocorrerá”. Seria ingênua uma posição que 
ignorasse essas possibilidades. Entretanto, não deixa de ser 
perigosa a posição que subordina toda a ação na área das 
atividades de lazer a esse fatalismo, que na verdade justifica o 
imobilismo e dessa forma fundamenta a ausência de reação, “o 
cruzar os braços”, a não consideração desse campo como área de 
intervenção, contribuindo assim para aumentar a sua 
vulnerabilidade e seus riscos (MARCELLINO, 1983, p. 13-14). 
O principal ponto a ser observado diz respeito à necessidade de 
contextualização histórica da análise. Vale lembrar que tanto Godbey 
(1975) como Parker (1978) falavam de um observatório privilegiado. 
Situados, respectivamente, nos Estados Unidos e na Inglaterra, centros 
mais dinâmicos da economia mundial, já podiam perceber os antecedentes 
de transição para o capitalismo pós-crise dos anos 1970, quando havia 
nesses países uma retração do setor industrial em detrimento de uma forte 
expansão do setor de serviços privados. Especialmente naquelas nações, 
era perceptível uma tendência à expansão da mercantilização do lazer, algo 
 16
que foi compreendido e descrito pelos autores, em função da influência 
que tinham da categorização proposta pela sociologia empírica, como um 
movimento de expansão do antilazer. 
Parker (1978, p. 42), por exemplo, dizia: “Evidentemente este 
quadro não é característico da vida da maior parte da população atual dos 
Estados Unidos, e menos ainda da Grã-Bretanha. Mas aplica-se a uma 
minoria significativa e crescente, e provavelmente vai continuar crescendo, 
tal a dinâmica do capitalismo”. Neste tipo de avaliação, não há nada de 
fatalismo, como sugerido por Marcellino (1983). Ao contrário, Godbey 
(1975) e Parker (1978), por uma contingência da realidade, não podiam 
deixar de considerar o que acontecia. O que não se pode achar, a partir de 
uma abstração teórica, é que o lazer seja puro poder positivo de 
transformação social, e que qualquer tipo de constatação que admita sua 
mercantilização seja crítico-reprodutivista, portadora do imobilismo. 
Queremos dizer com isso que a intervenção reativa desejada por Marcellino 
(1983), para ser mesmo colocada em prática, deve ser posta de “ponta a 
cabeça”, tendo na mercadorização, na alienação, no individualismo, no 
formalismo e na desefetivação que apanha o lazer contemporâneo o ponto 
de partida de crítica e de transformação. 
De todo modo, o que queremos por em evidência é que as 
definições e conceitos de lazer colocados pelo campo, sejam de viés 
realista-objetivista, idealista-subjetivista ou crítico-idealista, precisam ter 
suas verdades submetidas ao crivo da realidade. E um dos grandes limites 
colocados para a significativa quantidade de pesquisas e produção de 
conhecimento a área do lazer no Brasil9 é, justamente, a apropriação 
 
9 Conforme consulta realizada junto à base de dados da Plataforma Lattes/CNPq, sistema eletrônico 
de informações das agências de fomento à pesquisa do país, existem 31 grupos, congregando 117 
pesquisadores, cadastrados no “Diretório de Grupos de Pesquisa”, que realizam algum tipo de 
pesquisa referente à problemática do lazer no Brasil. No “Sistema de Currículo Lattes”, foi possível 
identificar 1426 registros de pesquisadores que já tenham publicado ou produzido trabalhos 
relativos ao assunto. Disponível em: <http://www.lattes.cnpq.br>. Acesso em 25 mar. 2002. 
 17
apressada e irrefletida dos conceitos e “verdades” expostos ao debate. A 
ausência de profundidade teórica, bem como a confusão metodológica, 
permeiam o modismo e a facilidade de cooptação presentes no campo. 
Importa então saber que o critério de verdade para apreensão daquilo que 
é o lazer é a prática.10 Assim, o conceito de lazer deve expressar, sob o 
ponto de vista lógico, a síntese das múltiplas determinações que o 
atravessam e que são instituídas pela economia, pela política e pela 
cultura. Isto quer dizer que é a dinâmica da história que dita os limites 
para a explicação e compreensão do real. 
Mas o que, afinal, constitui o lazer? Em não podendo entendê-lo 
abstratamente, tampouco como fato social dado, como algo fechado em si 
mesmo, auto-reprodutivo, temos de apanhá-lo na história, procurando 
desvelar suas mediações com o universo da práxis social. Nossa síntese ou 
consciência possível pode apanhar, de tal modo, apenas a contradição, o 
movimento e a tendência em desenvolvimento, o que por sua vez nos 
remete ao devido cuidado de não querer resolver na teoria aquilo que ainda 
não está resolvido na prática. Deste modo, quando nos interrogamos sobre 
o que é o lazer, problema que elegemos como objeto central desta 
pesquisa, postulamos a necessidade de que tal pergunta seja recolocada, 
tendo em vista que as condições encontradas no atual estágio do 
desenvolvimento capitalista não mais coincidem com aquelas que 
encontrávamos há duas ou três décadas atrás. Para não incorrermos em 
dogmas, devemos sempre submeter teorias advindas de outros momentos 
históricos aos acontecimentos do presente, reconhecendo a provisoriedade 
do conhecimento e compreendendo que tudo aquilo que se apreende como 
realidade no pensamento também necessita ser posto em movimento. 
 
10 A teoria deve surgir como o concreto pensado fazendo-se expressão da realidade, pois ao 
compreendermos o processo de construção do conhecimento como produto social e histórico, 
entendemos também que não é a teoria que funda a realidade, mas a realidade que funda a teoria. 
 18
Partimos então do pressuposto de que o lazer não é um 
fenômeno acabado, mas em permanente transformação. E mais, julgamos 
que as contradições que o apanharam mais recentemente impulsionaram 
um salto que gerou algo qualitativamente novo em relação à sua 
identidade das décadas anteriores, quando tinha suautilidade social 
subordinada a um projeto mais geral de educação e ocupação do tempo 
livre voltado para a produção e reprodução da força de trabalho. Diante 
disso, mais do que afirmações de verdade, é melhor dizer que este trabalho 
se ocupará do lazer em seu devir, preocupando-se em identificar neste 
movimento não o que ele é, mas o que ele foi, o que ele está sendo e o que 
ele tende a ser. Nosso objeto de pesquisa coincide, deste modo, com a 
pretensão de aprofundar estudos sobre o fenômeno do lazer na sociedade 
brasileira contemporânea, tendo em vista as mudanças econômicas, 
políticas e culturais ocorridas ao longo dos últimos anos, considerando 
tanto o avanço de sua mercantilização, bem como ponderando as 
contradições inerentes a este processo e suas possibilidades superadoras. 
Portanto, esta investigação procura contribuir para o 
conhecimento deste novo lazer que emerge no Brasil a partir dos anos 
1990, quando tal fenômeno, anteriormente vinculado às necessidades de 
produção e reprodução da força de trabalho, passa a subordinar-se 
diretamente à produção e reprodução do capital, sucumbindo à forma 
mercadoria. Esta é nossa hipótese. Intenta-se, assim, compreender e 
explicar as determinações que operam sobre esta transição, quais sejam: 
as transformações econômicas, provocadas pela reestruturação produtiva; 
as mudanças políticas, ditadas pela hegemonia internacional do 
pensamento neoliberal; e as modificações culturais, cuja expressão se dá 
pelo processo de mundialização. De igual modo, é ainda nossa tarefa 
tentar desvelar os fundamentos ocultos e contradições que estão na base 
da produção do lazer como mercadoria, como também confrontar o 
 19
desenvolvimento desta tendência com uma perspectiva superadora de 
lazer, buscando apontar os limites e as possibilidades colocadas para sua 
realização. 
Por seguir tal orientação, pode-se dizer que este estudo combina 
as dimensões histórica e filosófica. É histórico porque busca apanhar o 
lazer no processo de sua constituição em interface com a economia, a 
política e a cultura, como uma totalidade relacional em movimento, 
definindo, para tanto, marcos de caracterização do seu desenvolvimento. E 
é também uma pesquisa de matriz filosófica, isto porque ao mesmo tempo 
em que realiza o balanço crítico, a indagação ético-política e a análise 
epistemológica da produção presente no campo, apresenta conceitos e 
categorias explicativas que fixam diretrizes teóricas e formulam novos 
quadros mentais de referência para os estudos do lazer. Quanto à natureza 
operacional e técnica da investigação, três momentos que se espiralam, se 
encontram, se sobrepõem e se entrecruzam sustentam a construção do 
trabalho, quais sejam: o primeiro referente à revisão de literatura, o 
segundo relativo à pesquisa documental e o terceiro voltado à discussão 
teórica, à classificação epistemológica, à análise categorial e ao debate 
político em torno do lazer. 
A revisão de literatura assumiu numa primeira fase o caráter de 
um estudo exploratório. O levantamento das fontes sobre as teorias do 
lazer, com a subsequente seleção e análise das principais obras, 
proporcionou-nos uma melhor visão do problema, possibilitando torná-lo 
mais específico, bem como nos ajudando a construir hipóteses a seu 
respeito. Além disso, foi também selecionada e apreciada uma vasta 
bibliografia no campo das ciências humanas, em especial, materiais 
relativos às transformações econômicas, políticas e culturais em curso, 
procedimento que nos instrumentalizou para a realização de um balanço 
crítico do atual momento histórico, com a identificação tanto das origens 
 20
como das alternativas engendradas pela crise estrutural do capitalismo 
neste seu estágio de desenvolvimento mais avançado. Isto quer dizer que a 
revisão de literatura nos acompanhou durante todo o trabalho, revestindo-
se também de um caráter analítico e interpretativo, pois nos forneceu 
elementos para apanhar o lazer no escopo mais amplo do sistema de 
metabolismo social presentemente estruturado pelo capital, ajudando-nos 
a entender as novas determinações que atravessam a sociabilidade 
contemporânea. 
A pesquisa documental, que sucedeu a fase inicial da revisão de 
literatura, teve como objetivo central o levantamento, coleta e análise 
qualitativa de dados que nos permitiram acompanhar o movimento recente 
descrito pelo lazer na dinâmica social mais ampla. Para tanto, 
trabalhamos em duas direções. De um lado, construímos uma pesquisa 
temática por palavras chave ao arquivo digital do jornal Folha de São Paulo 
e da revista Veja, que nos permitiu realizar a análise de conteúdo de um 
volume bastante expressivo de material produzido pela mídia impressa a 
respeito do lazer e assuntos correlatos publicados entre os anos de 1994 e 
2002, período correspondente ao Governo FHC, quando se intensifica a 
subordinação do país ao processo de globalização da economia e às 
políticas neoliberais.11 De outro, o conjunto destas informações obtidas foi 
cruzado com dados estatísticos afetos a variados aspectos da realidade 
brasileira obtidos junto a bancos de dados de institutos oficiais de 
pesquisa, órgãos de governo, instituições não-governamentais e 
associações empresariais. 
 
11 Destaca-se que foi analisado também um conteúdo significativo de material – produzido por 
outros órgãos da mídia digital e impressa, ou, ainda, não coincidente com o recorte cronológico 
proposto – coletado de modo não sistemático. Isto, pois embora não tenham nos chegado às mãos 
pela técnica da pesquisa temática que realizamos junto aos arquivos digitais dos veículos citados, 
mas recolhidos de modo esporádico e espontâneo, tal material continha dados e elementos de 
análise considerados ricos e não desprezíveis para a compreensão e explicação do movimento mais 
recente descrito pelo lazer na dinâmica social mais ampla. 
 21
A discussão em torno da literatura e dos dados coletados 
compreendeu um processo não linear cheio de idas e vindas que foi 
dedicado a formular quadros de referência, questionar teorias, examinar 
conceitos, analisar discursos, relacionar informações e codificar de modo 
lógico e histórico a realidade e a dinâmica em que se inscreve o lazer. 
Sendo assim, para além da classificação epistemológica das variadas 
abordagens e concepções teóricas envolvendo o fenômeno do lazer, bem 
como da análise categorial que nos permitiu, ao mesmo tempo, tanto rever 
categorias já propostas pelo campo como formular novas categorias 
explicativas que assumiram a função metodológica de elementos 
construtores ou ponto de partida para uma nova teoria, empreendemos 
um debate procurando tornar a crítica à economia do lazer realizada num 
possível móvel para o estabelecimento de políticas mais efetivas para a 
superação da forma mercadoria e organização do lazer como prática 
educativa socialmente comprometida. 
Ao seguir neste percurso, procurando construir uma estrutura 
articulada, coerente, consistente e original para a elaboração do texto, 
optamos por uma metodologia de exposição em que nossas reflexões, 
argumentos, problematizações, críticas, conceitos, considerações e 
enunciados seguiram uma lógica espiralada progressiva-regressiva 
segundo a qual os cinco capítulos que o compõe entraram em movimento 
recíproco de mútua relação e elucidação. Isto quer dizer que, embora cada 
capítulo possa ser lido e, até certo ponto, compreendido de forma 
independente e autônoma, eles se encontram em relação de interna 
interação entre si, de modo que tudo está ligado a tudo. Destarte, cada 
reflexão, argumento, problematização, crítica, conceito, consideração e 
enunciado é constantemente colocado e recolocado, num processo 
dialético de aprofundamento do conhecimento que vai e volta do todo às 
 22
partes, do visível ao oculto e do fenômenoà essência, sempre buscando 
captar e explicar o lazer em sua contradição e movimento. 
No primeiro capítulo, abordando questões mais aparentes 
referentes à temática do lazer, objetivamos trazer ao debate elementos que 
nos permitissem apanhar tal fenômeno à luz das transformações sociais 
em curso, demarcando tanto suas tendências predominantes como suas 
singularidades, identificando mudanças, decifrando continuidades e 
desvelando desigualdades. Começamos, assim, por tencionar o particular e 
o geral, querendo saber o que contavam sobre o lazer os pedaços de nosso 
todo geográfico, a fim de conferir se neles não podíamos auscultar os 
ruídos da universalidade. Para tanto, optamos por revisitar a discussão 
sobre o desenvolvimento de identidades locais que suscita a categoria 
pedaço (MAGNANI, 1998), o que nos permitiu alargar nosso entendimento 
sobre o lazer e as formas de sociabilidade no contexto do capitalismo 
avançado. Deste modo, construímos uma reflexão sobre a sociedade de 
consumo e a cultura em suas inter-relações com a espacialidade urbana, 
articulação por demais importante para a compreensão dos sentidos e 
significados atribuídos ao lazer em tempos de globalização. 
A partir desta aproximação, através da qual já foi detectado um 
processo que aponta para a mercantilização do lazer, fomos instigados a 
realizar uma investigação mais geral sobre a totalidade relacional dos 
acontecimentos que contribuem para o avanço de tal tendência. O segundo 
capítulo foi então dedicado ao reconhecimento e compreensão da crise que 
o capitalismo atravessa, com o esgotamento do fordismo e a adoção de 
uma nova estratégia de acumulação e de uma estrutura hegemônica a ela 
correspondente. Para este momento, portanto, nossa tarefa foi avaliar os 
principais desdobramentos econômicos, políticos e culturais desta 
transição, com especial atenção para as determinações afetas ao 
movimento desenhado pelo lazer, procurando apreender os nexos que lhe 
 23
subordinam à forma mercadoria. Foram aí analisados como elementos 
fundantes desta dinâmica a taxa crescente de exploração do trabalho, a 
taxa de utilização decrescente no capitalismo, a desintegração dos direitos 
sociais e a relativização do luxo e da necessidade. 
No terceiro capítulo, passamos a nos dedicar à constituição 
identitária do lazer como mercadoria, procurando desvelar algumas 
nuances que envolvem a gênese e a afirmação desta que é a sua forma 
atualmente dominante. Para melhor nos posicionar, intentamos abordar 
questões concernentes ao contexto histórico que marca o aparecimento e 
difusão de tal tendência, chamando atenção para o seu desenvolvimento 
geograficamente desigual, seus principais antecedentes, as modalidades 
predominantes e mais desenvolvidas de sua manifestação, sua 
funcionalidade para o capital, as variáveis de flexibilidade envolvidas em 
sua produção e consumo etc. Se no capítulo anterior nos debruçamos 
sobre as determinações que, “de fora para dentro”, imputam ao lazer a 
forma mercadoria, neste, tratamos de procurar respostas sobre qual o 
papel que este tipo particular de mercadoria, cuja expressão utilizada para 
sua identificação corresponde à categoria mercolazer, “de dentro para 
fora”, exerce sobre a dinâmica social mais ampla, uma vez que o 
entendimento deste processo se faz igualmente importante para a 
compreensão do porque da configuração involucral e ludocrática da qual se 
reveste a sociedade contemporânea. 
Além de desvelar os fundamentos ocultos e contradições que 
estão na base da produção do lazer como mercadoria, como anunciado, foi 
também nosso objetivo confrontar esta tendência com uma forma 
superadora de lazer, projetada sob a perspectiva da lazerania, apontando 
os limites e as possibilidades colocadas para sua realização. Todavia, o 
quarto capítulo foi antes dedicado a uma análise sobre o ócio, 
identificando-o como uma forma residual de apropriação do tempo livre 
 24
tendente ao desaparecimento, no entanto, ainda ativa nos dias de hoje. O 
intuito foi o de fornecer elementos de crítica aquele tipo de orientação 
idealista ou ideologizada que, ao se manifestar em favor da “marcha ré” na 
história em direção ao ócio perdido, enaltecendo sua função preservadora, 
na consciência, de valores já alcançados no passado, acaba por elevá-lo à 
posição de redentor da condição humana, muitas vezes obstaculizando a 
alternativa de construção de um outro lazer a partir do aqui e agora das 
condições concretas do presente, ato contínuo, esvaziando o projeto de 
conquista da lazerania. 
No último e quinto capítulo, buscamos então mapear as 
possibilidades que se colocam e que se abrem para a construção de um 
outro lazer, procurando localizar, no jogo das forças sociais em disputa – 
isto é, nas relações de hegemonia –, aquilo que pode se viabilizar no 
sentido da lazerania. Foram assim discutidos os princípios e o norte 
necessário para a ação política de quem almeja e, ao mesmo tempo, 
compartilha a vontade coletiva de fazer frutificar um outro lazer, crítico, 
antagônico e superador em relação ao mercolazer. Ademais, apresentamos 
ainda proposições mais concretas no tocante às políticas sociais, fixando 
diretrizes para a base programática de uma política específica de lazer, 
além de apontar para a necessidade de construção de uma pedagogia 
crítica do lazer que, no desenrolar cotidiano de tais ações, possa organizar, 
junto à sociedade civil, um outro tipo de sociabilidade e cultura lúdica, 
alimentando a defesa do lazer como prática educativa e direito social, 
estimulando esta conquista alçada à conquista mais ampla de uma 
cidadania ativa e participativa. 
Enfim, acreditamos que ser este o percurso mais apropriado para 
apanharmos o lazer em seu movimento histórico, identificando tanto aquilo 
que ele foi, como o que ele vem sendo, o que ele é, o que ele não é e, 
também, o que ele tende a ser e o que ele pode vir a ser, desvelando as 
 25
determinações, os fundamentos ocultos e as contradições que estão na 
base de sua hodierna e tendencial produção como mercadoria, o que nos 
possibilita estabelecer a tensão de seu desenvolvimento com a perspectiva 
superadora de um outro lazer, contribuindo para a deslegitimação da 
situação existente e buscando apontar os limites e as possibilidades das 
ações sociais e políticas para a mobilização de alternativas. 
 
 26
CAPÍTULO I 
- O PEDAÇO SITIADO - 
Na sociedade contemporânea, diante do complexo econômico, 
político e cultural das transformações em curso, podemos identificar, tanto 
em âmbito nacional como mundial, o contraste e a coexistência de antigas 
manifestações e modos de vida não dissolvidos convivendo com a 
antecipação de valores, costumes e formas de produção da existência 
ainda por serem concretamente definidos. Trata-se de um movimento não 
linear, progressivo-regressivo, que se reatualiza no tempo, redesenhando, 
monotonamente, a trama do cotidiano. Nosso grande desafio reside, 
portanto, em observar o lazer inserido nessa dinâmica, visando apanhar 
tanto as tendências predominantes como as suas singularidades mais 
marcantes, o que implica percebê-lo como expressão do contraditório, 
sempre determinado pelo jogo das forças sociais, fenômeno que envolve 
não só a alegria do lúdico, a fruição, a fantasia, o prazer estético e a 
experiência criativa, mas, também, a satisfação imediata, a utilidade 
prática, o lucro e a alienação. 
Assim, situar o lazer no mundo de hoje significa identificar 
mudanças, decifrar continuidades, reconhecer diversidades e desvelar 
desigualdades, o que torna nossa tarefa por demais ambiciosa e difícil. 
Intentamos, neste primeiro capítulo do trabalho, apenas iniciar uma 
discussão, recolhendo pistas, conferindo dados e dialogando com 
 27
diferenças, procurando ler possíveissinais de verdade ante o exagero 
relativista que marca a época presente. Começaremos por interrogar o 
particular, desejosos em saber o que contam, sobre o lazer, os pedaços de 
nosso todo geográfico, conferindo se neles não podemos auscultar os 
ruídos da universalidade. Propomos, para este momento, uma reflexão 
sobre a sociedade de consumo e a cultura em suas inter-relações com a 
espacialidade urbana, articulação por demais importante para a 
compreensão dos sentidos e significados atribuídos ao lazer em tempos de 
globalização. 
1. Identidade mutante 
Olhando para dentro, o Brasil nunca foi, ao mesmo tempo, tão 
integrado e tão singular. Tradição e modernidade, ainda que adjetivações 
opostas, em certa medida, podem ser entendidas em simultaneidade. Por 
este vasto território aumentam as aglomerações de edifícios, casas e 
barracos, entrecortados por avenidas, ruas, becos e ruelas, com seus 
centros, bairros, subúrbios, periferias e favelas, onde habitam tanto as 
cores e os odores das festas populares como as imagens da violência e da 
sobrevivência, por onde atravessam as modas, aonde se afirma e reafirma, 
em cada instante, potenciais mercados consumidores, sempre antenados 
naquilo que irradia a partir dos grandes centros produtores (SCHWARCZ, 
2000). Em nossa paisagem urbana convivem antigos hábitos e costumes 
de origens as mais longínquas e distintas, misturados aos palcos e vitrines 
que anunciam as últimas invenções do momento, novas e fugazes 
mercadorias que vêm e que passam, numa frenética ciranda de 
reprodução e acumulação. 
No tecido social das metrópoles, ao mergulhar no universo das 
experiências, atividades e práticas de lazer, nem seria preciso empreender 
 28
um estudo mais elaborado a fim de notar que ainda subsistem as 
conversas de botequim, o almoço de domingo, o circo tradicional, o salão 
de dança do bairro, a festa junina, a folia de reis, o futebol de várzea, a 
brincadeira de peão, o soltar pipa, a roda de samba, o churrasco depois do 
mutirão, o passeio e o namoro na praça etc., embora avancem também a 
prática da ginástica de academia, o espetáculo esportivo, os grandes 
shows de música, a audiência da TV, a locação de fitas de vídeo, o acesso 
à internet, as viagens de turismo, os passeios no shopping, os jogos 
eletrônicos, as pistas de caminhada, o esporte de aventura, o domingo no 
parque temático etc. Seguindo uma relação de ruptura e continuidade, 
algumas práticas desaparecem, outras persistem, transformam-se, apesar 
de nem sempre continuarem carregando os fortes traços de intimismo, 
solidariedade e identidade tão marcantes e característicos da cultura 
popular, com seu vasto repertório de manifestações lúdicas. Em grande 
parte, vêm sendo resignificadas, incorporadas e metamorfoseadas pela 
sociedade global administrada12, na qual os comportamentos, também no 
lazer, convergem para o formalismo, o anonimato, a impessoalidade e o 
individualismo. 
Frente às mudanças e à diversificação estimuladas por esta 
inusitada explosão divertida13, quando se reconfiguram as práticas de 
lazer, o terreno sobre o qual supostamente se assenta a tradição e o 
 
12 Segundo Marcuse (1967), na sociedade administrada, unidimensional ou industrial, a produção 
de diversões traz consigo atitudes e hábitos prescritos, os chamados estilos de vida. Surge, assim, 
uma padronização de pensamentos e comportamentos constantemente redefinidos pelo sistema 
metabólico estruturado pelo capital. Quando falamos em sociedade global administrada, estamos 
querendo dizer que tal administração se processa hoje em escala planetária, porém, com novas e 
diferentes nuanças que abordaremos mais adiante. 
13 O termo explosão divertida foi tomado emprestado da reportagem de mesmo título, já explorada 
por Castellani Filho (1996), publicada na revista Veja, de 3/4/1996, que anuncia o suposto 
crescimento do consumo e das oportunidades de lazer no Brasil, fenômeno encarado como uma 
consequência da estabilidade econômica provocada pela implantação do Plano Real, em 1994, pelo 
então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso. 
 29
singular, o chamado pedaço14, revela-se cada vez mais vulnerável aos 
apetites do mercado. Até então, tal categoria vem sendo usada para 
explicar o desenvolvimento de uma identidade local construída a partir do 
lugar de moradia, sobretudo, pelas mediações produzidas pela vida 
associativa presente na periferia das grandes cidades, onde o lazer aparece 
como elemento definidor das relações de vizinhança e reconhecimento 
inerentes a uma dinâmica cultural que, segundo Magnani (1998), pouco se 
articula à sociedade mais ampla e suas instituições. Sim, é certo afirmar 
que as manifestações de lazer e divertimento, bem como o arranjo espacial 
decorrente dessas práticas, permitem a formação de redes de sociabilidade 
que orientam a produção de determinadas territorialidades, como é 
verdadeiro dizer também que nas cidades contemporâneas há muito de 
festa e de encontro. No entanto, se a festa no pedaço ainda persiste, não é 
com o mesmo sentido de outrora, mas de uma festa que tem se renovado, 
tendencialmente, em conformidade com a lógica da produção de 
mercadorias. 
É nos antigos costumes, rituais e folguedos, com seus 
fragmentos de uma cultura rural e pré-capitalista, sincretizados aos 
valores próprios da sociedade atual,15 que está o fermento para a 
organização da cambiante festa no pedaço. Na realização das festas 
 
14 Magnani (1998), ao investigar as formas de divertimento com que a população preenchia seu 
tempo de lazer nos bairros da periferia de São Paulo-SP, em pesquisa desenvolvida no início da 
década de 1980, conseguiu localizar entre a casa e a rua – ou seja, entre o privado e o público – um 
espaço intermediário onde se desenvolvia um tipo particular de sociabilidade, mais ampla que 
aquela fundada nos vínculos familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações 
formais e individualizadas impostas pela sociedade, o chamado pedaço, categoria que procura 
expressar uma rede de relações que combina laços de parentesco, vizinhança e procedência. 
15 Em que pese nossa discordância da análise, um estudo embrionário no campo do lazer contendo 
a tentativa de exame das permanências, transformações ou mesmo desaparecimento de algumas 
manifestações lúdico-religiosas ou lúdico-folclóricas, típicas das sociedades tradicionais, diante do 
processo de industrialização e urbanização do Brasil, pode ser encontrado em Requixa (1977). Do 
mesmo modo, Dumazedier (1994), ao desenvolver um estudo sobre a renovação dos valores sociais 
inerentes aos comportamentos presentes no âmbito do tempo livre, é outro autor que trata das 
distinções entre as festas de antigamente e práticas festivas atuais. 
 30
tradicionais religiosas, quando se reúnem famílias e conterrâneos, quando 
ocorre a “volta para casa”, reforçam-se os laços de solidariedade primária e 
o sentimento de pertencimento comunitário. Todavia, hoje ancoradas em 
outras instituições, tais celebrações podem resultar em outros tipos de 
interesse, pendendo cada vez mais para o profano, mantendo vínculos 
muito tênues com a religiosidade. Isto não quer dizer que nas festas 
propriamente modernas – como, por exemplo, o carnaval, a páscoa, o natal 
etc. –, típicas da sociedade de consumo, que guardam somente de longe 
alguma relação com suas origens, inexistam boas oportunidades de 
convívio e sociabilidade (MONTES, 2000). 
A capacidade que determinados grupos possuem de dominar seu 
pedaço, coloca em posição de destaque a relação entre lugar e identidade 
social. Entretanto, a organização vinculada ao local de moradia, mesmo 
que apresente excelentes bases para o desenvolvimento de modos de vida 
peculiares, que por sua vez se desdobram na produção de uma “cultura 
própria”, em que coabitamconformismo e resistência, não consegue 
suportar sozinha a carga da mudança histórica em curso. A afirmação de 
identidades dependente do pedaço tem de apoiar-se, em algum ponto, na 
motivação derivada da tradição. De qualquer modo, a grande ironia está no 
fato de que a tradição também vem sendo mercadorizada e comercializada, 
frequentemente produzida e vendida como imagem, simulacro ou pastiche 
(HARVEY, 2000). Hodiernamente, a “qualidade” de nossas festas vem 
sendo medida pelos números, pois são os 2 milhões de foliões que 
frequentam o Carnaval de Salvador-BA, o público de 1 milhão de pessoas 
que festeja o São João de Campina Grande-PB, os 800.000 pagantes na 
Festa do Peão de Barretos-SP e os 400.000 turistas no Carnaval do Rio de 
Janeiro-RJ que conferem sua certificação de excelência como verdadeiras 
 31
mercofestas.16 E para os que procuram manifestação de fé e devoção, vale 
a consulta ao “Roteiros da fé católica no Brasil”, um catálogo contendo 
cinqüenta opções de festas religiosas, organizado pela Embratur como 
uma dentre outras formas de estimular o fortalecimento de economias 
locais a partir do desenvolvimento do turismo religioso.17 
De volta ao pedaço, o próprio espetáculo do circo-teatro e de 
variedades, modalidade tradicional de lazer18 e de diversão popular 
estudada por Magnani (1998), cheio de dramalhões, paródias de 
telenovelas, luta-livre, duplas sertanejas, números de mágica, concursos 
etc., torna-se, em larga medida, uma mercadoria desenraizada, 
desterritorializada, ganhando cada vez mais o mundo da TV. Lembramos 
aqui dos programas de auditório com seus concursos, shows de calouros, 
atores, repórteres por um dia, “o povo que fala” e a exposição pública de 
todo o tipo de miséria existencial, quando se comemora ao vivo e a cores a 
subida de audiência com gritos, música, aplausos da platéia e risos do 
telespectador, numa demonstração de como a televisão também atua como 
pedaço eletrônico, lugar de “estar junto”, em uma realidade virtualmente 
partilhada e festiva.19 
 
16 Números fornecidos pelo MET, extraídos da reportagem “Menos trabalho e mais diversão”, 
publicada na revista Veja, de 1/5/2002. 
17 Ver Embratur (2001) 
18 Compreendemos a tradição articulada não somente ao folclore, ao patrimônio e ao pretérito, mas 
também “como um conjunto de instituições e valores, oriundos de uma história recente, e que se 
impõem a nós como uma moderna tradição” (ORTIZ, 1994, p. 195). Por isso, também podemos falar 
em modalidades tradicionais de lazer, apesar de compreendermos tal fenômeno como uma 
manifestação tipicamente moderna. 
19 Conforme análise presente no artigo “Guerrilha de sofá”, de I. Bentes, publicado no jornal Folha 
de São Paulo, em 31/3/2002, os tipos sociais tradicionais e modernos também se colocam em 
disputa nos programas de TV, quando “o machão, o corno, o efeminado, a gostosa, a virgem, o 
tarado sexual de A praça é nossa, Ratinho, Linha direta ou Zorra total, que ainda regem certo 
imaginário popular rural, estão ao lado de novos tipos – notadamente nos programas da Rede Globo 
– que fazem parte de um imaginário mais próximo da classe média urbana: a empresária paulista, o 
artista plástico, a designer, o cabeleireiro chique, o dançarino de axé, a modelo-manequim, a 
socialite, as subcelebridades, crias da própria mídia, a ninfomaníaca, o rapper irado, os 
marombeiros etc.” (p.7). 
 32
A televisão de massa associada com a comunicação por satélite 
possibilita a experiência de uma enorme gama de imagens vindas 
de espaços distintos quase simultaneamente, encolhendo os 
espaços do mundo numa série de imagens de uma tela de 
televisão. O mundo inteiro pode assistir aos Jogos Olímpicos, à 
Copa do Mundo, à queda de um ditador, a uma reunião de cúpula 
política, a uma tragédia mortal [...] A imagem de lugares e espaços 
se torna tão aberta à produção e ao uso efêmero quanto qualquer 
outra. Em suma, testemunhamos outra difícil rodada do processo 
de aniquilação do espaço por meio do tempo que sempre esteve no 
centro da dinâmica capitalista (HARVEY, 2000, p. 264). 
Presente e ativa no cotidiano das pessoas, entre os mais diversos 
grupamentos, sempre registrando, selecionando, interpretando e 
enfatizando variados fatos, eventos, coisas e personalidades, mobilizando 
comportamentos, inquietações e convicções, a televisão realiza não só a 
transformação do real em virtual, mas também “da mercadoria em 
ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania (...), 
combinando a produção e a reprodução cultural com a produção e a 
reprodução do capital (...), operando decisivamente na formação de mentes 
e corações em escala global” (IANNI, 2000, p. 152). Ao passo que a TV se 
integra à vida privada dos brasileiros como uma das principais formas de 
lazer,20 tornando-se um poderoso veículo de difusão da cultura, os colegas, 
manos, companheiros, camaradas, compadres e chegados – isto é, o povo 
do pedaço – também buscam orientação e informação. 
 
20 Reunimos aqui alguns dos indícios que sustentam tal afirmação: conforme dados extraídos da 
revista Meio e Mensagem, citados por Mello e Novais (2000), já em 1980, no Rio de Janeiro-RJ e em 
São Paulo-SP, de segunda a sexta, a televisão ficava ligada cerca de seis horas diárias, e no 
domingo, em São Paulo-SP, atingia a média de oito horas diárias; de acordo com a pesquisa 
“Juventude: cultura e cidadania”, realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 1999, junto à 
juventude residente em regiões metropolitanas do Brasil, quando perguntados sobre o que 
costumam fazer em suas horas livres, nossos jovens indicaram “assistir televisão” como sua 
principal atividade de lazer; e, finalmente, conforme números da PNAD/IBGE, no ano de 2001, o 
percentual de moradias com televisão (89,0%) ultrapassou pela primeira vez na história de nosso 
país o de moradias com rádio (88,0%). 
 33
Apresentando-se como a grande “auxiliar” da família e da escola 
na educação de nossos filhos, este poderoso meio de comunicação social, 
que escapa ao controle público, faz penetrar no interior dos lares de todo e 
qualquer pedaço, um complexo de valores morais, estéticos e políticos que 
acabam por determinar hábitos e modos de vida. “Trata de vender a 
sensação de que o consumo pode preencher o doloroso vazio da vida, 
trazido pelas agruras do trabalho subalterno e pelas misérias morais e 
espirituais que preenchem parte do cotidiano” (MELLO & NOVAIS, 2000, 
p. 641). O mercado surge, então, como um “verdadeiro” professor, o 
próprio grande irmão, com uma linguagem hipnótica e universal, que 
sinaliza e gesticula, com sua mão invisível, para a busca do interesse 
próprio, o amor ao dinheiro, o apetite insaciável por bens, a satisfação 
pessoal e imediata, a escravidão ao consumo etc., combinando sons, cores 
e imagens, seja através do jornal, da novela, do esporte, do filme, do 
desenho, do musical, do circo eletrônico ou do especial. E, assim, na 
cultura eletrônica, dissolvem-se e deslocam-se pedaços, territórios e 
fronteiras, envolvendo os espaços público e privado, o consumo e a 
liberdade, o real e a virtualidade, a segmentação e a identidade (IANNI, 
2000). 
2. Pedaço despedaçado 
Como o mundo transformou-se num espaço global, os espaços 
locais devem ser convertidos pela lógica imposta pelo todo. E aí não 
importa se os sujeitos do pedaço apreendem esta realidade em termos 
ideológicos pois, à sua maneira, compreendem o processo de globalização. 
Entretanto, ainda que sejam muitas as formas pelas quais o príncipe 
 34
eletrônico21 possa ser aceito, absorvido, reproduzido, venerado ou 
reinterpretado, como também, de modo implícito ou explícito, negado ou 
afastado como o “soberano” do pedaço, as festas e divertimentos populares 
são perpassados pela totalidade das relações inerentes ao sistema em 
desenvolvimento, e astradições afetadas em seus elementos mais 
essenciais. Sem dúvida, como processo em marcha, a globalização 
enfrenta obstáculos, encontra resistências e sofre seus reveses, mas 
generaliza-se e aprofunda-se como tendência. Se de fato nos encontramos 
diante de uma totalidade-mundo, não podemos ignorar que as mediações e 
os mecanismos hoje presentes em seu interior são moldados, em larga 
escala, pelas indústrias culturais globalizadas22. Neste cenário, a economia 
mundial penetra, pouco a pouco, os mais diversos pedaços do planeta. 
Assim, a desterritorialização, percebida como uma das características mais 
marcantes do mercado-mundo em formação, alcançando todos os níveis da 
vida social, tende a desenraizar as coisas, as gentes e as idéias, fazendo 
com que tudo se movimente, sem restrições, em todas as direções, 
redefinindo os quadros sociais e mentais de referência. 
O conceito de desterritorialização aplica-se não apenas a óbvios 
exemplos como corporações transnacionais e mercados 
monetários, mas também a grupos étnicos, lealdades ideológicas e 
movimentos políticos que atuam crescentemente em moldes que 
 
21 Como uma categoria que procura representar o poder midiático, o príncipe eletrônico pode ser 
compreendido como uma entidade que permeia continuamente todos os níveis da sociedade. “É 
óbvio que não é nem homogêneo nem monolítico, no entanto, expressa principalmente a visão de 
mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes, em escala nacional, regional e mundial, 
habitualmente articulados” (IANNI, 2000, p.148-149). Em trabalho anterior, pudemos tratar mais 
especificamente das relações entre o lazer e o príncipe eletrônico. Ver Mascarenhas (2001b). 
22 A noção de indústria cultural globalizada, presente em Ortiz (1994), procura atualizar, em 
conformidade com as determinações da sociedade global, quando as fusões entre os conglomerados 
de base transnacional revelam a tendência à oligopolização, o conceito de indústria cultural cunhado 
por Adorno e Horkheimer (1985), referindo-se ao processo de padronização e à racionalização das 
técnicas de produção e distribuição dos bens culturais que, em sua época – a apresentação desta 
categoria data da segunda metade da década de 1940 –, já haviam sido, em grande medida, 
transformados em mercadorias. 
 35
transcendem fronteiras e identidades territoriais específicas. A 
desterritorialização tem afetado as lealdades de grupos envolvidos 
em diásporas complexas, suas manipulações monetárias e outras 
formas de riqueza e investimento, bem como as estratégias de 
Estados. O debilitamento dos vínculos entre povo, riqueza e 
territórios, por sua vez, tem alterado a base de muitas interações 
globais significativas e, simultaneamente, põe em causa a 
definição tradicional de Estado (IANNI, 1999, p. 93). 
Porém, vale o registro de que para o funcionamento daquilo que 
se pode chamar por shopping center global, a afirmação do todo não nega a 
diversidade e a heterogeneidade da cultura mundializada. Destarte, a 
antinomia local versus global é para o capital, no fundo, aparente, pois não 
há, necessariamente, oposição entre si, pelo contrário, os dois pólos 
encontram-se interligados. Portanto, o movimento de globalização associa, 
combina e potencializa, aos pares, o nacional e o mundial, o particular e o 
universal, o provinciano e o cosmopolita, o tradicional e o moderno no 
interior de um grande e vasto mercado mundial. Comporta tanto a 
padronização como a segmentação, manifestando um processo cultural 
complexo e abrangente. Ao mesmo tempo em que se processa a 
convergência de comportamentos administrados pelo alto, preservam-se as 
diferenças e desigualdades entre os diversos níveis de vida. A padronização 
não é negada, mas ajustada às segmentações sociais, quando indivíduos e 
coletividades são cada vez mais identificados pelo consumo e pela renda, 
em conformidade com seus respectivos hábitos e estilos de vida (ORTIZ, 
1994). Estamos falando, é bem verdade, da formação dos nichos de 
mercado, poderoso instrumento na definição da difusão e do consumo das 
práticas de lazer. 
A produção e a distribuição em massa vêm sendo substituídas 
pela produção especializada para segmentos específicos. Para além da 
gradação de “classe” segundo o poder aquisitivo, combinada ainda às 
 36
distinções de faixa etária e gênero, os estilos de vida, a despeito da 
localização geográfica, passam a constituir unidades de grupamento 
portadoras de características universais, balizando as mudanças dos 
padrões de consumo. O problema central da produção global consiste, 
portanto, em identificar segmentos mundializados e homogêneos. Como 
exemplo, citamos: os video kids, jovens aficionados por jogos eletrônicos, 
que não são muito diferentes no que se refere aos hábitos de consumo, 
seja em Tókio ou em Londres; a geração diet que, formada pelos adeptos 
dos alimentos naturais e dietéticos, em maior ou menor escala, assinala 
sua presença entre paulistanos e nova-iorquinos; as tribos da ex-
contracultura, com sua rebeldia já domesticada pela indústria cultural, 
como os adeptos da moda neo-hippie, que apresentam semelhanças quanto 
ao seu comportamento tanto no mercado de Berlin como da Cidade do 
México. 
Isto sem contar outros consumidores potenciais, como: os 
homossexuais; os jovens solteiros que moram sozinhos; os casais sem 
filhos; os diversos praticantes das mais variadas modalidades esportivas, 
sejam olímpicas, radicais, náuticas, de aventura ou da natureza; das 
mulheres do tipo senhora de si, caseira, igualitária ou conservadora; dos 
homens “liberais”, inclinados às viagens, conformados ao dia-a-dia etc. 
Sob permanente e atento monitoramento das agências de marketing, tais 
segmentos representam importantes e lucrativas fatias daquilo que 
podemos denominar por intermercados, categoria que confere base 
transnacional ao consumo. Atendendo esta lógica, os produtos e 
mercadorias são classificados como culturalmente restritos, a exemplo de 
alguns alimentos cuja determinação local é maior, e menos restritos, como 
os automóveis, os cartões de crédito, o jeans, o esporte, os filmes de 
 37
Hollywood, dentre outros.23 Tudo se resume a uma questão de equilíbrio 
entre padronização e diferenciação, dosando-se cuidadosamente repetições 
e variações (ORTIZ, 1994). 
No domínio das experiências de lazer, a atenção se volta para a 
cultura das saídas, com seus vários segmentos e nichos de mercado, 
correspondendo cada qual a um pacote de tipos de saída. Entre os 
considerados sedentários, que em seu tempo livre permanecem em casa, e 
os que aproveitam a vida, ou seja, os que saem muito, localizam-se os 
mais distintos perfis, para os quais estão sempre à espreita as agências de 
turismo, os promotores de shows e de eventos, as redes de hotéis, os 
oligopólios do cinema, as grandes corporações do rádio e da TV, os mega 
portais da internet etc.24 Ante as opções de saída, uma autêntica cantina 
italiana conta mais que um fast-food, sendo que este supera um self-
service. O cinema de arte, a ópera e o concerto de rock situam-se no 
mesmo mix de saídas, mas aí importa a frequência de tais atividades. O 
cinema comercial, as boates e os espetáculos esportivos integram um mix 
diferente, identificando outro segmento. Ocupando o seu devido lugar, o 
lazer em casa também não escapa à observação. Exemplo disso é que na 
 
23 Segundo pesquisa realizada pela Research International sobre intermercados, divulgada no jornal 
O Popular, de 9/3/2003, através da matéria “Consumidor mantém preferência por importado”, as 
mercadorias e marcas globais são classificados como dominantes, reconhecidos como marcas 
mundiais de valor universal, como Coca-Cola, Nike e Disney; de prestígio, que se destacam pela 
identidade cultural ou de procedência, como Chanel, BMW, Rolexe Gucci; superiores, as que 
mesmo sem serem líderes são consideradas superiores, a exemplo da IBM, McDonald’s e Pepsi; e, 
glocais – isto é, globais-locais – que embora globais como Dove, Nestlé e Danone, se comportam 
como marcas de origem reconhecida, e devido ao chamado marketing social, conseguem se fixar 
localmente. 
24 Cabe recordar que Magnani (1998), ao investigar as práticas de lazer presentes na periferia de 
São Paulo-SP, valeu-se das categorias em casa e fora de casa, subdividindo a última em no pedaço e 
fora do pedaço. Por sua vez, Ortiz (1994), ao tratar dos estilos de vida e, neste ínterim, da cultura 
das saídas, acaba por indicar que uma classificação próxima, com o diferencial de dispensar maior 
preocupação aos tipos de saída, vem sendo construída pela indústria cultural em âmbito global, 
não só com o propósito de entender, mas também de forjar novos códigos e preferências entre 
determinados grupos, o que se consegue, dentre outras maneiras, pelos modismos, quando são 
redefinidos constantemente o ultrapassado e o moderno das saídas, bem como pela distinção do 
status que a frequência e o tipo de saída conferem ao seu consumidor. 
 38
“TV aberta” veiculam-se os comerciais dirigidos aos níveis C e D da 
população, extratos inferiores quanto ao nível de renda. Já as mercadorias 
destinadas às “classes” A e B, têm sua publicidade ancorada nos canais 
por assinatura. Por sua vez, na internet, aonde as categorias em casa e 
fora de casa se desmancham no ar, a saída virtual pode levar o internauta 
às mais variadas “salas de conversação”, cada qual com o seu perfil e com 
o seu respectivo mix de produtos associados. 
Diante desta vastidão de opções e oportunidades de consumo, 
seria procedente o questionamento sobre as desigualdades existentes tanto 
no plano do mercado-mundo como do intramercado brasileiro, pois 
sabemos que a distribuição de nossas riquezas ocorre de maneira 
socialmente injusta. Um enorme abismo entre as rendas separam os nova-
iorquinos dos paulistanos, e os paulistanos do centro e dos bairros 
considerados nobres dos paulistanos das periferias. Com 4,5% da 
população mundial, os EUA consomem pouco mais de um quarto de todo o 
petróleo produzido. Segundo estatísticas da ONU, um habitante de 
Madagascar só dispõe de 5 litros de água por dia, enquanto cada 
americano consome 600 litros e os europeus 200. Um americano precisa 
em média tanta energia quanto três suíços, quatro italianos, 160 
tanzanianos e 1.100 ruandeses. Os Estados Unidos devoram 100 quilos de 
carne per capta por ano, e se a somatória dos habitantes do planeta 
adotassem os mesmos padrões de alimentação daquele país, toda comida 
disponível alimentaria somente 2 bilhões de pessoas, o equivalente a 
menos de um terço da população mundial.25 Certamente, o americam way 
of life não se compara nem de longe ao modo de vida presente nas 
 
25 Dados extraídos do artigo “E se todo mundo fosse como os americanos?”, de N. Carlos, publicado 
na revista Fórum Outro Mundo em Debate, n. 2, de 2001. 
 39
periferias de São Paulo-SP, mas para 35% dos brasileiros os Estados 
Unidos é disparado o melhor modelo de país do mundo.26 
Os Estados Unidos são o centro de irradiação da vida financeira e 
cultural do planeta. [...] Não estamos afirmando que toda 
produção de cultura mundial é originada nos Estados Unidos e 
que o resto do mundo se limita a absorver aquilo que é produzido 
pelos norte-americanos. Apenas afirmamos que qualquer produto 
cultural que pretenda lançar um impacto significativo tem que 
passar pelo circuito norte americano, mais particularmente por 
Nova York, símbolo máximo de cosmopolitismo (ARBEX & 
TOGNOLI, 1996, p. 28). 
Não por acaso, o brasileiro tem os EUA como sua maior 
referência de consumo e supervaloriza também suas marcas, é o que 
constata a Research International, instituto de pesquisa que a mais de 
uma década realiza pesquisa em 40 países distintos sobre hábitos e perfis 
de consumo.27 Nossos sucessos, fortunas e carências são sempre 
determinados com referência no apetite e performance da economia 
yankee. Assim, o gráfico sobre o aumento do consumo tupiniquim oscila 
buscando convergir com os hábitos e costumes do Tio Sam. Não por acaso, 
para alguns, já somos primeiro mundo, pois se apressam por dizer que o 
consumidor brasileiro está ficando cada vez mais parecido com o norte-
americano. Seus argumentos sustentam-se em indicadores como o de que 
“nas prateleiras dos hipermercados, o número de itens oferecidos aos 
clientes passou de 20.000 a 70.000 dos anos 80 para cá. Até o fim dos 
anos 80, havia apenas vinte marcas renomadas de roupas no país. Na 
 
26 Informação contida na matéria “EUA são eleitos modelos para o Brasil”, veiculada pelo jornal 
Folha de São Paulo, de 23/3/2000. 
27 Pesquisa divulgada através da reportagem “Consumidor mantém preferência por importado”, do 
jornal O Popular, de 9/2/2003. 
 40
última década foram lançadas mais 130”.28 É verdade que a variedade e 
diversidade de mercadorias à venda aumentou, mas fica a dúvida sobre 
quem tem se beneficiado com isto, pois é certo que nem todos os 
brasileiros vão ao “paraíso”, podendo se deliciar nos shoppings e 
hipermercados. 
Especificamente, sobre o mundo encantado do lazer, as 
maravilhas contadas não são tão diferentes: 
O dispêndio das famílias de classe média com ingressos de 
cinema, parques e viagens subiu cerca de 10% na última década. 
Os investidores perceberam grandes oportunidades de negócios no 
setor e aplicaram 500 milhões de reais em teatros, cinemas e 
parques. Parques de diversão ocupam uma área equivalente à da 
cidade de São Paulo. Já existem 120.000 poltronas oferecidas em 
salas de cinema multíplex e casas de espetáculos dotadas de 
equipamentos semelhantes aos utilizados nos Estados Unidos. A 
montagem feita em São Paulo do musical Les Misérables tem o 
mesmo nível técnico da versão em cartaz na Broadway, em Nova 
York, e em Londres. Poucos anos atrás, as capitais brasileiras 
recebiam os lançamentos de Hollywood com meses de atraso e no 
interior a demora chegava a anos em alguns casos. As fitas 
produzidas pelo cinema americano já são lançadas 
simultaneamente em mais de cinqüenta cidades, entre capitais e 
interior.29 
À primeira vista, diante deste aparentemente belo e admirável 
quadro, em que fica a ilusão de que as oportunidades de lazer são iguais 
para todos, o Brasil pode muito bem ter seu desempenho de consumo 
comparado ao dos Estados Unidos. Todavia, sabemos que a apropriação de 
todos estes objetos de divertimento, fruição, alegria e fantasia vai variar 
 
28 Pequeno trecho da reportagem “Chega de Miami”, Veja, 1/5/2002, p. 42. 
29 Extrato da matéria “Menos trabalho e mais diversão”, Veja, 1/5/2002, p. 48. 
 41
segundo a posição que ocupamos no interior da atual forma de 
organização societal, e aqui vale acusar a determinação de classe 
subjacente à divisão social do trabalho e à injusta distribuição de seu 
produto.30 Encontramo-nos, pois, conforme bem apontam Mello e Novais 
(2000), perante um país dividido em três diferentes “mundos”. O primeiro 
mundo é o dos magnatas e endinheirados, cujas características do 
verdadeiro primeiro mundo estão presentes. Situam-se aí o empresariado, 
com o imenso leque de profissionais responsáveis por seus problemas 
materiais e “espirituais”, e o pessoal da linha de mando nas empresas 
privadas e no setor púbico. O segundo mundo, simulacro do primeiro, 
habitado pela classe média, é hoje lugar de instabilidade, pois o 
rendimento em declínio, forçando a mobilidade para baixo, coloca seus 
membros em permanente estado de alerta. Finalmente, o terceiro mundo, 
este sim, guardando enorme distância do primeiro, é dos pobres e dos 
miseráveis. 
De um lado, os 10% mais ricosque abocanham 46,9% de toda a 
renda gerada no país, no outro, são 24,7 milhões (14,6%) de pessoas 
vivendo na miséria – ou seja, pessoas sobrevivendo com menos de 1 dólar 
por dia, quantia insuficiente para suprir suas necessidades de alimentação 
– e 56,7 milhões (33,94%) abaixo da linha de pobreza – isto é, pessoas 
sobrevivendo com uma renda que varia entre 1 e 2 salários mínimos, sem 
o atendimento adequado às suas necessidades básicas de alimentação, 
saúde, habitação, transporte, vestuário, educação e lazer –, totalizando 
 
30 Conforme Marcuse (1997), a fruição pode ser compreendida como uma atitude possível nas 
relações do homem com as coisas e com outros homens. No marco da sociedade capitalista, as 
coisas são mercadorias disponíveis no mercado segundo o poder de compra de cada indivíduo 
isolado. A maior parte deles só tem acesso ao mais barato. Entretanto, a mercadoria mais barata 
não é tão boa quanto a cara. No que diz respeito às relações entre os homens, geralmente são 
construídas entre membros da mesma classe. Portanto, para a maioria das pessoas o companheiro 
na fruição será também um parceiro na miséria, cujas condições de vida constituem um terreno 
pouco fértil para a experiência da felicidade. 
 42
quase metade dos brasileiros.31 Entre os extremos, com a perda real do 
rendimento médio alcançando o índice de 10,3% nos últimos cinco anos,32 
a exclusão e o empobrecimento geral da população trabalhadora seguem o 
seu caminho, enquanto a banda do terceiro mundo cada vez aumenta 
mais. 
3. Periferia é periferia 
Apesar das disparidades na distribuição da renda nacional, o 
que importa, para efeito deste estudo, é perceber como o capitalismo 
contemporâneo se reproduz de maneira desigual em um espaço geográfico 
que não é homogêneo. Ainda que concentrando pobreza e riqueza, o Brasil 
detém um considerável mercado de consumidores,33 possuindo cidades e 
regiões com traços similares aos de países desenvolvidos. São nestas 
áreas, e entre determinados segmentos, que os produtos do mercado-
mundo circulam com maior fluidez. Entretanto, ainda que as variações na 
renda per capita de nova-iorquinos para paulistanos e, também, entre os 
próprios paulistanos, sejam gritantes, as grandes marcas e franquias, 
como, por exemplo, a Nike, a Rebook, a Microsoft ou a big rede 
McDonald’s, tanto em Nova York como em São Paulo, podem alcançar 
excelentes resultados de venda. O que muda é o numero de lojas e o 
volume do comércio. Apesar de toda sua selvageria e perversidade, a 
 
31 Números obtidos a partir da análise de dados da PNAD/IBGE de 2001, realizada pelo IPEA. 
32 Dados extraídos da PNAD/IBGE de 2001. 
33 Segundo o relatório “State of the World”, elaborado pelo WorldWatch Institute, com sede em 
Washington, nos EUA, divulgado através da matéria “Brasil é 7o em consumo, mas quase 70% são 
excluídos”, do jornal O Popular, de 10/1/2004, no ranking mundial dos países com maior mercado 
consumidor está o Estados Unidos, com 242,55 milhões (84% da população); seguido, pela ordem, 
da China, com 239,8 milhões (19% da população); da Índia, com 121,9 milhões (12% da população); 
do Japão, com 120,7 milhões (95% da população); da Alemanha, com 76,3 milhões (92% da 
população); da Rússia, com 61,3 milhões (43% da população); e, do Brasil com expressivos 57,8 
milhões de consumidores (30% da população). 
 43
modernidade-mundo é uma realidade, mesmo nos países do chamado 
terceiro mundo. É certo que a Avenida Paulista pertence a uma 
constelação socioeconômica diametralmente oposta ao distante Jardim 
Três Corações – pedaço de São Paulo-SP estudado de perto por Magnani 
(1998) –, não só no que se refere às desigualdades sociais, mas na 
diferente dinâmica dos segmentos culturais que habitam cada um destes 
lugares. Da mesma maneira que a economia mundial encontra-se 
estruturada nas relações entre centro e periferia,34 as metrópoles 
brasileiras revelam uma segregação análoga, o que, no entanto, não 
contradiz o movimento de convergência dos hábitos de consumo, pois a 
mundialidade da cultura penetra os pedaços mais heterogêneos de nossa 
sociedade (ORTIZ, 1994). 
De qualquer forma, ainda que as periferias das grandes cidades, 
assim como suas regiões mais centrais, estejam também submetidas à 
influência da lógica cultural do capitalismo avançado35, vale reconhecer 
algumas de suas singularidades. Ao destacar a importância do lazer nos 
bairros da periferia de São Paulo-SP, Magnani (1998) toma este fenômeno 
como ponto de partida para a compreensão da vida cotidiana de seus 
moradores, quando estão presentes o encontro, a troca e o reforço dos 
vínculos de sociabilidade. Ocorre que, passados os mais de vinte anos que 
nos separam de sua pesquisa, muita coisa parece ter mudado no pedaço. 
A própria década de 1980, mas conhecida como década perdida, marca o 
início de um quadro econômico de profunda estagnação, que traz consigo o 
desemprego, o aumento da violência, a escalada das drogas etc. Somente 
 
34 Para uma maior compreensão das relações entre centro e periferia na divisão espacial do trabalho 
própria ao atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, ver Pochmann (2001). 
35 A expressão capitalismo avançado é por nós utilizada com o mesmo sentido usado por Mészáros 
(2002), o de assinalar sua continuidade em relação ao estágio menos desenvolvido que o precedeu, 
sem demarcar qualquer tipo de quebra ou ruptura do sistema como o sugerido pelo conceito de 
sociedade pós-industrial. 
 44
nos últimos dez anos, a soma da população das regiões metropolitanas de 
São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Belo Horizonte-MG, Vitória-ES, Porto 
Alegre-RS, Curitiba-PR, Recife-PE e Salvador-BA, saltou de 37 milhões 
para 42 milhões de habitantes, sendo que neste mesmo período, o 
crescimento das periferias dessas cidades foi de 30%, enquanto o das 
regiões mais ricas oscilou perto da taxa dos 5%. Afora tal desproporção, 
novos contrastes adquirem força ainda maior, pois não só a média da 
renda per capita do centro é hoje 6 vezes superior à registrada na periferia, 
como o total de moradores desempregados atinge os 18% na periferia 
contra os 5% verificados no centro, isto sem falar das disparidades 
referentes à escolaridade, habitação, saneamento etc.36 O certo mesmo é 
que as periferias das grandes cidades estão crescendo, e não só em 
tamanho, mas em pobreza e exclusão, com a vertiginosa degradação das 
condições de vida de sua população. 
Com a globalização, conforme os números já vistos, cada vez 
mais faltam empregos, a mobilidade social torna-se descendente e há um 
forte rebaixamento do padrão de vida e do nível de consumo. 
“Consequentemente, acirra-se a concorrência, que, do sistema econômico, 
expande-se para todas as outras esferas da vida, esgarçando o tecido 
social. A competição exacerbada, selvagem, transforma a violência num 
recurso cotidiano para a sobrevivência” (MELLO & NOVAIS, 2000, p. 652). 
E se tal brutalidade se generaliza pela sociedade como um todo, abarcando 
as relações de trabalho, a escola, o trânsito, a família, manifestando-se até 
pelo assassinato, na periferia o processo é ainda mais agudo. Há dez anos, 
estas áreas apresentavam taxas na casa de 30 homicídios por 100.000 
habitantes. Atualmente, o índice chega a 150 mortes, número semelhante 
 
36 Informações constantes da reportagem “A explosão da periferia”, da revista Veja, de 24/1/2001. 
 45
aos de países em guerra.37 Mas a violência não pode ser explicada 
exclusivamente pela determinação econômica, que se materializa nas 
dificuldades financeiras e na privação dos direitos sociais. Por certo, 
relaciona-se, também, com o progressivo aumento do individualismo. Esta 
sociedade que não dá valor às pessoas, e sim às coisasas quais são 
portadoras, dificilmente pode cobrar das vítimas do abandono e da 
exclusão que respeitem e dêem a merecida importância à vida humana. 
Diante da dissolução de valores como dever, responsabilidade, 
participação, liberdade, democracia etc., nossa juventude se vê desprovida 
de princípios que possam balizar seu comportamento social. Sem demora, 
logo surgem os discursos moralistas apregoando sua redenção pela 
ocupação do tempo, seja através da escola, do lazer ou da religião. Não por 
acaso, conforme pesquisa realizada em regiões metropolitanas do Brasil, 
quando interrogados sobre sua participação em atividades associativas, 
nossos jovens indicam os grupos religiosos como os mais procurados.38 
Soma-se a esta informação o dado de que os evangélicos tiveram um 
aumento de praticamente 100% no tamanho do seu “rebanho”, passando 
de 13,2 milhões em 1990 para 26,16 milhões em 2000.39 Assim, podemos 
facilmente chegar à conclusão de que as formas associativas às quais estes 
jovens buscam filiação são, em sua maioria, os grupos de evangélicos. E é 
na periferia das cidades que eles encontram o terreno ideal para o seu 
crescimento, pois o número de fiéis nestas áreas é três vezes maior que o 
 
37 Índices também obtidos a partir da matéria “A explosão da periferia”, publicada na revista Veja, 
de 24/1/2001. 
38 Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, junto a um universo de jovens de 15 a 24 
anos, residentes em 9 regiões metropolitanas do Brasil – Grandes São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, 
Belo Horizonte-MG, Porto Alegre-RS, Curitiba-PR, Salvador-BA, Recife-PE, Fortaleza-CE, Belém-PA 
– e no Distrito Federal, os grupos religiosos aparecem como a forma de associativismo mais 
procurada, superando, pela ordem, os grupos de música, de dança, de teatro, de skatistas, de 
ciclismo, de capoeira, de grafiteiros e de futebol. Constatou-se que 49% de nossos jovens já fizeram 
ou fazem parte de algum grupo religioso. Para outras informações, ver Fundação Perseu Abramo 
(1999). 
39 Dados extraídos do censo demográfico de 2000, realizado pelo IBGE. 
 46
registrado nas regiões centrais.40 Embora habituados ao convívio cotidiano 
com a cultura da violência, parcela significativa dos populares do pedaço, 
acuados no seu limite, quando já estão contaminadas tanto suas relações 
familiais como suas redes de vizinhança, perante os apelos de um 
poderoso “mercado de bens de salvação”, da “reforma evangélica” e 
“contra-reforma carismática”, acabam se vendo “obrigados a procurar em 
outro lugar uma ancoragem simbólica para dar conta de uma experiência 
do mundo que parece chegar aos confins de sua inteligibilidade” 
(MONTES, 2000, p. 135).41 
Em paralelo, é notório também o movimento que descrevem as 
agências multilaterais ao anunciarem o lazer como política necessária ao 
combate à violência. Um mapeamento encomendado pela OMS sobre as 
possibilidades de ocupação do tempo livre na periferia de São Paulo-SP, 
salvo o mérito de ter precisado a quantidade e a localização dos 
equipamentos, acabou por comprovar o óbvio: as bibliotecas, museus, 
centros culturais, parques e teatros estão instalados concentradamente no 
perímetro central do município. A intenção da OMS foi de avaliar as 
relações entre as opções de cultura e lazer com a drogadição, o alcoolismo 
e o tráfico, ou seja, identificar como os fatores de risco e “recuperação” 
estão geograficamente distribuídos pela cidade.42 Ocorre que, como um 
direito social, pouco interessa se 15% de nossos jovens nunca tiveram a 
oportunidade de ir ao cinema, 46% ao teatro, 29% a um show de música 
brasileira, 86% a um concerto de música clássica, 52% ao museu, 72% a 
uma exposição fotográfica, 77% a um espetáculo de dança moderna, 88% 
 
40 Fenômeno noticiado pela reportagem “A explosão da periferia”, da revista Veja, de 24/1/2001. 
41 Para uma análise sobre como a expansão do fundamentalismo evangélico e do burocratismo 
tecnicista servem à aliança neoliberal e neoconservadora que confere sustentação ideológica e 
recomposição hegemônica dos interesses do capital em escala mundial, alastrando-se pelo sistema 
de organização da cultura, ver Apple (2003). 
42 Informações divulgadas através da matéria “Mapa revela exclusão do lazer na periferia”, 
publicada no jornal Folha de São Paulo, de 6/5/2001. 
 47
a um espetáculo de ballet, 22% ao circo, 49% a um jogo de futebol no 
estádio e 40% à biblioteca.43 O que conta mesmo, do ponto de vista 
sistêmico, cuja finalidade mais típica, embora não exclusiva, resvala no 
controle social, é administrar possíveis conflitos, tornando as áreas de 
instabilidade pelo menos toleráveis, garantindo a ordem necessária à 
preservação e reprodução do atual sistema de metabolismo societal.44 
Assim, os programas governamentais e não-governamentais de lazer, em 
sua maioria, inspirados na “filosofia” de manter a juventude ocupada, 
longe dos “males” e “perigos” da ociosidade, são pensados como uma 
espécie de redutor dos índices de violência e criminalidade urbana. 
Na esteira deste mesmo mapeamento, considerado como um dos 
espaços de lazer mais queridos do pedaço, os bares também não escapam 
à vigilância. Ao lado dos templos, os bares são os estabelecimentos que 
mais se proliferaram na periferia, em grande parte, clandestinos. Nas 
regiões mais violentas de São Paulo-SP, existem na proporção de 1 para 
cada 10 moradias. A bebida que mais vendem é a cachaça, ao preço 
médio, cotado em 2001, de 15 centavos. Nos finais de semana, os índices 
de violência dobram nestes recintos, e um terço dos crimes praticados no 
Brasil estão associados à embriaguez.45 Preocupada, a própria OMS 
recomenda o controle dos pontos de venda de álcool, e vários municípios já 
impõem, através da apelidada lei seca, hora marcada para o seu 
fechamento.46 Como se vê, os bares estão na pauta do dia. Entretanto, não 
 
43 Dados extraídos da pesquisa “Juventude: cultura e cidadania”, realizada pela Fundação Perseu 
Abramo, em 1999. 
44 Segundo Demo (1995), no campo da ação política, a abordagem sistêmica caracteriza-se pela 
previsão de conflitos através do amplo levantamento de dados e identificação de focos de 
instabilidade, o que orienta a definição das políticas sociais como introdução de compensações e 
garantias para o funcionamento do sistema e manutenção da institucionalidade. 
45 Dados veiculados pela reportagem “A explosão da periferia”, da revista Veja, em 24/1/2001. 
46 Recomendação analisada no artigo “O controle social e político do álcool”, de R. Laranjeira, 
publicado no jornal Folha de São Paulo, em 29/10/2001. 
 48
estamos falando de qualquer bar. Contrariamente ao barzinho da classe 
média, lugar de agito e badalação, considerado como um autêntico 
equipamento de lazer, o botequim da periferia, lugar de encontro dos 
chegados, é o bar sem controle, lugar ameaçador. Portanto, o que 
distingue o botequim do barzinho, é que o primeiro, verdadeira morada do 
“ócio”, ao longo de toda nossa história, vem sendo tratado, oficialmente, de 
modo preconceituoso e simplista, visto como problema de saúde pública 
ou como caso de polícia.47 
Para agravar a situação, nem a escola escapa à violência. Um 
outro levantamento, este realizado pela Unesco, procurou examinar os 
níveis de insegurança no ambiente escolar. Foram verificados registros de 
agressões, ameaças, roubos, assaltos, estupros, depredações, porte de 
armas e discriminação racial. Entre os alunos que têm arma de fogo, 70% 
já a levaram para a escola. Em São Paulo-SP, metade dos professores já 
sofreram algum tipo de agressão. A explicação para a violência, segundo 
25% do corpo docente está no envolvimento dos estudantes com as drogas. 
Por sua vez, considera-se que 50% dos alunos têm o aprendizado 
prejudicado pela violência dentro daescola, e que esta é a principal causa 
da evasão. Contudo, o estudo não conseguiu concluir quais são as 
medidas necessárias para aumentar a segurança interna nas escolas, mas 
constatou que o custo é elevado. Apressado, o governo de São Paulo 
resolveu não esperar por sugestões, despendeu logo 500 milhões de reais 
para a instalação de câmaras e reforma dos prédios.48 Ao pior estilo do 
 
47 A distinção entre barzinho e botequim foi por nós construída com base em L. Silva, comentado 
por Chauí (2000). Já a discussão sobre o bar como equipamento de lazer, embora considerado como 
um equipamento não-específico, pode ser encontrada em Dumazedier (1999), Requixa (1980), 
Camargo (1992) e Marcellino (1996a). E, finalmente, no que se refere ao processo histórico de 
criminalização do ócio no Brasil, consultar Sant’Anna (1994) e Marcassa (2002). 
48 Informações conseguidas a partir da matéria “Tão violenta como a rua”, da revista Veja, de 
27/3/2002. 
 49
panoptismo eletrônico49, tal solução limita-se ao incremento de novas 
técnicas sociais de ajustamento e vigilância. Já incorporado ao cotidiano e 
intimidade atuais, apresentando-se como reforço disciplinar a uma 
ideologia política que prescinde cada vez mais do controle do tempo, dos 
lugares e das pessoas, o Big Brother estende seus domínios, extrapolando 
as telas da TV. 
Enfim, estamos diante de um pedaço sitiado, cuja rede de 
relações e de sociabilidade, baseada na vizinhança, na solidariedade e no 
compadrio, vê-se permanentemente ameaçada pelo acirramento da 
concorrência, pelo desemprego estrutural, pelo aumento do 
individualismo, pela competitividade exacerbada, pela ausência de 
perspectivas, pela escalada das drogas, pela patologia do crime e pela 
difusão generalizada da chamada cultura da violência. Nesta direção, quem 
conhece de perto a vida difícil, trágica e breve que ronda a periferia de São 
Paulo-SP, “sobrevivendo no inferno”, assim como canta o rap dos 
Racionais MC’s, não hesita em afirmar que “periferia é periferia, em 
qualquer lugar”, com todas as suas características, personagens, 
paisagens, alegrias, tristezas e mazelas. 
Fica no pico numérico de população. [...] O chefe da casa, trabalha 
e nunca está. Ninguém vê sair, ninguém escuta chegar. O trabalho 
ocupa todo o seu tempo. Hora extra é necessário pro alimento. [...] 
Ser escravo do dinheiro é isso, fulano! 360 dias por ano sem plano. 
[...] Lei do Cão, Lei da Selva, hã... [...] Muita pobreza, estoura 
violência! Periferia é periferia. Em qualquer lugar. Milhares de 
 
49 Ao nos valermos da figura foucaultiana do panóptico, fazemo-lo apenas para ilustrar como as 
técnicas atuais nos colocam em um estado aparente de permanente visibilidade, o que confere 
maior eficácia aos modernos esquemas de vigilância. Entretanto, diferentemente de Foucault 
(1977), para quem as relações de poder estão submetidas a um sistema formal autônomo, 
independente de alguém que o exerça, advertimos, assim como Harvey (2000), que ao submeter tal 
mecanismo à força das determinações sociais e históricas, percebemos facilmente a marca da 
intencionalidade humana, lembrando que a hegemonia ideológica e política dos representantes do 
capital está intrinsecamente ligada ao necessário controle, tanto temporal como espacial, das mais 
variadas experiências pessoais e sociais. 
 50
casas amontoadas. Periferia é periferia. Gente pobre. Vários 
botecos abertos. Várias escolas vazias. Periferia é periferia. E a 
maioria por aqui se parece comigo. Periferia é periferia. Mães 
chorando. Irmãos se matando. Até quando? Periferia é periferia. 
Aqui, meu irmão, é cada um por si. Periferia é periferia. Molecada 
sem futuro eu já consigo ver. Periferia é periferia. Aliados, 
drogados, então... Periferia é periferia.50 
 Todavia, torna-se preciso esclarecer que nas periferias das 
grandes cidades age um complexo de leis e processos capaz de gerar as 
mais diferentes e inusitadas reações, pois qualquer que seja a variação das 
condições objetivas iniciais de vida de uma população, ela traz como 
consequência uma infinitude de possibilidades e resultados no que se 
refere ao material simbólico a ser produzido numa determinada região ou 
lugar. 
Da mesma maneira como as leis da dinâmica dos fluidos são 
invariantes em todo rio do mundo, assim também as leis de 
circulação do capital não variam de supermercado para 
supermercado, de um mercado de trabalho para outro, de um 
sistema de produção de mercadorias para outro, de país para país, 
nem de uma casa para outra [nem de cidade para cidade, de 
periferia para periferia e de pedaço para pedaço]. No entanto, Nova 
Iorque e Londres são tão diferentes entre si como o Hudson do 
Tamisa (HARVEY, 2000, p. 307). 
De modo análogo, ainda que as determinações objetivas que 
operam sobre o Jardim Três Corações em São Paulo-SP, o bairro da 
Restinga em Porto Alegre-RS, a Brasília Teimosa em Recife-PE, a Vila 
Mutirão em Goiânia-GO e o Alto Vera Cruz em Belo Horizonte-MG sejam 
muito próximas, tal como o Tietê, o Guaíba, o Capibaribe, o Meia-Ponte e o 
 
50 Trechos da música “Periferia é periferia (em qualquer lugar)”, de autoria de E. Rock, constante do 
álbum “Sobrevivendo no inferno”, de 1998, do grupo Racionais MC’s. 
 51
Arruda são díspares entre si, as manifestações culturais e lúdicas 
presentes em cada uma destas áreas carregam várias distinções umas em 
relação às outras. Assim como pela música do rap conseguimos captar a 
expressão e a denúncia das condições de vida presentes na periferia de 
São Paulo-SP, pelo embalo do funk podemos obter um desenho 
aproximado daquilo que acontece nas favelas do Rio de Janeiro-RJ, duas 
realidades, ao mesmo tempo, tão iguais e tão diferentes. Daí a validade e 
contribuição da categoria pedaço para a apreensão daquilo que é 
particular das redes de sociabilidade, práticas de lazer e criações artísticas 
características e identificadoras de uma dada territorialidade, mesmo que 
a tendência geral indique para o “despedaçamento” ou quase completo 
sitiamento destas mesmas práticas. Contudo, isto não quer dizer, como 
salienta Harvey (2000), que podemos considerar a cultura como um plano 
alheio à dinâmica capitalista, onde as pessoas e os grupos constroem sua 
história de maneira especial e inesperada, a depender apenas de seus 
valores, aspirações, tradições e normas. Ainda que na “famosa” última 
instância, o econômico – sem poder ser confundido aqui com o 
economicismo51 – exerce um papel decisivo nos processos constitutivos da 
experiência e da cotidianidade. 
O aprofundamento das relações sociais capitalistas, embora com 
efeitos diferenciados, estende-se sobre o conjunto da vida social, 
submetendo um número cada vez maior de áreas à lógica do dinheiro e da 
circulação de mercadorias. Neste contexto, a explosão das periferias é 
acompanhada, pari passu, pela dissolução ou deterioração dos atuais 
valores e padrões de referência. As tradições, as festas, o lazer e outros 
 
51 O economicismo pode ser compreendido como uma corrente interna ao marxismo que, segundo 
seus críticos, na relação estrutura e superestrutura, acaba por conferir ênfase em demasia à 
determinação da vida social pela base econômica, o que suscita um importante debate sobre o peso 
que o desenvolvimento das forças produtivas desempenha na história em contraposição à influência 
exercida pela ideologia, pela consciência ou pela ação política como manifestações da ação dos 
homens (BOTTOMORE, 1988). 
 52
elementos culturais estão, inegavelmente, impregnados ou revestidos por 
valores, símbolos e signos que, em sua origem, transcendem os limites do 
pedaço. De acordo com Mello e Novais (2000), como o sujeito se vê 
encurralado por técnicas e mecanismos sociaisque lhe são cada vez mais 
estranhos, surgem, a fim de apaziguá-lo, uma vasta literatura de auto-
ajuda e um sem número de pastores eletrônicos, magos, videntes, 
adivinhos etc. Como não existem instituições sólidas nem confiança na 
justiça, as disputas e querelas são “resolvidas” à bala ou expostas nos tele-
programas do “mundo cão”. Como até a intimidade dá lucro, apressam-se 
por vulgarizá-la, seja através da espetacularização do corpo ou da 
exploração do sexo, hoje onipresentes nas imagens das revistas, outdoors, 
novelas, filmes ou propagandas. Como predominam a alegria e o prazer 
imediatos, multiplicam-se e avançam as piadas grosseiras, o 
sentimentalismo fácil, a artificialidade do riso, a caricaturização das 
misérias, a degradação do gosto musical etc, tudo no mesmo e vertiginoso 
ritmo de descida em que se localizam as baixarias da TV, o “requebra” das 
danças “da garrafa”, “da bundinha” ou “da manivela”, o disk-sexo, a 
pornografia virtual e toda espécie de sortilégios de uma ciranda mercantil 
que se produz e reproduz com velocidade e obsolescência impressionantes. 
Combinando a descontinuidade, a fragmentação e o simulacro, o modo de 
vestir-se, informar-se, entreter-se, divertir-se ou ocupar o tempo livre, de 
indivíduos e coletividades, bem como a maneira como pensam seus 
problemas, são indícios da tendencial mundialização da cultura em 
processo, capturando, moldando aqui, ali e acolá, a matéria-prima da 
sociedade de consumo, ou seja, a própria subjetividade reificada. 
 53
4. Gritos na multidão 
Estamos, portanto, ante um paradoxo. A esta altura da história, 
a cidadania vigente, indiscutivelmente, vem sendo aquela que substitui a 
figura do cidadão pela do contribuinte e do consumidor. O sistema que 
primeiro exclui para em seguida incluir, agora de modo precarizado e cada 
vez mais subalterno, como já dissemos, empurra a mobilidade social para 
baixo. Sem perspectivas fora da vida implacável e selvagem da competição 
e do consumismo, resta ao sujeito contabilizar a quantidade de dor e 
prazer que o acompanha na caminhada rumo ao “salve-se quem puder” do 
individualismo que contamina o pedaço. Por outro lado, apesar da 
desefetivação, da desrealização e da brutalização que forjam a multidão 
solitária52, reconhecemos que a emergência da sociedade global não ocorre 
de forma homogênea e nem linear. São muitos os que continuam 
territorializados, dedicando-se todos os dias à organização de novas formas 
de sociabilidade, empenhados em juntar e desconjuntar o passado, o 
presente e o futuro, o particular e o universal, a tradição e a modernidade, 
agindo, pensando e explicando, à sua maneira, a realidade e a 
possibilidade (IANNI, 2000). 
Nesta perspectiva, se é verdade que sob os efeitos do capitalismo 
mundial o movimento de reprodução e concentração ampliado acelera o 
processo de pauperização, fabricando miséria, intensificando 
desigualdades e gerando alienação, é certo dizer também que coexistem as 
contra-tendências, quando as populações se apropriam de padrões, 
valores, signos, tradições, normas, condutas e ideais com os quais nutrem 
 
52 No campo do lazer, a expressão multidão solitária poderia nos remeter a Riesman (1995), tendo 
em vista que uma de suas obras, de mesmo título, possui significativa difusão na área. Entretanto, 
baseamo-nos aqui em Ianni (1999), para quem a multidão solitária, inventada pelo alto, eletrônica e 
desterritorializada, compõe-se de trabalhadores, populações ou coletividades, dispersos em grupos, 
etnias, minorias, credos, regiões, culturas, seitas, línguas, tradições etc, todos membros 
individualizados e desenraizados desta estranha “aldeia global” que se tornou a sociedade mundial. 
 54
suas formas de resistir, de lutar e de se emancipar. Entretanto, faz-se 
necessário alertar que a leitura que pleiteamos nos remete não para uma 
posição intermediária entre o localismo e o globalitarismo de mão-única, 
mas para uma visão de conjunto, pois tanto a menor parte do todo, aqui 
representada pela categoria pedaço, bem como outras territorialidades ou 
nacionalidades, sejam elas do norte ou do sul, do ocidente ou do oriente, 
do centro ou da periferia, resguardadas as diferenças e desigualdades que 
possuem entre si, articulam-se no interior de uma mesma totalidade 
histórica. 
Enfim, ao considerarmos a produção do espaço como uma faceta 
importante da reprodução e transformação da ordem simbólica, conferindo 
a devida importância às práticas estéticas e culturais de uma dada 
territorialidade, acentuando aí o papel das comunidades, das resistências 
locais, dos movimentos sociais, das redes de sociabilidade, do 
associativismo de bairro, da solidariedade grupal, do respeito pela 
alteridade etc., como adverte Harvey (2000), não podemos descambar para 
a miopia da auto-referencialidade que desconsidera a força 
universalizadora da circulação ampliada do capital. Isto não quer dizer, no 
entanto, que estamos perseguindo uma verdade absoluta. Tentamos 
apenas chegar a um acordo provisório com as verdades históricas e 
geográficas que caracterizam o lazer, especialmente no Brasil e em sua 
fase presente. 
Assim, ao tentar apanhar o que de velho e de novo revela a 
metamorfose do lazer, dirigimo-nos ao pedaço descobrindo-o como 
expressão de uma totalidade marcada, sobremaneira, pela violência do 
mercado, cuja tendência, embora contraditória, corrói cada vez mais o tipo 
de sociabilidade que vem se produzindo. Nesse sentido, ao enxergarmos o 
lazer, deparamo-nos, também, com uma cultura, uma estética, uma ética, 
uma política e uma economia que, em princípio, extrapolam os limites de 
 55
nosso campo visual, o que não implica, sob qualquer hipótese, na negativa 
diante de categorias como a universalidade, a objetividade, a ideologia, a 
verdade etc. Munidos de um referencial que se constrói na análise crítica 
das relações capitalistas, seguimos com nosso exame, intentando alargar 
nosso entendimento sobre os significados que envolvem o lazer, situando-o 
na dinâmica das transformações impostas pela materialidade em curso. 
 
 56
CAPÍTULO II 
- CAPITALISMO EM FÚRIA - 
Procuramos apresentar, com a exposição construída até aqui, 
algumas reflexões referentes à temática do lazer no contexto presente. Em 
caráter ainda introdutório, esboçamos uma tentativa de apanhar as 
múltiplas relações e os nexos de interdependência que articulam tal 
problemática ao escopo mais amplo dos modos de vida hodiernamente 
estruturados pelo capital. Já nesta primeira aproximação ao objeto de 
nossa pesquisa, conseguimos identificar um processo que aponta, de 
maneira progressiva-regressiva, embora sem um contorno mais preciso, 
para a exponencial subordinação do lazer à forma mercadoria, processo 
que se articula a uma tendência de mercantilização de todas as coisas. 
Acontece que no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, de 
expansão global, quando o apelo ao consumo tudo submete à lógica venal, 
os impactos são enormes, abarcando não somente a realidade das coisas 
materiais, mas, também, o universo da cultura. Por conseguinte, as 
relações mercantis, coisificantes, invadem a cotidianidade e todas as 
esferas da sociabilidade, afirmando-se, assim, como o padrão dominante 
das experiências de lazer. 
Desta forma, seria oportuna uma investigação sobre a totalidade 
relacional dos acontecimentos que contribuem para o avanço de tal 
tendência. Tal empreitada cobra, no entanto, o reconhecimento e a 
 57
compreensão de que o capitalismo atravessa um período de crise 
estrutural. Com a adoção de uma nova estratégia de acumulação e de 
articulações hegemônicas a ela correspondentes, como resultado do 
esgotamento do regime de acumulação fordista, para além de uma nova 
ordem econômica e política, de igual modo,percebe-se a criação de uma 
nova ordem cultural, o que expressa a solução encontrada para a 
recomposição e reprodução do sistema. Para este momento, constituí-se 
como nossa tarefa situar tal crise, com seus devidos desdobramentos, 
seguindo-se a esta investida um olhar mais atento e cuidadoso sobre o 
contraditório movimento que descreve o lazer no fluxo das modificações 
que caracterizam o atual momento histórico. 
1. A nova (des)ordem 
O objetivo central da produção e investimento capitalista aponta, 
necessariamente, para o crescimento, com a permanente perseguição à 
maximização dos lucros e acumulação de capital. Quase nada ou pouco 
importam as consequências políticas, sociais e ambientais decorrentes 
deste movimento, cujas leis envolvem a concentração e a centralização. 
Aos capitalistas interessa produzir sempre mais mercadorias, e que estas 
sejam consumidas em escala também cada vez maior e o mais rápido 
possível. Produzem para reproduzir. Isto quer dizer que não produzem 
para si e tampouco para o bem estar coletivo. Só vale a pena produzir algo 
para o consumo se a venda deste algo resultar no lucro esperado. Este 
algo, nas palavras de um representante do capital, conforme cita Harvey 
(2000, p. 317), pode ser qualquer coisa, de pregos, máquinas, casas, 
carros, tecidos, aviões, sexo, comida, ciência, música, viagens, drogas etc. 
“Se houvesse um mercado de armas nucleares portáteis produzidas em 
massa, nós também as venderíamos”, é o que diz. 
 58
Como se nota, parece não haver escrúpulos nem limites para 
este movimento. Todavia, os preceitos sob os quais funciona o capitalismo 
não são harmônicos. Ao contrário do que se possa pensar, são bastante 
conflitantes. Isto não só em função da luta concorrencial travada entre os 
diferentes agentes econômicos que se colocam em disputa no mercado, 
mas, sobretudo, pela permanente tensão produzida pela dominação e 
exploração que funda a relação de classe entre capital e trabalho. Ocorre 
que, para obter melhores condições de competitividade, buscando baratear 
o preço de suas mercadorias, obviamente que sem perda de lucratividade, 
o capitalista é sempre obrigado a incrementar organizacional e 
tecnologicamente sua empresa, diminuindo o total de capital empregado 
com a força de trabalho. Como explica Marx (1971b), uma dentre as 
maiores contradições do capitalismo localiza-se justamente aí, pois ao 
mesmo tempo em que o capitalista individual necessita que suas 
mercadorias sejam realizadoras de lucro e sejam competitivas no mercado, 
o que se consegue pelo acréscimo de capital morto em detrimento do 
capital vivo investido na sua produção, ocasionando tanto a exclusão de 
trabalhadores excedentes como a expulsão do mercado de capitalistas 
concorrentes, o sistema, no seu conjunto, tende a reproduzir a força de 
trabalho como mercadoria, uma vez que, regra geral, é precisamente no 
tempo de sobretrabalho ou mais-valia53 que reside a “fórmula mágica” para 
a obtenção do tão ambicionado lucro. 
Compreendida esta contradição, fica entendido o porque das 
crises que vêm à tona explicitando a instabilidade do modo de produção 
capitalista. Sob as mais variadas formas e portadoras de conteúdos 
diversos, as dinâmicas de crise enfrentadas pelo capital são permanentes e 
 
53 Tempo de sobretrabalho que corresponde ao excedente do tempo necessário à recomposição, sob 
a forma de salário, da força de trabalho empregada no processo de produção que se converte em 
lucro. 
 59
cíclicas, ocorrendo historicamente quando um dado modelo de 
acumulação e uma dada estrutura hegemônica não mais se revelam 
capazes de frear a tendência à queda das taxas de lucro inerente ao 
sistema, exigindo sua recomposição sobre uma nova base social. Nesta 
direção, o próprio regime fordista se materializou por uma série de 
estratégias que buscavam restabelecer a unidade entre as relações de 
produção, os aparelhos de hegemonia e as novas exigências de 
acumulação colocadas pela crise de 1914/1930. Entretanto, a 
implementação deste modelo já trazia em si o germe para a posterior crise 
de 1970/1990 (GENTILI, 1995). Consequentemente, novas condições 
tiveram de ser criadas para que o processo de acumulação pudesse se 
perpetuar. 
O fordismo pode ser identificado por um conjunto de inovações 
técnicas combinadas a mudanças de gestão que se articulavam visando à 
produção em larga escala e o consumo em massa, o que se somava a uma 
forma de organização do trabalho baseada tecnologicamente num sistema 
de máquinas de caráter rígido e um modo de regulação social com a 
produção de normas, valores e instituições cuja atuação objetivava o 
controle tanto dos conflitos intercapitalistas como das tensões entre 
capital e trabalho. Conforme assinala Frigotto (1999), seu desenvolvimento 
efetivo tem impulso na crise de 1930, mas é somente no pós-2aguerra, 
quando as teses keynesianas abrem caminho para a intervenção estatal 
na economia e quando, no plano da superestrutura, toma corpo a idéia do 
Welfare State – ou seja, do Estado de Bem-Estar Social –, que tal modelo 
veio a se consolidar como um verdadeiro modo social e cultural de vida. A 
periodização 1950/1973, correspondendo aquela que Hobsbawm (1995) 
chamou por Era do Ouro do desenvolvimento capitalista, caracteriza-se 
como um momento de espetacular crescimento da economia mundial e 
incrível expansão do comércio internacional. Assinala um ciclo de entre-
 60
crises que permite um “grande salto adiante” na reestruturação e reforma 
do capitalismo, realizando, também, uma rápida e profunda revolução nos 
assuntos sociais que a história tem registro. 
Apresentando-se, por um lado, como alternativa ao “capitalismo 
selvagem” e, por outro, ao socialismo real, o Estado do Bem-Estar dá novo 
fôlego ao fordismo, colocando em prática uma série de políticas que 
procuravam garantir a estabilidade do sistema. Isto se viabiliza pela 
construção de um inusitado pacto social em que o fundo público, através 
do financiamento da reprodução da força de trabalho, atingindo toda a 
população por meio dos gastos sociais, produziu um enorme leque de bens 
e serviços. Assim, por se tratarem de riquezas que não se constituíam 
propriamente em capital, mas que favoreciam-no indiretamente, 
subsidiando o chamado “bem-estar” da força de trabalho, a imensa gama 
destes bens e serviços públicos passa a ser vista como antimercadorias 
sociais (FRIGOTTO, 1999). Para além da previdência, do seguro-
desemprego, da proteção legal ao trabalhador etc., não por caridade, mas 
como uma “assistência” necessária, implementam-se, naquele momento, 
os chamados direitos sociais de cidadania, dentre os quais o direito ao 
lazer. 
O esgotamento do modelo fordista e a consequente exaustão do 
Estado intervencionista começam a se fazer sentir então logo no início da 
década de 1970. Os aspectos mais evidentes desta nova crise, conforme 
aponta Antunes (1999), explicitam-se pelos seguintes aspectos: a queda da 
taxa de lucro causada pelo crescimento da massa salarial; a intensificação 
das lutas sociais objetivando o controle social da produção; a retração do 
consumo diante da saturação dos mercados; a crescente autonomia do 
sistema financeiro frente ao capital produtivo; a intensificação da 
concorrência intercapitalista; a concentração de capitais acelerada pelo 
processo de fusões; e a crise fiscal que obriga a diminuição dos gastos 
 61
públicos. Nesta direção, as privatizações, a desregulamentação e a 
flexibilização, dentre tantos outros ingredientes desta nova situação, 
precipitam a volta às leis “naturais” de mercado. Uma série de experiências 
introduzidas tanto na organização industrial como na vida social e política 
em várias regiões do mundo dão forma aos primeiros indícios do 
aparecimento de um novo regime de acumulação. Contrapondo-se à rigidez 
do fordismo, apoiadana flexibilidade dos processos produtivos, do 
mercado, dos produtos e do consumo, a hoje denominada acumulação 
flexível marca uma nova fase do modo de produção capitalista. 
A passagem para um regime de acumulação e regulação social 
novo, representando profundas transformações na vida social e política, 
coincidem, portanto, com uma grande “revolução” da base técnica do 
processo produtivo. A reengenharia do just in time54 traz consigo as células 
de produção, as equipes de trabalho, a eliminação de postos, o trabalhador 
polivalente, o aumento da produtividade, a qualidade total, a terceirização, 
a empresa enxuta etc. “Trata-se de um processo de organização cuja 
finalidade essencial, real, é a intensificação das condições de exploração da 
força de trabalho” (ANTUNES, 1999, p. 53). Não coincidentemente, estas 
mudanças na base técnica do processo produtivo trazem severas 
implicações para o mundo do trabalho de um modo geral, dentre as quais, 
de acordo com aquilo que assinala Pochmann (1999), podemos enumerar: 
o declínio da participação das ocupações na indústria e a expansão do 
setor de serviços; a expansão do emprego com múltiplas especializações; a 
exigência de habilidades cada vez mais variadas como requisito para a 
empregabilidade; a criação de obstáculos para o desenvolvimento da 
solidariedade e identidade entre os trabalhadores; a crescente 
 
54 Constituindo-se como um dos princípios basilares da acumulação flexível, o just in time 
materializa-se por uma nova forma de administração industrial que visa o melhor aproveitamento 
possível do tempo de produção. Para saber mais, ver Antunes (1999). 
 62
instabilidade provocada pelo desemprego; a individualização do salário 
com sua vinculação à produtividade; a desregulamentação das leis 
trabalhistas; a descentralização das negociações; e o refluxo do movimento 
sindical. 
A reestruturação e reorganização do capitalismo face à crise, 
buscando, a qualquer custo, assegurar os processos de maximização e 
acumulação, representam todo um reordenamento do mundo de trabalho 
em escala planetária. Deduz-se, deste quadro, que a sociedade do capital 
parece cada vez menos precisar do trabalho estável, realizador e bem 
remunerado, o que significa, na outra ponta, necessitar cada vez mais das 
variadas formas de trabalho precarizado, seja ele autônomo, parcial, 
subcontratado, domiciliar, terceirizado, informal, temporário etc. 
(ANTUNES, 1999). Outra coisa que muda é o próprio conteúdo do 
trabalho, pois este deixa, quase que em absoluto, de se materializar como 
um meio de realização e satisfação das necessidades pessoais e coletivas, 
passando a mera forma de obtenção, quando muito, da subsistência 
individual. 
Com efeito, este novo e diferente cenário caracteriza-se ainda 
pelo acirramento das desigualdades no interior de uma sociedade cada vez 
mais dual, onde setores crescentes da população são colocados à margem 
dos processos econômicos, políticos e culturais de sua época. Nunca se 
produziu tanta exclusão com tamanha “naturalidade”. De um lado os 
vencedores e noutro os vencidos, os ricos e os pobres, os ganhadores e os 
perdedores, os insiders e os outsiders, os integrados e os marginalizados, 
os consumidores e os devedores etc. O que deveria causar espanto, ou pelo 
menos estranheza, parece não incomodar. Numa sociedade refém do 
mercado, cada vez mais dividida, individualista e competitiva, o que vale é 
 63
o princípio do mérito55. Impingido pela ideologia laisser faire, da livre 
concorrência, tal princípio acaba por legitimar a negativa do Estado ante a 
garantia dos direitos sociais, uma vez que sua defesa e existência 
potencializam a acomodação, inibindo o esforço e a conquista individual. 
“Semelhante esquema questiona a noção mesma de cidadania (ou melhor, 
dá-lhe novo significado). Daí que, em seus discursos, neoconservadores e 
neoliberais tenham maior predileção pelas referências aos consumidores 
que aos cidadãos” (GENTILI, 1995, p. 234-235). Esta sociedade partida 
parece, portanto, uma sociedade sem cidadãos, pois o consumo foi 
estandardizado, a exclusão naturalizada e o outro tornado coisa. 
Desta breve apreciação em que foram evidenciados alguns dos 
componentes que emprestam formato ao processo de mudanças e 
rupturas em andamento deve ficar claro para nós que as dinâmicas de 
crise do capitalismo sempre implicam desdobramentos que se fazem sentir 
não apenas sobre a vida econômica, mas, também, sobre o desenho das 
forças políticas, sobre a legislação e as relações jurídicas, sobre a produção 
e manifestação de diferentes culturas, sobre a natureza e sobre todos os 
domínios da existência humana. Exemplo disto é que já no contexto da 
crise dos anos 1914/1930, as modificações introduzidas pelo fordismo 
reclamavam uma nova organização social, pois a racionalização advinda 
daquele modelo trazia consigo a exigência de um novo tipo de trabalhador 
e, por conseguinte, de um novo homem, pois as consequências da 
aplicação de “novos métodos de trabalho estão indissoluvelmente ligados a 
um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível 
obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro” 
 
55 Ao se valerem do princípio do mérito, os neoliberais argumentam que os antigos modelos de 
organização premiavam os ineficientes. Já hoje, como alerta L. Vuolo, citado por Gentili (1995, p. 
234), “os novos, ao aumentar a dependência de cada um do valor de troca no mercado de sua 
capacidade individual, farão com que as retribuições sejam de acordo com sua maior ou menor 
eficiência como participante do sistema no trabalho social”. 
 64
(GRAMSCI, 1976, p. 396). Estamos falando, portanto, de uma investida 
que exprime o realinhamento entre uma dada estrutura sócio-econômica e 
uma determinada superestrutura político-ideológica, cobrando, para 
aquele momento, grande habilidade por parte dos grupos dirigentes do 
sistema hegemônico em questão. 
Certamente, o conjunto das transformações que ocorrem hoje, 
aqui já enunciadas, como a reestruturação produtiva, o caráter 
estruturalmente dualizado da sociedade e o fim do Estado de Bem-Estar 
Social, materializando-se através de uma série de intervenções que se dão 
tanto no plano material como simbólico, representam as estratégias 
levadas a cabo pelos grupos dominantes56 como resposta à crise 
instaurada a partir do início da década de 1970. Estes fatores pré-
configuram o retrato de um novo modo de regulação, qual seja: o pós-
fordismo. A rigor, a construção desta nova ordem não significa outra coisa 
senão a instituição de uma “nova desordem”. Trata-se de um modelo em 
que setores de grande riqueza contrastam com uma imensa massa de 
miseráveis, atacados em seus direitos mais essenciais. Isto, por não 
gerarem lucro, hodiernamente, a medida de todas as coisas, inclusive as 
pessoas. Vale então destacar, parafraseando Mészáros (2002), que uma 
reestruturação na economia corresponde, em outros termos, a uma 
reestruturação na sociedade, de cima a baixo. Em que pese toda a 
perversidade deste processo, atualmente, é o que estamos testemunhando. 
Cabe dizer que muitas perguntas ainda pairam sobre esta breve 
exposição. Em se tratando de uma apresentação bastante panorâmica, 
cujos objetivos se concentraram tão somente na tentativa de melhor situar 
 
56 Os neoliberais constituem a expressão histórica dominante do grupo que luta pela construção de 
uma nova ordem. Entretanto, ao combinarem à visão de um Estado mínimo, guiado pelo livre 
mercado, à visão de um Estado forte no que diz respeito à vigilância e garantia da estabilidade 
política e ideológica do sistema, aliando-se aos neoconservadores, acabam por ter potenciados os 
mecanismos necessários ao cumprimento de seus propósitos (GENTILI,1995). 
 65
nosso interlocutor diante deste debate, optamos por não verticalizar nossa 
análise. Procuramos apenas explicitar a natureza estrutural do atual 
momento de crise, pontuando alguns de seus antecedentes e principais 
desdobramentos a fim de evidenciar a transição pela qual estamos 
passando. Enfim, se muda a economia, se muda a política e se muda a 
cultura, muda também o lazer. Doravante, percorrendo cada um destes 
planos, ao passo que retomaremos alguns dos pontos já levantados, 
interessa-nos apanhar os nexos que imputam ao lazer sua subsunção à 
forma mercadoria, o que será feito a partir do exame daqueles fatores que 
julgamos essenciais à compreensão deste fenômeno, quais sejam: 
- o aumento da taxa de exploração do trabalho, dada pelo 
prolongamento da jornada e a intensificação do trabalho, com a 
diminuição, fragmentação e flexibilização do tempo livre, na esfera 
econômica; 
- a taxa de utilização decrescente no capitalismo, com a necessidade 
de aceleração do tempo de giro do capital e aumento da produção de 
descartáveis, ainda no palco da economia; 
- o ataque aos direitos sociais, com a prevalência do princípio do 
mérito em face do fim do Estado do Bem-Estar e avanço das teses 
neoliberais, no terreno da política; e 
- a relativização do luxo e da necessidade, dada pelo relaxamento do 
proibicionismo, pelo crescente apelo ao consumo e pela constante 
redefinição dos chamados estilos de vida, o que se verifica no plano 
da cultura. 
 66
2. O presente do trabalho 
A despeito da tese de que graças ao progresso tecnológico o 
tempo livre da população em geral tem aumentado em função da produção 
crescente de bens e serviços com o aporte cada vez menor de trabalho 
humano, e que por isso, na sociedade pós-industrial, o trabalho não mais 
representa a categoria central que explica o universo da práxis social,57 as 
mudanças que estão afetando o mundo do trabalho parecem apontar 
numa outra direção. O otimismo expresso pela idéia de que os problemas 
decorrentes de um desenvolvimento econômico acelerado – isto é, o 
desemprego, o subemprego, a exclusão etc. – seriam o resultado de uma 
sociedade com duas velocidades, quando as pessoas estariam ainda 
inadaptadas para a valorização do tempo livre e exercício do ócio ativo, o 
que, segundo De Masi (1999), corresponde à ideação, à introspecção e à 
invenção tão peculiares ao trabalho criativo, contrasta com o papel que a 
reorganização do trabalho vem cumprindo no concreto real do mundo 
globalizado. 
Cabe reconhecer, portanto, que o trabalho precarizado, bem 
como as atividades informais, estão desempenhando uma importante 
função na economia contemporânea, mesmo nos países ricos. No Brasil, 
em consequência da posição periférica que ocupa no mapa da divisão 
internacional do trabalho, tal fenômeno revela-se de modo ainda mais 
exasperado. Conforme dados levantadas por Pochmann (2001), embora 
não existam estratos sociais imunes ao desemprego, as pessoas com 
menor grau de escolaridade, jovens, do sexo masculino, não-brancas e que 
buscam o primeiro emprego são aquelas que menos sofrem com o 
problema. Em outras palavras, se você possui boa instrução, idade mais 
 
57 Nesta linha, ganham notoriedade no campo do lazer no Brasil as teses de De Masi (1999, 2000, 
2001). Todavia, faz-se importante lembrar que posições muito próximas a esta podem também ser 
encontradas já em Dumazedier (1994). 
 67
avançada e procura uma recolocação no mercado, não estranhe se sua 
condição de desempregado qualificado perdurar por mais algum tempo, 
pois nestas terras suas chances de arrumar prontamente um emprego 
cujas habilidades envolvam a livre criação e a capacidade inventiva são 
bastante reduzidas. 
Enquanto isso, fazendo coro à propalada economia do ócio, os 
especialistas em recursos humanos não se cansam em oferecer seus 
conselhos. Ensinam como sobreviver num mundo de empregos escassos e 
enfrentar as mudanças do mercado de trabalho. Dentre outras peripécias, 
sugerem que tenhamos todas as “armas” à mão, aprendendo línguas e se 
familiarizando com informática. Diploma universitário é necessário, 
admitem, mas numa realidade em que nunca foi tão importante vender a 
própria imagem, vestir-se bem também é fundamental, é o que avaliam os 
personal-styles. Para terminar, não se deixe acomodar, aconselham. 
Considere sua carreira um projeto pessoal, advertem. Mantenha-se bem 
informado, faça cursos, conheça outros países e invista na sua própria 
formação, recomendam.58 Mas o que dizer diante de tudo isso quando 
números da OIT de 1999, citados por Antunes (1999), já indicavam para 
mais de 1 bilhão de pessoas desempregadas ou subempregadas, algo 
próximo da terça parte do total da força de trabalho. Fica parecendo que a 
questão do emprego não é tema para sociólogos, economistas ou cientistas 
políticos, tampouco assunto de governo, mas, antes de tudo, um problema 
particular do indivíduo. 
Acontece que, em virtude das tendências mais gerais do 
capitalismo, com o forte aumento da competição, “os patrões tiraram 
 
58 Dentre outras, estas indicações foram extraídas da reportagem “O que está havendo com seu 
emprego”, veiculada pela revista Veja, em 7/2/1996. Na mesma matéria, que abre o debate sobre o 
desemprego no Brasil do Real, dentre aquelas profissões consideradas em alta no mercado, o 
especialista em lazer e turismo aparece em posição de destaque, talvez pela precariedade dos 
contratos a que estão submetidos a maioria destes profissionais, problema que abordaremos mais 
adiante. 
 68
proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de 
mão-de-obra excedente para impor regimes de trabalhos mais flexíveis” 
(HARVEY, 2000, p. 143).59 Esta flexibilização das relações de trabalho – 
diga-se de passagem, perda de direitos –, fruto da mudança qualitativa da 
base técnica do processo produtivo, engloba e afeta mais de perto os 
empregados parciais, os casuais, os temporários, os terceirizados, os 
comissionados, enfim, todos os subcontratados que, submetidos a 
condições precárias, muito cobrados em sua produtividade e sem contar 
com o maior amparo legal, amargam com a instabilidade e a insegurança. 
Enquanto isso, na outra ponta, a estabilidade no emprego está restrita a 
uma parcela cada vez mais reduzida de trabalhadores de grandes 
empresas. 
Ao mesmo tempo em que se exige uma elevada qualificação e 
capacidade de abstração para um grupo de trabalhadores estáveis 
(mas não de todo) cuja exigência é cada vez mais supervisionar o 
sistema de máquinas informatizadas (inteligentes!) e a capacidade 
de resolver, rapidamente, problemas, para a grande massa de 
temporários, trabalhadores precarizados ou, simplesmente, para o 
excedente de mão-de-obra, a questão da qualificação [...] não se 
coloca como um problema para o mercado (FRIGOTTO, 1999, p. 
77). 
Não obstante a toda inovação tecnológica, com os processos de 
automação alçados ao incremento da robótica e da microeletrônica, o que 
poderia resultar numa real redução do tempo de trabalho e aumento do 
tempo livre, o que assistimos, em escala planetária, é o orquestrar de uma 
 
59 Segundo dados do DIEESE (2002), a taxa de desemprego medida de 1990 a 1998, com exceção ao 
que se verificou no Estados Unidos (- 1,1%) e na Inglaterra (- 0,8%), que oscilou negativamente, em 
vários outros países aumentou. No Canadá (+ 0,3%) e em Portugal (+ 0,5%) a variação foi pequena, 
mas no Japão (+ 2,0%), na Suíça (+ 2,2%), na Espanha (+ 2,5%), na França (+ 2,7%), na Itália (+ 
3,2%), na Alemanha (+ 4,6%), no Brasil (+ 4,7%), na Suécia (+ 6,6%) e na Argentina (+ 7,2%) os 
números apontam para um contingente de mão-de-obra excedente em franca expansão. Obs.: Para 
Brasil e Argentina a variação percentual obtida correspondeao período de 1990 a 1999. 
 69
ação destrutiva que corrói a quase totalidade da força humana que 
trabalha. Diante da crise do fordismo, a desvalorização da mão-de-obra 
revelou-se como que uma saída “natural” do capital para impedir a queda 
das taxas de lucro. Assim, na balada do “cada um por si” do mercado 
flexibilizado, o enorme fosso das desigualdades mantém apartadas as 
“sub-classes” dos mal-pagos, excluídos e sem-poder. Estão decididamente 
afastados dos postos de trabalho com alta ou média remuneração e de 
caráter qualitativamente superior, oportunidade circunscrita apenas para 
aqueles que pertencem à nova aristocracia do trabalho (HARVEY, 2000), 
aquela que, para atualizar T. Veblen60, poderia também ser chamada por 
classe ócio-criativa. 
Com efeito, a reestruturação do mercado de trabalho tem 
provocado o revigoramento de antigas formas e sistemas de produção, 
tendência que pode ser explicada pelo processo de recombinação das duas 
estratégias básicas de busca do lucro assinaladas por Marx (1971a). De 
uma parte, o prolongamento das horas de trabalho e a queda no valor das 
remunerações potencializam a extração da chamada mais-valia absoluta. 
De outra, o corte de empregos e dos custos do trabalho decorrente da 
reorganização da produção, somado à inovação tecnológica, converte a 
grandeza extensiva em grandeza intensiva, com a maximização da 
exploração da mais-valia relativa.61 No que se refere à primeira estratégia, 
o aumento do excedente da força de trabalho vem tornando sua utilização 
cada vez mais fácil, inclusive nos países capitalistas mais centrais. É o 
retorno da superexploração. 
 
60 Estamos nos reportando à definição classe ociosa, cunhada por Veblen (1985) para se referir ao 
seleto grupo das pessoas que podiam gozar do poder, do prestígio e da riqueza exibidos pelo 
consumo conspícuo e pela vida de façanhas levada na sociedade estadunidense do século XIX. 
61 Para um melhor entendimento do significado e do lugar que ocupam as categorias mais-valia 
absoluta e mais-valia relativa na teoria marxiana, especialmente para a compreensão do processo de 
produção do capital, consultar Marx (1971a, especialmente as partes 3a, 4a e 5a). 
 70
Somente a título de exemplo: até o Japão e seu modelo toyotista, 
que introduziu o “emprego vitalício” para cerca de 25% de sua 
classe trabalhadora, vem procurando extinguir esta forma de 
vínculo empregatício, para adequar-se à competição que reemerge 
do Ocidente “toyotizado”. Dentre as medidas propostas para o 
enfrentamento da crise japonesa encontram-se ainda aquela 
formulada pelo seu capital, que pretende ampliar tanto a jornada 
diária de trabalho de 8 para 9 horas quanto a jornada semanal de 
48 para 52 horas. Podemos mencionar também o exemplo da 
Indonésia, onde as mulheres trabalhadoras da multinacional Nike 
ganhavam 38 dólares por mês, realizando uma longa jornada de 
trabalho. Em Bangladesh, as empresas Wal-Mart, K-Mart e Sears 
utilizaram-se do trabalho feminino na confecção de roupas, com 
jornadas de trabalho de cerca de 60 horas por semana e salários 
inferiores a 30 dólares por mês (ANTUNES, 1999, p. 16). 
Todos os limites naturais, legais e morais de nossa época que 
servem de empecilho ao impulso imanente da produção capitalista em 
apropriar-se do trabalho de outrem durante as 24 horas do dia, na maior 
intensidade possível, parecem esmaecer. No embate atual entre capital e 
trabalho em torno do uso do tempo, aos olhos do trabalhador, o dia parece 
ficar mais longo e o ritmo do relógio mais acelerado. E se, como relembra 
Thompson (1998, p. 294), passo a passo, “a primeira geração de 
trabalhadores nas fábricas aprendeu com seus mestres a importância do 
tempo; a segunda geração formou os seus comitês em prol de menos 
tempo de trabalho no movimento pela jornada de dez horas; [e a] terceira 
geração fez greves pelas horas extras”; hoje em dia, o espectro do 
desemprego vem ensinando a quarta geração a ceder, trabalhando mais 
por menos dinheiro. 
Não se pode questionar o fato de que o reconhecimento oficial do 
direito ao tempo livre representa, antes de tudo, uma conquista social e 
 71
histórica dos trabalhadores.62 Como consequência de uma luta secular 
travada contra os proprietários do capital, eles conseguiram arrancar junto 
ao Estado inúmeras disposições que fixaram o período, os limites e os 
intervalos da jornada normal de trabalho. Contudo, o que se coloca para o 
momento é que este direito está sob ameaça, correndo o risco da 
flexibilização.63 Com a reestruturação produtiva e a mudança das relações 
de trabalho, diante da enorme sobrecarga a que vem sendo submetida a 
população trabalhadora, o prejuízo causado ao seu já combalido tempo 
livre, seja em quantidade ou qualidade, é mais do que evidente. 
De qualquer modo, vale aqui rememorar alguns episódios 
recentes: 
- Em São Bernardo do Campo-SP, a Ford, empresa multinacional do 
setor automobilístico cuja sede nos Estados Unidos serviu de berço 
para o fordismo, com o argumento de querer evitar possíveis 
demissões, instituiu a jornada flexível, estipulando um limite 
mínimo de 38 horas, e máximo, de 44 horas para o conjunto de seus 
funcionários, variação calculada em cima da jornada base de 42 
horas semanais de trabalho. Como resultado, tanto o tempo livre do 
final do dia como o do fim de semana encurtam numa determinada 
época e se expandem noutra, a depender do ritmo da produção. 
Talvez por este motivo, a proposta sugerida pela empresa de 
ampliação da flexibilidade da jornada para uma faixa de 36 a 46 
 
62 Para a compreensão da luta em torno da definição da jornada normal de trabalho, ver Marx 
(1971a, especialmente capítulo 8). Em outro estudo, ao nos determos sobre as relações entre 
trabalho e lazer, pudemos salientar nosso entendimento do tempo livre como uma conquista social 
e histórica dos trabalhadores. Ver Mascarenhas (2000). 
63 Assim como em outros países tomadores de empréstimos, por imposição do Banco Mundial, já se 
avizinha no Brasil uma grande reforma jurídico-trabalhista. Ante a proposta de flexibilização da 
CLT, conquistas como aposentadoria, férias, 13o salário, adicional por trabalho noturno, 
remuneração da hora extra superior a 50% da hora normal de trabalho, FGTS, o salário-família, 
adicionais de remuneração para atividades penosas, insalubres ou perigosas, licença à gestante, 
licença-paternidade etc, ficam sob ameaça. 
 72
horas tenha sido rechaçada pelos metalúrgicos. Preferiram 
continuar decidindo, com o mínimo de autonomia possível, sobre 
quando e em que quantidades vão poder desfrutar de suas horas 
livres;64 
- A Volkswagen fez diferente. Inicialmente, instituiu o fundo de tempo 
livre, um complicado mecanismo pelo qual, a pretexto de investir no 
futuro do lazer de seus funcionários, conseguiu reduzir a folha de 
pagamentos do presente. O trabalhador poderia investir no fundo, 
sob a forma de poupança, parte do seu salário, as férias ou o 
pagamento de horas extras, para recuperar o valor aplicado, 
acrescido de juros, em ações de tempo livre, a serem resgatadas, 
mais tarde, por unidades de tempo que lhe permitiriam a 
antecipação da aposentadoria;65 
- Não satisfeita, a mesma VW do Brasil foi ainda mais longe. Depois 
de demitir 3.075 trabalhadores por carta, num inusitado acordo 
negociado na Alemanha com representantes do Sindicato dos 
Metalúrgicos do ABC, acabou voltando atrás. Ao invés das 
demissões, optou pela redução da jornada e a diminuição dos 
salários pagos aos seus empregados em 15%. Além disso, criou um 
PDV para atingir 700 pessoas, terceirizou outras 500, transferiu 
1400 do setor de logística para a manufatura, instituiu um banco de 
horas, para que parte das horas extras seja paga com folga de 
segunda-feira, e diminuiu o piso salarial para novos contratados,64 Informações contidas na matéria “Metalúrgicos da Ford não votam proposta”, do jornal Folha de 
São Paulo, de 3/3/1998. 
65 Notícia do jornal Folha de São Paulo, intitulada “VW cria fundo de tempo livre”, veiculada em 
3/3/1998. 
 73
também em 15%, mas sem a contrapartida da diminuição da 
jornada;66 
- Na esteira da flexibilização, ainda em São Bernardo do Campo-SP, a 
direção da fábrica de caminhões da Scania aproveitou o embalo e 
propôs o corte de 20% dos salários diminuição da jornada de 40 
para 36 horas para evitar a dispensa de 400 dos seus 2.300 
funcionários. E não ficou só nisso, sugeriu a igual criação de um 
banco de horas, o parcelamento do 13o salário e das férias em até 12 
parcelas, além de não conceder o reajuste salarial de 8,16% previsto 
em convenção;67 e 
- Já em outra cidade do ABC paulista, São Caetano do Sul, mais uma 
montadora, agora a General Motors, alegando ter de reduzir o gasto 
com a folha de pagamentos para garantir a competitividade da 
fábrica, demitiu 808 funcionários. Como condição para a suspensão 
de tal medida, também propôs aos trabalhadores a redução da 
jornada e dos salários em 25%, implementando o esquema de três 
semanas de trabalho e uma de folga para quatro grupos de 350 
empregados. Para outros 700 funcionários, adotou o sistema de lay-
off, com corte de 20% dos salários, oferecendo a contrapartida da 
participação nos lucros e resultados da empresa.68 
A diminuição da jornada tem sido o pivô de uma das mais 
importantes lutas travadas no mundo do trabalho, constituindo-se como a 
principal reivindicação dos trabalhadores contra a extração de 
 
66 Dados extraídos da reportagem “Pacote da Volkswagen”, do Jornal Folha de São Paulo, de 
20/11/2001. 
67 Informações contidas na matéria “Funcionários da Scania entram em alerta”, do jornal Folha de 
São Paulo, de 25/11/2001. 
68 Dados obtidos a partir da reportagem “GM aceita negociar e reduzir demissões”, publicada no 
jornal Folha de São Paulo, em 20/7/2002. 
 74
sobretrabalho realizada pelo capital (ANTUNES, 1999). Nestes casos, 
porém, a diminuição da jornada não implica, necessariamente, aumento 
do tempo livre. Isto porque a redução formal do horário de trabalho pode 
significar, ao contrário, um aumento do tempo de trabalho despendido no 
mesmo período. Nesse sentido, “o tempo de trabalho é medido agora de 
duas maneiras, segundo sua extensão, sua duração, e segundo seu grau 
de condensação, sua intensidade” (MARX, 1971a, p. 467), pois com a 
aplicação de novas tecnologias e a preparação de trabalhadores a ela 
ajustados, aumenta sua velocidade e, em consequência, a magnitude das 
exigências requerida à força de trabalho. 
Um trabalhador contemporâneo, cuja atividade seja altamente 
complexa e que cumpra um horário de sete horas por dia, trabalha 
muito mais tempo real do que alguém de outra época, que 
estivesse sujeito a um horário de quatorze horas diárias, mas cujo 
trabalho tinha um baixo grau de complexidade. A redução formal 
de horário, corresponde a um aumento real do tempo de trabalho 
despendido durante este período (J. Bernardo apud ANTUNES, 
1999, p. 175). 
Perde-se em duração, mas ganha-se em eficácia. E uma vez 
potenciada a capacidade de trabalho envolvida na produção, aumenta 
também a lucratividade. Prova inconteste disto é que a produtividade da 
indústria vem crescendo. Um bom exemplo é justamente o da indústria 
brasileira. Somente no período de 1995 a 1997, os valores que cada 
trabalhador do setor produziu em um ano subiu de 61.000 para 73.000 
reais, oscilando para mais em quase 20%.69 Enquanto isso, na repartição 
do PIB,70 ao passo que, em 1992, 44% do montante das riquezas 
 
69 Valores obtidos a partir do “Anuário dos trabalhadores 2000-2001”, publicado pelo DIEESE, no 
ano de 2002, correspondentes ao total da receita líquida da indústria, subtraído o custo da matéria 
prima, dividida pelo número de empregados na produção. 
70 A taxa do PIB de um país corresponde ao valor total de bens e serviço finais nele produzidos 
durante um determinado período. 
 75
produzidas no país foram destinadas ao trabalho, através do gasto com a 
remuneração de empregados, e 38% com o capital, a título de excedente; 
em 1998, a situação já se inverte, quando as taxas de lucro, antes em 
declínio, dão claros sinais de revitalização, com o capital passando a 
abocanhar 44% do valor total contra 36% dos trabalhadores.71 A despeito 
de a produção industrial ter crescido, o par representado pela 
reestruturação e flexibilização tem apontado, deste modo, para a uma 
menor participação ainda do trabalho na lógica distributiva de nossas 
riquezas, o que se reflete não só no problema do desemprego, mas, ao 
mesmo tempo, na corrosão dos salários, no empobrecimento geral da 
população trabalhadora e no aumento das desigualdades e injustiças 
sociais. 
Dentre todas estas transformações, outro aspecto importante ser 
destacado é que a recombinação das estratégias de busca de lucro 
operadas pelo capital, hora pela extração de mais-valia absoluta, hora pela 
extração de mais-valia relativa, pode encarnar as mais variadas formas, 
alcançando volumes muito diferentes, a depender da multiplicidade dos 
intervenientes geopolíticos dados pela divisão internacional do trabalho. 
Neste sentido, se a média quantitativa de horas semanais de trabalho 
cresce em alguns países, como é o caso da Argentina, de 43,7 horas em 
1992 para 46,7 em 1998; do Canadá, de 38,3 para 38,6; da Espanha, de 
36,3 para 37,1; do Chile, de 43,6 para 43,7; dos Estados Unidos, de 41,0 
para 41,7; do México, de 45,0 para 46,0; e da Inglaterra, de 41,5 para 
41,8; em outros cai, como na Alemanha, de 38,9 para 37,5; e em 
Singapura, de 48,7 para 48,4; e noutros permanece a mesma, como é o 
 
71 Dados também extraídos do “Anuário dos trabalhadores 2000-2001”, do DIEESE. No que se 
refere ao total da repartição do PIB, para além dos percentuais auferidos ao trabalho e ao capital, 
sem grandes oscilações, o restante se dividiu entre o rendimento dos autônomos (6%) e o fundo 
público (12%-14%). 
 
 76
caso da Suíça, estacionada em 41,4; e do Brasil, em 42,0 horas.72 Mas 
ainda assim, em escala mundial, ao contrário do que se ventila, não há 
qualquer sinal mais expressivo que indique para um movimento uniforme 
de aumento geral do tempo livre. 
Entretanto, um exemplo que chama bastante atenção é o da 
França, país onde, desde 1998, em substituição à jornada formal de 
trabalho de 39 horas, foi introduzida a semana de 35 horas. É bom dizer 
que a esta lei se aplica somente a metade dos 26,6 milhões dos 
trabalhadores franceses e que, apesar de muitos anunciarem tal medida 
como o prelúdio da civilização do tempo livre, os sindicatos têm reclamado 
da redução de intervelos e das exigências quanto a uma maior 
produtividade.73 Ao que parece, apesar do peso e da importância social 
deste gesto político, é que a introdução da nova jornada na França 
contribuiu muito mais para a moderação salarial do que propriamente 
para o bem estar da população trabalhadora, pois o estímulo que se 
verificou para a criação de empregos foi muito pouco significativo, ao passo 
que os salários foram reduzidos ou congelados para compensar os efeitos 
das horas a mais que os franceses, de maneira suposta, passaram a dispor 
fora do ambiente de trabalho.74 
Agora, se na França a dupla jornada, os denominados “bicos” e 
as horas extras, prolongando o tempo normal de trabalho, configuram-se 
aqui apenas como uma suposição, no Brasil, antes mesmo de qualquer 
anúncio de redução da jornada, isto já acontece na prática. O caso mais 
 
72 Números mais uma vez obtidos a partir do “Anuário dos trabalhadores 2000-2001”, do DIEESE.73 Ao tecer análise sobre o processo de produção do tipo toyotista, e de sua correspondente 
ocidentalização, Antunes (1999), citando S. Kamata, adverte que todo o tempo livre dos 
trabalhadores, até mesmo aquele que vigora durante as horas de trabalho, tem sido usurpado pelo 
capital. Sob a lógica do just in time, todo e qualquer intervalo é visto como desperdício. Todo o 
tempo, até o último segundo, é consagrado à produção. 
74 Informações retiradas da reportagem “Jornada de 35 horas amplia lazer na França”, veiculada 
pelo jornal Folha de S. Paulo, de 9/9/2001. 
 77
emblemático é o da região metropolitana de São Paulo, onde o percentual 
de assalariados que trabalhavam mais do que a jornada legal de 44 horas 
semanais subiu dos 36,1% verificados em 1990 para os 42,4% registrados 
em 1999,75 o que ilustra muito bem a tendência de diminuição do tempo 
livre em nosso país. Embora a média geral semanal de trabalho no Brasil 
tenha sido registrada como estacionária, na órbita das 42,0 horas, 
estamos chegando perto de uma situação em que quase a metade dos 
brasileiros está trabalhando bem acima daquilo que a ordem legal 
estipula.76 Portanto, por de trás da média, que já indica, em vários países, 
para o aumento das horas de trabalho, esconde-se uma enorme população 
de superexplorados, trabalhando por um tempo ainda maior e em troca de 
muito pouco dinheiro. 
Como se não bastasse, ao passo que se multiplicam as 
ocupações do chamado mercado de trabalho informal,77 aquele que não 
tem existência oficial e abarca desde o vendedor ambulante até os 
trabalhadores por conta própria e das “fábricas” de fundo de quintal que 
se espalham por todo o país, em pleno século XXI, ainda se pode constatar 
a existência de inúmeros focos de trabalho escravo no Brasil,78 e aí não dá 
para se falar em tempo livre, muito menos em lazer. Soma-se a isso a 
exploração do trabalho feminino, do tele-trabalho, do trabalho part-time, do 
 
75 Dados extraídos do “Anuário dos trabalhadores 2000-2001”, publicado pelo DIEESE, em 2002. 
76 No Brasil, a última redução da jornada normal de trabalho data da promulgação da Constituição, 
em 1988. Em substituição à antiga jornada de 48 horas, através do Art. 7o inciso XIII da 
Constituição brasileira, ficou definida a “duração do trabalho normal não superior a oito horas 
diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, 
mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho” (BRASIL, 1988, p. 12). 
77 Conforme números do IBGE, publicados pela revista Veja, de 18/10/2000, em reportagem 
intitulada “O drama silencioso dos sem-carteira”, dos 69 milhões de brasileiros que trabalhavam 
naquela data, 60%, ou seja, 41 milhões, estavam no mercado informal, completamente 
desassistidos pela legislação social. Na década de 80, os informais não ultrapassavam 40% da 
população ativa. 
78 Segundo números do DIEESE (2002), somente de 1991 a 1997, foram flagrados 159 casos de 
escravidão no Brasil, com 95.864 pessoas libertadas. 
 78
trabalho em casa, do trabalho terceirizado ou do trabalho temporário, isto 
sem contar o trabalho infantil.79 Lado a lado, sistemas alternativos de 
contratação disponibilizam para a livre escolha dos empreendedores 
capitalistas um imenso exército de trabalhadores isolados (HARVEY, 
2000). No mesmo palco social, antigas e novas formas de trabalho, 
misturadas ao discurso da flexibilidade, conferem forma à expressão 
contemporânea do trabalho, para a grande maioria, cada vez mais 
precarizado. 
Assim sendo, de São Bernardo do Campo-SP a Paris, na França, 
o padrão de acumulação flexível e a economia internacional globalizada, 
apesar de sua notável capacidade produtiva, fundam uma nova realidade, 
a de um mundo novo de subempregados e desprotegidos. Somente entre 
1979 e 1992, as 500 maiores empresas do mundo mandaram embora 4,4 
milhões de seus funcionários. Dentre os que sobraram, só 10% 
mantiveram empregos de expediente integral. Os demais trabalham em 
meio expediente, têm contratos temporários ou são prestadores de serviço. 
Nos Estados Unidos, 34 milhões de trabalhadores são autônomos 
contratados por projeto, por hora ou por temporadas.80 Em diferentes 
proporções e em quase todo o planeta, os efeitos da reestruturação 
produtiva fazem-se sentir na forma, no conteúdo e nas relações de 
trabalho, e não é por outro motivo senão o de adaptar o trabalho ao 
mercado, jamais de valorizar o trabalhador, que todas estas 
transformações acontecem. 
 
79 Também conforme dados do DIEESE (2002), do total de quase 17 milhões de crianças de 10 a 14 
anos no Brasil, aproximadamente 3 milhões estavam trabalhando no ano de 1999. Em estudo 
anterior, abordamos a relação entre o trabalho e o lazer na vida de crianças trabalhadoras, 
sobretudo daquelas em situação de risco pessoal e social. Ver Mascarenhas (2003, especialmente 
capítulo 3). 
80 Informações obtidas a partir da matéria “O que está havendo com o seu emprego”, publicada pela 
revista Veja, em 7/2/1996. 
 79
Neste contexto, como mais uma dentre as várias mutações que 
se processam, o estratagema do trabalho por peça, forma pretérita de 
estruturação do trabalho, analisada por Marx (1973), reaparece com 
grande vigor. Diferentemente do assalariamento convencional estipulado 
por tempo, com valor negociado e estabelecido em convenção coletiva,81 a 
remuneração dos trabalhadores por peça varia conforme sua capacidade 
individual de produção. Predetermina-se, desta maneira, o tempo de 
trabalho necessário para a produção de cada mercadoria ou serviço, bem 
como o de seus preços. Assim, sob essa forma de serviço, ao trabalhador 
interessa produzir de modo o mais acelerado e intensivo possível, 
habitualmente prolongando sua jornada durante a noite e adentrando os 
finais de semana, facilitando ao capitalista majorar sua exploração. Mas 
apesar disto, o trabalhador se sente mais livre, uma vez que agora, 
aparentemente independente e autônomo, não precisa mais se submeter a 
um sistema estranho e opressor que organiza seu tempo de trabalho e seu 
tempo de vida a revelia de sua vontade. 
Ele se sente como um cidadão que trabalha no seu próprio local de 
produção, sem ninguém para vigia-lo ou lhe dar ordens. Ele se 
sente patrão de si mesmo, dono de seu próprio negócio. Sente-se 
proprietário. Igualmente livre, porque é ele quem organiza o 
processo de trabalho e estabelece, por iniciativa própria, a duração 
de sua jornada de trabalho. E mais: na condição de vendedor de 
“trabalho objetivado”, sente-se um verdadeiro comerciante, 
parceiro de seus antigos empregadores (TEIXEIRA, 1998, p. 72). 
Estamos, portanto, ante a seguinte situação: de um lado, sob 
uma forma de organização do trabalho baseada no fornecimento de 
mercadorias, os trabalhadores, agora metamorfoseados em produtores 
 
81 A convenção coletiva é o termo resultante de um processo de negociação firmado entre um ou 
mais sindicatos representativos dos trabalhadores com um ou mais entidades patronais. 
 80
independentes, dominados pelo sentimento de liberdade, propriedade e 
autocontrole de si mesmos, não mais se defrontam com o capitalista como 
representantes de interesses antagônicos, ou seja, representantes de 
classe, mas como simples comerciantes, isto é, como vendedores de um 
trabalho já materializado; de outro, para os empregados formais, o 
ecletismo das práticas contratuais de trabalho mistura, dilata, encolhe, 
derruba, muda, corta e transfigura tudo o que antes era sólido, certo e 
direito. É o capitalismo tentando se libertar das amarras que obstruem seu 
completo domínio sobre o tempo de toda a sociedade. 
Mas a despeito de todo esse processo de exacerbação das 
estratégias de extração de sobretrabalho e procura de lucro, os conceitos 
deócio criativo, de sociedade pós-industrial, de sociedade do conhecimento, 
de civilização do lazer, de fim do trabalho, de adeus ao proletariado, de 
cognitariado etc., dão a entender e insistem que a estrutura de exploração 
capitalista foi superada, entretanto, como bem adverte Frigotto (1995), sem 
que se tenham sido superadas as próprias relações capitalistas. Vale dizer, 
portanto, que o desenvolvimento das forças produtivas, neste estágio do 
capitalismo, não tem redundado na melhoria das condições de vida e bem-
estar geral da população, muito menos na criação de um tempo livre como 
possibilidade efetiva de humanização e emancipação, com o atendimento 
multilateral das necessidades físicas e intelectuais do indivíduo. Ao 
contrário, conforme lembra Antunes (1999), as condições de desefetivação, 
de desrealização, de brutalização e de sofrimento a que está submetida a 
classe-que-vive-do-trabalho82 são ainda maiores do que aquelas antes 
vivenciadas. 
 
82 A expressão classe-que-vive-do-trabalho, cunhada por Antunes (1999), procura dar validade 
contemporânea à noção de classe trabalhadora, englobando todos aqueles que vendem sua força de 
trabalho. Incorpora desde o proletariado industrial, os trabalhadores rurais, os assalariados sem 
carteira, os trabalhadores por conta própria, os prestadores de serviços etc., até os desempregados, 
excluindo-se os gestores e altos funcionários de grandes empresas, os detentores de capital que 
vivem da especulação e dos juros, os pequenos empresários e a pequena burguesia proprietária. 
 81
Deste modo, as respostas produzidas para crise experimentada 
pelo capital têm levado as pessoas a trabalharem cada vez mais, sendo 
responsável, portanto, por um “nítido processo de intensificação do 
trabalho, com o consequente aumento da insegurança no emprego, do 
stress e das doenças decorrentes da atividade laborativa” (ANTUNES, 
1999, p. 72). Não sem propósito, ao passo que tentam colar à imagem do 
capitalismo alguns traços de humanidade, no contexto da denominada 
“empresa cidadã”, multiplicam-se os ditos programas de lazer e qualidade 
de vida, implementados durante o próprio expediente de trabalho como 
medida de precaução e combate ao stress83. Com a alegação de suavizar o 
cansaço imposto pelas rotinas do trabalho, das férias fragmentadas84 à 
ginástica laboral85, os gestores do capital se apressam por apresentar as 
suas armas. Sim, doenças como a LER, a DORT, a depressão86 etc., 
constituem um sério problema para a humanidade, e por isso reclamam 
nossa atenção. Contudo, a responsabilidade por tais enfermidades tem 
geralmente recaído sobre o indivíduo que, para enfrentar os desafios desta 
 
83 Como lembra Inácio (1999), stress foi o estrangeirismo encontrado para substituir nominalmente 
o sofrimento, a frustração, a insatisfação, a ansiedade e o medo provocados pelas novas formas de 
gerenciamento e organização do trabalho, com seus ritmos e processos cada vez mais 
intensificados. Para saber mais sobre as doenças do trabalho, ver Dejours (1992). 
84 Constam na reportagem “Guia para usar 20 minutos de férias”, publicada na revista Veja, de 
9/5/2001, as seguintes dicas e argumentos para nos convencer das vantagens das férias 
fragmentadas, em substituição às tradicionais férias de 30 dias: podemos dominar a arte de 
cochilar, adotar uma planta, virar o “rei dos passatempos”, ser grandes apreciadores de comidas 
rápidas, viajar o mundo pela internet, criar nossos próprios jogos de caça-palavras e adquirir o 
hábito da escrita em companhia do nosso “querido diário”. 
85 A matéria “Empresas incentivam as folgas durante expediente”, do jornal Folha de São Paulo, de 
16/12/2001, apresenta algumas corporações que já tomaram a iniciativa de dar uma “folga” aos 
seus funcionários através da oferta da ginástica laboral. Podemos dizer que a ginástica laboral surge 
como uma proposta que se adequa muito bem às finalidades do capital, ocupando os intervalos de 
trabalho e convertendo-os em ganho de produtividade, uma vez que se preocupa em melhor 
condicionar a aptidão física do trabalhador, potencializando sua capacidade produtiva, conforme 
Sousa (2002), apresentando-se como uma nova tecnologia de organização do trabalho. 
86 Preocupada com a vida produtiva dos trabalhadores, a OMS aponta a depressão grave como a 
principal causa de incapacidade do planeta. Segundo pesquisa realizada pela OMS constante da 
matéria “Sem medo de enfrentar a dor”, do jornal O Popular, de 6/7/2004, os transtornos psíquicos 
respondem por 31% de anos de vida saudável perdidos por incapacidade, sendo que a depressão é, 
sozinha, responsável por 12% dessas perdas. 
 82
época, sem poder questionar as condições de trabalho a que está sujeito, 
vê-se frequentemente estimulado a otimizar seus parcos momentos de 
lazer.87 
Conforme esta mesma lógica, talvez por estarmos vivendo 
naquele que, convencionalmente, já vem sendo denominado o século do 
estresse88, nunca se tenha falado tanto em ócio, turismo, lazer, diversão e 
entretenimento como nos dias de hoje. De igual maneira, talvez por termos 
cada vez mais tempo de trabalho, nunca se tenha falado tanto em tempo 
livre como agora. Mas o que fazer então com tão pouco tempo livre? Como 
gastá-lo? Como se divertir? Como se comportar no lazer? O próprio capital 
responde. “Além de controlar o corpo e a mente dos trabalhadores por 
meio da gerência científica (...), a sociedade administrada também controla 
as conquistas proletárias sobre o tempo de descanso, ou o chamado tempo 
livre” (CHAUÍ, 1999, p. 48). As práticas hegemônicas do turismo, do 
esporte, do lazer e as diversas formas de entreter-se, estruturam-se de 
acordo com as exigências e conveniências do capitalismo. 
Nesta vertente, a acentuação dos processos de opressão e 
exploração, bem como da exclusão de mais e mais pessoas do mercado de 
trabalho, articuladas ao individualismo, à violência e às formas 
contemporâneas de estranhamento que se processam fora da esfera 
produtiva, no terreno do consumo, conduzem-nos à conclusão de que uma 
vida dotada de sentido no espaço reprodutivo fora do trabalho – ou seja, no 
 
87 Segundo Adorno (1995, p. 73), para que depois se possa trabalhar melhor, o tempo livre não deve 
lembrar em nada o trabalho. “Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre. 
Por baixo do pano, porém, são introduzidas, de contrabando, formas de comportamento próprias ao 
trabalho, o qual não dá folga às pessoas”. Todavia, atualmente, este contrabando parece não ser tão 
mascarado assim, uma vez que a opção pela atividade de lazer é muitas vezes orientada, 
justamente, por sua eficácia quanto ao efeito compensatório capaz de produzir. Não por acaso, 
entidades como o SESI, já buscam na ISO 9001/2000, norma certificadora de qualidade de 
produtos e serviços, validação e reconhecimento para seus programas de lazer. Ver Fonseca (2002). 
88 Conforme artigo de M. N. Lipp, intitulado “Depressão, DORT e estresse rondam o novo século”, 
publicado no jornal Folha de São Paulo, de 26/5/2002. 
 83
tempo livre –, só é possível quando a vida for igualmente cheia de sentido 
no espaço do trabalho (ANTUNES, 1999).89 Entretanto, sob a prevalência 
das atuais formas de sociabilidade, o tempo fora do trabalho também se 
subordina à lógica do capital, pois as experiências do tempo livre se 
restringem, de um lado, às necessidades do descanso e da acumulação de 
novas energias,90 uma funcionalidade hoje secundarizada para aquela que, 
de outro lado, tornou-se a pedra angular do lazer no capitalismo avançado, 
a promessa da felicidade dada pelo estímulo à fruição e gozo das relações 
feitichizadas de consumo. 
Enfim, ante o prolongamento da jornada, a intensificação do 
trabalho e a aceleração dos ritmos e processos que imprimem movimentoà 
circulação econômica, fenômenos impostos pela reestruturação produtiva, 
a definição de “um tempo e lugar certo para tudo”, referência sobre a qual 
estabelecemos nossas rotinas, necessariamente se altera, fundando novas 
relações e motivando uma imensa reviravolta na direção das práticas 
culturais (HARVEY, 2000, p. 198). Ao passo que os limites e fronteiras que 
antes demarcavam com certo grau de nitidez os períodos de tempo livre do 
final do dia, do fim de semana, do fim de ano – ou seja, as férias – e do 
final da vida – isto é, da aposentadoria – são também flexibilizados,91 os 
 
89 Assim como já fizemos em texto anterior, chamamos atenção para o fato de que ao concordarmos 
com Antunes (1999), quando afirma que uma vida carregada de sentido fora do trabalho pressupõe 
uma vida igualmente dotada de sentido dentro do trabalho, não estamos negando o princípio da 
contradição. Perpassado por relações de hegemonia, o lazer pode sim se apresentar como 
importante força de reorganização da vida social, permitindo, desde já, sentido para a vida fora do 
trabalho. Ver Mascarenhas (2001a). 
90 Interessante dizer que naquilo que se refere ao descanso e à acumulação de novas energias 
através do sono, conforme indica pesquisa realizada pela Unifesp, divulgada pela reportagem 
“Dormindo em pé”, da revista Veja, de 17/11/1999, que os brasileiros estão dormindo cada vez 
menos. Com a crescente privação do sono, é comum para muitas pessoas dormir de olhos abertos, 
por períodos de até trinta segundos, sem se dar conta. São o que os médicos chamam de episódios 
de micro-sono. Em tempos de reestruturação produtiva, até o sono foi flexibilizado. 
91 Faz-se necessário dizer aqui que, ao admitirmos a flexibilidade atual dos períodos de tempo livre, 
assinalados por Dumazedier (1999), não estamos invalidando por completo tal classificação, muito 
menos acreditando que a oposição entre tempo de trabalho e tempo livre, tão cara aos 
trabalhadores, tenha sido já superada, conforme, dente outros, sugerido por Bramante (1998). 
 84
lapsos temporais que passam a ser dispensados ao lazer, agora sem um 
contorno mais preciso, ficam cada vez mais curtos, quase sempre 
fragmentados, descontínuos, incertos e, para muitos, inexistentes. Quando 
raramente ou rapidamente ocorrem, nada mais conta a não ser o desejo e 
a vontade imediatos. Deixando-se seduzir, o indivíduo não resiste, curva-
se ao prazer e ao consumo instantâneo dos objetos de fruição 
hodiernamente despejados no mercado. 
3. A sociedade involucral 
Para além do aumento da taxa de exploração do trabalho, dada 
por uma recombinação das formas de extração da mais-valia absoluta e 
mais-valia relativa, com a consequente diminuição do tempo livre, um 
outro fator decisivo que corrobora para a aceleração dos ritmos e 
processos de vida e para a compressão do espaço-tempo92 na sociedade 
contemporânea, contribuindo também para a afirmação da felicidade e do 
prazer efêmeros do consumo imediato, é a taxa decrescente do valor de uso 
das mercadorias. Segundo Mészáros (2002), trata-se este de um 
mecanismo histórico ao qual o capitalismo deve, em grande parte, o mérito 
por seu desmesurado crescimento. Valendo-se deste artifício, ao se reduzir 
o valor de uso ou durabilidade de uma determinada mercadoria, o 
capitalista consegue agilizar seu ciclo reprodutivo, o que, nos dias atuais, 
 
92 A compressão do espaço-tempo no mundo capitalista se deve, também, como destaca Harvey 
(2000), ao desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte envolvidos na produção e no 
circuito da circulação das mercadorias, aumentando os poderes de flexibilidade e mobilidade do 
capital, o que tem influenciado decisivamente a desterritorialização das culturas, transformando o 
mercado-mundo num grande “empório de estilos”. No campo do lazer, embora a imagem de lugares, 
espaços e eventos tornem a experiência simulada de tudo aquilo que o mundo contém acessível a 
um número significativo de pessoas, o processo de “aniquilação” do espaço pelo tempo, parece ter 
mesmo implicações mais diretas é sobre as práticas de turismo, com a desmedida expansão do 
setor. Conforme estimativas da OMT, divulgadas pela reportagem “Número de turistas deve dobrar 
até 2020”, do jornal Folha de São Paulo, de 11/7/2000, o descontrole e a explosão do turismo já 
coloca sob risco inúmeras populações e localidades, constituindo-se também em séria ameaça para 
os patrimônios artísticos, culturais e naturais da humanidade. 
 85
tem resultado em descarte e obsolescência em escalas impressionantes, 
com a produção generalizada do desperdício. 
Vejamos mais de perto então como funciona o mecanismo de 
redução do valor de uso das mercadorias. Na posse de uma determinada 
quantia em dinheiro, o capitalista tem de comprar uma mercadoria por um 
certo valor, vendê-la pelo seu valor, e, apesar disso, conseguir, ao término 
deste processo, mais dinheiro do que empregou. Mas como se opera este 
milagre? Nosso possuidor de dinheiro deve encontrar, no mercado, uma 
mercadoria especial com a propriedade particular de ser, ela própria, fonte 
de valor, qual seja: a força de trabalho. Deste modo, o capitalista pega o 
seu dinheiro e compra determinadas mercadorias, ainda sob a forma de 
matéria-prima. Pelo emprego da força de trabalho por ele contratada, 
combinado à utilização dos meios técnicos necessários, submete-as à 
transformação, produzindo, portanto, novas mercadorias, vendendo-as no 
mercado e conseguindo um acréscimo do dinheiro investido. Este feito só é 
possível porque a remuneração dos proprietários da força de trabalho 
corresponde somente ao valor dos meios necessários à sua produção e 
reprodução, apropriando-se, o capitalista, de todo o valor excedente. Esta é 
o que Marx (1971a) chama de fórmula geral do capital. 
Ocorre no interior desta fórmula que, quanto menor for a 
distância temporal que vai do exato momento em que o capitalista empata 
uma soma de dinheiro na produção até quando ele consegue vender a 
mercadoria produzida, possuindo agora maior valor, mais rápido será o 
ciclo do capital. Considerado não como uma operação isolada, mas sim 
como um processo que continuamente se reproduz, este ciclo equivale, 
precisamente, como ensina Marx (1973), à rotação do capital. O tempo 
desta rotação compreende o tempo de produção associado com o tempo de 
circulação, findando com a troca da mercadoria. Esta soma resulta, 
portanto, no tempo de giro do capital. Desta feita, quanto mais dinâmica a 
 86
rotação, menor o tempo de giro e mais rápida a valorização do capital, 
maior será o lucro do capitalista. 
Uma vez que a intensificação da concorrência intercapitalista 
reclama a produção de mercadorias cada vez mais baratas e competitivas 
no mercado globalizado, é reduzida ao máximo a sua utilidade. Não por 
outro motivo, “em seu sentido e tendência mais gerais, o modo de 
produção capitalista converte-se em inimigo da durabilidade dos produtos. 
(...) As empresas, em face da necessidade de reduzir o tempo entre 
produção e consumo, (...) incentivam ao limite essa tendência” (ANTUNES, 
1999, p. 51). Da mesma maneira que o prolongamento da jornada e a 
intensificação do trabalho ajudaram a frear queda das taxas de lucro 
imposta pelo esgotamento do modelo de acumulação fordista, o recurso 
contingencial para a sobrevivência do sistema de decréscimo do valor de 
uso das mercadorias também se manifesta como uma resposta do capital à 
sua crise estrutural, contribuindo, sobremaneira, para a aceleração e 
expansão da produção. 
Estamos vivendo a plenitude da sociedade involucral, geradora do 
descartável e do supérfluo. [...] Na presente fase de intensificação 
da taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias, 
visando aumentar a velocidade do ciclo reprodutivo do capital, [...] 
o apregoado desenvolvimentodos processos de “qualidade total” 
converte-se na expressão fenomênica, involucral, aparente e 
supérflua de um mecanismo produtivo gerador do descartável e do 
supérfluo, condição para a reprodução ampliada do capital e de 
seus imperativos expansionistas e destrutivos. (ANTUNES, 2002, 
p. 35-38). 
Por uma questão de sobrevivência no mercado-mundo, 
necessitando ganhar competitividade no seu ramo, os capitalistas 
desencadeiam um processo que é o da redução ao máximo dos ciclos de 
vida útil dos produtos e serviços. Nesta renovada sociedade do consumo – 
 87
isto é, a sociedade involucral ou a própria sociedade do desperdício –, 
passa-se a consumir artificialmente e em enorme velocidade uma grande 
quantidade de mercadorias, muitas das quais anteriormente tidas como 
bens duráveis, agora enviadas prematuramente e aos montes, muito antes 
do término de sua vida útil, à indústria do lixo e da reciclagem 
(MÉSZÁROS, 2002). Não obstante ao prejuízo e ação degradante que 
causam, com implicações irreversíveis para a sustentabilidade da relação 
metabólica entre homem e natureza, a superfluidade, o desperdício e a 
destrutividade revelam-se hoje como necessidade imperativa para a 
reprodução ampliada do capital. 
Na fase de intensificação da taxa de utilização decrescente do valor 
de uso das mercadorias, necessária para a reposição do processo 
de valorização do capital, a falácia da qualidade total, tão 
difundida no “mundo empresarial moderno”, na empresa enxuta 
da era da reestruturação produtiva, torna-se evidente: [...] quanto 
mais “qualidade” as mercadorias aparentam (e aqui aparência faz 
diferença), menor tempo de duração elas devem efetivamente ter. 
[...] Não falamos aqui somente dos fast foods (do qual o Mc 
Donalds é exemplar), que despejam toneladas de descartáveis no 
lixo, após um lanche produzido sob o ritmo seriado e fordizado, de 
qualidade mais que sofrível. Poderíamos lembrar o tempo médio de 
vida útil estimada para os automóveis modernos e mundiais, cuja 
durabilidade é cada vez mais reduzida (ANTUNES, 1999, p. 50-
51). 
A aparente e falsa qualidade e as diversas técnicas de diminuição 
do tempo de uso das mercadorias, encurtando deliberadamente sua vida 
útil, é algo que vem sendo discutido também, como assinala Haug (1997), 
sob o conceito de obsoletismo artificial ou obsoletismo planejado. De um 
lado, as mercadorias já saem da fábrica com uma espécie de detonador, 
um relógio de contagem regressiva que dá início à sua destruição depois de 
 88
um tempo devidamente pré-calculado, a obsolescência embutida.93 De 
outro, os esforços de manipulação e propaganda concentram-se no 
descarte antecipado de objetos ainda em condições de perfeita utilização. 
Esta técnica, da obsolescência prematura, é bem mais sofisticada. 
“Mediante a mudança periódica da aparência da mercadoria, ela diminui a 
duração dos exemplares do respectivo tipo de mercadoria ainda atuante na 
esfera do consumo (...) Largue o velho! Pegue o novo!” (HAUG, 1997, p. 53-
54). Ditando novas necessidades a partir da moda, sateletizada pelo alto, 
entra em cena a inovação estética da mercadoria, que é justamente a 
beleza que se desenvolve a serviço do domínio sobre as pessoas a ser 
exercido pela aparência involucral das mercadorias. 
Quando a produção não tem mais como objetivo principal a 
utilidade, mas a vendabilidade dos mais variados bens e serviços – isto é, 
tendo em vista que a necessidade, a qualidade e o uso cedem lugar à 
expansão da riqueza mercantilizada como finalidade quase que exclusiva 
da produção –, e quando a taxa de utilização decrescente assume a 
posição de domínio na estrutura capitalista de metabolismo social –, “a 
aparência estética, o valor de uso prometido pela mercadoria, surge 
também como função autônoma no sistema de compra e venda. O valor de 
uso estético prometido pela mercadoria torna-se então instrumento para 
se obter dinheiro” (HAUG, 1997, p. 27). Assim, sob o império da estética 
reificada, o conhecimento sensível e a beleza agregam-se às mercadorias 
servindo à pura realização de seu valor de troca, buscando estimular no 
consumidor o desejo de posse e motivá-lo à compra. Toda necessidade 
 
93 Atualmente, como aponta Antunes (1999, p. 51), um dos exemplos mais emblemáticos deste tipo 
de obsolescência, vem da indústria de computadores. Com a frequente inovação dos sistemas 
computacionais, “os capitais não têm outra opção, para sua sobrevivência, senão inovar ou correr o 
risco de ser ultrapassados pelas empresas concorrentes, conforme o exemplo da empresa 
transnacional de computadores Hewlett Packard, que com a inovação constante de seu sistema 
computacional reduziu enormemente o tempo de vida útil de seus produtos”. 
 89
possível ou imaginável do homem sensível torna-se, portanto, sua própria 
fraqueza. 
Toda a necessidade constitui uma oportunidade para se aproximar 
do vizinho, com amizade fingida, e lhe dizer: “caro amigo, te darei o 
que precisas, mas conheces a conditio sine qua non; sabes com que 
tinta terás de escrever para mim a tua assinatura; irei burlar-te 
enquanto te causo prazer”. O produto remete às mais pervertidas 
extravagâncias do vizinho, exerce o papel de alcoviteiro entre ele e 
suas necessidades, desperta nele apetites patológicos, fiscaliza 
todas as fraquezas, para depois exigir o pagamento por este 
serviço amoroso (MARX, 2001a, p. 150). 
No sentido econômico, as mercadorias são criadas na produção 
capitalista à imagem e semelhança da ansiedade dos consumidores. 
Imagem que será divulgada e renovada, de tempo em tempo, pela 
propaganda, doravante, separada do corpo da mercadoria. Um verdadeiro 
bombardeio de estímulos patrocinados pela publicidade e pela mídia, 
voltam-se cada vez mais para a corrupção de gostos, desejos, prazeres e 
alegrias, exaltando as mudanças no invólucro e na aparência das 
mercadorias, o que eleva, sobremaneira, o seu poder fetichizante de 
sedução. Uma nova imagem não significa outra coisa senão uma nova 
moda e uma nova necessidade. A essência da inovação estética consiste, 
justamente, na caducidade do que já existe, incitando sua dispensa e 
eliminação antecipada, a fim de libertar a produção capitalista das 
limitações impostas pelo consumo dado – isto é, pré-existente –, 
estimulando, dentro de uma nova e mais dinâmica reciprocidade, a 
demanda conduzida pela oferta. 
Perseguindo tal objetivo, várias empresas de consultoria em 
marketing e pesquisas de mercado vêm se especializando em detectar as 
tendências de consumo, antecipando o modo como vamos viver, trabalhar 
e nos divertir nos próximos anos. Com informações desse tipo, as 
 90
indústrias – do fabricante de alimentos, roupas, serviços de lazer aos 
produtores de Hollywood – podem desenvolver projetos baseados em 
determinada tendência e faturar alto com a antecipação de novos 
produtos.94 Não obstante ao papel da publicidade, que foge inteiramente à 
idéia de informar, voltando-se cada vez mais para a manipulação, a 
própria imagem, descolada da mercadoria, torna-se também uma 
mercadoria. Transformando incessantemente o mundo das coisas, com 
renovadas promessas de utilidade, o artifício do tratamento estético 
dispensado à mercadoria pela indústria cultural globalizada, o que significa 
o aprimoramento do invólucro como uma função de estímulo e incremento 
à venda, expressa a posição de relevo que ocupa a aparência no 
capitalismo como indutora do sistema de necessidades. 
Nesse contexto, o aspecto sensível, torna-se portador de uma 
função econômica: o sujeito e o objeto da fascinação 
economicamente funcional. Quem domina a manifestação, domina 
as pessoas fascinadas mediante os sentidos. A inovação estética 
como portadora da função de reavivar a procura torna-se uma 
instância de poder e de consequências antropológicas, isto é, ela 
modifica continuamente a espéciehumana em sua organização 
sensível: em sua organização concreta e em sua vida material, 
como também no tocante à percepção, à estruturação e à 
satisfação das necessidades (HAUG, 1997, p. 57). 
Mas vale ainda dizer que toda a obsolescência planejada – seja 
ela embutida ou prematura – não se restringe somente aos produtos da 
família de duráveis. Para além do estímulo ao consumo ampliado de 
geladeiras, televisores, máquinas de lavar, automóveis etc. – e aí vale 
lembrar que hoje todo esse leque de produtos possui menor tempo de vida 
 
94 A título de exemplo, vale a consulta à reportagem “Faith Popcorn: a guru do marketing”, 
publicada pela revista Veja, em 13/2/2002. 
 
 91
útil do que já possuiu em outro momento histórico, quando da vigência do 
regime fordista –, as necessidades de expansão da produção capitalista são 
ainda satisfeitas de duas outras maneiras habitualmente articuladas. De 
um lado, abrem-se novos mercados em diferentes regiões e, de outro, 
atraem para esfera do consumo algo mais que o chamado consumo básico, 
tornando disponível, para segmentos com menor poder de compra, 
mercadorias que antes estavam reservadas apenas aos estratos superiores 
da população. Combinando expansão extensiva, pela abertura de novos 
mercados, com expansão intensiva, induzida pelo mimetismo dos “de 
baixo” pelos hábitos e estilos de vida divulgados a partir dos centros mais 
dinâmicos do mercado-mundo, a internacionalização do lixo – isto é, a 
internacionalização da aparência, do invólucro, do desperdício, da fluidez 
etc. – se propaga a passos largos. 
Na última década, como expressão deste movimento de 
diversificação e ampliação do consumo no Brasil daquilo que é 
considerado não essencial, apesar da queda do rendimento médio, uma 
incrível mudança nos comportamentos e hábitos de consumo pôde ser 
notada entre as famílias brasileiras. Para além da TV, do rádio, da 
geladeira etc., novos produtos vêm conquistando o seu lugar nos 
domicílios, como, dentre outros produtos, o forno de microondas, o 
videocassete, o microcomputador e o aparelho de ar-condicionado. Afora o 
descarte, quando uma família, ao comprar um equipamento novo, acaba 
doando o antigo à outra ou alimentando a revenda de usados, e a queda 
dos preços, as explicações dadas para essa mudança podem incluir ainda 
a composição da renda familiar, uma vez que a necessidade do trabalho 
agora se estende para toda família.95 Ocorre que, de um jeito ou de outro, 
grupos inteiros de mercadorias são arrastados para a produção em escala, 
 
95 Dados obtidos a partir da PNAD/IBGE de 2001. 
 92
conferindo fabuloso impulso à industria da moda, do turismo, do esporte, 
do entretenimento, do lazer etc. 
A título de exemplo, somente a indústria do esporte, no Brasil, 
conforme informações referentes à pesquisa encomendada pela CBV a FGV 
(KASZNAR & GRAÇA FILHO, 2002), movimentou sozinha, de 1996 a 2000, 
R$ 24 bilhões por ano, alcançando o crescimento médio de 12,34% – no 
setor de surf wear esta taxa chega a 33% –, enquanto o PIB brasileiro 
avançou à taxa média de apenas 2,25% verificados no mesmo período. 
Metade desta soma é atribuída à indústria de artigos esportivos, como 
roupas, calçados e equipamentos. Outra parte advém dos serviços mais 
ligados ao esporte propriamente dito, como sua prática em clubes e 
academias, arrecadação em estádios e outros espaços, marcas e direitos de 
imagem, marketing e comunicação esportiva. O restante diz respeito ao 
valor gerado pelo setor através de gastos com atletas e manutenção de 
infraestrutura. Mas se o crescimento desta indústria já é acelerado, 
argumenta-se que o seu potencial ainda continua muito alto, tendo em 
vista que apenas 1,1% da população economicamente ativa possui o 
hábito da prática regular de esporte. 
Dentre os muitos desenvolvimentos da arena do consumo, dois 
têm particular importância. A mobilização da moda em mercados 
de massa (em oposição aos mercados de elite) forneceu um meio 
de acelerar o ritmo do consumo não somente em termos de 
roupas, ornamentos e decoração, mas também numa ampla gama 
de estilos de vida e atividades de recreação (hábitos de lazer e de 
esporte, estilos de música pop, videocassetes e jogos infantis etc.). 
Uma segunda tendência foi a passagem do consumo de bens para 
o consumo de serviços – não apenas serviços pessoais, comerciais, 
educacionais, e de saúde, como também de diversão, de 
espetáculos, eventos e distrações. O “tempo de vida” desses 
serviços (uma visita a um museu, ir a um concerto de rock ou ao 
 93
cinema, assistir a palestras ou freqüentar clubes), embora difícil 
de estimar, é bem menor do que o de um automóvel ou de uma 
máquina de lavar. Como há limites para a acumulação e para o 
giro de bens físicos [...], faz sentido que os capitalistas se voltem 
para o fornecimento de serviços bastante efêmeros em termos de 
consumo (HARVEY, 2000, p. 258). 
Agora, se boa parte dos bens e serviços culturais já haviam sido 
transformados em mercadorias, ao passo que se desenvolve um novo 
conceito de obsolescência, a obsolescência instantânea, no mercado-
mundo do desperdício, a produção e distribuição capitalista penetram 
setores os mais diversificados, ampliando o leque de variáveis 
expansionistas da indústria cultural globalizada. Até mesmo aqueles 
setores tidos anteriormente como intocáveis, antimercantis, desde a 
educação até a religiosidade, dentre outros tantos exemplos, são 
transformados em meros objetos de negócio.96 “As mesmas coisas que até 
então eram transmitidas mas nunca trocadas; dadas mas nunca vendidas; 
adquiridas mas nunca compradas – virtude, amor, opinião, ciência, 
consciência etc – tudo, enfim, passou ao comércio” (MARX, 2001b, p. 31). 
No estágio atual do capitalismo avançado, toda e qualquer coisa, seja ela 
material ou simbólica, é levada ao mercado. Mas fica aí denunciada a 
 
96 No Brasil, a presença do setor privado na educação não é um fenômeno recente, todavia como 
concessão e sob o controle estatal. Ocorre que, com a expansão desenfreada deste setor, cada vez 
mais os serviços educacionais têm se subordinado à lógica da circulação de mercadorias. Somente a 
título de exemplo, movimentando cerca de R$ 20 bilhões, segundo dados da matéria “As 
multinacionais do ensino”, da revista Istoédinheiro, de 18/2/2003, o mercado educacional brasileiro 
é hoje um dos mais atrativos do mundo. Não por acaso, nos acordos firmados no quadro da OMC, 
em particular no Acordo Geral de Comércio e Serviços, estabeleceu-se que todos os serviços devem 
submeter-se às normas da organização, inclusive aqueles ligados ao meio-ambiente, saúde e 
educação. Já sobre outro mercado, o de bens de salvação, é emblemático o exemplo do segmento 
evangélico que, como já vimos, reúne atualmente cerca de 26 milhões de consumidores, perto de 
15% da população brasileira. Bastante ilustrativo, portanto, é o caso da chamada “rua dos 
evangélicos”, em São Paulo-SP. Conforme conta a reportagem “Atrás da Sé, lojas evangélicas 
dominam rua”, publicada pelo jornal Folha de São Paulo, em 9/12/2002, o local figura entre um 
dos 19 clusters – isto é, uma espécie de nicho de mercado com endereço fixo – que o BID, através do 
Programa de Reabilitação do Centro, sob responsabilidade da prefeitura municipal, pretende 
financiar, a pretexto de apoiar o desenvolvimento da capital do consumo no país. 
 94
preferência por aquelas mercadorias que possuem as “virtudes” da 
descartabilidade rápida e consumo imediato. 
Na mesma direção da superfluidade, ao penetrar também a 
relação entre o homem e sua diversão, como nunca, o capital converte a 
busca do prazer – incluso aí tal busca corporificada ou coisificada nas 
práticas de lazer – num poderoso instrumento para sua autovalorização 
(HAUG,1997). Na sociedade involucral, na sociedade dos descartáveis, 
com a mesma velocidade que valores, comportamentos, estilos e modos de 
vida caem em desuso, os gostos, desejos e toda a parafernália de objetos 
que envolvem as práticas de lazer, de tempo em tempo, também vão ao 
“lixo”. Isto sem falar da instantaneidade com que podem ser consumidas 
as próprias práticas. Seguindo esta lógica, de um serviço público a um 
serviço cada vez mais privatizado, como a chave na fechadura, o lazer se 
converte numa mercadoria singular, encaixando-se perfeitamente no 
recorte das novidades e perspectivas abertas pela taxa decrescente do 
valor de uso, especialmente, aquelas despertadas pela inovação estética, 
pela obsolescência prematura e pela obsolescência instantânea das 
mercadorias. 
4. Exclusão Social Clube 
No âmbito da economia, já conseguimos reunir uma série de 
elementos que nos permitem compreender como a superexploração do 
trabalho e a flexibilização da jornada, resultando no encurtamento ou 
fragmentação do tempo livre, articulados à utilização decrescente das 
mercadorias, com a aceleração do giro do capital, atuam como 
determinações basilares junto ao processo de mercantilização do lazer. 
Agora, adentrando o debate político que suscita esta dinâmica, 
procuraremos ampliar nosso campo de observação, trazendo a baila o 
 95
tema da desintegração dos direitos sociais. Isto implica avaliar o recuo 
participação estatal na definição, financiamento e implementação de 
políticas públicas setoriais de lazer, tendência que se vincula ao fim do 
Estado de Bem-Estar e avanço das teses neoliberais, quando princípios e 
valores como a competição, a liberdade de mercado e a conquista 
individual revelam-se como base para a orientação meritocrática da 
estrutura distributiva vigente. 
É certo que o sistema de regulação do Estado Social, o Welfare 
State, baseado no pacto entre capital e trabalho de inspiração social-
democrata que vigorou principalmente na Europa e nos Estados Unidos 
dos anos 1950 aos 1970 – no qual a população conseguiu atingir níveis 
mínimos, quando não satisfatórios, de bem-estar, tendo relativamente 
assegurado seus direitos de educação, saúde, esporte, lazer, habitação, 
emprego, seguridade social etc. –, nunca chegou de fato a existir na 
América Latina. Todavia, conforme destaca Torres (1995), os traços 
nacionalistas de algumas experiências de governo latino-americanas, 
somados à formação estatal com forte intervencionismo na sociedade civil, 
guardam pontos de coincidência com o modelo de Estado de Bem-Estar 
Social. Estas são características marcantes do Estado brasileiro da época, 
cujas políticas, diretrizes e ações, de cunho nacional-desenvolvimentista, 
exerceram uma importante função modernizadora da sociedade, ao passo 
que apoiaram também o crescimento do mercado interno, em certa 
medida, assegurando uma série de medidas de proteção à economia do 
país. 
Espelhando-se nas políticas de bem-estar implementadas nos 
países centrais, as ideologias e medidas de modernização e 
desenvolvimento, enormemente difundidas nos países subdesenvolvidos e 
periféricos da economia capitalista, serviam como promessa de melhoria 
das condições de vida, servindo de contrabando como parte da estratégia 
 96
de estruturação da hegemonia norte-americana no pós-2aguerra,97 e, ao 
mesmo tempo, rivalizando com a ameaça do socialismo real (FRIGOTTO, 
1995). Como resultado de uma longa batalha social, a conquista de 
direitos representou o reconhecimento do indivíduo como cidadão. Nesta 
perspectiva, ao lado dos direitos civis e políticos, os direitos econômicos, 
sociais e culturais passam a constar na agenda internacional, sendo 
considerados prerrogativa essencial de respeito à vida e à dignidade 
humanas. Figurando na Declaração Universal dos Direitos do Homem, 
aprovada em 1948 pela Assembléia Geral da ONU, o lazer, assim como a 
saúde, educação, habitação etc., passam a adquirir o status de direitos 
sociais básicos.98 Deste modo, a engenharia política capitalista permitiria, 
durante um bom tempo, a convivência pacífica entre crescimento da 
economia, ampliação do consumo dos assalariados e garantia de direitos, 
recompondo a estabilidade do sistema. 
Antes mesmo desta época, ao passo que o descanso de final de 
semana e as férias remuneradas já adquiriam base legal,99 fazia-se 
necessário indicar o modo como as horas de lazer do trabalhador deveriam 
ser utilizadas. Interessante notar, segundo registram Sussekind, Marinho 
 
97 A partir da década de 1950, com a preocupação de proteger e estender os domínios da “sociedade 
livre e democrática”, os EUA dão início a uma série de programas de cooperação internacional, 
cujos objetivos, pelo menos em tese, passavam pela ajuda ao desenvolvimento. Para N. Chomsky, 
citado por Frigotto (1995, p. 91), os instrumentos desta operação foram, justamente, os organismos 
supranacionais – ONU, OTAN, FMI, BID, UNESCO, OIT etc. –, considerados como os “novos 
senhores do mundo” ou o “poder no mundo de fato”. 
98 Cabe destacar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos constituiu-se apenas como uma 
recomendação. Nesta condição, segundo analisa Comparato (s.d.), tecnicamente, não tinha força 
vinculante. Neste sentido, com a finalidade de tornar juridicamente vinculantes os dispositivos da 
Declaração, a ONU conseguiu aprovar, em 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, 
Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil somente em 1992. 
99 Segundo Sussekind, Marinho e Góes (1952), o direito ao descanso semanal remunerado foi 
consagrado pela primeira vez em lei pela China, em 1919; seguida pelo México, em 1926; pela Índia, 
em 1942; Brasil, em 1943; e pela Colômbia, em 1945. Somente após a 2a grande guerra que este 
direito foi estendido aos trabalhadores de outras nações. Já o direito às férias remuneradas foi 
concedido inicialmente pela Áustria, em 1919. Em 1925, o número de países que reconhecem tal 
direito sobe para cinco; em 1930, para sete; em 1935, para quatorze; em 1939, para vinte e três; e, 
em 1948, este número praticamente dobra, elevando-se para quarenta. 
 97
e Góes (1952), que a Conferência Internacional do Trabalho, em 1924, o 
Congresso Internacional de Lazeres Operários, em 1930, e a reunião do 
comitê assessor do Conselho de Administração da OIT para a questão dos 
lazeres operários, em 1938, já esboçavam algumas indicações a fim de se 
guiar os trabalhadores para o correto emprego de seu tempo livre, mas é 
somente em 1949, por ocasião da Conferência de Técnicos em Recreação 
do Comitê de Correspondência da OIT, que algumas recomendações 
começam a ser mais bem detalhadas. Por seu turno, a Associação 
Internacional de Recreação, hoje WRLA, entidade assessora da ONU, 
elabora, em 1967, a Carta dos Direitos Humanos ao Tempo Livre, mais 
um documento que também acaba por influenciar definição de políticas 
para o setor. 
Enquanto isso, no Brasil, apesar da garantia jurídica de uma 
série de direitos trabalhistas – período mínimo de descanso, repouso 
semanal, feriados, intervalos para repouso e alimentação, férias, licenças 
etc. –, fixados em 1943, pela CLT, e não obstante às promessas de 
progresso abertas pelo discurso desenvolvimentista, como avaliava a CNI, 
em documento citado por Veronez e Liáo Jr. (2000, p. 4), a “incerteza de 
acirrada luta de classes incentivada pela guerra fria, parecia demonstrar 
que os empresários precisavam ir mais além da simples oferta de 
empregos, salários e qualificação profissional.” Dentro de uma concepção 
de valorização individual do trabalhador, a atenção dispensada às 
necessidades de lazer, dentre outros cuidados assistenciais, deveria 
constar então da pauta patronal, pois para a entidade, “era indispensável 
ganhar a luta ideológica no chão da fábrica, demonstrando a superioridade 
do capitalismo no dia-a-dia”(CNI apud VERONEZ & LIÁO JR, 2000, p. 4). 
Perseguindo a colaboração de classes e a formação técnico-moral dos 
trabalhadores, instituições como o SESI, conjuntamente com o SESC – 
criadas por força de lei em 1946 –, em substituição à intervenção estatal 
 98
direta, passariam a representar, como reconhece Requixa (1977), uma 
solução originalmente brasileira para a prestação de serviços e promoção 
de atividades de lazer, estendendo o seu acesso para significativa parcela 
da população urbana brasileira.100 
O SESC, [conjuntamente com o SESI,] em seu papel supletivo ao 
Estado, buscava integrar-se à ação do poder público, promovendo 
e ampliando suas bases de sustentação, na medida em que 
contribuiu com a política de modernização e racionalização da 
economia no final dos anos 60, preparando e munindo o 
trabalhador em seu tempo livre dos valores necessários ao 
aumento da produtividade e ao cultivo de uma sociedade 
integrada, na qual os conflitos são sublimados em favor do espírito 
comunitário101 que se ambicionava criar (SANT’ANNA, 1994, p. 48-
49). 
Portanto, o par representado pelo SESI e pelo SESC, evidente que 
auxiliados por sindicatos,102 entidades recreativas de classe e mais 
algumas instituições privadas, materializou-se como o principal 
responsável pela difusão e implementação das ações de lazer desenvolvidas 
no Brasil. Mas é preciso lembrar que o Estado não se manteve totalmente 
afastado deste processo. As atividades de lazer se configuraram como uma 
importante estratégia de órgãos ou organismos voltados para o esporte, a 
 
100 Conforme lembra Figueiredo (1991), vale destacar que o SESI e SESC, embora possuindo o 
estatuto jurídico de entidades de direito privado, foram organismos instituídos pelo Estado, que 
garantiu seu custeio ao fixar a contribuição compulsória no valor de 2% do total das folhas de 
pagamento da indústria e do comércio – imposto este arrecadado pela máquina administrativa 
estatal –, possibilitando assim o seu funcionamento e organização. 
101 Um dos programas mais emblemáticos desenvolvidos pelo SESC em favor do espírito comunitário 
foi justamente o da Ação Comunitária. Sobre os pressupostos da Ação Comunitária ou Animação 
Sócio-Cultural – um desdobramento da primeira – no Brasil, ver: Requixa (1973), Dumazedier 
(1980) e Marcellino (1994, 1996b). Em publicação anterior, tivemos a oportunidade de abordar tal 
proposta, levantando alguns questionamentos Ver Mascarenhas (2003, especialmente capítulo 1). 
102 Conforme aponta Sant’Anna (1994), nos anos 1970, como mais uma dentre as várias medidas 
visando o controle das lutas sociais, na perspectiva de cooptação das entidades de classe, o governo 
federal determina a produção de programas de lazer pelos sindicatos, concedendo empréstimos 
financeiros para a construção, reforma, ampliação ou aquisição de equipamentos cívicos-
recreativos. 
 99
cultura e a assistência social, em todas as esferas de governo.103 No caso 
específico da administração federal, conforme indica Requixa (1977), 
através do Conselho de Desenvolvimento Social, ainda na década de 1970, 
foram criados os Centros Sociais Urbanos, com 600 unidades distribuídas 
pelo país, localizadas, principalmente, na periferia das médias e grandes 
cidades, buscando, sobretudo, valer-se do lazer como elemento 
compensatório à deterioração das condições de vida decorrentes do 
desenvolvimento urbano-industrial verificadas entre as populações mais 
pobres. 
Uma outra iniciativa por parte do governo federal visando o 
incentivo e propagação do lazer pode ser localizada na criação de 
campanhas como o Esporte para Todos. Seguindo os princípios da 
educação permanente104, subjacentes à Carta Européia do Esporte para 
Todos, elaborada pelo Conselho da Europa, em 1975, o EPT brasileiro 
procurava dinamizar a prática de esporte de modo informal e massivo. 
Apostando na aquisição e desenvolvimento de hábitos saudáveis de lazer 
entre a população, objetivava-se cultivar o espírito esportivo e competitivo, 
imprescindível ao aumento da produtividade e ao desenvolvimento 
 
103 Para um melhor dimensionamento sobre a distribuição do público e do privado nas ações de 
lazer desenvolvidas à época, vale citar o levantamento realizado por Requixa (1977) das entidades 
participantes do 1o Encontro Nacional sobre Lazer, em 1975, no Rio de Janeiro-RJ, quando das 165 
instituições representadas, 64,6% eram privadas; 16,1% federais; 7,7% estaduais; 5,4% municipais; 
e as restantes, 6,2%, identificadas por diferentes tipos de dependência administrativa. 
104 Conforme críticas apontadas por Gadotti (1981) e Brandão (1984), os preceitos da educação 
permanente, preconizados pela UNESCO no início da década de 1970 – dos quais sobressaia a idéia 
da educação ao alcance de todos, presente durante a vida inteira, ministrada sob todas as formas 
possíveis, adaptada a todos os contextos e de acordo com a conveniência de cada um –, foram 
amplamente incorporados pelas autoridades educacionais brasileiras, alimentando o sonho do 
projeto nacional-desenvolvimentista em curso. Assim, como expressão da racionalidade técnico-
produtivista e mecanismo de dependência sócio-cultural, a educação permanente ambicionava 
integrar toda a educação ao sistema de produção industrial, o que somente poderia se conseguir 
através da capacitação-reprodução da força de trabalho e conciliação de forças opostas, o que 
pressupunha tanto o ensino complementar de emergência e a expansão de cursos 
profissionalizantes, como a despolitização da participação e decisão popular inerente ao 
colaboracionismo presente nas propostas para a promoção do desenvolvimento local dos níveis de 
vida das populações mais carentes, das comunidades mais pobres e das regiões subdesenvolvidas 
onde se implantavam os projetos de desenvolvimento e ação comunitária. 
 100
industrial, estimulando o uso do tempo livre com eventos esportivos, 
sempre afirmando valores como o sentimento cívico, a família, a 
comunidade, a vizinhança, a saúde etc. (SANT’ANNA, 1994). Deste modo, 
sob o pretexto da democratização e universalização das atividades físicas e 
desportivas, o direito ao esporte e o direito ao lazer apresentavam-se como 
importante instrumento de controle e garantia da chamada paz social, 
além de começar a forjar novos hábitos de consumo entre os adeptos 
desta campanha.105 
Percebe-se que por detrás da idéia de modernização e 
desenvolvimento, o que esteve na base da definição e implementação das 
políticas de lazer do nacional-desenvolvimentismo brasileiro, cujo espelho 
foi o Estado de Bem-Estar Social, para além da resposta às contradições e 
tensões em torno do controle da produção, aliada à promessa integradora 
como função econômica da educação, localizava-se a preocupação com o 
capital humano106, um conjunto de qualidades – saúde, conhecimento, 
atitudes, comportamentos, hábitos, valores, disciplina etc. – que, uma vez 
adquiridas pelos indivíduos, tenderiam a gerar a ampliação de sua 
capacidade de trabalho e a produtividade nacional. E não foi só isso. As 
despesas sociais através dos gastos públicos com educação, saúde, 
 
105 Uma análise mais específica sobre o EPT, bem como sobre o papel social que tal campanha 
cumpriu no contexto dos anos 1970, pode ser encontrada em Cavalcanti (1984). 
106 Conforme indica Frigotto (1995, p. 90), tal preocupação está alicerçada na “teoria do capital 
humano, que constitui o corpus ideológico e teórico de uma disciplina específica – Economia da 
Educação – que surge inicialmente nos Estados Unidos e Inglaterra, nos anos 60 e no Brasil, nos 
anos 70 – se estrutura no contexto das teorias de desenvolvimento ou ideologia desenvolvimentista 
do após II Guerra Mundial”. É bem verdade que no campo de estudos do lazer, a disciplina 
Economia do Lazernão chegou a se constituir, mas a influência que a teoria do capital humano 
exerce sobre a produção da área no Brasil é notória, podendo ser percebida, sobretudo, nas 
abordagens que Marcellino (1987) classificou como funcionalistas-utilitaristas. Nesta perspectiva, o 
pensamento de intelectuais do SESC, aqui representado por uma passagem localizada em Requixa 
(1980, p. 52), é tributário desta posição: “O intangível capital humano – a energia do homem, sua 
inteligência, sua competência e sua iniciativa – é a grande mola impulsionadora do 
desenvolvimento. Se é assim visualizada a educação, nada seria mas adequado que considerar-se, 
também, a importância do aproveitamento das ocupações do lazer, como instrumentos auxiliares, 
no vasto esquema educacional”. 
 101
esporte, lazer etc., constituíam uma espécie de salário indireto, liberando o 
salário direto para o consumo de bens duráveis (FRIGOTTO, 1999). 
Abertamente tratada como uma antimercadoria, a oferta do lazer, ao lado 
de outros serviços sociais, acabava por contribuir indiretamente com o 
capital. Ao passo que subsidiava os custos com a reprodução da força de 
trabalho, incrementava os níveis de produção e preservava o salário para o 
consumo em outras esferas. 
Ocorre que, como já tivemos a oportunidade de observar, os 
limites deste modelo fazem-se sentir logo no início da década de 1970, 
colocando em xeque a própria existência do Estado de Bem-Estar Social e 
dos regimes sociais-democratas, antecipando a defesa do mercado como 
regulador de todas as coisas e a implementação das políticas neoliberais 
que, no Brasil, ganham força somente a partir do início da década de 
1990.107 Assim, o projeto de desenvolvimento alçado ao modelo 
estatizante-intervencionista que vigorava até então cede lugar ao discurso 
modernizador-privatizante do Estado Mínimo, e as premissas liberalizantes 
da reforma administrativa passam a subordinar explicitamente as regras 
da política às leis de mercado, buscando reconfigurar toda a estrutura 
organizacional e institucional do antigo aparelho estatal. Não sem 
enfrentar resistências, os novos gestores de governo, em resposta às 
políticas de ajuste fiscal ditadas a partir do Consenso de Washington108, de 
um lado, apressam-se por diminuir os impostos e a taxação sobre o 
capital, enquanto, de outro, tratam de reduzir os gastos públicos e os 
 
107 A propagação das teses neoliberais, com seu modelo de Estado Mínimo correspondente, tiveram 
nos governos Thatcher, a partir de 1979, na Inglaterra, e Reagan, a partir de 1984, nos EUA, os 
seus grandes precursores. No Brasil, tal modelo tem suas origens fincadas no governo Collor, de 
1990 a 1992, mas somente se consolida a partir de 1994, com o governo FHC. 
108 A noção de Consenso de Washington, segundo argumenta Torres (1995, p. 124), “refere-se, em 
última instância, a um conjunto de instituições financeiras como o FMI, o Banco Mundial, o BID, o 
Export-Import Bank etc, todas elas localizadas em Washington (às vezes a poucos quarteirões de 
distância entre si como o Banco Mundial e o BID) e que seguem a mesma lógica e economia política 
neoliberal, propugnando o modelo de ajuste estrutural e de estabilização”. 
 102
investimentos em políticas sociais, colocando sob ameaça todos os direitos 
anteriormente conquistados.109 
Somente para ilustrar o expressivo corte realizado pelo governo 
federal com as políticas sociais nos últimos anos, podemos citar o 
orçamento para a infância e juventude que, dos R$ 49,4 bilhões gastos em 
1995, foi sucessivamente caindo, contando com 43,8 bilhões em 1996, 
37,5 bilhões em 1997, até chegar em 36,1 bilhões em 1998, registrando 
uma queda de aproximadamente 27% nos primeiros quatro anos de 
governo FHC.110 No geral, há que se constatar, através desta amostra, que 
os gastos sociais promovidos com recursos oriundos do Orçamento Geral 
da União ficaram ainda mais distantes das reais necessidades do povo 
brasileiro. Como resultado, engrossando as fileiras dos agora sem-direitos, 
a juventude sem-lazer111 deste país constitui uma evidência clara de como 
a desintegração dos direitos sociais atinge em cheio as promessas de 
equalização e justiça no atendimento às demandas e necessidades 
coletivas antes difundidas e parcialmente patrocinadas pelo Estado de 
Bem-Estar. 
Por outro lado, com o desmonte das políticas sociais, ou com a 
sua redução ao limite, criou-se um novo tipo de intervenção estatal, 
 
109 Vale mais uma vez lembrar, como salientam Ribeiro, Ferraro e Veronez (2001, p. 40), que é 
preciso considerar que, embora tenham prevalecido, no contexto do Estado de Bem-Estar, os 
interesses do capital, os direitos sociais devem também ser considerados como um avanço 
conquistado pela organização dos trabalhadores. “O Estado social, ainda que bastante criticado 
pela sua burocratização e pela individualização dos direitos, significou, em muitos casos, a 
universalização das possibilidades de acesso ao trabalho, à educação e ao lazer”. 
110 Orçamento referente a rubricas destinadas a ações que atingem única ou prioritariamente a 
infância e a juventude, obtido a partir do “Anuário dos Trabalhadores 2000-2001”, publicado pelo 
DIEESE, em 2002. Para saber mais sobre a redução e composição dos gastos sociais no governo 
FHC, ver CUT (2001). 
111 Os sem-lazer podem ser vistos aqui como aqueles setores da população que se encontram à 
margem do mercado de consumo e dos equipamentos de lazer, não tendo, também, esta 
necessidade devidamente atendida pelas políticas de governo. São, por exemplo, os milhares de 
jovens que nuca tiveram a oportunidade de ir ao cinema (15%), ao teatro (46%), a um show (29%), a 
um concerto (86%), a um espetáculo de dança (77%), ao museu (52%), a uma exposição fotográfica 
(72%), à um estádio de futebol (49%), ao circo (22%), ou mesmo, à biblioteca (40%), como já foi 
apontado em momento anterior do texto. 
 103
percebendo-se o estímulo ao investimento privado. No campo da cultura, o 
momento em que tal processo tem início é bem evidente. Conforme consta 
em relatório do Ministério da Cultura, as empresas privadas apresentaram 
um crescimento oscilante de 1990 a 1993, com investimentos variando 
entre R$ 8 milhões e R$ 19 milhões, gastos inferiores aos efetuados pelas 
empresas públicas nesse mesmo período. Em 1994, no entanto, as 
empresas privadas tiveram uma taxa recorde de crescimento anual, 
chegando aos 280%, ao passo que, de 1994 a 1996, os gastos anuais 
dessas empresas variaram entre R$ 53 milhões e R$ 68 milhões, ficando 
bem acima dos investimentos culturais realizados pelas empresas públicas 
no mesmo período. Segundo o relatório, a elogiável evolução do 
comportamento empresarial no setor foi justificada pela modernização das 
leis de incentivo à cultura, com o estabelecimento de uma recente e exitosa 
parceria entre o Estado e a indústria cultural, implementada, à época, pelo 
quadro das novas políticas culturais que começavam a ser desenhadas.112 
No âmbito específico do lazer, a retração da participação do 
Estado no financiamento e custeio de programas, espaços e equipamentos 
tem gerado alguns absurdos. O município de São Paulo, por exemplo, em 
2001, contou com R$ 29,7 milhões para serem gastos com seus 31 
parques públicos, valor que mal deu para pagar o relativo à manutenção e 
conservação. O saldo não podia ser diferente. Os 6 parques da região 
central foram os priorizados, o que resultou no sucateamento dos 25 
restantes, todos localizados na periferia e entorno da cidade. A solução 
encontrada para a revitalização destes últimos foi buscar o apoio da 
iniciativa privada. A proposta era para que empresas investissem nos 
 
112 Dados extraídos da pesquisa “Diagnóstico dos Investimentos na Cultura no Brasil”, 
encomendada pelo Ministério daCultura à Fundação João Pinheiro. Ver Brasil (1998). Já uma 
outra análise sobre as relações entre cultura e mercado no Brasil, abordando a polêmica das leis de 
incentivo à cultura, pode ser localizada em Coutinho (2000, especialmente capítulos 1 e 2). 
 104
parques em troca de marketing social.113 Enquanto isso, na esfera dos 
governos estaduais e governo federal, respectivamente, impostos foram 
reduzidos e linhas de crédito do BNDES foram criadas para que outros 
parques, agora mais sofisticados e de natureza privada, como o Beto 
Carrero, em 1991, o Parque da Mônica, em 1993, o Parque do Gugu, em 
1997, o Terra Encantada, em 1998, o Wet’n Wild São Paulo, em 1998, o 
Wet’n Wild Rio de Janeiro, em 1999, e o Hopi Hari, em 1999, pudessem 
ser inaugurados.114 
Uma vez que o fundo público, por meio das políticas sociais, 
deixa de ser aplicado no financiamento da força de trabalho – o que se 
explica pela reestruturação do mercado, com a disponibilidade crescente 
de um imenso exército de trabalhadores desempregados, em frequente luta 
por condições de empregabilidade – para concentrar-se prioritariamente na 
reprodução do capital, como assinalam Ribeiro, Ferraro e Veronez (2001), 
não é de se estranhar o sucateamento, a terceirização ou a privatização de 
espaços e equipamentos públicos, sem falar da transferência e 
desresponsabilização, por parte do Estado, de suas antigas obrigações 
quanto à garantia de acesso aos direitos sociais básicos, dentre os quais o 
direito ao lazer. O questionamento neoliberal não fica restrito, portanto, à 
aparente ineficiência do Estado para atuar no plano econômico e gerir a 
pesada e burocrática máquina de governo, justificando, assim, o processo 
de privatização e desregulamentação, mas questiona, também, a própria 
pertinência da manutenção de tais políticas como meio de regulação dos 
conflitos sociais (GENTILI, 1995). 
Assim sendo, como consequência do vácuo aberto pelo recuo da 
intervenção e participação estatal, tanto no âmbito da economia como na 
 
113 Informações contidas na matéria “Pior dos parques de SP fica com a periferia”, publicada pelo 
jornal Folha de São Paulo, em 23/7/2001. 
114 Conforme notícia divulgada pela ADIBRA (2002). 
 105
definição e organização das políticas sociais, o mercado fica livre de 
interferência, ampliando seus domínios sobre o conjunto da vida social. É 
o que se pode chamar por “despolitização” do capitalismo. Argumenta-se, a 
partir de tal orientação, que as políticas de bem-estar, muito mais que 
minimizar as desigualdades inerentes a qualquer sistema social, ao 
contrário, potencializam-nas, premiando a dependência e a acomodação 
em detrimento da valorização das iniciativas individuais. Isto se traduz, 
perversamente, por um processo de naturalização das desigualdades. Para 
os neoliberais, portanto, nada é mais positivo que a competitividade 
subjacente à desigualdade, pois é a partir dela que os indivíduos são 
levados a conquistarem melhores condições de vida. “O princípio 
fundamental é a liberdade do mercado, pois este é o único justiceiro que 
premia, de acordo com o esforço individual, os mais capazes e aptos” 
(FRIGOTTO, 1995, p. 88). 
Opera-se, de tal modo, uma verdadeira metamorfose no 
entendimento da noção de direito, com o direito de propriedade 
contraditando com os direitos sociais, com o direito do consumidor 
sobrepondo-se aos chamados direitos de cidadania. Isto significa dizer que 
o princípio meritocrático que está na base da lógica distributiva em vigor é 
o do não-direito, pois “consumir, trocar, vender são ações que, ainda que 
amparadas em certos direitos, identificam ou apelam aos indivíduos em 
sua exclusiva condição de consumidores” (GENTILI, 1995, p. 240). Nesta 
perspectiva, o lazer torna-se acessível apenas para uma minoria, 
apresentando-se como um tipo muito específico de propriedade. Somente 
de posse deste “direito”, adquirido numa relação de compra e venda, 
efetuada no mercado nem sempre de modo direto, que o cidadão-
consumidor, como proprietário, pode valer-se do direito ao consumo, 
usufruindo, desfrutando, fruindo ou gozando de um determinado 
complexo de experiências lúdicas proporcionadas por aquilo que doravante 
 106
convencionaremos chamar por mercolazer, forma contemporânea e 
tendencial de manifestação do lazer como mercadoria. 
Se antes o lazer caracterizava-se como um antivalor ou uma 
antimercadoria, tratado como direito e alçado ao conjunto das políticas 
sociais como parte integrante da estratégia de financiamento público da 
reprodução da força de trabalho, além de incrementar a produtividade e 
preservar o salário para o consumo em massa de bens-duráveis, tal 
fenômeno assume agora uma posição muito mais de subordinação real do 
que de subordinação formal ao capital.115 Seus antigos atributos ou valores 
de uso sociais, dentre os quais podemos citar o descanso, a diversão ou o 
desenvolvimento,116 atrelados ou não a propósitos de cunho romântico, 
moralista, utilitarista ou compensatório,117 valem muito pouco no atual 
estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Em larga 
medida, cederam espaço ao mercolazer, do qual não se espera muito mais 
que a simples realização de um valor de troca, o salto perigoso em direção 
ao equivalente geral, momento final do giro do capital em que se resgata a 
mais-valia e se conferem os lucros, objetivo essencial e primeiro da 
indústria do lazer. 
Com efeito, ao passo que o lazer assume a condição de um não-
direito, manifestando-se como objeto de conquista no mercado, 
encontramo-nos diante da seguinte situação: de um lado, os ricos e 
 
115 Para um melhor entendimento dos conceitos de subordinação ou subsunção formal e real, ver 
Marx (1971a, especialmente capítulo 14 ; 1978). 
116 Como mencionado na introdução do trabalho, os famosos três D – descanso, diversão e 
desenvolvimento –, são considerados por Dumazedier (1976) como as funções mais importantes do 
lazer, resumindo, assim, sua utilidade social. 
117 Tais propósitos, correspondendo às abordagens funcionalistas de lazer, conforme classificação 
proposta por Marcellino (1987), podem assim ser entendidos: românticos, marcados pela nostalgia e 
necessidade de conservação dos valores da sociedade tradicional; moralistas, associados ao controle 
e manutenção da ordem social; compensatórios que, vendo o trabalho como tempo e espaço de 
alienação, acreditam no lazer como uma possibilidade de fuga individual às insatisfações; e 
utilitaristas que potencializam as atividades de lazer como instrumento de recuperação e 
manutenção da força de trabalho. 
 107
endinheirados, os com-lazer, aqueles que podem pagar pelo melhor das 
mercadorias e estilos de vida, tendo acesso ao primeiro mundo do lazer; no 
meio, sob a constante pressão gerada pelo empobrecimento e influência 
determinada pelo mimetismo e pelo simulacro, localiza-se a classe média, 
com frequentes escapadas ao primeiro mundo, afundando-se em dívidas ou 
liquidando suas economias, contudo, em sua maioria, tendo contato 
somente com o mais barato, com passaporte apenas para o segundo 
mundo do lazer, cópia inferior do primeiro mundo, onde pululam as ofertas 
de lazer-genérico e acrescem as apropriações do já descartado lazer de 
segunda-mão; e, na base da pirâmide, o terceiro mundo do lazer, dos 
pobres e dos miseráveis, dos quase sem e dos sem-lazer, a maioria da 
população, os que somente tem acesso ao pouco de lazer-aberto que ainda 
restou, ou mesmo, aqueles que são assistidos por programas do tipo lazer-
solidário ou lazer-filantrópico, iniciativas geralmente funcionalistas, 
mantidas por ONG’s, Igrejas, organizações comunitárias, associações de 
moradores, fundações empresariais, sociedades beneficentes etc., em 
grande parte, subvencionadas pelo Estado ou recebendo apoio de 
organismosinternacionais. 
No marco da reestruturação neoliberal, à medida que os 
governos federal, estaduais e municipais se desresponsabilizam cada vez 
mais pela implementação e gestão de políticas sociais, sob a pressão da 
responsabilidade fiscal e sob o pretexto do burocratismo, da morosidade, 
da ineficiência e da falta de controle sobre a administração pública, 
continuam a ser grandes os problemas causados pelo agravamento das 
desigualdades e exclusão social, agora naturalizadas. Como suposta 
solução para as situações mais crônicas, geradoras de instabilidade 
sistêmica, em substituição à universalização dos direitos, as políticas 
passam a pautar-se pela lógica focalista, com a introdução de 
 108
compensações pontuais visando o funcionamento do sistema e a 
conservação da ordem institucional. 
Um exemplo emblemático de tal política é o da tentativa de 
ocupação social das áreas de instabilidade, objetivando combater a 
escalada da violência urbana com a implementação localizada de projetos 
culturais, educativos e de lazer. É o caso do que acontece no complexo da 
Maré, no Rio de Janeiro-RJ. Em funcionamento desde 1999, a Vila 
Olímpica da Maré oferece 20 modalidades esportivas, além de atividades 
culturais, de saúde e de nutrição. Toda sua infra-estrutura foi financiada 
pelo MET e pela Prefeitura do Rio de Janeiro, ao custo de R$ 10 milhões. 
As despesas de manutenção são pagas pela prefeitura e pela estatal 
Petrobrás, que desembolsam respectivamente R$ 89 mil e R$ 60 mil 
mensais. Há outras parcerias com empresas privadas e universidades, que 
disponibilizam profissionais e serviços. Já a administração da Vila está a 
cargo de uma ONG criada especialmente para tal fim, a União dos 
Esportistas da Vila Olímpica da Maré. Com o número de atendimentos 
chegando a atingir aproximadamente 9.000 jovens ao ano, avalia-se 
positivamente tal investimento, com uma boa taxa de custo-benefício, o 
que se expressa pela queda dos índices de infrações cometidas por 
crianças e adolescentes, com redução em 56% de sua presença nas ruas 
da região. O princípio é manter a criança ocupada com atividades 
saudáveis, segundo contava a época o secretário municipal de Esportes e 
Lazer do Rio de Janeiro.118 
Em São Paulo, o exemplo vem da Favela Monte Azul, localizada 
na zona sul da cidade. A favela tem em torno de 3.500 moradores. As 
creches e atividades da associação comunitária atendem por volta de 300 
crianças de até 14 anos. A partir desta idade, são 84 jovens frequentando 
 
118 Dados extraídos da matéria “Crianças trocam rua por esporte”, publicada no jornal Folha de São 
Paulo, em 9/7/2002. 
 109
as oficinas profissionalizantes, desenvolvendo habilidades em marcenaria, 
reciclagem de papel, costura e panificação. Isto sem falar das atividades 
complementares de lazer e do envolvimento nos mutirões organizados pela 
associação, que resultaram numa favela quase toda urbanizada, onde as 
casas dispõem de serviços de saneamento e eletricidade. O dinheiro para 
tudo isso foi captado no exterior. Como resultado, 94% dos moradores da 
Monte Azul se declaram felizes e não querem mudar da favela. Por sua vez, 
o delegado de polícia responsável pela região agradece, ressaltando que a 
associação solucionou os problemas de homicídio, garantindo a oferta de 
lazer, cultura e educação, que, em sua avaliação, é o que a sociedade 
precisa.119 
A despeito dos avanços e limites de cada um destes projetos, 
interessa-nos trazê-los aqui muito mais para nos ajudar a pensar sobre a 
problemática do aqui chamado lazer-solidário ou lazer-filantrópico do que 
propriamente para avaliá-los em sua especificidade, o que seria 
relativamente difícil de se fazer à distância. Estes e muitos outros 
exemplos que poderiam ter sido explorados, revelam a opção construída 
pela reforma do Estado no que se refere ao processo de “despolitização” e 
filantropização das políticas sociais, especialmente, das políticas setoriais 
de lazer. Como indicam os pressupostos da proposta de administração 
gerencial do setor público,120 analisada por Melo (2003), a pronta 
condenação do Estado, supostamente burocrático e ineficiente, de um 
lado, e o aparente questionamento do mercado, por sua exclusiva 
inclinação para o lucro, de outro, deram forma às justificativas para a 
 
119 Informações contidas na reportagem “Mobilização torna Monte Azul favela feliz”, da Folha de São 
Paulo, de 9/7/2002. 
120 A proposta de administração gerencial do setor público, articulada à reforma do Estado, cujo 
estímulo à criação das chamadas organizações sociais foi um de seus desdobramentos, teve a sua 
implantação no Brasil realizada a partir de 1995, sendo o Ministro Luis Carlos Bresser Pereira um 
de seus principais formuladores. Para saber mais, ver Pereira e Grau (1998). 
 110
escolha das instituições que deveriam dar conta dos problemas sociais, 
sobretudo aqueles relacionados à segurança, atacando os focos de 
instabilidade sistêmica, quais sejam: as organizações sociais não-estatais 
sem fins lucrativos, com forte presença do trabalho voluntário,121 movidas 
pelo discurso da solidariedade e da ação filantrópica, configuradas sob ao 
designação de terceiro setor. 
Seguindo essa lógica, o vazio de poder deixado pelo recuo e 
retração da participação estatal na condução das políticas públicas fez do 
terceiro setor uma grande atividade econômica, com acentuado 
crescimento nos últimos anos. No Brasil, só em 1995, foram 
movimentados R$ 10,9 bilhões, o equivalente a 1,5% do PIB nacional, 122 
dinheiro angariado junto ao fundo público ou através das parcerias com a 
iniciativa privada, esta última, interessada muito mais no marketing social 
e capital simbólico acumulado do que preocupada com o bem estar e a 
melhoria das condições de vida da população. É a chamada “empresa 
cidadã” que, apoiando e financiando projetos de ação social, além de 
agregar valor à sua marca, maquia o capitalismo com alguns traços de 
humanidade.123 
De qualquer maneira, vale ressaltar que o crescimento do 
terceiro setor, como assinala Frigotto (1995), cria um triplo efeito negativo, 
com os seguintes prejuízos: 
 
121 No Brasil, conforme o noticiado pelo jornal Folha de São Paulo, através da matéria “Atividade 
voluntária é 8a no ranking das maiores economias do mundo”, publicada em 18/9/99, 1,45 milhão 
de pessoas atuam no terceiro setor, 23% como voluntárias. 
122 Dados igualmente extraídos da matéria “Atividade voluntária é 8a no ranking das maiores 
economias do mundo”, do jornal Folha de São Paulo, de 18/9/99. 
123 Segundo o título da reportagem “Para 79% dos empresários, atuação social melhora imagem”, 
publicada pelo jornal Folha de São Paulo, em 18/9/99, ficam evidentes os motivos que impulsionam 
as parcerias estabelecidas entre a iniciativa privada e o terceiro setor para a realização de projetos 
sociais, distribuídos, conforme consta da mesma matéria, pelas seguintes áreas de atuação: 
educação (40%), saúde (26%), arte e cultura (23%), meio ambiente (19%), esporte (16%), defesa de 
direitos (8%) e ciência e tecnologia (7%). 
 111
- a pulverização de ONG’s e demais instituições, sob os falsos 
argumentos de autonomia, descentralização, flexibilidade e aumento 
do poder local, acaba por contribuir para a inviabilização, no caso 
do lazer, ou maior deterioração ainda, no caso da saúde e da 
educação, de políticas sociais contínuas e universalizantes, 
integradas em sistemas nacionais; 
- a proliferação sem controle de ONG’s inibe e ofusca a ação de ONG’s 
tradicionais e outras instituições assistenciais que têm efetivamente, 
ao longo da história, conseguido manter um trabalho de qualidade 
socialmente referenciada, com forte vocação popular, fugindo à 
perversidade da lógica do custo-benefício imposta pelo mercado;e 
- a falsa idéia de que esta conduta de administração gerencial das 
políticas sociais articuladas às ONG’s constitui-se em alternativa 
capilar, democrática, eficiente e econômica, mobiliza a opinião 
pública contra as poucas iniciativas de natureza pública-estatal 
ainda existentes. 
Enfim, podemos dizer, mais uma vez, que o neoliberalismo 
questiona não somente a ineficiência do Estado para atuar no terreno 
econômico, mas também a própria pertinência da política como esfera de 
regulação social, propondo, deste modo, as já conhecidas fórmulas 
privatistas e desregulamentadas. Todavia, por motivos nem só simbólicos e 
de propaganda, mas fundamentalmente práticos, nem todas as ações 
assistencialistas podem ser abandonadas. “Há necessidade de pacificar 
áreas conflitivas e explosivas em matéria de políticas públicas” (TORRES, 
1995). É principalmente por isso que as políticas focalistas de lazer-
solidário ou lazer-filantrópico para os mais pobres se fazem presentes, caso 
contrário, a ordem institucional em determinadas regiões estaria posta em 
 112
risco. Em outros termos, filantropia, solidariedade e política social, para os 
neoliberais, só existe onde explode a violência. 
No capitalismo avançado, está em curso, portanto, uma ampla 
política de reforma cultural que, ao mesmo tempo em que naturaliza as 
desigualdades, produzindo uma sociedade cada vez mais dualizada – onde 
figura, de um lado, um lazer rico para os ricos e, de outro, um lazer pobre 
para os pobres –, desintegra, pouco a pouco, a noção mesma de direito 
social. Nesta direção, faz-se necessária a advertência de que a defesa de 
direitos descolada da necessária defesa da ampliação, ou mesmo 
manutenção, das condições materiais que os assegurem, como se tornou 
comum na atualidade, não passa de um exercício de retórica (GENTILI, 
1995). Isto quer dizer que o lazer constituiu de fato um direito social 
apenas quando a existência de um conjunto de instituições públicas 
consegue assegurar sua realização e concretude, o que nos remete à idéia 
de uma conquista permanente. Em sendo assim, nosso cuidado deve ser 
redobrado, pois o discurso do direito ao lazer, tão presente em nosso meio, 
está impregnado de “fantasmagorias”. 
5. A cultura das saídas 
Em articulação com o econômico e com o político, atuando junto 
com o aumento da exploração do trabalho, com a redução da utilidade das 
mercadorias e com a desintegração dos direitos sociais, formando uma só 
totalidade relacional, no plano da cultura, corrobora ainda como 
determinante fundamental na mercantilização do lazer, a relativização do 
luxo e da necessidade, dinâmica que se delineia pelo apelo ao consumo 
indiscriminado e permanente redefinição dos chamados estilos de vida. 
Trata-se de uma mudança qualitativa no comportamento de amplos 
setores da população, particularmente, naquilo que se refere aos hábitos 
 113
de consumo, expressão de uma avaliação positiva do supérfluo. O que se 
evidencia, portanto, é um processo de legitimação do luxo, aqui 
considerado como o consumo de bens e serviços de segunda ordem, 
outrora moralmente condenado. 
Evidente que tanto posições favoráveis ao luxo, bem como o 
direcionamento de “necessidades luxuriosas”, podem ser localizadas em 
estágios anteriores do desenvolvimento capitalista, algo já percebido 
remotamente como um mecanismo vantajoso para a expansão produtiva e 
para o sistema como um todo. Entretanto, fica clara nos dias atuais uma 
postura nova em relação ao luxo, atitude “inerente ao modo pelo qual o 
capitalismo define sua relação com o valor de uso e o valor de troca, 
investindo contra os valores associados à produção orientada para o valor 
de uso” (MÉSZÁROS, 2002, p. 643). Nesse sentido, o estímulo ao consumo 
de coisas supérfluas não representa outra coisa senão um ingrediente a 
mais na dinâmica de disjunção da necessidade e produção de riquezas que 
hodiernamente se processa. Em sendo assim, as determinações objetivas e 
“leis” tendenciais do sistema capitalista não podem ser entendidas sem 
que se considere a adoção necessária do luxo como orientador da 
produção e reprodução ampliada do capital. 
Uma vez que o luxo constitui hoje uma espécie de regulador do 
sócio-metabolismo do capital, há de se considerar que tal configuração tem 
enorme impacto sobre a estrutura das necessidades humanas, gerando 
novas referências para a vida cultural, o que não ocorre sem uma ruptura 
com antigos padrões e costumes morais. A relativização do luxo e da 
necessidade pressupõe, portanto, uma relativização dos valores. Entra aí 
em cena a tensão do supérfluo, da opulência e da luxúria contra o 
proibicionismo e o puritanismo, uma contradição que encontra expressão 
 114
na teoria econômica através do debate entre o luxo e a poupança.124 Em 
franca oposição aos princípios do absolutismo moral, o tema do luxo é 
redefinido a fim de legitimar o modus operandi da acumulação flexível, 
orientada para a expansão e o aumento da produção através da enorme 
quantidade e variedade de bens e serviços disponibilizados para o 
consumo individual. 
Pode-se ver neste contexto que o “espírito do capitalismo” 
weberiano não é somente irrelevante para a compreensão da 
maneira pela qual o sistema capitalista de produção e distribuição 
funciona no século XX; é também profundamente desorientador 
no que diz respeito às suas tendências fundamentais de 
desenvolvimento desde o início (MÉSZÁROS, 2002, p. 642-643). 
Todavia, ainda que o processo de acumulação capitalista, tanto 
em seu estágio inicial como na atualidade, não se deva aos princípios 
ético-protestantes da poupança, da parcimônia e da austeridade, como 
defende Weber (2001), tampouco seja decorrente da abstinência por parte 
de quem prefira o consumo futuro às custas da contenção do consumo 
presente, conforme entende a economia clássica burguesa, é certo que, 
atuando sobre o indivíduo singular, e até mesmo sobre a formatação 
ideológica da consciência coletiva, foi sim determinante a religião do 
trabalho, o chamado credo da burguesia com o qual se digladiou Lafargue 
(1999). De qualquer forma, embora as racionalizações subjetivas de 
 
124 A contradição entre o luxo e a poupança, cujo entendimento é deveras importante para a 
compreensão das primeiras iniciativas em torno da administração e controle do tempo livre, o que 
deu origem ao lazer, provoca um debate que não é recente. A esse respeito, já em 1844, Marx 
(2001a, p. 159) escreve: “A disputa dos economistas sobre o luxo e a poupança reduz-se à disputa 
entre a economia política que se tornou claramente consciente da característica da riqueza e aquela 
economia política que ainda se encontra prisioneira de recordações românticas e antiindustriais. 
Mas nenhuma delas sabe como exprimir o objeto da disputa e, portanto, como resolver a questão”. 
Nossa avaliação é que, com o curso do desenvolvimento histórico, esta contradição foi “resolvida” – 
ou pelos renovada – algumas décadas mais tarde, justamente, com o surgimento do lazer. 
 115
capitalistas particulares possam realmente se adaptar à tese weberiana125, 
neste caso, são as determinações objetivas do sistema – com especial 
atenção para a concorrência intercapitalista, para a concentração de 
capitais, para as formações monopolistas e para a taxa decrescente de 
valor de uso das mercadorias – que tornam inteligível a necessária adoção 
do luxo como pedra angular da expansão capitalista. 
Sob uma outra perspectiva, porém sem deixar de ser coerente 
com o raciocínio até aqui exposto, a relativização luxo, da necessidade e 
dos valores morais é uma tendência histórica também abordada por 
Hobsbawm (1992). Para o autor, diante da prosperidade e crescimento 
econômico que o capitalismo experimenta na segunda metade século XIX, 
momento ulterior a Revolução Industrial, com a Inglaterra ocupando a 
posição denação hegemônica no cenário da economia mundial, tanto a 
burguesia triunfante como a classe média ascendente, numerosamente 
maior que a classe média pré-industrial, foram levadas a uma identificação 
mimética com o estilo de vida modelado segundo o das antigas elites, 
porém menos formal e mais privatizado. Segundo o mesmo autor, um fator 
que contribuiu decisivamente para isso foi justamente o afrouxamento das 
convicções puritanas pelas quais, tanto a burguesia como a classe média, 
haviam se identificado entre si e se diferenciado da decadente aristocracia 
ociosa e dos proletários “bêbados” e “preguiçosos”. 
Entre a burguesia estabelecida, o dinheiro já havia sido ganho. 
Poderia provir não diretamente de sua fonte, mas de pedaços de 
papel que representavam “investimentos”, cuja natureza poderia 
ser obscura, mesmo quando não se originassem de alguma remota 
região do globo, distantes dos condados ao redor de Londres. 
 
125 A tese weberiana, com base em levantamento estatístico sobre a Europa moderna, o qual 
identifica a base religiosa protestante como sendo majoritária entre os grandes industriais, 
comerciantes e operários especializados, define o tipo ideal de conduta moral que favoreceu o 
desenvolvimento do capitalismo. Ver Weber (2001). 
 116
Frequentemente era herdado ou distribuído aos filhos ociosos e às 
mulheres da família. Grande parte da burguesia do final do século 
XIX consistia na “classe ociosa” [...]. E mesmo aqueles que 
ganhavam dinheiro não precisavam dedicar a isso muito tempo, 
pelo menos no caso de o fazerem nos bancos (europeus), nas 
finanças e nas especulações. Na Inglaterra, em todos os casos, 
essas atividades deixavam bastante tempo para se cultivar outros 
interesses. Em suma, gastar tornou-se pelo menos tão importante 
quanto ganhar. Não era necessário gastar prodigamente como os 
ultra-ricos, dos quais efetivamente havia muitos, na belle époque. 
Mesmo os relativamente menos opulentos aprendiam a gastar para 
o próprio conforto e prazer (HOBSBAWM, 1992, p. 238). 
A pouco mais de um século, portanto, o estilo de vida e os 
valores presentes tanto entre os ricos como entre as classes médias 
estabelecidas já sinalizava uma cultura de luxo e de prodigalidade, 
mudança que foi acompanhada pelo relaxamento da antiga conduta da 
frugalidade e da poupança. Mas é bom que se diga que o hábito da 
gastança não se estendeu logo de imediato a um conjunto mais ampliado 
da população. Dada a natureza contraditória do capital, devemos levar em 
conta suas tendências e contratendências, além de considerar sua lógica 
de desenvolvimento desigual, o que significa que a tensão produzida entre 
o luxo e a poupança pode se manifestar de maneira diversa nas distintas 
regiões do globo. Há de se saber que se o luxo se afirmava como tendência, 
o que refletia a necessidade de expansão da produção e alargamento do 
círculo de consumo, abarcando um número cada vez maior de pessoas, é 
verdade também que o imperativo da poupança não foi de todo 
abandonado. 
Ocorre que a virada para o século XX, depois um longo período 
de prosperidade material, de relativa estabilidade nos países de 
capitalismo desenvolvido, de relativo bem estar e melhoria das condições 
 117
de vida em vastas regiões, de afirmação da burguesia e dos princípios 
econômicos do liberalismo clássico, a expansão imperialista trouxe consigo 
o acirramento da concorrência intercapitalista e entre as nações, 
empurrando o mundo ao conflito e à guerra. A idéia de progresso linear 
que nutriu a sociedade da belle époque desmorona por completo com a 1a 
grande guerra e, após 1914, a história passa a se desenrolar através de 
uma série de convulsões. Como consequência inevitável, regridem os 
padrões de vida nos países desenvolvidos e nos ambientes da classe média 
que até então todos acreditavam que já estivesse se espalhando para 
regiões menos desenvolvidas e setores economicamente menos favorecidos 
da população. 
Assim, os anos entre o início da Primeira e as seqüelas da 
Segunda Guerra Mundial foram um período de crise e convulsões 
extraordinárias na história. A melhor maneira de considera-lo é 
como uma era em que o modelo mundial da Era dos Impérios ruiu 
sob o impacto de explosões que ela mesmo gerara em silêncio 
durante longos anos de paz e prosperidade. O que ruiu é evidente: 
o sistema mundial liberal e a sociedade burguesa do século XIX 
como norma à qual, por assim dizer, qualquer tipo de “civilização” 
aspirava. Foi, afinal de contas, a era do fascismo. Qual seria o 
perfil do futuro? Este só ficou claro em meados do século 
(HOBSBAWM, 1992, p. 461). 
No pós-2a guerra, em lugar da Inglaterra, os Estados Unidos 
assume a posição de nação hegemônica, no entanto, num cenário 
internacional bastante diferente daquele do século XIX. Diante de um 
modo de produção anti-sistêmico e que chegou a abarcar um terço de toda 
a população mundial, as relações internacionais foram polarizadas. No 
quadro da guerra fria, enquanto o centro do capitalismo era reforçado pelo 
programa norte-americano de reconstrução dos países devastados pela 
guerra, um conjunto de países da periferia – no qual se inclui o Brasil – 
 118
também acabou por receber uma série de investimentos que lhes 
possibilitaram avançar na implementação de um sistema industrial 
(POCHMANN, 2001). Desta feita, a fim de proteger e estender seus 
domínios, rivalizando com a ameaça do socialismo real, os EUA promove a 
difusão geográfica de seu padrão de industrialização, internacionalizando a 
experiência fordista que já havia iniciado há algumas décadas em sua 
própria base territorial. 
Deve-se observar, no entanto, que a internacionalização do 
fordismo não se desenvolveu de modo homogêneo e sem a existência de 
contradições. “A expansão do fordismo ocorreu numa conjuntura 
particular de regulamentação político-econômica mundial e uma 
configuração geopolítica em que os Estados Unidos dominavam por meio 
de um sistema bem distinto de relações de poder” (HARVEY, 2000, p. 132). 
Na Europa, seu sistema rotinizado e fragmentado encontrou forte 
resistência dos trabalhadores. Já nos países periféricos, como no caso do 
Brasil, o contexto de exclusão e concentração de renda implicou na sua 
implantação precária. Foi o denominado fordismo periférico, fordismo 
incompleto ou fordismo autoritário, com alta rotatividade da força de 
trabalho e baixos salários, portanto, um fordismo portador de 
peculiaridades que o distingue do fordismo americano, com estabilidade e 
altos salários. Todavia, a universalização deste último, ainda que de 
maneira desigual, é uma verdade que se fez sentir por todo o mundo a 
partir da segunda metade do último século. 
Faz-se importante colocar tal processo em evidência pois o 
modelo fordista se materializou como um momento ímpar de realização 
das forças produtivas capitalistas, potencializando, de forma inédita, 
todos os elementos constitutivos da base tecnológica afluente da segunda 
 119
Revolução Industrial126. Nesse sentido, as modificações introduzidas pelo 
fordismo nos EUA nas primeiras décadas do século XX constituíram “o 
laboratório do qual germinaram as possibilidades de retomada da 
acumulação de capital sobre novas bases e no qual se gestou o formidável 
crescimento da economia capitalista do pós-guerra até meados dos anos 
1960” (SOUZA, 1992, p. 12). Mas não foi só isso, além de expressar um 
novo tipo de organização e racionalização do trabalho, o fordismo inaugura 
uma nova ideologia, construindo uma ampla rede de aparelhos de 
hegemonia, por sua vez, organizadora de uma cultura arraigada no 
puritanismo e no proibicionismo. 
Diante deste novo padrão de acumulação, configurando um 
aparelho industrial voltado à produção e ao consumo em massa de 
mercadorias – isto é, de bens duráveis –, para que os trabalhadores 
pudessem suportara também demandada nova estrutura da organização 
do trabalho, foi necessário por em marcha sua “integração” cultural, 
iniciativa que redunda na administração e controle tanto de seu tempo de 
trabalho como de seu tempo livre. Este tipo de racionalização que atuou 
sobre o cotidiano operário revela a dimensão totalizante do fordismo, pois 
este novo modelo de organização exercido sobre a força de trabalho 
assalariada, em função da estabilidade e do padrão remuneratório elevado, 
implicou em medidas que se generalizaram de modo capilar por toda o 
tecido social, adequando as mais distintas práticas culturais às exigências 
da produção e reprodução do sistema. 
 
126 A segunda Revolução Industrial relaciona-se ao processo de produção em escala de novos bens – 
energia elétrica, automóvel, química, petróleo, aço etc. – que ocorre entre 1870 e 1910. Motores a 
combustão, máquinas menores e toda parafernália eletrônica subseqüente permitiram o 
desenvolvimento de utilidades domésticas que, junto com o automóvel, seriam os bens de consumo 
duráveis. O fordismo, ao se valer da moderna tecnologia eletromecânica e com a introdução da linha 
de montagem, com a expansão das escalas e dos ritmos de produção, maximiza resultados e acelera 
o conceito de produto único, barateando preços e estimulando a produção e o consumo em massa. 
Vale lembrar que o Brasil consegue internalizar os resultados a segunda Revolução Industrial bem 
mais tarde, como é no caso da indústria siderúrgica, implementada somente na década de 1940, e 
da indústria automobilística, nos idos dos anos 1950 (POCHMANN, 2001). 
 120
As iniciativas puritanas têm o objetivo de conservar, fora do 
trabalho, um determinado equilíbrio psicofísico que impeça o 
colapso fisiológico do trabalhador, premido pelo novo método de 
produção. Este equilíbrio só pode ser externo e mecânico, mas 
poderá tornar-se interno se for proposto pelo próprio trabalhador, 
e não imposto de fora; se for proposto por uma nova forma de 
sociedade, com meios apropriados e originais (GRAMSCI, 1976, p. 
397). 
Nesse sentido, mais do que um sistema de produção e consumo 
em massa, o fordismo deve ser entendido como um modo de viver, de 
pensar e de sentir a vida. Mas quais são afinal os desdobramentos dos 
princípios e valores morais do puritanismo e do proibicionismo no cotidiano 
operário? Na busca da estabilidade e coesão, estas foram as ferramentas 
para a obtenção da obediência e da passividade aos novos preceitos 
industriais por parte dos trabalhadores. Como uma espécie de 
contrapartida às políticas praticadas de altos salários e de bem-estar, 
exigia-se da massa de empregados a observância a um rígido código de 
condutas individuais e familiares. As normas higiênicas, a postura da 
contenção e da reserva, a proibição ao uso do tabaco e do álcool, a também 
proibição de se frequentar bares e cabarés, a condenação de todo tipo de 
prática que colocasse sob ameaça o bem estar físico e moral da 
coletividade, enfim, uma série de medidas disciplinares de coerção, 
repressão e vigilância, exercidas sobre os trabalhadores, caracteriza o tom 
do projeto civilizatório em questão. 
Este aspecto nos informa sobre as estratégias burguesas adotadas 
tendo em vista eliminar as “desviâncias sociais”, promover a 
“regeneração e elevação” (sic, Ford) das classes trabalhadoras, 
através da inculcação do puritanismo e da religiosidade no novo 
proletariado industrial. Trata-se do momento superestrutural em 
que se passa à organização da cultura, e onde o fordismo e o 
 121
americanismo se colocam, de fato, como uma ideologia 
constituidora do real (SOUZA, 1992, p. 29). 
O objetivo era o de garantir a máxima estabilidade e 
homogeneidade do operário-massa frente às novas necessidades de 
produção e de vida, combinando, para isso, as mais variadas formas de 
coação e autodisciplina de um lado, com a retribuição e a cooptação de 
outro. Em sendo assim, o estímulo à vida familiar monogâmica, como 
exemplo, dentre outras prescrições, era uma das condições imposta aos 
trabalhadores para a manutenção do emprego e ascensão profissional, 
uma injunção que se encontrava imediatamente articulada à difusão dos 
valores puritanos. Neste contexto, a Escola, direcionada especialmente 
para os jovens, e a Igreja, voltada à população em geral, por excelência, 
eram as duas instituições que mais contribuíam para a formação do novo 
homem, o trabalhador de novo tipo. E quando a reforma moral não era o 
suficientemente eficaz na inculcação da ideologia em questão, o 
enquadramento era então realizado diretamente pelos aparelhos de 
repressão policial. 
No firme propósito da coerção permanente, fosse moralizando, 
fosse reprimindo, de um jeito ou de outro, o fordismo progredia em seu 
projeto de domesticação operária. Tudo isso porque a estabilidade e os 
altos salários constituíam-se como mecanismos bastante contraditórios, 
“uma arma de dois gumes”, como salienta Gramsci (1976, p 298). Pois era 
de fato preciso que os operários gastassem seu dinheiro. Mas era 
imperioso que isto fosse feito de modo racional, tanto para manter e 
renovar a força de trabalho, como também, via acesso ao consumo 
proporcionado pela economia e pela poupança, para alimentar a produção 
industrial de bens duráveis. Por outro lado, a elevação dos salários podia 
ainda levar à degeneração da força de trabalho, pois os perigos do luxo se 
tornavam mais acessíveis. Eis então a luta contra os males e perigos do 
 122
ócio. Aí estava um dos motivos da cruzada moral e proibitiva iniciada pelos 
capitalistas industriais e que logo se tornou função de Estado. Enfim, 
atividade não só para a Escola, para a Igreja e para a Polícia, mas uma 
cruzada na qual igualmente se engajaria a chamada organização dos 
lazeres. 
O álcool tornara-se uma mercadoria de luxo e nem mesmo os mais 
altos salários poderiam permitir que ele fosse consumido; quem 
trabalha pelo salário, com um horário fixo, não tem tempo para 
procurar álcool, para praticar esportes ou para eludir as leis. A 
mesma observação pode ser feita em relação à sexualidade. A 
“caça à mulher” exige muitos loisirs; assim, o operário que volta 
para casa à noite, depois de uma longa jornada de trabalho, não 
está habituado a sair em busca de mulheres de fortuna; ele ama a 
sua, segura, infalível, que não fará rodeios e não pretenderá a 
comédia da sedução e do estupro para ser possuída. Parece que 
assim a função sexual se mecaniza, mas, na realidade, trata-se de 
uma forma de união sexual sem as cores “fascinantes” da fantasia 
romântica própria do pequeno burguês e do bohémien vadio. 
Percebe-se que o novo industrialismo pretende a monogamia, exige 
que o homem-trabalhador não desperdice as suas energias 
nervosas na procura desordenada e excitante da satisfação sexual 
ocasional: o operário que vai ao trabalho depois de uma noite de 
“desvarios” não é um bom trabalhador (GRAMSCI, 1976, p. 399). 
Dentre as múltiplas estratégias empreendidas pela investida 
fordista contra as desviâncias sociais, a sacralização da relação 
monogâmica aparece então como a base fundamental sobre a qual se 
assentam todos os outros princípios morais que orbitam ao puritanismo e 
ao proibicionismo. Isto porque o nexo estabelecido entre produção e 
consumo sob o regime de acumulação estruturado pelo fordismo articula a 
produção em massa ao consumo operário de bens duráveis e ao capital 
financeiro. O sistema concede uma série de direitos – educação, saúde, 
 123
lazer etc – que, atuando como salário-indireto, liberam recursos para o 
consumo em massa de bens duráveis, o que se sustenta a partir do crédito 
e da poupança, assim, devendo ser coibidas as possibilidades de vazão do 
salário em resposta às “necessidades luxuriosas”. Deste modo, além da 
estabilização do grupo familiar em torno de um modo de vida condizentecom a demanda de produção e reprodução da força de trabalho 
especializada, percebe-se igualmente a fixação deste grupo como célula 
básica de consumo. 
Tendo em vista a vigência dos altos salários, fazia-se preciso 
compelir o trabalhador à reserva e à contenção. Saber poupar sem se 
deixar seduzir pelo consumismo vil dado pelo supérfluo e pelas práticas 
lascivas do tempo livre. Gastar no absolutamente necessário, os bens 
duráveis representados pelos automóveis e eletrodomésticos que 
proporcionavam o conforto e a elevação do padrão de vida familiar. Estas 
eram as diretivas objetivamente impostas pelo alto que, internalizadas 
subjetivamente pelos “de baixo” a partir de uma série de constrangimentos 
sociais, acabaram por conformar o espírito doméstico e aquilo que se pode 
chamar por cultura da casa. Através da constituição de mercados de 
massa, da força de trabalho estável, da implementação de políticas de 
bem-estar, da construção de uma rede de aparelhos e organizações de 
formação moral e coerção legal, o que se somou à difusão do consumo de 
duráveis no âmbito doméstico, operando uma série de ajustamentos entre 
estruturas e superestruturas, o capitalismo escrevia então uma nova fase 
de seu desenvolvimento. 
Pode-se concluir que frente esta nova tentativa de hegemonia, o 
resultado foi o alargamento das alianças entre direção econômica e 
cultural e os grupos subalternos. Para tanto, esse movimento 
exigiu a recomposição interna do operariado, concomitantemente 
ao processo de reestruturação da composição social e ideológica 
 124
das classes trabalhadoras como um todo. [...] O lugar, 
anteriormente atribuído à pequena burguesia e às classes médias, 
é agora, no âmbito do novo equilíbrio de forças políticas necessário 
à reprodução as relações de dominação e de direção, ocupado 
pelos novos quadros intermediários da produção fordista (SOUZA, 
1992, p. 7). 
Em sendo assim, se resolvemos seguir em rota oposta ao curso 
normal da história e revisitamos o cenário de prosperidade material e 
econômica presente na Inglaterra da segunda metade do século XIX, 
quando se pôde detectar o relaxamento das convicções puritanas entre a 
burguesia e a classe média ascendente, percebemos que, desde então, 
apesar da expectativa gerada à época de relativização do luxo, o que 
acabou por acontecer, ao contrário, foi o refreamento de tal tendência. 
Como já mencionado, diante do grande salto atrás imposto ao sistema 
mundial liberal e a sociedade burguesa pelas grandes convulsões que 
abalaram a Europa da primeira metade do século XX, os Estados Unidos 
se afirma como nação hegemônica, impulsionando uma nova fase do 
industrialismo, além de edificar um novo modelo de regulação social que 
se universaliza no pós-2a guerra. Sim, apesar das crises que também 
assolaram a economia dos EUA, tais inovações alavancaram um processo 
de expansão da riqueza neste país, todavia, como se constatou, baseado 
numa relação entre produção e consumo muito particular. 
Ocorre que sob a batuta do fordismo, o consumo abarca um 
número crescente de trabalhadores, permitindo, notadamente aos 
empregados nos setores de gestão e de avançado desenvolvimento técnico-
científico, elevado poder de compra, o que, pelo menos em tese, 
possibilitaria a expansão do luxo. Apesar disso, aquilo que realmente se 
percebe é uma espécie de consumo tutelado, consequência do modo de vida 
regrado pelo puritanismo e proibicionismo, ideologias que voltam carga 
 125
contra o supérfluo e todo tipo de “necessidades luxuriosas”, difundindo, 
mesmo entre os segmentos populacionais economicamente privilegiados, 
os princípios e os valores da economia, da contenção e da poupança que, 
lá atrás, no século XIX, já haviam dado sinais de esmorecimento. Não 
obstante às condições objetivas permitirem a relativização do luxo e da 
necessidade entre a massa de trabalhadores, uma rede de 
constrangimentos lhes foi imposta a fim de que subjetivamente 
assumissem o espírito doméstico e a cultura da casa como base 
estruturante da vida social. 
Podemos concluir, deste modo, que o desenvolvimento da 
produção capitalista se faz acompanhar por grandes reveses no que se 
refere à tensão entre o luxo e a poupança. É bem verdade que numa lógica 
não linear de avanços e recuos, hora uma, hora outra tendência, em luta 
permanente, acaba por dominar a cena histórica. Todavia, apesar de 
revelarem uma enorme contradição, é correto dizer também que luxo e 
poupança constituem dois pólos inseparáveis de uma mesma totalidade. 
Nesse sentido, conforme explica Mészáros (2002), seria absolutamente 
arbitrário conferir a apenas um dos lados a condição privilegiada do 
espírito do capitalismo, ignorando o outro. Tanto mais porque a tendência 
enfraquecida no fordismo – ou seja, o luxo – parece hoje ser a 
historicamente dominante. Isto pois a expansão da produção demanda, 
invariavelmente, ampliação do consumo. Trata-se de um movimento que 
se acentua com o tempo, especialmente porque a produção em massa, o 
avanço da divisão do trabalho e o desenvolvimento tecnológico não se 
justificam mediante o confinamento do consumo a um número restrito 
apenas de ricos e endinheirados. 
Não por acaso, quando a economia de escala buscada na 
produção fordista de massa de bens duráveis, frente às condições de 
recessão, de intensificação da concorrência intercapitalista e de 
 126
capacidade produtiva excedente, dentre outras tantas determinações 
desfavoráveis, entra em crise a partir do início da década de 1970, a 
transição para uma economia de escopo alicerçada sobre a produção 
flexível de uma infinidade de bens e serviços a preços mais baixos e 
competitivos, potencial extensora do consumo através da abertura e 
exploração de novos e diferenciados nichos de mercado de menor escala, 
torna-se questão de vida ou de morte para o capitalismo. Nesta 
perspectiva, como sinal dos novos tempos e saldo inevitável da 
diversificação e inovação da produção, da exacerbação dos modismos e do 
apelo indiscriminado ao consumo, a difusão do luxo passa a incorporar 
um número mais ampliado da população. 
Como resultado da irreprimível dinâmica expansionista do capital, 
tudo aquilo que um dia parece ser “demais” se torna “muito 
pouco” em outra época; não por causa do esclarecimento 
crescente, mas porque o próprio sistema produtivo do capital é 
constrangido pelas limitações do consumo, e por isso necessita 
tirar do seu caminho os constrangimentos do “muito pouco” 
(MÉSZÁROS, 2002, p. 658). 
Seguindo tal premissa, se a direção e a ordem do “muito pouco” 
abalizavam-se antes pelo trabalho e pela poupança, o horizonte de agora 
passa a ser o da gastança contínua, não importa a finalidade do objeto de 
consumo e nem se ele cabe no orçamento de quem compra, pois uma coisa 
nova hoje nunca, nunca é “demais”. “A acumulação flexível foi 
acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito 
maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de 
inculcação de necessidades e de transformação cultural que isso implica” 
(HARVEY, 2000, p. 148). É então neste contexto de uma nova revolução 
 127
cultural ou de um novo americanismo127 que o consumo dirigido pela 
necessidade, orientado para o “muito pouco”, vai perdendo terreno. No 
entanto, é bom que se diga que junto com a expansão do consumismo, 
sempre atado à lógica do “demais”, a economia e a poupança, como 
tendência subalterna do capitalismo avançado, não são, de modo algum, 
abandonadas. Mas a mudança qualitativa das práticas de consumo 
contemporâneas confirma o seu inquestionável recuo frente à 
superfluidade do luxo e do desperdício. 
Para melhor entender tais modificações, basta olhar para a 
instituição família. Se outrora ela constituía o núcleo básico de consumo, 
forjando um tipo de ambiente propício para a economia e o crédito 
necessário para a compra de automóveis e eletrodomésticos,as 
mercadorias mais emblemáticas da produção fordista, atualmente, seus 
membros são liberados para um consumo diversificado e segmentar colado 
às necessidades e desejos individuais, dando vazão a produtos e serviços 
cada vez mais personalizados. Geralmente, são mercadorias de reduzido 
valor unitário quando comparadas aos bens duráveis, o que desonera seu 
consumidor da salvaguarda da poupança ou do crédito.128 E mais, não se 
prendem ao espírito doméstico e ao espaço domiciliar. Ao contrário, 
rompem com a rigidez de fixação e lugar, desterritorializando-se e 
demandando deslocamento por parte do consumidor, além de impelirem-
 
127 Como uma ideologia constitutiva da realidade, difusora da racionalidade da composição das 
forças sociais fundamentais à economia capitalista à época do fordismo, o americanismo agora se 
renova, criando o “novo” consumo necessário à economia de escopo sobre a matriz do “velho” 
consumo necessário à economia de escala. Assim, par a par com a modernização conservadora, o 
novo american way of life revoluciona passivamente os hábitos e os padrões de consumo, sob o 
ideário do desperdício e da prodigalidade, agora mais vulneráveis ao luxo e ao supérfluo. 
128 Obviamente que certas mercadorias que envolvem um conjunto de maior de serviços, como, por 
exemplo, os pacotes turísticos que somam os custos de transporte, alimentação, hospedagem, 
diversões locais etc, demandam prévio planejamento por parte de clientes pertencentes aos extratos 
economicamente menos privilegiados da população, exigindo de sua parte poupança ou crédito para 
a realização da viagem. 
 128
no a se desvencilhar de suas ligações com os interesses coletivos ou 
grupais. 
Está em curso, portanto, uma transição que tende à 
desintegração da cultura da casa, corrompendo os antigos valores familiais 
que serviram de sustentáculo à relação produção-consumo do fordismo. 
“Já não são os valores clássicos que organizam a vida cultural, mas, o que 
alguns autores chamam de cultura das saídas” (ORTIZ, 2000, p. 211). No 
oposto das coerções diretas e indiretas exercidas sobre a massa pelo 
puritanismo e proibicionismo, administrando seu tempo livre, as pessoas 
hoje são arrebatadas pelo desvario. Isto pois, o afastamento do ambiente 
doméstico figura como passo indispensável em direção a gastança. Sem 
desconsiderar o imenso mercado voltado ao lugar de moradia, é 
privilegiadamente na e pelas saídas que se processa a superfluidade do 
luxo, o consumo do “demais”.129 É la, longe de casa, que se adianta a 
abundância e a variedade de mercadorias consumíveis individualmente, 
cuja venda alimenta a o modelo da acumulação flexível. Não é à toa que a 
mobilidade se torna um evidente sinal de distinção. Julga-se o indivíduo 
pela frequência e seus tipos de saída. 
Acompanhando a tendência em evolução do consumo de luxo, 
acresce a oferta de serviços de lazer e turismo. No setor hoteleiro, por 
exemplo, a investida das grandes redes de luxo no mercado brasileiro é 
expressão desta expansão. A Leading Hotels of the World, organização de 
reserva e marketing que representa 380 hotéis de luxo e atua no Brasil há 
quase duas décadas, vendeu 17.600 diárias para brasileiros em 1996 e 
26.075 em 2000, o que representa um salto de 48% em apenas quatro 
 
129 Neste ínterim, vale observar que também se desenvolveu um enorme e diversificado mercado de 
bens e serviços dirigidos ao ambiente doméstico. Destacam-se aí o luxo e o requinte desenvolvido 
pela arquitetura e design interior que muitas vezes conferem a casa e ao lugar de moradia a 
funcionalidade, a estética e o status para a recepção, um espaço apropriado para o acolhimento das 
saídas de outrem. Isto sem falar dos imóveis de lazer, a casa de campo ou de praia que igualmente 
constituem um mercado específico, um destino certo para as saídas de feriado prolongado. 
 129
anos. “Não estamos caçando milionários, mas sim pessoas dispostas a 
pagar por grandes confortos”, é o que conta um dos diretores da 
organização.130 Pode-se alegar, no entanto, que este tipo de saída não é 
para qualquer um. Mesmo que não seja privilégio só de milionários, trata-
se de uma prática distante do bolso dos setores de menor renda, o que é 
absolutamente correto. Mas há de se registrar que o crescimento da 
indústria do lazer e do turismo é generalizado, apesar de fatores como a 
escassez de tempo livre e a limitação orçamentária influenciarem o perfil 
das viagens de lazer no país. 
Os brasileiros movimentaram em 2001 cerca de 20 bilhões de 
reais para se divertir viajando pelo Brasil, 25% a mais que os 16 bilhões 
verificados em 1998. Se antes a parcela da população que viajava chegava 
aos 32,7%, o número mais recente subiu para 36,4%. No que se refere à 
renda, não obstante às cifras que envolvem o setor, o turista médio aperta 
o orçamento para o lazer. Em 2001, ganhava pouco mais de R$ 860,00 por 
mês em 1 viagem-ano ao valor de R$ 419,00 com duração aproximada de 
11 dias. Já para quem recebia mais de 15 salários mínimos por mês, algo 
entre R$ 3.000,00 e R$ 4.500,00 naquele ano, a viagem ganhava em 
conforto com o desembolso chegando a R$ 1.800,00 para o mesmo 
período. Outros dados interessantes dizem respeito ao meio de transporte 
utilizado para viagem. Se apenas 9% do total de turistas valiam-se do 
transporte aéreo e a maioria, o que significa 36, 5% dos viajantes, seguia 
utilizando o ônibus, 1,6% já havia descoberto uma alternativa mais 
econômica de viagem, os “perueiros”.131 Seja pelo ar ou pela terra, de 
avião, de ônibus ou de “perua”, com ou sem dificuldades, os números do 
turismo de lazer no Brasil traduzem o crescimento da atividade, ainda que 
 
130 Dados extraídos da matéria “Férias de milionário”, da revista Veja, de 6/6/2001. 
131 Números da Fipe/USP divulgados pela reportagem “Dólar mais caro muda o perfil do turismo no 
país”, de 6/5/2002, do jornal Folha de São Paulo. 
 130
as discrepâncias no nível da renda, obrigatoriamente, redundem em 
diferenças e desigualdades de comportamento na hora da diversão. 
Agora, se a relativização do luxo e da necessidade forja novos 
hábitos de consumo entre a população como um todo, promovendo a 
difusão da chamada cultura das saídas, tal tendência carrega consigo 
certas contradições que ao mesmo tempo velam e revelam aquilo que é 
essencial e verdadeiro em seu movimento. Dizemos isso pois se efetivamos 
uma consulta às edições anuais da POF/IBGE132 podemos facilmente nos 
enganar quanto à credibilidade dos argumentos até aqui arrolados. Isto 
porque nela a relação construída entre a diminuição do rendimento e o 
corte nos denominados gastos com recreação é por demais automática, o 
que pode precipitar algumas análises superficiais. O mesmo acontece com 
a POF/FGV, na qual a queda de renda dos trabalhadores entre os anos de 
1999 e 2002, figura como o motivo da redução dos “gastos com 
recreação”, que passaram de 3% para 2,5% do total do orçamento familiar 
– ou seja, em 1999, de cada R$ 100,00, perto de R$ 3,00 eram reservados 
à recreação; em 2003, esses gastos recuaram para R$ 2,50. Um dos 
analistas da FGV não hesita em afirmar que a pesquisa mostra que há 
uma redução dos gastos com supérfluos em função da maior atenção ao 
que é indispensável para a manutenção da unidade familiar.133 
Passemos então às inadvertências que podem estar por detrás 
deste tipo de análise. Vale registrar logo de início que a classificação gastos 
com recreação engloba saídas do tipo cinema, teatro, danceterias, shows, 
idas a estádio etc., abarcando ainda itens como periódicos, livros e 
revistas. Fica de fora desta categorização um sem número de outras 
 
132 A POF/IBGE analisa a composição dos gastos e do consumodas famílias segundo as classes de 
rendimento e permite verificar, na comparação com as pesquisas anteriores, as mudanças nas 
despesas e nos hábitos dos brasileiros. Para saber mais, consultar http://www.ibge.gov.br. 
133 Informações constantes da POF/FGV de 2002. 
 131
possibilidades de gastos que devem ser debitados na conta do lazer. E isto 
a própria POF já detecta como um limite seu, uma vez que os gastos com 
internet e TV por assinatura,134 só para citar um exemplo, que 
praticamente triplicaram de um levantamento para outro, não entram na 
classificação de recreação da FGV. Tudo que não se enquadra como gasto 
específico de recreação, tem de ser despejado no item diversos. Mas se 
esse é o critério, o mesmo deveria valer para os periódicos, livros e 
revistas, itens também não-específicos de lazer. 
Afora esta primeira ordem de problema, afirma-se que a 
recomposição dos gastos originária da queda de rendimentos elimina tudo 
que é luxo, obrigando o brasileiro a engrossar a fatia do seu orçamento 
para se alimentar, se vestir, pagar as contas da casa e falar ao telefone. Tal 
tendência é de fato concreta, mas gastos com alimentação, vestuário e 
contas públicas também podem esconder alguns luxos e excentricidades, 
senão vejamos. No que tange ao item específico alimentação, a POF/IBGE 
2002-2003 mostra que, em 30 anos, o brasileiro diversificou bastante os 
produtos que vão à mesa. Numa ponta, diminuiu o consumo de gêneros 
tradicionais como arroz, feijão, batata e açúcar e, noutra, aumentou, por 
exemplo, o consumo per capita de iogurte, que passou de 0, 4 kg para 2,9 
kg; ou de guaraná, que saiu de pouco mais de 1,7 l para 7,7 l. Até o pão e 
o leite de cada dia tiveram seu consumo reduzido em 40%. E uma outra 
 
134 A internet, com seus chat’s e salas de bate-papo, com seus jogos, com seus leilões eletrônicos e 
uma infinidade de outras possibilidades de “navegação”, e a TV por assinatura, com seus variados 
programas sobre turismo, gastronomia, esportes de aventura etc., que nos conduzem as mais 
distantes paisagens, conformam um tipo de prática de lazer que preservam intimismo e o 
anonimato combinando os ambientes da casa e a rua naquilo que pode se chama de saída virtual, 
prática de tempo livre que tem se revelado nos dias de hoje cada vez mais indispensável ao 
consumo. Números veiculados através da reportagem “Usuário caseiro é a elite da internet”, do 
jornal Folha de São Paulo, de 22/12/1999, revelam que 20% das pessoas que utilizam a internet no 
Brasil realizam compras eletrônicas, com destaque para os seguintes produtos: CD’s, livros, artigos 
de informática, roupas e calçados, compras em supermercado, perfumes e cosméticos, material 
esportivo, passagens aéreas e pacotes de viagem e remédios. 
 132
mudança nos hábitos é dada pelo aumento no consumo dos alimentos 
preparados.135 
A tendência à variedade e ao comparecimento constante de 
quitutes e guloseimas à mesa de parte dos brasileiros é testemunho da 
ascendência do pecado da gula entre a população, tornando mais calórico 
o capital monopolista da indústria alimentícia. Isto sem falar da 
alimentação divertida, aquela em que o consumo de alimentos está 
imbricado às práticas de lazer, manifestando-se desde a pipoca do cinema 
até o churrasco do final de semana, isto sem falar da comilança nas 
praças de alimentação de shoppings e hipermercados. É a ingesta calórica 
sob o invólucro lazer. Outro exemplo pode vir da gastronomia turística, 
quando a ida à mesa dos bares e restaurantes aparece disparada como a 
justificativa de gasto mais frequente entre os brasileiros quando de suas 
viagens de lazer.136 O ato de comer, portanto, por mais que se vincule às 
necessidades elementares de todo e qualquer indivíduo, é sempre um ato 
carregado de significâncias, culturalmente determinado. O que 
argumentamos é que a alimentação fora do ambiente doméstico, como 
uma prática de lazer cada vez mais presente entre os brasileiros, também é 
sinal da cultura das saídas que imprime um outro sentido ao comer, bem 
distinto daquele ligado apenas à sobrevivência. 
Sobre o item vestuário, os gastos de fato têm aumentado. Só para 
tirar os pés do chão, os brasileiros desembolsaram 6 bilhões de reais em 
2003 com a compra de tênis. Claro, existem tênis de R$ 10,00 a R$ 
1.000,00. São desde tênis que atendem unicamente a necessidade de 
calçar os pés, outros para os atletas, imprescindíveis à performance, até 
 
135 Dados da POF/IBGE de 2002-2003. 
136 Segundo estudo realizado pela FIPE/USP, divulgado pela matéria “Dólar mais caro muda o perfil 
do turismo no país”, da Folha de São Paulo, de 6/5/2002, os serviços mais utilizados pelos turistas 
brasileiros em 2001, pela ordem, foram: restaurante (63,5%), supermercados (43,1%), suvenires 
(34,6%), transportes locais (27,2%), diversões locais (22,5%) e locação de carro (2,5%). 
 133
outros tantos mais, esteticamente sedutores. Dos 32 milhões de pares 
vendidos ao ano, entre 12 a 13 milhões, aproximadamente um terço do 
total, têm preço fixado acima dos R$ 200,00. Pelo menos no caso dos tênis, 
não são as necessidades básicas que tem orientado o gasto. É o mercado 
das marcas, de fabricantes como Nike, Adidas, Reebok, Rainha, Topper, 
Mizuno, Timberland, Asics, Puma, LeCoq etc., com crescimento médio 
anual de 10% que estimula o desejo do consumidor.137 Nem sempre o 
gasto com itens como vestuário e alimentação podem ser imediatamente 
desvinculados do consumo do luxo e do supérfluo, nem mesmo do lazer, 
mais especificamente, dos chamados gastos com recreação. 
Acontece que a POF lida com o perfil do brasileiro médio e a 
tendência que estamos apontando relaciona-se mais com a população 
integrada no mercado de consumo. É claro que para os deserdados da 
economia, para aqueles que vivem em condições de miserabilidade, com 
renda diária inferior a 1 dólar, falta dinheiro inclusive para o básico que é 
o consumo de alimentos. Esse contingente soma 14,6% dos brasileiros, 
24,7 milhões de pessoas que, juntas com a outra parcela de 33,94% da 
população que possui rendimentos entre 1 e 2 salários mínimos – ou seja, 
mais 56,6 milhões que sofrem restrições quanto ao atendimento de suas 
necessidades de habitação, saúde, transporte, educação, vestuário, lazer 
etc. –,138 dão forma à base da pirâmide da desigualdade social. São as 
vítimas da exclusão, aqueles que anteriormente classificamos como sem-
lazer, os que se encontram à margem do mercado de consumo dos bens e 
serviços de lazer – isto é, sem condições de acesso ao mercolazer –, quando 
muito, tendo suas necessidades de lazer atendidas pelas políticas 
assistencialistas de cunho filantrópico. 
 
137 Números obtidos a partir da matéria “Brasileiro gasta R$ 6 bi em tênis”, publicada em 
8/8/2004, no jornal O Popular. 
138 Dados sistematizados pelo IPEA a partir da PNAD/IBGE de 2001. 
 134
No entanto, chamamos atenção para o fato de que a dita 
população pobre, assim como a classe média, mesmo que raramente, de 
visita aos paraísos artificiais do êxtase-lazer, eventualmente ascende ao 
encantado e divertido primeiro mundo do mercolazer, conseguindo por 
algumas vezes bater as portas do lazer-genérico e do lazer-de-segunda-
mão. Na escalada da pirâmide, levados pelo mimetismo e estimulados 
pelos modismos a espelharem-se nos padrões e hábitos de consumo dos 
“superiores”, de algum modo, os “de baixo” também têm os seus luxos e 
consomem certos tipos de saída. O que estamos querendo dizer com isso é 
que existem setores que não podem ser considerados absolutamente 
excluídos, mas que tampouco são propriamente integrados ao mercado de 
consumo. Não obstante às raras oportunidades de lazer que possuem, 
estas estão cada vez mais contaminadas pela reabilitação do luxo e pelo 
“moderno” das saídas.Esta desigualdade se manifesta pelos objetos e serviços 
consumidos: viagens, teatros, restaurantes, boates, shows, exposições, 
roupas de grife, academias e esportes de aventura contrastam, só para 
ficar num exemplo, com as divertidas escapadelas aos shoppings e 
hipermercados. Mais uma vez se reproduz aqui a polarização das saídas 
ricas para os ricos e das saídas pobres para os pobres. Óbvio que a cultura 
das saídas contradita ainda com a tradição impregnada no modo de ser e 
viver de amplos setores populacionais, cujo tempo livre comporta práticas 
de lazer típicas de uma sociabilidade alicerçada sobre relações de 
parentesco, vizinhança e procedência. Tal expressão categorial refere-se, 
desta maneira, à convergência de hábitos, comportamentos, valores e 
formas tendenciais de organização da vida em que “a oposição cultura 
erudita x cultura popular é substituída por outra: os que saem muito x os 
que permanecem em casa. De um lado os sedentários, que vêem televisão 
quase todo tempo, e deixam o lar apenas para trabalhar. De outro os que 
 135
aproveitam a vida” (ORTIZ, 2000, p. 211). É obvio que tal referência é 
apenas ilustrativa de uma nova e pertinente classificação, pois de modo 
algum as saídas suplantam as antinomias da tradição versus a 
modernidade, do erudito versus o popular, do local versus o global etc., 
mas as sincretizam, associam e combinam dentro de um campo cultural 
mais e mais mundializado, fincando as novas balizes para o consumo no 
capitalismo avançado. 
Nesse sentido, aquilo que estamos chamando de cultura das 
saídas não se aplica fora do contexto do mercado, pois tem justamente 
como base real de referência a cultura de consumo, procurando qualificar 
os padrões e estilos de vida presentes entre os cidadãos-consumidores à 
época presente, e que resultam do processo em voga de relativização da 
necessidade e reabilitação do luxo. Portanto, como fiel expressão da cultura 
de consumo em tempos de globalização e acumulação flexível, ela – a 
cultura das saídas –, pouco a pouco ou às vezes repentinamente, vai 
suplantando a antiga cultura da casa com a qual luta diretamente e que 
serviu de esteio simbólico ao modelo fordista. Corresponde, de acordo com 
Ortiz (2000), à cultura mundializada que finca suas raízes em todos os 
espaços e lugares, independentemente do grau de desenvolvimento de um 
país ou região. Mesmo que de maneira desigual, sua totalidade transpassa 
as mais diversas territorialidades. 
Apenas a título de ilustração, ao olharmos para a cidade de São 
Paulo, podemos diagnosticar que a cultura das saídas na maior metrópole 
brasileira caracteriza-se por hábitos de consumo e opções de lazer que 
ocorrem privilegiadamente em espaços privados. A começar pelos 69% dos 
paulistanos que frequentam shoppings, sendo que 21% deles mais de uma 
vez por semana. Parques e jardins, lugares geralmente públicos, figuram 
em segundo lugar, com a frequência de 64%, um número que talvez se 
justifique em função de tais equipamentos serem considerados como 
 136
sendo os mais apropriados, pelos adeptos da caminhada, para a prática da 
atividade física com o maior índice de adesão entre os paulistanos.139 Os 
demais tipos de saída mais habituais, pela ordem de frequência, são: 
restaurantes (57%); cinema (47%); viajar nos finais de semana (42%); 
bares (40%); shows e/ou espetáculos (36%); livrarias (33%); debates, 
palestras e/ou cursos (31%); exposições (29%); danceterias (28%); jogos 
e/ou eventos esportivos (27%); teatro (24%); clubes e/ou academias 
(19%).140 
Quanto às desigualdades, estas podem ser percebidas a partir 
dos seguintes dados: em bairros como Perus, Pirituba, São Miguel e Itaim 
Paulista, a frequência aos shoppings atinge a casa dos 53%, enquanto em 
áreas ricas como na Vila Mariana e em Itaim Bibi chega aos 87%; na 
mesma Vila Mariana e em Itaim Bibi, 71% dos moradores viajam no final 
de semana, ao passo que apenas 30% fazem o mesmo na excluída região 
periférica do Capão Redondo ou do Jardim Ângela; nos bairros abastados 
de Perdizes e Pinheiros, 66% frequentam livrarias e 54% o teatro, mais do 
que o triplo do verificado em algumas áreas pobres.141 De qualquer forma, 
interessa saber que apesar das enormes disparidades econômicas que se 
propagam e apanham as diversas áreas de São Paulo-SP, é inegável que a 
cultura das saídas atravessa, sincretiza e influencia a totalidade de sua 
multifacetada geografia. 
Está em andamento, portanto, uma mudança em que o modelo 
de produção e consumo em massa do fordismo se preserva na 
 
139 Segundo pesquisa do Datafolha, 44% dos paulistanos pratica algum tipo de atividade física – os 
interesses físico-desportivos do lazer, conforme classificação de Dumazedier (1999) –, sendo que 
este contingente se distribui pelas seguintes opções e/ou modalidades: caminhada (16%), futebol 
(13%), ginástica (4%), musculação (4%), ciclismo (3%), natação (2%), vôlei (2%), corrida (2%), dança 
(2%), skate (2%), artes marciais (1%), basquete (1%), aeróbica (1%) e outras (4%). 
140 Dados produzidos pelo Datafolha divulgados através da matéria “Na hora da diversão”, 
publicada no jornal Folha de São Paulo, em 25/01/2004. 
141 Dados também do Datafolha divulgados na matéria “Na hora da diversão”, do jornal Folha de 
São Paulo, de 25/01/2004. 
 137
convergência de certos hábitos culturais ainda em vigor, mas não são mais 
somente os vínculos da população construídos em torno da região, da 
tradição e de classes definidas segundo níveis de renda as determinações 
que operam sobre a dinâmica contemporânea da cultura de consumo. Ao 
mesmo tempo, a segmentação do mercado, evidente que sintonizada com 
as diferenças quanto ao gosto e ao capital simbólico do freguês, vai 
formatando nichos especializados conforme a especificidade dos valores e 
interesses de indivíduos e coletividades identificados como diversidades 
padronizadas. Assim, sem deixar de observar o poder de compra do 
consumidor, as potenciais e as novas unidades de grupamento, a despeito 
de sua localização geográfica, são categorizadas a partir da comparação de 
segmentos afins no que se refere aos hábitos de consumo, especialmente, 
aqueles que se traduzem pelas saídas realizadas. 
Foi este cálculo que levou os departamentos de marketing de 
várias organizações a adotarem o VALS (Values and Life-Styles), 
desenhado [...], como instrumento de classificação das pessoas. 
[...] De maneira simplista, ele divide a sociedade em grupos de 
estilos de vida: integrados, êmulos, êmulos realizados, sócio-
conscientes, dirigidos pela necessidade. Os dirigidos pela 
necessidade encontram-se praticamente no limiar da pobreza, os 
publicitários têm pouco apreço por eles. O integrado é um típico 
tradicionalista, precavido e conformista. [...] Os êmulos formam 
um grupo pequeno de jovens, desesperadamente em busca de 
identidade. Já os sócio-conscientes são os legítimos 
representantes do espírito “moderno” do consumo. [...] Vestem-se 
nas melhores boutiques, dirigem carros estrangeiros, tomam vinho 
e adoram viajar (ORTIZ, 2000, p. 205). 
O acima assinalado espírito que caracteriza o estilo de vida 
moderno não é outra coisa senão a manifestação mais aparente da 
tendência à relativização do luxo e da necessidade, anunciadora de uma 
 138
nova postura em relação ao consumo, marcada por uma atitude sempre 
orientada para o “demais”, algo inerente ao modo como o capitalismo 
atualmente se comporta, constituindo-se como fator essencial de 
motivação para a expansão do sistema. Nesse ínterim, a versatilidade e a 
flexibilidade da produção especializada para segmentos específicos, ao 
passo que redefine constantemente o ultrapassado e o moderno dos 
variados estilos identitários de consumo e diferentes formas de aproveitar 
a vida, cada qual associada a um determinado mix ou tipos de saídas, 
acaba por redimensionar tambémas práticas de lazer na direção de uma 
nova ordem moral e cultural. Ancorado nos modismos, o mercolazer, 
esvaziado de conteúdo socialmente útil, funda formas de diversão e 
entretenimento cada vez mais sintonizadas com o imediatismo, 
potenciando ao máximo as sensações de prazer e excitação por elas 
produzidas, agora superconcentradas no escape fugaz aos paraísos 
artificiais, na euforia do consumo e no êxtase da aventura. 
Enfim, se no contexto de um tempo livre moralmente 
administrado pelo proibicionismo e pelo puritanismo, sob a tutela do 
fordismo, o lazer chegou a ser admitido como um direito social básico, 
tratado como uma antimercadoria e estendido à população trabalhadora 
como uma espécie de salário indireto, estimulando a poupança e liberando 
seus rendimentos para o consumo de bens duráveis, tudo agora é bem 
diferente. Afora a funcionalidade moral que já não se encaixa muito no 
perfil contemporâneo do lazer – pois muitas vezes é justamente seu 
conteúdo “amoral” que chama atenção –,142 o que prioritariamente conta 
 
142 Exemplo emblemático disto está no turismo sexual e no crescimento das boates, clubes ou casas 
de show que exploram a prostituição. Para atestar tal fenômeno, basta abrir qualquer jornal de 
grande circulação no caderno de classificados e conferir as ofertas da secção de lazer no item 
“acompanhantes”. Não por acaso, conforme notícia do jornal Folha de São Paulo, publicada sob o 
título “A mais antiga das profissões, o mais novo dos negócios”, em 29/7/2002, acompanhando a 
tendência de expansão deste tipo de negócio, um bordel australiano já tratou de constituir 
sociedade anônima, lançando ações na bolsa de valores de Londres, o que causou grande euforia no 
mercado. 
 139
também não é mais seu caráter compensatório no sentido de recuperar 
para o trabalho. Depois de sucumbir à forma mercadoria, seja como objeto 
direto de compra e venda no mercado, seja como valor de uso prometido, 
seja como invólucro estético de outras mercadorias ou seja ainda como 
uma espécie de compra divertida,143 – processo que se manifesta 
justamente pela cultura das saídas –, além de agregar valor a uma série de 
outros produtos e serviços – em setores como habitação, alimentação, 
vestuário, dentre outros exemplos –, ele contribui sobremaneira para o 
incremento do consumo, despertando frequentemente novas necessidades 
e servindo de estímulo a instantaneidade, ao desperdício e à superfluidade 
característicos da sociedade involucral e do padrão da acumulação flexível. 
 
 
 
143 As relações que envolvem a manifestação do mercolazer como valor de uso prometido, como 
invólucro estético, como compra divertida ou como mercadoria propriamente dita serão tratadas no 
próximo capítulo, especificamente, no item que trata do fetichismo do mercolazer. 
 140
CAPÍTULO III 
- DOMÍNIOS DO MERCOLAZER - 
O debate envolvendo a problemática da mercantilização do lazer 
não é algo novo no campo. Inúmeros autores já denunciam tal processo. 
No entanto, mais que estabelecer a tensão com as relações de consumo 
que aqui e acolá conferem o estatuto mercantil a uma outra manifestação 
do lazer, avaliamos que esta é hoje a forma dominante deste fenômeno. Se 
perguntarmos sobre o que é o lazer, é comum ainda encontrarmos 
respostas que o associam à participação e ao desenvolvimento, dentre 
outras possibilidades que evidenciam seu potencial formativo, mas o fato é 
que tendencial e predominantemente o que ele constitui mesmo é uma 
mercadoria cada vez mais esvaziada de qualquer conteúdo 
verdadeiramente educativo, objeto, coisa, produto ou serviço em sintonia 
com a lógica hegemônica de desenvolvimento econômico, emprestando 
aparências e sensações que, involucralmente, incitam o frenesi consumista 
que embala o capitalismo avançado. 
O que estamos querendo dizer é que num movimento como 
nunca antes se viu, o lazer sucumbe de modo direto e irrestrito à 
venalidade universal. A mercadoria não é apenas uma exceção no mundo 
do lazer como antes, mas sim a regra quase geral que domina a cena 
histórica atual. Sobre os infinitos questionamentos que evolvem e 
suscitam tal dinâmica, todos se articulam às determinações que formatam 
 141
a totalidade relacional que ao mesmo tempo cerca e da qual toma parte 
ativamente o lazer. Isto pois o mercolazer tento é reflexo e expressão dos 
divertimentos em tempos de acumulação flexível, como também é 
componente decisivo que opera para a sustentação e o sucesso deste 
modelo de acumulação. Como protoforma da práxis social, o ir sendo do 
modo e formas de produção define as tendências da sociabilidade mais 
abrangente. Por isso foi necessária a discussão que realizamos sobre o 
mundo do trabalho, decifrando as transições que afetam a atual ordem 
econômica, política e cultural, apreendendo deste contexto aquilo que 
incide com maior intensidade sobre o mundo do lazer. Cabe indagar agora 
se o mercolazer não possui as suas singularidades, traços definidores que 
se constroem não à margem do todo, mas que permitam visualizar um 
movimento próprio frente à relação que estabelece com o trabalho e com 
este mesmo todo que integra. 
Neste capítulo trataremos de nos dedicar, portanto, à 
constituição identitária do mercolazer, procurando desvelar algumas 
nuances que envolvem a gênese, a afirmação e os elementos estruturais 
mais fundamentais deste paradigma lúdico do prazer e do tempo livre. 
Afim então de melhor nos situar frente ao desenvolvimento do mercolazer, 
intentamos aqui abordar questões como o tempo cronológico que marca 
seu aparecimento e difusão, sua distribuição econômica e geograficamente 
desigual, seus principais antecedentes históricos, as formas mais 
preponderantes de sua manifestação atual, sua flexível funcionalidade 
contemporânea e seus diferentes modos de produção e consumo, qual o 
papel que cumpre na produção e reprodução do capital etc. Enfim, se 
antes nos debruçamos sobre as determinações que, “de fora para dentro”, 
imputam ao lazer a forma mercadoria, cabe agora encontrar respostas 
sobre qual o papel que o mercolazer joga “de dentro para fora” sobre a 
totalidade-mundo, cientes de que o entendimento deste fenômeno se faz 
 142
igualmente essencial à compreensão da sociedade involucral e ludocrática 
na qual vivemos. 
1. Explosão divertida 
O momento de afirmação do que optamos por chamar de 
mercolazer como o padrão dominante das experiências de lazer coincide 
com o processo de mundialização da cultura, o que ocorre quando um 
conjunto de manifestações e expressões culturais, embora bastante 
diverso, passa a operar sobre uma base material, tecnológica e econômica 
comum, o mercado globalizado. Conforme assinala Ortiz (1994), parques, 
shoppings, restaurantes, roupas, festas, computadores, carros, aviões, 
brinquedos, sanduíches, esportes, danças, filmes, feiras, músicas e vários 
outros produtos carregam os traços e evidências desta envolvente 
dinâmica que apanha e se espalha pelo mundo, invadindo o dia-a-dia, 
definindo formas de sociabilidade, amoldando subjetividades, modificando 
hábitos, valores e comportamentos. É esse movimento que traduz aquilo 
que estamos denominando explosão divertida. 
Embora concordando com Leher (2001), para quem a noção de 
globalização, longe de se apresentar como um marcador temporal que 
signifique mudanças na estrutura do capitalismo, mas, ao contrário, tem 
silenciado o debate sobre a natureza da crise econômica que teria 
motivado a reestruturação produtiva, julgamos que sua utilização pode, 
sim, auxiliar-nos na tentativa de uma periodização que corresponda ao 
momento de afirmação do mercolazer, quando produtos peculiares que 
noutras épocas eram tidos como antivalores ou antimercadoriasse 
submetem à lei geral da produção capitalista. Como diria Marx (2001b), 
houve um tempo em que se trocava somente o supérfluo, o excedente da 
produção. Houve também um tempo que não só o supérfluo, mas todos os 
 143
produtos ganhavam o caminho do mercado. Chegou então o tempo em que 
tudo o que antes era considerado inalienável se tornou objeto de troca. 
Viagens de férias, passeios de fim de semana, cinema, teatro, 
danceterias, bares e restaurantes e parques de diversões estão 
nesse galho florescente da economia. [...] A bilionária indústria do 
entretenimento, ao contrário de outras atividades econômicas, 
raramente vende produtos que podem ser pesados e medidos, 
como um automóvel e um sabonete. Quem compra lazer, 
geralmente está adquirindo coisas imensuráveis, como bons 
momentos com a família ou os amigos, paisagens bonitas, sons e 
imagens, e até status, como poder dizer: fui ao parque tal, no país 
tal. [...] O crescimento das atividades de lazer no Brasil se deve à 
combinação de dois fatores. O primeiro é que o entretenimento 
está em alta no mundo todo. O segundo motivo é a estabilização 
da economia brasileira. É difícil encontrar um único produto ou 
serviço cuja venda não tenha disparado depois do Real.144 
Em tempos de globalização, de acumulação flexível, de 
mundialização da cultura, de venalidade universal, quando se conjugam 
os fatores já identificados – como a superexploração do trabalho, a taxa 
decrescente do valor de uso das mercadorias, as políticas neoliberais, a 
diminuição do tempo de giro do capital, a obsolescência planejada, a 
aceleração dos ritmos e processos cotidianos, a relativização do luxo e da 
necessidade –, a mercantilização do lazer assume proporções de 
dominância, com acentuada expansão dos negócios do setor. No Brasil, 
ainda que percebida e anunciada com entusiasmo como um reflexo da 
estabilidade econômica, a explosão divertida pode sim ser creditada ao 
Governo FHC145, porém, muito mais por sua adesão aos programas de 
 
144 Trechos da matéria “Explosão divertida”, publicada pela revista Veja, em 3/4/1996. 
145 Cabe lembrar que todo o processo de abertura dos mercados, privatizações, modernização 
conservadora e implementação das demais políticas neoliberais no Brasil tem o seu início no 
Governo Collor, em 1990; é tímida e acidentalmente interrompido no Governo Itamar, em 1993; 
depois é retomado com toda força no Governo FHC, a partir de 1994. 
 144
ajuste – privatização acelerada, financiamento ao capital privado, 
enxugamento do Estado, desregulação da economia, nova política fiscal e 
monetária etc. – ditados a partir do FMI e Banco Mundial do que por 
qualquer outro motivo, uma política que, de acordo com Ianni (1999), 
promoveu a subsunção real da sociedade nacional à sociedade global. 
 Todavia, a explosão divertida, bem como o processo de 
globalização, não podem ser vistos como fenômenos que irrompem a 
história de modo assim tão inesperado. A rigor, o capitalismo não existe 
senão como o resultado da formação progressiva de um mercado mundial. 
Nesta perspectiva, os antecedentes da hoje conhecida globalização 
remontam a própria consolidação do capitalismo como um período 
histórico dominado pela relação capitalista de produção.146 Contudo, como 
indica Ianni (1995), é entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1990 que 
o processo de globalização intensifica a internacionalização e integração da 
produção do capital como um amplo sistema de dominação e subordinação 
econômica interdependente. Redesenhando a divisão internacional do 
trabalho, dispersando territorialmente as atividades industriais, 
impulsionando o setor de serviços, derrubando as barreiras comerciais, 
articulando mercados e mercadorias, agilizando os circuitos financeiros – 
tudo isso dinamizado pelas novas tecnologias –, a globalização encontra na 
livre, acelerada e generalizada circulação de capitais a base material para a 
sua preponderância. 
Neste cenário, conforme adverte Mészáros (2002), o notável 
crescimento e desenvolvimento das forças produtivas, trazendo consigo a 
ampliação do círculo de produção, agora globalizado, coloca a necessidade 
 
146 Os antecedentes mais remotos da internacionalização do capital datam do século XIX, contexto 
de uma economia mundial hegemonizada pela Inglaterra, quando são realizados, ainda que em 
reduzida escala, investimentos diretos nos países periféricos, sobretudo na América Latina, 
normalmente junto às empresas envolvidas com a produção de matéria-prima. Para saber mais 
sobre a natureza expansionista do mercado, a tendência a transnacionalização das empresas e a 
dimensão mundial do processo civilizatório inaugurado pelo capital, ver Mello (2000). 
 145
de um novo e diferente tipo de consumo, exigindo que o seu círculo 
também se amplie. Detecta-se tanto o crescimento quantitativo do 
consumo já existente, como a criação de novas e variadas necessidades. 
Para isto, combina-se a abertura de novos mercados em diferentes regiões 
com a propagação de necessidades já existentes, estimulando segmentos 
como menor poder de compra a consumirem mercadorias que antes eram 
somente acessíveis à população com maior renda. Há então um processo 
de generalização e diferenciação do consumo, quando se incentiva o 
mimetismo, pelos “de baixo”, dos padrões e estilos de vida dos 
“superiores”, lógica que tem orientado a propagação do mercolazer pelo 
vasto mercado-mundo em formação. 
Vale ainda dizer que esse processo segue uma tendência de 
desenvolvimento desigual, com incidência e ritmos geograficamente 
diferenciados, variando conforme as determinações econômicas, políticas e 
culturais com as quais toma contato em cada país, região ou pedaço. De 
qualquer modo, não obstante à antinomia centro-periferia, é neste 
contexto que a produção do mercolazer se generaliza. Todavia, ao 
localizarmos na dinâmica da globalização o momento de afirmação das 
relações mercantis como padrão dominante das práticas de lazer, não 
estamos desconsiderando que a antecipação da manifestação do lazer sob 
a forma mercadoria possa ser localizada em datação anterior. Seguindo as 
premissas do desenvolvimento histórico do capital,147 tal antecipação 
apresenta-se como condição para a explosão divertida ou boom do 
mercolazer, momento a partir do qual a categoria do comércio 
decisivamente se apodera deste serviço que antes nela se encontrava 
incluída apenas esporádica ou parcialmente. 
 
147 Sobre o desenvolvimento histórico do capital, especificamente sobre o debate a respeito das 
mercadorias como pressuposto e, ao mesmo tempo, produto do capital, ver Marx (1978). 
 146
2. O epicentro do boom 
Especificamente no Brasil, segundo demonstram Mello e Novais 
(2000), ao passo que dos anos 1930 até o início dos anos 1980, e mais 
aceleradamente dos anos 1950 até o final da década de 1970, o país já 
tinha sido capaz de edificar uma economia moderna, incorporando os 
padrões de produção e consumo dos países centrais, o lazer também dava 
sinais de sua inserção na esfera do comércio. Do aço, passando pelo 
petróleo, a energia elétrica, desde os automóveis, as roupas, os calçados, 
os remédios, os eletrodomésticos, até as bebidas, os alimentos e os 
cosméticos, dentre vários outros produtos, tudo se produzia por aqui. Um 
enorme leque de mercadorias circulantes atestava o avanço da capacidade 
produtiva instalada no país, progresso que foi igualmente acompanhado 
por significativas mudanças no sistema de comercialização, trazendo 
consigo duas grandes novidades, o supermercado e o shopping center, este 
último, inovando ao extremo o recurso da compra vivenciada ou compra 
divertida, começando a fazer da saída ao shopping um prazeroso e 
prestigiado hábito de lazer. 
De 1966 a 1980 foram mais5 shoppings que se somaram ao 
Iguatemi, o primeiro. Daí até o final da década o número subiu para 11 
unidades. Em seguida, nos anos 1990, mais que triplicaram, chegando a 
36, só na cidade de São Paulo148. Pelo restante do país, já são 252 
shoppings distribuídos por 21 estados, abrigando aproximadamente 
40.000 lojas e 1.013 cinemas, com um volume total de vendas da ordem 
de 25,3 bilhões de reais. A evolução dos números no Brasil foi a seguinte: 
até 1971, eram somente 2; em 1981, passaram a 16; em 1991, chegaram a 
 
148 Números organizados pela empresa de pesquisa Estudos Empresariais Ltda., referentes ao ano 
de 2000, divulgados pela Prefeitura de São Paulo. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br. 
Acesso em: 3 set. 2002. 
 147
90; e em 2001, saltaram para 240.149 Juntamente com os números, 
evoluiu também o conceito. Os shoppings são agora temáticos, com 
decoração específica e setorização dos serviços, com atenção especial para 
o lazer.150 Em certa medida, incorporando a identidade de parques, os 
novos shoppings materializam cada vez mais a noção de um shopping 
center híbrido, categoria desenvolvida por Padilha (2003, p. 248) que 
expressa o quão “nos shopping centers, o consumo e o lazer formam um 
par que configura uma nova forma de apropriação do espaço urbano e 
novos hábitos”, o que contribui decisivamente para que o mercolazer 
penetre o cotidiano corrompendo as tradicionais práticas do tempo livre e 
se sobrepondo às demais possibilidades de lazer. 
Dos shoppings aos grandes parques, um outro símbolo de 
mercolazer, a importação e instalação de uma montanha-russa alemã às 
margens do Rio Tietê, na capital paulista, marca a inauguração do 
Playcenter, em 1972. Mas é somente a partir de 1990, no Governo Collor, 
conforme comemora Salomão (2000), quando a IAAPA, por intermédio da 
ADIBRA, com o argumento de reduzir o braziliam entertainment gap151, 
conseguem reduzir os impostos sobre importação de equipamentos para 
parques de diversões, é que o setor realmente se desenvolve. 
Posteriormente, a partir de 1995, já no Governo FHC, quando o BNDES 
inclui o setor no Programa de Apoio aos Empreendimentos Turísticos e a 
Câmara Setorial de Turismo elimina totalmente os Impostos de 
Importação, bem como os Impostos sobre Produtos Industrializados sobre 
 
149 Números da ABRASCE, citados por Padilha (2003). 
150 Conforme a notícia publicada no jornal Folha de São Paulo, de 19/08/2001, sob o título 
“Português investe R$ 700 mi em shopping”, o Parque Dom Pedro, inaugurado um ano depois, em 
Campinas-SP, apresentaria um novo conceito de shopping, incorporando a idéia dos centros 
temáticos. 
151 Termo referente à defasagem da indústria do entretenimento do país, um indicativo para o setor 
do enorme potencial de exploração do mercado brasileiro. 
 148
máquinas, equipamentos e instrumentos para parques, a explosão 
divertida verdadeiramente acontece. 
Agora, se tanto os shopping centers como os parques temáticos 
aportam por aqui fundamentalmente na década de 1970 e explodem na 
década de 1990, nos Estados Unidos, centro precursor deste big-bang, 
como condição para a posterior internacionalização e diversificação da 
indústria do lazer globalizada, as coisas acontecem um pouco antes. Em 
Los Angeles, Califórnia, o parque Disneyland, por exemplo, é construído 
em 1955 e em 1971 dá origem ao grandioso e moderno Walt Disney World, 
em Orlando, na Flórida.152 Trigo (1986), outro entusiasta da explosão 
divertida, destaca que com o novo parque chegaram hotéis, motéis, 
restaurantes, casas noturnas, shoppings etc., reforçando, sobremaneira, a 
oferta dos serviços de lazer local e elevando a posição da cidade no quadro 
econômico geral dos EUA do 75o lugar, em 1970, para o 47o, em 1984. Daí 
em diante, a Walt Disney Attractions estendeu suas atividades a várias 
partes do globo, contando hoje com 10 grandes parques temáticos, 
contabilizando anualmente a frequência de 89,2 milhões de 
consumidores.153 
 
152 Segundo Salomão (2000), o parque Walt Disney World foi erguido sobre túneis especialmente 
pensados para reunir áreas operacionais e de manutenção, sendo pioneiro na utilização de fibras 
óticas e sistemas computadorizados de grande porte. Além disso, foram criados um padrão de 
qualidade na prestação serviços e novas técnicas de treinamento de pessoal. O conjunto destas 
inovações, para nós, pode ser visto como traço constitutivo da modernização organizacional e do 
trabalho que, conforme assinala Antunes (1999), imprimem profundas mudanças no setor 
industrial e de serviços a partir dos anos 1970, quando são inauguradas novas formas de 
acumulação do capital, assentadas sobre o padrão flexível. 
153 Conforme dados do Amusement Bisiness Year-End Issue 1999, citados por Salomão (2000), 
seguindo a Walt Disney Attractions no ranking das dez maiores cadeias mundiais de parques, 
estão: a Premier Parks, com frequência anual de 47,5 milhões de consumidores; a Universal Studios 
Inc., 20,9 milhões; a Anheuser-Busch Theme Parks, 19,5 milhões; a Cedar Fair Ltd., 13,5 milhões; 
a Paramount Parks, 12,3 milhões; o Grupo Mágico, 8,9 milhões; a Blackpool Pleasure Beach Co., 
8,1 milhões; o The Tusseaud Group, 5,3 milhões; e a Silver Dollar City Inc., 4,6 milhões. Destaca-se 
que a maioria destes grupos é formada a partir de grandes fusões do capital divertido, o que 
demonstra a tendência de oligopolização do setor. 
 149
No mesmo ritmo dos parques, os shoppings também explodem a 
partir dos EUA. O primeiro, o Northgate, foi inaugurado em 1950, nos 
arredores de Seattle, Washington. Posteriormente, o quantitativo vai se 
avolumando até que, de 1970 a 1990, segundo dados de W. Rybczynski 
citados por Padilha (2003), cerca de 25.000 novas unidades são abertas 
para o público, colocando o país na liderança do setor. De qualquer 
maneira, o que estamos procurando evidenciar é que nem de longe os 
números sugerem algum tipo de comparação entre EUA e Brasil. Como foi 
dito, a expansão de shoppings e parques segue a lógica da globalização, 
dos centros dinâmicos internacionalizando-se para a periferia, de acordo 
com as premissas do desenvolvimento desigual do capitalismo. Ao 
observar tais equipamentos, exemplos típicos da forma mais desenvolvida 
de equipamentos de mercolazer, podemos notar o progresso de estruturas 
que ressignificam as práticas do tempo livre, corroborando para a 
afirmação de uma sociedade onde o consumo prescinde cada vez mais do 
invólucro do divertimento. 
São inúmeros supermercados, shopping centers, Disneylândias, 
distribuídos no novo mapa do mundo, exibindo mercadorias 
globais destinadas às necessidades reais e imaginárias 
multiplicadas. O marketing global encarrega-se de anunciar e 
pronunciar tudo que é bom-melhor-ótimo-indispensável-
maravilhoso-fantástico. O mesmo cenário criado com a 
mundialização do capitalismo institui o modo de ser característico 
da modernidade-mundo; uma modernidade na qual predominam 
os princípios da mercantilização universal (IANNI, 1995, p. 176). 
Na medida em que a globalização avança, quase tudo o que se 
encontra pelo caminho se transfigura. Mesmo que manifestações do lazer 
sob a forma mercadoria possam ser localizadas bem antes do início dos 
anos 1970, a afirmação das relações mercantis como padrão dominante, 
dando o contorno daquilo que estamos convencionando chamar por 
 150
mercolazer, ocorre justamente no contexto em que a acumulação flexível 
emerge como um processo de reestruturação das relações econômicas, 
políticas e culturais, impulsionando a decisiva universalização do 
capitalismo. Nesta direção, reafirmamos que tais mutações se evidenciam 
em nosso país principalmente a partir da década de 1990, momento em 
que o governo se subordina mais intensamente à globalização,não só 
dissolvendo as fronteiras que antes limitavam a expansão e livre circulação 
do capital divertido, mais do que isso, financiando grande parte dos 
empreendimentos da grande indústria do lazer.154 
3. A mercogênese do lazer 
Apesar da enorme propagação dos shoppings, parques e outros 
grandes equipamentos de lazer, bem como do que chamamos de explosão 
divertida, constituir fenômeno recente, isto não quer dizer que ao recuar 
no tempo, ainda que de modo isolado ou parcial, não possamos registrar a 
prévia manifestação do lazer sob a forma mercadoria. Ao localizarmos na 
dinâmica da globalização da economia e mundialização da cultura o 
momento mais decisivo de afirmação das relações mercantis como padrão 
dominante das práticas de lazer, não ignoramos que os serviços de lazer já 
são comercializados desde que existe o próprio lazer. Todavia, seguindo a 
lógica do desenvolvimento histórico do capital, tal comércio constitui 
condição para a generalizada subsunção do lazer à forma mercadoria, 
 
154 A quase totalidade dos parques temáticos inaugurados no Brasil nos últimos anos foram 
construídos com o impulso de recursos públicos provenientes do BNDES. E segundo consta da 
reportagem “BNDES prioriza sudeste e grandes empresas”, publicada no jornal Folha de São Paulo, 
de 25/12/2002, a construção, na década de 1990, de grande parte dos shopping centers no Brasil 
também foi financiada pelo banco. Já a introdução da noção de grande indústria do lazer tem aqui o 
objetivo de assinalar as desigualdades do setor, normalmente homogeneizado pelo conceito único de 
indústria do lazer, quando, por exemplo, shoppings e parques temáticos são igualados, sob a mesma 
expressão categorial, às fabriquetas de lazer, um variado contingente de pequenas empresas que 
surgem na mesma proporção e velocidade que desaparecem frente à batalha concorrencial que 
travam com as grandes empresas. 
 151
processo este que, de fato, somente tem início a partir da década de 1970 
nos centros dinâmicos do capitalismo. A fim de dissipar dúvidas nesse 
sentido, algumas ocorrências históricas do lazer como mercadoria serão 
revisitadas. Isto nos possibilitará identificar a aparição anterior da 
mercadoria lazer, que apanha apenas isolada ou parcialmente algumas 
experiências, como um pressuposto para a posterior afirmação do 
mercolazer, consequente resultado como forma mais desenvolvida do 
fenômeno lazer compreendido em sua totalidade. 
Iniciando tal incursão, pode-se descobrir que há um ponto 
coincidente em que as origens e antecedentes dos shoppings e parques 
temáticos se entrecruzam, qual seja: as grandes exposições universais, 
expressão do projeto de modernização e desenvolvimento urbano que 
vigorou na segunda metade do século XIX.155 Segundo Padilha (2003), ao 
passo que as cidades adquiriam o contorno das atuais metrópoles, com 
linhas férreas, grandes avenidas, sistemas de esgoto e iluminação pública, 
sem contar as fábricas, os mercados e inúmeros prédios urbanos, a moda 
e o luxo revolucionavam os costumes da época. Neste contexto, antes 
mesmo das galerias e lojas de departamento – equipamentos mais 
conhecidos como sendo os precursores dos shoppings – as exposições já 
estavam na frente, pelo menos no que se refere aos processos de 
fetichização alçados à diversão e ao entretenimento. 
As exposições universais transfiguram o valor-de-troca das 
mercadorias. Criam uma moldura em que o valor-de-uso da 
mercadoria passa para segundo plano. Inauguram uma 
fantasmagoria a que o homem se entrega para se distrair. A 
 
155 Importante destacar que a segunda metade do “longo século XIX”, o século do triunfo do 
capitalismo na forma histórica específica da sociedade burguesa em sua versão liberal, conforme 
Hobsbawm (1992), caracteriza-se por dois períodos distintos: a Era do Capital (1848-1875) e a Era 
dos Impérios (1875-1914), ambos de grande importância para a compreensão da expansão 
capitalista e desenvolvimento da cultura moderna, para nós, dinâmica na qual se insere o próprio 
surgimento e desenvolvimento do lazer. 
 152
indústria de diversões facilita isso, elevando-o ao nível da 
mercadoria. O sujeito se entrega às suas manipulações, 
desfrutando a sua própria alienação e a dos outros. [...] A 
fantasmagoria da cultura capitalista alcança o seu 
desdobramento mais brilhante na Exposição Universal de 
1867. O Império está no apogeu do seu poder. Paris se 
afirma como a capital do luxo e da moda (W. Benjamin apud 
PADILHA, 2003, p. 54). 
Enquanto Paris irradiava o que havia de mais avançado no 
terreno da moda, do luxo, da diversão e do entretenimento, no outro lado 
do Atlântico, os EUA também se apressava por realizar sua exposição. De 
acordo com Salomão (2000, p. 36), “a principal referência à moderna 
concepção de parques é atribuída pela literatura especializada a World’s 
Columbian Exposition”, comemorativa do 4o centenário de descoberta da 
América, realizada em 1893, em Chicago. Como uma espécie de cidade 
simulacro, antecessora tanto dos shoppings como dos parques temáticos, 
as exposições eram empreendimento obrigatório para qualquer cidade que 
aspirasse ao status de metrópole. No Brasil, a primeira urbe a se lançar 
nesta empreitada foi o Rio de Janeiro, com a Exposição Nacional de 1908. 
Entretanto, a exposição de maior projeção foi a Exposição Internacional de 
1922, realizada em homenagem aos cem anos de independência, na praia 
do flamengo, também na então capital do país. 
Para termos uma noção da relação de atrações presentes nesta 
exposição, consultemos o que seu texto guia: 
Construída por mais de 30 edifícios e pavilhões, [a exposição] 
proporcionará ao visitante opportunidades para todos os 
divertimentos conhecidos, comprehendendo: cinematographos, 
theatros, tiro ao alvo, montanhas russas, salas de baile, e 
innumeros outros. O visitante encontrará restaurants, cafés e 
tabacarias no recinto do parque de diversões, assim como amplos 
 153
abrigos para o caso de mau tempo. [...] Cada um dos edifícios 
componentes do parque de diversões terá um estylo architectonico 
característico. Num dos torreões do parque ficará colocada a 
“sereia”, que dará sinal de abertura e fechamento da exposição, 
diariamente (Guia Official da Exposição Internacional do Rio de 
Janeiro em 1922 apud SALOMÃO, 2003, p. 49-50). 
Pode-se argumentar que as exposições, com todo luxo que 
representavam, ainda que constituíssem estruturas inerentes à expansão 
produtiva, dirigiam-se a uma reduzida elite representativa da classe média 
e da burguesia. Ao se reportar especificamente à Exposição de Chicago, 
Gabler (2000, p. 43) contesta a generalização de tal leitura, chamando 
atenção para uma espécie de divisão interna a este tipo de evento: “de um 
lado havia os estandes da mostra, modelos da cultura superior, e, de 
outro, na avenida central, a atmosfera carnavalesca de dançarinas 
seminuas, aleijões e jogos de azar, modelos da cultura de massa”. Aliás o 
autor destaca que o desenvolvimento inicial dos novos divertimentos nos 
Estados Unidos guarda diferenças com relação ao europeu, estando muito 
mais próximo do pastiche do que do refinamento e do luxo próprios da 
herança aristocrata arraigada nos modos de entreter-se difundidos 
naquele continente. Todavia, na busca de uma identidade própria, a classe 
média estadunidense acabou por encontrar um caminho intermediário 
entre o esnobismo e o consumo conspícuo das classes ociosas,156 de um 
lado, e a diversão tradicional e vulgar das classes populares, de outro. 
Segundo o mesmo autor, foi assim que se erigiu a chamada midcult ou 
middle culture, embotando o que vinha “de cima” e levantando o que vinha 
 
156 O consumo conspícuo, categoria desenvolvida por Veblen (1985), em estudo sobre a sociedade 
estadunidensedo século XIX, refere-se ao consumo luxuoso e opulento de bens e serviços valiosos 
praticado pelas classes ricas e favorecidas – a quem o autor chamou de classe ociosa – como 
instrumento de exibição e diferenciação sócio-econômica. 
 154
“de baixo”, pondo em movimento aquilo que, mais tarde, transformar-se-ia 
em regra para os empresários do mercado de massa de lazer. 
Formas de entretenimento popular, originadas das classes baixas 
(...) invariavelmente acabam sendo adotadas, e depois cooptadas, 
pela classe média, que as reconfigura para tirar-lhes todo e 
qualquer elemento subversivo. Assim, no século XIX o romance 
sensacional barato foi transformado pela classe média em romance 
sensacional mais moralista, que usou o mesmo formato dos 
livrecos para fins mais sadios. Da mesma forma, os bares e 
cervejarias onde os trabalhadores podiam tomar um trago e 
assistir a algum show foram transformados em teatros de 
vaudeville bem mais castos, que apresentavam coisa de mais bom 
gosto que os botequins (GABLER, 2000, p. 46-47). 
Em que pese a controvérsia que envolve a definição de cultura 
intermediária, é fato que o dito “bom gosto” que servia de referência à 
resignificação da cultura tradicional camponesa vinha mesmo “de cima”, a 
partir dos valores e modos de vida urbanos das classes dominantes. Em 
consonância com um processo de aburguesamento da sociedade, mesmo 
que inseridos numa contraditória dinâmica de aceitação e recusa, 
sincretizados às manifestações anteriores, como expressão da 
modernidade, o luxo e a moda acabavam por refinar os novos ambientes e 
experiências de diversão, “pois na medida em que as pessoas se tornavam 
urbanizadas, as antigas tradições e práticas que haviam trazido do campo 
ou da cidade pré-industrial tornavam-se irrelevantes ou impraticáveis” 
(HOBSBAWM, 1982, p. 225). Ademais, na outra ponta, para os “de baixo” 
que conseguiam ascender a condições mais razoáveis de vida, “a linha 
entre melhoria individual e coletiva, entre imitar a classe média e combatê-
la com as próprias armas era difícil de traçar” (p. 236). As insígnias da 
respeitabilidade eram conferidas somente para aqueles que se 
 155
identificassem com os valores e estilos de vida definidos a partir dos 
“superiores”. 
No entanto, mesmo diante do arrojo e das particularidades 
inerentes ao desenvolvimento do entretenimento nos EUA, não obstante 
ainda ao fato de que na Europa as diversões e passatempos tiveram 
mesmo como espelho o modo de vida dos nobres, a mais remota iniciativa 
de mercadorização de espaços tradicionais de encontro e divertimento, 
conforme localiza Hobsbawm (1982), deve ser atribuída à Inglaterra, país 
berço do capitalismo, onde a taberna, que se transformou no elaborado 
gin-palace das décadas de 1860 e 1870,157 e seu corolário, o teatro e o 
music-hall, surgiram como uma das primeiras empresas privadas – 
somente acompanhada do mercado e da pequena loja – voltada ao 
mercado de massa. Evidente que a origem do lazer não se articula 
unicamente à sua manifestação mercantil, está ligada ainda a um 
complexo de outras determinações e formas históricas de diversão e 
entretenimento. Entretanto, a partir dos exemplos apresentados podemos 
situar seu surgimento sob a forma mercadoria tanto em compasso com o 
consumo luxuoso e opulento das classes ricas e favorecidas, como também 
em perfeita sintonia com a formação de um incipiente mercado de massa. 
Antes reduzido aos ramos da alimentação e do vestuário, às 
necessidades básicas, o mercado de massa populariza uma série de outros 
 
157 Segundo Hobsbawm (1996), o papel da taberna como ponto de encontro de sindicalistas e 
militantes socialistas é bastante conhecido, ocupando lugar de destaque na definição de um estilo 
de vida e de pensamento comum entre a classe trabalhadora. Paradoxalmente, por volta de 1830, 
começa a ser ressignificada, ou melhor, higienizada e despolitizada, dando origem, sob a forma do 
gin-palace, a uma espécie de empresa de divertimento voltada ao mercado de massa. Vale lembrar 
que K. Marx, em seus manuscritos de 1844, já percebia tal fenômeno, assim comentando-o: “Da 
mesma maneira como a indústria especula sobre o refinamento das necessidades, outra vez 
especula sobre a crueldade, e sobre a sua crueldade artificialmente produzida, cujo verdadeiro 
espírito é, por conseguinte, a autonarcotização, a ilusória satisfação das necessidades, a civilização 
no interior da grosseira barbárie da necessidade. As tabernas inglesas de gin constituem, portanto, 
representações simbólicas da propriedade privada. O seu luxo ostenta a verdadeira relação do luxo 
industrial e da riqueza do homem. São justamente e com razão os únicos prazeres domingueiros do 
povo, tratados com benevolência, ao menos pela polícia inglesa” (MARX, 2001a, p. 154). 
 156
produtos e serviços, dentre os quais o lazer. Claro que o aparecimento do 
mercado de massa não pode ser entendido fora do contexto imperialista de 
dinamização da economia mundial, cuja base geográfica se ampliou 
enormemente. Trata-se, como explica Hobsbawm (1992), da constituição 
de um mercado mundial atravessado por uma forte concorrência entre os 
países industrializados, cenário em que chama atenção a revolução 
tecnológica, cujos novos inventos, especialmente aqueles aplicados ao 
transporte e à comunicação – isto é, os inventos da 2a Revolução Industrial 
– impulsionam sobremaneira o setor do comércio, este , estimulado 
também pelo aumento da população, da urbanização e da renda real. 
Diante de uma economia mundial hegemonizada pela Inglaterra, seguida 
pela Alemanha, Estados Unidos e França, aos países periféricos, não 
restava outra opção senão a importação de produtos manufaturados e 
exportação de primários. 
 Ocorre que a entrada não era somente de produtos materiais, 
pois, com esses, vieram junto de contrabando os modelos e as instituições 
da sociedade burguesa. É certo que o movimento de industrialização do 
Brasil têm o seu início, contudo, ganha muito mais relevo nesta época a 
expansão de um mercado de consumo interno quase que inteiramente 
dependente das trocas externas, gravitando principalmente em torno da 
moda européia. Nesta direção, não só as exposições aportam por aqui. Um 
conjunto de novos comportamentos, muitas vezes definidos a partir da 
apropriação dos divertimentos, coloca em evidência o aparecimento de 
códigos de pertencimento social e estilos de vida orientados pelo consumo, 
processo provocado pela extensão da lógica capitalista que apanhava as 
grandes cidades do país. Exemplo emblemático, a cidade de São Paulo das 
primeiras décadas do século XX representava não só a constituição do 
Estado moderno, o surgimento de uma burguesia nacional, a propagação 
dos ideais liberais, a reorientação do espaço urbano e das transformações 
 157
no mundo do trabalho, mas, também, o nascimento da indústria 
publicitária e da expansão do mercado de bens e serviços culturais. 
O novo estilo de vida, o consumo conspícuo, as formas de 
apropriação e manifestação dos divertimentos, a criação dos 
clubes para as atividades esportivas e de passatempo, bem como 
outras formas de lazer que vão surgindo na cidade de São Paulo, 
no processo de aburguesamento da sociedade, tornam-se 
elementos identificadores e, ao mesmo tempo, segregadores das 
classes sociais. A requintada sociedade paulistana nos anos 20 
viveria intensas emoções proporcionadas pelos encantos do 
comércio e da moda. Um conjunto de práticas esportivas, de 
produtos, de idéias e de comportamentos modernos avançaria pelo 
imaginário social constituindo-se objetos de desejo e de consumo. 
Bares, músicas, danças, roupas, perfumes, produtos de beleza, 
acessórios, agora compunham o universo simbólico da metrópole 
que se achava completamente tomada pela importação de 
novidades e seduzida pelos ensaios culturais dos países europeus(MARCASSA, 2002, p. 96). 
Ressalta-se, porém, que, articulando-se à moda, ao luxo e à 
oferta variada de bens e serviços culturais, outras determinações, 
especialmente o projeto de domesticação da nova classe operária – inserida 
no contraditório jogo de aceitação e recusa dos comportamentos e estilos 
de vida definidos a partir dos “de cima” –, exerce um papel fundamental na 
formatação das manifestações e práticas recreativas que surgem naquele 
momento. As iniciativas conduzidas pelo Estado brasileiro, visando a 
administração das já existentes conquistas trabalhistas sobre o tempo 
livre, sempre buscando coibir o ócio e a preguiça entre a população 
trabalhadora – perigos geralmente associados às formas tradicionais de 
diversão e cultura popular herdados do período colonial e vistos como 
ameaça à ordem e progresso ditados pela nova racionalidade –, cumprem 
papel decisivo no aparecimento e amoldamento dos novos divertimentos. 
 158
A invenção do lazer, conforme situa Marcassa (2002), dá-se como 
um processo amplo e complexo, permeado por distintos interesses, mas 
também atado à exploração comercial do divertimento de massas. Nessa 
perspectiva, a aparição e o desenvolvimento das primeiras empresas 
privadas dedicadas à diversão é encarada como um fenômeno intrínseco à 
própria mercantilização da cultura, algo que, mais tarde, viria a ser 
explicado através do conceito de indústria cultural. “O entretenimento e os 
elementos da indústria cultural já existem muito tempo antes dela. (...) A 
indústria cultural pode se ufanar de ter (...) despido a diversão de suas 
ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias” 
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 126). Isto significa que já em seu 
nascedouro, o lazer mantém estreitos vínculos com a forma mercadoria, 
todavia, com um grande diferencial. Não como na contemporaneidade, 
quando as relações mercantis afirmam-se como padrão dominante, tal 
manifestação se dava antes apenas de modo parcial, pois em paralelo 
corriam outras iniciativas. 
Ao passo que o movimento operário e socialista emergia a nível 
internacional,158 os Estados tratavam de realizar reformas, apelando ao 
sentimento nacionalista, recorrendo à demagogia populista e inaugurando 
programas de bem-estar. O recreio dos novos proletários, os espetáculos 
de massa, os torneios esportivos e as festas cívico-patriotas constituíam 
alguns exemplos de utilização do lazer como instrumento de domesticação 
da classe operária, dada a preocupação com a produção e reprodução da 
 
158 Conforme Hobsbawm (1992, p. 186), com a criação da II Internacional, no Congresso 
Internacional Operário de Paris, em 1889, lançando a exigência de uma lei internacional limitando 
em 8 horas o dia de trabalho, assisti-se a “mais visceral e comovente instituição do 
internacionalismo da classe operária: as manifestações anuais de Primeiro de Maio”. Como 
expressão de uma intensa luta entre capital e trabalho, com ondas de agitação que produziram um 
enorme avanço do sindicalismo organizado por todo o mundo, tais manifestações não tardaram a 
chegar no Brasil, impondo também por aqui, ainda que de modo pontual, limitações à exploração 
do trabalho. Sobre o movimento operário e as lutas pela limitação da jornada no Brasil, ver 
Marcassa (2002). 
 159
força de trabalho. Os antecedentes do Estado de Bem-Estar e do 
reconhecimento do lazer como um direito social no contexto do pós-
2aguerra já estavam dados desde o fim do século XIX. Todavia, ao passo 
que o lazer, como um antivalor ou antimercadoria, ganhava relevo sob a 
forma das políticas sociais, sua manifestação privada, não como 
mercadoria adquirida no âmbito das trocas comerciais, mas como critério 
de identificação e pertencimento de classe – em larga medida, vivenciado 
através do associativismo nos círculos e clubes sociais, aonde o esporte 
ocupava lugar de destaque –,159 também concorreu como um entrave à sua 
imediata e generalizada subordinação real às leis gerais do capital. 
Tínhamos então diferentes tipos de lazer: o lazer privado, dos 
clubes e associações; o lazer público, difundido pelas políticas sociais; e o 
lazer mercantil, disponível no comércio. No entanto, a lógica que embalava 
o lazer estava muito mais ligada a uma orientação ideológica e 
instrumental do que, propriamente, a uma orientação mercantil, ainda que 
ela existisse. Entre os dois primeiros casos, o lazer chegava aos indivíduos 
e coletividades por meio da livre associação ou através da ação estatal e 
suas instituições assessórias, às vezes como concessão, outras como 
conquista, atendendo aos mais diferentes propósitos: diferenciação de 
classe, propaganda nacionalista, cooptação dos trabalhadores, produção e 
reprodução da força de trabalho etc. Em ambos os casos, visto como uma 
antimercadoria e antivalor. Já no último, tratado exclusivamente como um 
negócio, voltado para a busca do lucro, era adquirido pelos indivíduos no 
âmbito do mercado, via relações de compra e venda. Aquilo que se pode 
 
159 Como explica Hobsbawm (1992), o esporte era ainda estritamente amador, com a segregação e 
proibição dos profissionais. Por sua vez, os círculos e clubes, normalmente mantidos por sócios 
contribuintes, atuavam como um universo fora do ambiente doméstico, constituindo redes de 
sociabilidade tanto entre “superiores” como “inferiores”, alargando, de ambos os lados, as 
possibilidades de coesão e ajuda mútua. Deste modo, há um pouco mais de cem anos, momento em 
que a invenção do lazer se faz apreensível, clube-empresa e esporte-mercadoria são categorias fora 
de lugar, permanecendo anacrônicas, pelo menos, durante todo o meio século seguinte. 
Desenvolvem-se mais tarde, na mesma cadência que o mercolazer, explodindo mais recentemente. 
 160
definir como a “virada de mesa”, quando a manifestação do lazer sob a 
forma mercadoria, antes parcial e esporádica, sobrepõe-se às demais, 
como já foi explicado, acontece somente a partir dos anos 1970-90, como 
consequência dos mecanismos de solução da crise estrutural enfrentada 
pelo capitalismo, característicos do contexto de globalização econômica e 
mundialização da cultura. 
4. Tudo vira shopping 
Em 1988, o francês J. Dumazedier, como já dito, reconhecido 
intelectual do campo do lazer, publicava o livro “Revolução cultural do 
tempo livre”. Em que pese nossa discordância da análise, tal obra 
apresenta uma instigante discussão a respeito das transformações que 
apanharam seu país a partir do final dos anos 1960 até os anos 1980. 
Entre a tradição e a modernidade, o boom do lazer funda novas práticas 
culturais, forjando um novo sistema de valores que opera uma revolução 
silenciosa no seio da antiga sociedade, levando sua população a um novo 
modo de vida. Esta é a tese central desenvolvida pelo autor. Pouco 
interessado nas permanências, concentra-se mais em identificar o que 
surge de novo no e com o lazer. Logo na primeira referência à situação 
desse fenômeno no final dos anos 1980 na França, faz o alerta de que 
muitas vezes o lazer tem se reduzido a um novo campo de consumo, 
impondo-se como um poderoso mercado. Mas o que mais nos chama 
atenção é a explicitação de como os franceses receberam os parques 
temáticos. 
Da esquerda à direita, os políticos enxergam, antes de tudo, o 
gigantesco projeto da Eurodisney, uma máquina para a criação de 
20 mil empregos diretos e indiretos, com milhões de pequenos e 
grandes clientes em perspectiva. A indústria francesa do lazer, 
 161
diante da chegada dos equipamentos de recreação de massa à 
moda americana, defende, em primeiro lugar, seus próprios 
interesses ameaçados: 64 parques de lazer “à francesa” tiveram a 
sua construção iniciada com a ajuda do Estado. O primeiro 
inspira-se em contos e lendas “de casa”. O parque de Mirapolis 
abriu em Gergy-Pontoise,dominado pelo gigante Gargantua, de 38 
metros de altura; em 20 de maio de 1987, foi inaugurado com 
grande pompa pelo primeiro-ministro (DUMAZEDIER, 1994, p. 
29). 
Evidencia-se que a chegada da Eurodisney à França foi 
prontamente acompanhada de uma resposta da indústria do lazer local, 
apoiada pelo capital estatal, no sentido de reduzir o entertainment gap 
francês, diminuindo sua vulnerabilidade ante o americam way of life 
subliminar ao capital divertido yankee que acabava de chegar. Com o 
contra-ataque, depois de amargar sérias dificuldades financeiras e 
operacionais, somente após um plano de ampla reestruturação que, em 
1998, a Eurodisney finalmente conseguiu, pela primeira vez desde sua 
inauguração, registrar algum tipo de lucro naquele país (SALOMÃO, 2000). 
Foi um caso típico do famoso protecionismo francês atuando na 
autodefesa dos interesses nacionais. Aliás, diante da percepção de que a 
cultura se coloca como uma questão economicamente estratégica no 
mundo globalizado, a França criou e conseguiu aprovar, no âmbito da 
OMC, uma proposta de exceção pela qual os produtos da industria 
cultural ficam de fora dos acordos comerciais internacionais, uma 
iniciativa que enfrentou a oposição brasileira.160 
A despeito de tal resistência, o exemplo francês revela que o 
entertainment gap de um país, correspondente à defasagem de sua 
indústria do lazer, é sempre medido com referência ao mercado onde este 
 
160 Informação contida no artigo intitulado “Cultura fora da agenda política”, de autoria de P. 
Thiago, publicado no jornal Folha de São Paulo, de 2/7/2002. 
 162
setor da economia se encontra mais desenvolvido. Com quase 500 parques 
e uma visitação anual superior a 100 milhões de pessoas, os EUA são 
disparados a liderança do setor,161 detendo cerca de 50% do mercado 
mundial.162 Ocorre que diante da saturação e forte concorrência do 
mercado doméstico, para continuar se reproduzindo, seguindo as leis 
gerais do desenvolvimento do capital, o capital divertido teve de buscar 
outros mercados. É o caso da Disney que, dominante até a década de 
1980, quando outros grupos, como a Premier Parks, a Busch 
Entertainment e a Universal Studios Inc. entraram mais acirradamente na 
disputa pelo mercado norte-americano, praticando preços cerca de 30% 
abaixo dos seus,163 para continuar expandido-se – isto é, reproduzindo seu 
capital em escala cada vez mais ampliada –, acabou sendo obrigada a 
diversificar e inovar seus produtos, atrair novos segmentos e fixar-se em 
outros mercados. 
Atualmente, o grupo Disney fatura algo em torno de 25 bilhões 
de dólares ao ano, dinheiro resultante da produção de filmes, propriedade 
de canais de TV, licenciamento de marcas, redes de hotéis, agências de 
viagem etc. Os 9 parques que possui – 6 nos EUA, 2 no Japão e 1 na 
França – chegam perto de 20% de seus negócios.164 Sobre o seu 
desenvolvimento no Japão, não reunimos dados. Na França, como já 
indicamos, encontrou resistências e teve de enfrentar a chamada luta 
concorrencial desleal contra os subsídios estatais que impulsionaram os 
 
161 Dados extraídos da matéria “Jardins de lazer foram o início”, publicada no jornal Folha de São 
Paulo, em 22/11/1998. 
162 Conforme números citados por Salomão (2000), em 1997, o mercado mundial de parques assim 
se distribuía: América do Norte (55%), Ásia e Oceania (20%), Europa (20%) e América Latina (5%). 
163 Informação obtida a partir da matéria “Disney World: onde estão as crianças?”, do jornal Folha 
de São Paulo, de 28/11/2001. 
164 Dados igualmente extraídos da matéria “Disney World: onde estão as crianças?”, do jornal Folha 
de São Paulo, de 28/11/2001. 
 163
primeiros 64 parques daquele país.165 E no Brasil? Claro que os produtos 
da Disney chegam aos montes por aqui. Todavia, um parque propriamente 
dito ainda não veio. Mas se a Disney não vem ao Brasil, os brasileiros vão 
até a Disney. Na segunda metade da década de 1990, mensalmente, 
25.000 consumidores partiram daqui para visitarem seus parques, 
colocando o Brasil na terceira posição no ranking de sua frequência 
estrangeira.166 E para que os brasileiros possam se sentir valorizados, a 
Disney já anunciou a construção de um pavilhão temático especialmente 
dedicado ao nosso país.167 
De qualquer modo, ainda que os parques da Disney não tenham 
se instalado no mercado brasileiro, outros já o fizeram. Antes disso, 
porém, como já mencionamos, foi necessária a prévia intervenção da 
IAAPA a fim de remover as barreiras fiscais e demais impeditivos à sua 
penetração. Como se não bastasse, para terem acesso ao financiamento 
público para tal empreendimento, trataram de estabelecer parcerias com o 
capital nacional. 
Empreendedores internacionais incluem as americanas Wet’n Wild 
e NGBS International, e a canadense White Water. Seus parceiros 
locais são grandes construtoras como a Suarez, da Bahia, Método 
de São Paulo, Agenco e o grupo Esta, do Rio de Janeiro. [...] Outra 
gigante a ingressar neste mercado é a Game Works, fruto de uma 
joint-venture entre a Universal, Sega e a Dream Works, empresa de 
Stevem Spielberg. No Brasil, ela é representada por uma 
 
165 Embora a França tenha inicialmente optado por uma estratégia de desenvolvimento da sua 
própria indústria do lazer, isto não significa que tenha fechado as portas para o capital externo, 
muito menos para o padrão Disney. Como diz Dumazedier (1994, p. 30), referindo-se ao Parque de 
Pantoise, financiado em 33% pelo grupo saudita Pharaom, associado à Previdência Social, ao Clube 
Mediterranée, à Cia. Geral de Wagons-Lits e à Concessionária do Serviço de Águas, “a indústria de 
parques é voraz e [logo] se torna multinacional”. 
166 Informação também veiculada pela matéria “Disney World: onde estão as crianças?”, do jornal 
Folha de São Paulo, de 28/11/2001. 
167 Notícia publicada no jornal Folha de São Paulo, em 5/10/1998, com a chamada “Disney vai 
armar o circo e cantar o Brasil”. 
 164
associação do Grupo Multiplan com a Sega Game Works. A Game 
Works planeja investir 400 milhões nos próximos dez anos em 20 
unidades no país. Sua concepção é a de um centro de diversões 
anexo a um grande shopping center, com cerca de 250 máquinas 
eletrônicas de pequeno porte e arena games, jogos exclusivos com 
equipamentos de grande porte em ambientes especiais (SALOMÃO, 
2000, p. 33). 
Por seu turno, as empresas nacionais também vêm realizando 
seus investimentos. Uma associação entre as Organizações Globo, a 
Maurício de Sousa Produções e o Banco Opportunity, com um empurrão 
do BNDES, investiu 10 milhões de reais na construção do Parque da 
Mônica, um parque indoor no Cittá América, híbrido de shopping com 
centro empresarial localizado na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro-RJ. O 
Playcenter, pioneiro na construção de um grande parque no Brasil, 
investiu no Hopi Hari, em Campinas-SP, expandindo seus negócios em 
shopping centers, através de sua cadeia de boliches e parques indoors, as 
conhecidas Playlands, além de lançar-se em projetos de 
internacionalização latina, fincando bandeira na Argentina.168 Do centro 
econômico da poderosa indústria do lazer estadunidense em direção a 
semiperiferia e periferia do mapa da divisão internacional do mercolazer, 
as ondas da explosão divertida vão se propagando. 
Todavia, é seguro que os parques temáticos não representam 
nem de perto o todo da indústria do lazer globalizada. Pelo contrário, 
conforme uma pesquisa norte-americana, eles abocanham apenas uma 
pequena fatia do mercado das diversões e entretenimento. Somente a título 
de exemplo, em 1996, do total dos 431 bilhões de dólares gastos com 
entretenimento nos Estados Unidos, somente 1,62% ficaram com os 
 
168 Dados divulgados pela ADIBRA, citadospor Salomão (2000). 
 165
parques.169 Mas se os parques temáticos não são líderes em arrecadação, 
já se configuram como uma preferência mundial de lazer,170 o que conta a 
favor dos novos investimentos. Assim como os shoppings, por vezes 
confundindo-se com estes, os parques também assumem as 
características, tão bem identificadas por Padilha (2003), de uma 
verdadeira catedral do lazer reificado, cidades artificiais à beira das 
grandes vias facilitadoras da livre e rápida circulação de mercadorias, 
autênticos centros de peregrinação para aonde se dirigem milhares de 
consumidores, lugar em que se encontram representantes dos mais 
diferentes pedaços e territorialidades. 
Juntos aos shoppings, os parques vão avançando, às vezes, como 
simples aliados, como no caso das Playlands, outras, como atrativo 
âncora, como o Parque da Mônica, e, noutras, influenciando-os em sua 
própria concepção, como no exemplo do Parque Dom Pedro. Esses dois 
personagens, parques e shoppings, formas mais desenvolvidas dos 
equipamentos de mercolazer, par-a-par, vão colonizando as demais 
práticas de lazer. Não por acaso, retomando o episódio da chegada dos 
parques à França, contrastando com toda a comemoração e euforia 
produzidas pela construção do Parque de Mirapolis, no dia seguinte à sua 
inauguração, “recebia a visita movimentada de um comando de cem 
 
169 Segundo dados do United States Census Bureau, citados por Salomão (2000), em 1996, os 
gastos com entretenimento nos EUA movimentaram, por segmento, os seguintes montantes: VCRs, 
TVs, eletrônicos, música gravada e fitas de vídeo (95 bilhões de dólares); brinquedos, equipamentos 
esportivos e fotográficos (87 bilhões); livros, revistas e jornais (50 bilhões); entretenimento comercial 
participativo (39 bilhões), categoria na qual se incluem os parques (+7 bilhões); performances ao 
vivo (16 bilhões); plantas, sementes e artigos para jardinagem (15 bilhões); clubes e associações (13 
bilhões); eventos esportivos (6 bilhões); outros (103 bilhões). No segmento do entretenimento 
comercial participativo, para além dos parques, localizam-se ainda, dentre outros equipamentos, 
salões de bilhar, pistas de boliche, casas de dança, parques de equitação, clubes de tiro, ringues de 
patinação, academias de ginástica, clubes de golfe, cassinos etc. 
170 Informação constante do levantamento “Perfil Econômico do Município de Campinas – Análise 
dos Setores Selecionados: Distribuição de Alimentos e Serviços de Entretenimento e Lazer”, 
coordenado pelo economista E. Saraiva, da Unicamp, divulgada através da matéria “Jardins foram o 
início”, do jornal Folha de São Paulo, de 22/11/1998. 
 166
visitantes enfurecidos representando 50.000 donos de carrosséis e circos 
que se julgavam abandonados e ameaçados. Houve pancadaria” 
(DUMAZEDIER, 1994, p. 30). A moderna grande indústria do lazer, já 
numa fase monopolista, bate as portas da tradição, não só impondo 
dificuldades à sobrevivência das pequenas e frágeis fabriquetas de lazer, 
mas corrompendo inúmeras outras práticas e equipamentos, atraindo-os 
ou tornando-os mais atrativos ao comércio. 
Nesta direção, para citar alguns exemplos, podemos começar 
pelos clubes. Em Goiânia-GO, a maior parte deles está no “vermelho” e os 
pequenos estão fadados ao desaparecimento, é o que afirma o presidente 
da FECEG. A bancarrota do associativismo em empreendimentos de lazer é 
explicada, de um lado, pelo fim dos subsídios e estímulos estatais e, de 
outro, pela forte concorrência dos shoppings. Quanto às soluções 
apontadas para a crise, todas passam pela modernização.171 
Paradoxalmente, para o Atlético, tradicional clube de futebol da cidade, tal 
processo de modernização resultou no arrendamento de seu antigo estádio 
para um pool de empresas interessadas na construção de mais um 
shopping no município, empreendimento que ainda não foi adiante.172 Mas 
se no Atlético de Goiânia tal iniciativa foi frustrada, vale a visita ao Atlético 
de Madrid, pois os espanhóis podem muito bem ensinar como as parcerias 
entre os clubes-empresa com empresas turísticas e urbanísticas, dentre as 
quais imobiliárias gestoras de shoppings, dão forma a um poderoso e 
lucrativo negócio.173 
 
171 Informações constantes da reportagem “Clubes no vermelho”, do jornal O Popular, de 1/6/2003. 
172 Tal construção não se concretizou devido ao questionamento judicial do arrendamento movido 
por parte dos conselheiros do clube, paralisando a iniciativa. Notícia veiculada pelo jornal O 
Popular, de 30/8/2003, sob a chamada “Intenção era construir shopping”. 
173 Segundo Simancas (1999, p. 44), o Atlético de Madrid pode ser considerado um clube-empresa 
paradigmático nos negócios envolvendo empreendimentos turísticos e imobiliários. Seguindo seu 
exemplo, regra geral, “a maioria dos dirigentes do futebol espanhol são construtores ou agentes 
urbanísticos”. 
 167
No que diz respeito às festas tradicionais, a Festa do Peão de 
Barretos-SP, com seus 800.000 consumidores, há bastante tempo 
integrando o circuito das grandes mercofestas do país, seguiu o caminho 
dos parques temáticos, transformando-se no Parque do Peão Boiadeiro, 
chamando para si a chancela country da identidade rural brasileira 
(SALOMÃO, 2000). No âmbito das festas religiosas, frente ao estímulo 
dispensado pelo MET ao desenvolvimento da economia do turismo, é 
emblemático o episódio da assinatura de convênio, em plena missa solene, 
com a Arquidiocese de Aparecida-SP, visando a construção de um Centro 
de Lazer e Cultura para os romeiros que visitam a cidade, o chamado 
Parque de Aparecida.174 Já o município de Nova Trento-SC, com pouco 
mais de 10 mil habitantes, talvez nem precise da ajuda do governo. A 
partir da canonização da madre Paulina como a primeira santa do Brasil, o 
turismo religioso explodiu na cidade. As redes hoteleiras Íbis, Le Canard e 
Parthenon se apressaram por anunciar sua instalação. Isto sem falar da 
empresa Bogotur, que propôs a construção de um parque temático sobre a 
Itália na cidade, uma vez que 95% de sua população têm ascendência 
naquele país.175 
Novamente no Estado de Goiás, a Pousada do Rio Quente, 
próxima à cidade de Caldas Novas, que ficou conhecida pelos seus 
encantos naturais como estância hidrotermal e pelos festivais 
gastronômicos que oferecia, resolveu mudar de identidade, agora 
atendendo por Rio Quente Resort. Trocou as viagens terapêuticas e de 
descanso pela agitação própria aos grandes parques aquáticos. Para 
“aferventar” as vendas, investiu 10 milhões de reais na construção do seu 
 
174 Informação divulgada pela matéria “Ministro assina convênio em meio à missa”, da Folha de São 
Paulo, de 13/10/2001. 
175 Conforme a reportagem “Turismo religioso explode em Nova Trento”, da Folha de São Paulo, de 
27/5/2002. 
 168
Hot Park. Contando com o Lazy River, o rio lento, e o Giant Slide, o 
escorregador gigante como suas novas e principais atrações, além de 
espaços para hidromassagem, túnel, bares e equipe de recreação, tudo 
isso no setor aquático, o parque possui ainda atividades ecológicas, boate, 
restaurante, cervejaria, lojas e ambientes de espetáculo. E não fica só 
nisso, planejam para logo a construção do River Park, com toboáguas, 
montanha-russa e uma série de outras novidades.176 Aventura e 
badalação, esse é o tom das práticas que animam o antigo e tranqüilo 
lugar de repouso, inserindo-o no moderno e internacional circuito do 
turismo de lazer. 
Ainda na esfera do turismo, na cidade de Campos de Jordão-SP, 
também conhecida por suas belezas naturais e pelo clima de montanha, 
atrações como o Horto Florestal, o Palácio do Governador, o Museu Felícia 
Leirner e o Auditório Cláudio Santoro, um dos palcos do Festival de 
Inverno do lugar, não foram suficientes para refrear entreos turistas a 
sedução e o fascínio exercido pelos shopping centers. A despeito de todos 
os tradicionais pontos turísticos e equipamentos de lazer da cidade, 
paradoxalmente, durante a alta temporada de 2001, o lugar mais visitado 
foi o Market Plaza Shopping, totalizando 182 mil consumidores. 
Contrastando com a natureza, as grifes que encantaram o ambiente 
fechado do shopping, segundo indica o ranking de visitação da cidade, 
atraíram mais que a fria brisa de inverno, o verde, as águas e os animais 
do Horto Florestal.177 Óbvio que as marcas e grifes estavam acompanhadas 
por celebridades da televisão, transmissão de eventos esportivos, 
restaurantes requintados, um pocket shows e inovadoras apresentações de 
 
176 Dados extraídos da reportagem “Pousada do Rio Quente quer sangue novo”, publicada no jornal 
Folha de São Paulo, em 26/1/1998. 
177 Informações obtidas a partir da matéria “Shopping é o local mais visitado”, do jornal Folha de 
São Paulo, de 27/5/2002. 
 169
circo, tudo para entreter o turista na própria expressão da grande 
mercadoria simulacro que é o sohopping center, mais encantador e 
inebriante que as paisagens naturais igualmente mercantilizadas. 
Por falar em circo, a Disney levou o espetáculo do circo para o 
Downtown Disney, seu centro de entretenimento e compras da Flórida. Em 
um teatro de 1.600 lugares, durante 90 minutos, os 72 profissionais da 
companhia canadense Cirque du Soleil, de quinta a segunda, duas vezes 
por dia, dão uma nova roupagem aos antigos malabarismos e palhaçadas 
do circo tradicional.178 Estandardizada mundialmente pela Disney, a 
fórmula do circo novo ganha os palcos, os shoppings e as telas da TV, 
minando ainda mais a presença dos pequenos circos que insistem em 
circular pelos pedaços de nossas cidades. Mas não só o espetáculo ganhou 
nova feição, distanciando-se da economia familiar, os circos incorporaram 
novas linguagens, uma nova estética e adquiriram o formato da empresa 
flexível. Isto quando não ganharam a fisionomia de ONG’s, as escolas de 
circo que, em grande parte, dirigidas à infância e juventude em situação de 
risco, encontraram na preservação do circo tradicional uma função social 
potencialmente eficaz na captação de recursos.179 
Um último exemplo que também ilustra o quão avançado se 
encontra o processo de agigantamento e metamorfose dos mais variados 
espaços e equipamentos de lazer é o dos museus, cada vez mais 
assemelhados aos shopping centers, é o que afirma A. Siza, renomado 
 
178 Conforme a notícia “Por dentro da Disney: Cirque du Soleil dá cara nova a palhaços”, divulgada 
pelo jornal Folha de São Paulo, de 1/5/2000. 
179 Trazemos aqui o exemplo da Escola de Circo Trampolim, ONG que desenvolvia um projeto 
educativo de lazer junto à infância e juventude assistida pela rede de proteção mantida pela 
Sociedade Cidadão 2000, outra ONG instituída pela Prefeitura de Goiânia-GO para o gerenciamento 
de seus programas sociais dirigidos a essa população. Depois de amargar com os sucessivos atrasos 
no repasse das verbas públicas que recebia através da Sociedade Cidadão 2000, viu-se obrigada a 
mudar de identidade. Transformou-se no Grupo de Teatro Lahetô. Sem abandonar o antigo 
convênio, mas, saindo debaixo da lona, buscando o palco mais requintado do teatro, associando-se 
a outros grupos portadores de diferentes linguagens artísticas e, com um espetáculo mais flexível, 
vem tentando conciliar suas atividades com o caminho do mercado. Ver Veloso (2004). 
 170
arquiteto especialista em museologia contemporânea. “Há uma tendência 
de fazer museus enormes, o que torna a manutenção muito cara. Para 
financiar isso, começam a surgir lojas cada vez maiores e o museu passa a 
alugar seu espaço para atividades que dificultam a concentração”.180 Ainda 
que preservada a essência deste ambiente, ou seja, a exposição das obras, 
a devida concentração, contenção e reflexão diante da história e criação 
humanas ficam, em certa medida, prejudicadas ante a abertura e 
flexibilidade adotadas pelos museus com a incorporação da festa e da 
diversão como recurso para a atração dos visitantes-consumidores e 
incremento do comércio. 
Poderíamos citar ainda vários outros casos de contágio e 
hibridez, como, dentre outras fusões e mutações, as academias de 
ginástica que ganham a fisionomia dos shoppings, a escalada na 
montanha que sobe as paredes das academias, o bungee jump que salta do 
parque às pontes e desfiladeiros, as salas de cinema que esvaziam as ruas, 
as boates e casas de show que embalam as madrugadas dos shoppings, as 
brincadeiras da recreação que animam os parques, as festas tradicionais 
que colorem e decoram os shoppings, a fazenda que empresta ao parque o 
chapéu e o laço como mix temático, os parques que semeiam seus 
brinquedos no hotel-fazenda, os aeroshoppings e rodoshoppings que 
recepcionam os turistas, os parques e shoppings que hospedam os 
clientes, as competições esportivas que estacionam nos shoppings, o 
parque que absorve o teatro etc. 
Estes “formatos híbridos” têm possibilidades infinitas de 
combinação, na medida em que se aproximam também de outras 
modalidades de entretenimento (circos, jardins zoológicos, 
aquariums, danceterias, cinemas) e outras atividades de negócios, 
 
180 Trecho da entrevista com A. Siza, publicada sob a chamada “Museus estão virando shoppings, 
diz Siza”, no jornal Folha de São Paulo, em 3/6/2002. 
 171
como varejo (lojas temáticas) e bares e restaurantes (temáticos). 
Assim, parques temáticos agora têm parques aquáticos em anexo, 
danceterias têm área para games eletrônicos e cassinos contam 
com montanhas russas. A situação torna-se ainda mais complexa 
quando estes empreendimentos se unem para compor os 
chamados Centros Urbanos de Entretenimento, ou Shoppings de 
Lazer (Festival Malls), ou ainda os complexos turísticos e resorts 
multifacetados (SALOMÃO, 2000, p. 76). 
Toda esta amalgamação de instituições e formas encontra sua 
culminância no shopping que se funde com parque, aquilo que, novamente 
lembrando Padilha (2003), podemos chamar por shopping center híbrido, 
equipamento polivalente de lazer181 que eleva à máxima potência possível o 
galanteio amoroso da mercadoria, sempre apelando ao estratagema da 
compra divertida, um prazeroso e lúdico envolvimento interativo e 
fetichista do cliente com o consumo. 
5. Lazer monopolista 
Apoiados nos princípios da flexibilidade e da superfluidade, 
pilares sobre os quais se assenta a lógica do capitalismo avançado, os 
shoppings, parques e assemelhados representam o que há de mais 
avançado em estratégia de comércio, contribuindo sobremaneira com a 
aproximação do consumo da produção. No entanto, a reunião de várias 
modalidades ou ofertas de lazer num só equipamento, com a proliferação 
dos formatos híbridos, não se deve a outro motivo senão ao acirramento da 
concorrência. Sintonizados tanto com o consumo em escala como 
antenados no atendimento aos diferentes tipos de clientes – ou seja, 
 
181 A sugestão categorial de um equipamento polivalente de lazer está baseada na classificação 
proposta por Camargo (1979), na qual figuram os equipamentos médios de polivalência dirigida e 
macro-equipamentos polivalentes, ambos dirigidos ao atendimento de uma grande população com 
interesses diversificados, embora sob a lógica da oferta pública do lazer. 
 172
ajustando massificação com segmentação –, as empresas proprietárias 
destes macro-equipamentos de lazer, como afirma Salomão (2000, p. 75), 
estão sempre “em busca de ofertas originais de entretenimento, novidades 
que renovem a magia e o poder de atrair repetitivas visitas e fortaleçam 
sua posição competitiva”. 
Ressalta-se, porém, que a atratividade de um equipamento,requer, obrigatoriamente, altos investimentos, o que reforça tanto a 
tendência de concentração, algo inerente ao próprio processo de 
acumulação, como de centralização do capital, fenômeno decorrente de 
fatores como concorrência, acesso ao crédito, incorporações, fusões, 
métodos de inovação etc. Tal processo, inerente também à produção e 
reprodução do capital divertido, tem alterado significativamente a 
configuração da indústria do lazer, não só no sentido de sua flexibilidade, 
mas, principalmente, da formação, no setor, do capital monopolista182, com 
a expropriação de capitalistas por capitalistas e a consequente 
substituição dos muitos “capitais-pequenos” pelos poucos “grandes-
capitais”. Assim, quanto menores os investimentos e o porte de uma 
empresa de lazer, maior será sua propensão à mortalidade. 
No caso do Brasil, do total das empresas que foram fechadas no 
ano de 2000, 93,2% empregavam até 4 pessoas.183 Estes dados não se 
referem especificamente às fabriquetas de lazer, mas pressupomos que o 
que se verifica neste setor não destoa daquilo que acontece noutras 
atividades econômicas, pelo menos é o que afirma Salomão (2000, p. 15): 
“nesta indústria, como na natureza, só os fortes sobrevivem. Não constitui 
tarefa trivial, por exemplo, competir com Disney, Sagram-Universal e AOL-
 
182 Para Braverman (1987, p. 231), “é somente na era do monopólio que o modo de produção 
capitalista de produção recebe a totalidade do indivíduo, da família e das necessidades sociais e, ao 
subordina-los ao mercado, também os remodela para servirem às necessidades do capital”. 
183 Dados obtidos a partir do estudo do “Cadastro Central de Empresas 2000”, realizado pelo IBGE, 
divulgado em 2002. Disponível em: http://www.ibge.gov.br. Acesso em: 27 ago. 2002. 
 173
Time Warner”. Ocorre que, mesmo entre as chamadas grandes a 
concorrência também é acirrada. Não por outro motivo, a não ser o da 
concorrência, o processo de fusão da AOL-Time Warner foi judicialmente 
interpelado pela Disney. Sob o argumento de evitar a centralização de 
poder no setor, a companhia tentou insistentemente impedir junto às 
entidades de regulamentação dos Estados Unidos a formação do grupo 
rival184. Talvez os homens de negócio da Disney tenham projetado uma 
situação semelhante a esta: 
Digamos que um homem inicie a sua manhã com o seu rádio 
despertador sintonizado em uma rede de notícias 24h e atualize-se 
lendo no café um semanário popular. Que em seguida vá para o 
trabalho ouvindo CDs em seu carro, trabalhe todo o dia via 
internet e relaxe após o expediente indo ao cinema com sua 
esposa. E que ao retornar para casa encontre os filhos assistindo a 
um canal 24h de desenhos animados e a babá com uma revista de 
fofocas sobre “ricos e famosos”. Como recompensa para as boas 
notas no colégio, cada um dos filhos ganha de presente um boné 
com o seu personagem preferido e uma fita de vídeo com o longa 
metragem animado que eles certamente assistirão até decorarem 
cada uma das falas do roteiro. E para fechar o dia com chave de 
ouro um filme na TV a cabo. AOL-Time Warner. Esta empresa 
sozinha poderia ter sido responsável por cada um dos momentos 
que esta hipotética família viveu neste dia, ocupando todos os 
espaços de lazer e capitalizando com todas as experiências vividas 
(SALOMÃO, 2000, p. 16). 
Ainda que de forma hipotética, tal passagem demonstra como, 
sob os efeitos do capital monopolista – cuja tendência liga-se ao impulso de 
inovar produtos e serviços –, o preenchimento do tempo livre vai se 
tornando todo ele dependente do mercado, por vezes, dominado por uma 
 
184 Informação veiculada pela matéria “Disney quer bloquear AOL-Time Warner”, publicada no 
jornal Folha de S. Paulo, em 21/7/2000. 
 174
ou poucas empresas, que inventam continuamente mais e mais 
divertimentos e espetáculos ajustados às condições e restrições da vida 
unilateral das grandes cidades. Oferecidos como sucedâneos que se 
tornam meios de preencher as horas livres, objetos, serviços e toda uma 
gama de experiências fluem em abundância das mega instituições 
empresariais que transformaram o lazer numa valiosa mercadoria e 
peculiar instrumento para a ampliação do capital (BRAVERMAN, 1987). A 
grande indústria do lazer trabalha, deste modo, não na direção do 
atendimento às reais necessidades humanas, mas sob o imperativo 
absoluto do lucro e da acumulação. 
Não obstante a tais interesses, orientados exclusivamente pelas 
regras de mercado, é recorrente o argumento de que o setor, além de gerar 
excelentes oportunidades de trabalho, materializando-se como uma das 
melhores alternativas de enfrentamento às transformações do mundo do 
trabalho, tem em muito contribuído com a distribuição de renda, 
impulsionando o desenvolvimento social. Faz-se necessário esclarecer, 
contudo, que os dividendos provenientes desta atividade, em sua maior 
parte, correm mesmo é para os cofres das grandes empresas, gerando, no 
oposto, ainda mais concentração e centralização. Neste sentido, a retórica 
da responsabilidade social e promoção do desenvolvimento sustentável que 
cerca a expansão dos investimentos e negócios de lazer é para lá de 
fantasmagórica, merecedora de vários questionamentos, principalmente, 
sobre a qualidade dos empregos que produz. 
As ocupações em serviços de lazer no Brasil empregavam 
1.097.605 trabalhadores em 2001, um crescimento de aproximadamente 
36% se comparado aos números de 1992, quando o mercado de trabalho 
atingia 804.633 pessoas. Sem dúvida, há geração de empregos. Mas temos 
de observar as ocupações abertas. Apenas 42% destas empregam 
assalariados com carteira. Por conseguinte, a maioria não dispõe de 
 175
qualquer tipo de proteção legal contra a sazonalidade da atividade de lazer, 
contra o emprego temporário, contra a exploração do trabalho infantil, sem 
mencionar outros traços de flexibilização-precarização que incidem sobre 
tais ocupações. Os chamado direito do trabalho e a organização sindical 
muitas vez passa ao largo do mercado do lazer. Não é de estranhar, deste 
modo, que mais da metade, 54,4% dos ocupados em serviços de lazer 
ganhe no máximo 2 salários mínimos, o que lhes atesta a condição de 
pobres e miseráveis. Enfim, o trabalho com o lazer, segundo a lógica 
imposta pelo capital divertido, geralmente, é emprego de péssima 
qualidade. Somente 8,2% do contingente de ocupados neste mercado tem 
remuneração superior a 10 mínimos.185 
Quanto à distribuição de renda, o turismo muitas vezes é 
considerado como a “tábua de salvação” da economia nacional, uma vez 
que supostamente tem a potencialidade de captar dinheiro nas regiões 
mais ricas em benefício das regiões mais pobres. Com base nesse 
argumento, o Nordeste brasileiro, por exemplo, tem recebido volumosos 
investimentos públicos e privados para a garantia da infraestrutura 
necessária à expansão de seu parque empresarial turístico, procurando 
disputar a posição de destino preferencial dos paulistas. Mas será que os 
paulistas transferem mesmo renda para os setores economicamente 
desprivilegiados da população nordestina? O turista médio paulista ganha 
R$ 1.114,66 mensais, com um gasto anual per capta de R$ 223,68. Pode-
se alegar, apesar disso, que o turista que deixa o seu dinheiro nos paraísos 
 
185 Dados extraídos da PNAD/IBGE de 2001. Segundo a mesma pesquisa, as ocupações em serviços 
de lazer se dividem pelos seguintes ramos de atividade: serviços de diversão – danceteria, boate, 
cinema, teatro, circo, escola de samba, grupos de dança, brinquedos mecânicos, fliperama, parques 
de diversões, alugues de lancha, salão de bilhar, locadora de vídeos, promoção de espetáculos, 
músicos etc.; organizações esportivas – clube social, federação ou associação desportiva, estádio, 
parqueaquático, quadra esportiva, camping etc.; organizações culturais – museu, biblioteca, centro 
cultural, aquário, jardim botânico, jardim zoológico, reserva ecológica etc; serviços de hospedagem – 
hotéis, motéis, pousadas, hospedarias etc.; serviços de comunicação – empresas de rádio ou 
televisão; e, jogo e outros – cassino, jogo de bicho, clube de caça, bordel, meretrício, prostituição etc. 
 176
da costa nordestina, precisamente 7,7 bilhões de reais, não é o turista 
médio, mas sim os ricos e endinheirados.186 Se assim o for, valeria então 
checar onde exatamente tal turista tem gasto seu dinheiro. 
Grosso modo, o PIB turístico provém da grande indústria do 
lazer. Só no setor hoteleiro, os 50 maiores grupos detêm 150 marcas e 
40% do mercado mundial, reunindo um total de 4 milhões de 
apartamentos.187 No litoral nordestino, onde os hotéis se fazem presentes 
também sob o formato dos resorts, somente a Sauípe S/A possui 5 hotéis e 
6 pousadas, sem mencionar as redes SuperClubs e Club Méd, outras duas 
grandes do setor.188 E quando o turismo inclui a estada num resort, ele 
não só deixa de produzir distribuição de renda, mas realiza ainda uma 
verdadeira operação de destruição dos espaços e paisagens naturais, com 
a construção de cidades-simulacro totalmente dedicadas ao consumo e a 
diversão. Com a chegada dos resorts, normalmente cercada pela velha 
estratégia da especulação imobiliária com vestes de projeto ecológico, 
“quem paga a conta pela falta de natureza e de espaço público na grande 
cidade é a natureza e os espaços distantes dela” (SANT’ANNA, 2001, p. 62). 
Ante as necessidades de majorar os prazeres do turista, as motivações 
impostas pelo lucro e acumulação enfraquecem a defesa em favor do 
chamado turismo sustentável. 
Expansionista, concentradora e centralizadora, a grande 
indústria do lazer não se limita somente a instalar-se em novas e diferentes 
regiões, conquistando novos mercados. Vai pouco-a-pouco convertendo 
todo tipo de prática. Onde penetra, tudo o que toca, transforma em 
 
186 Dados da Fipe/USP, referentes ao ano de 2001, divulgados através da matéria “Turismo 
contribui para a distribuição de renda”, do jornal Folha de São Paulo, de 6/5/2002. 
187 Números noticiados pelo jornal Folha de São Paulo, sob a chamada “Concentração de rede de 
hotéis é forte”, em 27/5/2002. 
188 Informações obtidas a partir da reportagem “Sauípe quer ser destino internacional”, do jornal 
Folha de São Paulo, de 15/10/2001. 
 177
mercadoria. “Tão empreendedor é o capital que mesmo onde é feito esforço 
por um setor da população para ir em busca da natureza, do esporte, da 
arte através de atividade pessoal e amadorista ou de inovação marginal, 
essas atividades são rapidamente incorporadas ao mercado tão logo 
possível” (BRAVERMAN, 1987, p. 237). Há, portanto, de se distinguir, no 
interior desta dinâmica, as desigualdades entre a grande indústria do lazer 
das fabriquetas de lazer. No entanto, salvo as diferentes proporções, tanto 
uma como a outra estão submetidas à mesma lei geral do valor, com a 
agravante de que as fabriquetas de lazer, a fim de suportarem a 
concorrência do mercado, acabam por se ver obrigadas a baixar a 
qualidade de seus serviços e a precarizar ainda mais a força de trabalho 
contratada. 
6. Fetichismo do mercolazer 
Uma vez analisada expressiva quantidade de dados que nos 
permitiram revelar algumas das determinações que operam sobre a 
mercantilização do lazer, bem como desvelar algumas das tendências 
inerentes ao processo de desenvolvimento das organizações empresariais 
que operam no setor, objetivamos, para este momento do texto, apanhar a 
problemática do mercolazer inserida no jogo das relações econômicas mais 
fundamentais. O que intentamos, portanto, é superar as limitações 
impostas pelo fetichismo do mercolazer, processo que nos impede de ver tal 
fenômeno para além de sua aparência mais imediata. Trata-se de uma 
barreira que buscaremos desvendar auxiliados pela teoria do valor, 
sobretudo, a partir de questionamentos dirigidos à posição que o lazer 
ocupa no processo de trabalho, inserido na relação geral da produção com 
 178
a distribuição, a troca e o consumo,189 a começar pela relação de troca no 
interior dessa totalidade. Isto porque, atualmente, sob o jugo da 
acumulação flexível, não é em outro momento, senão no intercâmbio de 
coisas mercantis, que o lazer, metamorfoseado em bens e serviços de 
consumo, produzido segundo os critérios quase que exclusivos da 
vendabilidade, tem manifestado sua real grandeza de valor para o capital, 
o lucro. 
Entretanto, antes de chegarmos à troca, ponto de partida para a 
compreensão de como o lazer se insere na atual dinâmica de produção e 
reprodução do capital, torna-se preciso familiarizarmo-nos um pouco com 
a relação que guardam entre si produção e consumo. Conforme ensina 
Marx (2003), como momentos do processo geral de trabalho, ambos são, 
cada qual, imediatamente, o seu oposto. Toda produção é, ao mesmo 
tempo, consumo, do mesmo modo que todo consumo pode ser considerado 
produção. Observemos os argumentos por ele apresentados. Do lado do 
consumo, pode-se dizer que qualquer produto, uma vez produzido, só se 
confirma como tal, no momento do consumo. Assim como uma bola só se 
converte efetivamente em bola quando é usada, uma sala de cinema a ser 
inaugurada e que, consequentemente, ainda não se consome, não é, de 
fato, um equipamento de lazer, deduz-se. Consequentemente, o produto 
não pode ser entendido apenas como atividade coisificada, mas como o 
objeto para o sujeito em atividade, objeto para fruição. O consumo 
impulsiona a produção, pois sem a necessidade criada ou reproduzida por 
ele não há produção. Por conseguinte, do lado da produção, é ela que 
fornece o produto, sem o qual, não há consumo, o que significa dizer que a 
produção também cria o consumo. 
 
189 Para Marx (2003), produção, distribuição, troca e consumo constituem momentos de uma 
mesma totalidade, o processo geral de trabalho, não podendo, deste modo, diante das 
determinações recíprocas que guardam entre si, serem tratados como momentos isolados, como 
assinala a teoria econômica clássica. 
 179
Aliás, não é somente o produto que a produção cria para o 
consumo, continua ele ensinando. Cria também seu caráter, pois cada 
produto não é um produto em geral, mas um produto que deve ser 
consumido de uma maneira específica, necessariamente, mediada pela 
produção. A necessidade lúdica do ser humano, por exemplo, é sempre 
necessidade lúdica, mas a necessidade lúdica que se satisfaz no jogo de 
bola, entre amigos, é bastante diferente da necessidade lúdica que se 
satisfaz sozinho diante de um aparelho de TV. A produção não produz 
somente o produto do consumo, mas também a forma como vai ser 
consumido. Assim, a produção cria o próprio consumidor – seja ele ativo 
ou passivo –, pois não se limita a fornecer um produto em resposta à 
necessidade, mas fornece também necessidades a um produto. A produção 
de uma exposição fotográfica, de um espetáculo de dança, de uma mostra 
de arte ou de uma peça de teatro, exemplos do patrimônio cultural 
historicamente acumulado e objetivamente desenvolvido, cria, 
dialeticamente, um público capaz de decodificar a estética e apreciar a 
beleza. Neste sentido, a produção não se encarrega somente do 
fornecimento de um produto para o sujeito, incumbi-se, reciprocamente, 
da produção de um sujeito para o produto. 
Logo, a produção gera o consumo: 1o fornecendo-lhe sua matéria; 
2o determinando o modo de consumo; 3o criando no consumidor a 
necessidade de produtos que começaram por ser simples objetos. 
Produz, por conseguinte, o objeto do consumo, o modo do 
consumo, o instinto do consumo. De igual modo, o consumo 
engendra a vocação do produtor, solicitando-lhea finalidade da 
produção sob a forma de uma necessidade determinante (MARX, 
2003, p. 237). 
Segue-se daí que a satisfação de uma necessidade conduz 
sempre a criação de novas e superiores necessidades que se desenvolvem 
 180
com o surgimento de novos produtos para a sua correspondente 
satisfação, portanto, adquirindo novas e diferentes formas. Por sua vez, 
todo e qualquer produto que satisfaz uma necessidade humana possui um 
correspondente valor. Quando o homem em particular, com o produto de 
seu trabalho, satisfaz suas necessidades pessoais, produz valor de uso. 
Contudo, quando não produz apenas valor de uso, mas um valor de uso 
para outrem, objetivando a troca, o que está se produzindo, na verdade, é 
uma mercadoria. As mercadorias são sempre produzidas sob a forma de 
valores de uso, que é sua forma primeira. Nascem para servir a 
determinadas necessidades. Todavia, só são mercadorias por sua 
duplicidade, primeiro, como objetos úteis e, segundo, como objetos 
portadores de valor de troca. Entende-se daí que o valor de uso constitui o 
veículo do valor de troca, o que, em outros termos, significa que nenhum 
produto torna-se mercadoria, possui valor de troca, se não possui 
utilidade, se não tem alguma qualidade que lhe confira um determinado 
valor de uso. 
Ocorre que, sob a égide do capital, todo valor de uso é apenas 
uma isca para a troca, pois à medida que a produção capitalista avança, o 
valor de troca cada vez mais se autonomiza em relação ao valor de uso. 
Com ajuda da publicidade e da moda, lançando seus fetiches sobre a 
mercadoria, o capital se aperfeiçoa em criar e recriar valores de uso de 
acordo com seus interesses e conveniências, elevando à máxima 
potencialidade possível o que se chama por disjunção de necessidade e 
produção-de-riqueza.190 Desse modo, subordina-se a produção de valores 
de uso, que se relaciona diretamente às necessidades humanas, à 
reprodução de valor de troca, que, no oposto, responde às necessidades 
 
190 Para saber mais sobre a disjunção de necessidade e produção-de-riqueza, o que, em outras 
palavras, corresponde à subordinação das necessidades humanas à reprodução de valor de troca, 
ver Mészáros (2002). 
 181
capitalísticas. Por conseguinte, como bem observa Mészáros (2002), ao 
passo que a relação de interdependência que guardam entre si produção e 
consumo, um como criador do outro, coloca-se em desequilíbrio, em 
disjunção, os objetivos da produção acabam por extrapolar as limitações 
do consumo dado, antecipando-se a ele e estimulando, sob uma nova 
reciprocidade, tanto a produção como a demanda conduzida pela oferta. 
Em sendo assim, se a produção de mercadorias não mais 
objetiva a produção de valores de uso como tais, mas a produção orientada 
para a vendabilidade, deparamo-nos, ato contínuo, com novas 
contradições na relação de troca. Uma destas contradições consiste em 
agregar, à forma original do valor de uso da mercadoria, a manifestação 
sensível desse, de outro ou de tantos mais valores de uso adicionais à sua 
respectiva aparência. Neste sentido, se o impulso motivador de todo 
consumidor no momento da compra é, precisamente, o de possuir e 
desfrutar o valor de uso de uma determinada mercadoria, como adverte 
Haug (1997), a aparência estética, os valores de uso prometidos pelas 
mercadorias, surgem como uma função de venda tornada autônoma no 
interior do sistema de compra e venda. Ao passo que certas mercadorias 
têm, primeiro, seu valor de uso original estandardizado; segundo, ao lado 
de seu valor de uso original, outros valores de uso prometidos; ou, terceiro, 
a combinação das duas coisas, sua venda acaba por ser facilitada. Por 
conseguinte, levando-se em conta que tal processo não se constrói de 
outro modo senão pelo trabalho objetivado pelo design e pela propaganda, 
a mercadoria a qual foram colados estes valores de uso corruptores tem 
expandido seu respectivo valor de troca, agregando ainda mais trabalho ao 
seu valor final. 
Estamos nos referindo à produção de mercadorias que envolve, 
em seu processo, tanto a produção precisamente orientada para as 
carências e fraquezas do consumidor, como, também, a produção do 
 182
próprio consumidor, exercitando nele seus prazeres.191 A manifestação 
daquilo que podemos identificar como poder imagético do mercolazer – ou 
seja, o lazer como valor de uso prometido da mercadoria, cumprindo, 
portanto, uma função de venda, manifestando-se como uma espécie de 
galanteio amoroso lançado sobre o consumidor – decorre, justamente, 
desse estratagema. Entretanto, uma vez que a produção de uma 
determinada mercadoria cujo valor de uso original não é o lazer passa a 
incorporá-lo como promessa, tal produção cria também o consumidor para 
esta mercadoria, dando origem a diferentes segmentos e nichos de 
mercado. A produção dos carros da chamada linha off road, os modelos 
esportivos colados à imagem dos chamados esportes de aventura, que 
englobam também os esportes da natureza,192 ilustram muito bem tal 
armadilha, deixando-a mais clara aos nossos olhos. 
A finalidade de um carro, na perspectiva do valor de uso, que 
corresponde diretamente à necessidade de locomoção e transporte das 
pessoas, somente se realiza depois que, uma vez comprado, este mesmo 
carro é utilizado. Mas os carros da linha off road, junto ao seu valor de uso 
original, possuem um valor de uso adicional, isto é, um valor de uso 
prometido, o lazer, neste caso, sob a manifestação dos esportes de 
aventura. Dessa maneira, pode-se dizer que seu valor de uso prometido 
somente se realizaria na utilização para tal fim, na locomoção em 
 
191 Tais fraquezas e carências são compreendidas aqui como uma necessidade prática que, por si 
só, não provoca uma ação consciente por parte do indivíduo. Ao passo que desconhece o objeto de 
sua satisfação, não regula e nem orienta de forma autônoma sua ação. Consequentemente, suas 
necessidades se desenvolvem e adquirem forma conforme o surgimento das mercadorias para sua 
correspondente satisfação. A produção provoca, assim, ao seu bel-prazer, o direcionamento das 
carências para um determinado complexo de mercadorias, processo que coincide com o 
amoldamento da própria subjetividade do consumidor. 
192 Emblemáticos, neste caso, são os modelos Palio Weekend, Strada e Doblò, da fabricante Fiat, 
cujas versões adventure, com suspensão forçada e design mais agressivo, já respondem por 40% do 
total das vendas. Vale o registro, no entanto, conforme a própria empresa aponta, que o público 
alvo destes produtos não é só de praticantes regulares de esportes de aventura, mas, sobretudo, 
seus “simpatizantes”. Dados extraídos da matéria “Grandes empresas radicalizam em estratégias de 
marketing”, publicada no jornal O Popular, em 5/10/2003. 
 183
situações de viagens à natureza. Por outro lado, segundo a ótica do valor 
de troca, a finalidade de um carro, seja ele um modelo off road ou não, 
como a de qualquer outra mercadoria, cumpre-se logo no momento da 
venda, quando seu valor de troca emerge sob a forma dinheiro. Para o 
capitalista, tanto o valor de uso original do carro, bem como sua 
aparência, contendo quantos outros mais valores de uso adicionais, 
inclusa aí a promessa de lazer, são chamarizes para transformar em 
dinheiro o seu valor de troca. Pouco importa se o tipo de carro em questão, 
posteriormente, será submetido a uso todos os dias, nos fins de semana, 
somente nas férias ou a uso nenhum.193 Sua utilidade para o capital não 
tem outra finalidade senão a da venda e a inovação estética da mercadoria 
que produz. 
Da perspectiva do valor de troca importa, até o final – ou seja, o 
fechamento do contrato de compra – apenas o valor de uso 
prometido por sua mercadoria. Aqui reside desde o princípio uma 
ênfase acentuada – porque funcionalmente econômica – namanifestação do valor de uso que – considerando o ato da compra 
em si – desempenha tendencialmente o papel de mera aparência. 
O aspecto estético da mercadoria no sentido mais amplo – 
manifestação sensível e sentido de seu valor de uso – separa-se 
aqui do seu objeto. A aparência torna-se importante – sem dúvida 
importantíssima – na construção do ato da compra, enquanto ser. 
O que é apenas algo, mas não parece um “ser”, não é vendável. O 
que parece ser algo é vendável (HAUG, 1997, p. 26-27). 
 
193 Estamos aqui nos referindo ao valor de uso prometido dos carros da linha off road, ou seja, sua 
utilidade para o lazer. Contudo, de acordo com aquilo que se pode ler em Mészáros (2002), ainda 
que seu valor de uso original – isto é, sua utilidade para o transporte –, fosse também rebaixado a 
ponto de ser consumido parcialmente e com menos proveito – o exemplo seria o de um carro a ser 
utilizado somente para viagens a natureza –, seu valor de troca permaneceria igualmente inalterado, 
obviamente, desde que a demanda pelo mesmo tipo de utilização fosse reproduzida com sucesso. 
Como outra faceta da taxa de utilização decrescente das mercadorias, ao lado da obsolescência, a 
subtilização é, de igual modo, um artifício que ajuda a tornar vendável outro carro. 
 184
O mercolazer aparece, assim, como uma espécie de invólucro 
para certas mercadorias, forjando sua composição estética e exercendo um 
enorme poder de fetiche sobre o consumidor. Em nosso exemplo, a estética 
do carro ganhou um significado qualitativamente novo para codificar as 
viagens à natureza como seu valor de uso prometido. Abstraída de uma 
experiência de lazer, a sua pura manifestação sensível, tornada autônoma, 
colada a outras mercadorias, emprestando-lhes novos valores de uso, 
cumpre uma função de venda na relação de troca, materializando-se como 
um poderoso instrumento para se obter dinheiro. Há então de se distinguir 
a estética do mercolazer do mercolazer propriamente dito, ainda que numa 
relação de determinação recíproca. Entretanto, frequentemente, sua 
abstração estética – seja como invólucro imediatamente colado ao corpo de 
outra mercadoria, ou seja como a imagem de estilos veiculados de modo 
repetido e incessante ao lado de outras imagens mercantis – acaba por se 
precipitar à experiência, estimulando a demanda por certas práticas 
conduzida pela oferta de determinados equipamentos. 
Retomando a ilustração anterior, poderemos ser mais bem 
entendidos. Enquanto, à época do início dos anos 1980, os utilitários 
esportivos eram ainda um hobby entre poucos, as empresas de marketing 
já haviam previsto que os off road se tornariam, no futuro próximo, uma 
“febre de consumo”. Apostavam na carência de lazer de um contingente 
cada vez maior de jovens profissionais bem pagos, porém, muito 
estressados, afoitos por prazeres imediatos que lhes compensassem a 
intensificação do trabalho e aceleração dos ritmos e processos diários da 
vida cotidiana.194 “À medida que a estética da mercadoria interpreta nesse 
sentido o ser das pessoas, a tendência progressiva de seus impulsos, de 
seus desejos em busca da satisfação, o prazer e a alegria parecem 
 
194 Fenômeno identificado a partir da matéria “Faith Popcorn: a guru do marketing”, da revista Veja, 
de 13/2/2002. 
 185
desviados” (HAUG, 1997, p. 79). Neste sentido, o antigo hobby dos 
ultrapassados jipões, desenraizado, acrescido de sofisticação estética e 
estandardizado pela moda e pela propaganda, foi deliberada e 
artificialmente potencializado como tendência. 
Aquilo que foi identificado como potencial função para a 
vendabilidade de uma prática específica de lazer, antes restrita a um 
pequeno círculo de adeptos, foi descolado de sua experiência e, como 
pura abstração estética, como coisa significante, depois de inovada, foi 
acionada a uma nova geração de mercadorias. Acontece que a produção 
deste novo tipo de carro forjou também um consumidor de novo tipo, os 
eco-esportistas, caçadores de aventura ou como queiram chamar. “O valor 
de uso corruptor reage sobre a estrutura das necessidades do consumidor, 
impregnando-o de uma perspectiva de valor de uso deturpada” (HAUG, 
1997, p. 79-80). Destarte, como promessa e finalidade de galanteio, as 
prazerosas viagens à natureza fizeram do hobby de alguns o estilo de vida 
de muitos, fetiche para quase todo o segmento daqueles que laboram 
freneticamente em seu longo tempo de trabalho para gastarem 
extasiadamente em seu curto tempo livre. Enfim, o mercolazer, como coisa 
significante, contribui ativamente para a produção e reprodução subjetiva 
de novos estilos de vida, forjando um terreno cultural do qual o capital 
pode arrancar novas manifestações para a contínua recriação da moda, 
dando origem objetiva a novas e diferentes faces ao mercolazer. 
O que se considera [...] como um ponto de partida – a maneira de 
viver [ou seja, o estilo de vida195] – é bem mais um resultado. Se o 
capital desenvolve e concretiza “idéias”, a partir das necessidades 
 
195 A estética da mercadoria estandardizada pelos modismos, bem como os estilos de vida, segundo 
se pode ler em Haug (1997, p. 132), “não somente arrastam grupos inteiros de mercadorias (...), 
mas também cultivam comportamentos, estruturam a percepção, a sensibilidade e a capacidade de 
avaliação, padronizam a linguagem, as roupas, a autocompreensão, bem como as atitudes e até 
mesmo o corpo, mas sobretudo a relação com ele”. 
 186
atuais de determinados grupos humanos, as necessidades, então, 
não sabem mais o que lhes acontece, tanto mais que apenas os 
segmentos de necessidades “passíveis de serem satisfeitas” sob a 
forma de mercadoria são selecionados e “satisfeitos” mediante a 
oferta de mercadorias (HAUG, 1997, p. 127). 
Assim, como promessa corruptora, a estética do mercolazer 
designa um valor de uso diferencial a um sem número de produtos, 
associando-os a um determinado complexo de mercadorias e conferindo-
lhes a identidade de mercadorias híbridas ou multifuncionais,196 vale 
repetir, servindo não só como uma função de venda autônoma, ativando a 
relação entre produção e consumo, aproximando um momento do outro e 
contribuindo para a aceleração do tempo de giro do capital, mas, pari 
passu, agregando a tais mercadorias ainda mais valor. Isso porque o 
design, o marketing, a aparência e as imagens passaram a ocupar papel 
fundamental na atual dinâmica de valorização do capital, tornando-se, 
espécies muito peculiares de mercadorias (HARVEY, 2000). Logo, a 
produção da estética do mercolazer deve ser entendida como um processo 
de trabalho imaterial, cujo determinado quantum encontra-se coisificado na 
forma final dada às mercadorias funcionalizadas para o lazer.197 
 
196 Para Haug (1997), como decorrência do avanço do design, caíram todas as fronteiras entre as 
mercadorias isoladas, dando lugar a verdadeiros complexos de mercadorias, quando a compra de 
uma mercadoria, em certa medida, obriga a compra de outra, como, por exemplo, o complexo de 
aventura – esporte, carro, roupas, sapatos, óculos, comida etc. Já o que estamos chamando de 
mercadoria híbrida ou multifuncional, diz respeito ao resultado do processo de inovação estética 
que deposita, artificialmente, um determinado complexo de valores de uso num único corpo de 
mercadoria, como o carro que serve não só ao transporte convencional, mas, também, ao transporte 
em situação de viagens à natureza, além de conferir status ao seu possuidor. 
197 Segundo Marx (1971a, p. 119), “a mercadoria pode ser produto de nova espécie de trabalho, que 
se destina a satisfazer necessidades emergentes ou mesmo criar necessidades até então 
desconhecidas. Função que era, ontem, uma entre muitas do mesmo produtor de mercadorias