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Ficha Técnica 
Título original: Dilúvio Sem Deus 
Autor: Joana Amaral Dias 
Capa: Rui Rosa 
Imagem de capa: © Eduardo Gageiro 
Imagens: ©Hemeroteca Municipal de Lisboa 
©Arquivo Nacional Torre do Tombo 
Revisão: Leonor Santos 
ISBN: 9789896609030 
 
OFICINA DO LIVRO 
Uma editora do grupo LeYa 
Rua Cidade de Córdova, n.º 2 
2610-038 Alfragide – Portugal 
Tel. (+351) 21 427 22 00 
Fax. (+351) 21 427 22 01 
 
1.ª edição: Setembro de 2020 
© 2020, Joana Amaral Dias 
e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda. 
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor 
www.oficinadolivro.leya.com 
www.leya.pt 
 
 
 
 
Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de
1990.
http://www.oficinadolivro.leya.com/
http://www.leya.pt/
Joana Amaral Dias 
Dilúvio Sem Deus 
A tragédia que a ditadura escondeu
e que a democracia esqueceu 
 
Aquela azenha velhinha 
Na margem da ribeirinha 
Que p’los vales serpenteia 
 
Foi testemunha impassível 
Da tragédia mais horrível 
Que houvera na minha aldeia 
 
Naquela tarde de inverno 
O céu parecia o inferno 
Estavam os astros em guerra 
 
E a ribeira mal sustinha 
A grande cheia que vinha 
Pelas vertentes da serra 
 
Vendo a ribeira subir 
O moleiro quiz fugir 
Levando o filho nos braços 
 
Pela ponte carcomida 
Já velhinha e ressequida 
A desfazer-se em pedaços 
 
Mas, ai, que a ponte quebrou-se 
E o moleiro como fosse 
Na cheia da ribeirinha 
 
Levou o filho consigo 
E nunca mais moeu trigo 
Aquela azenha velhinha 
 
«Aquela Azenha Velhinha», fado popular 
Para o Diniz 
À PROVA DE ÁGUA 
 
 
 
Foi um episódio meteorológico extremo: abriram-se as cataratas
do céu e, num serão, caiu a chuva equivalente à pluviosidade de
um mês inteiro. Dilúvio sem Deus. Enquanto muitos dormiam, pela
calada, à traição, o nível da água do Tejo subiu quatro metros em
cinco horas. Rios e ribeiros à volta de Lisboa transbordaram e
crisparam-se com força de mar alto, invadindo a capital e os
arredores e engolindo aldeias completas. 
Sucede uma vez por século. Aconteceu em Novembro de 1967.
Com tudo alagado, formou-se uma enxurrada de lama com ondas
de dois e três metros de altura que arrasaram tudo à sua
passagem: sufocaram centenas de pessoas, derrubaram casas,
arrancaram árvores, devoraram crianças, carros, animais. Muito
voava à superfície das águas ensandecidas, muito flutuava. Saldo
de umas horas: mais de 700 mortos, centenas de feridos e
milhares de desalojados. 
Como foram tratadas todas essas pessoas? Que socorro lhes foi
prestado? Nos concelhos de Lisboa, Odivelas, Loures, Vila Franca
de Xira, Alenquer e Oeiras, ficaram inundados os rios e ribeiras do
Jamor, Trancão, Costa, Alenquer, Grande da Pipa, Ossos, bem como
as ribeiras de Algés, Carenque, Lage, Porto Salvo, Alcântara,
Odivelas e Frielas. De repente, a consciência de que habitamos um
planeta inquieto. E que nada é eterno. 
Deus disse a Noé: «Chegou o fim de toda a carne diante de mim,
porque a Terra está cheia de violência por causa deles; e eis que os
arruíno juntamente com a Terra.» Naquele mesmo dia romperam-
se todas as fontes do grande abismo e as janelas dos céus
abriram-se. As águas predominaram tão grandemente sobre a
Terra, que ficaram cobertos todos os altos montes que havia
debaixo de todos os céus. Morreu tudo em que o fôlego da força
da vida estava activo nas suas narinas, todos os que estavam em
solo seco. 
E que história se escreveu das nossas inundações? 
As Grandes Cheias de 1967 estão entre as 80 maiores
inundações do mundo. E foram as mais graves na Europa. A
maioria das cheias com mais de sete centenas de óbitos ocorreu
em países asiáticos, como a China, o Vietname ou a Índia,
frequentemente causadas por monções. Nesse ranking há poucos
registos em solo europeu, à excepção da famosa tempestade do
Mar do Norte, em 1953, que vitimou mais de duas mil pessoas e
atingiu os Países Baixos, a Bélgica e o Reino Unido. Mas repare-se
que, nesse caso, tratou-se de uma inundação provocada por uma
maré. Por chuvas, água doce, a tragédia portuguesa é a maior do
espaço europeu. E, no entanto, tem sido relegada, apagada da
memória colectiva. O lodo tudo sepultou. Grandes Cheias de 1967.
A tragédia que a ditadura escondeu. E que a democracia esqueceu.
Está então na hora de resgatar a História, remir as vítimas do
esquecimento e limpar o seu nome da lama. 
O auxílio aos milhares de portugueses afectados por esta
calamidade foi muito magro. Do ponto de vista psicológico, foi
zero. Nem as populações foram acudidas na altura, nem o País fez,
mais tarde, o seu luto nacional. De Psicologia pouco se falava.
Psicologia da Emergência e Crise era algo que nem existia. Tendo
sido o século XX um período mais para lamentar do que para
celebrar, como dizia George Steiner, muitos campos do
conhecimento (da filosofia à sociologia, passando pela arte)
procuraram perceber e problematizar o horror e a barbárie, tal
como o pensado por Theodor Adorno tanto em Educação Após
Auschwitz, como em O Que Significa Elaborar o Passado, ou pela
psicanalista Hanna Segal em O Silêncio é o Verdadeiro Crime, obras
que, entre outras, revelam os contornos e as dificuldades em
elaborar os traumas colectivos. 
E será possível a metabolização psíquica de processos
traumáticos que, afinal, são tão reais, hiper-reais, que passam à
ordem do não simbolizável, do indizível? Será o luto nesses casos
impossível, como é impossível a superação da morte de um filho,
razão pela qual não há palavra que o descreva (não é dizível) – ao
contrário dos termos «órfão» ou «viúvo»? E qual é a relação entre
o trabalho do luto individual e os processos de luto colectivo? 
Hoje, volvida muita investigação neste campo, sabe-se e
compreende-se que os dois vectores se influenciam mutuamente.
Em situações de trauma massivo, a ausência de um
enquadramento colectivo e de pontos de referência sociais impede
as vítimas de compreender o verdadeiro significado do seu
sofrimento. Assim, muitos dos expostos a estas situações-limite ou
a momentos críticos passam a acreditar que são, pessoalmente,
culpados pelo sucedido, de alguma forma responsáveis pelo antes
e pelo depois, produzindo-se então uma interpenetração de culpas
pessoais e colectivas, com efeitos psicossociais de longo prazo. A
calamidade destrói o sublime, o sagrado, o erótico e a traumatofilia
é depois observável no inconsciente social, nos traumas
cumulativos, nas cadeias de transmissões psíquicas
transgeracionais, nos processos de vitimização e atribuição
colectiva de culpa, nos sonhos e pesadelos apocalípticos, nas
fantasias de fertilidade/infertilidade, intrusão e aniquilamento.
Veremos exactamente como, com que textura e filigrana, nas
próximas páginas. Certo é que ainda hoje (até porque entre
guerras, terrorismo, alterações climáticas e pandemias, o próximo
trauma colectivo é certo), é urgente perceber como se pode
transformar a dor e o silêncio em narrativa e luto, como podemos
passar de memórias encapsuladas para histórias apropriadas
socialmente, compartilhadas. 
PARTE I 
PRANTO DO CÉU 
 
 
 
Era uma menina-mulher, 14 anos. Apareceu numa vala, nua,
completamente nua, umas horas depois das bátegas de água, do
outro lado da linha de ferro da povoação de Quintas, no Ribatejo. A
única coisa que trazia na pele era o relógio parado a indicar dez
minutos para as duas. Um corpo púbere totalmente exposto,
marfim manchado por lamas, apenas com um marcador no pulso
selando a hora da tragédia. Tique-taque. Virgem, mas morta, pura
mas conspurcada por águas terrosas. Teresa Fajardo foi tolhida a
dormir pela água estupradora. Agora, no seu último sono numa
cova barrenta e parada, parecia uma flor aquática em botão. 
Bem longe, a 40 quilómetros de distância, na Urmeira (Loures),
perseguida por um leviatã de lama dentro da sua própria casa,
uma mãe, com o seu bebé de seis meses ao colo, lá conseguiu
escapar para o telhado da barraca onde viviam. Só que continuava
a chover copiosamente. A mãe escorregou e deixou cair o seu
menino naqueladestinos bem piores durante a ditadura em Portugal. Enfim, Salazar
preocupava-se com a miséria só quando era visível e incomodava,
tal como sucedia com os mortos da Guerra Colonial. Quando era
miséria escondida, cabisbaixa, escrava, como a que se vivia em
Loures, em certas zonas do Ribatejo ou em Odivelas, nem os
flamejantes discursos de Humberto Delgado surtiam efeito. 
Nesse concelho o horror não foi menor. A área foi afectada pelo
fenómeno do excesso de construção. Entre 1950 e 1970, a
população passou de 7 mil para 52 mil habitantes. Havia dinamite
prestes a explodir. Rebentou naquela noite. «Tinha eu na altura 19
anos e frequentava a Faculdade de Direito de Lisboa, morando em
Odivelas num quarto alugado e, para sobreviver, dava explicações a
particulares de Filosofia e Latim numa sala de estudos ali para os
lados da Calçada de Carriche, ainda com o seu traçado antigo.
Desci do autocarro número 36 entre as 18 e as 19 horas e, como
sempre, fiz a pé o percurso entre o fim da Calçada e o princípio do
bairro. Chovia não com muita violência, mas com muita
persistência desde o fim da manhã desse dia... e a seguir a um
estio prolongado», lê-se num testemunho no fórum meteopt.com.
«Às seis da manhã acordei eu e outros residentes com os gritos
que se ouviam dos lados das Patameiras… A várzea de Odivelas
tinha deixado de existir... Boiavam alguns carros e centenas de
cabeças de gado... Pelo meio-dia, a garagem das viaturas da
Associação dos Bombeiros Voluntários de Odivelas estava cheia de
cadáveres nas posições mais grotescas, apanhados pelo inesperado
da morte de uma enxurrada. A Calçada de Carriche tinha sido
fatiada em dois segmentos, como um queijo flamengo, e tinha
brechas descomunais. Os automóveis boiavam virados do avesso...
A ligação entre o Senhor Roubado e Odivelas desapareceu. A água
cavou lagos com três metros de profundidade onde, 24 horas mais
tarde, um ciclista acabou por sucumbir. Odivelas, a escassos três
quilómetros de Lisboa, ficou isolada da capital. O cheiro a
cadáveres fez-se sentir por mais dois dias.» 
No Século Ilustrado, conta-se que, «domingo, o solo escalavrado
de Odivelas era uma reconstituição acabada da manhã seguinte ao
dilúvio do Mundo: um caos de lama, poças, escombros e
cadáveres. No meio de tudo isso, a chapinhar, com olhos e gestos
de calmo desalento, nesse fatigado estado de ânimo em que
lançam as tragédias grandes demais – no meio de tudo isso,
pessoas: habitantes da zona que o temporal escorraçara e então
voltavam para examinar o nada que resta dos seus haveres. Parcos
haveres, que a zona não é de gente rica, que as grandes
catástrofes são sempre com gente pobre.» Pois, sempre com gente
pobre. Todos no mesmo barco, claro, mas uns no convés com
direito a salva-vidas e outros em apneia no porão. 
Jaime Assunção, bombeiro em Odivelas, recordou ao Diário de
Notícias com precisão o que estava a fazer quando a sirene tocou.
Soldado da paz não era abastado e carne boa não ia à mesa todos
os dias: «Eu tinha-me casado há um mês e três dias. Tinha um
sobrinho em casa que tinha vindo passar o fim-de-semana, e a
minha mulher resolveu fazer um jantar de bifes com batatas fritas
e ovo a cavalo. Peguei num bocadinho de pão, molhei no ovo e
comi; depois cortei um bocadinho do bife, e o pedaço que estava
no garfo foi a única carne que comi. O alarme começou a tocar e
eu gritei para a minha mulher: dá aí o blusão.» Jaime Assunção
tinha então 27 anos, abandonou sem pestanejar o seu manjar raro
e a pequena festa familiar. Contou como, pouco depois de sair de
casa, reparou que ele e os colegas tinham os casacos e os
capacetes cheios de lama sem terem estado (ainda) nesse lodaçal,
como se a chuva trouxesse poeira do céu. E trazia. Não eram só as
inopinadas ondas que arrastavam barro, o vendaval também
arremessava sujidade e até destroços. Para Jaime, essa noite
nunca mais acabou. Passaria a repetir-se vezes sem fim, como um
disco riscado, um estranho loop de fundo. De uma casa no Silvado
resgatou 35 pessoas. Na Arroja, salvou um rapazito que vinha pela
serra abaixo em cuecas e camisola. Minutos depois de saírem da
ponte, onde fizeram o socorro, esta foi levada pelas águas. Unha
negra. 
José Martins foi um dos bombeiros de Odivelas que estava de
serviço na noite de 25 de Novembro de 1967. A primeira chamada
que recebeu foi para a Ramada, mas não conseguiu passar tal
eram os pedregulhos que a água transportava. Viram pessoas a
serem levadas pelo rio, mandavam fateixas, espias, tudo o que
podiam, a ver se as gentes aflitas as apanhavam, mas o caudal
rugia esfaimado e esses náufragos morriam à sua frente. Relatou à
SIC que, quando ia a entrar na Póvoa de Santo Adrião, escutou
alguém a pedir ajuda. Seguiu o som até uma casa. Com o coração
a palpitar na garganta, rebentou com a porta e encontrou uma
família inteira à mercê da superfície. Já ninguém gemia ou pedia
auxílio – sete pessoas: mãe, pai e filhos. José Martins agarrava em
cada corpo e ia mandado um a um pela porta fora. Como se
fossem peixes mortos, disse. 
Andou dentro de água durante três dias, cedeu a sua cama no
quartel para os desalojados porque a ele também não lhe servia.
Não dormiu. Não quis dormir. Não podia dormir. «Nos bombeiros
nunca há heróis. Os bombeiros servem para salvar pessoas. Não há
heróis”», declarou. «Quando salvava uma pessoa era como se
tivesse ganho o euromilhões. É a maior tristeza que tenho na vida,
ser bombeiro e não poder salvar as pessoas.» 
Odivelas fora construída na pobreza sem caderneta nem placa,
uma pobreza sem estatuto. Odivelas nascera a carpir e era agora
enterrada pelo dilúvio. Por todo o lado, bombeiros e soldados
transportavam mortos e feridos ao colo ou sobre portas de casas,
macas improvisadas. Passavam crianças mortas, os cadáveres eram
colocados a salvo nos bancos das igrejas e viam-se homens
vagueando de olhar vítreo, mulheres trajando negro, mareadas em
lágrimas. Joaquim Letria deparou com os corpos enlameados e
alinhados no quartel dos Bombeiros Voluntários de Odivelas e
recordou que começavam por ser indefinidos, como «estátuas» de
Pompeia depois da erupção do Vesúvio. 
Muitos cadáveres foram arrastados pela corrente e encontrados a
vários quilómetros de distância, alguns em cima de árvores ou de
muros. Outros terão rebolado até ao Tejo e sido carregados pela
corrente. Destino final: oceano Atlântico, um quinto da superfície
da Terra, o mar dos mares, onde se terão perdido para sempre. Paz
às suas almas. 
As águas destruíram sobretudo as habitações pobres, barracas
toscas de madeira, construídas junto à Ribeira de Odivelas ou nas
encostas das elevações vizinhas. A Calçada de Carriche ficou
completamente alagada, abatendo à entrada da povoação. A
ribeira tornou-se num rio. No Século Ilustrado, narrava-se:
«Durante várias horas um homem esteve agarrado a um poste de
electricidade. Gritava, a princípio com muita força, para o fim já
fracamente. Pedia que lhe dessem uma corda, que o acudissem. A
água ia subindo, cobriu-lhe a princípio os pés e subiu depois até à
cintura. O homem não parava de gritar, e todos o vimos erguer
muito os braços quando a água lhe chegou ao pescoço. Mas não a
tapar-lhe a cabeça; antes disso, o poste desabou, e o homem lá
desapareceu, arrastado pela água, sempre a gritar. Já não o
distinguíamos, mas ainda se ouvia gritar.» 
A água preenche tudo, ocupa até ao fim, não deixa nenhum
espaço vazio, e antes que se acabe de dizer o seu nome já está em
todo lado. 
Mário e Elisabete Augusto passaram a morar no Bairro Calouste
Gulbenkian, que todos conhecem como Bairro dos Sinistrados,
construído com o apoio da Fundação depois da tragédia. São
prédios amarelos de três pisos, em Odivelas, não muito longe do
Silvado, de onde conseguiram escapar do primeiro andar em que
moravam, já no dealbar da manhã de dia 26. «Esteve a chover
todo o dia. Era dessa chuva que a gente diz molha-tolos», recordou
Mário ao Diário de Notícias. Nasceu num dia de ciclone em 1941 e
talvez isso lhe tenha marcado a sina, ainda que sem culpa de
sobrevivente. Elisabeteestava grávida. «Veio uma pancada de
pedra», disse ela. «Veio uma grande rebocada de água mais
tarde», recordou ele. E aí começou o turbilhão. Conseguiram pôr-se
todos a salvo nesse primeiro andar. «A minha mãe ainda foi buscar
muita gente, velhotes e tudo, lá para casa, mas depois as escadas
taparam-se com água e já não pudemos sair.» O primeiro andar
transformou-se então numa armadilha de onde só escapariam por
um buraco, «na parte de trás, para a casa do vizinho». Mas não
sem antes Elisabete, com barriga de sete meses, ter salvado o pai,
por um triz. O senhor não queria largar nem por nada uma bilha de
gás acabada de comprar, um pequeno tesouro nas mãos de um
pobre. Hesitava entre deixar a botija ou salvar a própria vida.
Entretanto, «ele caiu num buraco cheio de água e de lama. Meti a
barriga (já grande) assim no chão e puxei o meu pai. Quando vi
que não aguentava mais, gritei. Ia morrendo. Foi um dia e uma
noite que nunca mais se esquecem.» 
Ficaram a viver num barracão do pai de Mário, no Senhor
Roubado, com a família toda e mais tarde tomaram de assalto a tal
casa dos Sinistrados, onde ficaram décadas e onde criaram os sete
filhos. Elisabete explica: «Quando começaram a dar as chaves das
casas novas, houve quem apanhasse 20 a 30 chaves e depois
queriam dinheiro por elas. Tinha aqui uma irmã e um sobrinho que
viram que esta casa estava vazia. Saltaram pela janela, vieram cá
para dentro e chamaram-nos. Veio a polícia e tudo para me pôr na
rua, mas o inspector disse: “A senhora não sai daqui, está de
barriga.” Hoje é minha, eu comprei-a.» Foram tempos de
sobrevivência para uns, e de usura ou agiotagem para os chacais.
Há sempre matilhas nas crises a morder, a atacar as presas mais
frágeis. Ainda assim, desta família não morreu ninguém. «A minha
cunhada esteve em cima da barraca com a filha quando os
bombeiros chegaram e deitaram-lhe a mão. Assim que ela saiu do
telhado, a casa foi por água abaixo», contou Mário. 
Naqueles dias, o quartel dos Voluntários de Odivelas
transformou-se numa morgue. Guilherme Duarte Esteves, então
ajudante do comando, estava doente em casa com 39 graus de
febre quando o foram chamar. «Às 21h já havia muitos pedidos nos
bombeiros. A coisa começou a complicar-se mais a partir das
22h20/22h30, a chuva era muita, às vezes parecia o dilúvio. Vinha
lá de cima de Caneças, da Arroja, aquilo é tudo a descer, vinha
desembocar tudo a Odivelas. Foi uma calamidade muito grande»,
recordou, aos 77 anos, ao Diário de Notícias. «Na Rua do Souto
estava uma pessoa entalada, era o Abílio. Esse foi o primeiro morto
a vir para os bombeiros de Odivelas. Ainda chamei a doutora, mas
ela não conseguiu fazer nada. De seguida dirigi-me ao Silvado, fui
para lá com uma equipa de seis ou sete homens, já mal se podia
circular. Tivemos de agarrar umas espias a uns postes de
electricidade para podermos passar para lá, mas entretanto dei
logo com uma moça de 18 anos, morta, toda nua. Meti-lhe uma
mantazinha por cima, e essa foi a segunda pessoa morta a entrar
nos bombeiros. A partir daí começámos a encontrar mais mortos,
foi uma loucura. Foi começar a trazer mortos para o quartel»,
relatou. «Odivelas era um mar de água porque daqui ao Senhor
Roubado eram hortas de um lado e de outro. A Póvoa de Santo
Adrião era um mar autêntico. No outro dia à noite tínhamos 200 e
tal mortos no quartel. E tínhamos cerca de 50 pessoas desalojadas
das que conseguimos trazer para cá.» 
No chamado Pátio das Carroças, Guilherme Duarte Esteves
encontrou um homem de 82 anos, entalado entre a palha e o
À
telhado. «Às 23 horas, abri a porta e entrou-me em casa um porco,
apavorado. Os animais também morreram, às centenas, e os que
se salvaram erravam pelos campos, cheios de medo», escuta-se
num testemunho à SIC. Só no Pátio do Silvado, morreram mais de
100 pessoas. 
No relatório da Corporação dos Bombeiros Voluntários de
Odivelas pode ler-se: «A primeira chamada de pedido de socorro
foi recebida pelas 21h10 para o lugar do Silvado, onde havia várias
barracas inundadas e animais em perigo. Às 22h30 começaram as
chamadas para gente que se encontrava em perigo nos seguintes
locais: Bairro Espírito Santo, Silvado, Pombais, Póvoa de Santo
Adrião, Olival Basto, Senhor Roubado, Urmeira, Bairro de Santa
Maria, Pontinha, Serra da Luz, Famões, Bairro da Barrosa, Odivelas,
etc. As viaturas começaram a sair por ordem de urgência até às
23h10. Às 23h40 estava consumada a grande catástrofe com todas
as estradas cortadas para Odivelas, e centenas de pessoas a gritar
pedindo para as salvar.» Como seria para estes homens de farda,
muitos apenas miúdos, suportar tanta responsabilidade, correr
tantos riscos, tocar em tantos mortos? 
Muita gente, tanta gente resgatada pelos bombeiros: «O primeiro
salvamento foi feito na Calçada do Tojal, donde retirámos uma
mulher entrevada que estava prestes a morrer afogada (…) na
Arroja foram salvas duas crianças (de 2 e 3 anos). Estes
salvamentos foram feitos pelo bombeiro de 3.ª classe n.º 14, o
qual, a nado e às escuras, conseguiu retirar as crianças, pelo que
sofreu vários ferimentos.» O relatório é extenso e contam-se
dezenas e dezenas de vidas poupadas. 
Pelas quatro da madrugada, começaram a chegar ao quartel as
primeiras levas de corpos, homens, mulheres e crianças,
transportados por barcos de borracha daquela corporação e
também pelos pertencentes aos Fuzileiros Navais, que entretanto
estavam igualmente a prestar auxílio. Os três dias seguintes foram
de resgate de mortos. Só se viam olhos parados. 
Abílio Rodrigues da Silva nunca esqueceria aqueles dias dolorosos
de Novembro de 1967. Quando chegou ao quartel dos bombeiros
de Odivelas, às 6 horas da manhã do dia seguinte, já lá estavam 17
cadáveres. Durante os três dias e noites subsequentes, nunca
parou, ele e os colegas. Ninguém foi à cama ou a casa, e Abílio
ainda hoje se espanta de como aguentou. «Passaram-me 63
mortos pelas mãos.» 63. Nunca se esquecerá. Um a um. Contou-
os. E passaram de forma literal: era preciso tirá-los da lama,
carregá-los de braços ao alto em tábuas, que não havia macas –
nem, na maior parte dos sítios, carro que passasse –, e levá-los até
ao quartel. Os corpos eram contados e transportados para o
Instituto de Medicina Legal, onde eram arrumados por área de
origem. O instituto «estava cheio até acima, íamos todos lá levar,
de Algés, de outros sítios, de todo o lado, andávamos por cima dos
corpos para pôr os outros», disse Abílio à Sábado. Quando
finalmente parou e voltou a casa, não ia o mesmo: «Não consegui
pegar nos meus filhos ao colo». O trauma transforma. Um dos
filhos era bebé, o outro tinha 2 ou 3 anos. «Não consegui.»
Compreende-se. 
 
* 
 
Depois de um grande desastre ou de um cataclismo são
habitualmente observáveis sintomas psicológicos graves, como
instabilidade emocional, reacções de stresse, ansiedade e trauma.
A remissão total destes quadros é possível, seja do ponto de vista
individual seja na dimensão comunitária, sobretudo se existirem
factores protectores e de resiliência e/ou uma intervenção técnica
adequada. Note-se que, nas Grandes Cheias, muitos dos factores
protectores, como a estabilidade económica, estavam
comprometidos e, escusado será dizer, acompanhamento
psicológico estava fora de questão. Luto colectivo? Como? Se o
tirano escondia mortos e dor. 
Seja como for, em alguns casos a recuperação não é total,
levando a complicações como patologias psicóticas, de ansiedade,
depressivas ou stresse pós-traumático. Há hoje evidência científica
de que as hecatombes, para além de todos os prejuízos materiais e
da disrupção que provocam, afectam a saúde mental. No rescaldo,
as respostas mais comuns são o estado de choque, a
desorientação e a incapacidade de integrar informação agressiva.
No momento subsequente, é muito comum a erupção da
ansiedade e do nervosismo, a sensação de assoberbamento, forte
irritabilidade, repetição mental involuntária de imagens e sons do
acontecimento. Estas memórias surgem sem aviso prévio,
frequentemente acompanhadas de reacções fisiológicas como
aumentoda sudação ou dos batimentos cardíacos, prejudicando a
atenção, a concentração ou o processo de tomada de decisões. Em
alguns casos, verificam-se alterações graves do apetite ou do sono
e acentuada reactividade aos estímulos do meio ambiente, como
sirenes ou barulhos que ressoem aos da catástrofe. 
Os pobres estavam abandonados à sua sorte. Já tinham sido
largados antes do cataclismo, deixados para trás nas casotas de
lusalite e argila. Depois, continuaram a ser lançados aos bichos,
esquecidos e ignorados. Ficaram sós a cozer as subtracções, a
enterraram-se vivos no sofrimento das perdas. 
Também Oeiras apresentava graves problemas habitacionais,
visto que o êxodo do interior de Portugal para Lisboa não
encontrava no centro da cidade possibilidades de habitação.
Rechaçada, era então nos concelhos limítrofes que essa grande
massa populacional achava uma chance. Assim, também aí os
bairros-de-lata e outros aglomerados clandestinos distribuíam-se
por zonas de cheias, leitos de rios e perigosos vales. Estima-se que
no concelho de Oeiras, existissem cerca de 12 mil pessoas a viver
em barracas, a palavra tabu, as sete letras interditas, o nome que
era sempre rasurado pelo regime. Barracas. Barracas. Barracas. 
Pelos assentos, que não indicam as profissões, é impossível
avaliar o estatuto económico e social de cada um dos mortos. Certo
é que uma vez, por exemplo, se faz menção a um bairro
degradado: o Bairro das Minhocas, na freguesia de Nossa Senhora
de Fátima, bem no centro de Lisboa, onde pereceu um habitante
da barraca nº 24 037 – já não bastava ser barraca, era ainda mais
reduzida à indiferença pela numeração. Mas é inquestionável que
muitos dos lugares devastados eram os bairros-de-lata que
enxameavam a periferia da Grande Lisboa e que acolhiam gente a
viver na mais profunda lástima. 
A região de Oeiras, marcada por várias linhas de água como o rio
Jamor e as ribeiras de Algés, Barcarena, Porto Salvo, Lage e Ossos,
que correm para o rio Tejo, foi duramente atingida pela tremenda
tromba de água, quer nas zonas mais urbanas (vila de Oeiras,
Algés, Dafundo, Cruz Quebrada, Caxias e Paço de Arcos) quer nas
rurais (Ribeira da Laje, Porto Salvo, Tercena, Murganhal, Valejas,
Outurela e Pedreira Italiana). 
Parques, jardins, praças, ruas e habitações, tudo foi coberto pela
lama. Também o concelho de Oeiras ficou sem electricidade e sem
abastecimento de água e viu condicionada a circulação dos
transportes ferroviários e rodoviários. A Ribeira da Laje foi um dos
lugares mais zurzidos – era habitada por populações que viviam em
casebres construídos junto a zonas de cheias, gente pobre vinda
das áreas rurais, que desconhecia completamente o perigo da área
que ocupava. Para além disso, era uma população vítima da
especulação de quem arrendava aquelas modestíssimas
habitações. 
Havia famílias que viviam em grutas nas ribanceiras encostadas
ao cemitério. A memória colectiva também dissipou estas imagens
mas, à época, muita gente na Península Ibérica vivia em buracos
no chão ou em cavernas nas rochas, como hoje ainda se verifica
em Sacramente e Guadix, em Espanha. Conta O Século na sua
edição de 29 de Novembro: «A maior tragédia deu-se na Ribeira da
Laje, próximo de Oeiras, onde as águas convergindo dos montes
abriram profunda clareira dentro da povoação, fazendo ruir cerca
de dez habitações, uma das quais foi arrastada pelas águas, tendo
morrido afogados os seus locatários (pai, mãe e dois filhos
menores). Pode afirmar-se que os habitantes da Ribeira da Laje
viveram horas de verdadeiro terror. Ninguém se lembra, nesta
região, de um temporal com tais proporções.» 
A Ribeira da Laje não tinha iluminação, o que contribuiu para o
pavor e prejudicou a luta pela sobrevivência. Era a escuridão total
quando a chuva torrencial pronto se derramou por todo o lado,
cobrindo tudo e gerando toneladas de lama que, a par com as
fortes rajadas de vento, esculpiam a fúria dos elementos e calavam
os gritos de pânico ou os pedidos de socorro. 
O Palácio Marquês de Pombal foi alagado. A inundação das
respectivas casas-fortes resultou em enormes prejuízos,
nomeadamente destruindo o património da Fundação Gulbenkian
que aí se encontrava guardado. O Centro de Biologia da fundação
foi igualmente castigado pelas águas que alagaram o rés-do-chão,
a zona das caves e subcaves, danificando o Biotério, o Laboratório
de Genética e o de Fisiologia Vegetais. Centenas de animais que aí
se encontravam morreram e muitos equipamentos técnicos
especializados ficaram destruídos ou avariados. 
Em Barcarena, a ribeira transbordou. Os portões de ferro da
Fábrica da Pólvora foram torcidos como se fossem finos arames e a
devastação foi geral. A igreja de Barcarena também não foi
poupada. A muralha do adro desabou e causou elevados prejuízos. 
Vasco Pereira abriu a porta com duas voltas na fechadura e
entrou de passo estugado. Seguia de muleta e, como muitos que
marcham apoiados, vão rápido, como que a exibir, orgulhosos, o
préstimo do auxílio. Foi acendendo as luzes de caminho. Deu a
volta à capela de São Sebastião, em Barcarena, e parou depois do
altar para apontar para o coro. Era ali, no andar de cima, o quarto
dos pais de uma família de sete que, «durante anos», viveu na
À
capela. «À entrada, lá ajeitaram as coisas.» Usavam o pequeno
corredor lateral, mas nunca o altar, nem o redondo da assembleia
daquela igreja agora empregue para cerimónias fúnebres. «Essa
família perdeu a casa, no Bairro dos Pescadores, para a Cheia. Por
isso, o padre João – um canadiano – ofereceu-lhes a capela por
uns tempos. Os filhos ainda casaram por lá.» 
Dedicada a São Sebastião, protector dos doentes da peste e dos
artilheiros, esta capela nasceu, nada mais, nada menos, do que de
um moinho, algures no final do século XVI. O anfitrião fala do
«redondo da assembleia» porque se trata de um dos poucos
exemplos deste tipo de arquitectura em templos católicos, pela sua
planta circular. Vasco tinha 35 anos nas cheias. Servia desde os 16
nos bombeiros de Barcarena e já tinha as memórias sulcadas pelas
explosões na Fábrica da Pólvora. Havia de ver e socorrer outras
tantas, mas nada supera «o Domingo da enxurrada». «Ninguém
sabia o que vinha com a chuva.» 
Nos dias seguintes, foram recolher e distribuir roupas, alimentos
e móveis. Alguns foram ajudar as populações «que acatavam os
seus mortos em frente ao Palácio de Queluz». «Era o ofício dos
bombeiros», revelou ao diário Público. 
O Jamor e a subida das águas do Tejo alagaram caves e
invadiram o comércio da baixa de Algés. O jornal Ribamar diria: «A
água rebentou as paredes e invadiu assustadoramente as casas.
Destroçou móveis, arrastou roupas e trens de cozinha, desfez
dinheiro, fez uma amálgama dos géneros de mercearia, inutilizou
centenas de aparelhos eléctricos de toda a espécie; os automóveis
foram sacudidos como brinquedos entre os muros ou passavam de
ruas para quintais, levados no turbilhão das águas. De manhã, às
dezenas, os automóveis eram montes de lama com as chapas
torcidas. As ruas apresentavam um aspecto desolador.» 
«Nisto surgiram uns bombeiros que avançavam com água pelo
peito», lê-se noutro testemunho. «Já não me lembro de como é
que os bombeiros conseguiram fazer descer as pessoas de cima do
telhado. Fizeram uma fila indiana, os bombeiros a apoiar os mais
fracos, até saírem pelo que hoje corresponderia à boca do túnel do
Pingo Doce.» 
Em As Gotas de Ar Frio, de Ana Paula Teixeira Torres, lê-se o
seguinte testemunho de Helena Abreu: «Nós tínhamos uma
vizinha, gostávamos muito dela, da Rua Ernesto da Silva
(morávamos nessa rua). Chocou-me imenso quando soube o que
lhe aconteceu, fico transtornada de cada vez que me falam disto,
conhecia-a muito bem. No local onde ela trabalhava fizeram uma
homenagem às pessoas que completavam 25 anos de serviço e ela
foi homenageada na véspera, ou na antevéspera do dia em que se
deram as Cheias. Ela estava muitíssimo feliz, e para ir à
homenagem tirou umas joiazinhas que tinha, pô-las no quarto,
eram as jóias para levar à homenagem. Depois, voltou a tirá-lasno
quarto, quando chegou a casa, a seguir à homenagem. E, nesse
dia, começou a ver entrar a água. Segundo me disseram, entrava
água até pelas sanitas! Ela morava nessa altura na Rua Luís de
Camões, nas caves. Quando se lembrou que as jóias estavam no
quarto, voltou a correr para as salvar, só que a porta fechou-se. Ela
começou aos gritos, a água a subir vertiginosamente, ela aos
gritos, aos gritos, aos gritos e o marido correu a acudir-lhe. Tentou
abrir a porta e ela só dizia: “Vai-te embora que eu estou perdida!
Salva-te, salva-te, salva-te!”, e ela morreu afogada lá dentro.»
Helena Abreu acrescenta: «Não sei quando nos demos conta de
que a situação estava a tornar-se perigosa. Creio que foi tudo
muito rápido. De repente, a Rua Damião de Góis era um rio e os
carros iam arrastados na corrente para acabarem empilhados junto
ao jardim ou à Marginal. Não sei se havia iluminação pública a
funcionar, creio que sim, caso contrário não veríamos os carros e a
enxurrada. No terreiro das traseiras, os carros boiavam em círculos.
Tocavam-se levemente, mas não chocavam. Era como se
estivessem a brincar.» 
Algés parecia que tinha sido bombardeada: gente a perder a vida
esmagada por móveis ou escombros, pessoas afogadas, prédios a
ruir, homens e mulheres a morrer ao tentar salvar os seus parcos
bens, vários a atar os carros às árvores para não os perderem. A
maioria dos veículos, mesmo assim, foi-se na enchente e, na
manhã seguinte, só restavam as cordas, como se de cavalos
selvagens se tratasse. Desapareceram no mar, levados no tropel
como simples barquinhos de jornal. Outros apareceram pendurados
sobre muros e vedações. O morador Isaac Santos contaria que algo
semelhante sucederia aos corpos dos seus pais: «O meu pai foi
encontrado em Algés, já a entrar no Tejo, e a minha mãe, oito dias
depois, num caniçal em Carnaxide.» 
Como se não bastasse, já na manhã de domingo deu-se a
explosão do paiol de Linda-a-Velha. Helena Abreu tinha 23 anos e,
passado meio século, questionava-se se aquilo teria mesmo
acontecido porque «ninguém falava nisso». A testemunha integrou
o grupo Histórias de Vida, das bibliotecas municipais de Oeiras que,
a partir de 2014, se dedicou à recolha de testemunhos e ao registo
da história do concelho. «Eu morava na Damião de Góis. Foi a
noite toda com a chuva. A chuva parecia cordas, cinco, seis horas,
pumba, pumba. No sítio onde agora é o Pingo Doce era uma vila
de casas baixinhas, e as pessoas estavam em cima do telhado e
gritavam para nós, que estávamos na janela, lá em cima, depois
vieram os bombeiros. A minha mãe resolveu dar guarida a essa
família da cave, eram mais três pessoas lá em casa. Por volta das
cinco ou seis da manhã conseguiram fazer-se as camas no chão e
acalmar as pessoas, a ver se a gente dormia uma horinha ou duas.
Às sete da manhã, pás!!, ouve-se a explosão. Em Algés partiram-se
muitos vidros. Em Linda-a-Velha ficou tudo destruído. Segundo o
presidente da câmara, 90 por cento dos vidros, 40 por cento dos
telhados», contou ao Diário de Notícias. 
Os bombeiros de Linda-a-Pastora lembram-se bem do
«pandemónio», conforme relataram ao mesmo jornal. Os portões
de ferro do quartel ficaram dobrados com as ondas de choque da
explosão. «Íamos a subir a auto-estrada no pronto socorro e dá-se
a explosão, de tal ordem que os cofres da viatura abriram-se
todos», contou Miguel Antunes, então adjunto do comando.
«Felizmente não houve vítimas, porque aquilo rebentou quando
não estava ninguém naquele sector, foi o TNT que rebentou»,
disse. 
Mas, afinal, que explosão foi essa? Em Linda-a-Velha existia o
Forte do Carrascal/Paiol de Munições, que servia de armazém de
material militar explosivo pertencente ao Exército e que se
destinava a ser enviado para África, a fim de ser usado na Guerra
Colonial. Na madrugada daquele domingo, dia de preceito, por
volta das 7h30, em pleno temporal, deu-se aí uma violenta
explosão. O primeiro alarme fora dado às 4 horas, quando se
ouviram rebentar algumas munições. Às 6h30 acendeu-se um fogo
no forte. As chamas começaram no compartimento onde estavam
armazenadas bombas de fumo. A causa foi a entrada da água, que
atingiu grandes quantidades de fósforo aí existentes e que se
inflamou por reação química, pegando fogo a caixas de bombas de
fumo e a detonadores. 
Enquanto se via o clarão da explosão, escutou-se um grande
estalo, um estrondo, cuja onda sonora se propagou por
quilómetros. A sua força provocou uma brutal deslocação de ar,
que partiu vidros das janelas das áreas e provocou uma chuva de
pedras, terra e cascalho. O estoiro semeou o pânico nas
populações que, temendo uma segunda explosão, fugiram dos
lugares próximos para Algés e mesmo Paço de Arcos, percorrendo
a pé a distância até àquela localidade. 
Segundo a imprensa da época, se o material tivesse rebentado
na sua totalidade, os estragos teriam sido bem mais dramáticos,
com vítimas mortais, já que estavam depositadas no local cerca de
seis toneladas de TNT. Dava então à estampa o jornal O Século:
«Quanto às causas do fogo no paiol, soube-se, em contradição com
a primeira hipótese de curto-circuito que, no local, não existe
corrente eléctrica, já para evitar acidentes. Assim, apurou-se que
no paiol houve uma inundação que atingiu cerca de um metro e
meio de altura, tendo a água alcançado as granadas incendiárias
de fósforo, o que provocou uma perigosa combinação química.» 
O mesmo jornal noticiava no dia 26 de Novembro: «A cidade foi
desperta por um terrível ruído. O forte foi pelos ares. Os vidros,
numa vasta zona, voaram em estilhaços. Receia-se que haja
mortos e feridos. Por toda a parte, vidraças voaram em estilhas,
inúmeras barracas de pobres desabaram como castelos de cartas, a
Igreja de Carnaxide veio a baixo.» Noutra edição, acrescentar-se-
ia: «Ouvimos o Jacinto Alves Félix, de 15 anos. Segundo as suas
declarações, estava agarrado aos arames que vedam o acesso ao
forte, a ver o fumo do incêndio: “De repente, caiu aos meus pés
uma coisa que fez um barulho dos demónios! Não sei o que era,
mas desatei a fugir, enquanto várias pessoas, que estavam
próximas, se atiraram para o chão. Eu fugi, as pedras, juntamente
com pedaços de ferro, quase me caíam em cima.”» 
A polícia esteve então a interditar a circulação, não deixando
entrar ninguém na localidade sem identificação. Uma espécie de
Estado de Emergência sem Decreto de Lei. Como medida de
segurança, o trânsito foi cortado na auto-estrada por vários dias e
montado um perímetro de segurança em torno do forte. 
Após a explosão, na manhã de segunda-feira, dia 27, vários
boatos começaram a circular entre as populações de Linda-a-Velha,
Barcarena, Algés, Carnaxide, Caxias, Dafundo, Cruz Quebrada,
Amadora e Queluz. Um maremoto na costa portuguesa estaria
iminente, receando-se também novos rebentamentos no paiol e na
Fábrica da Pólvora de Barcarena. Para o levedar desses rumores e
atoardas tinha contribuído o estado emocional das populações,
vulnerabilizado pelos mortos das Grandes Cheias, pelos desalojados
e pelas avultadas perdas materiais. O medo acaba por parir mais
medo. Só que as notícias falsas gastavam saliva, mas também
faziam correr tinta. O jornal O Século reservou várias páginas ao
assunto, com fotografias e factos falsos que tiveram de ser
desmentidos e corrigidos. 
Desde os anos 90 que, aliando técnicas como a Tomografia Axial
Computadorizada, a investigação demonstra que os precipitantes
do trauma são arquivados no cérebro como um rasto
neurobiológico – por exemplo, uma pessoa esfaqueada terá sempre
uma sensibilidade específica ao toque. Esses estímulos
indelevelmente associados à situação traumática são processados
na amígdala, uma zona do cérebro que lida com os instintos de
sobrevivência primários e que contrasta com o hipocampo, área
responsável por cognições complexas. A amígdala, que se acende
como uma pista de carrinhos de choque perante um desses
catalisadores do rasto neurobiológico, é incapaz de assimilação ou
análise racional. Resta-lhe o pensamento concreto e as emoções
negativas, contexto no qualmais facilmente se aceita informação
errada ou distorcida, mais simplesmente se tomam como certas as
suas próprias interpretações dos acontecimentos, mesmo que
formuladas sob alta pressão. 
Os boatos eram acompanhados por recomendações para os
habitantes: os de Algés, Paço de Arcos e Oeiras deviam fugir para
as praias; os de Caxias, Amadora e de outros locais para as
encostas. Aureliano Duarte, «93 anos e 90 de bombeiro», recordou
ao Diário de Notícias que foi toda a gente para a beira-mar.
«Pusemos o pessoal lá do estádio nas camionetas e foi tudo para o
Guincho», recordou João Baptista, também bombeiro, que
trabalhava no Estádio Nacional. Alberto Brito, bombeiro em Oeiras,
andou de megafone, a pedido da polícia, a mandar as pessoas
todas para a fralda do Atlântico. E depois vieram os saques, os
ladrões. «Uma população com tudo destruído pela água, uma
explosão às 7 da manhã, não houve nenhum governante que
fizesse um discurso a acalmar as pessoas, que se sentiam
abandonadas, assustadas e aterrorizadas», resumiu Helena Abreu. 
O pânico instalou-se: o telefone foi usado e abusado entre
famílias para avisar do perigo e para ligar para os jornais a pedir a
confirmação das notícias. A comunicação social sempre prestava
mais esclarecimentos do que as autoridades. As escolas fecharam;
o trabalho foi interrompido; as fábricas encerradas; muitos
abandonaram as suas habitações ainda recheadas com os seus
poucos bens de valor e de estimação, à mercê dos gatunos. Muita
gente vagueava pelas ruas, meio enlouquecida, meia suspensa, à
procura de familiares, de respostas, de ajuda. 
Devido a esse alarme, assistiu-se, então, a um verdadeiro êxodo
populacional. Rapidamente, as estradas ficaram atafulhadas de
milhares de carros, bicicletas, motocicletas, autocarros e até
carroças pejadas de pessoas. Houve um engarrafamento de vários
quilómetros. 
O cenário era de filme apocalíptico e foi necessária a intervenção
das forças policiais para que todos regressassem às suas casas. O
Governo Militar emitiu uma nota oficiosa: «Não há motivo para
alarme. Não há nada a recear. As nossas brigadas preventivas
estão no paiol; hoje esse fumo é já inexistente. O que se diz sobre
a eventual explosão no Carrascal é boato inconsistente.» Porque o
Partido Comunista aproveitou para consciencializar a população dos
riscos de armazenar explosivos junto de áreas habitadas, as
autoridades aproveitaram também para imputar os rumores a essa
organização partidária. Mortandade, fome, miséria, mas o
abocanhar do poder persistia. 
Na Amadora, as zonas mais atingidas foram as do Bairro da
Porcalhota, Vendas Novas e Reboleira, locais onde se registou o
rebentamento de condutas. O nível das águas chegou a atingir dois
metros de altura na zona da Porcalhota. Também aí faltou a
corrente eléctrica. Mais para o lado da Falagueira, na Quinta da
Laje e na Pedreira do Aires, os bairros de barracas que aí se
encontravam ficaram bloqueados pelas águas e lamas que se
acumulavam, distribuindo o terror entre os seus moradores. No
Bairro das Marianas, em Carcavelos, e do outro lado, na ribeira de
Sassoeiros, os prejuízos também foram consideráveis. 
Em Queluz, o rio Jamor em fúria criou uma noite apavorante. Na
Avenida Elias Garcia, todo o lado direito de um prédio de quatro
pisos desmoronou-se como se fosse um castelo de cartas. Houve
mortos a lamentar. 
Registaram-se também inundações nas zonas baixas de
localidades na margem sul do Tejo, como Almada, Barreiro, Costa
de Caparica, Porto Brandão, Cova da Piedade, Trafaria, Torre da
Caparica. A zona mais atingida foi a Trafaria, que sofreu enormes
danos devido às fortes correntes de água e de lama que destruíram
barracas de gente pobre, rojando os seus despojos pelas áreas
circundantes. Os bairros de Romeiras e de Santa Marta ficaram
devastados. Naqueles locais viviam centenas de famílias em
habitações precárias que rapidamente foram destruídas pelo forte
caudal de água e de lama, obrigando os seus moradores a fugirem
para as zonas mais altas, para não se afogarem. Algumas das
barracas de madeira onde viviam, não resistindo à pressão da
corrente, foram arrancadas do solo e ficaram a boiar naquela pasta
de lama. Outras foram levadas pela própria corrente, percorrendo
dezenas de metros. Muitas famílias ficaram desalojadas. 
As cheias no Ribatejo eram um fenómeno comum do qual
decorriam fortes prejuízos para os camponeses. Sistematicamente
eram necessárias medidas, tais como desassoreamento dos rios e a
construção de diques, registavam-se reivindicações e alertas, mas a
incúria do governo fascista prevalecia. Em 1967, Salazar gastou
257 mil contos com despesas da NATO e cerca de 7 milhões de
contos com a Guerra Colonial e a repressão. Também nesse ano,
600 mil contos foram para a Base Aérea de Beja, construída em
1964, para serviço dos alemães. Já de 1946 a 1967, a média anual
de despesas do Estado com a habitação foi de 2126 contos. Em
1965, o valor caiu para 992 contos (menos de 5 mil euros). Ou
seja, nada sobrou para regularizar as águas do Tejo ou acudir à
população afectada. Há quem diga até – e o site abrilabril.pt
recorda-o – que se sabia que chuvas rápidas iam verificar-se, mas
esperava-se que ocorressem no mar, sendo que essa informação
ficou reservada às forças de segurança e ninguém avisou a
população do perigo que se avizinhava. 
Foi em Vila Franca de Xira que se encontrou o maior número de
registos de mortes. Muito por via do que aconteceu na aldeia de
Quintas. O livro de assentos da conservatória local totaliza 534
óbitos em 1967, dos quais mais de um terço faleceu na fatídica
noite de 25 para 26 de Novembro. No pequeno concelho de Arruda
dos Vinhos, dos 85 habitantes que se finaram naquele ano, uma
dezena (12%) tem como data de morte o mesmo dia. Aí verificou-
se também a destruição de casas, a queda de uma ponte e danos
estruturais numa outra, prejuízos severos no sistema de
abastecimento de água e nos esgotos. Arruda dos Vinhos ficou
isolada durante 48 horas, sem água, nem luz. 
Em Alverca, a primeira vítima foi o aspirante a bombeiro Zé
Carlos Basílio, 14 anos, que acorrera à zona baixa da vila para
acudir a um pedido de ajuda. Segundo o depoimento de um
soldado da paz mais velho de alcunha Maniá (Agostinho Silva), o
miúdo-herói ficou soterrado quando o muro do adro da igreja
desabou. No livro A Noite Mais Longa, de Alberto Santos, José
Leitão Lourenço e Raquel Raposo, pode ler-se que nem uma única
cave ou estabelecimento foram poupados: «Na própria vila,
alagada pela ribeira de Santa Sofia, a situação também era caótica,
com estragos como nunca se vira. Para mais, aí começaram a
recolher os corpos das vítimas do concelho que já somavam 84 ao
fim da noite de domingo, dia 26, depositadas no cemitério, no
hospital e na igreja matriz». Diz o Século Ilustrado: «No cemitério,
na Misericórdia, repetiam-se a todo o momento as cenas
lancinantes do encontro de um cadáver de um familiar, de um
amigo. Mas dezenas de outros corpos não tinham quem vertesse
uma lágrima por eles: toda a família perecera». 
Este concelho tem três grandes bacias hidrográficas que escoam
para o Tejo: o rio da Ota, o rio Alenquer (que passa pelo meio da
vila) e a ribeira de Santana Carnota, que se junta ao rio Grande da
Pipa e desagua na vala do Carregado. Estas duas últimas linhas
foram problemáticas. Reza uma acta da Câmara Municipal de
Alenquer: «Uma torrente de água, pedra e lama em tempo algum
registada que, afogando inúmeras pessoas, destrói e arrasta tudo
quanto se opõe à sua passagem e submerge a zona baixa da vila
de Alenquer, além das povoações da Carnota, Refugiados e
Cadafais. Da breve permanência desta avalanche, excedendo os
três metros de altura, ficou um volumoso depósito de lama e
materiais arrastados para cuja remoção foi necessário mobilizar,
durante muitos dias, o trabalho de milhares de pessoas e de todas
as máquinas disponíveis nas redondezas.» O documento prossegue
sublinhando a escassez de mão-de-obra e de recursos financeiros
para responder «à situação de catástrofe». 
Como selê em A Noite Mais Longa, também nesta vila «a acção
do homem potenciou claramente os efeitos do volume anormal da
chuva. Uma das mais salientes, porque próxima da ocorrência da
tragédia – notícia de imprensa, digna de louvores, felicitações e
agradecimentos públicos – foi a construção de uma represa,
concluída a 25 de Julho de 1967, no rio Alenquer. Embora a
construção da represa se baseasse em razões estéticas (melhorou
o aspecto do rio) e higiénicas (obrigou a desviar as saídas dos
canos de esgoto, desaparecendo o péssimo cheiro e as melgas e os
mosquitos), o que é certo é que os entraves que colocou ao
escoamento das águas da cheia tiveram efeitos perniciosos.»
Também a construção da chamada Ponte de Refugiados foi um
problema: «Quando a chuva aumenta e começa a transportar
consigo materiais sólidos arrancados a montante (nomeadamente
os que foram carreados do cemitério da Carnota), os pilares dessa
estrutura impediram a sua passagem. Aos poucos foi-se formando
uma represa significativa que, quando rebentou, levou consigo
tudo o que estava na frente: detritos acumulados, pedras,
madeiras, árvores, ervas e lixo amalgamados num caudal enorme
de água turva e revolta. Claro que os muros e as casas próximas
do leito exíguo da época estival não constituíram adversário à
altura para a força da cheia. Arrastadas na corrente, serviram de
túmulo a alguns dos infelizes ocupantes.» 
Em Alenquer, o relógio do Banco Fonsecas & Burnay parou nas
3h05, altura em que as águas atingiram os três metros de altura. O
caos instalou-se naquela agência bancária. As cheias provocaram
igualmente danos brutais em fábricas e outros locais de produção:
num aviário morreram seis mil galinhas. 
Conforme se observa em A Noite Mais Longa: «Num hino
fantástico de apego à vida, a história da senhora que a cheia
arrastou para o topo da placa de entrada do jardim municipal
[actual Parque Vaz Monteiro] e que, cercada pelo turbilhão revolto
das águas, qual frágil embarcação em mar alteroso, não se cansou
de gritar por socorro durante toda a madrugada sem que ninguém
pudesse socorrê-la, impedido pela escuridão e pela violência da
torrente! Finalmente, ao nascer do sol, pôde ser resgatada,
exangue e desfalecida, mas viva! (…) A força, a destreza e a
solidariedade de Mário de Matos Pires que, do café A Nau,
repentinamente inundado, arrancou à morte por afogamento
alguns clientes, incluindo os que, saídos do Alenquer-Cine, aí se
acoitaram para fugir à chuva, içando-os, agarrados a uma
mangueira, para o andar superior.» 
A fábrica de papel da Ota ficou com muito material destruído. A
água começou a invadir o edifício e a exercer uma pressão
crescente sobre o pavimento e as paredes. O chão acabou por
ceder e, na derrocada, arrancou máquinas, derrubou as paredes e
arrastou tudo à frente. A todo o comprimento, cerca de 30 metros
de edifício, as estruturas anexas e os equipamentos fabris foram
levados pela torrente. As bobinas de papel de grandes dimensões,
as máquinas com toneladas de peso, os cilindros das calandras
«pesando cada um mais de mil quilos» (segundo A Verdade, jornal
da região), navegando em conjunto com os destroços do edifício,
abalaram, em raiva, rio abaixo, deixando, atrás de si, um rasto de
destruição bíblico. 
A fábrica usava como matéria-prima a água, porque trabalhava
com trapo que, para ser transformado em papel, requeria
toneladas de água. O rio tinha um açude a montante e um túnel
por baixo da fábrica para captar a água para a laboração. Na noite
em que o céu desabou, esse açude cedeu, a água rebentou pelo
túnel, levantou o soalho e arrasou a fábrica. A tal maquinaria
pesada, de centenas de quilos, veio por ali abaixo, estourou a
ponte do Largo de Santa Isabel e entupiu a ponte do Espírito
Santo. Acabou por se formar uma represa e a água perfez uma
altura incrível num ápice. 
Na vila, cortada pelo rio Alenquer, subsiste uma casa velha na
Rua de Triana com as marcas das várias cheias. A de 1967 é a mais
alta: 3 metros e 7 centímetros, medida a partir do nível da estrada.
Já se fosse medida a partir do leito do rio seriam uns seis metros
de altura. Todo o centro ficou submerso, como mais uma vila
afundada. Os bombeiros foram obrigados a sair com os carros do
quartel, pois este ficou completamente alagado. 
Como se pode ler no Diário Popular, na madrugada, o holofote da
Base Aérea 2, montado no largo fronteiro à câmara, mostrou a
baixa transformada num imenso rio de águas revoltas e turvas. Na
escuridão, erguiam-se gritos e pedidos lancinantes de socorro, um
auxílio tornado impossível pela violência e altura da corrente. Com
o amanhecer do dia 26 de Novembro, a luz do sol «veio trazer, na
vila destroçada, um raio de esperança aos desamparados da noite
mais longa», revelando simultaneamente os escombros da
intempérie enraivecida, as perdas, os prejuízos, as faltas. E faltava
tudo: água, luz, comida, vestuário e abrigo. 
João Mário Oliveira, então presidente da câmara, seguia num jipe
militar, de portas de lona. A corrente ainda seguia forte, desfilavam
detritos boiantes, até que algo bateu na chapa. E voltou a bater.
Parecia uma criança. Seria o cadáver de um bebé, como já se tinha
achado? Com tanto pânico quanto coragem, meteu a mão na água.
Era uma santa. Foi uma descoberta um pouco bizarra, ali no meio
de tanta aniquilação, aparecer uma figura religiosa, uma espécie de
sinal de esperança. Mais tarde, a estatueta seria avaliada por um
antiquário – era um pequeno tesouro do século XVIII. O edil
colocou um anúncio no jornal e lá apareceu o dono, que se tornou
abade por doar a santinha a Alenquer. Passou a padroeira. 
A Noite Mais Longa também conta como João Mário Oliveira,
seguindo nesse jipe militar, encontrou cinco mortos, uns em cima
dos outros. «A senhora safou-se porque estava encostada à
parede. Os outros, como a água subiu muito rapidamente, não
conseguiram sair e foram para cima de uma mesa. Já não tinham
pé porque a água já tinha inundado a casa. Entretanto, a mesa
adornou e eles já não conseguiram subir para o primeiro andar. A
senhora, essa ficou entalada entre um móvel e a parede. Ficou
suspensa com a cabeça no ar, desmaiada! Quando a água desceu e
se tirou o móvel, o corpo caiu. E, como pensavam que ela já estava
morta, o seu corpo foi colocado na pilha, juntamente com os
outros. Estava já para ir para o cemitério. Mas quando eu olhei,
pareceu-me que estava a respirar». Que teria acontecido se João
Mário Oliveira não tivesse percebido que ainda estava viva? A
mulher que tinha perdido o marido e os filhos acabou por ser
socorrida e foi mais tarde empregada como telefonista na câmara,
onde, como sublinhou o seu presidente, saiu só para ser
reformada. 
Maria Lúcia Massano, a sobrevivente que perdeu o marido e os
seus quatro filhos, diria ao Diário de Notícias: «Quando me
apercebi que chovia muito e comecei a ouvir estrondos na rua, fui
acordar o meu marido. Em casa só eu estava acordada. Os
meninos dormiam. Sempre juntos, eu e o meu marido fomos
buscar os meninos. Pegámos nos três mais pequenos ao colo pois
a água rapidamente subiu. Andámos sempre juntos, sempre
juntos. De repente, deu-se a derrocada do muro do quintal. Nessa
altura a água chegava até ao pescoço. Depois não sei o que
aconteceu. Lembro-me de que os meninos me saíram dos braços.
Nunca mais os vi. Só acordei no hospital.» E quando despertou
teve que reconstruir toda a sua vida, aceitar que toda a sua família
fora dizimada, recomeçar de novo. 
Dilemas terríveis não faltaram em Alenquer. Em Cabanas do
Chão, um pequeno lugar, uma jovem mulher afogou-se, deixando o
marido sozinho com as duas filhas pequenas. A água foi subindo
até ao telhado, onde havia um poste. Com o nível sempre a
aumentar, o pai trepou por esse poste, mas como não podia levar
as duas filhas, teve de escolher. Levou uma consigo e a outra
desapareceu imediatamente. Quase um mês mais tarde, o seu
cadáver apareceu num canavial. 
Pode alguém sobreviver a uma opção destas? Pode algum pai
adormecer ou acordar o resto da vida com outro pensamento que
não este?Os grandes produtores do trauma reuniram-se todos nessa noite
das Grandes Cheias: o acontecimento foi súbito e profundo, não
havia experiência semelhante prévia, perdeu-se o controlo da
situação, verificou-se exposição à morte, a destruição foi extensa e
duradoura, e os dilemas morais dilacerantes, como o desse pai
que, como se uma tragédia grega ele mesmo escrevesse, escolheu
uma das filhas para salvar. A uma deu a vida duas vezes. A outra
viu nascer e deu à morte. 
Mário Sampaio era comerciante de tecidos e recordou, em A
Noite Mais Longa, que só sobreviveu porque, in extremis, rebentou
um muro perto de onde estava e a água desceu. Humberto Real
perdeu uma bebé de 8 meses e nunca, mas nunca, conseguiu
superar. Madrugada sem fim. José Lourenço, então com 20 anos,
recorda a pujança das águas: «Isto nem que fosse o maior barco,
não se aguentava nesta corrente! Nem o maior barco se
aguentava! Era de uma violência, uma coisa absolutamente
impressionante.» Carlos Cordeiro tinha 33 anos e era solicitador:
«Via passar carros, via passar frigoríficos, via passar pessoas.» 
Hélder Casimiro estava de serviço no Regimento de Artilharia
Ligeira de Lisboa (RAL1), no dia 26 de Novembro: «Cheguei ao
quartel com dificuldade e fui destacado com um grupo de soldados
para Alhandra onde o comboio tinha sido travado pela enxurrada.
Não sei quantos mortos eram, mas vi, pelo menos, duas
camionetas cheias de corpos que eram amontoados nas caixas de
carga.» 
Em Alhandra, a catástrofe só não foi maior porque um maquinista
parou o seu comboio em frente ao local onde o rio jorrava, dando
tempo à população para procurar abrigo. A composição n.º 184, de
mercadorias, que vinha do Entroncamento com destino a Santa
Apolónia, «serviu de parapeito à gigantesca enxurrada», relatou o
Diário Popular, acrescentando que: «A pesada composição
suportou o maior choque da enorme avalancha de água, que
consigo trazia num pandemónio destroços de casas e, pior ainda,
diversos corpos de pessoas.» 
De Alhandra é a actriz Maria João Luís. As Grandes Cheias
dizimaram 30 dos seus familiares. «Eu tinha 3 anos, ia fazer os
4 em Dezembro. As pessoas falavam de uma onda. Devia ser
realmente uma onda que já vinha carregada com lixo e os detritos
todos, que arrasou tudo por onde passou», lembrou à TVI. Foi
assim que perdeu a avó paterna. «A única memória que tenho é de
estar fechada dentro de um quarto onde iam umas tias ter comigo
volta e meia e davam-me de comer. E lembro-me dos gritos. Esses
nunca mais saíram da minha cabeça. Nem os gritos, nem o
cheiro», recordou. «O meu pai esteve três dias com a cabeça entre
as mãos, na sala. De cada vez que passava para ir à casa de banho
via o meu pai na mesma posição. E as pessoas que iam chegando
a casa, em gritos, primeiro a dizer o que se tinha passado e depois
a dizer que tinham encontrado corpos.» Foi a dor da gente que não
sai no jornal, como cantava Chico Buarque, foi o desamparo sem
nome, o desespero em surdina. «Houve um senhor que me ligou
há dias, não sei se isto será assim ou não, a dizer-me: “Maria João,
eu estive lá a recuperar corpos. Às vezes tínhamos que ir buscar os
carros acima das árvores”, onde estavam as pessoas mortas lá
dentro. Imagina o que isto foi. Ele falou-me de 890 pessoas, que
foram as que foram contabilizadas», desabafou. 
Nos anos seguintes à tragédia, Maria João via o pai a dedicar
uma música à falecida mãe no Natal. «Toda a família chorava.» Era
o fado «Aquela Azenha Velhinha», história do moleiro que é levado
na vaga impiedosa com o seu menino nos braços. Já em 2019,
João Monge escreveu um texto, chamou-lhe Noturno para voz e
concertina, e José Peixoto compôs a música para três contrabaixos.
Maria João Luís urdiu o lamento em voz alta, interpretou e encenou
este capítulo da história contemporânea de Portugal que também
se agarra à sua própria pele. Este é um poema narrativo na boca
de uma menina cuja família ficou sem nada. Só com um fio de
voz. 
A pequena aldeia de Quintas, situada num vale próximo de
Castanheira do Ribatejo e lugar de gente pobre, de muitas cabanas
sem esgotos, com telhas sem forro e chão de terra, foi
praticamente destruída pelo aluvião que sobre ela se abateu, com
as águas do rio Grande da Pipa a encharcarem as suas margens,
transformando-a num pantanal e necrópole de famílias inteiras.
Fernanda Silva conta que foi em Quintas que perdeu Elvira, uma
querida colega da fábrica de confecções onde trabalhava, às portas
de Castanheira: «Recordo-me perfeitamente, eu era encarregada
nessa fábrica e ela chamou-me e disse-me: “Sabe, hoje estou
muito feliz porque consegui arrendar casa e já posso marcar a data
do casamento.” Isto foi no sábado de manhã; à noite aconteceu
aquela tragédia e ela morreu na barraca com os pais e um irmão»,
lembrou Fernanda Silva ao site abrilabril.pt. 
Lê-se em A Noite Mais Longa: «Guerra próxima aconteceu em
Quintas. Uma avalanche de água, inimiga cobarde, atacou a
população a meio da noite e cobrou dezenas de vidas. As imagens
e os depoimentos dos sobreviventes correram mundo e fizeram
páginas nas mais conhecidas revistas europeias como a Life e a
Paris Match». O Século assegurou que morreram mais de metade
dos seus 200 habitantes. Hoje, calcula-se que o número de mortos
tenha rondado a centena, entre os já identificados e os por
identificar. A aldeia morreu. Era uma terra de primos, com relações
familiares múltiplas, como um grande clã. Os sobreviventes
perderam dezenas de parentes, entre pais, filhos, tios e primos. 
Quando os bombeiros chegavam às casas onde havia mortos,
olhavam impressionados para as marcas de mãos sujas de lama
nas paredes, sinais das tentativas desesperadas mas infrutíferas
para alcançar o telhado das habitações. Eram as impressões
digitais do fim, de quem já tinha a morte na retina. Havia de tudo
na aldeia morgue – um casal e duas meninas no telhado de uma
barraca, presos por uma corda uns aos outros. Partiram unidos. 
Os bombeiros iam às casas, tiravam os corpos, amontoavam-nos
junto ao chafariz. E dali levavam-nos para Vila Franca de Xira nos
camiões da câmara, para serem preparados para os funerais. Um a
um, os cadáveres retirados das habitações ou resgatados das
águas foram sendo alinhados, todos muito juntos, no largo da
aldeia para serem lavados da lama – famílias inteiras deitadas lado
a lado, em cima dos escombros, no meio de caniços e raízes de
árvores extirpadas. 
O Século conta a história de Maria Angélica. O seu primo Rui, de
apenas 12 anos, foi apanhado pelas Grandes Cheias dentro de
casa. Ficou preso num compartimento com a prima e a água subiu
até ficar a 10 centímetros do tecto. O valente miúdo lá se foi
aguentando, segurando-se aos móveis enquanto procurava agarrar
também a prima. Com a água já a descer muito lentamente, pôde
então assentar definitivamente os pés num móvel e largar Maria
Angélica. Infelizmente a luta fora vã, a menina tinha morrido
entretanto, sem que Rui tivesse dado por isso. Sobreveio com uma
morta nos braços, passou muitos anos com uma estranha
dormência a formiguejar-lhe os bíceps, como se fossem membros
fantasma. E eram. 
Dizia o presidente da Junta de Freguesia de Castanheira do
Ribatejo, numa entrevista ao jornal Solidariedade Estudantil:
«Tivemos de desenterrar os mortos no domingo, e segunda-feira
estivemos a lavar mortos desde as 9 horas da manhã até às 4
horas de terça-feira, e admite-se que ainda haja mortos. Nas
Quintas não há feridos: há sobreviventes que estão capazes e há
famílias inteiras mortas. Já há mortos com muitos bichos, não são
bichos do corpo, são bichos, lagartixas, minhocas que saem pelos
olhos, pelo nariz dos mortos. Eram 4 horas da manhã quando
acabámos o último dos 110 mortos. Além da febre tifóide, deve
haver muitos casos de pneumonia aí pela rua. Porque esta gente,
eu vi-a embrulhada no dia seguinte em sacos encharcados.» 
Outro habitante de Quintas recordou ao jornal Público que «a
água era como uma pessoa a subir escada acima. Aquilo nem era
bem água, era mais um líquido leitoso». Os mortos amontoavam-se
às dezenase, no dia 26, começam as operações de remoção dos
cadáveres: «Iam às casas, tiravam os corpos, punham-nos no
chafariz amontoados, como se fossem sacos de batatas. E dali
levavam-nos para Vila Franca», contou outra testemunha ao
mesmo jornal. Alguns tentam aproveitar-se da catástrofe, fazendo-
se passar por familiares dos mortos: «Muitas pessoas vinham,
como se fossem famílias das vítimas, à procura de ouro.» 
Nessa aldeia, Olímpio da Costa Vicente vivia com a mulher, duas
filhas, os sogros, irmãos, sobrinhos. Uma família grande numa casa
pequena, como tantas vezes sucedia. Quando todos dormiam, um
fluxo acastanhado rebentou com portas e janelas, deixando todos
sufocados. Olímpio tentou apanhar as filhas e a mulher, sem
sucesso. No último minuto, quando o nível das águas sujas já
roçava o tecto, lá conseguiu fazer um buraco no telhado e fugir. Na
manhã seguinte, os bombeiros encontraram as três abraçadas,
num canto. Os cadáveres dos demais parentes acabariam por
aparecer misturados no entulho. Ao jornal O Século, esse pai
perdido contaria que ainda ouviu uma das filhas a implorar-lhe
«Pai, salva-me!». Foi a última vez que Olímpio falou da tragédia. 
Também Joaquim Letria lembraria à SIC que uma das coisas que
mais o impressionou foi ver as pessoas mortas abraçadas. E não só
mães com os seus filhos, mas homens abraçados a homens,
vizinhos, desconhecidos, inimigos até. Para o jornalista foi o que
mais o fez reflectir, até hoje, sobre a natureza da humanidade. 
Ninguém esperava que a água entrasse de rompante e que, em
poucos minutos, levantasse as camas até ao tecto. Mariana Guerra
escapou porque morava nos Casalinhos e não «na baixa». Aos 29
anos fez o funeral da irmã que quase contava 31, e dos três
sobrinhos, o mais novo com 19 meses. Afastou com as mãos a
lama para encontrar a trança da irmã. Maria Emília estava junto à
porta do seu quarto. À sua frente, o filho bebé, depois as duas
crianças. «O berço do meu menino estava marcado no tecto, e ele
estava ao colo da mãe, portanto ou a água entrou ou ela abriu a
porta a pensar que podia sair. Os dois mais velhinhos estavam
dentro da cozinha, dali não saiu ninguém», relatou ao Diário de
Notícias. «Estava um arame entrançado na trancinha dela. Era tudo
lodo. Então, limpámos muito bem a carinha. E eu disse: “Olha a
minha irmã está aqui’.”» Mariana contou tudo ao jornal Público em
diminutivos para anestesiar o calvário, e de olhar fixo, olhar que vê
o que diz. Mostrou, compungida, as fotografias desmaiadas da
mulher bonita e dos seus filhos de cabelos lisos e olhos grandes. O
cunhado estava em Castanheira do Ribatejo, onde tinha ido
trabalhar. Quando voltou, alarmado com as poucas notícias que lhe
iam chegando, não encontrou ninguém vivo. Toda a família
dizimada. Imagina-se a dor deste homem, a mulher e os três filhos
asfixiados por lama, na sua ausência, sem que lhes pudesse valer.
Hoje mora no Bairro Calouste Gulbenkian, em Quintas, um dos
conjuntos habitacionais que a respectiva fundação construiu para
os desalojados da calamidade de 1967. Já quase não vive lá
ninguém «daquele tempo» – como se aquela memória pudesse
sumir, desvanecer e depois eclipsar-se, conforme desejou e
planeou Salazar. 
João Manquinho, então com 24 anos, lembra-se «de ir ao Largo
da Misericórdia, onde está uma igreja antiga, e ver as camionetas a
chegarem das Quintas com a aurora a romper, cheias de cadáveres
inchados, disformes e cheios de lama, com expressões de aflição e
em posições dramáticas», contou ao site abrilabril.pt. Não eram
apenas corpos de gente que partira serena, de mãos dadas com os
filhos e olhos nos olhos dos seus amados – eram vidas ceifadas em
agonia, cadáveres em posições de fuga e esgares de terror, corpos
desfigurados por terem dormido com o inimigo, flutuando nessas
águas logo que as bactérias ficam activas, libertando os gases e
fazendo com que deixassem o fundo, passando a estar à superfície,
de barriga para baixo, nuca exposta. Quando se achava um morto,
a primeira coisa a fazer era virá-lo para cima, encarar o seu rosto e
fechar as suas pálpebras – soslaio de defunto teme-se mais do que
mau-olhado. 
Luísa Fajardo, aos 13 anos, perdeu quase tudo. A irmã, os avôs e
umas dezenas de primos e tios. Foi o enxurro do rio Grande da
Pipa que sufocou num mar de lama quase toda a aldeia. Agora
mora numa das encostas que vão dar à várzea, a zona plana no
vale alagado naquela noite longa. «Quando amanheceu é que a
realidade apareceu. Esta várzea parecia prata e completamente
vazia. Espraiou com o entulho. Era só lixo, canas, animais e
pessoas que estavam todas dentro de casa a dormir.» 
Teresa, a irmã 14 catorze meses mais velha, ficara, como de
costume, a dormir em casa dos avôs, na parte baixa da aldeia de
Quintas, junto ao rio e à escola, a dois passos da ponte. Naquela
noite, Luísa queria também pernoitar no aconchego da avó, mas
esta não deixou, acabando por ficar antes na casa dos pais, umas
ruas acima. 
De madrugada, a mãe jurava que ouvia gritar. O pai tentou
descer várias vezes, tentou ir lá ver se estavam todos bem, Teresa
e os velhotes, sem que a água e as terras o deixassem passar. Na
manhã em que o sol revelou o fim do mundo, o pai foi lá baixo e
voltou outro homem. «A casa nem telhado tem, não está lá nada
dentro», terá balbuciado. A irmã, a menina-nenúfar nua, apareceu
nesse domingo, a avó na segunda-feira e o avô nove dias depois,
relatou Luísa ao Diário de Notícias. Em toda a aldeia, famílias
inteiras tinham perdido a vida, afogadas dentro de casa. «De
manhã, quando começaram a retirar os corpos, estiveram à minha
porta, em cima de taipais que o meu pai tinha descarregado à
noite, 27 cadáveres.» Eram umas cercas de madeira que o pai
trouxera da fábrica da Ford – e que nunca mais voltou a usar. Já o
número 27 não esqueceu. Luísa continuou a ter de atravessar
aquela passagem todos os dias, a cruzar aquela cripta durante
anos. Apesar de ter decorrido mais de meio século, lembra-se até
das posições dos corpos. «Percebia-se que muitos tinham sido
apanhados a dormir, tal a rapidez com que tudo aconteceu.» 
«A minha mãe ficou sem saber fazer nada. Passava as noites
inteiras a chorar e de dia só queria estar no cemitério. Eu tive de
crescer e ser mulher à força», recordou Luísa Fajardo, aos 63 anos,
ao jornal Expresso. A irmã Teresa ficou para sempre como menina-
mulher. Para ela e para o seu obstinado relógio, o tempo parou.
Luísa virou adulta de um dia para o outro. O tempo acelerou.
Vestiu-se de preto dos pés à cabeça, lenço de luto no cabelo, e
passou a assumir a casa, porque os pais estavam sepultados vivos,
soterrados em dor. 
Logo que os cadáveres foram enterrados e as limpezas dadas
como feitas, o punhado de vivos caiu no vazio. Como dizia a
alentejana Florinda, mãe do soldado caído, já não sabiam onde
respirar. Caixão em vida, opressão, saudade e trauma. Todo o
trauma. «O negro permaneceu na aldeia muitos anos. Oito ou dez,
pelo menos, tanto nos homens como nas mulheres. Conforme o
tempo passava, maior era a saudade. Nós a querer fazer a nossa
vida, casar, ter filhos, netos, a querer compartilhar isso e a não ter
com quem. Ninguém conseguiu ultrapassar, nem mesmo ao fim de
50 anos.» 
Só muito depois é que Luísa se apercebeu da dimensão nacional
da catástrofe. Até tarde na sua vida, tinham sido as inundações na
sua aldeia, o sítio onde nascera e onde morrera uma boa parte da
sua família. E já não era pouco. Só mais tarde passaram a ser as
Cheias. Mas talvez ainda espere que todo o País as conheça como
as Grandes Cheias de 1967. 
A escritora Alice Vieira tinha então 24 anos e estava a descobrir
«essa extraordinária aventura do jornalismo”», como relatou ao
Jornal de Mafra, «e de repente entrava-me pelos olhos dentro uma
catástrofe que tinha a ver com miséria, com um completo
desrespeito pelas leis naturais, com um território perfeitamente
desordenado e caótico – e com uma censura tão cerrada que nos
queria impedir de dizer sobre isto uma palavra que fosse»,
recordou. «Nas Cheias de 1967 aldeias inteiras, na periferiade
Lisboa, desapareceram do mapa. A aldeia de Quintas foi uma
delas: eu estava no que, ainda dias antes, tinha sido um lugar
povoado – e que agora, diante dos meus olhos, era apenas um
lamaçal a perder de vista. As casas, as ruas, tudo tinha sido levado
pela violência das águas. Enfiávamos as mãos naquele mar viscoso
e cinzento e as nossas mãos vinham carregadas de animais
mortos.» 
Joaquim Rodrigues, aos 88 anos, recordou: «Aqui, onde agora
funciona uma oficinazita que está aberta aos fins-de-semana,
morava a irmã da minha mulher, mais um filhote de 9 anos e o
marido. Ficaram os três lá dentro. Ao lado, moravam os tios da
minha mulher. Ficaram lá os dois. Aqui em frente havia uma viúva
mais uma filha de 17 anos. Também ficaram lá as duas. A seguir
outra viúva, que morreu também. Nesta terrinha pequena,
morreram 93. Ficámos muito poucos», contou ao jornal Expresso,
apontando, uma a uma, com a voz embargada, as casinhas do
largo. O «Quim» lembra-se todos os dias do que aconteceu. É uma
ladainha, durante anos e décadas seguidas. A eternidade e um dia.
E de todas as vezes debulha-se num pranto. 
Vivia com a mulher e o filho de 11 anos naquele mesmo largo,
numa dessas frágeis casas de adobe, com um único quarto. O
rapaz já dormia no sofá da sala quando, pela meia-noite, o casal se
foi deitar. A mulher, ou «camarada» como sempre lhe chamou,
olhou pela janela. Chovia muito. «Ainda bem que estamos todos
abrigados», terá suspirado. Pouco depois, a água rebentou a porta.
«Ai, nossa senhora, o que é isto?», gritou a parceira. Foram as
últimas palavras que lhe escutou. «A minha mulher levantou-se
rápido para ir buscar o candeeiro a petróleo e nunca mais a vi.
Agarrei o moço, consegui pôr uma mão na greta que faltava para
tapar a porta e lá conseguimos sair os dois. Nesse momento, a
água já estava mais alta do que a porta e ajudou-nos a subir para
o telhado. Tirei três ou quatro telhas para ver se ia buscá-la, mas a
água já ia até ao sótão. Pensei: “O que é que lá vou fazer? Ela já
está morta.” Era tanta lama e tanta lenha, tanto lixo e tanta coisa
que ela não teve hipótese.» Joaquim e o filho ficaram agarrados a
um barrote do telhado até a aurora se dignar, encharcados em
barro e em carpidos. A noite estava escura e gelada, saturada de
uivos e gemidos. Passado algum tempo, os últimos gritos calaram-
se. «Ficou até um sossego. O que é que interessava estar a gritar?
Já não havia solução.» 
As águas são sempre símbolo e experiência de fluxos primordiais
indiferenciados ou, como diz Auden, um estado de vaga desordem
bárbara do qual a civilização emergiu ou na qual submergirá. Os
habitantes de Quintas que o digam. 
Cicatrizes sujas é o que não falta nessa aldeia. A escola ficou pela
metade e assim continua, ruína viva. Há um memorial com os
nomes das vítimas da aldeia gravados, uma Rua 26 de Novembro
de 1967 – fronteira entre sobreviventes e mortos – , uma
pleonástica placa de mármore «memória toponímica» gravada com
uma breve descrição do que ali se passou. Todos os anos a
povoação assinala a data. Chegou a ser feriado, mas agora já não
é. Tudo passa, o tempo muito apaga e há que esquecer. 
Ainda se considerou a hipótese de levar milhares de animais
mortos (vacas, carneiros, galinhas, burros, cavalos e outros) para
Santarém, para serem transformados em adubos, mas rapidamente
se chegou à conclusão de que não se dispunha das imprescindíveis
condições. Ademais, ainda não era tempo de retomar a vida
normal. 
A água engarrafada esgotou rapidamente nas lojas. Era
necessário ferver toda a água de consumo para fins alimentares
durante 15 a 20 minutos, não se podiam consumir vegetais crus
provenientes das zonas inundadas e era obrigatório enterrar os
mortos longe dos cursos de água, de poços ou de fontes. Também
era urgente proceder-se à vacinação em massa contra o tifo. Tanto
a fazer. 
Em Castanheira do Ribatejo, Fernanda Silva assistiu a 17
funerais. Recorda, no entanto, que «a gente não podia entrar no
cemitério». As tragédias dão cabo do tecido social, rebentam com
rituais e liturgias, implodem a organização civilizacional. Os funerais
eram colectivos, ritos fúnebres em grupo, famílias ao molho,
cortejos partilhados. Todos tinham defuntos, todos tinham mortos
a sepultar. Chegados aos cemitérios, os caixões a passar para
debaixo da terra eram tantos que «tínhamos de ficar longe porque
o chão estava tão instável que eles não queriam ninguém a passar
onde fizeram os buracos porque aquilo podia ruir», explicou
Fernanda ao abrilabril.pt. Enterros sem privacidade, sem
intimidade, sem despedidas finais, sem o último adeus. 
PARTE II 
GOTA NO OCEANO 
 
 
 
Inicialmente, o regime não teve noção da catástrofe. O ministro
do Interior, Santos Júnior, revelou como primeira preocupação
«providenciar que o serviço de repressão à mendicidade recolha os
sinistrados nos estabelecimentos a seu cargo (albergues).» Lá iriam
mais camiões para a Mitra criminalizar a pobreza. Surpreendido
pela violência das águas, pelo empastado de lama e pela catástrofe
humanitária, no começo o Estado Novo ficou apático, sem
capacidade de resposta, sem conseguir elevar-se à altura que o
cataclismo exigia. 
Depois, a partir do dia 27 de Novembro, as reuniões
governamentais, os comunicados à imprensa, as conferências das
instituições oficiais, os discursos prometendo auxílio, as visitas dos
ministros aos concelhos castigados, pareciam contas de rosário e
desfiavam-se com fastio. Faltou reacção, resposta, intervenção. O
povo não precisava de palavras vãs ou de assembleias em
gabinetes. Necessitava de acção imediata, de socorro e de
salvamento. Apareciam mortos por todo o lado, desalojados,
feridos, doenças à coca da sua oportunidade no meio do lodo,
fome, miséria e pesar. O que as gentes de Loures, Odivelas, Oeiras,
Alenquer ou Vila Franca de Xira ansiavam era encontrar os seus
entes queridos desaparecidos, sepultar as crianças e os velhos
perdidos para o dilúvio. Queriam tecto para pernoitar, chão para
reabrirem as suas lojas e pequenos negócios. Precisavam de
recomeçar. Pediam paz. 
O primeiro movimento do executivo de Salazar verificou-se no dia
26, com uma nota à comunicação social, informando que o chefe
do Estado estava a acompanhar a situação e que estaria prevista a
visita do presidente da República, almirante Américo Tomás, aos
lugares mais atingidos pelas cheias. Ainda nessa mesma data
realizou-se uma reunião inter-institucional que juntou os ministros
do Interior, das Corporações e da Saúde, o governador Civil de
Lisboa, o director-geral da Assistência e os presidentes de vários
municípios. O mês de Dezembro traria outras reuniões
semelhantes, focadas principalmente no realojamento das
populações que haviam perdido as suas casas. 
No dia 27 de Novembro, as autoridades começaram a visitar os
concelhos mais atingidos. Como tinha sido anunciado, Américo
Tomás passou por Loures, Vila Franca de Xira e Alenquer,
acompanhado pelo ministro do Interior, pelo comandante da GNR e
outras autoridades. Um despacho ministerial com essa mesma data
determina que as instituições de Previdência devem proceder à
organização das ajudas a conceder, nomeadamente auxílios às
situações extremas, recorrendo aos Fundos de Assistência. Os
beneficiários da Previdência Social que tivessem ficado sem casa
deveriam ser realojados em «habitações de renda económica»
(bairros sociais) ou gozar de apoio à construção de novas
habitações. 
Mas, nesse mesmo dia, as autoridades ainda não tinham
percebido com clareza (nem queriam perceber ou que mais alguém
entendesse) que, num par de horas, a água apanhara milhares de
pessoas como se fossem insectos. Só à medida que os corpos se
apinhavam e que as equipas de salvamento iam refazendo as
contagens é que o governo começou a adoptar medidas de
urgência sanitária, como o enterro de pessoas e animais, a maior
parte das vezes sem as formalidades habituais. Sem rituais,
cortejos ou despedidas. 
Como muitas vezes sucede em situações de catástrofe, o tecido
social esboroa-se, a coesão deslaça, as rotinase as liturgias – com
todo o simbolismo e efeito organizador e estruturante que
encerram – desmaiam e chegam mesmo a sumir. O
desaparecimento de rituais contribui para um maior
enfraquecimento dos laços sociais, agravando o mal-estar das
populações. Entra-se num círculo vicioso, num vórtice do qual é
difícil sair e recuperar, no redemoinho do trauma. 
Estava anunciado para o dia 30 de Novembro um discurso de
Salazar ao País. Criou-se, quer entre partidários quer entre
opositores, uma certa expectativa. O momento nacional era de
consternação e, naturalmente, todos os ouvidos se inclinavam para
escutar o máximo responsável pelo País. Que diria Salazar da
tragédia? Que medidas proporia? Quatro dias depois, que palavras
iria dirigir aos que haviam perdido família, filhos, casas, sustento? E
aos que tinham perdido toda e qualquer esperança? Cem horas
depois daqueles rolões de barro, o Tejo já baixara expondo o
esqueleto da sua devastação e as pessoas já não estavam apenas
incrédulas ou em choque. Estavam rasgadas. Anunciou-se o
discurso de Salazar ao País. Os portugueses pairaram, em silêncio,
atentos, à espera. 
O ditador discursou na Biblioteca da Assembleia Nacional (onde é
hoje o Parlamento) e em nenhum momento da sua prédica fez uma
única referência à calamidade que se abatera sobre o povo. Nem
uma sílaba. Nem um minuto de silêncio. Nada. Rigorosamente
nada. Onde estava uma frase de conforto ou uma linha de empatia
pelos que tinham amanhecido sem nada? Como era possível
tamanha frieza? Salazar não desvalorizou ou relativizou. Salazar
não negou. Salazar fez pior do que tudo isso: desprezou. É
evidente que, nessa data, o presidente do Conselho já tinha
consciência da magnitude e do impacto das Grandes Cheias de
1967. E, por isso mesmo, ignorou totalmente o sucedido. Era como
se o não-dito não existisse, como se o desdém pela verdade o
apagasse. O que não se vê não se sente. A maior censura do
Estado Novo não foi riscar palavras, notícias de jornais, livros ou
reuniões, canções ou teatros. Entre os meninos de sua mãe caídos
nas ex-colónias e esquecidos nesses solos como se fossem lixo ou
os mortos sem nome e sem enterro das Grandes Cheias, sem
sequer número, a maior e mais pesada censura de Salazar foi à
existência, à vida. O ditador proibiu a realidade. Nascido no seio de
uma família remediada numa vila beirã, o déspota conheceria
(ainda que talvez não na pele) o que eram a míngua e a penúria.
Mas nunca quis olhar para baixo. E talvez tivesse começado por
interditar a sua própria história. 
António de Oliveira Salazar, acompanhado por Joaquim Moreira
da Silva Cunha, ministro do Ultramar, entrou na sala sob os
aplausos entusiastas de diferentes individualidades. Começou por
discursar o presidente da Câmara de Lourenço Marques,
sublinhando com fulgor a gratidão, o respeito, o reconhecimento e
até mesmo a veneração das populações de Moçambique por
Salazar, o desejo de saúde e vida longa que formulavam ao ditador.
Este perorou então longamente sobre a África afro-árabe, a «África
tipicamente africana» e a África euro-africana ou do Sul. Perguntou
quanto tempo seria necessário para cessar o terrorismo e
respondeu que, quando o Ocidente compreendesse que estava a
ser minado em África, mudaria a atitude perante esse continente. A
assistência aplaudiu de pé, Salazar agradeceu, levantou-se e
conversou com Silva Cunha. Cumprimentou mais algumas
personalidades e, finalmente, deixou a sala. 
Grandes Cheias de 1967? Nunca tinham existido. 
A imprensa afecta ao regime esqueceu as fotografias dos bairros
alagados, as imagens dos mortos, as entrevistas aos desalojados e
a comoção dos relatos da tragédia. Curvou-se perante Salazar.
Prestou-lhe homenagem. O seu discurso foi considerado pelo jornal
O Século como histórico, um modelo de bem pensar e de bem
falar, ao abordar de «forma tão clara» a «missão civilizadora» que
Portugal estava a desenvolver em África… Ainda assim, outros
órgãos de comunicação social apelaram no sentido de que fosse
decretado luto nacional, um sinal mínimo de respeito e
consideração por todos os que tinham morrido e todos os que
estavam ainda dobrados sobre os caixões. 
O luto nacional, tal como numa situação pessoal, é um período
de solidariedade e pesar para com alguém ou algo, estendendo-se
a todo o país e sendo anunciado relativamente a figuras de grande
importância ou devido a acontecimentos excepcionais. A medida
mais conhecida – e também a prevista pela legislação portuguesa –
é a colocação da bandeira nacional a meia haste. Embora não
exista legislação que obrigue ao cancelamento de festividades e
cerimónias, é habitual a sua suspensão ou adiamento por uma
questão de respeito ao enlutamento. Mas, mesmo perante diversas
solicitações, Salazar quedou-se mudo e quieto. Ele que, uns anos
antes, decretara luto nacional pela morte de Adolf Hitler
resguardava-se agora no manto da indiferença. De facto, a 2 de
Maio de 1945, dois dias depois do suicídio de Hitler com um tiro na
boca, no seu bunker em Berlim, Portugal – apesar de,
alegadamente, ser um país neutral – esteve de luto pelo líder nazi.
Salazar estava ao corrente dos campos de extermínio de minorias e
também conhecia os esforços de diplomatas portugueses, como
Aristides Sousa Mendes ou Sampaio Garrido, para salvar judeus,
dando-lhes passaportes e protecção diplomática. Mesmo assim,
nessa Primavera do fim da Segunda Guerra, o presidente do
Conselho ordenou a colocação das bandeiras a meia haste pela
morte de Hitler, um chefe de Estado estrangeiro. Esse luto
português, que se prolongou por oito longos dias, provocou uma
onda de protestos internacionais e grande sobressalto interno.
Passado esse período, Salazar decretou que não se fizessem mais
referências públicas ao assunto que tinha sido «malevolamente
explorado». Claro. O problema não eram as torturas, as câmaras
de gás, a barbárie no meio de nós. A questão era a discussão
política em torno do luto decretado a Hitler. Fim da discussão. 
Perante as centenas de mortos nas Grandes Cheias tudo o que
lhe interessava era pugnar pela imagem que sempre quisera
vender do país para vergá-lo como plasticina: país-presépio, o povo
é sereno, Portugal dos brandos costumes. E assim foi. Seria
necessário que passassem mais sete anos para que os portugueses
se revoltassem. E sabe-se lá quantos serão precisos para que,
finalmente, o Estado reconheça que os milhares de pessoas
atingidas são figuras de importância ou que as Grandes Cheias de
1967 foram acontecimentos excepcionais. 
Entretanto, o povo agoniava no lodo. Nem o poder central nem o
poder local, à época altamente dependente do primeiro e sem
sombra de autonomia, eram capazes ou estavam preparados para
enfrentar o colapso. Socorro para os sinistrados? A ajuda oficial,
contando com alguns contingentes militares, pouco ou nada
interveio, e quem esteve desde o primeiro dia no terreno foram os
bombeiros, os estudantes, muita gente boa e solidária. 
O regime assentava numa lógica assistencialista. Não havia
Estado Social, tal como fora construído por toda a Europa do pós-
guerra e em Portugal só depois do 25 de Abril de 1974. Até certo
ponto, o Estado Novo aliava-se às ideias de Beveridge, que
denunciara na Grã-Bretanha «o escândalo da miséria», mas
continuava a manter a assistência pública nos mínimos. A
Constituição Portuguesa de 1933 não incluía essas prioridades,
apesar de atribuir ao Estado um papel coordenador das actividades
sociais na defesa da saúde pública e na melhoria das condições de
vida das classes sociais mais desfavorecidas. 
A assistência era deixada, assim e em primeiro lugar, ao espírito
caridoso dos portugueses e à iniciativa particular – só depois
competia ao Estado. Ou seja, no limite, a protecção dos mais
desfavorecidos era jogada ao livre-arbítrio da beneficência
particular e ao facultativo da solidariedade. Se o pobre fosse
honrado, talvez tivesse sorte. Talvez. Se tivesse uma placa e fosse
um miserável homologado, um indigente legítimo, subserviente, de
bolso vazio e espinha dobrada, talvezbocarra imunda. Louca de dor, cega pelo
desespero, brava, ainda tentou lançar-se para o apanhar, mas foi
impedida por uma filha mais velha que percebeu que, assim, ficaria
sem ambos. Nessa noite, a enlutada perderia ainda outras duas
meninas e a dor haveria de furar com a mesma violência do que
aquela voragem líquida. Só que, dias mais tarde, milagre. Um
jornal publicou a fotografia de um bebé salvo pelos bombeiros
nessa madrugada criminosa que, considerado órfão, tinha sido
entregue à Misericórdia para adopção. Imaginem-se os olhos em
estado de graça daquela mulher vazia quando se detiveram nessa
folha de jornal. Desejo? Engano? Feitiço? Aquele era o seu bebé, o
bebé que deixara cair na monstra da noite cerrada. Era mesmo,
não sobravam dúvidas. Como foi possível? Que aconteceu? Ainda
hoje não há uma explicação única, mas o mais provável é esse
menino ter tombado sobre uma tábua ou num qualquer destroço
das barracas a boiar na corrente e ter assim escapado, sobrevivido
ileso, ainda que o caudal fluísse agreste. Não importa. Estava vivo,
inteiro, à espera. Era um Moisés, nome que significa «tirado das
águas». Segundo o Livro do Êxodo, esse profeta foi adoptado pela
filha do faraó que o encontrou dentro de um cesto, enquanto se
banhava no rio Nilo, educando-o na corte como o príncipe do
Egipto. E este? Seria também criado por ricos? 
Mãe e pai, acompanhados de vizinhos-testemunhas, foram
buscar o seu milagre de seis quilos, mas a Misericórdia não queria
deixá-los levá-lo. A identidade não era questão. O problema era
que já havia casais «de doutores e engenheiros» dispostos a ficar
com ele e a proporcionar-lhe uma vida que a sua família jamais lhe
poderia oferecer. Golpe à garganta. Cresceria este Moisés
português no palácio, como o original? Nessa noite, dezenas de
pessoas foram apanhadas de olhos fechados. A tromba de água
chegou desleal, tapou-lhes bocas e narinas rasgando o breu, e, na
confusão de um despertar súbito, tudo se transformou num
pesadelo. No último pesadelo. 
O afogamento acontece quando a água entra em contacto com
as vias aéreas da vítima. Em risco, fica-se em grande esforço físico
e, claro, em intenso stresse emocional provocado pelo medo. A
resposta consciente imediata é tentar segurar a respiração. A
aflição é tremenda. A laringe, que inicialmente se fecha como
mecanismo de defesa, acaba por relaxar e engolem-se grandes
quantidades de água. Parte do líquido vai para o estômago e o
restante faz o caminho do ar que, normalmente, respiramos: segue
pela traqueia e chega aos pulmões, passando por brônquios,
bronquíolos e alvéolos. Com o pulmão ensopado, a entrada de
oxigénio e a saída de carbono deixam de funcionar. A redução de
ar causa danos em todos os tecidos, principalmente nos que dele
mais precisam, como o cérebro, que fica lesionado, deixando a
pessoa inconsciente. Depois, a água passa dos pulmões à
circulação sanguínea, altera a carga eléctrica osmótica, acabando
por impedir a transmissão dos impulsos nervosos e, assim, a
contracção muscular. O coração pára. Em geral, o afogamento é
rápido e não chama a atenção, diferente do que se vê nos filmes.
Eficaz. 
Ao contrário do que se verifica actualmente, à época os assentos
de óbito incluíam obrigatoriamente a causa da morte. Nas centenas
registadas a partir de 27 de Novembro de 1967, há três tipos de
causas imputadas às Grandes Cheias: «submersão acidental»
provocada por «inundação», «afogamento»; e «soterramento»
causado por «avalancha». Visto que se conduziram poucas
autópsias, os médicos que certificaram os óbitos quase sempre
preferiram acrescentar um ponto de interrogação em frente à razão
apontada. Como relata o jornal Expresso, José da Mota e Silva, de
33 anos, foi dos poucos autopsiados. Encontrado em Odivelas e
transportado para o Hospital de Santa Maria, o legista não teve
dúvidas sobre a causa da morte: «asfixia por submersão
acidental». 
Já no soterramento tanto há obstrução das vias aéreas
superiores – com edema da glote – como se verifica a obstrução
indirecta, com o impedimento dos movimentos dos músculos
respiratórios. Uma das mais excruciantes mortes que um ser
humano pode sofrer. Os sinais externos desse final, observáveis no
rosto da vítima, são a cianose facial (coloração azulada), a
protusão da língua (fica de fora), o cogumelo de espuma (bola de
finas bolhas de espuma a cobrir a boca/fossas nasais) e as
equimoses conjuntivas (sangramentos nos olhos). 
Teresa Fajardo, a menina-nenúfar. Fajardo. Significa aquele que
rouba de forma engenhosa. Mas, nesta história, Fajardo foi quem
foi furtado, vítima de um ardil, de uma emboscada. Roubado em
vida, sobrevivendo à pobreza. Esbulhado na morte por um país que
não quis saber. Morreu a Teresa Fajardo, flor do pântano, corola
nua. Mas morreram também os seus avós e um rosário de primos
na povoação de Quintas, que ficou então conhecida como Aldeia
Mártir. Mas mais parecia a Aldeia Morgue, onde já só se contavam
os vivos (morreu uma centena dos 156 habitantes) e poucos
sobraram para contar esta história, capítulo da maior catástrofe
natural em Portugal depois do terramoto de 1755 de Lisboa. 
Da serra de Albarracim até ao Atlântico, o Tejo guarda mil e sete
quilómetros de contos e uns quantos segredos. Dele se partiu para
o Mundo. Dele se fez o Mundo. Curso de água doce, por vezes a
parecer águas ácidas, o maior rio ibérico foi palco, mas também a
vedeta, de alguns dos mais fantásticos episódios da História de
Portugal. Marinheiros, guerreiros, revolucionários, todos passaram
pelo Tagus, cuja geografia foi leito da vida – da agricultura à
aventura –, ou delta de poetas como Lord Byron ou Bocage,
gerando fábulas e muito mistério. Mas também já foi poço da
morte de muitos homens, mulheres e crianças – nele se viveram as
maiores calamidades naturais na região de Lisboa: o famigerado
terramoto oitocentista, o ciclone de 1941 e as Grandes Cheias de
1967. 
O cataclismo foi abafado por Salazar. O Estado Novo, que então
oprimia Portugal, pretendia projectar uma imagem de um país-
presépio, onde a noite tem estrelas pastoras, reis doadores, abrigo,
calor e amor. Nesse quadro não havia território para a madrugada
raivosa, para chuvas assassinas, para o desamparo e a
desesperança. Fome e morte tinham de ser afogadas também. Só
que essas águas malditas, que comeram bairros inteiros, acabaram
por ser igualmente desprezadas pelo novo regime que, depressa,
não quis mais saber. Dilúvio de 1967. Dilúvio sem Deus. 
Nesse ano, o Vietname fazia as gordas de todos os jornais. O
Diário de Notícias de dia 26 de Novembro anunciava uma sexta-
feira negra, na sequência de um recorde de vendas de ouro. A
Guerra Fria evaporava em terra, mas gladiava-se no espaço, com
os EUA e a URSS a rivalizarem e a perderem astronautas. Em
Janeiro de 1967, um incêndio na nave Apollo I matou os tripulantes
Virgil Grissom, Edward White e Roger Chaffee. Em Abril, um
desastre com a nave russa Soyuz-1 vitimou Vladimir Komarov, seu
único ocupante. Hoje é nome de uma cratera na Lua. Os primeiros
computadores, a primeira pílula anticoncepcional, os primeiros
bebés-provetas, os primeiros transplantes de coração. Primeiros,
primeiros; Portugal em último. O País embrutecia com baixos níveis
de escolaridade e elevadas taxas de mortalidade infantil, vivia
ainda sob o jugo de um verdugo, arfando atrasado, com
emigrantes em fuga de malita de cartão, em busca de um pouco
mais, um pouco melhor. Deux valises en carton sur la terre de
France / Un Portugais vient de quitter son Portugal / Comme tant
d’autres il est venu tenter sa chance /Le Portugais qui a quitté son
Portugal, cantava, melancólica, Linda de Suza. Portugal vergava-se
sob o regime de partido único e finava-se na tirania da Guerra
Colonial iniciada em 1961, estúpida e absurdamente anacrónica
quando comparada com a descolonização que varria a Europa,
isolando o país internacionalmente. 
O regime espancava pessoas até à morte, privava os seus presos
políticos de dormir até os levar à loucura ou ao fim, assassinava.
Mantinha a PIDE, asim. Ou talvez não. Já se
fosse pobre e mal-agradecido, rebelde, revoltado, ou simplesmente
curioso; se fosse um ser pensante, o destino estava marcado. Não
havia critérios de acesso a apoios, regras para subsídios ou normas
para assistência de qualquer espécie. Não havia previsibilidade ou
homogeneidade. Eram os indivíduos humanitários e filantropos
que, cada um pela sua cabeça e seguindo os parâmetros que muito
bem entendessem, ajudavam quem queriam e quando queriam. A
assistência era uma lotaria. Educação pública, segurança social ou
serviço nacional de saúde eram coisas que nem se supunham,
embora muitos já aspirassem a esses bens e eles florescessem por
toda a Europa. 
Instituto de Assistência à Família, Ministério das Corporações e
Previdência Social, Ministério da Saúde e Assistência. Na altura
deste Dilúvio sem Deus, o regime já tinha operado várias reformas
sobre a sua capacidade de assistência e multiplicava-se em
organismos, tudo serôdio e ineficaz. Máquinas carcomidas e
burocratas com sobreposição e duplicação de funções, cujas
premissas assentavam numa lógica corporativa, enredando-se num
sistema labiríntico e legalista que, claro, foi incapaz de dar resposta
quando a chuva tudo levou. 
O Ministério da Economia criou uma Comissão de Apoio aos
Sinistrados com a função de conceder subsídios e empréstimos aos
comerciantes e à população atingida pela catástrofe. Muito se
poderia contar sobre essas ajudas com juros. Por exemplo: Manuel
dos Santos, era um jovem residente no Casal das Andorinhas,
Odivelas, e foi uma das vítimas das inundações. Em carta
exasperada suplicaria: «A residência onde habitávamos ficou
destruída perdendo todos os nossos haveres, escapando-se apenas
a roupa que trazíamos no corpo. Dirijo-me ao Exmo. Sr. Ministro do
Interior para que Sua Excelência interceda junto das Entidades
Oficiais que intervêm na construção de bairros e casas para serem
distribuídos às vítimas das inundações apelando à sua
generosidade no sentido de interceder para que me seja concedida
uma moradia onde possa viver.» O pedido não foi atendido e o
caso foi arquivado. A mulher de Manuel dos Santos veio mais tarde
a falecer na sequência de ferimentos graves sofridos nas Grandes
Cheias. 
Muitos outros calavam-se. O medo estava sempre lá, como um
nevoeiro teimoso, uma bruma permanente, meio invisível, mas que
turvava todos os gestos. E temia-se o pior. Se já se estava pobre e
só, abrindo-se a boca, rebelando-se contra institutos, ministérios e
previdências, maldizendo Salazar e a sua perfídia, esconjurando o
Estado Novo, corria-se o risco de ficar ainda pior. Caladinhos,
sentadinhos e quietinhos é que tinha de ser. Pobres, mas honrados.
 
Ainda que os prejuízos tenham sido calculados em três milhões
de dólares a preços da época (cerca de 20 milhões na moeda
actual), numa nota oficial, divulgada pela imprensa a 30 de
Novembro, o governo não assumiu qualquer verba extraordinária
para socorrer as vítimas, referindo que seria com o orçamento
normal de cada ministério que se faria face às despesas geradas
pela catástrofe. Mais a mais, a estimativa dos ditos 20 milhões é
desafiada por vários investigadores por pecar por defeito e muitos
apontam para o dobro do valor – no mínimo. Foi igualmente
anunciado que a Caixa Geral de Depósitos estava autorizada a
conceder empréstimos aos municípios das regiões atingidas pelas
cheias, nas condições mais favoráveis de juro e amortização.
Todavia, esses empréstimos atingiram a ridícula soma de 70 mil
contos que voltaram a entrar nos cofres das câmaras municipais e
que, afinal, contas feitas, foram pagos pelo povo, sob a forma de
novas alcavalas, de novos impostos. 
Os trabalhadores de Odivelas, do Ribatejo, da Trafaria, de Algés,
as viúvas e os órfãos, os sem-abrigo e os famélicos, os indizíveis
pais e mães de filhos e filhas mortos nas Grandes Cheias de 1967,
todos eles ficaram sem legitimação e sem apoio. Reféns de limbo, a
viver nessa coisa que, como descrevia um testemunho, «não se
sabe se aconteceu porque ninguém fala disso». Ficaram mortos-
vivos. 
LUTA NA LAMA 
 
 
 
Na primeira edição do dia 26 de Novembro, a capa do Diário de
Lisboa titulava: «Chuva e morte: mais de 200 vítimas».
Quatrocentos e vinte e sete mortos, indicava o Diário de Notícias a
29 de Novembro de 1967, pouco antes de a Censura ter imposto a
cessação da contagem pública. Esse elemento explicará o facto de
a aritmética dos mortos ter sido interrompida alguns dias após a
tragédia, quando esses números ainda não estavam fechados e
persistiam acções de auxílio no terreno. Vejamos. 
Os dados oficiais começaram por sinalizar 250 vítimas mortais,
mas essa cifra foi sendo atualizada à medida que eram feitos mais
macabros achados. Na edição de 28 de Novembro, o Diário de
Notícias reportava que o número de mortos era de 316. A 29
Novembro, o mesmo jornal fazia já referência a 427 vidas perdidas,
pouco antes de o governo ter imposto a tal paragem dessa
mórbida contabilidade. Por sua vez, O Século avançava com o
número de 458 mortos na edição de 4 de Dezembro. No dia 5 de
Dezembro, o jornal actualizava esses três algarismos para 462,
marca que acabaria por ser a definitiva, segundo imposição do
governo. 
Os números oficiais falarão, portanto, de 462 vítimas mortais. Foi
onde parou o seu relógio. Eis um dos expoentes máximos de
qualquer ditadura: determinar quantas pessoas morreram,
independentemente do real número de baixas. Certo é que ainda
hoje não se sabe com rigor quantas pessoas se finaram naquela
tragédia. Uma semana depois ainda se retiravam alguns cadáveres
das lamas acumuladas em Algés ou noutras localidades e
continuava-se a falar de vários desaparecidos que teriam sido
arrastados até ao rio Tejo. 
Em vez de se homenagear cada um dos mortos, nomeá-los,
respeitá-los, a ditadura meteu a mordaça na comunicação social,
regateou contagens, aldrabou. Começou aí a barragem ao luto
familiar e colectivo que, depois, vedou uma compreensão
compartilhada sobre a morte. 
O jornalista Pedro Alvim, que esteve no terreno com Joaquim
Letria, escreveria uma tocante crónica no Diário de Lisboa,
intitulada «Os Mortos e os Fósforos», que começava assim: «Era ao
cair da tarde – e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados,
compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o
arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de
bombeiros, no fim de um domingo de Inverno. Eu estava ao
telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o
jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades. Ia
escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à
pressa, abreviados, secos. Um bombeiro, uma pilha nas mãos,
tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada,
hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos
todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando
absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não
queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize. ‘Se tu és
João” – dizia para mim –, “és João. E se o teu nome é Mário, o teu
nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei
Lucília.”» 
A citação desta peça jornalística está bastante estafada, mas o
que talvez não tenha ainda sido suficientemente sublinhado é que
o jovem repórter logo intuiu o imperativo civilizacional de dar
nome, rosto e história a cada um dos finados. A pandemia do
Covid-19 tornou-nos mais conscientes das disputas em torno
destas contagens de mortos, da politização destes processos, das
manobras de diversão, mas, na verdade, Pedro Alvim teve o
pressentimento do que viria a suceder e do enterro da memória
que se seguiria. 
Mas, afinal, quantas vidas se perderam naquela noite? O
contador de Salazar parou nos 462, hoje há quem aponte para os
700/800 mortos mas, na verdade, terão sido mais de um milhar. 
Recorde-se a tragédia de Entre-os-Rios. Em Março de 2001,
numa noite de temporal, a Ponte Hintze Ribeiro colapsou.
Inaugurada em 1887, fazia a ligação entre Castelo de Paiva (distrito
de Aveiro) e a localidade de Entre-os-Rios(concelho de Penafiel). O
Porto dava os primeiros passos como Capital Europeia da Cultura. A
paisagem do Douro também aguardava para ser considerada
Património Mundial da Humanidade. Do acidente resultou a morte
de 59 pessoas, incluindo os passageiros de um autocarro e três
carros que tentavam alcançar a outra margem desse curso fluvial.
Triste sina. Uma excursão às amendoeiras em flor acabou no fundo
do rio revolto. O desastre levou à responsabilização do governo de
então, por deficiente fiscalização, e o ministro do Equipamento
Social da altura, Jorge Coelho, acabou por demitir-se. Afinal, a
estrutura do século XIX, inicialmente edificada para carros de bois,
suplicava obras profundas havia muito tempo. Só que, construída
longe dos centros de poder, acabou esquecida e não aguentou o
peso do tempo. Lá ia por água abaixo a imagem do país
resplandecente saído da Expo’98. O executivo decretou dois dias
de luto nacional. Cinco anos depois, os engenheiros da ex-Junta
Autónoma de Estradas, que conheceriam bem o risco que corriam
os pilares, eram absolvidos no único processo que corria nos
tribunais e que os acusara de violação de normas técnicas. 
Esta calamidade criou uma nova expressão: a Síndrome de Entre-
os-Rios, que significa o interior esquecido, desdenhado pelo poder
central, isto é, outra variante do impacto assimétrico das tragédias.
No caso das Grandes Cheias de 1967, foram as zonas pobres da
Grande Lisboa e arredores que sofreram, ainda que as piores
chuvas se tivessem feito sentir no lustroso Estoril. Em 2001, foi o
interior que foi deixado para trás. E talvez assim continue. 
Note-se que, neste caso, já no século XXI, em democracia, foi
preciso esperar quase 20 dias para que as equipas de salvamento
conseguissem localizar o autocarro nas curvas do Douro – e a
maioria dos cadáveres nunca foi recuperada. Das 59 vítimas, 36
continuam ainda hoje desaparecidas, já que apenas 23 corpos
acabaram por ser resgatados. A violência do caudal e as fortes
correntes faziam crer que os corpos pudessem ser arrastados para
longe da Hintze Ribeiro. E, de facto, por exemplo, quatro dias após
a queda da ponte, quatro mortos deram à costa nos mares do
norte da Galiza, onde ainda se encontraria uma mochila e bancos
À
do autocarro. À dor da tragédia somou-se a angústia do luto pelos
desaparecidos, obrigando a um complexo processo para que tudo
pudesse ser regularizado do ponto de vista legal. 
Ou seja, em Entre-os-Rios, nem sequer metade dos cadáveres
foram encontrados. Assim, se nas Grandes Cheias os números
oficias pararam em 462, quantas pessoas morreram na realidade?
Ainda hoje há polémica entre os especialistas sobre esse cifra
negra. 
Abílio Rodrigues da Silva, o já referido bombeiro voluntário de
Odivelas, garante que os números oficiais estão errados: «Porque
ainda hoje há lá corpos enterrados. Os que lá ficaram. Porque
foram casas inteiras levadas com as pessoas lá dentro, gente que
depois ninguém reclamava», porque tinham vindo de longe para a
cidade e «ficou lá a família toda», declarou à revista Sábado. Ou
seja, muitas famílias tinham vindo da ruralidade, viviam nos
arrabaldes, meio clandestinas, e naturalmente não foram
procuradas por ninguém. De resto, mesmo que tenham sido… se o
regime escondia os combatentes que tinham dado o peito às balas
na Guerra Colonial – num combate que tantos repudiavam –, se
decretava o congelamento da contagem de perdas humanas nas
Grandes Cheias, então também não seria capaz de camuflar as
vozes de quem procurava familiares desaparecidos? Que recursos,
já nem falando no tal medo que tudo tolhia, tinha alguém a viver
numa aldeia em Trás-os-Montes ou no meio do Alentejo para
procurar tios sumidos algures em Odivelas ou Vila Franca de Xira? 
Na recordação do jornalista Joaquim Letria, partilhada na RTP, «o
que aconteceu com as cheias é perfeitamente incrível… havia
discrepâncias no acesso à informação, o Ministério da Saúde dava
uns números, o Ministério do Interior dava outros... durante muitos
dias nós não pudemos dizer que morreram 700 ou 800 pessoas e
que havia outras tantas desaparecidas». 
O tal lugar das Quintas é um triste topónimo a fixar, como dito, já
que a vertiginosa subida das águas engoliu quase metade da
população. O jornal Expresso contabilizou 85 óbitos na
conservatória de Vila Franca de Xira, entre as quais duas famílias
de quatro pessoas. Na hierarquia da desgraça, seguiu-se o Bairro
de Santa Maria, na Paiã (Pontinha, Odivelas), com 22 mortos
registados na 8.ª Conservatória de Lisboa. Mas atenção: tratava-se
de povoados de muita miséria nos quais, frequentemente, nem é
possível apurar elementos básicos como a naturalidade, estado
civil, filiação e descendência de muitos defuntos. Depois, bebés e
crianças por registar (mas também por vacinar, medir, pesar ou
medicar) eram muitos nessas décadas de obscurantismo em pleno
século XX. 
Além da Conservatória de Cascais, no livro de assentos de Oeiras
nada consta – os mortos deste concelho foram levados para a
morgue, em Lisboa, razão pela qual figuram na 8.ª Conservatória.
Constarão todos? Que percentagem? O livro de assentos de
Benavente também é omisso, apesar de esta localidade se situar
defronte de Vila Franca de Xira (e ser percorrida pelo rio Sorraia).
O jornal Expresso constatou que nas Conservatórias de Azambuja,
Cadaval, Salvaterra de Magos e Torres Vedras não há igualmente
registo de vítimas mortais, embora não restem dúvidas hoje em dia
que muitos perderam por aí as suas vidas. Isto não significa, como
se disse, que não haja mais mortos noutros concelhos do vale do
Tejo e na Margem Sul. Seja como for, e como disse o geógrafo
Fernando da Silva Costa, «permanece por contabilizar com rigor o
número de vítimas mortais». Sem essa pesquisa prévia, nas
conservatórias, arquivos, câmaras e cemitérios – um trabalho
necessariamente de equipa –, todos os números avançados não
passam de simples cálculos e estimativas. E mesmo depois de
concluído e varrido todo esse levantamento, a margem de erro
permanecerá elevada. Setecentos, ainda assim, parece um
diagnóstico conservador. 
Houve cadáveres que nunca foram descobertos. Quantos, é
completamente impossível saber. Fernanda Silva, então a morar na
Castanheira do Ribatejo, assume que os números nunca estiveram
correctos. «Na aldeia de Quintas, o número não está correcto de
certeza porque eu sei de uma família de Coimbra, um casal e dois
filhos pequenos, que tinha vindo passar o fim-de-semana com
familiares que tinham ali e também morreram», revelou ao site
abrilabril.pt. O já referido A Noite Mais Escura, livro sobre as
Grandes Cheias em Alenquer, por exemplo, refere o caso de um
menino de 1 ano que jamais foi resgatado, mas cujo óbito foi
certificado pelos próprios pais. Muitos cadáveres ou ficaram
submersos na lama ou foram levados pelas turbulentas águas do
Tejo – tal como aconteceu em 2001 na tragédia de Entre-os-Rios. A
partir do momento em que entraram no Tejo, a força irresistível da
corrente, numa noite terrivelmente chuvosa e negra, arrastou
velozmente os cadáveres para o infinito e para a eternidade do
Atlântico. Aliás, não é por acaso que só foi localizado um corpo nas
águas desse rio: de um homem «a respeito do qual se ignoram
todos os elementos de identificação» (e por essa razão apontado
como «desconhecido»), achado na tarde de 18 de Dezembro entre
Figueirinhas e Faial (Vila Franca de Xira ) «deitado de bruços sobre
umas pedras» e, claro, já em avançado estado de decomposição. 
Depois, convém sublinhar que às mencionadas causas directas de
morte (afogamento, soterramento e asfixia), haverá a acrescentar
as causas indirectas. De facto, nos assentos correspondentes aos
meses posteriores encontram-se várias centenas de óbitos
atribuídos a pneumonia, broncopneumonia e infecções agudas das
vias respiratórias. Sendo estas umas das principais causas de morte
em Portugal (ainda actualmente), não deixa de ser verdade que a
chuva, o frio e a humidade que se seguiram à intempérie, a
gritante falta de condições sanitárias e as deficitáriasrespostas de
saúde pública constituíram um caldo propício à difusão daquele tipo
de patologias. Há ainda e forçosamente, dezenas de casos como a
mulher de Manuel dos Santos, de Casal das Andorinhas, que viria a
partir dias depois, não sobrevivendo aos ferimentos causados pela
catástrofe. Setecentos mortos? Verdade é que todas essas mortes
indirectas também nunca entraram nos sinistros balanços.
Portanto, entre os cadáveres levados pelo rio e jamais reclamados,
os que pereceram de doenças associadas e ferimentos e os que
foram ocultados, mil mortos não pecará por excesso, certamente, e
o facto de as contagens serem sempre tão conservadoras
permitem perceber o desprezo a que as Grandes Cheias e as suas
vítimas foram sujeitas. 
Mas há mais. Muitos óbitos foram anotados numa conservatória
que não a de direito. Da mesma forma, até existirão cadáveres
sepultados sem que o óbito tenha sido previamente atestado por
um médico e tenha sido lavrado o correspondente assento. São
conhecidas as circunstâncias absolutamente excepcionais em que
os corpos foram empilhados como sacas de ração, em quartéis de
bombeiros, igrejas e largos de aldeias, antes de serem enterrados à
pressa nos tais funerais colectivos que logo adulteravam a
ancestralidade desses ritos, a sua importância para a elaboração da
perda e para a maturação social e psicológica. Portanto, o contexto
foi completamente anómalo e, mesmo por uma questão de saúde
pública, nem sempre foram observados os regulares protocolos
burocráticos. De resto, o próprio Código do Registo Civil, que
convenientemente entrou em vigor nesse mesmo ano, englobava
um artigo (art. 256º) que decretava que, havendo risco para a
saúde pública, consentir-se-ia o enterramento sem previamente se
fazer o registo do óbito. Logo, era legal colocar cadáveres a sete
palmos abaixo da terra sem lavrar qualquer assento. Sendo assim,
só a tal busca pelos cemitérios deste País, só um escrutínio
laborioso, permitirá encontrar os mortos nessas condições. O que,
como mencionado, e como comentou uma conservadora, implica
«um trabalho muito disperso e nunca acabado.» 
Perante a imposição da Censura, três jornalistas do Diário de
Lisboa decidiram investigar. Joaquim Letria, Pedro Alvim e
Fernando Assis Pacheco foram contar os mortos. «Era a única
forma. Andámos a correr as casas mortuárias, as morgues, a
contar. E chegámos a perto dos 700», comentou Letria ao Diário de
Notícias. Mesmo que se volte aos arquivos, às tumbas e às
morgues, nunca será possível determinar com exactidão – e com a
consideração que cada uma dessas vítimas mereceria. 
O primeiro registo tem morada em Sintra: Emanuel de Jesus
Ribeiro da Silva, uma criança de 7 anos que vivia em Queluz, vítima
de «asfixia respiratória por submersão acidental». O último registo
foi o de Elvira Baptista Cacilhas, de 47 anos, residente em Sobral
de Monte Agraço. O cadáver só foi descoberto cinco meses depois
da tempestade: às 15h de 30 de Abril de 1968, no Caminho da
Cruz, Arruda dos Vinhos, por onde passa o rio Grande da Pipa, o
que mais vítimas deglutiu. 
Da listagem de óbitos, supostamente apenas dois não foram
identificados, aparecendo sob a designação genérica de
«desconhecidos». Ambos do sexo masculino, descobertos já em
Dezembro em Vila Franca de Xira. Um «foi encontrado nu e sem
qualquer objecto que pudesse servir para facilitar a identificação».
O outro foi o tal cadáver que apareceu no Tejo e vestia «apenas
uma camisola, cuecas brancas e uma camisa de tecido militar». 
Muitos dos corpos, com efeito, foram levados na torrente dos
numerosos rios, ribeiros e riachos que cruzam o território, quase
todos alimentando o Tejo. Cachoeiras, Ossos, Ota, Lages, Algés,
Jamor, Frielas, Carenque, Odivelas, Trancão, Grande da Pipa,
Alenquer, Vala do Carregado – são alguns desses cursos de água,
que, de súbito viram o seu caudal espessar como uma lava gelada,
galgaram o leito e ganharam uma força hercúlea. Morreu gente de
todas as idades e oriunda de todo o País. Perderam a vida 14
crianças de um ano ou menos, incluindo uma menina de um mês,
Maria do Rosário da Costa Oliveira, afogada em Carenque (Belas).
A vítima mais velha tinha 88 anos: Adelina da Conceição, que
faleceu na aldeia de Quintas. País de intensa migração interna,
encontraram-se mortos provenientes de todo o território nacional:
Ponte de Lima, Trancoso, Oliveira de Azeméis, Cuba, Barreiro,
Portimão, Madeira, Açores. Até cidadãos estrangeiros. Muita gente
pobre, vinda de zonas interiores também depauperadas, que
haviam construído barracas com madeira e lata em chão de terra.
Quem viria à sua procura? Quem os chorou? 
ÁGUAS PASSADAS 
 
 
Montanhas e planícies 
Tudo tornou-se um mar; 
E nesta cena lúgubre 
Os gritos que soavam 
Era um clamor uníssono 
Que a terra ia acabar 
(«O Dilúvio», MACHADO DE ASSIS) 
 
Houve uma voz que nunca se calou, rompendo o espesso da
noite e o silêncio do medo: o Rádio Clube Português. Segundo
Rogério Santos, nessa estação «a informação foi permanente, o
microfone quase sempre aberto, os telefones constantemente
ocupados. Trabalhou-se à luz de uma vela, quando faltou a energia
na cidade. O gerador de emergência dos estúdios era apenas
suficiente para manter em funcionamento a cabine de locução e a
respectiva regência técnica. Esclareceu-se, apelou-se, orientou-se.
E, na manhã seguinte, quando o dia clareou, embora o cansaço
estivesse patente em cada elemento do serviço de noticiários,
transparecia em todos a satisfação de mais uma vitória no sector
da informação» (blogue Indústrias Culturais). 
Ainda a água não tinha baixado, já havia uma guerra política que
passou o nível do rés-do-chão. Grau zero. De um lado, encontrava-
se o regime ditatorial consagrado em 1933, e que atravessaria boa
parte do século XX com uma considerável capacidade camaleónica.
Impunha fortes limitações à liberdade de expressão e de
associação – interdição de partidos políticos, prisão de opositores,
proibição ou manipulação de eleições – e exercia a censura prévia
aos jornais e a outras publicações periódicas. Do outro lado da
barricada, entrincheirava-se a oposição, o Partido Comunista, as
Esquerdas, os estudantes e uma comunicação social que queria
voar, como o Rádio Clube Português. Claro que o fenómeno das
Grandes Cheias foi apropriado por estes «campos inimigos»,
produzindo-se leituras antagónicas sobre o acontecimento. 
De um lado, o Estado e as organizações de socorro que
colaboravam com o regime, como as da Igreja, focaram-se no
impacto das causas naturais e construíram uma narrativa ancorada
na imprevisibilidade, no fatalismo e nas operações para mitigar os
estragos, que, supostamente, teriam sido de uma generosidade
supra-cristã. Fado e caridade. Acontecera o que acontecera, nada
podia fazer prever o sucedido, agora também o mal já estava feito
e não adiantava chorar sobre leite derramado. Devia evitar-se o
alarme social que em nada contribuiria para acudir aos diversos
danos. 
Este ângulo das cheias rápidas de 1967 era uma evidente
extensão da propaganda com que o Estado Novo procurava lavar
os cérebros dos portugueses. Mas, neste caso, tinha uma
consequência suplementar. Impedia o luto, barrava a
transformação da dor quer individual quer colectiva, impossibilitava
a aprendizagem com os erros (possivelmente uma das formas de
evolução mais profícuas) e vedava possibilidades de fazer
diferente. 
Já as várias oposições construíram enquadramentos que
enfatizavam as causas sociais que originaram a destruição
produzida pelas cheias. O que acontecera podia ter sido evitado,
tinha havido incúria e negligência, erros grosseiros. Importava
apurar os factos e a verdade. Expô-los era mandatório porque
devia existir direito à informação. Denunciar para que não se
repetisse, para que se pudesse, finalmente, prevenir. Salvar vidas. 
Duas visões antagónicas e logo a disputa pelo poder, o braço-de-
ferro entre o verdugo e a oposição passou a assentar cotovelo nas
páginas dos jornais, nos comunicados às populações, nas
conferências de imprensa. 
Nas Grandes Cheias de1967, também os jornais mais próximos
do regime colocavam a tónica no carácter inesperado da catástrofe
e acentuavam a onda de solidariedade gerada. A leitura oficial do
cataclismo, veiculada por essa imprensa ligada ao regime
salazarista, atribuía a culpa do fenómeno às causas naturais que
escapavam à vontade dos homens e que, por si só e em si mesmo,
tinham gerado todos aqueles milhares de mártires. Era um discurso
fatalista que menorizava o ser humano perante as forças da
Natureza, ao mesmo tempo que enaltecia a suposta costumeira
solidariedade dos portugueses, que se disponibilizavam para apoiar
os que tinham perdido tudo, ajudando nos bairros, recolhendo
géneros alimentares e outros bens, estruturando peditórios e
organizando doações ou subscrições públicas. 
A nação sofrera a tragédia e a nação, unida em bloco, prestava
auxílio. «Tudo pela nação, nada contra a nação», o aforismo oficial
do Estado Novo, copiado de Mussolini, com que terminavam os
próprios ofícios da burocracia. 
Esta era a narrativa que procurava a todo o custo – a custo até
do respeito pelos mortos e seus familiares – esvaziar de conteúdo
político e de transformação social a extensão e as causas da
catástrofe. O Diário da Manhã, por exemplo, refere a «cadeia de
solidariedade humana (…) sem distinção de classes», que havia
significado a «vitória do homem, que a natureza tinha esmagado».
O Ministério do Interior divulgou uma nota oficiosa em que destaca
ser «a área atingida muito mais vasta, e somente a violência do
fenómeno de carácter excepcional, registado nas horas dramáticas
da noite de 25 para 26 de Novembro, pode explicar cabalmente a
grandeza dos prejuízos causados». 
Também o Diário de Notícias, reflectindo sobre a tragédia num
artigo intitulado «Autópsia de um Fenómeno», na sua edição de 5
de Dezembro, apontava como naturais as causas da tragédia, mas
alargava a explicação do sucedido a outros motivos. No que
concerne aos aspectos atmosféricos ocorridos, a região de Lisboa
não teria sido vítima de uma tromba de água, mas do choque entre
uma depressão – estacionária desde o dia 20 sobre a zona da
Madeira, tinha-se deslocado, a partir de dia 24, em direcção à
região de Lisboa – e um sistema frontal que precedia uma massa
de ar polar, de origem marítima. O embate resultara numa queda
da pressão atmosférica com acentuada precipitação, levando à
catástrofe que atingiu Lisboa e arredores. 
Para além daquela extraordinária coincidência de factores
adversos, o Diário de Notícias apontava para outras razões,
relacionadas com a má gestão do território. «Perante a gravidade
dos acontecimentos que ocorreram nas últimas 48 horas em
Lisboa, perante as cheias que se verificaram, uma vez mais, em
toda a cidade baixa e, particularmente, até nalgumas das zonas de
norte – portanto, afastadas do Tejo e em cotas muito mais
elevadas do que a sua margem –, ocorre-nos perguntar se não
estará alguma coisa profundamente errada no sistema de esgotos
da capital.» O jornal identificava algumas das eventuais
dificuldades que prejudicavam esse sistema de saneamento,
designadamente o défice de grandes colectores que escoassem as
águas sujas da metrópole, posto que a prioridade era
habitualmente concedida à construção das grandes avenidas e
prédios luxuosos em detrimento dessas infra-estruturas. 
O Diário de Notícias esboçava ainda uma interpretação mais
social do fenómeno, mas, para se manter dentro dos limites
permitidos pela Censura (e daquilo que era a sua linha editorial),
destacava a ligação entre o Estado e a Nação no suplantar da
desgraça: «Não ousamos considerar a tragédia como específica
prevenção ou particular castigo. Poupou os que mais seguramente
vivem, quase apenas vitimando gentes humildes, destruindo
casebres, utensílios de trabalhadores, roupas e móveis de pobres.»
E ainda acrescentava: «Foi uma tragédia! O Estado interveio
paternalmente. Enterrou os mortos com devoção e cuidará dos
vivos devotamente. A Nação sem Estado nem caravana seria. O
Estado sem Nação não passa de hipótese absurda.» 
A Juventude Operária Católica, habituada a questionar-se perante
a vida a partir de textos religiosos, decidiu dedicar o n.º 1 dos seus
Cadernos de Reflexão ao tema das inundações de Novembro de
1967, procurando uma explicação que permitisse aos seus
membros alcançar um «visão global do problema», ou seja, «uma
procura das causas». Os jornais Ribamar e o Notícias da Amadora,
do concelho de Oeiras, prestaram igualmente testemunho do
drama. O primeiro, de Algés, seguia a posição oficial marcada pelo
fatalismo de uma Natureza Madrasta que fora cruel com as
populações do concelho e de outras áreas da Grande Lisboa. O
Notícias da Amadora, publicado no mês a seguir à tragédia, dava
mais informações sobre os acontecimentos e assumia uma posição
mais crítica, denunciando o problema da habitação, nomeadamente
a existência de barracas, como um factor que, por si só, teria
contribuído para tornar ainda mais dramática a tragédia que se
abateu sobre as populações. Também o programa radiofónico PBX,
produzido pelos Parodiantes de Lisboa e realizado por Carlos Cruz e
Fialho Gouveia, se converteu num importante meio de informação
entre as populações e as autoridades, chegando mesmo a
ultrapassar o seu tempo normal de emissão. A 9 de Dezembro, o
governo faz publicar na imprensa uma nota oficiosa, para «exprimir
os agradecimentos» a «todas as entidades que desenvolveram
acções de apoio às vítimas das cheias», como a Legião Portuguesa
ou o Movimento Nacional Feminino. Mas mesmo o governo não
deixa de reconhecer a dimensão do apoio dado pelos estudantes,
aludindo, naquela nota, a «todas as boas vontades,
designadamente as de estudantes, que espontaneamente se
apresentaram» nos locais onde a enxurrada foi mais mortífera. 
A juventude mobilizou-se em massa. Homero Cardoso narra
assim o seu processo de consciencialização social durante as
Grandes Cheias: «Faço parte de um grupo que primeiro descobre a
acção social, a luta pelos pobres oprimidos. Estava na Flama
quando se dão as Cheias de 1967 e foi uma coisa que, até de um
ponto de vista meramente jornalístico, teve um impacto muito
grande na redacção da Flama e nas outras redacções. Quando as
cheias acontecem, toda a gente aparece num instante na redacção
da Flama. Andava toda a gente à procura do fotógrafo, o João
Tinoco. Simplesmente, ele nem passara pela redacção, tinha ido
logo a correr para lá. Apareceu mais tarde e tinha feito uma
fotografia que seria premiada, de uma mulher que, no meio
daquela desgraça toda, tentava salvar o seu aparelho de televisão.
Tínhamos uma equipa óptima na Flama e chegámos até a
enfrentar a Igreja, porque esta queria que nós imprimíssemos na
União Gráfica e nós opusemo-nos e ganhámos.» (blogue Malomil). 
Efectivamente, a revista Flama foi um dos meios de comunicação
que, na época, assumiu uma das posições mais reflexivas e
informadas sobre as Grandes Cheias, destacando a desigualdade
social que seria a fonte das consequências assimétricas nos vários
bairros da região de Lisboa. A publicação sublinhou o facto de a
tragédia ter ocorrido sobretudo nas zonas pobres dos bairros
suburbanos da zona da capital, qualificando eufemisticamente a
pobreza com expressões como «casas modestas com tectos
humildes que começavam a meter água e que não resistiram à
intempérie», em contraste com a Lisboa abastada que seguia para
o cinema ou se refastelava na poltrona caseira. 
O Comércio do Funchal foi talvez a publicação legal que mais
ousou confrontar o Estado Novo e o seu famigerado lápis azul,
apontando as causas sociais que teriam reforçado o golpe funesto
daqueles dias: «Nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva.
Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa
sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes.
Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre
por o ser. Na realidade, a água foi muita. Foi, sem sombra de
dúvida, a grande culpada da catástrofe, mas se as “casas”
(barracas) fossem verdadeiras casas teriamsido arrastadas pelas
águas?» 
Este jornal era, pelas suas posições mais críticas e desafiadoras,
um dos habituais alvos do regime, tendo sido suspenso por vários
meses em diversas ocasiões. Em Julho de 1968, em
correspondência enviada ao subsecretário de Estado da Presidência
do Conselho, a Censura alertava: «O semanário Comércio do
Funchal exerce uma acção de doutrinação política que se estende
para lá do território do Funchal e se julga dirigir-se sobretudo a
leitores de certos círculos do Continente.» Nesse particular o
Estado Novo tinha razão. A grande maioria dos leitores daquela
publicação não residia na Madeira e estava dispersa por todo o
País. Era lida por muitos que se opunham ao salazarismo, quer
pelos oposicionistas de vários sectores quer pelos estudantes mais
politizados, que nela achavam informação que, evidentemente, não
encontravam na imprensa adestrada pelo regime e pelo seu látego,
realidade que só seria alterada no 25 de Abril de 1974. 
Numa leitura crítica, o Solidariedade Estudantil, boletim dos
estudantes organizados para prestar auxílio às populações
sinistradas, apresentava estatísticas baseadas em dados do Serviço
Meteorológico Nacional, sublinhando que o máximo de pluviosidade
havia ocorrido no Estoril, numa zona rica nos arredores da capital,
apesar de as mortes se terem acumulado nos bairros-de-lata de
Odivelas. Esta publicação da Associação de Estudantes do Instituto
Superior Técnico era outra das vozes de denúncia, pretendendo
demonstrar que a catástrofe se devera sobretudo às infra-humanas
condições sociais e económicas das populações, bem como a
decisões políticas e administrativas cuja responsabilidade devia ser
apurada e devidamente assacada. Os jovens focavam as precárias
habitações como barracões, casebres e até cavernas em que
viviam os cidadãos afectados; a profunda lacuna nos sistemas de
segurança e de socorro; a previdência social deficitária; as
insuficientes medidas de estabilização das terras e de combate às
inundações; as desinvestidas redes de saneamento e a ausência de
planos de prevenção de epidemias. 
O Solidariedade Estudantil questionava também o que designou
de «mobilização moral» baseada em votos de solidariedade e de
pêsames, de subscrições ou de créditos que não respondiam aos
problemas das populações que precisavam de auxílio imediato e
efectivo e não de chá das cinco ou de empréstimos que só as
enterrariam ainda mais. Enfim, era a tal beneficência deixada ao
livre-arbítrio. 
O Portugal Socialista, o jornal clandestino ligado à Acção
Socialista Portuguesa, aludiu também às inundações de 1967,
denunciando a pobreza como a principal razão da tragédia. O
também clandestino Avante!, o jornal do Partido Comunista
Português, associou a calamidade ao desinteresse governamental
por uma política de habitação e ao desinvestimento ecológico de
Salazar: «As inundações que na noite de 25 de Novembro
assolaram a região de Lisboa, provocando a morte e a destruição
numa vasta área, não teriam originado semelhante tragédia se o
governo se tivesse preocupado em resolver o problema da
habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado da
regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se
tivesse tomado as medidas de emergência que as circunstâncias
impunham.» 
O Avante! alertava para o drama social e destacava a miséria das
populações como o factor que tinha multiplicado o número de
vítimas: «Porque não foram destruídos pelas chuvas diluvianas os
bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros da Urmeira,
Olival Basto, Pombais da Pontinha, Quinta do Silvado, Odivelas e
outros?» Porque, evidentemente, nestes bairros acumulavam-se
milhares de trabalhadores sem possibilidades económicas para
pagar elevadas rendas e que se viram forçados a construir as suas
próprias barracas de lata. Estes conjuntos de fogos arrasados
encontravam-se situados em zonas baixas, circundadas de colinas,
facilmente inundáveis, «construídos de tábuas e latas que a chuva
diluviana arrastou como frágeis barcos sem leme». Os comunistas
procuravam galvanizar as populações, apelando à tomada de
consciência política e ao apoio por parte operários, camponeses,
juventude e, no limite, por todos os que pugnassem por outro
regime republicano. 
A Rádio Portugal Livre, antena igualmente comunista, a operar
clandestinamente a partir de Bucareste, afirmava: «O governo
salazarista gaba-se de ter montado no País um sistema de controlo
policial que atinge o nível mais aperfeiçoado do mundo. Gaba-se
das brigadas móveis da P.S.P. que criou, prontas a actuar em
poucos minutos contra a população. Todo este monstruoso sistema
de controlo e vigilância está sempre a postos para intervir contra a
população. Mas na noite de sábado para domingo, as autoridades
salazaristas, apesar de as águas irem subindo de volume, apesar
de ao fim de várias horas se poder prever que a chuva iria provocar
grandes inundações, apesar de terem começado a chegar os
primeiros pedidos de socorro, em vez de advertirem a população,
em vez de darem o alarme para as zonas que poderiam ser
atingidas, deixaram que a inundação subisse e que as águas
arrastassem as casas onde dormiam as pessoas, ignorando
absolutamente o que se passava.» 
As populações poderiam ter sido avisadas da catástrofe com
antecedência, sendo que tal informação poderia ter-lhes permitido
colocarem-se a salvo, protegerem-se melhor das chuvas rápidas
que se aproximavam? Será que os serviços meteorológicos da
época teriam mesmo informação para prever o que sucedeu?
Houve um genocídio por negligência? Como classificar um regime
que pode antecipar a morte de centenas de pessoas mas que, para
não beliscar a sua própria imagem, nada faz? Como classificar essa
inércia? 
Este Dilúvio sem Deus teve uma imediata cobertura na imprensa
nacional. Os telefones das redacções não paravam de tocar com as
informações que chegavam de todas as áreas castigadas e com
pedidos constantes de esclarecimentos. Os jornais fizeram várias
tiragens no dia seguinte, acrescentando factos e reportagens. O
Diário de Notícias pôs na rua três edições. O Século distribuiu cinco
tiragens só no domingo, com elementos cada vez mais pesados, à
medida que se ia traçando o verdadeiro perfil das chuvas e das
suas consequências. Alguns títulos fizeram eco da catástrofe: 
«Noite dramática em Lisboa e arredores. Horas de desespero» 
«Dilúvio de catástrofe» 
«Fim-de-semana trágico: Dilúvio, lama e morte» 
«A mais longa noite da região de Lisboa» 
«Impossível dizer onde acabava o Tejo e começava Lisboa» 
«A noite em que a chuva matou» 
«Noite de pesadelo numa cidade em pânico» 
«Chuva e morte: centenas de vítimas» 
«Mortos e desaparecidos envolvidos pela enxurrada» 
«Só silêncio na aldeia de Quintas» 
Após os primeiros dias, a tragédia continuava a fazer correr tinta
e a dar muitas gordas nas primeiras páginas, mostrando
momentos, factos, fotografias, testemunhos, histórias,
identificando mortos e desaparecidos. Appio Sottomayor, jornalista
da France Press, também se comoveu com as notícias que
transmitia: «Logo nessa noite fui dar uma volta pelas zonas mais
sinistradas, incluindo Odivelas. Das cenas que mais me marcaram
foi ver a boiar os corpos de uma mulher e uma jovem, juntamente
com coelhos mortos, um cão e uma boneca, todos em grande
irmandade naquela ribeira de Odivelas que normalmente é um
charco e nessa altura subiu como sei lá o quê.» 
Só que a chuva de letras e a enxurrada de verdade depressa
seria estancada. Ligaram os cães de guarda, esses sempre
vigilantes: «A partir desta hora, não morre mais ninguém», disse
um dos funcionários dos serviços da Censura ao jornalista do Rádio
Clube Português, João Paulo Guerra, amigo de Alice Vieira. «A
Censura carregou com mão de ferro, cortando notícias, distorcendo
informações, impedindo os números certos de serem divulgados»,
porque nessa altura o governo de António de Oliveira Salazar
percebeu «que seria perigoso deixar que as pessoas soubessem a
dimensão exacta do que estava a acontecer», contou a escritora.
«A Censurafalava quase de cinco em cinco minutos.» 
A memória colectiva das Grandes Cheias é escassa. «Não me
lembro de a Censura ter agido com tanta força noutra altura e isso
nota-se», prossegue. «Se as coisas não aparecem nos jornais nem
nas televisões, não existiram, não é? As pessoas não se metiam em
políticas, como se dizia. Nunca entenderam o que é que aquilo
foi.» 
A real dimensão da catástrofe «não ultrapassou a espessa cortina
da Censura», como nota o estudo de Francisco da Silva Costa, nem
mesmo nos anos recentes, quando autores como o geógrafo
Fernando Rebelo consideraram as cheias de 1967 uma das três
grandes catástrofes em Portugal, juntamente com o terramoto de
Lisboa de 1755 e o aluvião do Funchal de 1803. O que Alice Vieira
ou Fernando Assis Pacheco, acabados de sair do curso de Filologia
Germânica, não podiam escrever nos seus jornais, relataram à
imprensa estrangeira, neste caso a revista alemã Quick (que saiu
de circulação em 1992). «Contámos tudo o que vimos e o que
aquilo representava. Aquilo era a falência do Estado.» 
Mensagem curta, por telegrama: «Não falar no mau cheiro dos
cadáveres.» A 29 de Novembro de 1967, as páginas da imprensa
ainda se enchiam de reportagens e notícias sobre as águas
diluvianas, mas a Censura ordena aos jornais: «Inundações: os
títulos não podem exceder a largura de ½ página e vão à
Censura.» O «Dr. Ornelas», capataz do lápis azul, avisa ainda a
redacção do Jornal de Notícias no mesmo telegrama: «Actividades
beneméritas de estudantes – CORTAR.» As maiúsculas gritam a
ordem. Não há que enganar. No Portugal cinzento de Salazar, a
tragédia tinha de ser maquilhada. «É conveniente ir atenuando a
história. Urnas e coisas semelhantes não adiantam nada e é
chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos
mais pequenos», escreve o «Tenente Teixeira, logo a 27 de
Novembro. «Não adianta nada», como se fosse um «já não há
nada a fazer». Conformem-se. 
Os censores foram mesmo muito activos, apagando frases como
«Rostos marcados pela tragédia»; «As crianças foram as vítimas
mais dolorosas»; «Flores, lágrimas e lama»; «A dor foi
comunicativa»; «Momentos que não serão esquecidos». «Centenas
de mortos» é alterado para «dezenas de mortos». 
No terreno, um dos jornalistas do Diário de Notícias, António
Valdemar, recebe instruções. «Não venhas com coisas macabras,
evita coisas macabras, que o coronel já telefonou», indica-lhe o
subchefe da redacção, Sebastião Cardoso, referindo-se ao censor
do Secretariado Nacional de Informação, responsável pela Censura.
Nesse serão, o repórter tinha jantado com amigos e, no Cais do
Sodré, telefonou para João Coito, chefe de redacção, a avisar de
que já havia inundações. Chovia torrencialmente, recordou ao
jornal onde tanto tempo trabalhou, e Coito responde-lhe: «Comece
por aí. Siga até onde puder e diga pelo telefone em que local
está.» O jornalista foi caminhando até Alcântara, descrevendo
carros submersos, água a rasar as janelas de um eléctrico, prédios
alagados, pessoas desnorteadas, perdidas, assustadas. Estava
longe de imaginar o que nos dias seguintes iria ver e noticiar. Ainda
nessa mesma noite, é enviado para Loures, acompanhado de um
fotógrafo. Nos dias seguintes, vai relatando o que observa, do
Olival Basto até ao Cabeço de Montachique. Dorme no quartel dos
bombeiros, dita os textos para a redacção por telefone, o que era
complicado. Como lembrou Joaquim Letria à SIC, todo o processo
era moroso e complexo. As comunicações estavam cortadas em
muitos dos locais atingidos pela tragédia, era necessário encontrar
um telefone, ter moedas para a cabine, rezar para que a ligação
estivesse suficientemente boa, ter trocos e tempo bastantes para
ditar um texto inteiro. Os rolos com as fotografias chegaram à
redacção do Diário de Notícias, graças à ajuda de agentes da então
Polícia de Viação e Trânsito. «O subchefe Oliveira Nunes arranjava
polícias que levavam os rolos das fotografias», recordou António
Valdemar. Mas, depois? Tantas ganas, tanto brio profissional, e
todo o esforço para quê? Pôde escrever sobre a morte do médico e
das duas filhas num carro soterrado pela lama e de como uma
delas foi encontrada com as mãos petrificadas a segurar um
caderno de apontamentos escolares? Ou sobre o relato do avô que
vivia numa cave com duas netas e as viu morrer afogadas sem
conseguir valer-lhes? Num texto em que registaram as queixas de
bombeiros, autarcas e anónimos que lamentavam a falta de
assistência, a Censura cortou a eito aquilo que falava de «ausência
de infra-estruturas e falta de apoio e segurança às populações». 
Guilherme Esteves, o já citado bombeiro voluntário de Odivelas,
ajudante de comando na altura, recordou ao Diário de Notícias
que, «mesmo depois das cheias, apareciam pessoas mortas, um
dia um, no outro dia vai buscar outro». Mas o silêncio era
obrigatório: «Só fomos autorizados a pôr no jornal 400 e tal
mortos. Nós não podíamos dizer, nem os jornais, derivado à
Censura, Salazar não autorizava. Salazar não gostava de expandir
os acontecimentos, as desgraças.» 
O carimbo da Censura é bem visível no Diário Popular: «Noite de
tragédia na capital e arredores: mais de cem mortos devidos a
enxurradas e desmoronamentos. Famílias sem lar, comunicações
paralisadas» – tudo é cortado. «Dramático amanhecer nas regiões
devastadas pelo temporal» – corte total. Sem apelo nem agravo.
«A chuva justifica tudo?» – corte. «Muitos mortos e desaparecidos
em Alenquer. 104 vítimas da tragédia foram a enterrar nos
cemitérios de Vila Franca e Castanheira» – depois dos cortes,
resta: «Em Alenquer – 104 vítimas foram a enterrar em Vila Franca
e Castanheira». E foi uma sorte. A palavra «barraca» aparece
sempre riscada pela Censura. Casas, aquilo eram casas. 
Salazar conseguia sempre o melhor e mais perverso
enquadramento para os seus actos de ditador. Ao director da
Censura, enviou um bilhete manuscrito: «Sr. Director, Portugal está
vivendo uma catástrofe, já houve demasiados problemas para a
população e convém que essa não seja mais amargurada com
notícias sobre este assunto.» Ou seja, escondia os seus tiques
autoritários, controladores e sociopáticos por detrás de uma cínica
preocupação com as populações. 
Portanto, se o regime negligenciou o apoio imediato às vítimas,
já não falhou na desqualificação do acontecimento e na ocultação
dos factos. Nesse domínio, foi absurdamente eficaz. Ao fixar,
através da Censura, um número oficial de mortos, ao impedir a
divulgação dos nomes dos falecidos a partir do número
artificialmente laqueado, ao limitar a publicação de fotografias
depois das primeiras semanas, ao deixar cair no esquecimento o
tema um mês depois dos acontecimentos, o regime utilizou a
estratégia adequada para atingir o seu êxito. Águas passadas. Tudo
para esquecer. 
Se as ásperas e até impossíveis condições de vida das
populações nos bairros pobres e em habitações precárias
contribuíram para tornar a tragédia ainda mais terrível, a Censura e
o silêncio ditaram uma segunda morte àquelas vítimas, recusando-
lhes o direito à memória. O esquecimento foi a última sentença, a
derradeira condenação. Nenhuma lista de vítimas mortais os
incluía. Simplesmente, não tinham existência. É a nossa própria
natureza humana que nos identifica com um nome. Somos tendo
um nome. Sem nome não existimos. Negar o nome é negar a vida.
E o que não vive também não morre. Se o regime negou às vítimas
o direito ao nome, negou-o também a todos nós, enquanto povo
portador de uma história e de memórias. Negou a nossa identidade
colectiva. É mesmo: a censura perdurou muito depois de ter
deixado de funcionar porque riscou os dados da tragédia para
consulta. Muitos foram omitidos e liquidados para a eternidade. 
A 27 de Novembro, o tal tenente Teixeira ordenava: «É
conveniente ir atenuando a história.» As autoridades iam até aos
mínimos detalhes. A Comissão de Exame Prévio do Porto
determinou, a 30 de Dezembro de 1968: «Baile de passagem de
ano, no Palácio dos Valenças, em Sintra. Não dizer que a receita se
destina às vítimas das inundações.»Para o Diário de Notícias, o dia 15 de Janeiro marca o final do
destaque concedido às notícias sobre as Grandes Cheias. A partir
de então, não haveria mais informações sobre aqueles
acontecimentos dramáticos. A tragédia acabara. Fim. No que se
refere à televisão, surgiram referências durante pouco tempo,
sensivelmente uma semana. E sem imagens, porque televisão sem
movimento não tem o mesmo impacto. Nos ecrãs de então tudo
passou ainda mais leve e mais rápido. 
A imprensa internacional foi o socorro dos jornalistas nacionais,
mas não escapou à rapina do regime. Agências noticiosas como a
Associated Press (AP) e a United Press International (UPI) foram
também pressionadas pela Censura no que respeita às notícias
difundidas. Isaac Flores, correspondente da AP em Lisboa, foi
chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros por críticas
tecidas à actuação da Censura. Igualmente, Edouard Khavessian,
correspondente da UPI, foi interrogado pela PIDE na sequência da
divulgação dos protestos dos estudantes contra a ineficácia da
actuação das autoridades no auxílio às populações. Considerando
as suas informações como difamatórias para a reputação de
Portugal, a PIDE ameaçou-o de expulsão, caso não revelasse o
nome da sua fonte. Para dentro do País, Salazar controlava os
danos. Para fora, minimizava os riscos, procurando sempre
preservar a imagem delico-doce do País acima de tudo. Acima da
verdade, da ajuda, da compaixão. Mesmo assim, as imagens dos
fotógrafos das agências estrangeiras e as de Eduardo Gageiro,
impedidas de serem publicadas nos jornais portugueses, apareciam
nas publicações estrangeiras. 
As Grandes Cheias de 1967 foram de tal modo catastróficas que
mereceram muita atenção internacional: o fotógrafo inglês Terence
Spencer veio a Portugal para captar sem filtros ditatoriais os
cadáveres, a lama e os escombros pelas ruas e aldeias
portuguesas. Vencedor de um World Press Photo (no ano seguinte,
em 1968), vendeu as suas incríveis imagens à revista LIFE e a
reportagem correspondente foi publicada a 8 de Dezembro. 
 
 
PEDRADA NO CHARCO 
 
 
 
A Legião Portuguesa foi uma milícia salazarista criada pelo Estado
Novo, logo no seu início. Fora idealizada como um corpo paramilitar
de apoio ao Exército mas, com o passar dos anos, foi perdendo o
seu pendor belicista para passar sobretudo a operar no campo da
luta contra a subversão, nos meios sindicais e estudantis. Servia
para controlar e calar. Aquando das Grandes Cheias, persistia como
uma instituição ao serviço do regime e dispunha de uma rede de
informadores, colaborando com a PIDE. A polícia política, contudo,
não adorava a competição no controlo ideológico dos cidadãos,
nem valorizava as informações recolhidas pelos legionários que,
habitualmente, considerava amadoras. Foi com estas valências e
este perfil que a Legião Portuguesa esteve presente no auxílio às
populações dos bairros atingidos pelas cheias. A Mocidade
Portuguesa, outra organização salazarista e milicial criada pelo
regime para condicionamento dos verdes anos e lavagem cerebral
à juventude, interveio também nas zonas sinistradas,
estabelecendo contactos com as autoridades municipais e
disponibilizando-se para a recolha de donativos em dinheiro ou
bens. 
Neste socorro foi ainda mobilizada a ajuda do Exército, da Força
Aérea e da Marinha. Soldados de várias unidades militares da
região de Lisboa, num total de mais de 1500 homens, prestaram
diferentes tipos de apoio às populações, como a desobstrução de
vias de acesso às localidades e habitações, a evacuação das
populações, a instalação de centros de operações de salvamento, o
policiamento das ruas ou a desobstrução das vias de caminho-de-
ferro. Enfim, tudo ou quase tudo militar ou paramilitar e tudo a
chegar pouco e tarde. 
O Diário de Notícias promoveu, como referido, uma subscrição
em dinheiro e em géneros a favor das vítimas, alavancando um
grande movimento de solidariedade nacional que haveria de
marcar as suas primeiras páginas durante dias. Segundo o jornal,
todas as doações seriam entregues à Cruz Vermelha Portuguesa à
medida que fossem chegando, cabendo-lhe posteriormente definir
os critérios na distribuição dos géneros e dos valores monetários às
populações necessitadas. Essa operação foi um êxito porque
contou com o apoio generoso de muitos particulares de coração
cheio e instituições diversas, que doaram o que tinham e podiam.
Diariamente, o jornal ia divulgando os valores recolhidos,
identificando a lista dos doadores nacionais ou estrangeiros e as
respectivas doações. A campanha foi a maior subscrição pública
organizada em Portugal até então, arrecadando 25 mil contos de
receita. 
Só que muita gente não foi socorrida, não foi ajudada, foi
esquecida outra vez. Moradora no concelho de Oeiras, Elisabete
Aguardela recordou que, em grande parte dos casos, cada família
resolvia os seus problemas sem ajudas. No caso particular dos seus
tios, que a custo se salvaram da cave em que viviam em Algés,
relembra: «Ficaram sem nada. Foram realojados pela Cruz
Vermelha, mas as pessoas pouco receberam. Foram realojados em
Caxias e depois, pelos seus meios, voltaram para Algés. Pouco
conseguiram.» 
É duro observar a opção da Cruz Vermelha Portuguesa, perante a
disponibilidade das suas congéneres europeias em prestar ajuda
solidária a Portugal. A sua posição chega a ser repugnante. Afinal,
a Cruz Vermelha Internacional disponibilizou-se para auxiliar os
portugueses atingidos (Cruz Vermelha Francesa e a Liga das
Sociedades da Cruz Vermelha, com sede em Genebra), mas essa
coordenação não se verificou porque a irmã portuguesa recusou o
dinheiro, socorros médicos, medicamentos e outros préstimos com
a justificação de «nada necessitarem», visto que, supostamente, as
medidas governamentais e a generosidade dos portugueses haviam
respondido cabalmente às necessidades das populações
sinistradas. 
A Cáritas foi outra das instituições presentes no auxílio às
populações atingidas. Estiveram envolvidos nessa acção solidária
227 voluntários que se deslocaram para as zonas sinistradas, onde
procederam à distribuição de roupas e géneros alimentares. Os
bens doados resultaram de várias ofertas nacionais e até
internacionais. Por iniciativa do cardeal-patriarca de Lisboa, em
todas as missas dominicais do dia 3 de Dezembro foi feita uma
recolha de donativos em dinheiro, vestuário e alimentação, que foi
depois entregue à Cáritas para proceder à sua distribuição pelos
mais carenciados. Do estrangeiro, a Cáritas recebeu donativos do
papa Paulo VI, da Cáritas Internacional e da Cáritas alemã no valor
de 10 mil dólares. Só esta última reuniu nove toneladas de
cobertores e medicamentos. A Cáritas espanhola doou meio milhão
de pesetas e também organizou uma recolha de donativos em
todas as dioceses espanholas com o fito de ajudar as vítimas das
Grandes Cheias de 1967. Da francesa Secours Catholic chegaram
quatro toneladas de vestuário e de agasalhos e dos Estados Unidos
da América veio a ajuda solidária da American Catholic Relief
Services. 
A Fundação Calouste Gulbenkian, não obstante todos os danos
sofridos nas suas instalações em Lisboa e Oeiras, fez jus ao seu
papel de grande instituição filantrópica, concedendo um fundo de
apoio aos sinistrados e financiando a construção de habitações
para famílias desalojadas em vários locais da Grande Lisboa.
Estipulava-se como condição que todos os aglomerados
habitacionais a construir tivessem a designação de Bairro Calouste
Gulbenkian e que as despesas de urbanização dos mesmos fossem
custeadas pelas respectivas câmaras municipais. Mário e Elisabete
Augusto – ele que nascera num dia ciclone, ela que estava grávida
no dia das Grandes Cheias –, a muito custo, lá arranjaram uma
dessas casas, onde ficaram décadas e onde criaram os sete filhos. 
O impacto da catástrofe despertou a solidariedade internacional.
Grã-Bretanha, Itália, Mónaco, França, Suíça e Espanha enviaram
donativos e vacinas contra a febre tifóide. O general De Gaulle, à
época chefe de Estado da França, contribuiu com uma dádiva
pessoalde 30 mil francos, cerca de 900 euros no câmbio da época.
Espanha ofereceu mil doses de vacina contra a febre tifóide. Outras
instituições internacionais prestaram também a sua ajuda, como o
Museu Britânico, que enviou três especialistas, o Centro
Internacional de Restauro de Roma, o Instituto di Restauro del
Libro, do Vaticano, e a Universidade de Istambul. 
Apesar da solidariedade das instituições e de muita gente
anónima, também medraram fungos oportunistas. No Dafundo, no
Bairro Clemente Vicente, existiam cerca de 40 habitações devolutas
pertencentes a José Manuel Vicente, que teria entregado a
administração das mesmas a um indivíduo identificado como
Canhoto. O capataz explorava os mais humildes, só lhes
entregando as casas depois de lhes saquear todos os pertences e
garantir que nada mais lhes restava. A desumanidade também
calcou Frielas, em Loures: o senhorio das barracas destruídas
andava no meio dos escombros a recolher as rendas daquele mês,
temendo perder de vista os inquilinos. A GNR, que esteve sempre
ausente das acções de salvamento, acompanhou-o para o proteger
na cobrança, até porque a população o recebia à pedrada. 
Como tudo se tornou num imenso buraco castanho, com lama e
chapas de zinco, muita gente deixou as suas casas. A visita dos
ladrões não tardou e houve muitas pilhagens. Madrugada alta,
ainda com as ruas todas às escuras, os bairros começaram a ser
invadidos por gatunos que vinham ao saque. Algumas montras já
tinham rebentado, mas outras ainda estavam intactas. Os ladrões
atiravam objectos pesados aos vidros, entravam e retiravam o que
encontravam. Havia gente a passar com televisões, telefonias,
electrodomésticos. «Durante alguns meses, as lojas tinham à porta
produtos apelidados de “Salvados” que eram vendidos muito
baratos. Eu desconhecia a palavra e perguntava-me como é que
ela teria aparecido, assim, de repente. E em breve, só o cheiro acre
dos salvados, quando se passava por uma dessas lojas, nos fazia
lembrar a tragédia», contou Elizabete Aguardela ao Gotas de Ar
Frio. 
A exploração sem escrúpulos da tragédia humana também
grassou por Lisboa, onde surgiram burlões que, organizados em
falsas comissões de apoio, andavam de porta em porta a pedir
donativos para os sinistrados em nome do Diário de Notícias. Nas
vilas e aldeias pantanosas, apareciam salteadores a revistar
cadáveres à procura de ouro. 
* 
Em muitas culturas, o estado primal da existência, o Início ou o
Começo, está separado da actualidade por uma (ou mais)
catástrofes naturais. Há uma barreira semelhante entre o presente
e o fim do tempo, separados pelo Juízo Final, o Armagedão ou a
vinda de uma Nova Era. Na nossa escala, as Grandes Cheias foram
também um desses saltos qualitativos. Foram um portal. 
«É urgente! Não vimos trazer-te notícias porque já as ouviste.
Vimos informar-te que podes ser útil. Os teus braços, a tua
imaginação, o teu dinheiro são vitais para quem não tem tecto nem
roupa para se agasalhar.», lia-se num comunicado distribuído nos
meios estudantis. Mais de 2000 miúdos dos liceus de Lisboa –
Camões, D. Leonor, D. João de Castro, Filipa de Lencastre, Maria
Amália, Passos Manuel, do Colégio Moderno e do Liceu Francês –
inscreveram-se para ajudar. 
«Aquilo foi uma tragédia tão grande que as pessoas foram
sabendo daquilo e chegaram imensas coisas ao Instituto Superior
Técnico, para serem depois distribuídas. As dádivas foram postas
na piscina vazia e foram separadas por tipo de coisas, por
tamanhos. Ficou cheio de coisas. Estava ali o centro nevrálgico. Na
cantina foram feitas rações de combate – sandes, fruta, bebida –
que se levavam para os bombeiros, para as populações e para os
estudantes que iam para o terreno», recordou Fernando Valdez,
que tinha então 18 anos e estava no segundo ano de Engenharia
Mecânica no Técnico, ao Diário de Notícias. Foi aí que os
estudantes de Lisboa, mas depois também ajudados por colegas do
Porto, de Coimbra e de vários liceus da capital, centralizaram toda
a operação de apoio às populações. «Foi um contra-relógio para se
organizar tudo para ir para o terreno, meios logísticos,
transportes», contou. 
Fernando foi para Quintas, a aldeia mártir. Já lhe tinham contado
que era uma sepultura a céu aberto, mas nada se comparava ao
que experimentou. «Não há relatos para descrever aquilo, estava
tudo atolado em lodo, quando nós chegámos ainda se encontraram
cadáveres... Os bombeiros exaustos, as populações a
entreajudarem-se. O apoio oficial não existia, havia apoio de
autarquias, não a nível central», comentou. «Aquilo marca sempre.
No meu caso pessoal já vinha da pró-associação dos liceus, vinha
de uma família da oposição, tinha consciência de muita coisa. Mas
para muitos estudantes, muitos deles nem eram muito associativos,
aquilo foi um momento de viragem na consciencialização de como
o regime tratava as pessoas e mantinha pessoas em condições
infra-humanas de grande pobreza.» 
De facto, o mundo académico tomou consciência aguda de que
havia um país bem diferente daquele que passeava à volta da
Cidade Universitária: uma nação de lata e de lama. Os estudantes
portugueses eram, na sua esmagadora maioria, oriundos de classes
sociais privilegiadas. O ensino superior era altamente elitista (a
massificação só se dá no final do século XX) e os seus alunos,
mesmo os mais politizados, viviam alheados da miséria em que
lutava a maioria do povo. 
Além disso, foi por essa altura que se inventou a juventude. Entre
o final da década de 1950 e o início da década de 1970, muitas
foram as transformações mundiais. Uma delas foi a emergência de
um novo sector etário e a definição de uma cultura associada. Os
jovens e a sua música, os seus ídolos e os seus artistas,
irromperam por todo o globo como protagonistas da História,
ansiosos por novas experiências, adversos ao conservadorismo dos
pais e à opressão das autoridades. Portanto, o surgimento deste
movimento estudantil casava na perfeição com os ares dos
tempos. 
«Os estudantes vieram com uma outra cultura que nós não
tínhamos, já com uma visão diferente, e foram eles que
transformaram isto tudo. Se calhar, se eles não têm saído à rua,
sabia-se o mesmo que se soube naquele dia. Acredito nisso», disse
Luísa Fajardo ao Diário de Notícias. «Transformaram, através do
conhecimento, da notícia, da divulgação para fora, da ajuda que
deram. Foi uma grande reviravolta a partir daí. Hoje apercebo-me
bem do que é que aconteceu, mas na altura... sabíamos que veio
para aqui toda a gente, a Marinha, a GNR, essa gente toda, mas
sentia-se, apesar da dor, sentia-se que havia o medo de comunicar.
Já havia pessoas por aí a dizer: “Cuidado, atenção.” Eram esses
avisos. Mas de resto o que é que a gente sabia? Sabíamos que
tínhamos perdido tudo…» 
No ano lectivo de 1967/1968, havia em Lisboa cerca de 18 mil
estudantes universitários. Eram novos, muitos deles generosos e,
mesmo sem uma informação fidedigna, mesmo com enormes
dificuldades de acesso aos bairros, avançaram para as zonas
sinistradas, com energia e solidariedade. Toda uma geração de
alunos, apercebendo-se da situação de carência em que vivia
grande parte da população, mobilizou-se para a luta política contra
o regime. À RTP, o dirigente estudantil João Bernardo confessou ter
ficado impressionado com a incúria das autoridades: «Além de nós,
só havia os bombeiros voluntários; de resto, absolutamente mais
nada.» Uma outra estudante, Rita Veiga, moradora em Alvalade,
diria: «Se me pedissem para resumir numa só palavra o que vi
diria: lama, lama, e ainda lama.» 
A JUC, Juventude Universitária Católica, também assumiu
protagonismo na ajuda e, claro, a ditadura ficou especialmente
contrariada com essa participação. Certa manhã, os estudantes
chegaram para as aulas e as portas estavam seladas, com tábuas
pregadas com um aviso a dizer que as instalações tinham sido
encerradas compulsivamente por ordem da PIDE. Pois é. A PIDE
opôs-se a todas as acções solidárias da JUC e acusou os jovens
que a integravam de serem revolucionários e comunistas,
trancando as suas instalaçõesno Instituto Superior Técnico, onde
também apreenderam todo o material que encontraram. 
A denúncia de tal situação levou a Censura a actuar, pela
primeira vez, sobre o jornal Encontro, decretando o visionamento
prévio dos futuros artigos. Havia edições em que eram retiradas
páginas inteiras e não era possível deixá-las sair em branco para
evitar que se deixasse perceber a dimensão dos cortes. Havia que
disfarçar. Mesmo assim, do título «Nas regiões sinistradas de
Odivelas e Loures estudantes contam histórias às crianças
enquanto os pais recebem agasalhos e alimentos» não sobrou
nada. Outro título, «Solidariedade nacional – Juventude presente!»
foi cortado a metade. Desapareceu a referência à juventude. 
Os estudantes, articulados com algumas autarquias e empresas
de transporte, foram incansáveis durante duas semanas. Só a
Associação de Estudantes do Técnico foi responsável pelo
fornecimento de cerca de mil refeições por dia às vítimas das
cheias e pela organização de outras acções de apoio. Seis mil
alunos, a trabalharem uma média de oito horas por dia, passaram
por Odivelas, Silvados, Ponte de Frielas, Olival Basto, Póvoa de
Santo Adrião, Loures, Bucelas, Pintéus, Fanhões, Alhandra,
Calhandriz, Tortosa, Vala do Carregado, Quintas, Santana da
Carnota, Refugidos, Cadafais, Carnota de Baixo, Alenquer…
Estudantes associativos, a elite política das universidades,
comunistas, católicos progressistas, esquerdistas, voluntários
juntos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida porque
nunca a tinham experimentado. «Andavam por lá freiras e jovens
estudantes a lavar casas, nomeadamente em Caneças e em
Odivelas», recordou Raul da Silva Pereira, numa entrevista
publicada no livro Habitação e Sociedade. Só depois é que
apareceu no terreno o Movimento Nacional Feminino, a Cruz
Vermelha, a Mocidade e a Legião Portuguesa, as Forças Armadas.
A Direcção-Geral da Saúde, ao contrário de todas as outras
autoridades, reconheceu publicamente a ajuda prestada pelos
alunos da Faculdade de Medicina nos trabalhos de apoio médico às
populações dos bairros mais atingidos pela catástrofe – e a sua
colaboração preciosa para evitar outras calamidades, como o tifo e,
talvez, a cólera. Luís Pio de Abreu, que mais tarde se tornaria num
célebre psiquiatra, disse que as Grandes Cheias foram um banho
de realidade, a entrada na idade adulta. 
A jornalista Diana Andringa era então estudante de Medicina,
curso que acabaria por abandonar. Ao jornal Expresso revelou:
«Nesse sábado ia apanhar em Entrecampos o metro para a estação
do Rossio, e depois o comboio para Rio de Mouro, quando, à
entrada da estação, uma onda de água me fez recuar. Domingo
fomos sabendo as más notícias e creio que foi logo na segunda-
feira que, na faculdade, fui mobilizada para o auxílio às vítimas.
Sendo de Medicina, integrei uma Brigada de Vacinação destinada a
Frielas e Póvoa de Santo Adrião. Tratava-se de vacinar em massa
contra o tifo.» À revista Sábado, disse: «Houve um dia em que dei
165 vacinas e, quando voltei, fui ver um filme japonês qualquer,
que não me lembro, porque precisava de ver qualquer coisa que
não fossem agulhas a entrar na pele.» 
A jornalista acrescentaria que «venci a minha fobia de agulhas
para dar quase centena e meia de vacinas nesse dia. Venci-a,
também, para acompanhar no hospital a pequena cirurgia feita a
um menino que encontráramos a vaguear, sozinho, com um corte
profundo no pé – e que se agarrava com força à minha mão. E foi
depois desses dias, em que vencera alguns dos meus maiores
temores em relação à Medicina, que tomei finalmente coragem
para deixar o curso e optar pelo Jornalismo.» Derrotar medos
pequenos para conseguir, por fim, vencer o vilão principal. 
Andringa recordou como, nas ruas de Lisboa, os polícias
sinaleiros paravam o trânsito para dar prioridade às camionetas
carregadas de estudantes para as zonas afectadas. Mas, no
terreno, já não havia ninguém a abrir caminho. «Havia uma
paralisia total do Estado. Viam-se bombeiros e estudantes a ajudar,
depois um pouco a Cruz Vermelha, com umas senhoras fardadas e
de salto alto, a distribuir umas sardinhas, mas não punham o pé na
lama. E os relatos que nos chegavam é que a GNR, em vez de
ajudar, andava a perseguir os comunistas dos estudantes.» 
Foram as Grandes Cheias que acamaram o leito do 25 de Abril. A
catástrofe acelerou o motor de politização das jovens gerações. Ele
já rugia entre modos de contestação mais aguerridos e uma maior
abertura à sociedade, mas foi o cataclismo de 1967, juntamente
com outros factores como os ecos da revolta mundial dos
estudantes nos anos 60 e o crescente descontentamento perante a
Guerra Colonial que fizeram estalar a superfície e deixaram entrar
luz. 
Há um consenso generalizado: para muitos estudantes, esta foi a
primeira tomada de consciência política. Para outros, marcou a
ruptura definitiva com o Estado Novo. «Os estudantes saíram da
academia e despegaram-se das reivindicações focadas nas
questões pedagógicas, na comida dos refeitórios e no preço das
propinas, para assumirem um papel de maior intervenção social»,
notou a historiadora Ana Paula Torres ao jornal Público. Ou seja,
rebentaram a gaiola dourada e descobriram que havia mundo além
desse magno problema do menu repetitivo na cantina velha da
universidade. 
O historiador António Araújo vai mais longe: «O movimento de
solidariedade teve como efeito não só um conhecimento muito
próximo – e dilacerante – da realidade social por parte de milhares
de estudantes, como uma politização destes num sentido
vanguardista, a ponto de alguns, como Pacheco Pereira e Jorge
Simões, afirmarem que foi desde então que o Partido Comunista
Português foi ultrapassado no meio estudantil.» Já o próprio
Pacheco Pereira viu um novo país emergir das Cheias de 1967:
«Subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente
que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam
proteger não funcionaram.» Depois deste salto qualitativo, deste
portal, alguns activistas procuraram intensificar o conhecimento
mútuo entre estudantes e população, viajando até ao mundo rural,
escutando as pessoas, participando nos trabalhos agrícolas,
trocando informações e lutas. 
O salazarismo odiava e temia o movimento estudantil. Desde
logo por que era autogerido, autónomo, não integrado em
nenhuma das instituições corporativas vigentes. Depois, o regime
receava que aquela empatia que também brotava com força de
água evidenciasse a incompetência das autoridades nos serviços de
socorro às populações e no planeamento urbano. Estes contactos
entre estudantes associativos e trabalhadores mais pobres podiam
gerar filhos revolucionários, ou seja, ameaçar a paz social tão cara
ao salazarismo. 
Em entrevista ao historiador António Araújo, a então jovem
católica Maria da Conceição Moita que, imbuída de consciência
cristã e social, rapidamente evoluiu para um posicionamento
político mais crítico, recordou a sua experiência: «Fui professora de
Religião e Moral durante muitos anos. Procurava fazer um discurso
para os jovens, não subversivo, mas entusiasmante, alegre,
positivo, de empenhamento. Nos bairros pobres atingidos pelas
cheias, ouvi histórias de vida que ainda hoje me deixam dilacerada
– nasceu em mim a revolta perante o país que se tinha.» 
Além da denúncia nos seus próprios órgãos de comunicação, os
estudantes convocaram uma conferência de imprensa para o dia 3
de Dezembro para dar a conhecer à opinião pública o seu trabalho
e desmentir que a sua organização estivesse a cargo dos Serviços
Sociais da Universidade, como a propaganda de Salazar já difundia.
Sucede que essa assembleia foi censurada e nenhum
esclarecimento surgiu na imprensa diária nos dias seguintes. Só
nos jornais estrangeiros saíram algumas notícias. Claro que os
representantes dos estudantes reagiram, denunciando aquilo que
designaram de impreparação e desorganização das autoridades.
Como resultado, toda a direcção da Associação de Estudantes do
Técnico foi convocada para ir prestar declarações à PIDE. O cerco
foi apertado.Há pormenores esclarecedores: um grupo de
estudantes que se encontrava no Rossio, de capa e batina, a fazer
um peditório a favor das vítimas, foi detido pela Polícia de
Segurança Pública por supostos distúrbios à ordem pública. 
O médico João Semedo diria ao jornal Expresso: «Sabemos como
o tempo embacia as nossas memórias e rouba nitidez aos factos
que vivemos. Contudo, por mais anos que passem sobre as Cheias
de 1967, julgo que nunca se apagará em mim o choque brutal que
senti ao mergulhar naquele cenário de morte, destruição e pobreza
extrema, que atingia milhares de pessoas a viverem em condições
absolutamente degradantes e desumanas. Dois ou três dias
enterrado na lama até aos joelhos, entre destroços e barracas
destruídas, vendo, impotente, a dor e o sofrimento dos que tudo
perderam, protestando contra a avareza e o atraso do apoio
dispensado pelas autoridades salazaristas, revoltado sempre que
algum governante garantia que a tragédia se devia às chuvas
torrenciais e não à miséria que habitava aquelas barracas. Sei que,
desde então e ao longo destes 50 anos, nunca fiquei indiferente
perante qualquer desigualdade ou discriminação e sempre me senti
– e sinto – convocado para o combate à pobreza, à exploração e às
injustiças que, em grande medida, foi o que deu corpo e sentido à
minha vida.» 
Muitos estudantes encontraram Deus em Odivelas ou Loures. Ana
Maria Bénard da Costa diria: «Eu, quando penso, tenho cada vez
mais dúvidas e sinto-me cada vez mais longe de poder aceitar a
ideia de um Deus ou seja lá do que for. Mas sei é que, quando na
altura das inundações, passei o dia com os sapatos encharcados a
distribuir cobertores em Odivelas, senti outra vez que Deus estava
perto e que se alguma coisa Ele era, era aquilo. Portanto não posso
desligar Deus dos outros e da eficácia da acção junto deles.» Estas
palavras encontram-se num caderno especial da revista O Tempo e
o Modo com o título «Deus o que é?», no registo de um diálogo
travado entre diversas personalidades como Bento Domingues,
Eduardo Veloso, João Bénard da Costa, Maria Belo, Nuno Bragança
ou Vítor Wengorovius. 
Esta intervenção de Ana Maria Bénard da Costa mereceu um
comentário algo irónico de João Bénard da Costa: «Isso, no fundo,
é só porque tu foste educada, como eu, como nós todos, desde os
tempos da JUC, etc., a acreditar que esse sacrifício é que tinha
valor e que quanto mais perto estivéssemos do sofrimento dos
outros, mais perto estávamos de Deus. Por isso é que tu sentes a
tal plenitude da eficácia. Não só fomos educados a acreditar nisso
como a dar valor ao sacrifício enquanto sacrifício, ao trabalho
custoso, ao que dói, etc. Ou seja, se tu te sentias perto de Deus
em Odivelas era porque te sentias perto da Cruz sem a qual não há
redenção.» Ao que Ana Maria retorque: «Pois, mas o que me
parece é que essa presença do sofrimento dos outros é a presença
do que nos transcende e portanto presença de Deus.» Verdade é
que parte da burguesia de Lisboa, a despontar para a tal
contestação, ouvira vezes demais algo como «Cada vez que se dá
esmola a um mendigo, mata-se a revolução.» Ou seja, havia um
certo dilaceramento entre ajudar como Cristo ou «amotinar» como
um Che. 
Com mais ou menos ambiguidade e mais ou menos eivados de
contradições, as Grandes Cheias para muitos acabariam por
desaguar anos depois na Capela do Rato, na passagem do ano de
1972 para 1973, quando um grupo de católicos assumiu uma
posição dura contra a Guerra Colonial e contra a ditadura do Estado
Novo. No sábado, dia 30 de Dezembro de 1972, na missa das
19h30 alguns presentes surpreenderam o celebrante, o padre João
Seabra Dinis, ao declarar publicamente que tencionavam realizar
na capela uma jornada de 48 horas de «greve da fome» e de
reflexão acerca da Guerra Colonial, apelando a cristãos e não-
cristãos para que se juntassem à iniciativa. 
 
DEPOIS DE MIM, O DILÚVIO 
 
 
 
Uns meses depois das Grandes Cheias, nos últimos dias de Julho
de 1968, Salazar encontrava-se no forte de Santo António em São
João do Estoril, onde costumava passar férias. Estava muito sol e
muito calor, um Verão quente. Julgando-se a salvo da força das
águas, no local onde tantas vidas tinham sido poupadas ao
contrário do que seria expectável, o ditador escrevinhava e
mandava, mas nunca formulou «o dilúvio foi um fracasso: ficou um
homem», como disse Henry Becque. E também jamais imaginou
que seria aí, no seu forte orlado por uma tripla muralha estrelada,
barrado das ondas, das inundações e da miséria, que a morte
irromperia de dentro, tão inopinada quanto as Grandes Cheias.
Uma morte mesquinha, medíocre, vil e com delongas, tal e qual o
seu regime. 
Mil novecentos e sessenta e oito foi convulsivo. Enquanto as
Primaveras de Paris sacudiam o mundo, os Stones compunham
«Sympathy for the Devil», os Doors cantavam «Hello I Love You» e
o «2001: Odisseia no Espaço» estreava nos cinemas, o presidente
do Conselho e a sua Maria lá roíam a rotina à beira-mar. Todos os
dias, na véspera do seu acidente, Salazar leu jornais, deu um
pequeno passeio, acertou o relógio duas vezes. Cheirava a Maio de
68, as primeiras greves debutavam, Cardoso Pires publicou O
Delfim, milhares de emigrantes voltavam de França e da Alemanha
com sindicatos no céu da boca e a raiva nos dentes. Em Junho, o
bailarino Maurice Béjart, no Coliseu dos Recreios, gritou do palco:
«Façam amor, não a guerra!». Luther King e Robert Kennedy
assassinados, a China na revolução cultural, a Checoslováquia em
crise, a ONU a decretar o Ano Internacional dos Direitos Humanos.
Enquanto isso, no Estoril, no protegido Estoril, Salazar fazia mais
uma chamadinha para enterrar nos calabouços um desgraçado
pescador de Matosinhos ou um funcionário da Carris que tivesse
aderido à «greve da mala». Ai os pobres e mal-agradecidos. Ai a
Mitra. Salazar dava as suas caminhadas, dava à corda, arrumava
criteriosamente as suas santas garrafas do Dão e chamava um
especialista para lhe tratar das calosidades. 
Acontecia o massacre de My Lai, corria a onda anti-Vietname,
erguia-se o Black Power, o povo juntava -se e, no Estoril, Salazar
estava orgulhosamente só, barricado, não falhando o corte de
cabelo quinzenal, a censura a mais meia dúzia de obras de arte ou
a ordem de tortura a um estudante. Apolo 8 fazia a sua missão,
dava-se a primeira grande denúncia da fome em África, John
Updike escrevia romances e António Oliveira Salazar, no seu fraco
forte, como era hábito diário, registava post factum telefonemas,
despesas e visitas, numa folha da agenda com a data no topo da
página – já os meninos da sua mãe «de balas traspassados, duas,
de lado a lado» ou os mortos das Grandes Cheias nunca soube
contar, tão pouco eternizar, e foram tantos. Fazia sempre essas
anotações sem sombra de maçada ou enfado, ordenando os dados
e os acontecimentos ocorridos das 8 horas até às 23, tarefa que
concluía mesmo antes de apagar a luz. Longo bocejo. Um soninho
descansado. 
Mil novecentos e sessenta e oito, mudança cataclísmica, só
comparável a 1848, o eixo de rotação da Terra em estertor com os
protestos anti-guerra, movimentos civis, demonstrações estudantis
– e o tiranete tomba de um cadeirão. Cai redondo no chão,
estatela o crânio na tijoleira. A queda da cadeira do poder, da
cadeira de sonho, gestatória, do trono, tinha de ser literal. Na
ditadura não há lugar para a imaginação. Não há espaço para o
sonho, para o desejo, para o futuro. Mil novecentos e sessenta e
oito o ano mais marcante de toda a história moderna dos EUA, e
Salazar cai, fica diminuído, mas o regime continuou como se nada
fosse. Em 1968, o mundo mudou, mas Salazar vivia como se
estivesse tudo igual e ainda fosse patrão. Agosto de 68: big bang
para a humanidade, Estado Velho para Portugal.
Ao Diário de Notícias, a 11 de Setembro, a governanta de sempre
do ditador, Maria de Jesus, diria que estava nos seus «aposentos
quando ouviu um barulho que lhe deu a impressão de uma porta a
bater». Correu logo a ver o que se passava, chegando quando o
amo já se erguia do chão. Após «uns momentossua polícia política, a Censura e a repressão
contra qualquer opositor. Não havia liberdade de expressão, nem
de associação ou de reunião. Os partidos estavam proibidos à
excepção da União Nacional, que ocupava todos os órgãos do
Poder. Os sindicatos não eram livres. 
Pedia a V.ª Ex.ª, pela sua saúde, já que não tive a sorte de
trazerem o meu filho vivo, peço-lhe que mo mandem mesmo
morto. Para eu o adorar e rezar ao pé daquele bom querido filho.
Peço imensa desculpa a V.ª Ex.ª destas minhas tristes palavras,
mas a dor é tão grande que não sei onde hei-de respirar. O nome
do meu filho é Francisco da Luz Carloto. 
Maria Florinda fora informada por telegrama que o seu filho
morrera na guerra em Moçambique em Janeiro de 1967, uns meses
antes das Grandes Cheias. Se o quisesse trazer, teria de pagar 12
mil escudos, o que equivaleria a cerca de 4 mil euros. Era
incomportável, totalmente impagável, mas a mãe do soldado sentiu
que tinha de tentar. Desde que a Guerra Colonial começara que o
Estado português só custeava o regresso aos militares vivos, não
aos mortos. Quem queria velar os seus tinha de pagar do seu bolso
e quanto mais longe morria o militar mais caro seria: trazer um
corpo de Moçambique era o mais dispendioso; da Guiné, por ser
mais próximo, ficava a cerca de 2500 euros. Sucede que a
transladação era insustentável para a maioria das pessoas e o que
acabava por acontecer era o regresso apenas a pedido das famílias
dos oficiais que dispunham de meios. Trazer e sepultar na sua terra
os seus era para a elite. Até na morte se sentia o peso da classe
social de origem. Qual luto pessoal, qual trauma partilhado. Fado,
só fado. 
Ainda hoje, a terra vermelha africana envolve as ossadas de
tantos Franciscos da Luz Carloto. No livro Guerra Colonial, de
Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes (Ed. Notícias, 2000),
constata-se que, das mais de duas mil baixas ocorridas só entre
1961 e 1966, foram trazidos para Portugal apenas 326 corpos, o
que representa cerca de 15% do total. Milhares de esqueletos de
portugueses ainda estão hoje perdidos nesses solos quentes,
fósseis involuntários de uma guerra burra. E assim se compreende
que a grande maioria desses militares portugueses que
permanecem até hoje enterrados em Angola, Guiné-Bissau e
Moçambique sejam soldados e cabos. 
Sublinhe-se que o desterro desses defuntos era também uma
maneira de tornar a morte invisível e, claro, barrar qualquer
compartilhar da História, qualquer processo colectivo. Ou seja, com
a experiência da Guerra Colonial, iniciada meia dúzia de anos antes
das Grandes Cheias, o regime já granjeara traquejo em ocultar
cadáveres, em manietar os jornais para diluírem as baixas por
vários dias, reduzir tudo a minúsculas notícias publicadas em
páginas interiores e pares, como se o sofrimento das Florindas não
valesse mais do que o rodapé. Enfim, o regime já sabia bem
enterrar os mortos antes de serem sepultados, antes de terem
direito ao último abraço da mãe. Os soldados caídos que
regressavam a Portugal eram colocados em navios de transporte
dentro de vulgares caixotes de madeira e as urnas eram depois
desembarcadas muito discretamente para, finalmente, ser tudo
aberto no depósito de adidos da Ajuda, em Lisboa. Mesmo os
feridos chegavam durante a noite. Salazar não queria espectáculos
além da revista e das variedades. Tudo leve e breve. Sangue e
morte tinham de ser ainda mais discretos do que a moralista vida
que defendia. Morria-se sozinho, sem nada nem ninguém. Partia-se
para o esquecimento sem um lamento, enquanto a ad vitam
aeternam estava reservada para os privilegiados. 
Peço imensa desculpa a V.ª Ex.ª destas minhas tristes palavras,
mas a dor é tão grande que não sei onde hei-de respirar. Foi esta
pungente carta da Maria Florinda, de Tolosa, concelho de Nisa, que
fez com que o Estado passasse a assegurar as trasladações – o seu
querido Francisco, o «Menino de sua Mãe» (como lhe poderia
chamar Fernando Pessoa), está enterrado no cemitério dessa
pequena vila alentejana. 
 
No plano abandonado, que a morna brisa aquece, de balas
trespassado-duas, de lado a lado – Jaz morto e arrefece. Raia-lhe a
farda o sangue. De braços estendidos, alvo, louro, exangue, fita
com olhar langue e cego os céus perdidos. 
O Menino da Sua Mãe, Fernando Pessoa 
 
Mesmo assim, mesmo depois da pequena revolução encetada
pela Mãe do seu Menino, as famílias continuaram a ter despesas,
nomeadamente a serem obrigadas a pagar o caixão de chumbo e o
transporte desde o hospital militar até ao cemitério da terra natal.
Salazar ganhava assim duas vezes: ganhava politicamente ao
esconder mortos de uma guerra que ninguém queria (e que assim
adoçava a sua crueldade) e ainda metia ao bolso uns milhares de
escudos ao cortar o oxigénio aos familiares dos soldados-perdidos.
Portanto, artimanha em lucrar com cadáveres já constava no
currículo da ditadura. Ocultar mais uns milhares de sacrificados das
Grandes Cheias? Facílimo. 
* 
1967. Nem tudo era mágoa e pano negro. Em Fevereiro,
realizara-se o IV Festival RTP da Canção nos estúdios da Tóbis, em
Lisboa. Isabel Wolmar e Henrique Mendes foram os apresentadores
da final ganha por Eduardo Nascimento com a canção O Vento
Mudou, anos mais tarde reinterpretada pelos UHF. Ouçam. Ouçam.
E o vento mudou. Ela não voltou. As aves partiram. As folhas
caíram. A letra era de João Magalhães Pereira e o desgosto de
amor segue intemporal. 
Em Maio, um grupo de revolucionários assaltou uma sucursal do
Banco de Portugal na Figueira da Foz com o objectivo de angariar
dinheiro para realizar novas acções que contribuíssem para o
derrube do regime. Hermínio da Palma Inácio, Camilo Mortágua,
António Barracosa e Luís Benvindo perpetraram o roubo, em pleno
dia e sem violência. Chegaram a Paris 48 horas mais tarde, com o
equivalente a dez milhões de euros na bagagem. O País não
voltaria a conhecer nada parecido. Em Outubro de 1967 nascia o
Rally Internacional TAP, prova que iria definir o panorama
automobilístico português, rapidamente extravasando a vertente
desportiva e tornando-se num acontecimento nacional. O percurso
iniciou-se em San Sebastián, com meta nas arcadas do Casino do
Estoril. O jovem Jean Pierre Nicolas, num Renault 8 Gordini, foi
cabeça de cartaz, mas acabou por entregar a vitória à dupla
Carpinteiro Albino/Silva Pereira, também num Gordini. 
A derrota maior foi mesmo no Outono. As cheias rápidas mais
devastadoras aconteceram quase todas em Novembro. Em 1967,
em 1983, também na região de Lisboa e de Cascais, e em 1997, no
Alentejo e no Algarve. 
Dia 25. Lisboa amodorrava sob a chuva. Nos teatros alfacinhas,
assistia-se à peça A Flor do Cacto, comédia de boulevard, sem
pretensões, ligeira sátira de costumes baseada em equívocos e
desencontros. Cactus Flower foi interpretada por Lauren Bacall e,
na capital portuguesa, por Laura Alves. Êxito de bilheteira. Nos
cinemas passavam Como Ganhar um Milhão, de Billy Wilder, Felizes
para Sempre, com Sophia Loren e Omar Sharif, ou Cortina
Rasgada, de Hitchcock, com Paul Newman e Julie Andrews. Com o
céu metálico, muitos optaram por ficar em casa a ler ou a ver
televisão. Como relatou a Flama: «A Lisboa mais abastada seguia
para o cinema ou refastelava-se na poltrona caseira, assistindo ao
famigerado folhetim Gente Nova, da RTP, à espera de mais uma
aventura do Santo. Quando o Roger Moore chegou aos receptores,
já os tectos humildes começavam a meter água. Há doze horas que
chovia.» 
Enfim, a vida corria corriqueira e nada fazia crer que, em pouco
tempo, tudo mudaria. É sempre assim. De resto, a previsão
meteorológica publicada, por exemplo, no dia 25 de Novembro
anunciava: «Céu muito nublado, chuva ou chuviscos» Sucede que
nesse sábado choveu todo o dia. Água miúda, chuva molha-tolos,
cacimba, como lhe chamava quem já tinha passado por África – e
eram muitos, naqueles tempos. Chuviscava persistentemente mas,
para a população, nada que fizesse prever que, horas depois, o
mundo se abateria sobre as suas cabeças. Mas foi o que sucedeu.
A pluviosidade foi-se acentuando e,de desorientação,
parecia ficar bem, tendo pedido àqueles que o assistiram para não
darem muita importância ao caso». Aparentemente recuperado,
recusou qualquer assistência. Essa informação foi guardada como
um «segredo de Estado» e, entretanto, procedeu-se a uma
remodelação governamental. 
Um novo executivo reuniria a 3 de Setembro. Nessa altura, o
ministro dos Negócios Estrangeiros já notara que Salazar
evidenciava «um estado mórbido, de uma palidez doentia, alheio a
tudo, e à saída, segurando uns documentos debaixo do braço,
afastou-se da sala do Conselho de Ministros, e vi-o caminhar pelo
corredor de São Bento quase trôpego, arrastando os pés, sem
certeza e sem segurança». Através do seu diário, também se
notaria que a sua caligrafia estava muito alterada. Três dias depois,
a 6 de Setembro, quando, além das dores, demonstrou falhas de
memória e um raciocínio incoerente, o ditador foi levado do Estoril
para Lisboa onde acabou por ser operado na Casa de Saúde da
Cruz Vermelha. Retiraram-lhe um hematoma intracraniano subdural
do hemisfério esquerdo. 
A cirurgia correu bem, com os boletins clínicos a garantirem:
«Tudo indica que o pós-operatório se processa normalmente.» Na
primeira dessas notas médicas, o presidente Américo Tomás trocou
a expressão «madrugada» por «noite», para amenizar a urgência
da intervenção, e o subsecretário de Estado da Presidência do
Conselho, Paulo Rodrigues (conhecido como «a lapiseira de
Salazar») omitiu a segunda palavra em «hematoma intracraniano».
Passou só a hematoma, portanto. Podia ser na perna ou num
braço. 
Nos dias imediatos Salazar parecia convalescido, mas, a 16 de
Setembro, depois do almoço, levou a mão à testa e, menos antes
de desmaiar, terá dito: «Estou muito aflito. Ai, meu Jesus!» Um
grave acidente vascular cerebral (AVC) no hemisfério direito
prostrou-o num coma de onde apenas saiu em finais de Outubro,
tendo uma recaída no mês seguinte. É Marcelo Caetano quem fica
à frente do regime manco, que procura sobreviver ao seu mentor. 
A carreira política de Salazar estava terminada já que, mesmo
que sobrevivesse, ficaria incapacitado para as suas funções.
Internado até Fevereiro, só então vai para casa. Até à morte, um
ano e meio depois, vive convencido de que ainda é ele que tem o
poder. Assiste-se então a uma comédia de enganos, porventura
opereta bufa, digna de rivalizar com a Flor do Cacto que subiu ao
palco na noite das Grandes Cheias: os antigos colaboradores vão à
residência oficial como se estivessem a reunir o Conselho de
Ministros e lêem os jornais ao ditador ocultando as notícias em que
surge o nome ou a fotografia de Marcelo, o novo chefe do
Governo. Salazar faz até despachos sobre assuntos fictícios. 
O presidente do Conselho morre em Julho de 1970. As suas
últimas palavras foram: «Sim, mãe, sim.» Pouco depois, a bandeira
nacional é colocada a meia haste em São Bento. Luto nacional. Mas
o Estado Novo ainda se aguentaria mais quatro anos. 
Tinha de ser do Ribatejo e da zona saloia, justamente das
regiões mais açoitadas pelas Grandes Cheias, que partiria a
estocada final à ditadura. Tinham de brotar dessas entranhas, anos
antes encharcadas pela água e pelo sangue, as ganas de terminar,
de uma vez por todas, com a opressão, a crueldade e a injustiça.
No dia 24 de Abril de 1974, um grupo de militares comandados
pelo capitão Otelo Saraiva de Carvalho instalou secretamente um
posto de comando do movimento golpista no Quartel da Pontinha,
em Odivelas, por onde haviam vagueado tantos olhos mais
pesados do que a lama. E onde ainda estava viva a memória de
tantas mortes. Já ao Ribatejo, das lezírias e das charnecas, tão
fertilizado quanto penitenciado pelos alagamentos, coube um papel
crucial. Foi da Escola Prática de Cavalaria de Santarém que partiu
uma coluna de chaimites, pequenos tanques militares, sob o
comando sereno, mas firme, de um jovem de 29 anos com um
objectivo claro: a ocupação do Terreiro do Paço que então recebia
o nome de código «Toledo». 
Alentejano de nascimento, órfão de mãe, meio criado pelo
Ribatejo e amadurecido pela Guerra Colonial, a 25 de Abril de
1974, esse capitão de seu nome Salgueiro Maia encontrou-se com
a História. No dealbar da madrugada, já com a sua caixa de
cigarrilhas no bolso, pronto para escrever um capítulo de Portugal,
afirmou perante umas largas dezenas de homens na Escola de
Cavalaria: «Meus senhores, como todos sabem, há diversas
modalidades de Estado: os estados sociais, os corporativos e o
estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar
com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir
comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for
voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!» 
Às três e meia da manhã, as tais dez viaturas blindadas
atravessaram a porta de armas com a inscrição «ao galope, à
carga» comandadas pelo capitão sem medo, rumo a Lisboa.
«Charlie Oito» (Salgueiro Maia) comunica a «Tigre» (Otelo Saraiva
de Carvalho): «Ocupámos Toledo e controlamos Bruxelas e Viena
(Banco de Portugal e Rádio Marconi)!» Os passos do herói são o
próprio mapa do 25 de Abril. Salgueiro Maia move, mais tarde,
parte das suas forças para o Quartel do Carmo, onde encontra
Marcelo Caetano que, ao final do dia, e perante a eficiência do
comando e da estratégia dos Capitães de Abril, se rende e entrega.
Esse derivado de Salazar parte, depois, para a Madeira, rumo ao
exílio, escoltado por Charlie Oito até ao avião que o transportaria
até ao Brasil, do qual já não tornaria. 
Avesso a privilégios, mordomias e honrarias, Salgueiro Maia
recusou ser membro do Conselho da Revolução, adido militar numa
embaixada à sua escolha, governador civil de Santarém ou de
pertencer à Casa Militar da Presidência da República. Em 1989, foi-
lhe diagnosticado um cancro que lhe tirou a vida. Tinha 47 anos e
pediu para ser enterrado em campa rasa. Para sempre ficou a sua
lição: desobedeçam. 
ONDA DE CHOQUE 
 
 
 
«O Ribatejo deve ser visto das Portas do Sol de Santarém, num
dia de cheia, ou das bancadas de uma praça de toiros, numa tarde
de Verão. Num dia de cheia, porque o Tejo hipertrofiado marca-lhe
exactamente a extensão e os contornos que a geografia nunca
encontrou. Quando o rio intumesce e um mar de água se
espreguiça por quilómetros e quilómetros de terras baixas e
porosas, Portugal, sempre sequioso e árido, sente que aquela
nesga de pátria é um mundo à parte dentro das suas entranhas –
um mundo rico, de aluvião, de maná, onde não é preciso tirar dos
abismos, a gastalho, a verdura duma couve, e se pode gastar o
tempo numa lúdica e alegre faina, a cavalgar nas asas do vento…
Se por sorte o sol se vem reflectir na grande superfície do espelho,
então o fenómeno torna-se sobrenatural, porque se unta à líquida
impressão diluviana a pureza de uma claridade celeste. Ilhas de
casario aqui e além, semeadas no bojo do grande oceano,
certificam que também há perigo e perda nessa avalanche. Vidas
em risco e colheitas perdidas. Mas os sentidos negam-se a
semelhante convicção. Espraiam-se felizes ao lume de água, na
íntima confiança de que não pode acontecer qualquer desgraça
numa Canaã pelos numes da fertilidade.» 
Talvez o autor destas linhas, Miguel Torga, não estivesse
totalmente ciente do sofrimento das gentes de Borda-d’água ou da
repetição regular das inundações. Ainda nos anos 70, o arquitecto
Gonçalo Ribeiro Telles diria à RTP que, se a mesma queda
pluviométrica que se verificou em 1967 se repetisse nos nossos
dias, «podemos ter a certeza, como não se emendou a mão a esse
sentido negativo de construção da paisagem, podemos ter certeza
de que as consequências hoje serão mais nefastas do que foram
então.» 
Serão? O que se passou até agora? Supostamente, muito mudou,
vivemos num país democrático, apetrechado com um Serviço
Nacional de Protecção Civil e um Serviço Nacional de Saúde que se
pretende universal e gratuito. Mas há aspectos da vida em
sociedade que permanecem incrustados. Há um círculo vicioso de
resposta nacional às catástrofes (grandes cheias ou grandes
incêndios),como nota a historiadora Ana Paula Torres. A resposta
das autoridades e da população é pontuada por três momentos:
primeiro reage-se à catástrofe com medidas urgentes para a sua
resolução e com vista à reposição da normalidade. Num segundo
período, procede-se a uma parafernália legislativa visando medidas
de carácter estrutural para prevenir ocorrências semelhantes.
Depois, verifica-se a inércia, a incapacidade de pôr em prática o
que se prescreveu, a procrastinação da aplicação da legislação
(sobretudo a de elevada complexidade infra-estrutural) e a
continuação dos comportamentos de risco. E tudo começa de novo.
É
Tudo fica igual ou quase na mesma. É esse padrão de actuação
que explica, pelo menos em parte, o elevado número de vezes que
o País arde ou é inundado, ano após ano, como se não houvesse
estudos que tivessem já identificadas as causas como uma lenga-
lenga, como se não se conhecessem já as medidas incontornáveis
de cor e salteado. 
Portugal foi várias vezes um país inovador e pioneiro no âmbito
da legislação. Falta, contudo, a capacidade de execução das
próprias leis. As autoridades não conseguem porque não enfrentam
os interesses instalados. Os cidadãos ou mantêm comportamentos
de risco ou mostram-se apáticos perante quem viola a lei. Assim
aconteceu em Novembro de 1967: tentou resolver-se os problemas
prementes e restabelecer a normalidade; rendilharam-se leis para
alterar o regime jurídico dos terrenos públicos, definiram-se os
conceitos de leito, margem e zonas adjacentes para se disciplinar a
ocupação urbana dos leitos de cheia. Também se tornou
obrigatório o licenciamento dos terrenos privados localizados nas
zonas críticas e respectivas obras. Em 1967, muitos pareciam saber
o que fazer e como fazer, mas não fizeram e, tal como Ribeiro
Telles avisou, em 1983, os concelhos da Grande Lisboa voltavam a
ficar inundados. 
Outra das razões pelas quais este paradigma está instalado é
porque, tal como planeou Salazar e como permitiu a democracia,
nunca se fez o luto colectivo, o tal processo elaborativo que
possibilita que os sobreviventes advenham mais fortes. Quando
uma comunidade chora os seus defuntos, está a confrontar-se com
a sua própria finitude. A morte do outro, mesmo que desconhecido,
remete-nos sempre para a fragilidade humana. Portanto, a
transformação no enlutamento é o que edifica a consciência de
que, como seres finitos, podemos dar uma significação às nossas
vidas e podemos mudar. Sem esse caminho, sem reflexão crítica da
perda, perde-se esse agudo da vulnerabilidade e restará a ideia de
que não volta a acontecer, já passou, vai ficar tudo bem. Sem luto
colectivo, tudo se repete, numa espiral infernal. 
Por isso mesmo, a Saúde Mental em Emergência é uma área de
investigação e intervenção que tem vindo a crescer brutalmente
nas últimas décadas. Pelos piores motivos. Trata-se de um ramo da
Psicologia que entrou em desenvolvimento exponencial depois do
ataque às Torres Gémeas e considerando o incremento do
terrorismo organizado, o fenómeno dos lobos solitários, os
homicídios em massa (em escolas ou locais de trabalho/diversão),
o aumento da população mundial com a ocupação de lugares
propensos a fogos, inundações, furacões, ou as guerras e os
conflitos em todo o globo. As recomendações para a preservação
da saúde mental em emergência passam, claro, pela estimulação
do suporte comunitário, suporte das redes colaborativas, criação de
oportunidades para aprender e desenvolver novas actividades,
protecção dos mais vulneráveis. De resto, actualmente, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda explicitamente
que os planos para a prevenção e intervenção em catástrofes
incluam obrigatoriamente a componente da saúde mental. O que,
escusado será dizer, não se verifica em Portugal. 
Portanto, após as Grandes Cheias, seguiram-se leis para alterar o
regime jurídico dos terrenos. Como disse Ana Paula Torres ao jornal
Público, o «ensinamento da catástrofe» revelou-se «fundamental
na legislação portuguesa». Só que, como sublinhou o geógrafo
Fernando Rebelo, quando choveu com a mesma intensidade em
Novembro de 1983 e em Fevereiro de 2008, a destruição repetiu-
se, ainda que a crise tenha ficado longe da de 1967. 
Essas últimas inundações graves na Área Metropolitana de
Lisboa, já no final da primeira década do século XXI, revelaram que
as linhas de água das zonas baixas de Sacavém (Loures) e Algés
(Oeiras) não conseguiram corresponder à intensidade das fortes
chuvas. Os grossos caudais que escorriam das serras tornaram os
socorros e o escoamento muito exigentes e quase impossíveis.
Duas irmãs morreram quando o automóvel em que seguiam foi
arrastado pela subida das águas da ribeira do Jamor. 
Seguiu-se o habitual passa culpas entre responsáveis, neste caso
entre o poder local e o ministro do Ambiente, que acusou os
municípios de não procederem atempadamente às limpezas dos
taludes de saneamento. Já os autarcas lembraram ao titular da
pasta que a manutenção das linhas de água nas serras era da
responsabilidade do seu ministério, que a havia esquecido, mesmo
perante a insistência dos diferentes edis. 
José Saldanha Matos, especialista em hidráulica, também não
tem dúvidas de que as Grandes Cheias de 1967 «aumentaram a
consciencialização e o controlo» sobre as construções em zonas de
risco. «Há 50 anos, as pessoas tinham muretes na linha de água
que foram levados pelas cheias, criaram autênticas barragens e
impediram a água de circular. O que já não é possível», muito à
conta da Directiva-Quadro Água (as normas europeias contra as
inundações), da criação de zonas especiais e de planos para
mitigar os efeitos das alterações climáticas. 
Actualmente, os perigos em zonas densamente povoadas, como
a capital e outras malhas urbanas, são outros. É certo que as
precipitações intensas vão sempre ocorrer, podem voltar a verificar-
se as tais chuvas rápidas e «a sua gravidade vai aumentando à
medida que o território ocupado também aumenta». É maior a
«cascata de efeitos»: nos serviços públicos, nos transportes, nas
telecomunicações e na energia. E a permeabilidade dos solos cai
«drasticamente» com a ocupação intensiva. Persistindo esta
tendência de o betão comer espaço ao solo infiltrável, as águas das
chuvas vão permanecer cada vez mais à superfície e, com isso,
correr mais rápido, formando caudais indesejados. «Agora,
acontece que a mesma precipitação dá um efeito mais grave»,
sublinhou Saldanha Matos, um dos autores do plano geral de
drenagem de Lisboa. Ou seja, já não é preciso chover tanto para
gerar consequências dramáticas. 
A construção de diques e barragens no Tejo, antes de Santarém,
tornaram as cheias no Ribatejo cada vez mais raras, pelo menos
com a dimensão das verificadas nos anos 60. O risco maior de
inundações vem agora de Espanha, quando as barragens na
fronteira, pressionadas por forte pluviosidade, são obrigadas a abrir
as comportas. Isto é, nem sempre sendo possível evitar a «grande
cheia», essas represas trouxeram tempo de alerta às populações,
dando-lhes a oportunidade para resguardar animais e bens. Nem
todos, claro. Além disso, por exemplo, apesar das prudentes
disposições e indicações contrárias por parte das autoridades
municipais, toda a parte baixa da povoação de Quintas continua
habitada. Algumas das casas esbarrondadas em 1967 foram
recuperadas e até aumentadas com um piso superior. «Há quem
continue a construir ilegalmente em leito de cheia. A população
não aprendeu, continua a poluir as linhas de água e a assobiar
para o lado relativamente às alterações climáticas. Nada nos
garante que isto não volte a acontecer», avisou, já em 2020,
Manuela Ralha, vereadora com o pelouro da Cultura na Câmara de
Vila Franca de Xira. 
A escritora Alice Vieira, no Jornal de Mafra, rematou: «Claro que
agora o País é outro. Mas estas inundações que ciclicamente nos
atacam são a prova de que se continua a desrespeitar a natureza,
a deixar construir edifícios em locais de perigo iminente que, à
primeira chuvada mais forte, podem levar a situações
irremediáveis. No litorala situação também não é melhor:
continuamente se rouba espaço ao mar – e “aquilo que ao mar se
rouba, o mar vem sempre buscar”, como uma vez me disse um
pescador de Buarcos. Os mais novos podem pensar que as Cheias
de 1967 foram na pré-história. Para mim, foram ontem. E parece
que não aprendemos muito.» 
Em 2012, as Grandes Cheias foram também estudadas pelo
Projecto Disaster. A partir de 16 jornais portugueses, os
investigadores daquele núcleo identificaram e catalogaram todas as
inundações e deslizamentos de terras ocorridas desde 1865.
Registaram 1903 casos com vítimas mortais. Do trabalho realizado,
foi criada uma base de dados assinalando os perfis de risco para
cada concelho do País, identificando as regiões de Sacavém,
Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Oeiras como de grande
perigo. Não restam dúvidas. 
Mas é no Norte do país, mais precisamente entre o Douro, o
Tâmega e o Sousa, que se encontram os municípios com maior
probabilidade de ocorrência de cheias com forte impacto nas
populações. As conclusões são do projecto Forland, que abrange os
278 municípios do continente, num levantamento levado a cabo
entre 2016 e 2019. Este perigo é calculado pelo Índice de Risco de
Cheias, que estabelece a probabilidade da ocorrência de uma
inundação e o seu impacto em pessoas, bens e infra-estruturas,
resultando da combinação de três factores, cada um calculado a
partir de diversas variáveis: perigosidade, exposição e
vulnerabilidade. Ora, no topo da tabela, apresentando maior risco,
está Gondomar, seguido de Marco de Canaveses. Olhando para o
cimo da tabela, há também dois concelhos da zona da Ria de
Aveiro (Murtosa e Estarreja), mas a maioria é também da área do
Tâmega e Sousa (Castelo de Paiva, Cinfães, Celorico de Basto,
Lousada) e do Porto (Gaia). 
Ao jornal Público, a coordenadora desse projecto de investigação,
Susana Pereira, explicou que a perigosidade refere-se à
probabilidade espacial e temporal da ocorrência das cheias
(calculada com base no histórico); a exposição «à presença de
população e de actividades económicas que podem ser afectadas
pelas cheias» (densidade populacional, ou grau de
impermeabilidade dos solos, por exemplo); e a vulnerabilidade que
«está relacionada com as características dos indivíduos – como
idade, nível de instrução, condição económicas», avaliando ainda
os meios locais de resposta a situações de catástrofe. Daí que haja
municípios exactamente muito expostos, mas de menor risco.
Exemplificando: Golegã, na bacia do Tejo, «tem mais de 80% da
sua área ameaçada por cheias». Se este concelho do Ribatejo «tem
os valores mais elevados do país na perigosidade, depois, como
tem menos população exposta e a vulnerabilidade não é das mais
altas», acaba por não estar nos primeiros lugares do índice. 
Gondomar, que encabeça a tabela, tem na vulnerabilidade social
e na exposição valores mais expressivos do que a perigosidade,
apesar de o concelho ser atravessado pelo Douro. Aliás, é na órbita
desse rio que os municípios apresentam maior grau de fragilidade,
sendo que este indicador é tão mais relevante porque, segundo
Susana Pereira, «potencialmente, quanto mais frágil for a situação
socioeconómica das pessoas, a resposta que elas terão numa
situação de emergência será pior e vão sofrer mais
consequências». Em contraste, a região sul do Algarve, assim como
Porto e Lisboa, são das menos ameaçadas. 
Certo também é que as alterações climáticas têm um impacto
significativo nas inundações na Europa, nomeadamente fazendo
com que ocorram mais cedo do que costumava verificar-se,
potenciando o seu potencial destrutivo. Entre todas as catástrofes
naturais, são as inundações que causam mais vítimas em todo o
mundo, e quase todas as cidades europeias estão construídas em
torno de um rio o que, para muitos especialistas, obriga à revisão
das infra-estruturas para protecção dessas malhas e populações
urbanas. 
Em 2016, Paris preparava-se para a inundação do século e as
autoridades francesas realizavam exercícios para treinar os serviços
de emergência para possíveis alagamentos catastróficos na capital,
já que a questão não é se vai acontecer, mas sim quando irá
acontecer. As últimas grandes cheias foram em 1910, com as águas
do Sena a subirem oito metros devido a chuvas torrenciais. Se algo
idêntico acontecer na actualidade, as previsões apontam para
prejuízos na ordem dos 20 mil milhões de euros. Cerca de 830 mil
pessoas habitam zonas sujeitas a inundações e mais de metade
poderá ser afetada directamente. Cem mil negócios também
sofrerão com as inundações, estando em causa 750 mil empregos.
Tal como a capital francesa, outras metrópoles europeias,
considerando a tal proximidade dos rios, a emergência climática e a
probabilidade dilatada da repetição de eventos extremos, têm
vindo a adoptar planos especiais de prevenção e preparação. E por
cá? 
Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra
vez a pomba, dizendo aos outros que, se ela não tornasse, era
sinal de que as águas estavam inteiramente acabadas. Não
voltando até o meio-dia, abri tudo, portas e janelas, e despejei
toda aquela criação neste mundo. Desisto de descrever a alegria
geral. As borboletas e as aranhas iam dançando a tarantela, a
víbora adornava o pescoço do cão, a gazela e o urubu, de asa e
braço dados, voavam e saltavam ao mesmo tempo... Viva o dilúvio!
E viva o sol! 
Machado de Assis
	Ficha Técnica
	À PROVA DE ÁGUA
	PARTE I
	Pranto do céu
	Desta água não beberei
	Marca de água
	PARTE II
	Gota no oceano
	Luta na lama
	Águas passadas
	Pedrada no charco
	Depois de mim, o dilúvio
	Onda de choqueem breve, a morte desabava
em cima do País. A chuva atingiu números históricos: num período
de cinco horas chegou ao valor médio habitual para todo o mês de
Novembro. Água é vida. Esta água foi morte. 
Não parou durante três dias. Com uma força inesperada, bruta e
louca como não havia memória nem imaginação, a enxurrada
sugou vidas, árvores, animais, pedras, carros, e casas com famílias
inteiras lá dentro. O valor da quantidade de precipitação equivaleu
a um quinto do total anual, sendo que foram registados valores de
112,5 mm na estação de Lisboa/Tapada e de 115,6 mm de
precipitação na estação meteorológica da Gago Coutinho.
Particularmente afectada foi a área da Grande Lisboa (Lisboa,
Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Alenquer), com as
inundações a causarem um elevado número de mortos, feridos e
milhares de desalojados. 
Na aurora desse dia, «Vila Franca parecia uma terra fantasma
que tinha sido varrida por um ciclone. Havia pessoas
desaparecidas, muito lixo pelas ruas, muita lama, a linha do
comboio estava cheia de escombros e de animais mortos»,
lembrou o morador João Manquinho ao site abrilabril.pt. 
Choveu em barda sobretudo na linha de Cascais. Mas por aí a
água não foi mortal. Na linha do Estoril, após as chuvas intensas,
nada circulava, nem automóveis nas estradas inundadas, nem
comboios, devido aos danos provocados na via ferroviária, na
sinalização, no comando eléctrico, nas agulhas. Setenta e duas
horas depois, os caminhos-de-ferro ainda não estavam
completamente restabelecidos em todas as linhas. Em dois troços,
as medidas de segurança impunham uma via única e marcha
moderada. Mas nada de vidas perdidas. Nem um único falecido. 
Há várias conservatórias da Grande Lisboa onde não existem
registos de óbitos provocados pelas cheias. É o caso de Cascais,
apesar de ter sido no Estoril que se verificaram os maiores índices
de pluviosidade. Ou seja, onde a precipitação foi maior não se
perdeu uma única vida. As tragédias são sempre assimétricas, não
atingem todos por igual e foi nos arredores da capital que mais
vidas se perderam, nos bairros pobres de lata e lassidão, em
Odivelas ou Loures ou em concelhos como Vila Franca de Xira.
Uma inundação é sempre um excesso, um exagero. E, para quase
todos os 700 mortos, as Grandes Cheias de 1967 foram a única
abundância que tiveram em vida. Assim, a tragédia acabou por
despertar o país hipnotizado, por acordar, o Portugal em transe
para as esquecidas cinturas de Lisboa, onde milhares viviam
enterrados-vivos em barracas, perto de ribeiros, sem electricidade
ou esgotos. 
Portanto, os dados registados da pluviosidade revelaram uma
surpreendente contradição entre as zonas onde ela ocorreu com
maior intensidade e aquelas onde os efeitos sobre as populações
foram mais impiedosos. Segundo o Relatório que José de Azeredo
Perdigão apresentou à Fundação Calouste Gulbenkian sobre a
avaliação dos estragos, as chuvadas que ocorreram na Grande
Lisboa tiveram uma frequência de uma vez em 25 anos e
resultaram em consequências devastadoras; as que ocorreram no
Estoril tiveram a frequência de uma vez em 100 anos, registando-
se aí apenas danos ligeiros. 
Apesar dos impactos impressionantes originados, este doloroso
capítulo da nossa história contemporânea permanece pouco
evocado. A sua inscrição na memória pública é rarefeita, feita de
processos de dissimulação. Mesmo as abordagens académicas têm
focado prioritariamente o fenómeno meteorológico e as respectivas
consequências, mas não os efeitos sociais e políticos. Salvo
algumas excepções, tão pouco há crónicas sobre o tema, e raros
momentos no calendário o assinalam. Depois, já se sabe. O que
não é dito não existe. O real sem palavra não tem sombra. O real
sem palavra vira sobrenatural. 
O País passava tanta fome que muitos queriam fugir. Quem podia
escapava para o estrangeiro, para França, terra prometida. Mas
muitos deslocaram-se para a zona de Lisboa, na vã esperança de
encontrar uma vida melhor. Só que para milhares, a madrugada de
26 de Novembro fê-los ver a morte e não o tesouro escondido na
ponta do arco-íris. 
A forte pressão urbana levou a um significativo aumento da área
construída, nomeadamente de bairros ilegais, barracas e
construções precárias, com desordenamento do território e, claro,
aumento da perigosidade potencial das chuvas. Construindo em
todo lado, em leito de cheias, onde calhasse, verificou-se uma
destruição da vegetação, grande erosão e maior impermeabilização
dos solos com deficiente escoamento das águas. Estava montado o
palco da tragédia. 
Escutaram-se as três pancadas de Molière. Em breve, a Grande
Lisboa ficaria desfigurada. 
A catástrofe começou como uma ópera, retumbante, magistral.
De acordo com o Século Ilustrado, por volta das 19 horas e 30
minutos, um clarão imenso rasgou a abóbada celeste no centro da
cidade. E não chegou sozinho. Logo veio também um trovão
prolongado e ensurdecedor. Incautos, alheios, os alfacinhas
estavam longe de imaginar que esse grande relâmpago e esse
baque grosso anunciavam o primeiro acto da dor. Daí em diante, e
até às 24h, a chuva aumentou para uma intensidade nunca vista,
acompanhada por vento violento. Rajadas assustadoras que
assobiavam como mostrengos. 
Rapidamente, as ruas passaram a riachos, as avenidas a rios
caudalosos, as praças transformaram-se em lagos.
Simultaneamente, o nível do Tejo subiu quatro metros e meio. Os
esgotos deixaram de ser capazes de escoar as águas acumuladas.
Toneladas líquidas em movimento começaram a pressionar
terrenos, derrubando muros e aluindo enormes massas de terra
que resultaram em novos e violentos desabamentos, espessando
ainda mais a lama densa. A água extraiu o calcetamento das vias e
as correntes de lodo arrastavam tudo. A paisagem era aterradora,
feita de despojos encalhados, flutuantes ou levados por compactos
caudais onde corriam pedaços do solo, rochas, fragmentos de
muros, telhados e paredes, partes inteiras de barracas e de outras
habitações precárias. Parecia o fim do mundo. Algumas pessoas
acharam mesmo que era a última batalha e o crepúsculo do
universo. Havia automóveis submersos, outros a boiar de rodas
para o ar, ou amontoados uns sobre os outros ou bizarramente
estacionados em cima de árvores. Passava de tudo nesses
amazonas que brotavam espontaneamente como se a Terra
purgasse as entranhas, como se o planeta exorcizasse fantasmas e
venenos: frigoríficos, mobiliário, cadáveres de pessoas e de
animais, tudo misturado, tudo sujo, tudo valendo o mesmo, tudo
igual. Dor, dor e mais dor a boiar. Todos esses corpos e detritos
arrastados pela corrente iam provocando cada vez mais estragos
ao embaterem contra estruturas, alicerces, paredes, pontes, que
acabavam por ceder perante a energia arrasadora do lodaçal.
Destruição gera destruição. A lama tudo cobria e envolvia,
derrubava linhas de caminho-de-ferro, passagens aéreas, placas
toponímicas. Arrancava estradas, caminhos, portões, casas que
depois desapareciam no horizonte e nunca mais eram vistas.
Aniquilava. Quem via esse maremoto castanho a chegar, primeiro
nem sequer percebia o que estava a acontecer. Depois, a
adrenalina batia com força, o instinto descia até aos pés e fugia,
procurando-se escapar de qualquer maneira, livrando-se do mal. 
As comunicações por estrada e por comboio foram interrompidas.
Em muitos lugares só se podia circular de barco. Os telefones
deixaram de funcionar. Também já não havia luz e como a noite
estava de um escuro cerrado não se via absolutamente nada. Era
como se, de repente, milhares de pessoas acordassem cegas no
meio do caos, cegas e rodeadas de vagas gigantes levando
cadáveres e outras ruínas. Imagine-se a aflição. 
* 
Grandes histórias sobre grandes dilúvios sempre existiram. Mas
Lisboa viveu uma. O mito do dilúvio (presente em inúmeras
culturas, da Mesopotâmia à Mesoamérica) é um conto de culpa,
uma narrativa sobre deuses a castigar humanos pelos seus
pecados. Uma grande inundação, enviada por uma ou várias
divindades, destrói a civilização, como retribuição. Trata-sede uma
variante dos mitos de criação, nos quais a água é sempre o
elemento de purificação da humanidade, de preparação para o
renascimento. 
Existem mais de 500 lendas do Dilúvio contadas por mais de 250
tribos e povos. A maioria destes mitos de inundação é
protagonizada por um herói, que representa o recomeço, tal como
Noé ou Deucalião. Zeus decidiu exterminar a espécie humana,
indignado com o ódio que nela medrava e convencido de que só
uma nova raça seria digna. Quando então Zeus inundou a Terra,
Prometeu orientou o seu filho, Deucalião, de modo a que este
construísse uma arca para sobreviver ao grande desastre. O deus
soltou os ventos e, em breve, todo o céu se tingiu de escuro. As
nuvens, empurradas em bloco, romperam-se e torrentes de chuva
caíram. O solo ficou encharcado. Posídon, deus dos mares, libertou
também os rios e lançou-os sobre a Terra. Rebanhos, animais,
homens, casas e templos foram tragados. De todas as montanhas,
apenas a do Parnaso era mais alta que o nível das águas. Foi nesse
monte que o sobrevivente Deucalião, a partir das pedras – os ossos
do planeta – refundou a humanidade. 
Ficções? Facto é que o nosso mundo já sofreu duramente com a
subida do nível do mar. Nas Fases Estufa deste planeta, há
30 milhões de anos, a superfície das águas escalou 70 metros. E
talvez por isso mesmo se trate de uma narrativa universal, assim
como o retorno do Messias. Para suportar estas teorias, a Geologia
exibe os recheios dos mais altos cumes do mundo. Portanto, se a
versão mais conhecida do dilúvio é retratada na Bíblia, em quatro
capítulos do Génesis que descrevem a Terra a ser forrada a água
após 40 dias e 40 noites de chuva incessante, na verdade, o registo
de fósseis marinhos no cimo de altíssimos montes tem sido uma
das evidências utilizadas para sustentar que se tratou de um
acontecimento global, que dizimou uma grande parte da fauna e
flora terrestres. Aconteceu. 
Foi Leonardo Da Vinci, que, no início do século XVI, desenvolveu
aquela que hoje pode ser considerada a primeira análise científica
do Dilúvio. Numa das suas expedições às montanhas de Parma e
Piacenza, esse tocado por Deus interrogou-se sobre a presença de
fósseis de conchas a quase dois mil metros de altitude,
escrevendo: «Já que as coisas são muito mais antigas do que as
letras, não devemos admirar-nos de que, nos nossos dias, não
exista registo de como estes mares tomaram tantas nações… mas
basta para nós o testemunho de coisas produzidas nas águas
salgadas e reencontradas nas altas montanhas.» 
Na tentativa de reconstruir o cenário desse suposto dilúvio, Da
Vinci realizou estudos aplicando o seu conhecimento sobre o
movimento das águas e dos ventos, projectando cenários
acompanhados da ilustração desses fenómenos. Esses seus
desenhos são violentos e incómodos. Mostram árvores a ser
desenraizadas e esboroadas em pedaços, rochas a desmoronarem-
se sob a chuva torrencial, casas e cidades inteiras ruindo sob o
peso de tempestades indómitas. «Nem pelo transbordo do mar
poderiam as conchas, sendo objectos pesados, serem levadas pelo
mar até o alto das montanhas, e nem tampouco pelos rios, em
curso que seria contrário ao das suas águas… e as conchas da
Lombardia ainda estão em quatro níveis e, portanto, em toda a
parte, tendo sido criadas em várias épocas.» Observação,
imaginação e curiosidade – Da Vinci tinha tudo. 
No Mito da Mesopotâmia, Ziusudra e a sua família conseguiram
sobreviver num enorme barco. Na babilónica epopeia de Gilgamés,
Utnapishtim recebeu um navio e nele transportou gado, animais
selvagens e a família. Na Índia, Manu construiu um barco puxado
por um peixe gigante que se firmou numa montanha nos
Himalaias. Segundo a lenda chinesa do dilúvio, Nuwa e Fuxi
plantaram um dente de onde nasceu uma enorme cabaça. Quando
o deus do trovão causou um aguaceiro torrencial, essas crianças
salvaram-se abrigadas no fruto e, mais tarde, repovoaram o
planeta. No México, a versão dos chimalpopocas diz que um dilúvio
submergiu as montanhas – Nata e Nena refugiaram-se num tronco
flutuante até que as águas baixaram. Os tupinambás do Brasil
falavam de uma época em que um grande dilúvio afogou todos os
seus ancestrais, excepto os que sobreviveram em canoas ou nos
topos de árvores altas. Na Samoa, corre a lenda de um dilúvio que
destruiu todos, exceto Pili e sua esposa, que encontraram um lugar
de segurança numa rocha e, depois do dilúvio, repovoaram a Terra.
Nas ilhas havaianas, o deus Kane ficou aborrecido com os humanos
e provocou um dilúvio – somente Nu’u escapou num grande barco
que por fim parou numa montanha. Os soiotes da Sibéria dizem
que uma rã gigante mudou de posição, fazendo com que a Terra
fosse inundada por um dilúvio – um homem idoso e a sua família
sobreviveram numa balsa que estacionou num monte. Com a água
em ebulição sem fim, a inundação está a derramar destruição;
subindo e sempre crescente, ameaça os próprios céus, dizia o
imperador Yao. Um dos maiores mitos da civilização chinesa é o do
Grande Dilúvio de Gun-Yu, que conta a história de Yu, o qual
conseguiu domar o rio Amarelo e conter a sua inundação, que
durava há duas gerações. Aclamado herói, foi mandatado para
fundar a primeira grande dinastia chinesa, a Xia. 
Sim, há provas da subida dos níveis dos mares e dos rios
também. Um recente estudo publicado na revista Science aponta
para a possibilidade de esse Grande Dilúvio realmente ter
acontecido na sequência da descoberta de vestígios de um
deslizamento de terras pós-terramoto. A quantidade de solo teria
sido suficiente para bloquear o rio Amarelo, na região onde
actualmente fica a província de Qinghai, perto do Tibete, fazendo-o
transbordar como magma em erupção. Aí foram encontrados
também 14 esqueletos de crianças, que terão ficado soterradas,
sendo que as análises de datação realizadas com carbono aos
ossos indicam que a inundação desse curso de água aconteceu por
volta de 1920 a. C. A fragmentação e os estragos que provocou
terão dado origem a uma nova ordem política, rezam as lendas.
Mas das Grandes Cheias de 1967 chegou algum recomeço ou só
veio mais dor e desilusão? Veremos. 
DESTA ÁGUA NÃO BEBEREI 
 
 
 
Depois da meia-noite, Lisboa e o Tejo eram apenas uma mesma
coisa, uma só massa, uma só carne. Onde começava este e
terminava o outro já ninguém sabia. 
O Campo Grande e a Praça de Espanha transformaram-se em
espelhos de água. Formou-se então uma onda que atingiu a altura
de um autocarro de dois andares e que rasou a cidade,
esmagando, por exemplo, o muro da vedação do parque da
Fundação Calouste Gulbenkian, na esquina com a Avenida de
Berna, penetrando nos pisos inferiores da sede e do museu, em
fase de construção. A segunda onda, vinda da Avenida de Berna,
fez aumentar o volume das águas e inundou as instalações da
Fundação. No final da enxurrada, a cota mais alta marcava 1,80
metros na Praça de Espanha e 2,20 metros na Avenida de Berna. 
Imagine-se. Ondas altas de lama a submergir a cidade. Manuel
Pereira, um carpinteiro residente na Rua Filipe da Mata, andou a
salvar pessoas no seu barco de borracha, fazendo contínuas
viagens para resgatar todos os que apanhou até à Avenida António
Augusto de Aguiar, usando tábuas como remos. 
Uma torrente invadiu a Feira Popular, encharcando o Teatro Vasco
Santana, o palco, a plateia, os camarins. Segundo o Diário de
Notícias, com a água quase até aos joelhos, descalço e meio
despido, o pessoal da Companhia Teatro Estúdio de Lisboa e até o
próprio público levantaram uma paliçada, tentando evitar que a
água estragasse todo o material da peça, acessórios, cenários.
Certamente não entenderam logo que já eram todos figurantes de
um outro espectáculo. 
Na Praça de Espanha e na Avenida da Liberdade só se passava
de barco e, na estação de caminhos-de-ferro, centenas de pessoas
ficaram retidas nas carruagens porque a água submergiu as linhas.
Que pânico, fechadas dentro de comboios envoltos em água,
locomotivas transformadas em submarinos, aquários invertidos.
Interrupções no trânsito sucederam-se desde a Avenida 24 de
Julho (comágua a dar pela cintura) ao Campo Pequeno, da zona
do aeroporto da Portela à Avenida Almirante Reis, da Baixa a Santa
Apolónia. Em Benfica, que esteve durante horas isolada pelas
águas, houve condutas de água que rebentaram e muros que
abateram. 
«Aquilo foi uma coisa horrível, mesmo aqui na nossa rua, ficou
tudo inundado. Mas não se podia falar... até hoje não se sabe bem
o número exacto de pessoas que morreram. Mas nunca se ouve
falar sobre isso, é como se nem sequer tivesse existido!», lembrou
uma moradora no blogue Retalho de Bem-fica. O medo da ditadura
era maior que o pânico das cheias. 
«O Américo e a Lili viviam na Encarnação. Ele era veterinário, a
pessoa mais calma que encontrei em toda a minha vida. Falava tão
baixinho que todos nos calávamos para o ouvir. Era um homem
muito bondoso que nos transmitia a paz das pessoas sensatas e
carinhosas. Ela era muito nervosa e dada a depressões, mas tinha
uma gargalhada descontrolada e contagiante que animava os
serões em que nos juntávamos todos», testemunhou Ana Paula
Torres no livro Gotas de Ar Frio. «Tinham dois filhos, meus
companheiros de brincadeiras, a Sofia, de 13 anos, que era muito
certinha, e o Rui, de 12, que era um esgrouviado sardento e de
cabelo em pé que trocava comigo valentes pontapés e algumas
bofetadas. Viviam na Encarnação, mas não recordo o local onde
tudo aconteceu. Vinham no seu Volkswagen castanho,
possivelmente a caminho de casa. Repentinamente, viram-se
cercados pelas águas que entravam pelas fendas do carro de
muitos anos e pelas janelas que não as conseguiam conter.
Sentiram-se baloiçar e encharcar. Ainda oiço os seus gritos
aterrorizados. Na aflição, subiram, um a um, para o tejadilho do
carro. Juntaram-se lá todos, nem sei como, porque o tecto do
carocha é estreito e não é plano. Mas estavam bem agarrados uns
aos outros e à vida que lhes fugia. «A certa altura, o Américo
retirou do bolso da camisa o salário do mês que tinha recebido
naquele dia e guardou as notas numa mão, para que não fossem
com as águas. Bruscamente, o rio que os cercava começou a correr
mais violentamente e, numa chicotada brusca, lançou-se sobre o
carro, projectando o Rui para fora daquela massa humana que se
abraçava para viver. No mesmo instante, contava o Américo para
nós, com a sua voz muito baixinha, “Larguei as notas e agarrei-o.”
Ouvíamos aterrados. Reflexos que valem uma vida. O momento de
uma vida. E o Rui a olhar para nós, apático e ainda em choque. As
imagens dos quatro amigos em cima do tejadilho do velho carocha,
da corrente a sacudir o carro, do Rui a ser projectado e do Américo
a largar o salário para salvar o filho criaram um filme que continuei
a ver durante muitas noites escuras. Foi a minha forma de viver,
também eu, a tragédia de Novembro de 1967.» 
O som da chuva. A música da Terra, para Shakespeare. A voz
sem palavras, para Rumi. Certo é que das onze da noite à uma da
manhã, sem descanso nem tibieza, a água caiu pesada. A certa
altura, as golfadas atingiram um carro que circulava na Rua de
Alcântara, encurralando os três ocupantes. O repórter do Diário de
Notícias, que na altura acompanhou as inundações, conta que um
soldado mergulhou nas profundezas e conseguiu retirar os três
passageiros, minutos antes de o carro ser arrastado. Tantos que,
felizmente, escaparam ao destino. 
A Avenida de Ceuta, em Alcântara, esteve submersa e as vagas
de lama desceram até à Avenida da Índia. A água entrou em todas
as bifurcações, subiu e desceu escadarias, extirpou as portas e
janelas de tabernas, lojas e habitações de rés-do-chão, arrastando
móveis, bilhas de gás, contentores e bidões da estação ferroviária.
Eis um manto proceloso de águas lodosas, cheio de remoinhos e
de pressa, que tudo exterminava na sua corrida desenfreada,
esmigalhando casas e estabelecimentos como se fossem
brinquedos, isolando pessoas, e matando por afogamento ou à
pancada, pois por toda a cidade levitavam na superfície das águas
grandes objectos como mesas, blocos de cimento e destroços de
construções, pedaços de madeira. 
O vale de Alcântara foi rapidamente inundado pela corrente das
águas que descia dos pontos altos da cidade, bem como da serra
de Monsanto, cuspida em jorros para aquele local. Por volta das 22
horas, já se viam eléctricos e automóveis imobilizados na via
pública. Cerca da 1h da manhã, ficou tudo às escuras, depois um
estrondo enorme dos fusíveis que rebentavam. Era a faísca final a
selar o fim do primeiro acto. 
Tudo agora era breu e lodo. 
No Éden Cinema, situado nessa zona da cidade, na Rua do Alvito,
era projectado o segundo filme da sessão da noite, quando as
águas tomaram o edifício, provocaram um curto-circuito, alagando
a plateia a uma altura de quase dois metros. Os espectadores
fugiram para o balcão, onde ficaram retidos até de madrugada,
quando foram resgatados pelos bombeiros com a ajuda de um
barco pneumático. Foram salvas cerca de 200 pessoas. 
«Entrara no Cinema Império para a sessão da noite debaixo de
chuva intensa», relembrou ao jornal Expresso o já falecido médico
João Semedo. «Ao sair continuava a cair de forma igualmente
copiosa. As novas “ribeiras” rápidas que desciam pela Alameda D.
Afonso Henriques invadiam os primeiros degraus da escadaria. A
chuva parecia não ter fim. Exclamava insistentemente para mim
mesmo: “Quando irá parar?!” Recordo essa noite com grande
nitidez. Os anos que já passaram não apagaram as memórias da
tragédia. Todos esses acontecimentos permanecem
inesquecíveis.» 
Das dez conservatórias então existentes em Lisboa, apenas na
8.ª há registos de mortes resultantes do temporal. É a
conservatória correspondente à antiga freguesia da Pena (mais
tarde integrada na de Arroios), não longe do referido Cinema
Império. É aí que está situado o Instituto de Medicina Legal de
Lisboa, para onde foram transportados os mortos da capital
(«apenas» cinco) e de vários concelhos vizinhos. Alguns
começaram por ser enviados para os bancos dos hospitais de São
José e de Santa Maria que, confirmando o óbito, os remeteram
para a morgue. A maioria não foi autopsiada como mencionado, tal
a evidência das causas da morte – os tais sinais visíveis a olho nu
indiciando afogamento ou soterramento – e a quantidade de
cadáveres que lotavam o espaço, como se agora fosse a inundação
dos cadáveres. As estruturas de saúde não estavam preparadas
para aquele alude e a quase totalidade das certidões de óbito foi
lavrada pelo mesmo médico assistente dessa instituição, Francisco
António de Aguiar, deixando no ar a hipótese de se ter tratado mais
de um procedimento burocrático/administrativo do que,
propriamente, de uma diligência clínica. 
Um ano mais tarde, Ilídio Amaral, na Revista Portuguesa de
Geografia, resumia o que então aconteceu. As inundações foram
resultado de quedas de águas brutais consequentes a um sistema
depressionário formado na região do arquipélago da Madeira e
que, desde 24 de Novembro, começou a deslocar-se em direcção a
Lisboa. A estes efeitos somaram-se os de um sistema frontal que
precedia uma massa de ar polar, de trajecto marítimo, transportada
num anticiclone centrado nos Açores, deslocando-se com vento
forte ou muito forte. Ao atingir a zona da Grande Lisboa, a
depressão provocou uma queda da pressão atmosférica com a
queda de grande precipitação, que teve intensidade máxima das
19h de dia 25 à 1h de dia 26. 
Em 2001, a investigadora Catarina Ramos, na mesma publicação,
estabeleceu o diagnóstico: cheias rápidas, por oposição às menos
perigosas cheias progressivas, que correspondem a longos períodos
de pluviosidade abundante, os quais podem durar semanas. Para a
investigadora, as cheias rápidas como as de 1967 caracterizam-se
por uma dimensão perigosa e mortífera. São chuvas fortes e
concentradas em curtos espaços de tempo, trazidas por depressões
que provêm de invasões de ar frio (polar ou ártico) em altitude e
que se estendem até às zonas subtropicais. Integram-se nessa
classificação as cheias que ocorreram nos meses de Novembro de
1967 (região de Lisboa e Loures), de 1983 (região Lisboa-Cascais)e de 1997 (Alentejo e Algarve). 
O jornalista Joaquim Letria tinha então 24 anos e era repórter do
Diário de Lisboa. Na noite do Dilúvio sem Deus estava em casa,
num ponto alto da cidade, Campolide. Começou a entrar água pelo
tecto do seu apartamento, supostamente por causa de um terraço,
e foi por isso que tomou conhecimento do que se passava. A
precisar de ajuda, ligou para os bombeiros, que então lhe
explicaram que não tinham mãos para acudir às «verdadeiras
preocupações» a que deviam responder por essas horas, quanto
mais a uma goteira doméstica. Mais tarde, um colega que morava
na Alameda das Linhas de Torres telefonou-lhe a dizer que tinha
perdido o carro no Campo Grande. Fora-se na enchente. O repórter
começou então a tomar consciência da magnitude da tragédia e
seguiu até ao Bairro Alto, observando que as ruas haviam já
passado a ribeiras. Anos mais tarde, diria à SIC que, durante a sua
carreira, vira muita coisa… mas nada assim. Comoveu-se em
directo e lembrou que todos os que lá estiveram ainda hoje choram
quando recordam o quadro dantesco que forrava o chão. 
As Grandes Cheias foram a Tempestade Perfeita. Tudo confluiu
para o olho do furacão, tudo se alinhou e convergiu para multiplicar
o potencial da tragédia. Desde logo, houve a coincidência da chuva
intensa entre os dias 25 e 26 de Novembro, com a preia-mar do rio
Tejo. Sorte maldita. Antes disso, mão humana já fizera a cama ao
Diabo. Vindos de Trás-os-Montes, do Alentejo, das Beiras, os
portugueses em modo de sobrevivência, colonizaram lugares
desadequados como encostas em zonas de várzeas, linhas de
água, ou fundos dos vales e depressões. Lugares propícios à
agricultura – que o trabalho na fábrica dava salário curto e a horta
de subsistência sempre compunha o final do mês –, mas onde
ocorriam enchentes e deslizamentos de terra. 
A maioria das habitações que construíram eram casebres muito
pobres ou caves, tudo sem músculo para enfrentar intempéries.
Pelo meio, pululavam os promotores imobiliários que ignoravam ou
desvalorizavam os condicionalismos ambientais. E pronto, estavam
lançados os dados para o desastre: muros nas linhas de água a
funcionar como diques ou bombas-relógio; terrenos de bom
escoamento de águas impermeabilizados com construções e
pavimentação das ruas; canalização de certos troços das ribeiras
sem garantia de drenagem; acumulação de lixos em zonas de
cheias. E depois? Depois, as autoridades apenas se preocuparam
em restabelecer a normalidade e produzir legislação para inglês ver.
Os interesses imobiliários continuaram a abocanhar as boas
práticas e tudo permaneceu favorável à repetição da catástrofe. 
MARCA DE ÁGUA 
 
 
 
A estatística é arrepiante. No Bairro do Pátio do Silvado, em
Odivelas, foram ceifadas mais de 20 vidas e só no n.º 21 a força
das águas matou uma família de seis pessoas e três gerações.
Quem contou a sua história? A maior desgraça familiar ocorreu na
Quinta da Quintinha, na Póvoa de Santo Adrião (Loures). Os sete
elementos da família Ribeiro Garrido (por vezes os nomes são mais
irónicos do que em qualquer ficção) morreram afogados: o pai,
Adelino, de 43 anos; a mãe, Amélia, 36, e os cinco filhos menores,
Adelino, 10, Fátima, 9, António, 7, Filomena, 5, e Carlos, 2. 
Também houve vítimas que, simplesmente, não tiveram nem
estrelinha, nem anjo da guarda, e estavam no local errado à hora
errada. Aconteceu com Ana Cristina de Sousa Ribeiro de Abreu,
que contava apenas um ano de idade. Com residência na lisboeta e
sequíssima Avenida de Roma, nessa noite não estava em casa e
acabou por perder a vida. A bebé apareceu a boiar no rio Jamor,
em Barcarena. O mesmo sucedeu com Sebastião do Carmo
Cabaço, de 62 anos. Residente em Alhos Vedros, do outro lado do
Tejo, foi encontrado morto em Ponte de Frielas, concelho de
Loures. 
António Coelho da Graça, de 30 anos, casado com Elvira
Assunção da Purificação Vicente da Graça, de 28, pais de Paulo
Vicente da Graça, de 2, e de Rui Manuel Vicente da Graça, de 7 –
os quatro mortos por submersão acidental. 
Idálio Vicente Pereira e Maria Luiza da Conceição Carvalho,
ambos de 28 anos, pais de José Alexandre de Carvalho Pereira, de
4 anos, e de Maria Sousa Carvalho Pereira, de 5 – os quatro mortos
por submersão acidental. 
Mário da Silva Rodrigues, casado com Almerinda de Jesus da
Silva, ambos de 42 anos, pais de Adérito da Silva Rodrigues, de 11
– os três mortos por submersão acidental. 
Joaquim José Pereira Pires, 1 ano de idade, irmão de José
Manuel Pereira Pires, 7 anos, e de Maria Sousa Pereira Pires, 8
anos – mortos por submersão acidental. 
Casimira Pereira Elias, 26 anos, casada, mãe de Anabela Pereira
da Costa Vicente, 4, e de Olga Pereira da Costa Vicente, três meses
de idade – mortas por submersão acidental. 
Apolinário Marques Pinheiro, casado com Maria Rita Perdigoto,
ambos de 42 anos, pais de António Perdigoto Pinheiro, de 20 anos,
solteiro, encontrado no dia 19 de Dezembro de 1967, nuns terrenos
anexos às Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, em Alverca do
Ribatejo – os três mortos por afogamento. 
Brás Carapinha Cuba, 35 anos, casado com Catarina Rosa Mira,
30, pais de Manuel Rosa Cuba, 6, e de Maria Rita Rosa Mira
Carapinha, 4 – todos mortos por afogamento. 
Henrique Caetano Dias, 30 anos, casado com Laurinda Gertrudes
dos Santos Dias, 28, pais de Júlio dos Santos Dias, 7, e Henrique
Manuel dos Santos Dias, 2 –mortos por afogamento. 
Júlio da Silva Burmeira, 43 anos, casado, pai de José António Vaz
da Silva Burmeira, 6, e Hernâni Vaz da Silva Burmeira, 3 – mortos
por afogamento. 
Maria Dolores Cristiano de Oliveira e Maria Virgínia Cristiano de
Oliveira, irmãs gémeas de 10 anos – mortas por afogamento. 
Maria de Jesus Capitão dos Santos, 10 anos, irmã de Fernanda
Maria Capitão dos Santos, 7 – mortas por afogamento. 
Maria José Restolho Ferreira, 17 anos, irmã de Germana Maria
Restolho Ferreira, 10 – mortas por afogamento. 
Manuel Rogério Martins Maçana, 38 anos, casado, pai de Maria
Manuela Santa Clara Maçana, 11, Ana Bela Santa Clara Maçana, 6,
Rogério Lúcio Santa Clara Maçana, 4, e Maria Adelaide Santa Clara
Maçana, 2 – os cinco mortos por afogamento acidental. 
Desconhecido. Masculino. Aparentando 45 a 50 anos, 1,60 m de
altura, forte, de cabelo preto e curto com entradas não muito
grandes, vestindo apenas uma camisola, camisa de tecido militar e
cuecas brancas. Encontrado cerca das 13h do dia 18 de Dezembro,
na margem esquerda do rio Tejo, na área da freguesia de Vila
Franca de Xira, entre Figueirinhas e Faial, deitado de bruços sobre
umas pedras, a respeito do qual se ignoram todos os elementos de
identificação. 
Florbela Silva Ferrão, 3 anos. Afogamento. 
Maria do Rosário da Costa Oliveira, 1 mês de vida. Afogamento. 
 
* 
Os mundos do salazarismo eram tão socialmente estanques que
os remediados e os bem-postos podiam viver anos, décadas, sem
sequer imaginar a miséria que fermentava nos arredores de Lisboa
e no interior do País. Mas ela existia, medrava calada e, uns anos
antes, no seu célebre discurso de Chaves – na campanha
presidencial de 1958 – um Noé de seu nome Humberto Delgado
acusou os governantes de Portugal de não conhecerem esses
cenários de fome, ou de os desprezarem: «Se esses senhores
entrassem num bairro-de-lata…», desafiou, aludindo à descoberta
do mundo de pobreza suburbana, que se acentuava no reverso do
«milagre económico português» supostamente em curso. 
As palavras quentes e empolgantes de Delgado, nesse dia
histórico no Cine-Teatro de Chaves (o seu único registo de voz da
campanha eleitoral), fecharam com uma frase que veio a alcançar
um significado profético: «Todos nós, cidadãos pacíficos de uma
candidatura pacífica, queremos pacificamente conquistar a paz.
Mas os esbirros do governo, como têm visto, andam a chamar-nos
subversivos nos jornais e a tratar-nos na via pública como
malfeitores. Ninguém sabe, portanto, minhas senhoras e meus
senhores, onde isto pode ir ter. Há uma coisa, porém, que quero
jurar aqui. Eu estou pronto a morrer pela liberdade!» 
Humberto Delgadofoi assassinado a mando de Salazar em 1965.
Pensando que iria reunir-se com opositores ao regime do Estado
Novo, dirigiu-se à fronteira espanhola perto de Olivença. Ao seu
encontro, liderada pelo inspector Rosa Casaco, foi uma brigada da
PIDE. Chegados ao ponto de encontro, um deles, Casimiro
Monteiro, rapidamente aproximou-se do general e, empunhando
uma pistola com silenciador, disparou contra a sua cabeça,
executando-o ali mesmo. A sua secretária, aterrorizada, começou a
gritar e foi também alvejada.. Os corpos foram transportados nas
bagageiras dos carros e levados para um caminho chamado Los
Malos Pasos, a cerca de 30 quilómetros, onde foram largados numa
vala, cobertos com ácido sulfúrico e cal viva. Os cadáveres viriam a
ser descobertos semanas depois, a 24 de Abril, por umas crianças
que andavam a brincar. Nem o General sem Medo, nem os pobres
dos bairros-de-lata que denunciou, sobreviveriam à perfídia da
ditadura. 
Guilhermina tinha 16 anos e acabara de adormecer na cama de
ferro, logo depois de apagar o candeeiro a petróleo, com uma mão
sobre a barriga onde gerava o seu primeiro filho. Era quase meia-
noite e só faltavam cinco horas para se levantar e logo caminhar
mais de cinco quilómetros até à fábrica da conserveira nacional,
onde pelava marmelos a troco de 20 escudos por mês. Marmelada
de cortar à faca e geleia, bela tradição da doçaria portuguesa que
deixava muita descascadeira com amargo de boca depois de
diariamente tratar de quilos e quilos de fruta, isto quando não
perdia pontas dos dedos. 
O pai de Guilhermina começou a berrar, transido com a visita
inesperada que destroçava a cabana de lusalite onde viviam. Era o
rio da Costa, braço do Trancão, onde iam buscar água todos os
dias que invertera o sentido do caminho e chegara, tarde e sem
pedir licença, vil e vingativo, a trespassar paredes, a triturar tudo à
sua passagem. Em segundos, aquele visgo deu a volta à cintura de
Guilhermina e, de seguida, ao pescoço. Pai e filha lá conseguiram
trepar até ao telhado com a irmã de 6 anos e a mãe, que guardava
no colo o seu mais novo – um bebé de 6 meses. E as outras irmãs?
A noite era só vozes desesperadas a subir pelo céu acima. Nessas
ruas da Urmeira, em Loures, como em quase todas as zonas
afectadas, as Grandes Cheias haviam cortado a iluminação. Tudo
denso, preto, fendido a berros. Com a camisa de noite enodada de
lama e de sangue, Guilhermina ainda agarrou a mãe que
escorregara até à ponta do telhado, deixando cair o pequenino
filho que segurava nos braços. A mulher, apunhalada pela dor,
queria lançar-se no ébano para o salvar. Eis Teresa, a tal mãe do
bebé-milagre que foi depois entregue para adopção. «Ouvia-se um
barulho que parecia de metralhadoras. Era o som das casas a
partirem-se e a desabar. E ouviam-se muitos gritos. ”Acudam,
acudam.” Depois os gritos passaram a gemidos. E ficaram cada vez
mais sumidos até não se ouvir mais nada», recordou Guilhermina,
heroína, aos 66 anos ao jornal Expresso. 
Essa menina de 16 anos, grávida, foi resgatada já de manhã
pelos bombeiros, que a transportaram inanimada para o Hospital
de Santa Maria, em Lisboa. Foi lá que soube que as irmãs e o
sobrinho tinham morrido. Felizmente, como relatado, dias depois,
um jornal publicou a fotografia do seu irmão. E a família, ainda a
convalescer das múltiplas perdas sofridas, teve de travar nova
guerra. A Misericórdia não queria deixá-los levá-lo, não porque
duvidassem de que era deles, mas porque já lhe tinham traçado
outro destino. Só que a mãe de Guilhermina não voltou a baixar os
braços. Aquele colo já tinha vacilado, talvez um milímetro apenas,
o suficiente para perder uma parte de si, na noite da tragédia. Mas
agora, ressequido pela calamidade, não mais hesitaria. 
Foi uma batalha, mas, no final, lá conseguiram trazer o
pequenino. Durante anos, sem um único pertence, sem roupas,
sem mobília, sem nada, ficaram a viver de favor na casa de uns
amigos, à espera de serem realojados na mesma zona. Só que nem
mesmo um milagre apaga a força das assombrações, nem mesmo
um prodígio cala o boqueirão do inferno, e a mãe continuou a
«gritar de noite e de dia» pela morte das filhas. O pai, que já
bebia, mas não se asfixiara na lama, afogava-se agora no álcool. Já
o filho que Guilhermina gerava no seu jovem ventre nasceu em
Abril com problemas neurológicos devido ao trauma vivido na
gravidez. O trauma gera trauma. 
A jovem mãe trabalhou noite e dia para conseguir sair do bairro
maldito, para não ter de voltar, todos os dias, ao local do crime. Era
bem pior do que caminhar de segunda a segunda para a fábrica.
Mas por mais que fujas, não foges de ti mesmo, e não foi a
mudança que lhe aliviou a memória, sempre a latejar, sempre a
pulsar-lhe em baques na base da cabeça. Aquela menina grávida
que trabalhava na conserveira para que os remediados e os bem-
postos comessem marmelada continuou a viver dentro de si, e
Guilhermina nunca mais pôde suportar a chuva. Dava-lhe calafrios,
sezões, quase convulsões. Nunca se aproximou do mar, ficou com
pavor de barcos, com a tragédia sempre a inundar-lhe a massa
cinzenta, ideia obstinada, intrusiva, pensamento à procura de
pensador. Condenada, viveu a vida toda em cima daquele telhado,
ensopada em sangue e barro: «Eu também era para morrer
naquele dia. Não teve de ser, mas é uma sobrevivência de luta»,
recordou ao mesmo jornal. 
Sentença perpétua. A síndrome do sobrevivente é um transtorno
psicológico grave, ligado à culpa de haver passado por um grande
trauma e ter sobrevivido. A pessoa acredita que escapou a um
evento traumático porque fez algo de errado ao contrário dos
demais, experimentando sentimentos destrutivos de
responsabilidade, sente-se uma espécie de eleito invertido. É uma
consciência enviesada de que o próprio respira e o outro não, que
o outro não merecia perder a vida enquanto o próprio não merecia
prosseguir. Porquê eu? Guilhermina trancou-se sobre si mesma.
Nada mais podia sair nem nada nunca mais podia entrar. 
Esta condição foi descrita e sistematizada na década de 60 do
século xx, posto que as suas características coincidiam com as
observadas em muitos sobreviventes do Holocausto, bem como nos
resistentes às bombas em Hiroxima e Nagasáqui. Mais tarde,
percebeu-se que este quadro clínico surge em contextos muito
diversos, como a sobrevivência a uma doença com probabilidade
de cura residual, a um desastre de avião, a um ataque terrorista, a
uma epidemia. 
Neste quadro, habitualmente a pessoa culpa-se pela morte dos
outros. Para compensar o delito de estar vivo, tenta-se parar de
viver: abandona-se o trabalho, a escola, os amigos. Age-se como
se estivesse morto. Depois, esse peso esmagador, a par dos efeitos
directos do trauma, favorece o aparecimento de sintomas físicos,
psíquicos e comportamentais: perturbações do sono, ansiedade,
pensamentos negativos, transtornos gastrointestinais, isolamento
social, alterações bruscas do humor, cefaleias, depressão. O
químico e escritor Primo Levi, sobrevivente ao Holocausto, eterno
fugitivo às suas vivências em Auschwitz, explorou a sua culpa de
sobrevivente extensivamente nos seus livros autobiográficos,
nomeadamente na obra Os Afogados e os Sobreviventes. No final
da sua existência, desfiava dias aterrado na depressão e ainda hoje
se especula se a sua morte terá sido suicídio. Elie Wiesel, outro
escritor que sobreviveu aos campos de concentração nazis,
afirmou: «Primo Levi morreu em Auschwitz há quarenta anos.»
Também Elvis Presley sofria de Síndrome do Sobrevivente,
atormentado pela culpa relativa à morte do seu gémeo Jesse
Garon, um nado-morto (fantasiando extensamente sobre a
privação de nutrientes que lhe infligiu, sustentado pelo luto
patológico da mãe). Igualmente, Antero de Quental nunca superou
a morte prematura do seu irmão, sentindo sempre que era dele um
indevido substituto ou derivado. A Guilhermina, a menina grávida,
a vida sempre lhe doeu como gangrena. 
Carlos Paço, mais tarde vice-presidente do Centro Paroquial de
Santa Catarina em Lisboa, tinha 17 anos na altura das Grandes
Cheias.Era o chefe do respectivo grupo de escuteiros que prestou
auxílio na Urmeira, Loures. Se há tantas coisas que o tempo
embacia, há outras que a memória transforma em relicário. Desse
recordatório faz parte a chamada que recebeu na manhã do dia 26
de Novembro. Do outro lado, estava o chefe Oliveira. Pedia-lhe que
organizasse um grupo de voluntários para ir ajudar a população
afectada. Num curto espaço de tempo, Carlos reuniu entre oito a
dez escuteiros, «os mais velhos do agrupamento de Santa
Catarina», lembrou ao site Júlia.pt. A mãe, preocupada com o seu
soldado da guerra na capital, disse-lhe: «Vai, filho, mas e se te
acontece alguma coisa?». O adolescente, que frequentava o sétimo
ano do liceu Passos Manuel, foi rápido e directo na resposta:
«Tenho de ir.» 
A pequena expedição encontrou-se então na sede regional, na
zona do Chiado, onde uma carrinha de caixa aberta faria o
transporte até ao Bairro da Guilhermina e do seu bebé. «Quando lá
chegámos, o cenário era devastador.» A zona, completamente
inundada, parecia o rio Tejo. Sofás, frigoríficos, camas, colchões,
cadáveres de animais e, o mais temido, corpos de pessoas
flutuavam nas águas. À chegada foram divididos em equipas e
«todos os voluntários tiveram de ser vacinados contra o tétano»,
uma das maleitas que aguardava a sua oportunidade como abutre
em campo árido. A sua missão durou três dias. No primeiro, tanto
ajudaram a remover os destroços, lixo e corpos mortos (muitas
galinhas), como procuraram levar os sobreviventes para locais
onde estivessem em segurança. Aos bombeiros cabia resgatar os
cadáveres. 
Nos dois dias seguintes, o trabalho foi orientado para a recolha e
distribuição de bens e alimentos. Carlos contou que as cheias
desencadearam um movimento de solidariedade. Depois das
chuvas torrenciais chegou um sol brilhante e calor. Mas também o
cheiro fétido dos corpos de pessoas e animais em decomposição. E
lama, muita lama. «Eu lembro-me de, mesmo com galochas
calçadas, ficarmos enterrados a cada passo.» Foi o serviço mais
duro de sempre. Quando tudo terminou, ficou o orgulho de ter
ajudado misturado com o lancinante desgosto. 
Já Álvaro Mata, dos Bombeiros Voluntários de Loures, era pintor
de automóveis e motorista da corporação. Lembra-se de que a
última coisa que fez antes de estar oito dias ao serviço por causa
das Grandes Cheias de 1967 foi acudir aos seus – comprar leite
para o filho. «Deixei o leite e fui para os bombeiros. Um dos carros
foi ver de umas pessoas em Frielas, mas a água era tanta ou tão
pouca que nunca mais conseguiu passar para cá. Era até à Calçada
de Carriche uma altura de lama de mais de dois metros. A água do
lado do Lumiar vinha toda directa ali, com canas, com tudo. O rio
era a estrada», contou ao Diário de Notícias. Perdeu a conta ao
que fez nesses dias – «se fosse dizer o que vi e o que fiz, tinha de
escrever quatro ou cinco livros.» 
O bombeiro José Martins viu, impotente, famílias inteiras a serem
sepultadas com o aluvião: «Eu nessa noite estava de serviço ao
quartel. Fui chamado para a Urmeira. A estrada da Paiã era um
mar de água. Quando lá cheguei, via as casas a ir por água abaixo.
Famílias inteiras. Nada se podia fazer. Se a gente tentasse ir, íamos
também”», recordou ao Diário de Notícias. Os Bairros da Urmeira e
de Santa Maria, na Pontinha, que estavam encostados ao rio, foram
destruídos pelas cheias, registando grande número de mortos e de
feridos. Alguns corpos foram encontrados a quilómetros dali. 
No concelho de Loures e, particularmente, na localidade de
Fanhões, a violência das águas atingiu também os cemitérios,
desenterrando os mortos sepultados há não muito tempo,
espalhando o horror e mais odor nauseabundo. A água levantava
sepulturas e estraçalhava caixões e covas. Mortos antigos
misturados com recentemente falecidos, tudo boiava na lama,
maldizendo os arrabaldes esquecidos de Portugal. 
Conceição Monteiro, que viria a ser secretária pessoal de
Francisco Sá Carneiro depois do 25 de Abril, vivia em Loures, uma
das zonas mais atingidas pelo temporal. Era catequista e, integrada
na Conferência de São Vicente de Paulo, trabalhava com mulheres
dos bairros mais pobres, com as quais formou um pequeno clube.
Na noite do temporal, jantava no Estoril com o seu marido e, no
dia seguinte, o casal regressou à sua residência. Ao chegar perto
de Loures, numa curva, avistou a planície lá em baixo. E o
horizonte era assustador: «Lama, lama, lama. O vale inteiro parecia
mousse de chocolate, estava tudo castanho de uma ponta à
outra.» Naquela mousse havia carros, animais mortos, casas e
pessoas. Conceição ficou com a casa destruída e chocada com a
morte de 24 dos seus vizinhos. Alguns ainda tentaram subir a
árvores, mas foram arrastados, levados nesse liquefeito corredor
da morte. Havia uma ponte que rebentou no momento em que o
médico da terra lá passava com as duas filhas. O corpo dele só foi
encontrado meses depois, perto de Sacavém. 
Na região de Loures, como em todos os outros locais atingidos, o
quartel dos bombeiros voluntários rapidamente se transformou em
nervo, em centro de refugiados, morgue, plataforma de operações,
tudo. Apesar do espaço exíguo, era central de informações locais e
ponto de apoio às populações que acorriam a pedir notícias e
ajuda. Os vivos iam ali saber dos mortos; as famílias, aos gemidos
e aos soluços, iam perguntar pelos desaparecidos, que a esperança
ainda não estava na lama. Por toda a vila, carros com altifalantes
percorreriam as ruas, solicitando agasalhos e alimentos para os
que tinham ficado ao desabrigo. E lá iam chegando peças de roupa
e de calçado, cobertores e colchões; panelas de sopa, cabazes de
pão, jarros de leite e de café, garrafões de vinho, travessas com
comida, pães, chouriços, presuntos, caixas de cerveja. Magros
consolos. 
Nessa noite, morreu também o delegado de Saúde de Loures.
«Veio um outro delegado e fez-se assim: a quem era reconhecido
pelas famílias era feito o funeral. Aqueles que não eram
identificados eram levados para a morgue do Hospital de São José.
Andámos nisto muitos dias. Todos os dias levávamos quatro, cinco,
seis corpos para São José. Estive quase um mês aqui nos
bombeiros. Descansava três a quatro horas no comando, mas a
azáfama era muito grande», relatou Guilherme Duarte Esteves ao
DN. Recordou ainda a onda de solidariedade e a forma como o
quartel teve de se adaptar às novas funções: «Começaram a trazer
roupas para as pessoas que estavam aqui. As pessoas que aqui
ficaram, algumas mal viam, perderam óculos, perderam tudo. Tive
de as alojar nas camaratas dos bombeiros. Pedi uma série de
macas à Mocidade Portuguesa para deitar essas pessoas. Tínhamos
uma camioneta que ia todos os dias à Ribeira buscar alimentos.
Havia uma firma, que era a Marques Raso, que nos emprestou dois
fogões grandes e ofereceu o gás para fazer a comida. Essas
pessoas estiveram aqui sensivelmente mês e meio até que o
Salazar as começou a mandar para a Mitra», contou Guilherme
Esteves. 
Ainda hoje os lisboetas associam Mitra a uma imagem de repulsa
pela mendicidade e pobreza. O antigo Albergue da Mitra, situado
no Beato, era onde a polícia despejava os vagabundos apanhados a
pedir nas ruas da capital durante o Estado Novo. Nesse regime, os
mendigos, outrora ponte entre os ricos e os pobres, elo de ligação
entre mundos como os xamãs e druidas, passaram a ser
diabolizados, cavando-se o fosso entre os «bons» e os «maus»
pobres. Só a mendicidade «por necessidade», associada à
invalidez, à menoridade ou à velhice, podia ser tolerada pelas
autoridades. Andaria à esmola quem tivesse caderneta e placa a
atestar o estatuto. Isso mesmo. Na rua, a pedir, só quem estivesse
formalmente autorizado para tal. Ou seja, foi até instituído o direito
a mendigar, reservado, portanto, aos «pobres bons». Os outros, os
«falsos» mendigos, pedintes não licenciados, sem carimbo e
burocracia, arriscavam-se a ser julgados como vadios e
enclausurados. O mais comum era a polícia capturá-los, levá-los
para os calabouços e soltá-los volvidos uns dias. Mas existiram