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Ficha Técnica Título original: Dilúvio Sem Deus Autor: Joana Amaral Dias Capa: Rui Rosa Imagem de capa: © Eduardo Gageiro Imagens: ©Hemeroteca Municipal de Lisboa ©Arquivo Nacional Torre do Tombo Revisão: Leonor Santos ISBN: 9789896609030 OFICINA DO LIVRO Uma editora do grupo LeYa Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 1.ª edição: Setembro de 2020 © 2020, Joana Amaral Dias e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.oficinadolivro.leya.com www.leya.pt Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de 1990. http://www.oficinadolivro.leya.com/ http://www.leya.pt/ Joana Amaral Dias Dilúvio Sem Deus A tragédia que a ditadura escondeu e que a democracia esqueceu Aquela azenha velhinha Na margem da ribeirinha Que p’los vales serpenteia Foi testemunha impassível Da tragédia mais horrível Que houvera na minha aldeia Naquela tarde de inverno O céu parecia o inferno Estavam os astros em guerra E a ribeira mal sustinha A grande cheia que vinha Pelas vertentes da serra Vendo a ribeira subir O moleiro quiz fugir Levando o filho nos braços Pela ponte carcomida Já velhinha e ressequida A desfazer-se em pedaços Mas, ai, que a ponte quebrou-se E o moleiro como fosse Na cheia da ribeirinha Levou o filho consigo E nunca mais moeu trigo Aquela azenha velhinha «Aquela Azenha Velhinha», fado popular Para o Diniz À PROVA DE ÁGUA Foi um episódio meteorológico extremo: abriram-se as cataratas do céu e, num serão, caiu a chuva equivalente à pluviosidade de um mês inteiro. Dilúvio sem Deus. Enquanto muitos dormiam, pela calada, à traição, o nível da água do Tejo subiu quatro metros em cinco horas. Rios e ribeiros à volta de Lisboa transbordaram e crisparam-se com força de mar alto, invadindo a capital e os arredores e engolindo aldeias completas. Sucede uma vez por século. Aconteceu em Novembro de 1967. Com tudo alagado, formou-se uma enxurrada de lama com ondas de dois e três metros de altura que arrasaram tudo à sua passagem: sufocaram centenas de pessoas, derrubaram casas, arrancaram árvores, devoraram crianças, carros, animais. Muito voava à superfície das águas ensandecidas, muito flutuava. Saldo de umas horas: mais de 700 mortos, centenas de feridos e milhares de desalojados. Como foram tratadas todas essas pessoas? Que socorro lhes foi prestado? Nos concelhos de Lisboa, Odivelas, Loures, Vila Franca de Xira, Alenquer e Oeiras, ficaram inundados os rios e ribeiras do Jamor, Trancão, Costa, Alenquer, Grande da Pipa, Ossos, bem como as ribeiras de Algés, Carenque, Lage, Porto Salvo, Alcântara, Odivelas e Frielas. De repente, a consciência de que habitamos um planeta inquieto. E que nada é eterno. Deus disse a Noé: «Chegou o fim de toda a carne diante de mim, porque a Terra está cheia de violência por causa deles; e eis que os arruíno juntamente com a Terra.» Naquele mesmo dia romperam- se todas as fontes do grande abismo e as janelas dos céus abriram-se. As águas predominaram tão grandemente sobre a Terra, que ficaram cobertos todos os altos montes que havia debaixo de todos os céus. Morreu tudo em que o fôlego da força da vida estava activo nas suas narinas, todos os que estavam em solo seco. E que história se escreveu das nossas inundações? As Grandes Cheias de 1967 estão entre as 80 maiores inundações do mundo. E foram as mais graves na Europa. A maioria das cheias com mais de sete centenas de óbitos ocorreu em países asiáticos, como a China, o Vietname ou a Índia, frequentemente causadas por monções. Nesse ranking há poucos registos em solo europeu, à excepção da famosa tempestade do Mar do Norte, em 1953, que vitimou mais de duas mil pessoas e atingiu os Países Baixos, a Bélgica e o Reino Unido. Mas repare-se que, nesse caso, tratou-se de uma inundação provocada por uma maré. Por chuvas, água doce, a tragédia portuguesa é a maior do espaço europeu. E, no entanto, tem sido relegada, apagada da memória colectiva. O lodo tudo sepultou. Grandes Cheias de 1967. A tragédia que a ditadura escondeu. E que a democracia esqueceu. Está então na hora de resgatar a História, remir as vítimas do esquecimento e limpar o seu nome da lama. O auxílio aos milhares de portugueses afectados por esta calamidade foi muito magro. Do ponto de vista psicológico, foi zero. Nem as populações foram acudidas na altura, nem o País fez, mais tarde, o seu luto nacional. De Psicologia pouco se falava. Psicologia da Emergência e Crise era algo que nem existia. Tendo sido o século XX um período mais para lamentar do que para celebrar, como dizia George Steiner, muitos campos do conhecimento (da filosofia à sociologia, passando pela arte) procuraram perceber e problematizar o horror e a barbárie, tal como o pensado por Theodor Adorno tanto em Educação Após Auschwitz, como em O Que Significa Elaborar o Passado, ou pela psicanalista Hanna Segal em O Silêncio é o Verdadeiro Crime, obras que, entre outras, revelam os contornos e as dificuldades em elaborar os traumas colectivos. E será possível a metabolização psíquica de processos traumáticos que, afinal, são tão reais, hiper-reais, que passam à ordem do não simbolizável, do indizível? Será o luto nesses casos impossível, como é impossível a superação da morte de um filho, razão pela qual não há palavra que o descreva (não é dizível) – ao contrário dos termos «órfão» ou «viúvo»? E qual é a relação entre o trabalho do luto individual e os processos de luto colectivo? Hoje, volvida muita investigação neste campo, sabe-se e compreende-se que os dois vectores se influenciam mutuamente. Em situações de trauma massivo, a ausência de um enquadramento colectivo e de pontos de referência sociais impede as vítimas de compreender o verdadeiro significado do seu sofrimento. Assim, muitos dos expostos a estas situações-limite ou a momentos críticos passam a acreditar que são, pessoalmente, culpados pelo sucedido, de alguma forma responsáveis pelo antes e pelo depois, produzindo-se então uma interpenetração de culpas pessoais e colectivas, com efeitos psicossociais de longo prazo. A calamidade destrói o sublime, o sagrado, o erótico e a traumatofilia é depois observável no inconsciente social, nos traumas cumulativos, nas cadeias de transmissões psíquicas transgeracionais, nos processos de vitimização e atribuição colectiva de culpa, nos sonhos e pesadelos apocalípticos, nas fantasias de fertilidade/infertilidade, intrusão e aniquilamento. Veremos exactamente como, com que textura e filigrana, nas próximas páginas. Certo é que ainda hoje (até porque entre guerras, terrorismo, alterações climáticas e pandemias, o próximo trauma colectivo é certo), é urgente perceber como se pode transformar a dor e o silêncio em narrativa e luto, como podemos passar de memórias encapsuladas para histórias apropriadas socialmente, compartilhadas. PARTE I PRANTO DO CÉU Era uma menina-mulher, 14 anos. Apareceu numa vala, nua, completamente nua, umas horas depois das bátegas de água, do outro lado da linha de ferro da povoação de Quintas, no Ribatejo. A única coisa que trazia na pele era o relógio parado a indicar dez minutos para as duas. Um corpo púbere totalmente exposto, marfim manchado por lamas, apenas com um marcador no pulso selando a hora da tragédia. Tique-taque. Virgem, mas morta, pura mas conspurcada por águas terrosas. Teresa Fajardo foi tolhida a dormir pela água estupradora. Agora, no seu último sono numa cova barrenta e parada, parecia uma flor aquática em botão. Bem longe, a 40 quilómetros de distância, na Urmeira (Loures), perseguida por um leviatã de lama dentro da sua própria casa, uma mãe, com o seu bebé de seis meses ao colo, lá conseguiu escapar para o telhado da barraca onde viviam. Só que continuava a chover copiosamente. A mãe escorregou e deixou cair o seu menino naqueladestinos bem piores durante a ditadura em Portugal. Enfim, Salazar preocupava-se com a miséria só quando era visível e incomodava, tal como sucedia com os mortos da Guerra Colonial. Quando era miséria escondida, cabisbaixa, escrava, como a que se vivia em Loures, em certas zonas do Ribatejo ou em Odivelas, nem os flamejantes discursos de Humberto Delgado surtiam efeito. Nesse concelho o horror não foi menor. A área foi afectada pelo fenómeno do excesso de construção. Entre 1950 e 1970, a população passou de 7 mil para 52 mil habitantes. Havia dinamite prestes a explodir. Rebentou naquela noite. «Tinha eu na altura 19 anos e frequentava a Faculdade de Direito de Lisboa, morando em Odivelas num quarto alugado e, para sobreviver, dava explicações a particulares de Filosofia e Latim numa sala de estudos ali para os lados da Calçada de Carriche, ainda com o seu traçado antigo. Desci do autocarro número 36 entre as 18 e as 19 horas e, como sempre, fiz a pé o percurso entre o fim da Calçada e o princípio do bairro. Chovia não com muita violência, mas com muita persistência desde o fim da manhã desse dia... e a seguir a um estio prolongado», lê-se num testemunho no fórum meteopt.com. «Às seis da manhã acordei eu e outros residentes com os gritos que se ouviam dos lados das Patameiras… A várzea de Odivelas tinha deixado de existir... Boiavam alguns carros e centenas de cabeças de gado... Pelo meio-dia, a garagem das viaturas da Associação dos Bombeiros Voluntários de Odivelas estava cheia de cadáveres nas posições mais grotescas, apanhados pelo inesperado da morte de uma enxurrada. A Calçada de Carriche tinha sido fatiada em dois segmentos, como um queijo flamengo, e tinha brechas descomunais. Os automóveis boiavam virados do avesso... A ligação entre o Senhor Roubado e Odivelas desapareceu. A água cavou lagos com três metros de profundidade onde, 24 horas mais tarde, um ciclista acabou por sucumbir. Odivelas, a escassos três quilómetros de Lisboa, ficou isolada da capital. O cheiro a cadáveres fez-se sentir por mais dois dias.» No Século Ilustrado, conta-se que, «domingo, o solo escalavrado de Odivelas era uma reconstituição acabada da manhã seguinte ao dilúvio do Mundo: um caos de lama, poças, escombros e cadáveres. No meio de tudo isso, a chapinhar, com olhos e gestos de calmo desalento, nesse fatigado estado de ânimo em que lançam as tragédias grandes demais – no meio de tudo isso, pessoas: habitantes da zona que o temporal escorraçara e então voltavam para examinar o nada que resta dos seus haveres. Parcos haveres, que a zona não é de gente rica, que as grandes catástrofes são sempre com gente pobre.» Pois, sempre com gente pobre. Todos no mesmo barco, claro, mas uns no convés com direito a salva-vidas e outros em apneia no porão. Jaime Assunção, bombeiro em Odivelas, recordou ao Diário de Notícias com precisão o que estava a fazer quando a sirene tocou. Soldado da paz não era abastado e carne boa não ia à mesa todos os dias: «Eu tinha-me casado há um mês e três dias. Tinha um sobrinho em casa que tinha vindo passar o fim-de-semana, e a minha mulher resolveu fazer um jantar de bifes com batatas fritas e ovo a cavalo. Peguei num bocadinho de pão, molhei no ovo e comi; depois cortei um bocadinho do bife, e o pedaço que estava no garfo foi a única carne que comi. O alarme começou a tocar e eu gritei para a minha mulher: dá aí o blusão.» Jaime Assunção tinha então 27 anos, abandonou sem pestanejar o seu manjar raro e a pequena festa familiar. Contou como, pouco depois de sair de casa, reparou que ele e os colegas tinham os casacos e os capacetes cheios de lama sem terem estado (ainda) nesse lodaçal, como se a chuva trouxesse poeira do céu. E trazia. Não eram só as inopinadas ondas que arrastavam barro, o vendaval também arremessava sujidade e até destroços. Para Jaime, essa noite nunca mais acabou. Passaria a repetir-se vezes sem fim, como um disco riscado, um estranho loop de fundo. De uma casa no Silvado resgatou 35 pessoas. Na Arroja, salvou um rapazito que vinha pela serra abaixo em cuecas e camisola. Minutos depois de saírem da ponte, onde fizeram o socorro, esta foi levada pelas águas. Unha negra. José Martins foi um dos bombeiros de Odivelas que estava de serviço na noite de 25 de Novembro de 1967. A primeira chamada que recebeu foi para a Ramada, mas não conseguiu passar tal eram os pedregulhos que a água transportava. Viram pessoas a serem levadas pelo rio, mandavam fateixas, espias, tudo o que podiam, a ver se as gentes aflitas as apanhavam, mas o caudal rugia esfaimado e esses náufragos morriam à sua frente. Relatou à SIC que, quando ia a entrar na Póvoa de Santo Adrião, escutou alguém a pedir ajuda. Seguiu o som até uma casa. Com o coração a palpitar na garganta, rebentou com a porta e encontrou uma família inteira à mercê da superfície. Já ninguém gemia ou pedia auxílio – sete pessoas: mãe, pai e filhos. José Martins agarrava em cada corpo e ia mandado um a um pela porta fora. Como se fossem peixes mortos, disse. Andou dentro de água durante três dias, cedeu a sua cama no quartel para os desalojados porque a ele também não lhe servia. Não dormiu. Não quis dormir. Não podia dormir. «Nos bombeiros nunca há heróis. Os bombeiros servem para salvar pessoas. Não há heróis”», declarou. «Quando salvava uma pessoa era como se tivesse ganho o euromilhões. É a maior tristeza que tenho na vida, ser bombeiro e não poder salvar as pessoas.» Odivelas fora construída na pobreza sem caderneta nem placa, uma pobreza sem estatuto. Odivelas nascera a carpir e era agora enterrada pelo dilúvio. Por todo o lado, bombeiros e soldados transportavam mortos e feridos ao colo ou sobre portas de casas, macas improvisadas. Passavam crianças mortas, os cadáveres eram colocados a salvo nos bancos das igrejas e viam-se homens vagueando de olhar vítreo, mulheres trajando negro, mareadas em lágrimas. Joaquim Letria deparou com os corpos enlameados e alinhados no quartel dos Bombeiros Voluntários de Odivelas e recordou que começavam por ser indefinidos, como «estátuas» de Pompeia depois da erupção do Vesúvio. Muitos cadáveres foram arrastados pela corrente e encontrados a vários quilómetros de distância, alguns em cima de árvores ou de muros. Outros terão rebolado até ao Tejo e sido carregados pela corrente. Destino final: oceano Atlântico, um quinto da superfície da Terra, o mar dos mares, onde se terão perdido para sempre. Paz às suas almas. As águas destruíram sobretudo as habitações pobres, barracas toscas de madeira, construídas junto à Ribeira de Odivelas ou nas encostas das elevações vizinhas. A Calçada de Carriche ficou completamente alagada, abatendo à entrada da povoação. A ribeira tornou-se num rio. No Século Ilustrado, narrava-se: «Durante várias horas um homem esteve agarrado a um poste de electricidade. Gritava, a princípio com muita força, para o fim já fracamente. Pedia que lhe dessem uma corda, que o acudissem. A água ia subindo, cobriu-lhe a princípio os pés e subiu depois até à cintura. O homem não parava de gritar, e todos o vimos erguer muito os braços quando a água lhe chegou ao pescoço. Mas não a tapar-lhe a cabeça; antes disso, o poste desabou, e o homem lá desapareceu, arrastado pela água, sempre a gritar. Já não o distinguíamos, mas ainda se ouvia gritar.» A água preenche tudo, ocupa até ao fim, não deixa nenhum espaço vazio, e antes que se acabe de dizer o seu nome já está em todo lado. Mário e Elisabete Augusto passaram a morar no Bairro Calouste Gulbenkian, que todos conhecem como Bairro dos Sinistrados, construído com o apoio da Fundação depois da tragédia. São prédios amarelos de três pisos, em Odivelas, não muito longe do Silvado, de onde conseguiram escapar do primeiro andar em que moravam, já no dealbar da manhã de dia 26. «Esteve a chover todo o dia. Era dessa chuva que a gente diz molha-tolos», recordou Mário ao Diário de Notícias. Nasceu num dia de ciclone em 1941 e talvez isso lhe tenha marcado a sina, ainda que sem culpa de sobrevivente. Elisabeteestava grávida. «Veio uma pancada de pedra», disse ela. «Veio uma grande rebocada de água mais tarde», recordou ele. E aí começou o turbilhão. Conseguiram pôr-se todos a salvo nesse primeiro andar. «A minha mãe ainda foi buscar muita gente, velhotes e tudo, lá para casa, mas depois as escadas taparam-se com água e já não pudemos sair.» O primeiro andar transformou-se então numa armadilha de onde só escapariam por um buraco, «na parte de trás, para a casa do vizinho». Mas não sem antes Elisabete, com barriga de sete meses, ter salvado o pai, por um triz. O senhor não queria largar nem por nada uma bilha de gás acabada de comprar, um pequeno tesouro nas mãos de um pobre. Hesitava entre deixar a botija ou salvar a própria vida. Entretanto, «ele caiu num buraco cheio de água e de lama. Meti a barriga (já grande) assim no chão e puxei o meu pai. Quando vi que não aguentava mais, gritei. Ia morrendo. Foi um dia e uma noite que nunca mais se esquecem.» Ficaram a viver num barracão do pai de Mário, no Senhor Roubado, com a família toda e mais tarde tomaram de assalto a tal casa dos Sinistrados, onde ficaram décadas e onde criaram os sete filhos. Elisabete explica: «Quando começaram a dar as chaves das casas novas, houve quem apanhasse 20 a 30 chaves e depois queriam dinheiro por elas. Tinha aqui uma irmã e um sobrinho que viram que esta casa estava vazia. Saltaram pela janela, vieram cá para dentro e chamaram-nos. Veio a polícia e tudo para me pôr na rua, mas o inspector disse: “A senhora não sai daqui, está de barriga.” Hoje é minha, eu comprei-a.» Foram tempos de sobrevivência para uns, e de usura ou agiotagem para os chacais. Há sempre matilhas nas crises a morder, a atacar as presas mais frágeis. Ainda assim, desta família não morreu ninguém. «A minha cunhada esteve em cima da barraca com a filha quando os bombeiros chegaram e deitaram-lhe a mão. Assim que ela saiu do telhado, a casa foi por água abaixo», contou Mário. Naqueles dias, o quartel dos Voluntários de Odivelas transformou-se numa morgue. Guilherme Duarte Esteves, então ajudante do comando, estava doente em casa com 39 graus de febre quando o foram chamar. «Às 21h já havia muitos pedidos nos bombeiros. A coisa começou a complicar-se mais a partir das 22h20/22h30, a chuva era muita, às vezes parecia o dilúvio. Vinha lá de cima de Caneças, da Arroja, aquilo é tudo a descer, vinha desembocar tudo a Odivelas. Foi uma calamidade muito grande», recordou, aos 77 anos, ao Diário de Notícias. «Na Rua do Souto estava uma pessoa entalada, era o Abílio. Esse foi o primeiro morto a vir para os bombeiros de Odivelas. Ainda chamei a doutora, mas ela não conseguiu fazer nada. De seguida dirigi-me ao Silvado, fui para lá com uma equipa de seis ou sete homens, já mal se podia circular. Tivemos de agarrar umas espias a uns postes de electricidade para podermos passar para lá, mas entretanto dei logo com uma moça de 18 anos, morta, toda nua. Meti-lhe uma mantazinha por cima, e essa foi a segunda pessoa morta a entrar nos bombeiros. A partir daí começámos a encontrar mais mortos, foi uma loucura. Foi começar a trazer mortos para o quartel», relatou. «Odivelas era um mar de água porque daqui ao Senhor Roubado eram hortas de um lado e de outro. A Póvoa de Santo Adrião era um mar autêntico. No outro dia à noite tínhamos 200 e tal mortos no quartel. E tínhamos cerca de 50 pessoas desalojadas das que conseguimos trazer para cá.» No chamado Pátio das Carroças, Guilherme Duarte Esteves encontrou um homem de 82 anos, entalado entre a palha e o À telhado. «Às 23 horas, abri a porta e entrou-me em casa um porco, apavorado. Os animais também morreram, às centenas, e os que se salvaram erravam pelos campos, cheios de medo», escuta-se num testemunho à SIC. Só no Pátio do Silvado, morreram mais de 100 pessoas. No relatório da Corporação dos Bombeiros Voluntários de Odivelas pode ler-se: «A primeira chamada de pedido de socorro foi recebida pelas 21h10 para o lugar do Silvado, onde havia várias barracas inundadas e animais em perigo. Às 22h30 começaram as chamadas para gente que se encontrava em perigo nos seguintes locais: Bairro Espírito Santo, Silvado, Pombais, Póvoa de Santo Adrião, Olival Basto, Senhor Roubado, Urmeira, Bairro de Santa Maria, Pontinha, Serra da Luz, Famões, Bairro da Barrosa, Odivelas, etc. As viaturas começaram a sair por ordem de urgência até às 23h10. Às 23h40 estava consumada a grande catástrofe com todas as estradas cortadas para Odivelas, e centenas de pessoas a gritar pedindo para as salvar.» Como seria para estes homens de farda, muitos apenas miúdos, suportar tanta responsabilidade, correr tantos riscos, tocar em tantos mortos? Muita gente, tanta gente resgatada pelos bombeiros: «O primeiro salvamento foi feito na Calçada do Tojal, donde retirámos uma mulher entrevada que estava prestes a morrer afogada (…) na Arroja foram salvas duas crianças (de 2 e 3 anos). Estes salvamentos foram feitos pelo bombeiro de 3.ª classe n.º 14, o qual, a nado e às escuras, conseguiu retirar as crianças, pelo que sofreu vários ferimentos.» O relatório é extenso e contam-se dezenas e dezenas de vidas poupadas. Pelas quatro da madrugada, começaram a chegar ao quartel as primeiras levas de corpos, homens, mulheres e crianças, transportados por barcos de borracha daquela corporação e também pelos pertencentes aos Fuzileiros Navais, que entretanto estavam igualmente a prestar auxílio. Os três dias seguintes foram de resgate de mortos. Só se viam olhos parados. Abílio Rodrigues da Silva nunca esqueceria aqueles dias dolorosos de Novembro de 1967. Quando chegou ao quartel dos bombeiros de Odivelas, às 6 horas da manhã do dia seguinte, já lá estavam 17 cadáveres. Durante os três dias e noites subsequentes, nunca parou, ele e os colegas. Ninguém foi à cama ou a casa, e Abílio ainda hoje se espanta de como aguentou. «Passaram-me 63 mortos pelas mãos.» 63. Nunca se esquecerá. Um a um. Contou- os. E passaram de forma literal: era preciso tirá-los da lama, carregá-los de braços ao alto em tábuas, que não havia macas – nem, na maior parte dos sítios, carro que passasse –, e levá-los até ao quartel. Os corpos eram contados e transportados para o Instituto de Medicina Legal, onde eram arrumados por área de origem. O instituto «estava cheio até acima, íamos todos lá levar, de Algés, de outros sítios, de todo o lado, andávamos por cima dos corpos para pôr os outros», disse Abílio à Sábado. Quando finalmente parou e voltou a casa, não ia o mesmo: «Não consegui pegar nos meus filhos ao colo». O trauma transforma. Um dos filhos era bebé, o outro tinha 2 ou 3 anos. «Não consegui.» Compreende-se. * Depois de um grande desastre ou de um cataclismo são habitualmente observáveis sintomas psicológicos graves, como instabilidade emocional, reacções de stresse, ansiedade e trauma. A remissão total destes quadros é possível, seja do ponto de vista individual seja na dimensão comunitária, sobretudo se existirem factores protectores e de resiliência e/ou uma intervenção técnica adequada. Note-se que, nas Grandes Cheias, muitos dos factores protectores, como a estabilidade económica, estavam comprometidos e, escusado será dizer, acompanhamento psicológico estava fora de questão. Luto colectivo? Como? Se o tirano escondia mortos e dor. Seja como for, em alguns casos a recuperação não é total, levando a complicações como patologias psicóticas, de ansiedade, depressivas ou stresse pós-traumático. Há hoje evidência científica de que as hecatombes, para além de todos os prejuízos materiais e da disrupção que provocam, afectam a saúde mental. No rescaldo, as respostas mais comuns são o estado de choque, a desorientação e a incapacidade de integrar informação agressiva. No momento subsequente, é muito comum a erupção da ansiedade e do nervosismo, a sensação de assoberbamento, forte irritabilidade, repetição mental involuntária de imagens e sons do acontecimento. Estas memórias surgem sem aviso prévio, frequentemente acompanhadas de reacções fisiológicas como aumentoda sudação ou dos batimentos cardíacos, prejudicando a atenção, a concentração ou o processo de tomada de decisões. Em alguns casos, verificam-se alterações graves do apetite ou do sono e acentuada reactividade aos estímulos do meio ambiente, como sirenes ou barulhos que ressoem aos da catástrofe. Os pobres estavam abandonados à sua sorte. Já tinham sido largados antes do cataclismo, deixados para trás nas casotas de lusalite e argila. Depois, continuaram a ser lançados aos bichos, esquecidos e ignorados. Ficaram sós a cozer as subtracções, a enterraram-se vivos no sofrimento das perdas. Também Oeiras apresentava graves problemas habitacionais, visto que o êxodo do interior de Portugal para Lisboa não encontrava no centro da cidade possibilidades de habitação. Rechaçada, era então nos concelhos limítrofes que essa grande massa populacional achava uma chance. Assim, também aí os bairros-de-lata e outros aglomerados clandestinos distribuíam-se por zonas de cheias, leitos de rios e perigosos vales. Estima-se que no concelho de Oeiras, existissem cerca de 12 mil pessoas a viver em barracas, a palavra tabu, as sete letras interditas, o nome que era sempre rasurado pelo regime. Barracas. Barracas. Barracas. Pelos assentos, que não indicam as profissões, é impossível avaliar o estatuto económico e social de cada um dos mortos. Certo é que uma vez, por exemplo, se faz menção a um bairro degradado: o Bairro das Minhocas, na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, bem no centro de Lisboa, onde pereceu um habitante da barraca nº 24 037 – já não bastava ser barraca, era ainda mais reduzida à indiferença pela numeração. Mas é inquestionável que muitos dos lugares devastados eram os bairros-de-lata que enxameavam a periferia da Grande Lisboa e que acolhiam gente a viver na mais profunda lástima. A região de Oeiras, marcada por várias linhas de água como o rio Jamor e as ribeiras de Algés, Barcarena, Porto Salvo, Lage e Ossos, que correm para o rio Tejo, foi duramente atingida pela tremenda tromba de água, quer nas zonas mais urbanas (vila de Oeiras, Algés, Dafundo, Cruz Quebrada, Caxias e Paço de Arcos) quer nas rurais (Ribeira da Laje, Porto Salvo, Tercena, Murganhal, Valejas, Outurela e Pedreira Italiana). Parques, jardins, praças, ruas e habitações, tudo foi coberto pela lama. Também o concelho de Oeiras ficou sem electricidade e sem abastecimento de água e viu condicionada a circulação dos transportes ferroviários e rodoviários. A Ribeira da Laje foi um dos lugares mais zurzidos – era habitada por populações que viviam em casebres construídos junto a zonas de cheias, gente pobre vinda das áreas rurais, que desconhecia completamente o perigo da área que ocupava. Para além disso, era uma população vítima da especulação de quem arrendava aquelas modestíssimas habitações. Havia famílias que viviam em grutas nas ribanceiras encostadas ao cemitério. A memória colectiva também dissipou estas imagens mas, à época, muita gente na Península Ibérica vivia em buracos no chão ou em cavernas nas rochas, como hoje ainda se verifica em Sacramente e Guadix, em Espanha. Conta O Século na sua edição de 29 de Novembro: «A maior tragédia deu-se na Ribeira da Laje, próximo de Oeiras, onde as águas convergindo dos montes abriram profunda clareira dentro da povoação, fazendo ruir cerca de dez habitações, uma das quais foi arrastada pelas águas, tendo morrido afogados os seus locatários (pai, mãe e dois filhos menores). Pode afirmar-se que os habitantes da Ribeira da Laje viveram horas de verdadeiro terror. Ninguém se lembra, nesta região, de um temporal com tais proporções.» A Ribeira da Laje não tinha iluminação, o que contribuiu para o pavor e prejudicou a luta pela sobrevivência. Era a escuridão total quando a chuva torrencial pronto se derramou por todo o lado, cobrindo tudo e gerando toneladas de lama que, a par com as fortes rajadas de vento, esculpiam a fúria dos elementos e calavam os gritos de pânico ou os pedidos de socorro. O Palácio Marquês de Pombal foi alagado. A inundação das respectivas casas-fortes resultou em enormes prejuízos, nomeadamente destruindo o património da Fundação Gulbenkian que aí se encontrava guardado. O Centro de Biologia da fundação foi igualmente castigado pelas águas que alagaram o rés-do-chão, a zona das caves e subcaves, danificando o Biotério, o Laboratório de Genética e o de Fisiologia Vegetais. Centenas de animais que aí se encontravam morreram e muitos equipamentos técnicos especializados ficaram destruídos ou avariados. Em Barcarena, a ribeira transbordou. Os portões de ferro da Fábrica da Pólvora foram torcidos como se fossem finos arames e a devastação foi geral. A igreja de Barcarena também não foi poupada. A muralha do adro desabou e causou elevados prejuízos. Vasco Pereira abriu a porta com duas voltas na fechadura e entrou de passo estugado. Seguia de muleta e, como muitos que marcham apoiados, vão rápido, como que a exibir, orgulhosos, o préstimo do auxílio. Foi acendendo as luzes de caminho. Deu a volta à capela de São Sebastião, em Barcarena, e parou depois do altar para apontar para o coro. Era ali, no andar de cima, o quarto dos pais de uma família de sete que, «durante anos», viveu na À capela. «À entrada, lá ajeitaram as coisas.» Usavam o pequeno corredor lateral, mas nunca o altar, nem o redondo da assembleia daquela igreja agora empregue para cerimónias fúnebres. «Essa família perdeu a casa, no Bairro dos Pescadores, para a Cheia. Por isso, o padre João – um canadiano – ofereceu-lhes a capela por uns tempos. Os filhos ainda casaram por lá.» Dedicada a São Sebastião, protector dos doentes da peste e dos artilheiros, esta capela nasceu, nada mais, nada menos, do que de um moinho, algures no final do século XVI. O anfitrião fala do «redondo da assembleia» porque se trata de um dos poucos exemplos deste tipo de arquitectura em templos católicos, pela sua planta circular. Vasco tinha 35 anos nas cheias. Servia desde os 16 nos bombeiros de Barcarena e já tinha as memórias sulcadas pelas explosões na Fábrica da Pólvora. Havia de ver e socorrer outras tantas, mas nada supera «o Domingo da enxurrada». «Ninguém sabia o que vinha com a chuva.» Nos dias seguintes, foram recolher e distribuir roupas, alimentos e móveis. Alguns foram ajudar as populações «que acatavam os seus mortos em frente ao Palácio de Queluz». «Era o ofício dos bombeiros», revelou ao diário Público. O Jamor e a subida das águas do Tejo alagaram caves e invadiram o comércio da baixa de Algés. O jornal Ribamar diria: «A água rebentou as paredes e invadiu assustadoramente as casas. Destroçou móveis, arrastou roupas e trens de cozinha, desfez dinheiro, fez uma amálgama dos géneros de mercearia, inutilizou centenas de aparelhos eléctricos de toda a espécie; os automóveis foram sacudidos como brinquedos entre os muros ou passavam de ruas para quintais, levados no turbilhão das águas. De manhã, às dezenas, os automóveis eram montes de lama com as chapas torcidas. As ruas apresentavam um aspecto desolador.» «Nisto surgiram uns bombeiros que avançavam com água pelo peito», lê-se noutro testemunho. «Já não me lembro de como é que os bombeiros conseguiram fazer descer as pessoas de cima do telhado. Fizeram uma fila indiana, os bombeiros a apoiar os mais fracos, até saírem pelo que hoje corresponderia à boca do túnel do Pingo Doce.» Em As Gotas de Ar Frio, de Ana Paula Teixeira Torres, lê-se o seguinte testemunho de Helena Abreu: «Nós tínhamos uma vizinha, gostávamos muito dela, da Rua Ernesto da Silva (morávamos nessa rua). Chocou-me imenso quando soube o que lhe aconteceu, fico transtornada de cada vez que me falam disto, conhecia-a muito bem. No local onde ela trabalhava fizeram uma homenagem às pessoas que completavam 25 anos de serviço e ela foi homenageada na véspera, ou na antevéspera do dia em que se deram as Cheias. Ela estava muitíssimo feliz, e para ir à homenagem tirou umas joiazinhas que tinha, pô-las no quarto, eram as jóias para levar à homenagem. Depois, voltou a tirá-lasno quarto, quando chegou a casa, a seguir à homenagem. E, nesse dia, começou a ver entrar a água. Segundo me disseram, entrava água até pelas sanitas! Ela morava nessa altura na Rua Luís de Camões, nas caves. Quando se lembrou que as jóias estavam no quarto, voltou a correr para as salvar, só que a porta fechou-se. Ela começou aos gritos, a água a subir vertiginosamente, ela aos gritos, aos gritos, aos gritos e o marido correu a acudir-lhe. Tentou abrir a porta e ela só dizia: “Vai-te embora que eu estou perdida! Salva-te, salva-te, salva-te!”, e ela morreu afogada lá dentro.» Helena Abreu acrescenta: «Não sei quando nos demos conta de que a situação estava a tornar-se perigosa. Creio que foi tudo muito rápido. De repente, a Rua Damião de Góis era um rio e os carros iam arrastados na corrente para acabarem empilhados junto ao jardim ou à Marginal. Não sei se havia iluminação pública a funcionar, creio que sim, caso contrário não veríamos os carros e a enxurrada. No terreiro das traseiras, os carros boiavam em círculos. Tocavam-se levemente, mas não chocavam. Era como se estivessem a brincar.» Algés parecia que tinha sido bombardeada: gente a perder a vida esmagada por móveis ou escombros, pessoas afogadas, prédios a ruir, homens e mulheres a morrer ao tentar salvar os seus parcos bens, vários a atar os carros às árvores para não os perderem. A maioria dos veículos, mesmo assim, foi-se na enchente e, na manhã seguinte, só restavam as cordas, como se de cavalos selvagens se tratasse. Desapareceram no mar, levados no tropel como simples barquinhos de jornal. Outros apareceram pendurados sobre muros e vedações. O morador Isaac Santos contaria que algo semelhante sucederia aos corpos dos seus pais: «O meu pai foi encontrado em Algés, já a entrar no Tejo, e a minha mãe, oito dias depois, num caniçal em Carnaxide.» Como se não bastasse, já na manhã de domingo deu-se a explosão do paiol de Linda-a-Velha. Helena Abreu tinha 23 anos e, passado meio século, questionava-se se aquilo teria mesmo acontecido porque «ninguém falava nisso». A testemunha integrou o grupo Histórias de Vida, das bibliotecas municipais de Oeiras que, a partir de 2014, se dedicou à recolha de testemunhos e ao registo da história do concelho. «Eu morava na Damião de Góis. Foi a noite toda com a chuva. A chuva parecia cordas, cinco, seis horas, pumba, pumba. No sítio onde agora é o Pingo Doce era uma vila de casas baixinhas, e as pessoas estavam em cima do telhado e gritavam para nós, que estávamos na janela, lá em cima, depois vieram os bombeiros. A minha mãe resolveu dar guarida a essa família da cave, eram mais três pessoas lá em casa. Por volta das cinco ou seis da manhã conseguiram fazer-se as camas no chão e acalmar as pessoas, a ver se a gente dormia uma horinha ou duas. Às sete da manhã, pás!!, ouve-se a explosão. Em Algés partiram-se muitos vidros. Em Linda-a-Velha ficou tudo destruído. Segundo o presidente da câmara, 90 por cento dos vidros, 40 por cento dos telhados», contou ao Diário de Notícias. Os bombeiros de Linda-a-Pastora lembram-se bem do «pandemónio», conforme relataram ao mesmo jornal. Os portões de ferro do quartel ficaram dobrados com as ondas de choque da explosão. «Íamos a subir a auto-estrada no pronto socorro e dá-se a explosão, de tal ordem que os cofres da viatura abriram-se todos», contou Miguel Antunes, então adjunto do comando. «Felizmente não houve vítimas, porque aquilo rebentou quando não estava ninguém naquele sector, foi o TNT que rebentou», disse. Mas, afinal, que explosão foi essa? Em Linda-a-Velha existia o Forte do Carrascal/Paiol de Munições, que servia de armazém de material militar explosivo pertencente ao Exército e que se destinava a ser enviado para África, a fim de ser usado na Guerra Colonial. Na madrugada daquele domingo, dia de preceito, por volta das 7h30, em pleno temporal, deu-se aí uma violenta explosão. O primeiro alarme fora dado às 4 horas, quando se ouviram rebentar algumas munições. Às 6h30 acendeu-se um fogo no forte. As chamas começaram no compartimento onde estavam armazenadas bombas de fumo. A causa foi a entrada da água, que atingiu grandes quantidades de fósforo aí existentes e que se inflamou por reação química, pegando fogo a caixas de bombas de fumo e a detonadores. Enquanto se via o clarão da explosão, escutou-se um grande estalo, um estrondo, cuja onda sonora se propagou por quilómetros. A sua força provocou uma brutal deslocação de ar, que partiu vidros das janelas das áreas e provocou uma chuva de pedras, terra e cascalho. O estoiro semeou o pânico nas populações que, temendo uma segunda explosão, fugiram dos lugares próximos para Algés e mesmo Paço de Arcos, percorrendo a pé a distância até àquela localidade. Segundo a imprensa da época, se o material tivesse rebentado na sua totalidade, os estragos teriam sido bem mais dramáticos, com vítimas mortais, já que estavam depositadas no local cerca de seis toneladas de TNT. Dava então à estampa o jornal O Século: «Quanto às causas do fogo no paiol, soube-se, em contradição com a primeira hipótese de curto-circuito que, no local, não existe corrente eléctrica, já para evitar acidentes. Assim, apurou-se que no paiol houve uma inundação que atingiu cerca de um metro e meio de altura, tendo a água alcançado as granadas incendiárias de fósforo, o que provocou uma perigosa combinação química.» O mesmo jornal noticiava no dia 26 de Novembro: «A cidade foi desperta por um terrível ruído. O forte foi pelos ares. Os vidros, numa vasta zona, voaram em estilhaços. Receia-se que haja mortos e feridos. Por toda a parte, vidraças voaram em estilhas, inúmeras barracas de pobres desabaram como castelos de cartas, a Igreja de Carnaxide veio a baixo.» Noutra edição, acrescentar-se- ia: «Ouvimos o Jacinto Alves Félix, de 15 anos. Segundo as suas declarações, estava agarrado aos arames que vedam o acesso ao forte, a ver o fumo do incêndio: “De repente, caiu aos meus pés uma coisa que fez um barulho dos demónios! Não sei o que era, mas desatei a fugir, enquanto várias pessoas, que estavam próximas, se atiraram para o chão. Eu fugi, as pedras, juntamente com pedaços de ferro, quase me caíam em cima.”» A polícia esteve então a interditar a circulação, não deixando entrar ninguém na localidade sem identificação. Uma espécie de Estado de Emergência sem Decreto de Lei. Como medida de segurança, o trânsito foi cortado na auto-estrada por vários dias e montado um perímetro de segurança em torno do forte. Após a explosão, na manhã de segunda-feira, dia 27, vários boatos começaram a circular entre as populações de Linda-a-Velha, Barcarena, Algés, Carnaxide, Caxias, Dafundo, Cruz Quebrada, Amadora e Queluz. Um maremoto na costa portuguesa estaria iminente, receando-se também novos rebentamentos no paiol e na Fábrica da Pólvora de Barcarena. Para o levedar desses rumores e atoardas tinha contribuído o estado emocional das populações, vulnerabilizado pelos mortos das Grandes Cheias, pelos desalojados e pelas avultadas perdas materiais. O medo acaba por parir mais medo. Só que as notícias falsas gastavam saliva, mas também faziam correr tinta. O jornal O Século reservou várias páginas ao assunto, com fotografias e factos falsos que tiveram de ser desmentidos e corrigidos. Desde os anos 90 que, aliando técnicas como a Tomografia Axial Computadorizada, a investigação demonstra que os precipitantes do trauma são arquivados no cérebro como um rasto neurobiológico – por exemplo, uma pessoa esfaqueada terá sempre uma sensibilidade específica ao toque. Esses estímulos indelevelmente associados à situação traumática são processados na amígdala, uma zona do cérebro que lida com os instintos de sobrevivência primários e que contrasta com o hipocampo, área responsável por cognições complexas. A amígdala, que se acende como uma pista de carrinhos de choque perante um desses catalisadores do rasto neurobiológico, é incapaz de assimilação ou análise racional. Resta-lhe o pensamento concreto e as emoções negativas, contexto no qualmais facilmente se aceita informação errada ou distorcida, mais simplesmente se tomam como certas as suas próprias interpretações dos acontecimentos, mesmo que formuladas sob alta pressão. Os boatos eram acompanhados por recomendações para os habitantes: os de Algés, Paço de Arcos e Oeiras deviam fugir para as praias; os de Caxias, Amadora e de outros locais para as encostas. Aureliano Duarte, «93 anos e 90 de bombeiro», recordou ao Diário de Notícias que foi toda a gente para a beira-mar. «Pusemos o pessoal lá do estádio nas camionetas e foi tudo para o Guincho», recordou João Baptista, também bombeiro, que trabalhava no Estádio Nacional. Alberto Brito, bombeiro em Oeiras, andou de megafone, a pedido da polícia, a mandar as pessoas todas para a fralda do Atlântico. E depois vieram os saques, os ladrões. «Uma população com tudo destruído pela água, uma explosão às 7 da manhã, não houve nenhum governante que fizesse um discurso a acalmar as pessoas, que se sentiam abandonadas, assustadas e aterrorizadas», resumiu Helena Abreu. O pânico instalou-se: o telefone foi usado e abusado entre famílias para avisar do perigo e para ligar para os jornais a pedir a confirmação das notícias. A comunicação social sempre prestava mais esclarecimentos do que as autoridades. As escolas fecharam; o trabalho foi interrompido; as fábricas encerradas; muitos abandonaram as suas habitações ainda recheadas com os seus poucos bens de valor e de estimação, à mercê dos gatunos. Muita gente vagueava pelas ruas, meio enlouquecida, meia suspensa, à procura de familiares, de respostas, de ajuda. Devido a esse alarme, assistiu-se, então, a um verdadeiro êxodo populacional. Rapidamente, as estradas ficaram atafulhadas de milhares de carros, bicicletas, motocicletas, autocarros e até carroças pejadas de pessoas. Houve um engarrafamento de vários quilómetros. O cenário era de filme apocalíptico e foi necessária a intervenção das forças policiais para que todos regressassem às suas casas. O Governo Militar emitiu uma nota oficiosa: «Não há motivo para alarme. Não há nada a recear. As nossas brigadas preventivas estão no paiol; hoje esse fumo é já inexistente. O que se diz sobre a eventual explosão no Carrascal é boato inconsistente.» Porque o Partido Comunista aproveitou para consciencializar a população dos riscos de armazenar explosivos junto de áreas habitadas, as autoridades aproveitaram também para imputar os rumores a essa organização partidária. Mortandade, fome, miséria, mas o abocanhar do poder persistia. Na Amadora, as zonas mais atingidas foram as do Bairro da Porcalhota, Vendas Novas e Reboleira, locais onde se registou o rebentamento de condutas. O nível das águas chegou a atingir dois metros de altura na zona da Porcalhota. Também aí faltou a corrente eléctrica. Mais para o lado da Falagueira, na Quinta da Laje e na Pedreira do Aires, os bairros de barracas que aí se encontravam ficaram bloqueados pelas águas e lamas que se acumulavam, distribuindo o terror entre os seus moradores. No Bairro das Marianas, em Carcavelos, e do outro lado, na ribeira de Sassoeiros, os prejuízos também foram consideráveis. Em Queluz, o rio Jamor em fúria criou uma noite apavorante. Na Avenida Elias Garcia, todo o lado direito de um prédio de quatro pisos desmoronou-se como se fosse um castelo de cartas. Houve mortos a lamentar. Registaram-se também inundações nas zonas baixas de localidades na margem sul do Tejo, como Almada, Barreiro, Costa de Caparica, Porto Brandão, Cova da Piedade, Trafaria, Torre da Caparica. A zona mais atingida foi a Trafaria, que sofreu enormes danos devido às fortes correntes de água e de lama que destruíram barracas de gente pobre, rojando os seus despojos pelas áreas circundantes. Os bairros de Romeiras e de Santa Marta ficaram devastados. Naqueles locais viviam centenas de famílias em habitações precárias que rapidamente foram destruídas pelo forte caudal de água e de lama, obrigando os seus moradores a fugirem para as zonas mais altas, para não se afogarem. Algumas das barracas de madeira onde viviam, não resistindo à pressão da corrente, foram arrancadas do solo e ficaram a boiar naquela pasta de lama. Outras foram levadas pela própria corrente, percorrendo dezenas de metros. Muitas famílias ficaram desalojadas. As cheias no Ribatejo eram um fenómeno comum do qual decorriam fortes prejuízos para os camponeses. Sistematicamente eram necessárias medidas, tais como desassoreamento dos rios e a construção de diques, registavam-se reivindicações e alertas, mas a incúria do governo fascista prevalecia. Em 1967, Salazar gastou 257 mil contos com despesas da NATO e cerca de 7 milhões de contos com a Guerra Colonial e a repressão. Também nesse ano, 600 mil contos foram para a Base Aérea de Beja, construída em 1964, para serviço dos alemães. Já de 1946 a 1967, a média anual de despesas do Estado com a habitação foi de 2126 contos. Em 1965, o valor caiu para 992 contos (menos de 5 mil euros). Ou seja, nada sobrou para regularizar as águas do Tejo ou acudir à população afectada. Há quem diga até – e o site abrilabril.pt recorda-o – que se sabia que chuvas rápidas iam verificar-se, mas esperava-se que ocorressem no mar, sendo que essa informação ficou reservada às forças de segurança e ninguém avisou a população do perigo que se avizinhava. Foi em Vila Franca de Xira que se encontrou o maior número de registos de mortes. Muito por via do que aconteceu na aldeia de Quintas. O livro de assentos da conservatória local totaliza 534 óbitos em 1967, dos quais mais de um terço faleceu na fatídica noite de 25 para 26 de Novembro. No pequeno concelho de Arruda dos Vinhos, dos 85 habitantes que se finaram naquele ano, uma dezena (12%) tem como data de morte o mesmo dia. Aí verificou- se também a destruição de casas, a queda de uma ponte e danos estruturais numa outra, prejuízos severos no sistema de abastecimento de água e nos esgotos. Arruda dos Vinhos ficou isolada durante 48 horas, sem água, nem luz. Em Alverca, a primeira vítima foi o aspirante a bombeiro Zé Carlos Basílio, 14 anos, que acorrera à zona baixa da vila para acudir a um pedido de ajuda. Segundo o depoimento de um soldado da paz mais velho de alcunha Maniá (Agostinho Silva), o miúdo-herói ficou soterrado quando o muro do adro da igreja desabou. No livro A Noite Mais Longa, de Alberto Santos, José Leitão Lourenço e Raquel Raposo, pode ler-se que nem uma única cave ou estabelecimento foram poupados: «Na própria vila, alagada pela ribeira de Santa Sofia, a situação também era caótica, com estragos como nunca se vira. Para mais, aí começaram a recolher os corpos das vítimas do concelho que já somavam 84 ao fim da noite de domingo, dia 26, depositadas no cemitério, no hospital e na igreja matriz». Diz o Século Ilustrado: «No cemitério, na Misericórdia, repetiam-se a todo o momento as cenas lancinantes do encontro de um cadáver de um familiar, de um amigo. Mas dezenas de outros corpos não tinham quem vertesse uma lágrima por eles: toda a família perecera». Este concelho tem três grandes bacias hidrográficas que escoam para o Tejo: o rio da Ota, o rio Alenquer (que passa pelo meio da vila) e a ribeira de Santana Carnota, que se junta ao rio Grande da Pipa e desagua na vala do Carregado. Estas duas últimas linhas foram problemáticas. Reza uma acta da Câmara Municipal de Alenquer: «Uma torrente de água, pedra e lama em tempo algum registada que, afogando inúmeras pessoas, destrói e arrasta tudo quanto se opõe à sua passagem e submerge a zona baixa da vila de Alenquer, além das povoações da Carnota, Refugiados e Cadafais. Da breve permanência desta avalanche, excedendo os três metros de altura, ficou um volumoso depósito de lama e materiais arrastados para cuja remoção foi necessário mobilizar, durante muitos dias, o trabalho de milhares de pessoas e de todas as máquinas disponíveis nas redondezas.» O documento prossegue sublinhando a escassez de mão-de-obra e de recursos financeiros para responder «à situação de catástrofe». Como selê em A Noite Mais Longa, também nesta vila «a acção do homem potenciou claramente os efeitos do volume anormal da chuva. Uma das mais salientes, porque próxima da ocorrência da tragédia – notícia de imprensa, digna de louvores, felicitações e agradecimentos públicos – foi a construção de uma represa, concluída a 25 de Julho de 1967, no rio Alenquer. Embora a construção da represa se baseasse em razões estéticas (melhorou o aspecto do rio) e higiénicas (obrigou a desviar as saídas dos canos de esgoto, desaparecendo o péssimo cheiro e as melgas e os mosquitos), o que é certo é que os entraves que colocou ao escoamento das águas da cheia tiveram efeitos perniciosos.» Também a construção da chamada Ponte de Refugiados foi um problema: «Quando a chuva aumenta e começa a transportar consigo materiais sólidos arrancados a montante (nomeadamente os que foram carreados do cemitério da Carnota), os pilares dessa estrutura impediram a sua passagem. Aos poucos foi-se formando uma represa significativa que, quando rebentou, levou consigo tudo o que estava na frente: detritos acumulados, pedras, madeiras, árvores, ervas e lixo amalgamados num caudal enorme de água turva e revolta. Claro que os muros e as casas próximas do leito exíguo da época estival não constituíram adversário à altura para a força da cheia. Arrastadas na corrente, serviram de túmulo a alguns dos infelizes ocupantes.» Em Alenquer, o relógio do Banco Fonsecas & Burnay parou nas 3h05, altura em que as águas atingiram os três metros de altura. O caos instalou-se naquela agência bancária. As cheias provocaram igualmente danos brutais em fábricas e outros locais de produção: num aviário morreram seis mil galinhas. Conforme se observa em A Noite Mais Longa: «Num hino fantástico de apego à vida, a história da senhora que a cheia arrastou para o topo da placa de entrada do jardim municipal [actual Parque Vaz Monteiro] e que, cercada pelo turbilhão revolto das águas, qual frágil embarcação em mar alteroso, não se cansou de gritar por socorro durante toda a madrugada sem que ninguém pudesse socorrê-la, impedido pela escuridão e pela violência da torrente! Finalmente, ao nascer do sol, pôde ser resgatada, exangue e desfalecida, mas viva! (…) A força, a destreza e a solidariedade de Mário de Matos Pires que, do café A Nau, repentinamente inundado, arrancou à morte por afogamento alguns clientes, incluindo os que, saídos do Alenquer-Cine, aí se acoitaram para fugir à chuva, içando-os, agarrados a uma mangueira, para o andar superior.» A fábrica de papel da Ota ficou com muito material destruído. A água começou a invadir o edifício e a exercer uma pressão crescente sobre o pavimento e as paredes. O chão acabou por ceder e, na derrocada, arrancou máquinas, derrubou as paredes e arrastou tudo à frente. A todo o comprimento, cerca de 30 metros de edifício, as estruturas anexas e os equipamentos fabris foram levados pela torrente. As bobinas de papel de grandes dimensões, as máquinas com toneladas de peso, os cilindros das calandras «pesando cada um mais de mil quilos» (segundo A Verdade, jornal da região), navegando em conjunto com os destroços do edifício, abalaram, em raiva, rio abaixo, deixando, atrás de si, um rasto de destruição bíblico. A fábrica usava como matéria-prima a água, porque trabalhava com trapo que, para ser transformado em papel, requeria toneladas de água. O rio tinha um açude a montante e um túnel por baixo da fábrica para captar a água para a laboração. Na noite em que o céu desabou, esse açude cedeu, a água rebentou pelo túnel, levantou o soalho e arrasou a fábrica. A tal maquinaria pesada, de centenas de quilos, veio por ali abaixo, estourou a ponte do Largo de Santa Isabel e entupiu a ponte do Espírito Santo. Acabou por se formar uma represa e a água perfez uma altura incrível num ápice. Na vila, cortada pelo rio Alenquer, subsiste uma casa velha na Rua de Triana com as marcas das várias cheias. A de 1967 é a mais alta: 3 metros e 7 centímetros, medida a partir do nível da estrada. Já se fosse medida a partir do leito do rio seriam uns seis metros de altura. Todo o centro ficou submerso, como mais uma vila afundada. Os bombeiros foram obrigados a sair com os carros do quartel, pois este ficou completamente alagado. Como se pode ler no Diário Popular, na madrugada, o holofote da Base Aérea 2, montado no largo fronteiro à câmara, mostrou a baixa transformada num imenso rio de águas revoltas e turvas. Na escuridão, erguiam-se gritos e pedidos lancinantes de socorro, um auxílio tornado impossível pela violência e altura da corrente. Com o amanhecer do dia 26 de Novembro, a luz do sol «veio trazer, na vila destroçada, um raio de esperança aos desamparados da noite mais longa», revelando simultaneamente os escombros da intempérie enraivecida, as perdas, os prejuízos, as faltas. E faltava tudo: água, luz, comida, vestuário e abrigo. João Mário Oliveira, então presidente da câmara, seguia num jipe militar, de portas de lona. A corrente ainda seguia forte, desfilavam detritos boiantes, até que algo bateu na chapa. E voltou a bater. Parecia uma criança. Seria o cadáver de um bebé, como já se tinha achado? Com tanto pânico quanto coragem, meteu a mão na água. Era uma santa. Foi uma descoberta um pouco bizarra, ali no meio de tanta aniquilação, aparecer uma figura religiosa, uma espécie de sinal de esperança. Mais tarde, a estatueta seria avaliada por um antiquário – era um pequeno tesouro do século XVIII. O edil colocou um anúncio no jornal e lá apareceu o dono, que se tornou abade por doar a santinha a Alenquer. Passou a padroeira. A Noite Mais Longa também conta como João Mário Oliveira, seguindo nesse jipe militar, encontrou cinco mortos, uns em cima dos outros. «A senhora safou-se porque estava encostada à parede. Os outros, como a água subiu muito rapidamente, não conseguiram sair e foram para cima de uma mesa. Já não tinham pé porque a água já tinha inundado a casa. Entretanto, a mesa adornou e eles já não conseguiram subir para o primeiro andar. A senhora, essa ficou entalada entre um móvel e a parede. Ficou suspensa com a cabeça no ar, desmaiada! Quando a água desceu e se tirou o móvel, o corpo caiu. E, como pensavam que ela já estava morta, o seu corpo foi colocado na pilha, juntamente com os outros. Estava já para ir para o cemitério. Mas quando eu olhei, pareceu-me que estava a respirar». Que teria acontecido se João Mário Oliveira não tivesse percebido que ainda estava viva? A mulher que tinha perdido o marido e os filhos acabou por ser socorrida e foi mais tarde empregada como telefonista na câmara, onde, como sublinhou o seu presidente, saiu só para ser reformada. Maria Lúcia Massano, a sobrevivente que perdeu o marido e os seus quatro filhos, diria ao Diário de Notícias: «Quando me apercebi que chovia muito e comecei a ouvir estrondos na rua, fui acordar o meu marido. Em casa só eu estava acordada. Os meninos dormiam. Sempre juntos, eu e o meu marido fomos buscar os meninos. Pegámos nos três mais pequenos ao colo pois a água rapidamente subiu. Andámos sempre juntos, sempre juntos. De repente, deu-se a derrocada do muro do quintal. Nessa altura a água chegava até ao pescoço. Depois não sei o que aconteceu. Lembro-me de que os meninos me saíram dos braços. Nunca mais os vi. Só acordei no hospital.» E quando despertou teve que reconstruir toda a sua vida, aceitar que toda a sua família fora dizimada, recomeçar de novo. Dilemas terríveis não faltaram em Alenquer. Em Cabanas do Chão, um pequeno lugar, uma jovem mulher afogou-se, deixando o marido sozinho com as duas filhas pequenas. A água foi subindo até ao telhado, onde havia um poste. Com o nível sempre a aumentar, o pai trepou por esse poste, mas como não podia levar as duas filhas, teve de escolher. Levou uma consigo e a outra desapareceu imediatamente. Quase um mês mais tarde, o seu cadáver apareceu num canavial. Pode alguém sobreviver a uma opção destas? Pode algum pai adormecer ou acordar o resto da vida com outro pensamento que não este?Os grandes produtores do trauma reuniram-se todos nessa noite das Grandes Cheias: o acontecimento foi súbito e profundo, não havia experiência semelhante prévia, perdeu-se o controlo da situação, verificou-se exposição à morte, a destruição foi extensa e duradoura, e os dilemas morais dilacerantes, como o desse pai que, como se uma tragédia grega ele mesmo escrevesse, escolheu uma das filhas para salvar. A uma deu a vida duas vezes. A outra viu nascer e deu à morte. Mário Sampaio era comerciante de tecidos e recordou, em A Noite Mais Longa, que só sobreviveu porque, in extremis, rebentou um muro perto de onde estava e a água desceu. Humberto Real perdeu uma bebé de 8 meses e nunca, mas nunca, conseguiu superar. Madrugada sem fim. José Lourenço, então com 20 anos, recorda a pujança das águas: «Isto nem que fosse o maior barco, não se aguentava nesta corrente! Nem o maior barco se aguentava! Era de uma violência, uma coisa absolutamente impressionante.» Carlos Cordeiro tinha 33 anos e era solicitador: «Via passar carros, via passar frigoríficos, via passar pessoas.» Hélder Casimiro estava de serviço no Regimento de Artilharia Ligeira de Lisboa (RAL1), no dia 26 de Novembro: «Cheguei ao quartel com dificuldade e fui destacado com um grupo de soldados para Alhandra onde o comboio tinha sido travado pela enxurrada. Não sei quantos mortos eram, mas vi, pelo menos, duas camionetas cheias de corpos que eram amontoados nas caixas de carga.» Em Alhandra, a catástrofe só não foi maior porque um maquinista parou o seu comboio em frente ao local onde o rio jorrava, dando tempo à população para procurar abrigo. A composição n.º 184, de mercadorias, que vinha do Entroncamento com destino a Santa Apolónia, «serviu de parapeito à gigantesca enxurrada», relatou o Diário Popular, acrescentando que: «A pesada composição suportou o maior choque da enorme avalancha de água, que consigo trazia num pandemónio destroços de casas e, pior ainda, diversos corpos de pessoas.» De Alhandra é a actriz Maria João Luís. As Grandes Cheias dizimaram 30 dos seus familiares. «Eu tinha 3 anos, ia fazer os 4 em Dezembro. As pessoas falavam de uma onda. Devia ser realmente uma onda que já vinha carregada com lixo e os detritos todos, que arrasou tudo por onde passou», lembrou à TVI. Foi assim que perdeu a avó paterna. «A única memória que tenho é de estar fechada dentro de um quarto onde iam umas tias ter comigo volta e meia e davam-me de comer. E lembro-me dos gritos. Esses nunca mais saíram da minha cabeça. Nem os gritos, nem o cheiro», recordou. «O meu pai esteve três dias com a cabeça entre as mãos, na sala. De cada vez que passava para ir à casa de banho via o meu pai na mesma posição. E as pessoas que iam chegando a casa, em gritos, primeiro a dizer o que se tinha passado e depois a dizer que tinham encontrado corpos.» Foi a dor da gente que não sai no jornal, como cantava Chico Buarque, foi o desamparo sem nome, o desespero em surdina. «Houve um senhor que me ligou há dias, não sei se isto será assim ou não, a dizer-me: “Maria João, eu estive lá a recuperar corpos. Às vezes tínhamos que ir buscar os carros acima das árvores”, onde estavam as pessoas mortas lá dentro. Imagina o que isto foi. Ele falou-me de 890 pessoas, que foram as que foram contabilizadas», desabafou. Nos anos seguintes à tragédia, Maria João via o pai a dedicar uma música à falecida mãe no Natal. «Toda a família chorava.» Era o fado «Aquela Azenha Velhinha», história do moleiro que é levado na vaga impiedosa com o seu menino nos braços. Já em 2019, João Monge escreveu um texto, chamou-lhe Noturno para voz e concertina, e José Peixoto compôs a música para três contrabaixos. Maria João Luís urdiu o lamento em voz alta, interpretou e encenou este capítulo da história contemporânea de Portugal que também se agarra à sua própria pele. Este é um poema narrativo na boca de uma menina cuja família ficou sem nada. Só com um fio de voz. A pequena aldeia de Quintas, situada num vale próximo de Castanheira do Ribatejo e lugar de gente pobre, de muitas cabanas sem esgotos, com telhas sem forro e chão de terra, foi praticamente destruída pelo aluvião que sobre ela se abateu, com as águas do rio Grande da Pipa a encharcarem as suas margens, transformando-a num pantanal e necrópole de famílias inteiras. Fernanda Silva conta que foi em Quintas que perdeu Elvira, uma querida colega da fábrica de confecções onde trabalhava, às portas de Castanheira: «Recordo-me perfeitamente, eu era encarregada nessa fábrica e ela chamou-me e disse-me: “Sabe, hoje estou muito feliz porque consegui arrendar casa e já posso marcar a data do casamento.” Isto foi no sábado de manhã; à noite aconteceu aquela tragédia e ela morreu na barraca com os pais e um irmão», lembrou Fernanda Silva ao site abrilabril.pt. Lê-se em A Noite Mais Longa: «Guerra próxima aconteceu em Quintas. Uma avalanche de água, inimiga cobarde, atacou a população a meio da noite e cobrou dezenas de vidas. As imagens e os depoimentos dos sobreviventes correram mundo e fizeram páginas nas mais conhecidas revistas europeias como a Life e a Paris Match». O Século assegurou que morreram mais de metade dos seus 200 habitantes. Hoje, calcula-se que o número de mortos tenha rondado a centena, entre os já identificados e os por identificar. A aldeia morreu. Era uma terra de primos, com relações familiares múltiplas, como um grande clã. Os sobreviventes perderam dezenas de parentes, entre pais, filhos, tios e primos. Quando os bombeiros chegavam às casas onde havia mortos, olhavam impressionados para as marcas de mãos sujas de lama nas paredes, sinais das tentativas desesperadas mas infrutíferas para alcançar o telhado das habitações. Eram as impressões digitais do fim, de quem já tinha a morte na retina. Havia de tudo na aldeia morgue – um casal e duas meninas no telhado de uma barraca, presos por uma corda uns aos outros. Partiram unidos. Os bombeiros iam às casas, tiravam os corpos, amontoavam-nos junto ao chafariz. E dali levavam-nos para Vila Franca de Xira nos camiões da câmara, para serem preparados para os funerais. Um a um, os cadáveres retirados das habitações ou resgatados das águas foram sendo alinhados, todos muito juntos, no largo da aldeia para serem lavados da lama – famílias inteiras deitadas lado a lado, em cima dos escombros, no meio de caniços e raízes de árvores extirpadas. O Século conta a história de Maria Angélica. O seu primo Rui, de apenas 12 anos, foi apanhado pelas Grandes Cheias dentro de casa. Ficou preso num compartimento com a prima e a água subiu até ficar a 10 centímetros do tecto. O valente miúdo lá se foi aguentando, segurando-se aos móveis enquanto procurava agarrar também a prima. Com a água já a descer muito lentamente, pôde então assentar definitivamente os pés num móvel e largar Maria Angélica. Infelizmente a luta fora vã, a menina tinha morrido entretanto, sem que Rui tivesse dado por isso. Sobreveio com uma morta nos braços, passou muitos anos com uma estranha dormência a formiguejar-lhe os bíceps, como se fossem membros fantasma. E eram. Dizia o presidente da Junta de Freguesia de Castanheira do Ribatejo, numa entrevista ao jornal Solidariedade Estudantil: «Tivemos de desenterrar os mortos no domingo, e segunda-feira estivemos a lavar mortos desde as 9 horas da manhã até às 4 horas de terça-feira, e admite-se que ainda haja mortos. Nas Quintas não há feridos: há sobreviventes que estão capazes e há famílias inteiras mortas. Já há mortos com muitos bichos, não são bichos do corpo, são bichos, lagartixas, minhocas que saem pelos olhos, pelo nariz dos mortos. Eram 4 horas da manhã quando acabámos o último dos 110 mortos. Além da febre tifóide, deve haver muitos casos de pneumonia aí pela rua. Porque esta gente, eu vi-a embrulhada no dia seguinte em sacos encharcados.» Outro habitante de Quintas recordou ao jornal Público que «a água era como uma pessoa a subir escada acima. Aquilo nem era bem água, era mais um líquido leitoso». Os mortos amontoavam-se às dezenase, no dia 26, começam as operações de remoção dos cadáveres: «Iam às casas, tiravam os corpos, punham-nos no chafariz amontoados, como se fossem sacos de batatas. E dali levavam-nos para Vila Franca», contou outra testemunha ao mesmo jornal. Alguns tentam aproveitar-se da catástrofe, fazendo- se passar por familiares dos mortos: «Muitas pessoas vinham, como se fossem famílias das vítimas, à procura de ouro.» Nessa aldeia, Olímpio da Costa Vicente vivia com a mulher, duas filhas, os sogros, irmãos, sobrinhos. Uma família grande numa casa pequena, como tantas vezes sucedia. Quando todos dormiam, um fluxo acastanhado rebentou com portas e janelas, deixando todos sufocados. Olímpio tentou apanhar as filhas e a mulher, sem sucesso. No último minuto, quando o nível das águas sujas já roçava o tecto, lá conseguiu fazer um buraco no telhado e fugir. Na manhã seguinte, os bombeiros encontraram as três abraçadas, num canto. Os cadáveres dos demais parentes acabariam por aparecer misturados no entulho. Ao jornal O Século, esse pai perdido contaria que ainda ouviu uma das filhas a implorar-lhe «Pai, salva-me!». Foi a última vez que Olímpio falou da tragédia. Também Joaquim Letria lembraria à SIC que uma das coisas que mais o impressionou foi ver as pessoas mortas abraçadas. E não só mães com os seus filhos, mas homens abraçados a homens, vizinhos, desconhecidos, inimigos até. Para o jornalista foi o que mais o fez reflectir, até hoje, sobre a natureza da humanidade. Ninguém esperava que a água entrasse de rompante e que, em poucos minutos, levantasse as camas até ao tecto. Mariana Guerra escapou porque morava nos Casalinhos e não «na baixa». Aos 29 anos fez o funeral da irmã que quase contava 31, e dos três sobrinhos, o mais novo com 19 meses. Afastou com as mãos a lama para encontrar a trança da irmã. Maria Emília estava junto à porta do seu quarto. À sua frente, o filho bebé, depois as duas crianças. «O berço do meu menino estava marcado no tecto, e ele estava ao colo da mãe, portanto ou a água entrou ou ela abriu a porta a pensar que podia sair. Os dois mais velhinhos estavam dentro da cozinha, dali não saiu ninguém», relatou ao Diário de Notícias. «Estava um arame entrançado na trancinha dela. Era tudo lodo. Então, limpámos muito bem a carinha. E eu disse: “Olha a minha irmã está aqui’.”» Mariana contou tudo ao jornal Público em diminutivos para anestesiar o calvário, e de olhar fixo, olhar que vê o que diz. Mostrou, compungida, as fotografias desmaiadas da mulher bonita e dos seus filhos de cabelos lisos e olhos grandes. O cunhado estava em Castanheira do Ribatejo, onde tinha ido trabalhar. Quando voltou, alarmado com as poucas notícias que lhe iam chegando, não encontrou ninguém vivo. Toda a família dizimada. Imagina-se a dor deste homem, a mulher e os três filhos asfixiados por lama, na sua ausência, sem que lhes pudesse valer. Hoje mora no Bairro Calouste Gulbenkian, em Quintas, um dos conjuntos habitacionais que a respectiva fundação construiu para os desalojados da calamidade de 1967. Já quase não vive lá ninguém «daquele tempo» – como se aquela memória pudesse sumir, desvanecer e depois eclipsar-se, conforme desejou e planeou Salazar. João Manquinho, então com 24 anos, lembra-se «de ir ao Largo da Misericórdia, onde está uma igreja antiga, e ver as camionetas a chegarem das Quintas com a aurora a romper, cheias de cadáveres inchados, disformes e cheios de lama, com expressões de aflição e em posições dramáticas», contou ao site abrilabril.pt. Não eram apenas corpos de gente que partira serena, de mãos dadas com os filhos e olhos nos olhos dos seus amados – eram vidas ceifadas em agonia, cadáveres em posições de fuga e esgares de terror, corpos desfigurados por terem dormido com o inimigo, flutuando nessas águas logo que as bactérias ficam activas, libertando os gases e fazendo com que deixassem o fundo, passando a estar à superfície, de barriga para baixo, nuca exposta. Quando se achava um morto, a primeira coisa a fazer era virá-lo para cima, encarar o seu rosto e fechar as suas pálpebras – soslaio de defunto teme-se mais do que mau-olhado. Luísa Fajardo, aos 13 anos, perdeu quase tudo. A irmã, os avôs e umas dezenas de primos e tios. Foi o enxurro do rio Grande da Pipa que sufocou num mar de lama quase toda a aldeia. Agora mora numa das encostas que vão dar à várzea, a zona plana no vale alagado naquela noite longa. «Quando amanheceu é que a realidade apareceu. Esta várzea parecia prata e completamente vazia. Espraiou com o entulho. Era só lixo, canas, animais e pessoas que estavam todas dentro de casa a dormir.» Teresa, a irmã 14 catorze meses mais velha, ficara, como de costume, a dormir em casa dos avôs, na parte baixa da aldeia de Quintas, junto ao rio e à escola, a dois passos da ponte. Naquela noite, Luísa queria também pernoitar no aconchego da avó, mas esta não deixou, acabando por ficar antes na casa dos pais, umas ruas acima. De madrugada, a mãe jurava que ouvia gritar. O pai tentou descer várias vezes, tentou ir lá ver se estavam todos bem, Teresa e os velhotes, sem que a água e as terras o deixassem passar. Na manhã em que o sol revelou o fim do mundo, o pai foi lá baixo e voltou outro homem. «A casa nem telhado tem, não está lá nada dentro», terá balbuciado. A irmã, a menina-nenúfar nua, apareceu nesse domingo, a avó na segunda-feira e o avô nove dias depois, relatou Luísa ao Diário de Notícias. Em toda a aldeia, famílias inteiras tinham perdido a vida, afogadas dentro de casa. «De manhã, quando começaram a retirar os corpos, estiveram à minha porta, em cima de taipais que o meu pai tinha descarregado à noite, 27 cadáveres.» Eram umas cercas de madeira que o pai trouxera da fábrica da Ford – e que nunca mais voltou a usar. Já o número 27 não esqueceu. Luísa continuou a ter de atravessar aquela passagem todos os dias, a cruzar aquela cripta durante anos. Apesar de ter decorrido mais de meio século, lembra-se até das posições dos corpos. «Percebia-se que muitos tinham sido apanhados a dormir, tal a rapidez com que tudo aconteceu.» «A minha mãe ficou sem saber fazer nada. Passava as noites inteiras a chorar e de dia só queria estar no cemitério. Eu tive de crescer e ser mulher à força», recordou Luísa Fajardo, aos 63 anos, ao jornal Expresso. A irmã Teresa ficou para sempre como menina- mulher. Para ela e para o seu obstinado relógio, o tempo parou. Luísa virou adulta de um dia para o outro. O tempo acelerou. Vestiu-se de preto dos pés à cabeça, lenço de luto no cabelo, e passou a assumir a casa, porque os pais estavam sepultados vivos, soterrados em dor. Logo que os cadáveres foram enterrados e as limpezas dadas como feitas, o punhado de vivos caiu no vazio. Como dizia a alentejana Florinda, mãe do soldado caído, já não sabiam onde respirar. Caixão em vida, opressão, saudade e trauma. Todo o trauma. «O negro permaneceu na aldeia muitos anos. Oito ou dez, pelo menos, tanto nos homens como nas mulheres. Conforme o tempo passava, maior era a saudade. Nós a querer fazer a nossa vida, casar, ter filhos, netos, a querer compartilhar isso e a não ter com quem. Ninguém conseguiu ultrapassar, nem mesmo ao fim de 50 anos.» Só muito depois é que Luísa se apercebeu da dimensão nacional da catástrofe. Até tarde na sua vida, tinham sido as inundações na sua aldeia, o sítio onde nascera e onde morrera uma boa parte da sua família. E já não era pouco. Só mais tarde passaram a ser as Cheias. Mas talvez ainda espere que todo o País as conheça como as Grandes Cheias de 1967. A escritora Alice Vieira tinha então 24 anos e estava a descobrir «essa extraordinária aventura do jornalismo”», como relatou ao Jornal de Mafra, «e de repente entrava-me pelos olhos dentro uma catástrofe que tinha a ver com miséria, com um completo desrespeito pelas leis naturais, com um território perfeitamente desordenado e caótico – e com uma censura tão cerrada que nos queria impedir de dizer sobre isto uma palavra que fosse», recordou. «Nas Cheias de 1967 aldeias inteiras, na periferiade Lisboa, desapareceram do mapa. A aldeia de Quintas foi uma delas: eu estava no que, ainda dias antes, tinha sido um lugar povoado – e que agora, diante dos meus olhos, era apenas um lamaçal a perder de vista. As casas, as ruas, tudo tinha sido levado pela violência das águas. Enfiávamos as mãos naquele mar viscoso e cinzento e as nossas mãos vinham carregadas de animais mortos.» Joaquim Rodrigues, aos 88 anos, recordou: «Aqui, onde agora funciona uma oficinazita que está aberta aos fins-de-semana, morava a irmã da minha mulher, mais um filhote de 9 anos e o marido. Ficaram os três lá dentro. Ao lado, moravam os tios da minha mulher. Ficaram lá os dois. Aqui em frente havia uma viúva mais uma filha de 17 anos. Também ficaram lá as duas. A seguir outra viúva, que morreu também. Nesta terrinha pequena, morreram 93. Ficámos muito poucos», contou ao jornal Expresso, apontando, uma a uma, com a voz embargada, as casinhas do largo. O «Quim» lembra-se todos os dias do que aconteceu. É uma ladainha, durante anos e décadas seguidas. A eternidade e um dia. E de todas as vezes debulha-se num pranto. Vivia com a mulher e o filho de 11 anos naquele mesmo largo, numa dessas frágeis casas de adobe, com um único quarto. O rapaz já dormia no sofá da sala quando, pela meia-noite, o casal se foi deitar. A mulher, ou «camarada» como sempre lhe chamou, olhou pela janela. Chovia muito. «Ainda bem que estamos todos abrigados», terá suspirado. Pouco depois, a água rebentou a porta. «Ai, nossa senhora, o que é isto?», gritou a parceira. Foram as últimas palavras que lhe escutou. «A minha mulher levantou-se rápido para ir buscar o candeeiro a petróleo e nunca mais a vi. Agarrei o moço, consegui pôr uma mão na greta que faltava para tapar a porta e lá conseguimos sair os dois. Nesse momento, a água já estava mais alta do que a porta e ajudou-nos a subir para o telhado. Tirei três ou quatro telhas para ver se ia buscá-la, mas a água já ia até ao sótão. Pensei: “O que é que lá vou fazer? Ela já está morta.” Era tanta lama e tanta lenha, tanto lixo e tanta coisa que ela não teve hipótese.» Joaquim e o filho ficaram agarrados a um barrote do telhado até a aurora se dignar, encharcados em barro e em carpidos. A noite estava escura e gelada, saturada de uivos e gemidos. Passado algum tempo, os últimos gritos calaram- se. «Ficou até um sossego. O que é que interessava estar a gritar? Já não havia solução.» As águas são sempre símbolo e experiência de fluxos primordiais indiferenciados ou, como diz Auden, um estado de vaga desordem bárbara do qual a civilização emergiu ou na qual submergirá. Os habitantes de Quintas que o digam. Cicatrizes sujas é o que não falta nessa aldeia. A escola ficou pela metade e assim continua, ruína viva. Há um memorial com os nomes das vítimas da aldeia gravados, uma Rua 26 de Novembro de 1967 – fronteira entre sobreviventes e mortos – , uma pleonástica placa de mármore «memória toponímica» gravada com uma breve descrição do que ali se passou. Todos os anos a povoação assinala a data. Chegou a ser feriado, mas agora já não é. Tudo passa, o tempo muito apaga e há que esquecer. Ainda se considerou a hipótese de levar milhares de animais mortos (vacas, carneiros, galinhas, burros, cavalos e outros) para Santarém, para serem transformados em adubos, mas rapidamente se chegou à conclusão de que não se dispunha das imprescindíveis condições. Ademais, ainda não era tempo de retomar a vida normal. A água engarrafada esgotou rapidamente nas lojas. Era necessário ferver toda a água de consumo para fins alimentares durante 15 a 20 minutos, não se podiam consumir vegetais crus provenientes das zonas inundadas e era obrigatório enterrar os mortos longe dos cursos de água, de poços ou de fontes. Também era urgente proceder-se à vacinação em massa contra o tifo. Tanto a fazer. Em Castanheira do Ribatejo, Fernanda Silva assistiu a 17 funerais. Recorda, no entanto, que «a gente não podia entrar no cemitério». As tragédias dão cabo do tecido social, rebentam com rituais e liturgias, implodem a organização civilizacional. Os funerais eram colectivos, ritos fúnebres em grupo, famílias ao molho, cortejos partilhados. Todos tinham defuntos, todos tinham mortos a sepultar. Chegados aos cemitérios, os caixões a passar para debaixo da terra eram tantos que «tínhamos de ficar longe porque o chão estava tão instável que eles não queriam ninguém a passar onde fizeram os buracos porque aquilo podia ruir», explicou Fernanda ao abrilabril.pt. Enterros sem privacidade, sem intimidade, sem despedidas finais, sem o último adeus. PARTE II GOTA NO OCEANO Inicialmente, o regime não teve noção da catástrofe. O ministro do Interior, Santos Júnior, revelou como primeira preocupação «providenciar que o serviço de repressão à mendicidade recolha os sinistrados nos estabelecimentos a seu cargo (albergues).» Lá iriam mais camiões para a Mitra criminalizar a pobreza. Surpreendido pela violência das águas, pelo empastado de lama e pela catástrofe humanitária, no começo o Estado Novo ficou apático, sem capacidade de resposta, sem conseguir elevar-se à altura que o cataclismo exigia. Depois, a partir do dia 27 de Novembro, as reuniões governamentais, os comunicados à imprensa, as conferências das instituições oficiais, os discursos prometendo auxílio, as visitas dos ministros aos concelhos castigados, pareciam contas de rosário e desfiavam-se com fastio. Faltou reacção, resposta, intervenção. O povo não precisava de palavras vãs ou de assembleias em gabinetes. Necessitava de acção imediata, de socorro e de salvamento. Apareciam mortos por todo o lado, desalojados, feridos, doenças à coca da sua oportunidade no meio do lodo, fome, miséria e pesar. O que as gentes de Loures, Odivelas, Oeiras, Alenquer ou Vila Franca de Xira ansiavam era encontrar os seus entes queridos desaparecidos, sepultar as crianças e os velhos perdidos para o dilúvio. Queriam tecto para pernoitar, chão para reabrirem as suas lojas e pequenos negócios. Precisavam de recomeçar. Pediam paz. O primeiro movimento do executivo de Salazar verificou-se no dia 26, com uma nota à comunicação social, informando que o chefe do Estado estava a acompanhar a situação e que estaria prevista a visita do presidente da República, almirante Américo Tomás, aos lugares mais atingidos pelas cheias. Ainda nessa mesma data realizou-se uma reunião inter-institucional que juntou os ministros do Interior, das Corporações e da Saúde, o governador Civil de Lisboa, o director-geral da Assistência e os presidentes de vários municípios. O mês de Dezembro traria outras reuniões semelhantes, focadas principalmente no realojamento das populações que haviam perdido as suas casas. No dia 27 de Novembro, as autoridades começaram a visitar os concelhos mais atingidos. Como tinha sido anunciado, Américo Tomás passou por Loures, Vila Franca de Xira e Alenquer, acompanhado pelo ministro do Interior, pelo comandante da GNR e outras autoridades. Um despacho ministerial com essa mesma data determina que as instituições de Previdência devem proceder à organização das ajudas a conceder, nomeadamente auxílios às situações extremas, recorrendo aos Fundos de Assistência. Os beneficiários da Previdência Social que tivessem ficado sem casa deveriam ser realojados em «habitações de renda económica» (bairros sociais) ou gozar de apoio à construção de novas habitações. Mas, nesse mesmo dia, as autoridades ainda não tinham percebido com clareza (nem queriam perceber ou que mais alguém entendesse) que, num par de horas, a água apanhara milhares de pessoas como se fossem insectos. Só à medida que os corpos se apinhavam e que as equipas de salvamento iam refazendo as contagens é que o governo começou a adoptar medidas de urgência sanitária, como o enterro de pessoas e animais, a maior parte das vezes sem as formalidades habituais. Sem rituais, cortejos ou despedidas. Como muitas vezes sucede em situações de catástrofe, o tecido social esboroa-se, a coesão deslaça, as rotinase as liturgias – com todo o simbolismo e efeito organizador e estruturante que encerram – desmaiam e chegam mesmo a sumir. O desaparecimento de rituais contribui para um maior enfraquecimento dos laços sociais, agravando o mal-estar das populações. Entra-se num círculo vicioso, num vórtice do qual é difícil sair e recuperar, no redemoinho do trauma. Estava anunciado para o dia 30 de Novembro um discurso de Salazar ao País. Criou-se, quer entre partidários quer entre opositores, uma certa expectativa. O momento nacional era de consternação e, naturalmente, todos os ouvidos se inclinavam para escutar o máximo responsável pelo País. Que diria Salazar da tragédia? Que medidas proporia? Quatro dias depois, que palavras iria dirigir aos que haviam perdido família, filhos, casas, sustento? E aos que tinham perdido toda e qualquer esperança? Cem horas depois daqueles rolões de barro, o Tejo já baixara expondo o esqueleto da sua devastação e as pessoas já não estavam apenas incrédulas ou em choque. Estavam rasgadas. Anunciou-se o discurso de Salazar ao País. Os portugueses pairaram, em silêncio, atentos, à espera. O ditador discursou na Biblioteca da Assembleia Nacional (onde é hoje o Parlamento) e em nenhum momento da sua prédica fez uma única referência à calamidade que se abatera sobre o povo. Nem uma sílaba. Nem um minuto de silêncio. Nada. Rigorosamente nada. Onde estava uma frase de conforto ou uma linha de empatia pelos que tinham amanhecido sem nada? Como era possível tamanha frieza? Salazar não desvalorizou ou relativizou. Salazar não negou. Salazar fez pior do que tudo isso: desprezou. É evidente que, nessa data, o presidente do Conselho já tinha consciência da magnitude e do impacto das Grandes Cheias de 1967. E, por isso mesmo, ignorou totalmente o sucedido. Era como se o não-dito não existisse, como se o desdém pela verdade o apagasse. O que não se vê não se sente. A maior censura do Estado Novo não foi riscar palavras, notícias de jornais, livros ou reuniões, canções ou teatros. Entre os meninos de sua mãe caídos nas ex-colónias e esquecidos nesses solos como se fossem lixo ou os mortos sem nome e sem enterro das Grandes Cheias, sem sequer número, a maior e mais pesada censura de Salazar foi à existência, à vida. O ditador proibiu a realidade. Nascido no seio de uma família remediada numa vila beirã, o déspota conheceria (ainda que talvez não na pele) o que eram a míngua e a penúria. Mas nunca quis olhar para baixo. E talvez tivesse começado por interditar a sua própria história. António de Oliveira Salazar, acompanhado por Joaquim Moreira da Silva Cunha, ministro do Ultramar, entrou na sala sob os aplausos entusiastas de diferentes individualidades. Começou por discursar o presidente da Câmara de Lourenço Marques, sublinhando com fulgor a gratidão, o respeito, o reconhecimento e até mesmo a veneração das populações de Moçambique por Salazar, o desejo de saúde e vida longa que formulavam ao ditador. Este perorou então longamente sobre a África afro-árabe, a «África tipicamente africana» e a África euro-africana ou do Sul. Perguntou quanto tempo seria necessário para cessar o terrorismo e respondeu que, quando o Ocidente compreendesse que estava a ser minado em África, mudaria a atitude perante esse continente. A assistência aplaudiu de pé, Salazar agradeceu, levantou-se e conversou com Silva Cunha. Cumprimentou mais algumas personalidades e, finalmente, deixou a sala. Grandes Cheias de 1967? Nunca tinham existido. A imprensa afecta ao regime esqueceu as fotografias dos bairros alagados, as imagens dos mortos, as entrevistas aos desalojados e a comoção dos relatos da tragédia. Curvou-se perante Salazar. Prestou-lhe homenagem. O seu discurso foi considerado pelo jornal O Século como histórico, um modelo de bem pensar e de bem falar, ao abordar de «forma tão clara» a «missão civilizadora» que Portugal estava a desenvolver em África… Ainda assim, outros órgãos de comunicação social apelaram no sentido de que fosse decretado luto nacional, um sinal mínimo de respeito e consideração por todos os que tinham morrido e todos os que estavam ainda dobrados sobre os caixões. O luto nacional, tal como numa situação pessoal, é um período de solidariedade e pesar para com alguém ou algo, estendendo-se a todo o país e sendo anunciado relativamente a figuras de grande importância ou devido a acontecimentos excepcionais. A medida mais conhecida – e também a prevista pela legislação portuguesa – é a colocação da bandeira nacional a meia haste. Embora não exista legislação que obrigue ao cancelamento de festividades e cerimónias, é habitual a sua suspensão ou adiamento por uma questão de respeito ao enlutamento. Mas, mesmo perante diversas solicitações, Salazar quedou-se mudo e quieto. Ele que, uns anos antes, decretara luto nacional pela morte de Adolf Hitler resguardava-se agora no manto da indiferença. De facto, a 2 de Maio de 1945, dois dias depois do suicídio de Hitler com um tiro na boca, no seu bunker em Berlim, Portugal – apesar de, alegadamente, ser um país neutral – esteve de luto pelo líder nazi. Salazar estava ao corrente dos campos de extermínio de minorias e também conhecia os esforços de diplomatas portugueses, como Aristides Sousa Mendes ou Sampaio Garrido, para salvar judeus, dando-lhes passaportes e protecção diplomática. Mesmo assim, nessa Primavera do fim da Segunda Guerra, o presidente do Conselho ordenou a colocação das bandeiras a meia haste pela morte de Hitler, um chefe de Estado estrangeiro. Esse luto português, que se prolongou por oito longos dias, provocou uma onda de protestos internacionais e grande sobressalto interno. Passado esse período, Salazar decretou que não se fizessem mais referências públicas ao assunto que tinha sido «malevolamente explorado». Claro. O problema não eram as torturas, as câmaras de gás, a barbárie no meio de nós. A questão era a discussão política em torno do luto decretado a Hitler. Fim da discussão. Perante as centenas de mortos nas Grandes Cheias tudo o que lhe interessava era pugnar pela imagem que sempre quisera vender do país para vergá-lo como plasticina: país-presépio, o povo é sereno, Portugal dos brandos costumes. E assim foi. Seria necessário que passassem mais sete anos para que os portugueses se revoltassem. E sabe-se lá quantos serão precisos para que, finalmente, o Estado reconheça que os milhares de pessoas atingidas são figuras de importância ou que as Grandes Cheias de 1967 foram acontecimentos excepcionais. Entretanto, o povo agoniava no lodo. Nem o poder central nem o poder local, à época altamente dependente do primeiro e sem sombra de autonomia, eram capazes ou estavam preparados para enfrentar o colapso. Socorro para os sinistrados? A ajuda oficial, contando com alguns contingentes militares, pouco ou nada interveio, e quem esteve desde o primeiro dia no terreno foram os bombeiros, os estudantes, muita gente boa e solidária. O regime assentava numa lógica assistencialista. Não havia Estado Social, tal como fora construído por toda a Europa do pós- guerra e em Portugal só depois do 25 de Abril de 1974. Até certo ponto, o Estado Novo aliava-se às ideias de Beveridge, que denunciara na Grã-Bretanha «o escândalo da miséria», mas continuava a manter a assistência pública nos mínimos. A Constituição Portuguesa de 1933 não incluía essas prioridades, apesar de atribuir ao Estado um papel coordenador das actividades sociais na defesa da saúde pública e na melhoria das condições de vida das classes sociais mais desfavorecidas. A assistência era deixada, assim e em primeiro lugar, ao espírito caridoso dos portugueses e à iniciativa particular – só depois competia ao Estado. Ou seja, no limite, a protecção dos mais desfavorecidos era jogada ao livre-arbítrio da beneficência particular e ao facultativo da solidariedade. Se o pobre fosse honrado, talvez tivesse sorte. Talvez. Se tivesse uma placa e fosse um miserável homologado, um indigente legítimo, subserviente, de bolso vazio e espinha dobrada, talvezbocarra imunda. Louca de dor, cega pelo desespero, brava, ainda tentou lançar-se para o apanhar, mas foi impedida por uma filha mais velha que percebeu que, assim, ficaria sem ambos. Nessa noite, a enlutada perderia ainda outras duas meninas e a dor haveria de furar com a mesma violência do que aquela voragem líquida. Só que, dias mais tarde, milagre. Um jornal publicou a fotografia de um bebé salvo pelos bombeiros nessa madrugada criminosa que, considerado órfão, tinha sido entregue à Misericórdia para adopção. Imaginem-se os olhos em estado de graça daquela mulher vazia quando se detiveram nessa folha de jornal. Desejo? Engano? Feitiço? Aquele era o seu bebé, o bebé que deixara cair na monstra da noite cerrada. Era mesmo, não sobravam dúvidas. Como foi possível? Que aconteceu? Ainda hoje não há uma explicação única, mas o mais provável é esse menino ter tombado sobre uma tábua ou num qualquer destroço das barracas a boiar na corrente e ter assim escapado, sobrevivido ileso, ainda que o caudal fluísse agreste. Não importa. Estava vivo, inteiro, à espera. Era um Moisés, nome que significa «tirado das águas». Segundo o Livro do Êxodo, esse profeta foi adoptado pela filha do faraó que o encontrou dentro de um cesto, enquanto se banhava no rio Nilo, educando-o na corte como o príncipe do Egipto. E este? Seria também criado por ricos? Mãe e pai, acompanhados de vizinhos-testemunhas, foram buscar o seu milagre de seis quilos, mas a Misericórdia não queria deixá-los levá-lo. A identidade não era questão. O problema era que já havia casais «de doutores e engenheiros» dispostos a ficar com ele e a proporcionar-lhe uma vida que a sua família jamais lhe poderia oferecer. Golpe à garganta. Cresceria este Moisés português no palácio, como o original? Nessa noite, dezenas de pessoas foram apanhadas de olhos fechados. A tromba de água chegou desleal, tapou-lhes bocas e narinas rasgando o breu, e, na confusão de um despertar súbito, tudo se transformou num pesadelo. No último pesadelo. O afogamento acontece quando a água entra em contacto com as vias aéreas da vítima. Em risco, fica-se em grande esforço físico e, claro, em intenso stresse emocional provocado pelo medo. A resposta consciente imediata é tentar segurar a respiração. A aflição é tremenda. A laringe, que inicialmente se fecha como mecanismo de defesa, acaba por relaxar e engolem-se grandes quantidades de água. Parte do líquido vai para o estômago e o restante faz o caminho do ar que, normalmente, respiramos: segue pela traqueia e chega aos pulmões, passando por brônquios, bronquíolos e alvéolos. Com o pulmão ensopado, a entrada de oxigénio e a saída de carbono deixam de funcionar. A redução de ar causa danos em todos os tecidos, principalmente nos que dele mais precisam, como o cérebro, que fica lesionado, deixando a pessoa inconsciente. Depois, a água passa dos pulmões à circulação sanguínea, altera a carga eléctrica osmótica, acabando por impedir a transmissão dos impulsos nervosos e, assim, a contracção muscular. O coração pára. Em geral, o afogamento é rápido e não chama a atenção, diferente do que se vê nos filmes. Eficaz. Ao contrário do que se verifica actualmente, à época os assentos de óbito incluíam obrigatoriamente a causa da morte. Nas centenas registadas a partir de 27 de Novembro de 1967, há três tipos de causas imputadas às Grandes Cheias: «submersão acidental» provocada por «inundação», «afogamento»; e «soterramento» causado por «avalancha». Visto que se conduziram poucas autópsias, os médicos que certificaram os óbitos quase sempre preferiram acrescentar um ponto de interrogação em frente à razão apontada. Como relata o jornal Expresso, José da Mota e Silva, de 33 anos, foi dos poucos autopsiados. Encontrado em Odivelas e transportado para o Hospital de Santa Maria, o legista não teve dúvidas sobre a causa da morte: «asfixia por submersão acidental». Já no soterramento tanto há obstrução das vias aéreas superiores – com edema da glote – como se verifica a obstrução indirecta, com o impedimento dos movimentos dos músculos respiratórios. Uma das mais excruciantes mortes que um ser humano pode sofrer. Os sinais externos desse final, observáveis no rosto da vítima, são a cianose facial (coloração azulada), a protusão da língua (fica de fora), o cogumelo de espuma (bola de finas bolhas de espuma a cobrir a boca/fossas nasais) e as equimoses conjuntivas (sangramentos nos olhos). Teresa Fajardo, a menina-nenúfar. Fajardo. Significa aquele que rouba de forma engenhosa. Mas, nesta história, Fajardo foi quem foi furtado, vítima de um ardil, de uma emboscada. Roubado em vida, sobrevivendo à pobreza. Esbulhado na morte por um país que não quis saber. Morreu a Teresa Fajardo, flor do pântano, corola nua. Mas morreram também os seus avós e um rosário de primos na povoação de Quintas, que ficou então conhecida como Aldeia Mártir. Mas mais parecia a Aldeia Morgue, onde já só se contavam os vivos (morreu uma centena dos 156 habitantes) e poucos sobraram para contar esta história, capítulo da maior catástrofe natural em Portugal depois do terramoto de 1755 de Lisboa. Da serra de Albarracim até ao Atlântico, o Tejo guarda mil e sete quilómetros de contos e uns quantos segredos. Dele se partiu para o Mundo. Dele se fez o Mundo. Curso de água doce, por vezes a parecer águas ácidas, o maior rio ibérico foi palco, mas também a vedeta, de alguns dos mais fantásticos episódios da História de Portugal. Marinheiros, guerreiros, revolucionários, todos passaram pelo Tagus, cuja geografia foi leito da vida – da agricultura à aventura –, ou delta de poetas como Lord Byron ou Bocage, gerando fábulas e muito mistério. Mas também já foi poço da morte de muitos homens, mulheres e crianças – nele se viveram as maiores calamidades naturais na região de Lisboa: o famigerado terramoto oitocentista, o ciclone de 1941 e as Grandes Cheias de 1967. O cataclismo foi abafado por Salazar. O Estado Novo, que então oprimia Portugal, pretendia projectar uma imagem de um país- presépio, onde a noite tem estrelas pastoras, reis doadores, abrigo, calor e amor. Nesse quadro não havia território para a madrugada raivosa, para chuvas assassinas, para o desamparo e a desesperança. Fome e morte tinham de ser afogadas também. Só que essas águas malditas, que comeram bairros inteiros, acabaram por ser igualmente desprezadas pelo novo regime que, depressa, não quis mais saber. Dilúvio de 1967. Dilúvio sem Deus. Nesse ano, o Vietname fazia as gordas de todos os jornais. O Diário de Notícias de dia 26 de Novembro anunciava uma sexta- feira negra, na sequência de um recorde de vendas de ouro. A Guerra Fria evaporava em terra, mas gladiava-se no espaço, com os EUA e a URSS a rivalizarem e a perderem astronautas. Em Janeiro de 1967, um incêndio na nave Apollo I matou os tripulantes Virgil Grissom, Edward White e Roger Chaffee. Em Abril, um desastre com a nave russa Soyuz-1 vitimou Vladimir Komarov, seu único ocupante. Hoje é nome de uma cratera na Lua. Os primeiros computadores, a primeira pílula anticoncepcional, os primeiros bebés-provetas, os primeiros transplantes de coração. Primeiros, primeiros; Portugal em último. O País embrutecia com baixos níveis de escolaridade e elevadas taxas de mortalidade infantil, vivia ainda sob o jugo de um verdugo, arfando atrasado, com emigrantes em fuga de malita de cartão, em busca de um pouco mais, um pouco melhor. Deux valises en carton sur la terre de France / Un Portugais vient de quitter son Portugal / Comme tant d’autres il est venu tenter sa chance /Le Portugais qui a quitté son Portugal, cantava, melancólica, Linda de Suza. Portugal vergava-se sob o regime de partido único e finava-se na tirania da Guerra Colonial iniciada em 1961, estúpida e absurdamente anacrónica quando comparada com a descolonização que varria a Europa, isolando o país internacionalmente. O regime espancava pessoas até à morte, privava os seus presos políticos de dormir até os levar à loucura ou ao fim, assassinava. Mantinha a PIDE, asim. Ou talvez não. Já se fosse pobre e mal-agradecido, rebelde, revoltado, ou simplesmente curioso; se fosse um ser pensante, o destino estava marcado. Não havia critérios de acesso a apoios, regras para subsídios ou normas para assistência de qualquer espécie. Não havia previsibilidade ou homogeneidade. Eram os indivíduos humanitários e filantropos que, cada um pela sua cabeça e seguindo os parâmetros que muito bem entendessem, ajudavam quem queriam e quando queriam. A assistência era uma lotaria. Educação pública, segurança social ou serviço nacional de saúde eram coisas que nem se supunham, embora muitos já aspirassem a esses bens e eles florescessem por toda a Europa. Instituto de Assistência à Família, Ministério das Corporações e Previdência Social, Ministério da Saúde e Assistência. Na altura deste Dilúvio sem Deus, o regime já tinha operado várias reformas sobre a sua capacidade de assistência e multiplicava-se em organismos, tudo serôdio e ineficaz. Máquinas carcomidas e burocratas com sobreposição e duplicação de funções, cujas premissas assentavam numa lógica corporativa, enredando-se num sistema labiríntico e legalista que, claro, foi incapaz de dar resposta quando a chuva tudo levou. O Ministério da Economia criou uma Comissão de Apoio aos Sinistrados com a função de conceder subsídios e empréstimos aos comerciantes e à população atingida pela catástrofe. Muito se poderia contar sobre essas ajudas com juros. Por exemplo: Manuel dos Santos, era um jovem residente no Casal das Andorinhas, Odivelas, e foi uma das vítimas das inundações. Em carta exasperada suplicaria: «A residência onde habitávamos ficou destruída perdendo todos os nossos haveres, escapando-se apenas a roupa que trazíamos no corpo. Dirijo-me ao Exmo. Sr. Ministro do Interior para que Sua Excelência interceda junto das Entidades Oficiais que intervêm na construção de bairros e casas para serem distribuídos às vítimas das inundações apelando à sua generosidade no sentido de interceder para que me seja concedida uma moradia onde possa viver.» O pedido não foi atendido e o caso foi arquivado. A mulher de Manuel dos Santos veio mais tarde a falecer na sequência de ferimentos graves sofridos nas Grandes Cheias. Muitos outros calavam-se. O medo estava sempre lá, como um nevoeiro teimoso, uma bruma permanente, meio invisível, mas que turvava todos os gestos. E temia-se o pior. Se já se estava pobre e só, abrindo-se a boca, rebelando-se contra institutos, ministérios e previdências, maldizendo Salazar e a sua perfídia, esconjurando o Estado Novo, corria-se o risco de ficar ainda pior. Caladinhos, sentadinhos e quietinhos é que tinha de ser. Pobres, mas honrados. Ainda que os prejuízos tenham sido calculados em três milhões de dólares a preços da época (cerca de 20 milhões na moeda actual), numa nota oficial, divulgada pela imprensa a 30 de Novembro, o governo não assumiu qualquer verba extraordinária para socorrer as vítimas, referindo que seria com o orçamento normal de cada ministério que se faria face às despesas geradas pela catástrofe. Mais a mais, a estimativa dos ditos 20 milhões é desafiada por vários investigadores por pecar por defeito e muitos apontam para o dobro do valor – no mínimo. Foi igualmente anunciado que a Caixa Geral de Depósitos estava autorizada a conceder empréstimos aos municípios das regiões atingidas pelas cheias, nas condições mais favoráveis de juro e amortização. Todavia, esses empréstimos atingiram a ridícula soma de 70 mil contos que voltaram a entrar nos cofres das câmaras municipais e que, afinal, contas feitas, foram pagos pelo povo, sob a forma de novas alcavalas, de novos impostos. Os trabalhadores de Odivelas, do Ribatejo, da Trafaria, de Algés, as viúvas e os órfãos, os sem-abrigo e os famélicos, os indizíveis pais e mães de filhos e filhas mortos nas Grandes Cheias de 1967, todos eles ficaram sem legitimação e sem apoio. Reféns de limbo, a viver nessa coisa que, como descrevia um testemunho, «não se sabe se aconteceu porque ninguém fala disso». Ficaram mortos- vivos. LUTA NA LAMA Na primeira edição do dia 26 de Novembro, a capa do Diário de Lisboa titulava: «Chuva e morte: mais de 200 vítimas». Quatrocentos e vinte e sete mortos, indicava o Diário de Notícias a 29 de Novembro de 1967, pouco antes de a Censura ter imposto a cessação da contagem pública. Esse elemento explicará o facto de a aritmética dos mortos ter sido interrompida alguns dias após a tragédia, quando esses números ainda não estavam fechados e persistiam acções de auxílio no terreno. Vejamos. Os dados oficiais começaram por sinalizar 250 vítimas mortais, mas essa cifra foi sendo atualizada à medida que eram feitos mais macabros achados. Na edição de 28 de Novembro, o Diário de Notícias reportava que o número de mortos era de 316. A 29 Novembro, o mesmo jornal fazia já referência a 427 vidas perdidas, pouco antes de o governo ter imposto a tal paragem dessa mórbida contabilidade. Por sua vez, O Século avançava com o número de 458 mortos na edição de 4 de Dezembro. No dia 5 de Dezembro, o jornal actualizava esses três algarismos para 462, marca que acabaria por ser a definitiva, segundo imposição do governo. Os números oficiais falarão, portanto, de 462 vítimas mortais. Foi onde parou o seu relógio. Eis um dos expoentes máximos de qualquer ditadura: determinar quantas pessoas morreram, independentemente do real número de baixas. Certo é que ainda hoje não se sabe com rigor quantas pessoas se finaram naquela tragédia. Uma semana depois ainda se retiravam alguns cadáveres das lamas acumuladas em Algés ou noutras localidades e continuava-se a falar de vários desaparecidos que teriam sido arrastados até ao rio Tejo. Em vez de se homenagear cada um dos mortos, nomeá-los, respeitá-los, a ditadura meteu a mordaça na comunicação social, regateou contagens, aldrabou. Começou aí a barragem ao luto familiar e colectivo que, depois, vedou uma compreensão compartilhada sobre a morte. O jornalista Pedro Alvim, que esteve no terreno com Joaquim Letria, escreveria uma tocante crónica no Diário de Lisboa, intitulada «Os Mortos e os Fósforos», que começava assim: «Era ao cair da tarde – e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados, compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno. Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades. Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos. Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize. ‘Se tu és João” – dizia para mim –, “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”» A citação desta peça jornalística está bastante estafada, mas o que talvez não tenha ainda sido suficientemente sublinhado é que o jovem repórter logo intuiu o imperativo civilizacional de dar nome, rosto e história a cada um dos finados. A pandemia do Covid-19 tornou-nos mais conscientes das disputas em torno destas contagens de mortos, da politização destes processos, das manobras de diversão, mas, na verdade, Pedro Alvim teve o pressentimento do que viria a suceder e do enterro da memória que se seguiria. Mas, afinal, quantas vidas se perderam naquela noite? O contador de Salazar parou nos 462, hoje há quem aponte para os 700/800 mortos mas, na verdade, terão sido mais de um milhar. Recorde-se a tragédia de Entre-os-Rios. Em Março de 2001, numa noite de temporal, a Ponte Hintze Ribeiro colapsou. Inaugurada em 1887, fazia a ligação entre Castelo de Paiva (distrito de Aveiro) e a localidade de Entre-os-Rios(concelho de Penafiel). O Porto dava os primeiros passos como Capital Europeia da Cultura. A paisagem do Douro também aguardava para ser considerada Património Mundial da Humanidade. Do acidente resultou a morte de 59 pessoas, incluindo os passageiros de um autocarro e três carros que tentavam alcançar a outra margem desse curso fluvial. Triste sina. Uma excursão às amendoeiras em flor acabou no fundo do rio revolto. O desastre levou à responsabilização do governo de então, por deficiente fiscalização, e o ministro do Equipamento Social da altura, Jorge Coelho, acabou por demitir-se. Afinal, a estrutura do século XIX, inicialmente edificada para carros de bois, suplicava obras profundas havia muito tempo. Só que, construída longe dos centros de poder, acabou esquecida e não aguentou o peso do tempo. Lá ia por água abaixo a imagem do país resplandecente saído da Expo’98. O executivo decretou dois dias de luto nacional. Cinco anos depois, os engenheiros da ex-Junta Autónoma de Estradas, que conheceriam bem o risco que corriam os pilares, eram absolvidos no único processo que corria nos tribunais e que os acusara de violação de normas técnicas. Esta calamidade criou uma nova expressão: a Síndrome de Entre- os-Rios, que significa o interior esquecido, desdenhado pelo poder central, isto é, outra variante do impacto assimétrico das tragédias. No caso das Grandes Cheias de 1967, foram as zonas pobres da Grande Lisboa e arredores que sofreram, ainda que as piores chuvas se tivessem feito sentir no lustroso Estoril. Em 2001, foi o interior que foi deixado para trás. E talvez assim continue. Note-se que, neste caso, já no século XXI, em democracia, foi preciso esperar quase 20 dias para que as equipas de salvamento conseguissem localizar o autocarro nas curvas do Douro – e a maioria dos cadáveres nunca foi recuperada. Das 59 vítimas, 36 continuam ainda hoje desaparecidas, já que apenas 23 corpos acabaram por ser resgatados. A violência do caudal e as fortes correntes faziam crer que os corpos pudessem ser arrastados para longe da Hintze Ribeiro. E, de facto, por exemplo, quatro dias após a queda da ponte, quatro mortos deram à costa nos mares do norte da Galiza, onde ainda se encontraria uma mochila e bancos À do autocarro. À dor da tragédia somou-se a angústia do luto pelos desaparecidos, obrigando a um complexo processo para que tudo pudesse ser regularizado do ponto de vista legal. Ou seja, em Entre-os-Rios, nem sequer metade dos cadáveres foram encontrados. Assim, se nas Grandes Cheias os números oficias pararam em 462, quantas pessoas morreram na realidade? Ainda hoje há polémica entre os especialistas sobre esse cifra negra. Abílio Rodrigues da Silva, o já referido bombeiro voluntário de Odivelas, garante que os números oficiais estão errados: «Porque ainda hoje há lá corpos enterrados. Os que lá ficaram. Porque foram casas inteiras levadas com as pessoas lá dentro, gente que depois ninguém reclamava», porque tinham vindo de longe para a cidade e «ficou lá a família toda», declarou à revista Sábado. Ou seja, muitas famílias tinham vindo da ruralidade, viviam nos arrabaldes, meio clandestinas, e naturalmente não foram procuradas por ninguém. De resto, mesmo que tenham sido… se o regime escondia os combatentes que tinham dado o peito às balas na Guerra Colonial – num combate que tantos repudiavam –, se decretava o congelamento da contagem de perdas humanas nas Grandes Cheias, então também não seria capaz de camuflar as vozes de quem procurava familiares desaparecidos? Que recursos, já nem falando no tal medo que tudo tolhia, tinha alguém a viver numa aldeia em Trás-os-Montes ou no meio do Alentejo para procurar tios sumidos algures em Odivelas ou Vila Franca de Xira? Na recordação do jornalista Joaquim Letria, partilhada na RTP, «o que aconteceu com as cheias é perfeitamente incrível… havia discrepâncias no acesso à informação, o Ministério da Saúde dava uns números, o Ministério do Interior dava outros... durante muitos dias nós não pudemos dizer que morreram 700 ou 800 pessoas e que havia outras tantas desaparecidas». O tal lugar das Quintas é um triste topónimo a fixar, como dito, já que a vertiginosa subida das águas engoliu quase metade da população. O jornal Expresso contabilizou 85 óbitos na conservatória de Vila Franca de Xira, entre as quais duas famílias de quatro pessoas. Na hierarquia da desgraça, seguiu-se o Bairro de Santa Maria, na Paiã (Pontinha, Odivelas), com 22 mortos registados na 8.ª Conservatória de Lisboa. Mas atenção: tratava-se de povoados de muita miséria nos quais, frequentemente, nem é possível apurar elementos básicos como a naturalidade, estado civil, filiação e descendência de muitos defuntos. Depois, bebés e crianças por registar (mas também por vacinar, medir, pesar ou medicar) eram muitos nessas décadas de obscurantismo em pleno século XX. Além da Conservatória de Cascais, no livro de assentos de Oeiras nada consta – os mortos deste concelho foram levados para a morgue, em Lisboa, razão pela qual figuram na 8.ª Conservatória. Constarão todos? Que percentagem? O livro de assentos de Benavente também é omisso, apesar de esta localidade se situar defronte de Vila Franca de Xira (e ser percorrida pelo rio Sorraia). O jornal Expresso constatou que nas Conservatórias de Azambuja, Cadaval, Salvaterra de Magos e Torres Vedras não há igualmente registo de vítimas mortais, embora não restem dúvidas hoje em dia que muitos perderam por aí as suas vidas. Isto não significa, como se disse, que não haja mais mortos noutros concelhos do vale do Tejo e na Margem Sul. Seja como for, e como disse o geógrafo Fernando da Silva Costa, «permanece por contabilizar com rigor o número de vítimas mortais». Sem essa pesquisa prévia, nas conservatórias, arquivos, câmaras e cemitérios – um trabalho necessariamente de equipa –, todos os números avançados não passam de simples cálculos e estimativas. E mesmo depois de concluído e varrido todo esse levantamento, a margem de erro permanecerá elevada. Setecentos, ainda assim, parece um diagnóstico conservador. Houve cadáveres que nunca foram descobertos. Quantos, é completamente impossível saber. Fernanda Silva, então a morar na Castanheira do Ribatejo, assume que os números nunca estiveram correctos. «Na aldeia de Quintas, o número não está correcto de certeza porque eu sei de uma família de Coimbra, um casal e dois filhos pequenos, que tinha vindo passar o fim-de-semana com familiares que tinham ali e também morreram», revelou ao site abrilabril.pt. O já referido A Noite Mais Escura, livro sobre as Grandes Cheias em Alenquer, por exemplo, refere o caso de um menino de 1 ano que jamais foi resgatado, mas cujo óbito foi certificado pelos próprios pais. Muitos cadáveres ou ficaram submersos na lama ou foram levados pelas turbulentas águas do Tejo – tal como aconteceu em 2001 na tragédia de Entre-os-Rios. A partir do momento em que entraram no Tejo, a força irresistível da corrente, numa noite terrivelmente chuvosa e negra, arrastou velozmente os cadáveres para o infinito e para a eternidade do Atlântico. Aliás, não é por acaso que só foi localizado um corpo nas águas desse rio: de um homem «a respeito do qual se ignoram todos os elementos de identificação» (e por essa razão apontado como «desconhecido»), achado na tarde de 18 de Dezembro entre Figueirinhas e Faial (Vila Franca de Xira ) «deitado de bruços sobre umas pedras» e, claro, já em avançado estado de decomposição. Depois, convém sublinhar que às mencionadas causas directas de morte (afogamento, soterramento e asfixia), haverá a acrescentar as causas indirectas. De facto, nos assentos correspondentes aos meses posteriores encontram-se várias centenas de óbitos atribuídos a pneumonia, broncopneumonia e infecções agudas das vias respiratórias. Sendo estas umas das principais causas de morte em Portugal (ainda actualmente), não deixa de ser verdade que a chuva, o frio e a humidade que se seguiram à intempérie, a gritante falta de condições sanitárias e as deficitáriasrespostas de saúde pública constituíram um caldo propício à difusão daquele tipo de patologias. Há ainda e forçosamente, dezenas de casos como a mulher de Manuel dos Santos, de Casal das Andorinhas, que viria a partir dias depois, não sobrevivendo aos ferimentos causados pela catástrofe. Setecentos mortos? Verdade é que todas essas mortes indirectas também nunca entraram nos sinistros balanços. Portanto, entre os cadáveres levados pelo rio e jamais reclamados, os que pereceram de doenças associadas e ferimentos e os que foram ocultados, mil mortos não pecará por excesso, certamente, e o facto de as contagens serem sempre tão conservadoras permitem perceber o desprezo a que as Grandes Cheias e as suas vítimas foram sujeitas. Mas há mais. Muitos óbitos foram anotados numa conservatória que não a de direito. Da mesma forma, até existirão cadáveres sepultados sem que o óbito tenha sido previamente atestado por um médico e tenha sido lavrado o correspondente assento. São conhecidas as circunstâncias absolutamente excepcionais em que os corpos foram empilhados como sacas de ração, em quartéis de bombeiros, igrejas e largos de aldeias, antes de serem enterrados à pressa nos tais funerais colectivos que logo adulteravam a ancestralidade desses ritos, a sua importância para a elaboração da perda e para a maturação social e psicológica. Portanto, o contexto foi completamente anómalo e, mesmo por uma questão de saúde pública, nem sempre foram observados os regulares protocolos burocráticos. De resto, o próprio Código do Registo Civil, que convenientemente entrou em vigor nesse mesmo ano, englobava um artigo (art. 256º) que decretava que, havendo risco para a saúde pública, consentir-se-ia o enterramento sem previamente se fazer o registo do óbito. Logo, era legal colocar cadáveres a sete palmos abaixo da terra sem lavrar qualquer assento. Sendo assim, só a tal busca pelos cemitérios deste País, só um escrutínio laborioso, permitirá encontrar os mortos nessas condições. O que, como mencionado, e como comentou uma conservadora, implica «um trabalho muito disperso e nunca acabado.» Perante a imposição da Censura, três jornalistas do Diário de Lisboa decidiram investigar. Joaquim Letria, Pedro Alvim e Fernando Assis Pacheco foram contar os mortos. «Era a única forma. Andámos a correr as casas mortuárias, as morgues, a contar. E chegámos a perto dos 700», comentou Letria ao Diário de Notícias. Mesmo que se volte aos arquivos, às tumbas e às morgues, nunca será possível determinar com exactidão – e com a consideração que cada uma dessas vítimas mereceria. O primeiro registo tem morada em Sintra: Emanuel de Jesus Ribeiro da Silva, uma criança de 7 anos que vivia em Queluz, vítima de «asfixia respiratória por submersão acidental». O último registo foi o de Elvira Baptista Cacilhas, de 47 anos, residente em Sobral de Monte Agraço. O cadáver só foi descoberto cinco meses depois da tempestade: às 15h de 30 de Abril de 1968, no Caminho da Cruz, Arruda dos Vinhos, por onde passa o rio Grande da Pipa, o que mais vítimas deglutiu. Da listagem de óbitos, supostamente apenas dois não foram identificados, aparecendo sob a designação genérica de «desconhecidos». Ambos do sexo masculino, descobertos já em Dezembro em Vila Franca de Xira. Um «foi encontrado nu e sem qualquer objecto que pudesse servir para facilitar a identificação». O outro foi o tal cadáver que apareceu no Tejo e vestia «apenas uma camisola, cuecas brancas e uma camisa de tecido militar». Muitos dos corpos, com efeito, foram levados na torrente dos numerosos rios, ribeiros e riachos que cruzam o território, quase todos alimentando o Tejo. Cachoeiras, Ossos, Ota, Lages, Algés, Jamor, Frielas, Carenque, Odivelas, Trancão, Grande da Pipa, Alenquer, Vala do Carregado – são alguns desses cursos de água, que, de súbito viram o seu caudal espessar como uma lava gelada, galgaram o leito e ganharam uma força hercúlea. Morreu gente de todas as idades e oriunda de todo o País. Perderam a vida 14 crianças de um ano ou menos, incluindo uma menina de um mês, Maria do Rosário da Costa Oliveira, afogada em Carenque (Belas). A vítima mais velha tinha 88 anos: Adelina da Conceição, que faleceu na aldeia de Quintas. País de intensa migração interna, encontraram-se mortos provenientes de todo o território nacional: Ponte de Lima, Trancoso, Oliveira de Azeméis, Cuba, Barreiro, Portimão, Madeira, Açores. Até cidadãos estrangeiros. Muita gente pobre, vinda de zonas interiores também depauperadas, que haviam construído barracas com madeira e lata em chão de terra. Quem viria à sua procura? Quem os chorou? ÁGUAS PASSADAS Montanhas e planícies Tudo tornou-se um mar; E nesta cena lúgubre Os gritos que soavam Era um clamor uníssono Que a terra ia acabar («O Dilúvio», MACHADO DE ASSIS) Houve uma voz que nunca se calou, rompendo o espesso da noite e o silêncio do medo: o Rádio Clube Português. Segundo Rogério Santos, nessa estação «a informação foi permanente, o microfone quase sempre aberto, os telefones constantemente ocupados. Trabalhou-se à luz de uma vela, quando faltou a energia na cidade. O gerador de emergência dos estúdios era apenas suficiente para manter em funcionamento a cabine de locução e a respectiva regência técnica. Esclareceu-se, apelou-se, orientou-se. E, na manhã seguinte, quando o dia clareou, embora o cansaço estivesse patente em cada elemento do serviço de noticiários, transparecia em todos a satisfação de mais uma vitória no sector da informação» (blogue Indústrias Culturais). Ainda a água não tinha baixado, já havia uma guerra política que passou o nível do rés-do-chão. Grau zero. De um lado, encontrava- se o regime ditatorial consagrado em 1933, e que atravessaria boa parte do século XX com uma considerável capacidade camaleónica. Impunha fortes limitações à liberdade de expressão e de associação – interdição de partidos políticos, prisão de opositores, proibição ou manipulação de eleições – e exercia a censura prévia aos jornais e a outras publicações periódicas. Do outro lado da barricada, entrincheirava-se a oposição, o Partido Comunista, as Esquerdas, os estudantes e uma comunicação social que queria voar, como o Rádio Clube Português. Claro que o fenómeno das Grandes Cheias foi apropriado por estes «campos inimigos», produzindo-se leituras antagónicas sobre o acontecimento. De um lado, o Estado e as organizações de socorro que colaboravam com o regime, como as da Igreja, focaram-se no impacto das causas naturais e construíram uma narrativa ancorada na imprevisibilidade, no fatalismo e nas operações para mitigar os estragos, que, supostamente, teriam sido de uma generosidade supra-cristã. Fado e caridade. Acontecera o que acontecera, nada podia fazer prever o sucedido, agora também o mal já estava feito e não adiantava chorar sobre leite derramado. Devia evitar-se o alarme social que em nada contribuiria para acudir aos diversos danos. Este ângulo das cheias rápidas de 1967 era uma evidente extensão da propaganda com que o Estado Novo procurava lavar os cérebros dos portugueses. Mas, neste caso, tinha uma consequência suplementar. Impedia o luto, barrava a transformação da dor quer individual quer colectiva, impossibilitava a aprendizagem com os erros (possivelmente uma das formas de evolução mais profícuas) e vedava possibilidades de fazer diferente. Já as várias oposições construíram enquadramentos que enfatizavam as causas sociais que originaram a destruição produzida pelas cheias. O que acontecera podia ter sido evitado, tinha havido incúria e negligência, erros grosseiros. Importava apurar os factos e a verdade. Expô-los era mandatório porque devia existir direito à informação. Denunciar para que não se repetisse, para que se pudesse, finalmente, prevenir. Salvar vidas. Duas visões antagónicas e logo a disputa pelo poder, o braço-de- ferro entre o verdugo e a oposição passou a assentar cotovelo nas páginas dos jornais, nos comunicados às populações, nas conferências de imprensa. Nas Grandes Cheias de1967, também os jornais mais próximos do regime colocavam a tónica no carácter inesperado da catástrofe e acentuavam a onda de solidariedade gerada. A leitura oficial do cataclismo, veiculada por essa imprensa ligada ao regime salazarista, atribuía a culpa do fenómeno às causas naturais que escapavam à vontade dos homens e que, por si só e em si mesmo, tinham gerado todos aqueles milhares de mártires. Era um discurso fatalista que menorizava o ser humano perante as forças da Natureza, ao mesmo tempo que enaltecia a suposta costumeira solidariedade dos portugueses, que se disponibilizavam para apoiar os que tinham perdido tudo, ajudando nos bairros, recolhendo géneros alimentares e outros bens, estruturando peditórios e organizando doações ou subscrições públicas. A nação sofrera a tragédia e a nação, unida em bloco, prestava auxílio. «Tudo pela nação, nada contra a nação», o aforismo oficial do Estado Novo, copiado de Mussolini, com que terminavam os próprios ofícios da burocracia. Esta era a narrativa que procurava a todo o custo – a custo até do respeito pelos mortos e seus familiares – esvaziar de conteúdo político e de transformação social a extensão e as causas da catástrofe. O Diário da Manhã, por exemplo, refere a «cadeia de solidariedade humana (…) sem distinção de classes», que havia significado a «vitória do homem, que a natureza tinha esmagado». O Ministério do Interior divulgou uma nota oficiosa em que destaca ser «a área atingida muito mais vasta, e somente a violência do fenómeno de carácter excepcional, registado nas horas dramáticas da noite de 25 para 26 de Novembro, pode explicar cabalmente a grandeza dos prejuízos causados». Também o Diário de Notícias, reflectindo sobre a tragédia num artigo intitulado «Autópsia de um Fenómeno», na sua edição de 5 de Dezembro, apontava como naturais as causas da tragédia, mas alargava a explicação do sucedido a outros motivos. No que concerne aos aspectos atmosféricos ocorridos, a região de Lisboa não teria sido vítima de uma tromba de água, mas do choque entre uma depressão – estacionária desde o dia 20 sobre a zona da Madeira, tinha-se deslocado, a partir de dia 24, em direcção à região de Lisboa – e um sistema frontal que precedia uma massa de ar polar, de origem marítima. O embate resultara numa queda da pressão atmosférica com acentuada precipitação, levando à catástrofe que atingiu Lisboa e arredores. Para além daquela extraordinária coincidência de factores adversos, o Diário de Notícias apontava para outras razões, relacionadas com a má gestão do território. «Perante a gravidade dos acontecimentos que ocorreram nas últimas 48 horas em Lisboa, perante as cheias que se verificaram, uma vez mais, em toda a cidade baixa e, particularmente, até nalgumas das zonas de norte – portanto, afastadas do Tejo e em cotas muito mais elevadas do que a sua margem –, ocorre-nos perguntar se não estará alguma coisa profundamente errada no sistema de esgotos da capital.» O jornal identificava algumas das eventuais dificuldades que prejudicavam esse sistema de saneamento, designadamente o défice de grandes colectores que escoassem as águas sujas da metrópole, posto que a prioridade era habitualmente concedida à construção das grandes avenidas e prédios luxuosos em detrimento dessas infra-estruturas. O Diário de Notícias esboçava ainda uma interpretação mais social do fenómeno, mas, para se manter dentro dos limites permitidos pela Censura (e daquilo que era a sua linha editorial), destacava a ligação entre o Estado e a Nação no suplantar da desgraça: «Não ousamos considerar a tragédia como específica prevenção ou particular castigo. Poupou os que mais seguramente vivem, quase apenas vitimando gentes humildes, destruindo casebres, utensílios de trabalhadores, roupas e móveis de pobres.» E ainda acrescentava: «Foi uma tragédia! O Estado interveio paternalmente. Enterrou os mortos com devoção e cuidará dos vivos devotamente. A Nação sem Estado nem caravana seria. O Estado sem Nação não passa de hipótese absurda.» A Juventude Operária Católica, habituada a questionar-se perante a vida a partir de textos religiosos, decidiu dedicar o n.º 1 dos seus Cadernos de Reflexão ao tema das inundações de Novembro de 1967, procurando uma explicação que permitisse aos seus membros alcançar um «visão global do problema», ou seja, «uma procura das causas». Os jornais Ribamar e o Notícias da Amadora, do concelho de Oeiras, prestaram igualmente testemunho do drama. O primeiro, de Algés, seguia a posição oficial marcada pelo fatalismo de uma Natureza Madrasta que fora cruel com as populações do concelho e de outras áreas da Grande Lisboa. O Notícias da Amadora, publicado no mês a seguir à tragédia, dava mais informações sobre os acontecimentos e assumia uma posição mais crítica, denunciando o problema da habitação, nomeadamente a existência de barracas, como um factor que, por si só, teria contribuído para tornar ainda mais dramática a tragédia que se abateu sobre as populações. Também o programa radiofónico PBX, produzido pelos Parodiantes de Lisboa e realizado por Carlos Cruz e Fialho Gouveia, se converteu num importante meio de informação entre as populações e as autoridades, chegando mesmo a ultrapassar o seu tempo normal de emissão. A 9 de Dezembro, o governo faz publicar na imprensa uma nota oficiosa, para «exprimir os agradecimentos» a «todas as entidades que desenvolveram acções de apoio às vítimas das cheias», como a Legião Portuguesa ou o Movimento Nacional Feminino. Mas mesmo o governo não deixa de reconhecer a dimensão do apoio dado pelos estudantes, aludindo, naquela nota, a «todas as boas vontades, designadamente as de estudantes, que espontaneamente se apresentaram» nos locais onde a enxurrada foi mais mortífera. A juventude mobilizou-se em massa. Homero Cardoso narra assim o seu processo de consciencialização social durante as Grandes Cheias: «Faço parte de um grupo que primeiro descobre a acção social, a luta pelos pobres oprimidos. Estava na Flama quando se dão as Cheias de 1967 e foi uma coisa que, até de um ponto de vista meramente jornalístico, teve um impacto muito grande na redacção da Flama e nas outras redacções. Quando as cheias acontecem, toda a gente aparece num instante na redacção da Flama. Andava toda a gente à procura do fotógrafo, o João Tinoco. Simplesmente, ele nem passara pela redacção, tinha ido logo a correr para lá. Apareceu mais tarde e tinha feito uma fotografia que seria premiada, de uma mulher que, no meio daquela desgraça toda, tentava salvar o seu aparelho de televisão. Tínhamos uma equipa óptima na Flama e chegámos até a enfrentar a Igreja, porque esta queria que nós imprimíssemos na União Gráfica e nós opusemo-nos e ganhámos.» (blogue Malomil). Efectivamente, a revista Flama foi um dos meios de comunicação que, na época, assumiu uma das posições mais reflexivas e informadas sobre as Grandes Cheias, destacando a desigualdade social que seria a fonte das consequências assimétricas nos vários bairros da região de Lisboa. A publicação sublinhou o facto de a tragédia ter ocorrido sobretudo nas zonas pobres dos bairros suburbanos da zona da capital, qualificando eufemisticamente a pobreza com expressões como «casas modestas com tectos humildes que começavam a meter água e que não resistiram à intempérie», em contraste com a Lisboa abastada que seguia para o cinema ou se refastelava na poltrona caseira. O Comércio do Funchal foi talvez a publicação legal que mais ousou confrontar o Estado Novo e o seu famigerado lápis azul, apontando as causas sociais que teriam reforçado o golpe funesto daqueles dias: «Nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser. Na realidade, a água foi muita. Foi, sem sombra de dúvida, a grande culpada da catástrofe, mas se as “casas” (barracas) fossem verdadeiras casas teriamsido arrastadas pelas águas?» Este jornal era, pelas suas posições mais críticas e desafiadoras, um dos habituais alvos do regime, tendo sido suspenso por vários meses em diversas ocasiões. Em Julho de 1968, em correspondência enviada ao subsecretário de Estado da Presidência do Conselho, a Censura alertava: «O semanário Comércio do Funchal exerce uma acção de doutrinação política que se estende para lá do território do Funchal e se julga dirigir-se sobretudo a leitores de certos círculos do Continente.» Nesse particular o Estado Novo tinha razão. A grande maioria dos leitores daquela publicação não residia na Madeira e estava dispersa por todo o País. Era lida por muitos que se opunham ao salazarismo, quer pelos oposicionistas de vários sectores quer pelos estudantes mais politizados, que nela achavam informação que, evidentemente, não encontravam na imprensa adestrada pelo regime e pelo seu látego, realidade que só seria alterada no 25 de Abril de 1974. Numa leitura crítica, o Solidariedade Estudantil, boletim dos estudantes organizados para prestar auxílio às populações sinistradas, apresentava estatísticas baseadas em dados do Serviço Meteorológico Nacional, sublinhando que o máximo de pluviosidade havia ocorrido no Estoril, numa zona rica nos arredores da capital, apesar de as mortes se terem acumulado nos bairros-de-lata de Odivelas. Esta publicação da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico era outra das vozes de denúncia, pretendendo demonstrar que a catástrofe se devera sobretudo às infra-humanas condições sociais e económicas das populações, bem como a decisões políticas e administrativas cuja responsabilidade devia ser apurada e devidamente assacada. Os jovens focavam as precárias habitações como barracões, casebres e até cavernas em que viviam os cidadãos afectados; a profunda lacuna nos sistemas de segurança e de socorro; a previdência social deficitária; as insuficientes medidas de estabilização das terras e de combate às inundações; as desinvestidas redes de saneamento e a ausência de planos de prevenção de epidemias. O Solidariedade Estudantil questionava também o que designou de «mobilização moral» baseada em votos de solidariedade e de pêsames, de subscrições ou de créditos que não respondiam aos problemas das populações que precisavam de auxílio imediato e efectivo e não de chá das cinco ou de empréstimos que só as enterrariam ainda mais. Enfim, era a tal beneficência deixada ao livre-arbítrio. O Portugal Socialista, o jornal clandestino ligado à Acção Socialista Portuguesa, aludiu também às inundações de 1967, denunciando a pobreza como a principal razão da tragédia. O também clandestino Avante!, o jornal do Partido Comunista Português, associou a calamidade ao desinteresse governamental por uma política de habitação e ao desinvestimento ecológico de Salazar: «As inundações que na noite de 25 de Novembro assolaram a região de Lisboa, provocando a morte e a destruição numa vasta área, não teriam originado semelhante tragédia se o governo se tivesse preocupado em resolver o problema da habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado da regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se tivesse tomado as medidas de emergência que as circunstâncias impunham.» O Avante! alertava para o drama social e destacava a miséria das populações como o factor que tinha multiplicado o número de vítimas: «Porque não foram destruídos pelas chuvas diluvianas os bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros da Urmeira, Olival Basto, Pombais da Pontinha, Quinta do Silvado, Odivelas e outros?» Porque, evidentemente, nestes bairros acumulavam-se milhares de trabalhadores sem possibilidades económicas para pagar elevadas rendas e que se viram forçados a construir as suas próprias barracas de lata. Estes conjuntos de fogos arrasados encontravam-se situados em zonas baixas, circundadas de colinas, facilmente inundáveis, «construídos de tábuas e latas que a chuva diluviana arrastou como frágeis barcos sem leme». Os comunistas procuravam galvanizar as populações, apelando à tomada de consciência política e ao apoio por parte operários, camponeses, juventude e, no limite, por todos os que pugnassem por outro regime republicano. A Rádio Portugal Livre, antena igualmente comunista, a operar clandestinamente a partir de Bucareste, afirmava: «O governo salazarista gaba-se de ter montado no País um sistema de controlo policial que atinge o nível mais aperfeiçoado do mundo. Gaba-se das brigadas móveis da P.S.P. que criou, prontas a actuar em poucos minutos contra a população. Todo este monstruoso sistema de controlo e vigilância está sempre a postos para intervir contra a população. Mas na noite de sábado para domingo, as autoridades salazaristas, apesar de as águas irem subindo de volume, apesar de ao fim de várias horas se poder prever que a chuva iria provocar grandes inundações, apesar de terem começado a chegar os primeiros pedidos de socorro, em vez de advertirem a população, em vez de darem o alarme para as zonas que poderiam ser atingidas, deixaram que a inundação subisse e que as águas arrastassem as casas onde dormiam as pessoas, ignorando absolutamente o que se passava.» As populações poderiam ter sido avisadas da catástrofe com antecedência, sendo que tal informação poderia ter-lhes permitido colocarem-se a salvo, protegerem-se melhor das chuvas rápidas que se aproximavam? Será que os serviços meteorológicos da época teriam mesmo informação para prever o que sucedeu? Houve um genocídio por negligência? Como classificar um regime que pode antecipar a morte de centenas de pessoas mas que, para não beliscar a sua própria imagem, nada faz? Como classificar essa inércia? Este Dilúvio sem Deus teve uma imediata cobertura na imprensa nacional. Os telefones das redacções não paravam de tocar com as informações que chegavam de todas as áreas castigadas e com pedidos constantes de esclarecimentos. Os jornais fizeram várias tiragens no dia seguinte, acrescentando factos e reportagens. O Diário de Notícias pôs na rua três edições. O Século distribuiu cinco tiragens só no domingo, com elementos cada vez mais pesados, à medida que se ia traçando o verdadeiro perfil das chuvas e das suas consequências. Alguns títulos fizeram eco da catástrofe: «Noite dramática em Lisboa e arredores. Horas de desespero» «Dilúvio de catástrofe» «Fim-de-semana trágico: Dilúvio, lama e morte» «A mais longa noite da região de Lisboa» «Impossível dizer onde acabava o Tejo e começava Lisboa» «A noite em que a chuva matou» «Noite de pesadelo numa cidade em pânico» «Chuva e morte: centenas de vítimas» «Mortos e desaparecidos envolvidos pela enxurrada» «Só silêncio na aldeia de Quintas» Após os primeiros dias, a tragédia continuava a fazer correr tinta e a dar muitas gordas nas primeiras páginas, mostrando momentos, factos, fotografias, testemunhos, histórias, identificando mortos e desaparecidos. Appio Sottomayor, jornalista da France Press, também se comoveu com as notícias que transmitia: «Logo nessa noite fui dar uma volta pelas zonas mais sinistradas, incluindo Odivelas. Das cenas que mais me marcaram foi ver a boiar os corpos de uma mulher e uma jovem, juntamente com coelhos mortos, um cão e uma boneca, todos em grande irmandade naquela ribeira de Odivelas que normalmente é um charco e nessa altura subiu como sei lá o quê.» Só que a chuva de letras e a enxurrada de verdade depressa seria estancada. Ligaram os cães de guarda, esses sempre vigilantes: «A partir desta hora, não morre mais ninguém», disse um dos funcionários dos serviços da Censura ao jornalista do Rádio Clube Português, João Paulo Guerra, amigo de Alice Vieira. «A Censura carregou com mão de ferro, cortando notícias, distorcendo informações, impedindo os números certos de serem divulgados», porque nessa altura o governo de António de Oliveira Salazar percebeu «que seria perigoso deixar que as pessoas soubessem a dimensão exacta do que estava a acontecer», contou a escritora. «A Censurafalava quase de cinco em cinco minutos.» A memória colectiva das Grandes Cheias é escassa. «Não me lembro de a Censura ter agido com tanta força noutra altura e isso nota-se», prossegue. «Se as coisas não aparecem nos jornais nem nas televisões, não existiram, não é? As pessoas não se metiam em políticas, como se dizia. Nunca entenderam o que é que aquilo foi.» A real dimensão da catástrofe «não ultrapassou a espessa cortina da Censura», como nota o estudo de Francisco da Silva Costa, nem mesmo nos anos recentes, quando autores como o geógrafo Fernando Rebelo consideraram as cheias de 1967 uma das três grandes catástrofes em Portugal, juntamente com o terramoto de Lisboa de 1755 e o aluvião do Funchal de 1803. O que Alice Vieira ou Fernando Assis Pacheco, acabados de sair do curso de Filologia Germânica, não podiam escrever nos seus jornais, relataram à imprensa estrangeira, neste caso a revista alemã Quick (que saiu de circulação em 1992). «Contámos tudo o que vimos e o que aquilo representava. Aquilo era a falência do Estado.» Mensagem curta, por telegrama: «Não falar no mau cheiro dos cadáveres.» A 29 de Novembro de 1967, as páginas da imprensa ainda se enchiam de reportagens e notícias sobre as águas diluvianas, mas a Censura ordena aos jornais: «Inundações: os títulos não podem exceder a largura de ½ página e vão à Censura.» O «Dr. Ornelas», capataz do lápis azul, avisa ainda a redacção do Jornal de Notícias no mesmo telegrama: «Actividades beneméritas de estudantes – CORTAR.» As maiúsculas gritam a ordem. Não há que enganar. No Portugal cinzento de Salazar, a tragédia tinha de ser maquilhada. «É conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adiantam nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos», escreve o «Tenente Teixeira, logo a 27 de Novembro. «Não adianta nada», como se fosse um «já não há nada a fazer». Conformem-se. Os censores foram mesmo muito activos, apagando frases como «Rostos marcados pela tragédia»; «As crianças foram as vítimas mais dolorosas»; «Flores, lágrimas e lama»; «A dor foi comunicativa»; «Momentos que não serão esquecidos». «Centenas de mortos» é alterado para «dezenas de mortos». No terreno, um dos jornalistas do Diário de Notícias, António Valdemar, recebe instruções. «Não venhas com coisas macabras, evita coisas macabras, que o coronel já telefonou», indica-lhe o subchefe da redacção, Sebastião Cardoso, referindo-se ao censor do Secretariado Nacional de Informação, responsável pela Censura. Nesse serão, o repórter tinha jantado com amigos e, no Cais do Sodré, telefonou para João Coito, chefe de redacção, a avisar de que já havia inundações. Chovia torrencialmente, recordou ao jornal onde tanto tempo trabalhou, e Coito responde-lhe: «Comece por aí. Siga até onde puder e diga pelo telefone em que local está.» O jornalista foi caminhando até Alcântara, descrevendo carros submersos, água a rasar as janelas de um eléctrico, prédios alagados, pessoas desnorteadas, perdidas, assustadas. Estava longe de imaginar o que nos dias seguintes iria ver e noticiar. Ainda nessa mesma noite, é enviado para Loures, acompanhado de um fotógrafo. Nos dias seguintes, vai relatando o que observa, do Olival Basto até ao Cabeço de Montachique. Dorme no quartel dos bombeiros, dita os textos para a redacção por telefone, o que era complicado. Como lembrou Joaquim Letria à SIC, todo o processo era moroso e complexo. As comunicações estavam cortadas em muitos dos locais atingidos pela tragédia, era necessário encontrar um telefone, ter moedas para a cabine, rezar para que a ligação estivesse suficientemente boa, ter trocos e tempo bastantes para ditar um texto inteiro. Os rolos com as fotografias chegaram à redacção do Diário de Notícias, graças à ajuda de agentes da então Polícia de Viação e Trânsito. «O subchefe Oliveira Nunes arranjava polícias que levavam os rolos das fotografias», recordou António Valdemar. Mas, depois? Tantas ganas, tanto brio profissional, e todo o esforço para quê? Pôde escrever sobre a morte do médico e das duas filhas num carro soterrado pela lama e de como uma delas foi encontrada com as mãos petrificadas a segurar um caderno de apontamentos escolares? Ou sobre o relato do avô que vivia numa cave com duas netas e as viu morrer afogadas sem conseguir valer-lhes? Num texto em que registaram as queixas de bombeiros, autarcas e anónimos que lamentavam a falta de assistência, a Censura cortou a eito aquilo que falava de «ausência de infra-estruturas e falta de apoio e segurança às populações». Guilherme Esteves, o já citado bombeiro voluntário de Odivelas, ajudante de comando na altura, recordou ao Diário de Notícias que, «mesmo depois das cheias, apareciam pessoas mortas, um dia um, no outro dia vai buscar outro». Mas o silêncio era obrigatório: «Só fomos autorizados a pôr no jornal 400 e tal mortos. Nós não podíamos dizer, nem os jornais, derivado à Censura, Salazar não autorizava. Salazar não gostava de expandir os acontecimentos, as desgraças.» O carimbo da Censura é bem visível no Diário Popular: «Noite de tragédia na capital e arredores: mais de cem mortos devidos a enxurradas e desmoronamentos. Famílias sem lar, comunicações paralisadas» – tudo é cortado. «Dramático amanhecer nas regiões devastadas pelo temporal» – corte total. Sem apelo nem agravo. «A chuva justifica tudo?» – corte. «Muitos mortos e desaparecidos em Alenquer. 104 vítimas da tragédia foram a enterrar nos cemitérios de Vila Franca e Castanheira» – depois dos cortes, resta: «Em Alenquer – 104 vítimas foram a enterrar em Vila Franca e Castanheira». E foi uma sorte. A palavra «barraca» aparece sempre riscada pela Censura. Casas, aquilo eram casas. Salazar conseguia sempre o melhor e mais perverso enquadramento para os seus actos de ditador. Ao director da Censura, enviou um bilhete manuscrito: «Sr. Director, Portugal está vivendo uma catástrofe, já houve demasiados problemas para a população e convém que essa não seja mais amargurada com notícias sobre este assunto.» Ou seja, escondia os seus tiques autoritários, controladores e sociopáticos por detrás de uma cínica preocupação com as populações. Portanto, se o regime negligenciou o apoio imediato às vítimas, já não falhou na desqualificação do acontecimento e na ocultação dos factos. Nesse domínio, foi absurdamente eficaz. Ao fixar, através da Censura, um número oficial de mortos, ao impedir a divulgação dos nomes dos falecidos a partir do número artificialmente laqueado, ao limitar a publicação de fotografias depois das primeiras semanas, ao deixar cair no esquecimento o tema um mês depois dos acontecimentos, o regime utilizou a estratégia adequada para atingir o seu êxito. Águas passadas. Tudo para esquecer. Se as ásperas e até impossíveis condições de vida das populações nos bairros pobres e em habitações precárias contribuíram para tornar a tragédia ainda mais terrível, a Censura e o silêncio ditaram uma segunda morte àquelas vítimas, recusando- lhes o direito à memória. O esquecimento foi a última sentença, a derradeira condenação. Nenhuma lista de vítimas mortais os incluía. Simplesmente, não tinham existência. É a nossa própria natureza humana que nos identifica com um nome. Somos tendo um nome. Sem nome não existimos. Negar o nome é negar a vida. E o que não vive também não morre. Se o regime negou às vítimas o direito ao nome, negou-o também a todos nós, enquanto povo portador de uma história e de memórias. Negou a nossa identidade colectiva. É mesmo: a censura perdurou muito depois de ter deixado de funcionar porque riscou os dados da tragédia para consulta. Muitos foram omitidos e liquidados para a eternidade. A 27 de Novembro, o tal tenente Teixeira ordenava: «É conveniente ir atenuando a história.» As autoridades iam até aos mínimos detalhes. A Comissão de Exame Prévio do Porto determinou, a 30 de Dezembro de 1968: «Baile de passagem de ano, no Palácio dos Valenças, em Sintra. Não dizer que a receita se destina às vítimas das inundações.»Para o Diário de Notícias, o dia 15 de Janeiro marca o final do destaque concedido às notícias sobre as Grandes Cheias. A partir de então, não haveria mais informações sobre aqueles acontecimentos dramáticos. A tragédia acabara. Fim. No que se refere à televisão, surgiram referências durante pouco tempo, sensivelmente uma semana. E sem imagens, porque televisão sem movimento não tem o mesmo impacto. Nos ecrãs de então tudo passou ainda mais leve e mais rápido. A imprensa internacional foi o socorro dos jornalistas nacionais, mas não escapou à rapina do regime. Agências noticiosas como a Associated Press (AP) e a United Press International (UPI) foram também pressionadas pela Censura no que respeita às notícias difundidas. Isaac Flores, correspondente da AP em Lisboa, foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros por críticas tecidas à actuação da Censura. Igualmente, Edouard Khavessian, correspondente da UPI, foi interrogado pela PIDE na sequência da divulgação dos protestos dos estudantes contra a ineficácia da actuação das autoridades no auxílio às populações. Considerando as suas informações como difamatórias para a reputação de Portugal, a PIDE ameaçou-o de expulsão, caso não revelasse o nome da sua fonte. Para dentro do País, Salazar controlava os danos. Para fora, minimizava os riscos, procurando sempre preservar a imagem delico-doce do País acima de tudo. Acima da verdade, da ajuda, da compaixão. Mesmo assim, as imagens dos fotógrafos das agências estrangeiras e as de Eduardo Gageiro, impedidas de serem publicadas nos jornais portugueses, apareciam nas publicações estrangeiras. As Grandes Cheias de 1967 foram de tal modo catastróficas que mereceram muita atenção internacional: o fotógrafo inglês Terence Spencer veio a Portugal para captar sem filtros ditatoriais os cadáveres, a lama e os escombros pelas ruas e aldeias portuguesas. Vencedor de um World Press Photo (no ano seguinte, em 1968), vendeu as suas incríveis imagens à revista LIFE e a reportagem correspondente foi publicada a 8 de Dezembro. PEDRADA NO CHARCO A Legião Portuguesa foi uma milícia salazarista criada pelo Estado Novo, logo no seu início. Fora idealizada como um corpo paramilitar de apoio ao Exército mas, com o passar dos anos, foi perdendo o seu pendor belicista para passar sobretudo a operar no campo da luta contra a subversão, nos meios sindicais e estudantis. Servia para controlar e calar. Aquando das Grandes Cheias, persistia como uma instituição ao serviço do regime e dispunha de uma rede de informadores, colaborando com a PIDE. A polícia política, contudo, não adorava a competição no controlo ideológico dos cidadãos, nem valorizava as informações recolhidas pelos legionários que, habitualmente, considerava amadoras. Foi com estas valências e este perfil que a Legião Portuguesa esteve presente no auxílio às populações dos bairros atingidos pelas cheias. A Mocidade Portuguesa, outra organização salazarista e milicial criada pelo regime para condicionamento dos verdes anos e lavagem cerebral à juventude, interveio também nas zonas sinistradas, estabelecendo contactos com as autoridades municipais e disponibilizando-se para a recolha de donativos em dinheiro ou bens. Neste socorro foi ainda mobilizada a ajuda do Exército, da Força Aérea e da Marinha. Soldados de várias unidades militares da região de Lisboa, num total de mais de 1500 homens, prestaram diferentes tipos de apoio às populações, como a desobstrução de vias de acesso às localidades e habitações, a evacuação das populações, a instalação de centros de operações de salvamento, o policiamento das ruas ou a desobstrução das vias de caminho-de- ferro. Enfim, tudo ou quase tudo militar ou paramilitar e tudo a chegar pouco e tarde. O Diário de Notícias promoveu, como referido, uma subscrição em dinheiro e em géneros a favor das vítimas, alavancando um grande movimento de solidariedade nacional que haveria de marcar as suas primeiras páginas durante dias. Segundo o jornal, todas as doações seriam entregues à Cruz Vermelha Portuguesa à medida que fossem chegando, cabendo-lhe posteriormente definir os critérios na distribuição dos géneros e dos valores monetários às populações necessitadas. Essa operação foi um êxito porque contou com o apoio generoso de muitos particulares de coração cheio e instituições diversas, que doaram o que tinham e podiam. Diariamente, o jornal ia divulgando os valores recolhidos, identificando a lista dos doadores nacionais ou estrangeiros e as respectivas doações. A campanha foi a maior subscrição pública organizada em Portugal até então, arrecadando 25 mil contos de receita. Só que muita gente não foi socorrida, não foi ajudada, foi esquecida outra vez. Moradora no concelho de Oeiras, Elisabete Aguardela recordou que, em grande parte dos casos, cada família resolvia os seus problemas sem ajudas. No caso particular dos seus tios, que a custo se salvaram da cave em que viviam em Algés, relembra: «Ficaram sem nada. Foram realojados pela Cruz Vermelha, mas as pessoas pouco receberam. Foram realojados em Caxias e depois, pelos seus meios, voltaram para Algés. Pouco conseguiram.» É duro observar a opção da Cruz Vermelha Portuguesa, perante a disponibilidade das suas congéneres europeias em prestar ajuda solidária a Portugal. A sua posição chega a ser repugnante. Afinal, a Cruz Vermelha Internacional disponibilizou-se para auxiliar os portugueses atingidos (Cruz Vermelha Francesa e a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha, com sede em Genebra), mas essa coordenação não se verificou porque a irmã portuguesa recusou o dinheiro, socorros médicos, medicamentos e outros préstimos com a justificação de «nada necessitarem», visto que, supostamente, as medidas governamentais e a generosidade dos portugueses haviam respondido cabalmente às necessidades das populações sinistradas. A Cáritas foi outra das instituições presentes no auxílio às populações atingidas. Estiveram envolvidos nessa acção solidária 227 voluntários que se deslocaram para as zonas sinistradas, onde procederam à distribuição de roupas e géneros alimentares. Os bens doados resultaram de várias ofertas nacionais e até internacionais. Por iniciativa do cardeal-patriarca de Lisboa, em todas as missas dominicais do dia 3 de Dezembro foi feita uma recolha de donativos em dinheiro, vestuário e alimentação, que foi depois entregue à Cáritas para proceder à sua distribuição pelos mais carenciados. Do estrangeiro, a Cáritas recebeu donativos do papa Paulo VI, da Cáritas Internacional e da Cáritas alemã no valor de 10 mil dólares. Só esta última reuniu nove toneladas de cobertores e medicamentos. A Cáritas espanhola doou meio milhão de pesetas e também organizou uma recolha de donativos em todas as dioceses espanholas com o fito de ajudar as vítimas das Grandes Cheias de 1967. Da francesa Secours Catholic chegaram quatro toneladas de vestuário e de agasalhos e dos Estados Unidos da América veio a ajuda solidária da American Catholic Relief Services. A Fundação Calouste Gulbenkian, não obstante todos os danos sofridos nas suas instalações em Lisboa e Oeiras, fez jus ao seu papel de grande instituição filantrópica, concedendo um fundo de apoio aos sinistrados e financiando a construção de habitações para famílias desalojadas em vários locais da Grande Lisboa. Estipulava-se como condição que todos os aglomerados habitacionais a construir tivessem a designação de Bairro Calouste Gulbenkian e que as despesas de urbanização dos mesmos fossem custeadas pelas respectivas câmaras municipais. Mário e Elisabete Augusto – ele que nascera num dia ciclone, ela que estava grávida no dia das Grandes Cheias –, a muito custo, lá arranjaram uma dessas casas, onde ficaram décadas e onde criaram os sete filhos. O impacto da catástrofe despertou a solidariedade internacional. Grã-Bretanha, Itália, Mónaco, França, Suíça e Espanha enviaram donativos e vacinas contra a febre tifóide. O general De Gaulle, à época chefe de Estado da França, contribuiu com uma dádiva pessoalde 30 mil francos, cerca de 900 euros no câmbio da época. Espanha ofereceu mil doses de vacina contra a febre tifóide. Outras instituições internacionais prestaram também a sua ajuda, como o Museu Britânico, que enviou três especialistas, o Centro Internacional de Restauro de Roma, o Instituto di Restauro del Libro, do Vaticano, e a Universidade de Istambul. Apesar da solidariedade das instituições e de muita gente anónima, também medraram fungos oportunistas. No Dafundo, no Bairro Clemente Vicente, existiam cerca de 40 habitações devolutas pertencentes a José Manuel Vicente, que teria entregado a administração das mesmas a um indivíduo identificado como Canhoto. O capataz explorava os mais humildes, só lhes entregando as casas depois de lhes saquear todos os pertences e garantir que nada mais lhes restava. A desumanidade também calcou Frielas, em Loures: o senhorio das barracas destruídas andava no meio dos escombros a recolher as rendas daquele mês, temendo perder de vista os inquilinos. A GNR, que esteve sempre ausente das acções de salvamento, acompanhou-o para o proteger na cobrança, até porque a população o recebia à pedrada. Como tudo se tornou num imenso buraco castanho, com lama e chapas de zinco, muita gente deixou as suas casas. A visita dos ladrões não tardou e houve muitas pilhagens. Madrugada alta, ainda com as ruas todas às escuras, os bairros começaram a ser invadidos por gatunos que vinham ao saque. Algumas montras já tinham rebentado, mas outras ainda estavam intactas. Os ladrões atiravam objectos pesados aos vidros, entravam e retiravam o que encontravam. Havia gente a passar com televisões, telefonias, electrodomésticos. «Durante alguns meses, as lojas tinham à porta produtos apelidados de “Salvados” que eram vendidos muito baratos. Eu desconhecia a palavra e perguntava-me como é que ela teria aparecido, assim, de repente. E em breve, só o cheiro acre dos salvados, quando se passava por uma dessas lojas, nos fazia lembrar a tragédia», contou Elizabete Aguardela ao Gotas de Ar Frio. A exploração sem escrúpulos da tragédia humana também grassou por Lisboa, onde surgiram burlões que, organizados em falsas comissões de apoio, andavam de porta em porta a pedir donativos para os sinistrados em nome do Diário de Notícias. Nas vilas e aldeias pantanosas, apareciam salteadores a revistar cadáveres à procura de ouro. * Em muitas culturas, o estado primal da existência, o Início ou o Começo, está separado da actualidade por uma (ou mais) catástrofes naturais. Há uma barreira semelhante entre o presente e o fim do tempo, separados pelo Juízo Final, o Armagedão ou a vinda de uma Nova Era. Na nossa escala, as Grandes Cheias foram também um desses saltos qualitativos. Foram um portal. «É urgente! Não vimos trazer-te notícias porque já as ouviste. Vimos informar-te que podes ser útil. Os teus braços, a tua imaginação, o teu dinheiro são vitais para quem não tem tecto nem roupa para se agasalhar.», lia-se num comunicado distribuído nos meios estudantis. Mais de 2000 miúdos dos liceus de Lisboa – Camões, D. Leonor, D. João de Castro, Filipa de Lencastre, Maria Amália, Passos Manuel, do Colégio Moderno e do Liceu Francês – inscreveram-se para ajudar. «Aquilo foi uma tragédia tão grande que as pessoas foram sabendo daquilo e chegaram imensas coisas ao Instituto Superior Técnico, para serem depois distribuídas. As dádivas foram postas na piscina vazia e foram separadas por tipo de coisas, por tamanhos. Ficou cheio de coisas. Estava ali o centro nevrálgico. Na cantina foram feitas rações de combate – sandes, fruta, bebida – que se levavam para os bombeiros, para as populações e para os estudantes que iam para o terreno», recordou Fernando Valdez, que tinha então 18 anos e estava no segundo ano de Engenharia Mecânica no Técnico, ao Diário de Notícias. Foi aí que os estudantes de Lisboa, mas depois também ajudados por colegas do Porto, de Coimbra e de vários liceus da capital, centralizaram toda a operação de apoio às populações. «Foi um contra-relógio para se organizar tudo para ir para o terreno, meios logísticos, transportes», contou. Fernando foi para Quintas, a aldeia mártir. Já lhe tinham contado que era uma sepultura a céu aberto, mas nada se comparava ao que experimentou. «Não há relatos para descrever aquilo, estava tudo atolado em lodo, quando nós chegámos ainda se encontraram cadáveres... Os bombeiros exaustos, as populações a entreajudarem-se. O apoio oficial não existia, havia apoio de autarquias, não a nível central», comentou. «Aquilo marca sempre. No meu caso pessoal já vinha da pró-associação dos liceus, vinha de uma família da oposição, tinha consciência de muita coisa. Mas para muitos estudantes, muitos deles nem eram muito associativos, aquilo foi um momento de viragem na consciencialização de como o regime tratava as pessoas e mantinha pessoas em condições infra-humanas de grande pobreza.» De facto, o mundo académico tomou consciência aguda de que havia um país bem diferente daquele que passeava à volta da Cidade Universitária: uma nação de lata e de lama. Os estudantes portugueses eram, na sua esmagadora maioria, oriundos de classes sociais privilegiadas. O ensino superior era altamente elitista (a massificação só se dá no final do século XX) e os seus alunos, mesmo os mais politizados, viviam alheados da miséria em que lutava a maioria do povo. Além disso, foi por essa altura que se inventou a juventude. Entre o final da década de 1950 e o início da década de 1970, muitas foram as transformações mundiais. Uma delas foi a emergência de um novo sector etário e a definição de uma cultura associada. Os jovens e a sua música, os seus ídolos e os seus artistas, irromperam por todo o globo como protagonistas da História, ansiosos por novas experiências, adversos ao conservadorismo dos pais e à opressão das autoridades. Portanto, o surgimento deste movimento estudantil casava na perfeição com os ares dos tempos. «Os estudantes vieram com uma outra cultura que nós não tínhamos, já com uma visão diferente, e foram eles que transformaram isto tudo. Se calhar, se eles não têm saído à rua, sabia-se o mesmo que se soube naquele dia. Acredito nisso», disse Luísa Fajardo ao Diário de Notícias. «Transformaram, através do conhecimento, da notícia, da divulgação para fora, da ajuda que deram. Foi uma grande reviravolta a partir daí. Hoje apercebo-me bem do que é que aconteceu, mas na altura... sabíamos que veio para aqui toda a gente, a Marinha, a GNR, essa gente toda, mas sentia-se, apesar da dor, sentia-se que havia o medo de comunicar. Já havia pessoas por aí a dizer: “Cuidado, atenção.” Eram esses avisos. Mas de resto o que é que a gente sabia? Sabíamos que tínhamos perdido tudo…» No ano lectivo de 1967/1968, havia em Lisboa cerca de 18 mil estudantes universitários. Eram novos, muitos deles generosos e, mesmo sem uma informação fidedigna, mesmo com enormes dificuldades de acesso aos bairros, avançaram para as zonas sinistradas, com energia e solidariedade. Toda uma geração de alunos, apercebendo-se da situação de carência em que vivia grande parte da população, mobilizou-se para a luta política contra o regime. À RTP, o dirigente estudantil João Bernardo confessou ter ficado impressionado com a incúria das autoridades: «Além de nós, só havia os bombeiros voluntários; de resto, absolutamente mais nada.» Uma outra estudante, Rita Veiga, moradora em Alvalade, diria: «Se me pedissem para resumir numa só palavra o que vi diria: lama, lama, e ainda lama.» A JUC, Juventude Universitária Católica, também assumiu protagonismo na ajuda e, claro, a ditadura ficou especialmente contrariada com essa participação. Certa manhã, os estudantes chegaram para as aulas e as portas estavam seladas, com tábuas pregadas com um aviso a dizer que as instalações tinham sido encerradas compulsivamente por ordem da PIDE. Pois é. A PIDE opôs-se a todas as acções solidárias da JUC e acusou os jovens que a integravam de serem revolucionários e comunistas, trancando as suas instalaçõesno Instituto Superior Técnico, onde também apreenderam todo o material que encontraram. A denúncia de tal situação levou a Censura a actuar, pela primeira vez, sobre o jornal Encontro, decretando o visionamento prévio dos futuros artigos. Havia edições em que eram retiradas páginas inteiras e não era possível deixá-las sair em branco para evitar que se deixasse perceber a dimensão dos cortes. Havia que disfarçar. Mesmo assim, do título «Nas regiões sinistradas de Odivelas e Loures estudantes contam histórias às crianças enquanto os pais recebem agasalhos e alimentos» não sobrou nada. Outro título, «Solidariedade nacional – Juventude presente!» foi cortado a metade. Desapareceu a referência à juventude. Os estudantes, articulados com algumas autarquias e empresas de transporte, foram incansáveis durante duas semanas. Só a Associação de Estudantes do Técnico foi responsável pelo fornecimento de cerca de mil refeições por dia às vítimas das cheias e pela organização de outras acções de apoio. Seis mil alunos, a trabalharem uma média de oito horas por dia, passaram por Odivelas, Silvados, Ponte de Frielas, Olival Basto, Póvoa de Santo Adrião, Loures, Bucelas, Pintéus, Fanhões, Alhandra, Calhandriz, Tortosa, Vala do Carregado, Quintas, Santana da Carnota, Refugidos, Cadafais, Carnota de Baixo, Alenquer… Estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas, voluntários juntos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida porque nunca a tinham experimentado. «Andavam por lá freiras e jovens estudantes a lavar casas, nomeadamente em Caneças e em Odivelas», recordou Raul da Silva Pereira, numa entrevista publicada no livro Habitação e Sociedade. Só depois é que apareceu no terreno o Movimento Nacional Feminino, a Cruz Vermelha, a Mocidade e a Legião Portuguesa, as Forças Armadas. A Direcção-Geral da Saúde, ao contrário de todas as outras autoridades, reconheceu publicamente a ajuda prestada pelos alunos da Faculdade de Medicina nos trabalhos de apoio médico às populações dos bairros mais atingidos pela catástrofe – e a sua colaboração preciosa para evitar outras calamidades, como o tifo e, talvez, a cólera. Luís Pio de Abreu, que mais tarde se tornaria num célebre psiquiatra, disse que as Grandes Cheias foram um banho de realidade, a entrada na idade adulta. A jornalista Diana Andringa era então estudante de Medicina, curso que acabaria por abandonar. Ao jornal Expresso revelou: «Nesse sábado ia apanhar em Entrecampos o metro para a estação do Rossio, e depois o comboio para Rio de Mouro, quando, à entrada da estação, uma onda de água me fez recuar. Domingo fomos sabendo as más notícias e creio que foi logo na segunda- feira que, na faculdade, fui mobilizada para o auxílio às vítimas. Sendo de Medicina, integrei uma Brigada de Vacinação destinada a Frielas e Póvoa de Santo Adrião. Tratava-se de vacinar em massa contra o tifo.» À revista Sábado, disse: «Houve um dia em que dei 165 vacinas e, quando voltei, fui ver um filme japonês qualquer, que não me lembro, porque precisava de ver qualquer coisa que não fossem agulhas a entrar na pele.» A jornalista acrescentaria que «venci a minha fobia de agulhas para dar quase centena e meia de vacinas nesse dia. Venci-a, também, para acompanhar no hospital a pequena cirurgia feita a um menino que encontráramos a vaguear, sozinho, com um corte profundo no pé – e que se agarrava com força à minha mão. E foi depois desses dias, em que vencera alguns dos meus maiores temores em relação à Medicina, que tomei finalmente coragem para deixar o curso e optar pelo Jornalismo.» Derrotar medos pequenos para conseguir, por fim, vencer o vilão principal. Andringa recordou como, nas ruas de Lisboa, os polícias sinaleiros paravam o trânsito para dar prioridade às camionetas carregadas de estudantes para as zonas afectadas. Mas, no terreno, já não havia ninguém a abrir caminho. «Havia uma paralisia total do Estado. Viam-se bombeiros e estudantes a ajudar, depois um pouco a Cruz Vermelha, com umas senhoras fardadas e de salto alto, a distribuir umas sardinhas, mas não punham o pé na lama. E os relatos que nos chegavam é que a GNR, em vez de ajudar, andava a perseguir os comunistas dos estudantes.» Foram as Grandes Cheias que acamaram o leito do 25 de Abril. A catástrofe acelerou o motor de politização das jovens gerações. Ele já rugia entre modos de contestação mais aguerridos e uma maior abertura à sociedade, mas foi o cataclismo de 1967, juntamente com outros factores como os ecos da revolta mundial dos estudantes nos anos 60 e o crescente descontentamento perante a Guerra Colonial que fizeram estalar a superfície e deixaram entrar luz. Há um consenso generalizado: para muitos estudantes, esta foi a primeira tomada de consciência política. Para outros, marcou a ruptura definitiva com o Estado Novo. «Os estudantes saíram da academia e despegaram-se das reivindicações focadas nas questões pedagógicas, na comida dos refeitórios e no preço das propinas, para assumirem um papel de maior intervenção social», notou a historiadora Ana Paula Torres ao jornal Público. Ou seja, rebentaram a gaiola dourada e descobriram que havia mundo além desse magno problema do menu repetitivo na cantina velha da universidade. O historiador António Araújo vai mais longe: «O movimento de solidariedade teve como efeito não só um conhecimento muito próximo – e dilacerante – da realidade social por parte de milhares de estudantes, como uma politização destes num sentido vanguardista, a ponto de alguns, como Pacheco Pereira e Jorge Simões, afirmarem que foi desde então que o Partido Comunista Português foi ultrapassado no meio estudantil.» Já o próprio Pacheco Pereira viu um novo país emergir das Cheias de 1967: «Subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam proteger não funcionaram.» Depois deste salto qualitativo, deste portal, alguns activistas procuraram intensificar o conhecimento mútuo entre estudantes e população, viajando até ao mundo rural, escutando as pessoas, participando nos trabalhos agrícolas, trocando informações e lutas. O salazarismo odiava e temia o movimento estudantil. Desde logo por que era autogerido, autónomo, não integrado em nenhuma das instituições corporativas vigentes. Depois, o regime receava que aquela empatia que também brotava com força de água evidenciasse a incompetência das autoridades nos serviços de socorro às populações e no planeamento urbano. Estes contactos entre estudantes associativos e trabalhadores mais pobres podiam gerar filhos revolucionários, ou seja, ameaçar a paz social tão cara ao salazarismo. Em entrevista ao historiador António Araújo, a então jovem católica Maria da Conceição Moita que, imbuída de consciência cristã e social, rapidamente evoluiu para um posicionamento político mais crítico, recordou a sua experiência: «Fui professora de Religião e Moral durante muitos anos. Procurava fazer um discurso para os jovens, não subversivo, mas entusiasmante, alegre, positivo, de empenhamento. Nos bairros pobres atingidos pelas cheias, ouvi histórias de vida que ainda hoje me deixam dilacerada – nasceu em mim a revolta perante o país que se tinha.» Além da denúncia nos seus próprios órgãos de comunicação, os estudantes convocaram uma conferência de imprensa para o dia 3 de Dezembro para dar a conhecer à opinião pública o seu trabalho e desmentir que a sua organização estivesse a cargo dos Serviços Sociais da Universidade, como a propaganda de Salazar já difundia. Sucede que essa assembleia foi censurada e nenhum esclarecimento surgiu na imprensa diária nos dias seguintes. Só nos jornais estrangeiros saíram algumas notícias. Claro que os representantes dos estudantes reagiram, denunciando aquilo que designaram de impreparação e desorganização das autoridades. Como resultado, toda a direcção da Associação de Estudantes do Técnico foi convocada para ir prestar declarações à PIDE. O cerco foi apertado.Há pormenores esclarecedores: um grupo de estudantes que se encontrava no Rossio, de capa e batina, a fazer um peditório a favor das vítimas, foi detido pela Polícia de Segurança Pública por supostos distúrbios à ordem pública. O médico João Semedo diria ao jornal Expresso: «Sabemos como o tempo embacia as nossas memórias e rouba nitidez aos factos que vivemos. Contudo, por mais anos que passem sobre as Cheias de 1967, julgo que nunca se apagará em mim o choque brutal que senti ao mergulhar naquele cenário de morte, destruição e pobreza extrema, que atingia milhares de pessoas a viverem em condições absolutamente degradantes e desumanas. Dois ou três dias enterrado na lama até aos joelhos, entre destroços e barracas destruídas, vendo, impotente, a dor e o sofrimento dos que tudo perderam, protestando contra a avareza e o atraso do apoio dispensado pelas autoridades salazaristas, revoltado sempre que algum governante garantia que a tragédia se devia às chuvas torrenciais e não à miséria que habitava aquelas barracas. Sei que, desde então e ao longo destes 50 anos, nunca fiquei indiferente perante qualquer desigualdade ou discriminação e sempre me senti – e sinto – convocado para o combate à pobreza, à exploração e às injustiças que, em grande medida, foi o que deu corpo e sentido à minha vida.» Muitos estudantes encontraram Deus em Odivelas ou Loures. Ana Maria Bénard da Costa diria: «Eu, quando penso, tenho cada vez mais dúvidas e sinto-me cada vez mais longe de poder aceitar a ideia de um Deus ou seja lá do que for. Mas sei é que, quando na altura das inundações, passei o dia com os sapatos encharcados a distribuir cobertores em Odivelas, senti outra vez que Deus estava perto e que se alguma coisa Ele era, era aquilo. Portanto não posso desligar Deus dos outros e da eficácia da acção junto deles.» Estas palavras encontram-se num caderno especial da revista O Tempo e o Modo com o título «Deus o que é?», no registo de um diálogo travado entre diversas personalidades como Bento Domingues, Eduardo Veloso, João Bénard da Costa, Maria Belo, Nuno Bragança ou Vítor Wengorovius. Esta intervenção de Ana Maria Bénard da Costa mereceu um comentário algo irónico de João Bénard da Costa: «Isso, no fundo, é só porque tu foste educada, como eu, como nós todos, desde os tempos da JUC, etc., a acreditar que esse sacrifício é que tinha valor e que quanto mais perto estivéssemos do sofrimento dos outros, mais perto estávamos de Deus. Por isso é que tu sentes a tal plenitude da eficácia. Não só fomos educados a acreditar nisso como a dar valor ao sacrifício enquanto sacrifício, ao trabalho custoso, ao que dói, etc. Ou seja, se tu te sentias perto de Deus em Odivelas era porque te sentias perto da Cruz sem a qual não há redenção.» Ao que Ana Maria retorque: «Pois, mas o que me parece é que essa presença do sofrimento dos outros é a presença do que nos transcende e portanto presença de Deus.» Verdade é que parte da burguesia de Lisboa, a despontar para a tal contestação, ouvira vezes demais algo como «Cada vez que se dá esmola a um mendigo, mata-se a revolução.» Ou seja, havia um certo dilaceramento entre ajudar como Cristo ou «amotinar» como um Che. Com mais ou menos ambiguidade e mais ou menos eivados de contradições, as Grandes Cheias para muitos acabariam por desaguar anos depois na Capela do Rato, na passagem do ano de 1972 para 1973, quando um grupo de católicos assumiu uma posição dura contra a Guerra Colonial e contra a ditadura do Estado Novo. No sábado, dia 30 de Dezembro de 1972, na missa das 19h30 alguns presentes surpreenderam o celebrante, o padre João Seabra Dinis, ao declarar publicamente que tencionavam realizar na capela uma jornada de 48 horas de «greve da fome» e de reflexão acerca da Guerra Colonial, apelando a cristãos e não- cristãos para que se juntassem à iniciativa. DEPOIS DE MIM, O DILÚVIO Uns meses depois das Grandes Cheias, nos últimos dias de Julho de 1968, Salazar encontrava-se no forte de Santo António em São João do Estoril, onde costumava passar férias. Estava muito sol e muito calor, um Verão quente. Julgando-se a salvo da força das águas, no local onde tantas vidas tinham sido poupadas ao contrário do que seria expectável, o ditador escrevinhava e mandava, mas nunca formulou «o dilúvio foi um fracasso: ficou um homem», como disse Henry Becque. E também jamais imaginou que seria aí, no seu forte orlado por uma tripla muralha estrelada, barrado das ondas, das inundações e da miséria, que a morte irromperia de dentro, tão inopinada quanto as Grandes Cheias. Uma morte mesquinha, medíocre, vil e com delongas, tal e qual o seu regime. Mil novecentos e sessenta e oito foi convulsivo. Enquanto as Primaveras de Paris sacudiam o mundo, os Stones compunham «Sympathy for the Devil», os Doors cantavam «Hello I Love You» e o «2001: Odisseia no Espaço» estreava nos cinemas, o presidente do Conselho e a sua Maria lá roíam a rotina à beira-mar. Todos os dias, na véspera do seu acidente, Salazar leu jornais, deu um pequeno passeio, acertou o relógio duas vezes. Cheirava a Maio de 68, as primeiras greves debutavam, Cardoso Pires publicou O Delfim, milhares de emigrantes voltavam de França e da Alemanha com sindicatos no céu da boca e a raiva nos dentes. Em Junho, o bailarino Maurice Béjart, no Coliseu dos Recreios, gritou do palco: «Façam amor, não a guerra!». Luther King e Robert Kennedy assassinados, a China na revolução cultural, a Checoslováquia em crise, a ONU a decretar o Ano Internacional dos Direitos Humanos. Enquanto isso, no Estoril, no protegido Estoril, Salazar fazia mais uma chamadinha para enterrar nos calabouços um desgraçado pescador de Matosinhos ou um funcionário da Carris que tivesse aderido à «greve da mala». Ai os pobres e mal-agradecidos. Ai a Mitra. Salazar dava as suas caminhadas, dava à corda, arrumava criteriosamente as suas santas garrafas do Dão e chamava um especialista para lhe tratar das calosidades. Acontecia o massacre de My Lai, corria a onda anti-Vietname, erguia-se o Black Power, o povo juntava -se e, no Estoril, Salazar estava orgulhosamente só, barricado, não falhando o corte de cabelo quinzenal, a censura a mais meia dúzia de obras de arte ou a ordem de tortura a um estudante. Apolo 8 fazia a sua missão, dava-se a primeira grande denúncia da fome em África, John Updike escrevia romances e António Oliveira Salazar, no seu fraco forte, como era hábito diário, registava post factum telefonemas, despesas e visitas, numa folha da agenda com a data no topo da página – já os meninos da sua mãe «de balas traspassados, duas, de lado a lado» ou os mortos das Grandes Cheias nunca soube contar, tão pouco eternizar, e foram tantos. Fazia sempre essas anotações sem sombra de maçada ou enfado, ordenando os dados e os acontecimentos ocorridos das 8 horas até às 23, tarefa que concluía mesmo antes de apagar a luz. Longo bocejo. Um soninho descansado. Mil novecentos e sessenta e oito, mudança cataclísmica, só comparável a 1848, o eixo de rotação da Terra em estertor com os protestos anti-guerra, movimentos civis, demonstrações estudantis – e o tiranete tomba de um cadeirão. Cai redondo no chão, estatela o crânio na tijoleira. A queda da cadeira do poder, da cadeira de sonho, gestatória, do trono, tinha de ser literal. Na ditadura não há lugar para a imaginação. Não há espaço para o sonho, para o desejo, para o futuro. Mil novecentos e sessenta e oito o ano mais marcante de toda a história moderna dos EUA, e Salazar cai, fica diminuído, mas o regime continuou como se nada fosse. Em 1968, o mundo mudou, mas Salazar vivia como se estivesse tudo igual e ainda fosse patrão. Agosto de 68: big bang para a humanidade, Estado Velho para Portugal. Ao Diário de Notícias, a 11 de Setembro, a governanta de sempre do ditador, Maria de Jesus, diria que estava nos seus «aposentos quando ouviu um barulho que lhe deu a impressão de uma porta a bater». Correu logo a ver o que se passava, chegando quando o amo já se erguia do chão. Após «uns momentossua polícia política, a Censura e a repressão contra qualquer opositor. Não havia liberdade de expressão, nem de associação ou de reunião. Os partidos estavam proibidos à excepção da União Nacional, que ocupava todos os órgãos do Poder. Os sindicatos não eram livres. Pedia a V.ª Ex.ª, pela sua saúde, já que não tive a sorte de trazerem o meu filho vivo, peço-lhe que mo mandem mesmo morto. Para eu o adorar e rezar ao pé daquele bom querido filho. Peço imensa desculpa a V.ª Ex.ª destas minhas tristes palavras, mas a dor é tão grande que não sei onde hei-de respirar. O nome do meu filho é Francisco da Luz Carloto. Maria Florinda fora informada por telegrama que o seu filho morrera na guerra em Moçambique em Janeiro de 1967, uns meses antes das Grandes Cheias. Se o quisesse trazer, teria de pagar 12 mil escudos, o que equivaleria a cerca de 4 mil euros. Era incomportável, totalmente impagável, mas a mãe do soldado sentiu que tinha de tentar. Desde que a Guerra Colonial começara que o Estado português só custeava o regresso aos militares vivos, não aos mortos. Quem queria velar os seus tinha de pagar do seu bolso e quanto mais longe morria o militar mais caro seria: trazer um corpo de Moçambique era o mais dispendioso; da Guiné, por ser mais próximo, ficava a cerca de 2500 euros. Sucede que a transladação era insustentável para a maioria das pessoas e o que acabava por acontecer era o regresso apenas a pedido das famílias dos oficiais que dispunham de meios. Trazer e sepultar na sua terra os seus era para a elite. Até na morte se sentia o peso da classe social de origem. Qual luto pessoal, qual trauma partilhado. Fado, só fado. Ainda hoje, a terra vermelha africana envolve as ossadas de tantos Franciscos da Luz Carloto. No livro Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes (Ed. Notícias, 2000), constata-se que, das mais de duas mil baixas ocorridas só entre 1961 e 1966, foram trazidos para Portugal apenas 326 corpos, o que representa cerca de 15% do total. Milhares de esqueletos de portugueses ainda estão hoje perdidos nesses solos quentes, fósseis involuntários de uma guerra burra. E assim se compreende que a grande maioria desses militares portugueses que permanecem até hoje enterrados em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique sejam soldados e cabos. Sublinhe-se que o desterro desses defuntos era também uma maneira de tornar a morte invisível e, claro, barrar qualquer compartilhar da História, qualquer processo colectivo. Ou seja, com a experiência da Guerra Colonial, iniciada meia dúzia de anos antes das Grandes Cheias, o regime já granjeara traquejo em ocultar cadáveres, em manietar os jornais para diluírem as baixas por vários dias, reduzir tudo a minúsculas notícias publicadas em páginas interiores e pares, como se o sofrimento das Florindas não valesse mais do que o rodapé. Enfim, o regime já sabia bem enterrar os mortos antes de serem sepultados, antes de terem direito ao último abraço da mãe. Os soldados caídos que regressavam a Portugal eram colocados em navios de transporte dentro de vulgares caixotes de madeira e as urnas eram depois desembarcadas muito discretamente para, finalmente, ser tudo aberto no depósito de adidos da Ajuda, em Lisboa. Mesmo os feridos chegavam durante a noite. Salazar não queria espectáculos além da revista e das variedades. Tudo leve e breve. Sangue e morte tinham de ser ainda mais discretos do que a moralista vida que defendia. Morria-se sozinho, sem nada nem ninguém. Partia-se para o esquecimento sem um lamento, enquanto a ad vitam aeternam estava reservada para os privilegiados. Peço imensa desculpa a V.ª Ex.ª destas minhas tristes palavras, mas a dor é tão grande que não sei onde hei-de respirar. Foi esta pungente carta da Maria Florinda, de Tolosa, concelho de Nisa, que fez com que o Estado passasse a assegurar as trasladações – o seu querido Francisco, o «Menino de sua Mãe» (como lhe poderia chamar Fernando Pessoa), está enterrado no cemitério dessa pequena vila alentejana. No plano abandonado, que a morna brisa aquece, de balas trespassado-duas, de lado a lado – Jaz morto e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue. De braços estendidos, alvo, louro, exangue, fita com olhar langue e cego os céus perdidos. O Menino da Sua Mãe, Fernando Pessoa Mesmo assim, mesmo depois da pequena revolução encetada pela Mãe do seu Menino, as famílias continuaram a ter despesas, nomeadamente a serem obrigadas a pagar o caixão de chumbo e o transporte desde o hospital militar até ao cemitério da terra natal. Salazar ganhava assim duas vezes: ganhava politicamente ao esconder mortos de uma guerra que ninguém queria (e que assim adoçava a sua crueldade) e ainda metia ao bolso uns milhares de escudos ao cortar o oxigénio aos familiares dos soldados-perdidos. Portanto, artimanha em lucrar com cadáveres já constava no currículo da ditadura. Ocultar mais uns milhares de sacrificados das Grandes Cheias? Facílimo. * 1967. Nem tudo era mágoa e pano negro. Em Fevereiro, realizara-se o IV Festival RTP da Canção nos estúdios da Tóbis, em Lisboa. Isabel Wolmar e Henrique Mendes foram os apresentadores da final ganha por Eduardo Nascimento com a canção O Vento Mudou, anos mais tarde reinterpretada pelos UHF. Ouçam. Ouçam. E o vento mudou. Ela não voltou. As aves partiram. As folhas caíram. A letra era de João Magalhães Pereira e o desgosto de amor segue intemporal. Em Maio, um grupo de revolucionários assaltou uma sucursal do Banco de Portugal na Figueira da Foz com o objectivo de angariar dinheiro para realizar novas acções que contribuíssem para o derrube do regime. Hermínio da Palma Inácio, Camilo Mortágua, António Barracosa e Luís Benvindo perpetraram o roubo, em pleno dia e sem violência. Chegaram a Paris 48 horas mais tarde, com o equivalente a dez milhões de euros na bagagem. O País não voltaria a conhecer nada parecido. Em Outubro de 1967 nascia o Rally Internacional TAP, prova que iria definir o panorama automobilístico português, rapidamente extravasando a vertente desportiva e tornando-se num acontecimento nacional. O percurso iniciou-se em San Sebastián, com meta nas arcadas do Casino do Estoril. O jovem Jean Pierre Nicolas, num Renault 8 Gordini, foi cabeça de cartaz, mas acabou por entregar a vitória à dupla Carpinteiro Albino/Silva Pereira, também num Gordini. A derrota maior foi mesmo no Outono. As cheias rápidas mais devastadoras aconteceram quase todas em Novembro. Em 1967, em 1983, também na região de Lisboa e de Cascais, e em 1997, no Alentejo e no Algarve. Dia 25. Lisboa amodorrava sob a chuva. Nos teatros alfacinhas, assistia-se à peça A Flor do Cacto, comédia de boulevard, sem pretensões, ligeira sátira de costumes baseada em equívocos e desencontros. Cactus Flower foi interpretada por Lauren Bacall e, na capital portuguesa, por Laura Alves. Êxito de bilheteira. Nos cinemas passavam Como Ganhar um Milhão, de Billy Wilder, Felizes para Sempre, com Sophia Loren e Omar Sharif, ou Cortina Rasgada, de Hitchcock, com Paul Newman e Julie Andrews. Com o céu metálico, muitos optaram por ficar em casa a ler ou a ver televisão. Como relatou a Flama: «A Lisboa mais abastada seguia para o cinema ou refastelava-se na poltrona caseira, assistindo ao famigerado folhetim Gente Nova, da RTP, à espera de mais uma aventura do Santo. Quando o Roger Moore chegou aos receptores, já os tectos humildes começavam a meter água. Há doze horas que chovia.» Enfim, a vida corria corriqueira e nada fazia crer que, em pouco tempo, tudo mudaria. É sempre assim. De resto, a previsão meteorológica publicada, por exemplo, no dia 25 de Novembro anunciava: «Céu muito nublado, chuva ou chuviscos» Sucede que nesse sábado choveu todo o dia. Água miúda, chuva molha-tolos, cacimba, como lhe chamava quem já tinha passado por África – e eram muitos, naqueles tempos. Chuviscava persistentemente mas, para a população, nada que fizesse prever que, horas depois, o mundo se abateria sobre as suas cabeças. Mas foi o que sucedeu. A pluviosidade foi-se acentuando e,de desorientação, parecia ficar bem, tendo pedido àqueles que o assistiram para não darem muita importância ao caso». Aparentemente recuperado, recusou qualquer assistência. Essa informação foi guardada como um «segredo de Estado» e, entretanto, procedeu-se a uma remodelação governamental. Um novo executivo reuniria a 3 de Setembro. Nessa altura, o ministro dos Negócios Estrangeiros já notara que Salazar evidenciava «um estado mórbido, de uma palidez doentia, alheio a tudo, e à saída, segurando uns documentos debaixo do braço, afastou-se da sala do Conselho de Ministros, e vi-o caminhar pelo corredor de São Bento quase trôpego, arrastando os pés, sem certeza e sem segurança». Através do seu diário, também se notaria que a sua caligrafia estava muito alterada. Três dias depois, a 6 de Setembro, quando, além das dores, demonstrou falhas de memória e um raciocínio incoerente, o ditador foi levado do Estoril para Lisboa onde acabou por ser operado na Casa de Saúde da Cruz Vermelha. Retiraram-lhe um hematoma intracraniano subdural do hemisfério esquerdo. A cirurgia correu bem, com os boletins clínicos a garantirem: «Tudo indica que o pós-operatório se processa normalmente.» Na primeira dessas notas médicas, o presidente Américo Tomás trocou a expressão «madrugada» por «noite», para amenizar a urgência da intervenção, e o subsecretário de Estado da Presidência do Conselho, Paulo Rodrigues (conhecido como «a lapiseira de Salazar») omitiu a segunda palavra em «hematoma intracraniano». Passou só a hematoma, portanto. Podia ser na perna ou num braço. Nos dias imediatos Salazar parecia convalescido, mas, a 16 de Setembro, depois do almoço, levou a mão à testa e, menos antes de desmaiar, terá dito: «Estou muito aflito. Ai, meu Jesus!» Um grave acidente vascular cerebral (AVC) no hemisfério direito prostrou-o num coma de onde apenas saiu em finais de Outubro, tendo uma recaída no mês seguinte. É Marcelo Caetano quem fica à frente do regime manco, que procura sobreviver ao seu mentor. A carreira política de Salazar estava terminada já que, mesmo que sobrevivesse, ficaria incapacitado para as suas funções. Internado até Fevereiro, só então vai para casa. Até à morte, um ano e meio depois, vive convencido de que ainda é ele que tem o poder. Assiste-se então a uma comédia de enganos, porventura opereta bufa, digna de rivalizar com a Flor do Cacto que subiu ao palco na noite das Grandes Cheias: os antigos colaboradores vão à residência oficial como se estivessem a reunir o Conselho de Ministros e lêem os jornais ao ditador ocultando as notícias em que surge o nome ou a fotografia de Marcelo, o novo chefe do Governo. Salazar faz até despachos sobre assuntos fictícios. O presidente do Conselho morre em Julho de 1970. As suas últimas palavras foram: «Sim, mãe, sim.» Pouco depois, a bandeira nacional é colocada a meia haste em São Bento. Luto nacional. Mas o Estado Novo ainda se aguentaria mais quatro anos. Tinha de ser do Ribatejo e da zona saloia, justamente das regiões mais açoitadas pelas Grandes Cheias, que partiria a estocada final à ditadura. Tinham de brotar dessas entranhas, anos antes encharcadas pela água e pelo sangue, as ganas de terminar, de uma vez por todas, com a opressão, a crueldade e a injustiça. No dia 24 de Abril de 1974, um grupo de militares comandados pelo capitão Otelo Saraiva de Carvalho instalou secretamente um posto de comando do movimento golpista no Quartel da Pontinha, em Odivelas, por onde haviam vagueado tantos olhos mais pesados do que a lama. E onde ainda estava viva a memória de tantas mortes. Já ao Ribatejo, das lezírias e das charnecas, tão fertilizado quanto penitenciado pelos alagamentos, coube um papel crucial. Foi da Escola Prática de Cavalaria de Santarém que partiu uma coluna de chaimites, pequenos tanques militares, sob o comando sereno, mas firme, de um jovem de 29 anos com um objectivo claro: a ocupação do Terreiro do Paço que então recebia o nome de código «Toledo». Alentejano de nascimento, órfão de mãe, meio criado pelo Ribatejo e amadurecido pela Guerra Colonial, a 25 de Abril de 1974, esse capitão de seu nome Salgueiro Maia encontrou-se com a História. No dealbar da madrugada, já com a sua caixa de cigarrilhas no bolso, pronto para escrever um capítulo de Portugal, afirmou perante umas largas dezenas de homens na Escola de Cavalaria: «Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado: os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!» Às três e meia da manhã, as tais dez viaturas blindadas atravessaram a porta de armas com a inscrição «ao galope, à carga» comandadas pelo capitão sem medo, rumo a Lisboa. «Charlie Oito» (Salgueiro Maia) comunica a «Tigre» (Otelo Saraiva de Carvalho): «Ocupámos Toledo e controlamos Bruxelas e Viena (Banco de Portugal e Rádio Marconi)!» Os passos do herói são o próprio mapa do 25 de Abril. Salgueiro Maia move, mais tarde, parte das suas forças para o Quartel do Carmo, onde encontra Marcelo Caetano que, ao final do dia, e perante a eficiência do comando e da estratégia dos Capitães de Abril, se rende e entrega. Esse derivado de Salazar parte, depois, para a Madeira, rumo ao exílio, escoltado por Charlie Oito até ao avião que o transportaria até ao Brasil, do qual já não tornaria. Avesso a privilégios, mordomias e honrarias, Salgueiro Maia recusou ser membro do Conselho da Revolução, adido militar numa embaixada à sua escolha, governador civil de Santarém ou de pertencer à Casa Militar da Presidência da República. Em 1989, foi- lhe diagnosticado um cancro que lhe tirou a vida. Tinha 47 anos e pediu para ser enterrado em campa rasa. Para sempre ficou a sua lição: desobedeçam. ONDA DE CHOQUE «O Ribatejo deve ser visto das Portas do Sol de Santarém, num dia de cheia, ou das bancadas de uma praça de toiros, numa tarde de Verão. Num dia de cheia, porque o Tejo hipertrofiado marca-lhe exactamente a extensão e os contornos que a geografia nunca encontrou. Quando o rio intumesce e um mar de água se espreguiça por quilómetros e quilómetros de terras baixas e porosas, Portugal, sempre sequioso e árido, sente que aquela nesga de pátria é um mundo à parte dentro das suas entranhas – um mundo rico, de aluvião, de maná, onde não é preciso tirar dos abismos, a gastalho, a verdura duma couve, e se pode gastar o tempo numa lúdica e alegre faina, a cavalgar nas asas do vento… Se por sorte o sol se vem reflectir na grande superfície do espelho, então o fenómeno torna-se sobrenatural, porque se unta à líquida impressão diluviana a pureza de uma claridade celeste. Ilhas de casario aqui e além, semeadas no bojo do grande oceano, certificam que também há perigo e perda nessa avalanche. Vidas em risco e colheitas perdidas. Mas os sentidos negam-se a semelhante convicção. Espraiam-se felizes ao lume de água, na íntima confiança de que não pode acontecer qualquer desgraça numa Canaã pelos numes da fertilidade.» Talvez o autor destas linhas, Miguel Torga, não estivesse totalmente ciente do sofrimento das gentes de Borda-d’água ou da repetição regular das inundações. Ainda nos anos 70, o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles diria à RTP que, se a mesma queda pluviométrica que se verificou em 1967 se repetisse nos nossos dias, «podemos ter a certeza, como não se emendou a mão a esse sentido negativo de construção da paisagem, podemos ter certeza de que as consequências hoje serão mais nefastas do que foram então.» Serão? O que se passou até agora? Supostamente, muito mudou, vivemos num país democrático, apetrechado com um Serviço Nacional de Protecção Civil e um Serviço Nacional de Saúde que se pretende universal e gratuito. Mas há aspectos da vida em sociedade que permanecem incrustados. Há um círculo vicioso de resposta nacional às catástrofes (grandes cheias ou grandes incêndios),como nota a historiadora Ana Paula Torres. A resposta das autoridades e da população é pontuada por três momentos: primeiro reage-se à catástrofe com medidas urgentes para a sua resolução e com vista à reposição da normalidade. Num segundo período, procede-se a uma parafernália legislativa visando medidas de carácter estrutural para prevenir ocorrências semelhantes. Depois, verifica-se a inércia, a incapacidade de pôr em prática o que se prescreveu, a procrastinação da aplicação da legislação (sobretudo a de elevada complexidade infra-estrutural) e a continuação dos comportamentos de risco. E tudo começa de novo. É Tudo fica igual ou quase na mesma. É esse padrão de actuação que explica, pelo menos em parte, o elevado número de vezes que o País arde ou é inundado, ano após ano, como se não houvesse estudos que tivessem já identificadas as causas como uma lenga- lenga, como se não se conhecessem já as medidas incontornáveis de cor e salteado. Portugal foi várias vezes um país inovador e pioneiro no âmbito da legislação. Falta, contudo, a capacidade de execução das próprias leis. As autoridades não conseguem porque não enfrentam os interesses instalados. Os cidadãos ou mantêm comportamentos de risco ou mostram-se apáticos perante quem viola a lei. Assim aconteceu em Novembro de 1967: tentou resolver-se os problemas prementes e restabelecer a normalidade; rendilharam-se leis para alterar o regime jurídico dos terrenos públicos, definiram-se os conceitos de leito, margem e zonas adjacentes para se disciplinar a ocupação urbana dos leitos de cheia. Também se tornou obrigatório o licenciamento dos terrenos privados localizados nas zonas críticas e respectivas obras. Em 1967, muitos pareciam saber o que fazer e como fazer, mas não fizeram e, tal como Ribeiro Telles avisou, em 1983, os concelhos da Grande Lisboa voltavam a ficar inundados. Outra das razões pelas quais este paradigma está instalado é porque, tal como planeou Salazar e como permitiu a democracia, nunca se fez o luto colectivo, o tal processo elaborativo que possibilita que os sobreviventes advenham mais fortes. Quando uma comunidade chora os seus defuntos, está a confrontar-se com a sua própria finitude. A morte do outro, mesmo que desconhecido, remete-nos sempre para a fragilidade humana. Portanto, a transformação no enlutamento é o que edifica a consciência de que, como seres finitos, podemos dar uma significação às nossas vidas e podemos mudar. Sem esse caminho, sem reflexão crítica da perda, perde-se esse agudo da vulnerabilidade e restará a ideia de que não volta a acontecer, já passou, vai ficar tudo bem. Sem luto colectivo, tudo se repete, numa espiral infernal. Por isso mesmo, a Saúde Mental em Emergência é uma área de investigação e intervenção que tem vindo a crescer brutalmente nas últimas décadas. Pelos piores motivos. Trata-se de um ramo da Psicologia que entrou em desenvolvimento exponencial depois do ataque às Torres Gémeas e considerando o incremento do terrorismo organizado, o fenómeno dos lobos solitários, os homicídios em massa (em escolas ou locais de trabalho/diversão), o aumento da população mundial com a ocupação de lugares propensos a fogos, inundações, furacões, ou as guerras e os conflitos em todo o globo. As recomendações para a preservação da saúde mental em emergência passam, claro, pela estimulação do suporte comunitário, suporte das redes colaborativas, criação de oportunidades para aprender e desenvolver novas actividades, protecção dos mais vulneráveis. De resto, actualmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda explicitamente que os planos para a prevenção e intervenção em catástrofes incluam obrigatoriamente a componente da saúde mental. O que, escusado será dizer, não se verifica em Portugal. Portanto, após as Grandes Cheias, seguiram-se leis para alterar o regime jurídico dos terrenos. Como disse Ana Paula Torres ao jornal Público, o «ensinamento da catástrofe» revelou-se «fundamental na legislação portuguesa». Só que, como sublinhou o geógrafo Fernando Rebelo, quando choveu com a mesma intensidade em Novembro de 1983 e em Fevereiro de 2008, a destruição repetiu- se, ainda que a crise tenha ficado longe da de 1967. Essas últimas inundações graves na Área Metropolitana de Lisboa, já no final da primeira década do século XXI, revelaram que as linhas de água das zonas baixas de Sacavém (Loures) e Algés (Oeiras) não conseguiram corresponder à intensidade das fortes chuvas. Os grossos caudais que escorriam das serras tornaram os socorros e o escoamento muito exigentes e quase impossíveis. Duas irmãs morreram quando o automóvel em que seguiam foi arrastado pela subida das águas da ribeira do Jamor. Seguiu-se o habitual passa culpas entre responsáveis, neste caso entre o poder local e o ministro do Ambiente, que acusou os municípios de não procederem atempadamente às limpezas dos taludes de saneamento. Já os autarcas lembraram ao titular da pasta que a manutenção das linhas de água nas serras era da responsabilidade do seu ministério, que a havia esquecido, mesmo perante a insistência dos diferentes edis. José Saldanha Matos, especialista em hidráulica, também não tem dúvidas de que as Grandes Cheias de 1967 «aumentaram a consciencialização e o controlo» sobre as construções em zonas de risco. «Há 50 anos, as pessoas tinham muretes na linha de água que foram levados pelas cheias, criaram autênticas barragens e impediram a água de circular. O que já não é possível», muito à conta da Directiva-Quadro Água (as normas europeias contra as inundações), da criação de zonas especiais e de planos para mitigar os efeitos das alterações climáticas. Actualmente, os perigos em zonas densamente povoadas, como a capital e outras malhas urbanas, são outros. É certo que as precipitações intensas vão sempre ocorrer, podem voltar a verificar- se as tais chuvas rápidas e «a sua gravidade vai aumentando à medida que o território ocupado também aumenta». É maior a «cascata de efeitos»: nos serviços públicos, nos transportes, nas telecomunicações e na energia. E a permeabilidade dos solos cai «drasticamente» com a ocupação intensiva. Persistindo esta tendência de o betão comer espaço ao solo infiltrável, as águas das chuvas vão permanecer cada vez mais à superfície e, com isso, correr mais rápido, formando caudais indesejados. «Agora, acontece que a mesma precipitação dá um efeito mais grave», sublinhou Saldanha Matos, um dos autores do plano geral de drenagem de Lisboa. Ou seja, já não é preciso chover tanto para gerar consequências dramáticas. A construção de diques e barragens no Tejo, antes de Santarém, tornaram as cheias no Ribatejo cada vez mais raras, pelo menos com a dimensão das verificadas nos anos 60. O risco maior de inundações vem agora de Espanha, quando as barragens na fronteira, pressionadas por forte pluviosidade, são obrigadas a abrir as comportas. Isto é, nem sempre sendo possível evitar a «grande cheia», essas represas trouxeram tempo de alerta às populações, dando-lhes a oportunidade para resguardar animais e bens. Nem todos, claro. Além disso, por exemplo, apesar das prudentes disposições e indicações contrárias por parte das autoridades municipais, toda a parte baixa da povoação de Quintas continua habitada. Algumas das casas esbarrondadas em 1967 foram recuperadas e até aumentadas com um piso superior. «Há quem continue a construir ilegalmente em leito de cheia. A população não aprendeu, continua a poluir as linhas de água e a assobiar para o lado relativamente às alterações climáticas. Nada nos garante que isto não volte a acontecer», avisou, já em 2020, Manuela Ralha, vereadora com o pelouro da Cultura na Câmara de Vila Franca de Xira. A escritora Alice Vieira, no Jornal de Mafra, rematou: «Claro que agora o País é outro. Mas estas inundações que ciclicamente nos atacam são a prova de que se continua a desrespeitar a natureza, a deixar construir edifícios em locais de perigo iminente que, à primeira chuvada mais forte, podem levar a situações irremediáveis. No litorala situação também não é melhor: continuamente se rouba espaço ao mar – e “aquilo que ao mar se rouba, o mar vem sempre buscar”, como uma vez me disse um pescador de Buarcos. Os mais novos podem pensar que as Cheias de 1967 foram na pré-história. Para mim, foram ontem. E parece que não aprendemos muito.» Em 2012, as Grandes Cheias foram também estudadas pelo Projecto Disaster. A partir de 16 jornais portugueses, os investigadores daquele núcleo identificaram e catalogaram todas as inundações e deslizamentos de terras ocorridas desde 1865. Registaram 1903 casos com vítimas mortais. Do trabalho realizado, foi criada uma base de dados assinalando os perfis de risco para cada concelho do País, identificando as regiões de Sacavém, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Oeiras como de grande perigo. Não restam dúvidas. Mas é no Norte do país, mais precisamente entre o Douro, o Tâmega e o Sousa, que se encontram os municípios com maior probabilidade de ocorrência de cheias com forte impacto nas populações. As conclusões são do projecto Forland, que abrange os 278 municípios do continente, num levantamento levado a cabo entre 2016 e 2019. Este perigo é calculado pelo Índice de Risco de Cheias, que estabelece a probabilidade da ocorrência de uma inundação e o seu impacto em pessoas, bens e infra-estruturas, resultando da combinação de três factores, cada um calculado a partir de diversas variáveis: perigosidade, exposição e vulnerabilidade. Ora, no topo da tabela, apresentando maior risco, está Gondomar, seguido de Marco de Canaveses. Olhando para o cimo da tabela, há também dois concelhos da zona da Ria de Aveiro (Murtosa e Estarreja), mas a maioria é também da área do Tâmega e Sousa (Castelo de Paiva, Cinfães, Celorico de Basto, Lousada) e do Porto (Gaia). Ao jornal Público, a coordenadora desse projecto de investigação, Susana Pereira, explicou que a perigosidade refere-se à probabilidade espacial e temporal da ocorrência das cheias (calculada com base no histórico); a exposição «à presença de população e de actividades económicas que podem ser afectadas pelas cheias» (densidade populacional, ou grau de impermeabilidade dos solos, por exemplo); e a vulnerabilidade que «está relacionada com as características dos indivíduos – como idade, nível de instrução, condição económicas», avaliando ainda os meios locais de resposta a situações de catástrofe. Daí que haja municípios exactamente muito expostos, mas de menor risco. Exemplificando: Golegã, na bacia do Tejo, «tem mais de 80% da sua área ameaçada por cheias». Se este concelho do Ribatejo «tem os valores mais elevados do país na perigosidade, depois, como tem menos população exposta e a vulnerabilidade não é das mais altas», acaba por não estar nos primeiros lugares do índice. Gondomar, que encabeça a tabela, tem na vulnerabilidade social e na exposição valores mais expressivos do que a perigosidade, apesar de o concelho ser atravessado pelo Douro. Aliás, é na órbita desse rio que os municípios apresentam maior grau de fragilidade, sendo que este indicador é tão mais relevante porque, segundo Susana Pereira, «potencialmente, quanto mais frágil for a situação socioeconómica das pessoas, a resposta que elas terão numa situação de emergência será pior e vão sofrer mais consequências». Em contraste, a região sul do Algarve, assim como Porto e Lisboa, são das menos ameaçadas. Certo também é que as alterações climáticas têm um impacto significativo nas inundações na Europa, nomeadamente fazendo com que ocorram mais cedo do que costumava verificar-se, potenciando o seu potencial destrutivo. Entre todas as catástrofes naturais, são as inundações que causam mais vítimas em todo o mundo, e quase todas as cidades europeias estão construídas em torno de um rio o que, para muitos especialistas, obriga à revisão das infra-estruturas para protecção dessas malhas e populações urbanas. Em 2016, Paris preparava-se para a inundação do século e as autoridades francesas realizavam exercícios para treinar os serviços de emergência para possíveis alagamentos catastróficos na capital, já que a questão não é se vai acontecer, mas sim quando irá acontecer. As últimas grandes cheias foram em 1910, com as águas do Sena a subirem oito metros devido a chuvas torrenciais. Se algo idêntico acontecer na actualidade, as previsões apontam para prejuízos na ordem dos 20 mil milhões de euros. Cerca de 830 mil pessoas habitam zonas sujeitas a inundações e mais de metade poderá ser afetada directamente. Cem mil negócios também sofrerão com as inundações, estando em causa 750 mil empregos. Tal como a capital francesa, outras metrópoles europeias, considerando a tal proximidade dos rios, a emergência climática e a probabilidade dilatada da repetição de eventos extremos, têm vindo a adoptar planos especiais de prevenção e preparação. E por cá? Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra vez a pomba, dizendo aos outros que, se ela não tornasse, era sinal de que as águas estavam inteiramente acabadas. Não voltando até o meio-dia, abri tudo, portas e janelas, e despejei toda aquela criação neste mundo. Desisto de descrever a alegria geral. As borboletas e as aranhas iam dançando a tarantela, a víbora adornava o pescoço do cão, a gazela e o urubu, de asa e braço dados, voavam e saltavam ao mesmo tempo... Viva o dilúvio! E viva o sol! Machado de Assis Ficha Técnica À PROVA DE ÁGUA PARTE I Pranto do céu Desta água não beberei Marca de água PARTE II Gota no oceano Luta na lama Águas passadas Pedrada no charco Depois de mim, o dilúvio Onda de choqueem breve, a morte desabava em cima do País. A chuva atingiu números históricos: num período de cinco horas chegou ao valor médio habitual para todo o mês de Novembro. Água é vida. Esta água foi morte. Não parou durante três dias. Com uma força inesperada, bruta e louca como não havia memória nem imaginação, a enxurrada sugou vidas, árvores, animais, pedras, carros, e casas com famílias inteiras lá dentro. O valor da quantidade de precipitação equivaleu a um quinto do total anual, sendo que foram registados valores de 112,5 mm na estação de Lisboa/Tapada e de 115,6 mm de precipitação na estação meteorológica da Gago Coutinho. Particularmente afectada foi a área da Grande Lisboa (Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Alenquer), com as inundações a causarem um elevado número de mortos, feridos e milhares de desalojados. Na aurora desse dia, «Vila Franca parecia uma terra fantasma que tinha sido varrida por um ciclone. Havia pessoas desaparecidas, muito lixo pelas ruas, muita lama, a linha do comboio estava cheia de escombros e de animais mortos», lembrou o morador João Manquinho ao site abrilabril.pt. Choveu em barda sobretudo na linha de Cascais. Mas por aí a água não foi mortal. Na linha do Estoril, após as chuvas intensas, nada circulava, nem automóveis nas estradas inundadas, nem comboios, devido aos danos provocados na via ferroviária, na sinalização, no comando eléctrico, nas agulhas. Setenta e duas horas depois, os caminhos-de-ferro ainda não estavam completamente restabelecidos em todas as linhas. Em dois troços, as medidas de segurança impunham uma via única e marcha moderada. Mas nada de vidas perdidas. Nem um único falecido. Há várias conservatórias da Grande Lisboa onde não existem registos de óbitos provocados pelas cheias. É o caso de Cascais, apesar de ter sido no Estoril que se verificaram os maiores índices de pluviosidade. Ou seja, onde a precipitação foi maior não se perdeu uma única vida. As tragédias são sempre assimétricas, não atingem todos por igual e foi nos arredores da capital que mais vidas se perderam, nos bairros pobres de lata e lassidão, em Odivelas ou Loures ou em concelhos como Vila Franca de Xira. Uma inundação é sempre um excesso, um exagero. E, para quase todos os 700 mortos, as Grandes Cheias de 1967 foram a única abundância que tiveram em vida. Assim, a tragédia acabou por despertar o país hipnotizado, por acordar, o Portugal em transe para as esquecidas cinturas de Lisboa, onde milhares viviam enterrados-vivos em barracas, perto de ribeiros, sem electricidade ou esgotos. Portanto, os dados registados da pluviosidade revelaram uma surpreendente contradição entre as zonas onde ela ocorreu com maior intensidade e aquelas onde os efeitos sobre as populações foram mais impiedosos. Segundo o Relatório que José de Azeredo Perdigão apresentou à Fundação Calouste Gulbenkian sobre a avaliação dos estragos, as chuvadas que ocorreram na Grande Lisboa tiveram uma frequência de uma vez em 25 anos e resultaram em consequências devastadoras; as que ocorreram no Estoril tiveram a frequência de uma vez em 100 anos, registando- se aí apenas danos ligeiros. Apesar dos impactos impressionantes originados, este doloroso capítulo da nossa história contemporânea permanece pouco evocado. A sua inscrição na memória pública é rarefeita, feita de processos de dissimulação. Mesmo as abordagens académicas têm focado prioritariamente o fenómeno meteorológico e as respectivas consequências, mas não os efeitos sociais e políticos. Salvo algumas excepções, tão pouco há crónicas sobre o tema, e raros momentos no calendário o assinalam. Depois, já se sabe. O que não é dito não existe. O real sem palavra não tem sombra. O real sem palavra vira sobrenatural. O País passava tanta fome que muitos queriam fugir. Quem podia escapava para o estrangeiro, para França, terra prometida. Mas muitos deslocaram-se para a zona de Lisboa, na vã esperança de encontrar uma vida melhor. Só que para milhares, a madrugada de 26 de Novembro fê-los ver a morte e não o tesouro escondido na ponta do arco-íris. A forte pressão urbana levou a um significativo aumento da área construída, nomeadamente de bairros ilegais, barracas e construções precárias, com desordenamento do território e, claro, aumento da perigosidade potencial das chuvas. Construindo em todo lado, em leito de cheias, onde calhasse, verificou-se uma destruição da vegetação, grande erosão e maior impermeabilização dos solos com deficiente escoamento das águas. Estava montado o palco da tragédia. Escutaram-se as três pancadas de Molière. Em breve, a Grande Lisboa ficaria desfigurada. A catástrofe começou como uma ópera, retumbante, magistral. De acordo com o Século Ilustrado, por volta das 19 horas e 30 minutos, um clarão imenso rasgou a abóbada celeste no centro da cidade. E não chegou sozinho. Logo veio também um trovão prolongado e ensurdecedor. Incautos, alheios, os alfacinhas estavam longe de imaginar que esse grande relâmpago e esse baque grosso anunciavam o primeiro acto da dor. Daí em diante, e até às 24h, a chuva aumentou para uma intensidade nunca vista, acompanhada por vento violento. Rajadas assustadoras que assobiavam como mostrengos. Rapidamente, as ruas passaram a riachos, as avenidas a rios caudalosos, as praças transformaram-se em lagos. Simultaneamente, o nível do Tejo subiu quatro metros e meio. Os esgotos deixaram de ser capazes de escoar as águas acumuladas. Toneladas líquidas em movimento começaram a pressionar terrenos, derrubando muros e aluindo enormes massas de terra que resultaram em novos e violentos desabamentos, espessando ainda mais a lama densa. A água extraiu o calcetamento das vias e as correntes de lodo arrastavam tudo. A paisagem era aterradora, feita de despojos encalhados, flutuantes ou levados por compactos caudais onde corriam pedaços do solo, rochas, fragmentos de muros, telhados e paredes, partes inteiras de barracas e de outras habitações precárias. Parecia o fim do mundo. Algumas pessoas acharam mesmo que era a última batalha e o crepúsculo do universo. Havia automóveis submersos, outros a boiar de rodas para o ar, ou amontoados uns sobre os outros ou bizarramente estacionados em cima de árvores. Passava de tudo nesses amazonas que brotavam espontaneamente como se a Terra purgasse as entranhas, como se o planeta exorcizasse fantasmas e venenos: frigoríficos, mobiliário, cadáveres de pessoas e de animais, tudo misturado, tudo sujo, tudo valendo o mesmo, tudo igual. Dor, dor e mais dor a boiar. Todos esses corpos e detritos arrastados pela corrente iam provocando cada vez mais estragos ao embaterem contra estruturas, alicerces, paredes, pontes, que acabavam por ceder perante a energia arrasadora do lodaçal. Destruição gera destruição. A lama tudo cobria e envolvia, derrubava linhas de caminho-de-ferro, passagens aéreas, placas toponímicas. Arrancava estradas, caminhos, portões, casas que depois desapareciam no horizonte e nunca mais eram vistas. Aniquilava. Quem via esse maremoto castanho a chegar, primeiro nem sequer percebia o que estava a acontecer. Depois, a adrenalina batia com força, o instinto descia até aos pés e fugia, procurando-se escapar de qualquer maneira, livrando-se do mal. As comunicações por estrada e por comboio foram interrompidas. Em muitos lugares só se podia circular de barco. Os telefones deixaram de funcionar. Também já não havia luz e como a noite estava de um escuro cerrado não se via absolutamente nada. Era como se, de repente, milhares de pessoas acordassem cegas no meio do caos, cegas e rodeadas de vagas gigantes levando cadáveres e outras ruínas. Imagine-se a aflição. * Grandes histórias sobre grandes dilúvios sempre existiram. Mas Lisboa viveu uma. O mito do dilúvio (presente em inúmeras culturas, da Mesopotâmia à Mesoamérica) é um conto de culpa, uma narrativa sobre deuses a castigar humanos pelos seus pecados. Uma grande inundação, enviada por uma ou várias divindades, destrói a civilização, como retribuição. Trata-sede uma variante dos mitos de criação, nos quais a água é sempre o elemento de purificação da humanidade, de preparação para o renascimento. Existem mais de 500 lendas do Dilúvio contadas por mais de 250 tribos e povos. A maioria destes mitos de inundação é protagonizada por um herói, que representa o recomeço, tal como Noé ou Deucalião. Zeus decidiu exterminar a espécie humana, indignado com o ódio que nela medrava e convencido de que só uma nova raça seria digna. Quando então Zeus inundou a Terra, Prometeu orientou o seu filho, Deucalião, de modo a que este construísse uma arca para sobreviver ao grande desastre. O deus soltou os ventos e, em breve, todo o céu se tingiu de escuro. As nuvens, empurradas em bloco, romperam-se e torrentes de chuva caíram. O solo ficou encharcado. Posídon, deus dos mares, libertou também os rios e lançou-os sobre a Terra. Rebanhos, animais, homens, casas e templos foram tragados. De todas as montanhas, apenas a do Parnaso era mais alta que o nível das águas. Foi nesse monte que o sobrevivente Deucalião, a partir das pedras – os ossos do planeta – refundou a humanidade. Ficções? Facto é que o nosso mundo já sofreu duramente com a subida do nível do mar. Nas Fases Estufa deste planeta, há 30 milhões de anos, a superfície das águas escalou 70 metros. E talvez por isso mesmo se trate de uma narrativa universal, assim como o retorno do Messias. Para suportar estas teorias, a Geologia exibe os recheios dos mais altos cumes do mundo. Portanto, se a versão mais conhecida do dilúvio é retratada na Bíblia, em quatro capítulos do Génesis que descrevem a Terra a ser forrada a água após 40 dias e 40 noites de chuva incessante, na verdade, o registo de fósseis marinhos no cimo de altíssimos montes tem sido uma das evidências utilizadas para sustentar que se tratou de um acontecimento global, que dizimou uma grande parte da fauna e flora terrestres. Aconteceu. Foi Leonardo Da Vinci, que, no início do século XVI, desenvolveu aquela que hoje pode ser considerada a primeira análise científica do Dilúvio. Numa das suas expedições às montanhas de Parma e Piacenza, esse tocado por Deus interrogou-se sobre a presença de fósseis de conchas a quase dois mil metros de altitude, escrevendo: «Já que as coisas são muito mais antigas do que as letras, não devemos admirar-nos de que, nos nossos dias, não exista registo de como estes mares tomaram tantas nações… mas basta para nós o testemunho de coisas produzidas nas águas salgadas e reencontradas nas altas montanhas.» Na tentativa de reconstruir o cenário desse suposto dilúvio, Da Vinci realizou estudos aplicando o seu conhecimento sobre o movimento das águas e dos ventos, projectando cenários acompanhados da ilustração desses fenómenos. Esses seus desenhos são violentos e incómodos. Mostram árvores a ser desenraizadas e esboroadas em pedaços, rochas a desmoronarem- se sob a chuva torrencial, casas e cidades inteiras ruindo sob o peso de tempestades indómitas. «Nem pelo transbordo do mar poderiam as conchas, sendo objectos pesados, serem levadas pelo mar até o alto das montanhas, e nem tampouco pelos rios, em curso que seria contrário ao das suas águas… e as conchas da Lombardia ainda estão em quatro níveis e, portanto, em toda a parte, tendo sido criadas em várias épocas.» Observação, imaginação e curiosidade – Da Vinci tinha tudo. No Mito da Mesopotâmia, Ziusudra e a sua família conseguiram sobreviver num enorme barco. Na babilónica epopeia de Gilgamés, Utnapishtim recebeu um navio e nele transportou gado, animais selvagens e a família. Na Índia, Manu construiu um barco puxado por um peixe gigante que se firmou numa montanha nos Himalaias. Segundo a lenda chinesa do dilúvio, Nuwa e Fuxi plantaram um dente de onde nasceu uma enorme cabaça. Quando o deus do trovão causou um aguaceiro torrencial, essas crianças salvaram-se abrigadas no fruto e, mais tarde, repovoaram o planeta. No México, a versão dos chimalpopocas diz que um dilúvio submergiu as montanhas – Nata e Nena refugiaram-se num tronco flutuante até que as águas baixaram. Os tupinambás do Brasil falavam de uma época em que um grande dilúvio afogou todos os seus ancestrais, excepto os que sobreviveram em canoas ou nos topos de árvores altas. Na Samoa, corre a lenda de um dilúvio que destruiu todos, exceto Pili e sua esposa, que encontraram um lugar de segurança numa rocha e, depois do dilúvio, repovoaram a Terra. Nas ilhas havaianas, o deus Kane ficou aborrecido com os humanos e provocou um dilúvio – somente Nu’u escapou num grande barco que por fim parou numa montanha. Os soiotes da Sibéria dizem que uma rã gigante mudou de posição, fazendo com que a Terra fosse inundada por um dilúvio – um homem idoso e a sua família sobreviveram numa balsa que estacionou num monte. Com a água em ebulição sem fim, a inundação está a derramar destruição; subindo e sempre crescente, ameaça os próprios céus, dizia o imperador Yao. Um dos maiores mitos da civilização chinesa é o do Grande Dilúvio de Gun-Yu, que conta a história de Yu, o qual conseguiu domar o rio Amarelo e conter a sua inundação, que durava há duas gerações. Aclamado herói, foi mandatado para fundar a primeira grande dinastia chinesa, a Xia. Sim, há provas da subida dos níveis dos mares e dos rios também. Um recente estudo publicado na revista Science aponta para a possibilidade de esse Grande Dilúvio realmente ter acontecido na sequência da descoberta de vestígios de um deslizamento de terras pós-terramoto. A quantidade de solo teria sido suficiente para bloquear o rio Amarelo, na região onde actualmente fica a província de Qinghai, perto do Tibete, fazendo-o transbordar como magma em erupção. Aí foram encontrados também 14 esqueletos de crianças, que terão ficado soterradas, sendo que as análises de datação realizadas com carbono aos ossos indicam que a inundação desse curso de água aconteceu por volta de 1920 a. C. A fragmentação e os estragos que provocou terão dado origem a uma nova ordem política, rezam as lendas. Mas das Grandes Cheias de 1967 chegou algum recomeço ou só veio mais dor e desilusão? Veremos. DESTA ÁGUA NÃO BEBEREI Depois da meia-noite, Lisboa e o Tejo eram apenas uma mesma coisa, uma só massa, uma só carne. Onde começava este e terminava o outro já ninguém sabia. O Campo Grande e a Praça de Espanha transformaram-se em espelhos de água. Formou-se então uma onda que atingiu a altura de um autocarro de dois andares e que rasou a cidade, esmagando, por exemplo, o muro da vedação do parque da Fundação Calouste Gulbenkian, na esquina com a Avenida de Berna, penetrando nos pisos inferiores da sede e do museu, em fase de construção. A segunda onda, vinda da Avenida de Berna, fez aumentar o volume das águas e inundou as instalações da Fundação. No final da enxurrada, a cota mais alta marcava 1,80 metros na Praça de Espanha e 2,20 metros na Avenida de Berna. Imagine-se. Ondas altas de lama a submergir a cidade. Manuel Pereira, um carpinteiro residente na Rua Filipe da Mata, andou a salvar pessoas no seu barco de borracha, fazendo contínuas viagens para resgatar todos os que apanhou até à Avenida António Augusto de Aguiar, usando tábuas como remos. Uma torrente invadiu a Feira Popular, encharcando o Teatro Vasco Santana, o palco, a plateia, os camarins. Segundo o Diário de Notícias, com a água quase até aos joelhos, descalço e meio despido, o pessoal da Companhia Teatro Estúdio de Lisboa e até o próprio público levantaram uma paliçada, tentando evitar que a água estragasse todo o material da peça, acessórios, cenários. Certamente não entenderam logo que já eram todos figurantes de um outro espectáculo. Na Praça de Espanha e na Avenida da Liberdade só se passava de barco e, na estação de caminhos-de-ferro, centenas de pessoas ficaram retidas nas carruagens porque a água submergiu as linhas. Que pânico, fechadas dentro de comboios envoltos em água, locomotivas transformadas em submarinos, aquários invertidos. Interrupções no trânsito sucederam-se desde a Avenida 24 de Julho (comágua a dar pela cintura) ao Campo Pequeno, da zona do aeroporto da Portela à Avenida Almirante Reis, da Baixa a Santa Apolónia. Em Benfica, que esteve durante horas isolada pelas águas, houve condutas de água que rebentaram e muros que abateram. «Aquilo foi uma coisa horrível, mesmo aqui na nossa rua, ficou tudo inundado. Mas não se podia falar... até hoje não se sabe bem o número exacto de pessoas que morreram. Mas nunca se ouve falar sobre isso, é como se nem sequer tivesse existido!», lembrou uma moradora no blogue Retalho de Bem-fica. O medo da ditadura era maior que o pânico das cheias. «O Américo e a Lili viviam na Encarnação. Ele era veterinário, a pessoa mais calma que encontrei em toda a minha vida. Falava tão baixinho que todos nos calávamos para o ouvir. Era um homem muito bondoso que nos transmitia a paz das pessoas sensatas e carinhosas. Ela era muito nervosa e dada a depressões, mas tinha uma gargalhada descontrolada e contagiante que animava os serões em que nos juntávamos todos», testemunhou Ana Paula Torres no livro Gotas de Ar Frio. «Tinham dois filhos, meus companheiros de brincadeiras, a Sofia, de 13 anos, que era muito certinha, e o Rui, de 12, que era um esgrouviado sardento e de cabelo em pé que trocava comigo valentes pontapés e algumas bofetadas. Viviam na Encarnação, mas não recordo o local onde tudo aconteceu. Vinham no seu Volkswagen castanho, possivelmente a caminho de casa. Repentinamente, viram-se cercados pelas águas que entravam pelas fendas do carro de muitos anos e pelas janelas que não as conseguiam conter. Sentiram-se baloiçar e encharcar. Ainda oiço os seus gritos aterrorizados. Na aflição, subiram, um a um, para o tejadilho do carro. Juntaram-se lá todos, nem sei como, porque o tecto do carocha é estreito e não é plano. Mas estavam bem agarrados uns aos outros e à vida que lhes fugia. «A certa altura, o Américo retirou do bolso da camisa o salário do mês que tinha recebido naquele dia e guardou as notas numa mão, para que não fossem com as águas. Bruscamente, o rio que os cercava começou a correr mais violentamente e, numa chicotada brusca, lançou-se sobre o carro, projectando o Rui para fora daquela massa humana que se abraçava para viver. No mesmo instante, contava o Américo para nós, com a sua voz muito baixinha, “Larguei as notas e agarrei-o.” Ouvíamos aterrados. Reflexos que valem uma vida. O momento de uma vida. E o Rui a olhar para nós, apático e ainda em choque. As imagens dos quatro amigos em cima do tejadilho do velho carocha, da corrente a sacudir o carro, do Rui a ser projectado e do Américo a largar o salário para salvar o filho criaram um filme que continuei a ver durante muitas noites escuras. Foi a minha forma de viver, também eu, a tragédia de Novembro de 1967.» O som da chuva. A música da Terra, para Shakespeare. A voz sem palavras, para Rumi. Certo é que das onze da noite à uma da manhã, sem descanso nem tibieza, a água caiu pesada. A certa altura, as golfadas atingiram um carro que circulava na Rua de Alcântara, encurralando os três ocupantes. O repórter do Diário de Notícias, que na altura acompanhou as inundações, conta que um soldado mergulhou nas profundezas e conseguiu retirar os três passageiros, minutos antes de o carro ser arrastado. Tantos que, felizmente, escaparam ao destino. A Avenida de Ceuta, em Alcântara, esteve submersa e as vagas de lama desceram até à Avenida da Índia. A água entrou em todas as bifurcações, subiu e desceu escadarias, extirpou as portas e janelas de tabernas, lojas e habitações de rés-do-chão, arrastando móveis, bilhas de gás, contentores e bidões da estação ferroviária. Eis um manto proceloso de águas lodosas, cheio de remoinhos e de pressa, que tudo exterminava na sua corrida desenfreada, esmigalhando casas e estabelecimentos como se fossem brinquedos, isolando pessoas, e matando por afogamento ou à pancada, pois por toda a cidade levitavam na superfície das águas grandes objectos como mesas, blocos de cimento e destroços de construções, pedaços de madeira. O vale de Alcântara foi rapidamente inundado pela corrente das águas que descia dos pontos altos da cidade, bem como da serra de Monsanto, cuspida em jorros para aquele local. Por volta das 22 horas, já se viam eléctricos e automóveis imobilizados na via pública. Cerca da 1h da manhã, ficou tudo às escuras, depois um estrondo enorme dos fusíveis que rebentavam. Era a faísca final a selar o fim do primeiro acto. Tudo agora era breu e lodo. No Éden Cinema, situado nessa zona da cidade, na Rua do Alvito, era projectado o segundo filme da sessão da noite, quando as águas tomaram o edifício, provocaram um curto-circuito, alagando a plateia a uma altura de quase dois metros. Os espectadores fugiram para o balcão, onde ficaram retidos até de madrugada, quando foram resgatados pelos bombeiros com a ajuda de um barco pneumático. Foram salvas cerca de 200 pessoas. «Entrara no Cinema Império para a sessão da noite debaixo de chuva intensa», relembrou ao jornal Expresso o já falecido médico João Semedo. «Ao sair continuava a cair de forma igualmente copiosa. As novas “ribeiras” rápidas que desciam pela Alameda D. Afonso Henriques invadiam os primeiros degraus da escadaria. A chuva parecia não ter fim. Exclamava insistentemente para mim mesmo: “Quando irá parar?!” Recordo essa noite com grande nitidez. Os anos que já passaram não apagaram as memórias da tragédia. Todos esses acontecimentos permanecem inesquecíveis.» Das dez conservatórias então existentes em Lisboa, apenas na 8.ª há registos de mortes resultantes do temporal. É a conservatória correspondente à antiga freguesia da Pena (mais tarde integrada na de Arroios), não longe do referido Cinema Império. É aí que está situado o Instituto de Medicina Legal de Lisboa, para onde foram transportados os mortos da capital («apenas» cinco) e de vários concelhos vizinhos. Alguns começaram por ser enviados para os bancos dos hospitais de São José e de Santa Maria que, confirmando o óbito, os remeteram para a morgue. A maioria não foi autopsiada como mencionado, tal a evidência das causas da morte – os tais sinais visíveis a olho nu indiciando afogamento ou soterramento – e a quantidade de cadáveres que lotavam o espaço, como se agora fosse a inundação dos cadáveres. As estruturas de saúde não estavam preparadas para aquele alude e a quase totalidade das certidões de óbito foi lavrada pelo mesmo médico assistente dessa instituição, Francisco António de Aguiar, deixando no ar a hipótese de se ter tratado mais de um procedimento burocrático/administrativo do que, propriamente, de uma diligência clínica. Um ano mais tarde, Ilídio Amaral, na Revista Portuguesa de Geografia, resumia o que então aconteceu. As inundações foram resultado de quedas de águas brutais consequentes a um sistema depressionário formado na região do arquipélago da Madeira e que, desde 24 de Novembro, começou a deslocar-se em direcção a Lisboa. A estes efeitos somaram-se os de um sistema frontal que precedia uma massa de ar polar, de trajecto marítimo, transportada num anticiclone centrado nos Açores, deslocando-se com vento forte ou muito forte. Ao atingir a zona da Grande Lisboa, a depressão provocou uma queda da pressão atmosférica com a queda de grande precipitação, que teve intensidade máxima das 19h de dia 25 à 1h de dia 26. Em 2001, a investigadora Catarina Ramos, na mesma publicação, estabeleceu o diagnóstico: cheias rápidas, por oposição às menos perigosas cheias progressivas, que correspondem a longos períodos de pluviosidade abundante, os quais podem durar semanas. Para a investigadora, as cheias rápidas como as de 1967 caracterizam-se por uma dimensão perigosa e mortífera. São chuvas fortes e concentradas em curtos espaços de tempo, trazidas por depressões que provêm de invasões de ar frio (polar ou ártico) em altitude e que se estendem até às zonas subtropicais. Integram-se nessa classificação as cheias que ocorreram nos meses de Novembro de 1967 (região de Lisboa e Loures), de 1983 (região Lisboa-Cascais)e de 1997 (Alentejo e Algarve). O jornalista Joaquim Letria tinha então 24 anos e era repórter do Diário de Lisboa. Na noite do Dilúvio sem Deus estava em casa, num ponto alto da cidade, Campolide. Começou a entrar água pelo tecto do seu apartamento, supostamente por causa de um terraço, e foi por isso que tomou conhecimento do que se passava. A precisar de ajuda, ligou para os bombeiros, que então lhe explicaram que não tinham mãos para acudir às «verdadeiras preocupações» a que deviam responder por essas horas, quanto mais a uma goteira doméstica. Mais tarde, um colega que morava na Alameda das Linhas de Torres telefonou-lhe a dizer que tinha perdido o carro no Campo Grande. Fora-se na enchente. O repórter começou então a tomar consciência da magnitude da tragédia e seguiu até ao Bairro Alto, observando que as ruas haviam já passado a ribeiras. Anos mais tarde, diria à SIC que, durante a sua carreira, vira muita coisa… mas nada assim. Comoveu-se em directo e lembrou que todos os que lá estiveram ainda hoje choram quando recordam o quadro dantesco que forrava o chão. As Grandes Cheias foram a Tempestade Perfeita. Tudo confluiu para o olho do furacão, tudo se alinhou e convergiu para multiplicar o potencial da tragédia. Desde logo, houve a coincidência da chuva intensa entre os dias 25 e 26 de Novembro, com a preia-mar do rio Tejo. Sorte maldita. Antes disso, mão humana já fizera a cama ao Diabo. Vindos de Trás-os-Montes, do Alentejo, das Beiras, os portugueses em modo de sobrevivência, colonizaram lugares desadequados como encostas em zonas de várzeas, linhas de água, ou fundos dos vales e depressões. Lugares propícios à agricultura – que o trabalho na fábrica dava salário curto e a horta de subsistência sempre compunha o final do mês –, mas onde ocorriam enchentes e deslizamentos de terra. A maioria das habitações que construíram eram casebres muito pobres ou caves, tudo sem músculo para enfrentar intempéries. Pelo meio, pululavam os promotores imobiliários que ignoravam ou desvalorizavam os condicionalismos ambientais. E pronto, estavam lançados os dados para o desastre: muros nas linhas de água a funcionar como diques ou bombas-relógio; terrenos de bom escoamento de águas impermeabilizados com construções e pavimentação das ruas; canalização de certos troços das ribeiras sem garantia de drenagem; acumulação de lixos em zonas de cheias. E depois? Depois, as autoridades apenas se preocuparam em restabelecer a normalidade e produzir legislação para inglês ver. Os interesses imobiliários continuaram a abocanhar as boas práticas e tudo permaneceu favorável à repetição da catástrofe. MARCA DE ÁGUA A estatística é arrepiante. No Bairro do Pátio do Silvado, em Odivelas, foram ceifadas mais de 20 vidas e só no n.º 21 a força das águas matou uma família de seis pessoas e três gerações. Quem contou a sua história? A maior desgraça familiar ocorreu na Quinta da Quintinha, na Póvoa de Santo Adrião (Loures). Os sete elementos da família Ribeiro Garrido (por vezes os nomes são mais irónicos do que em qualquer ficção) morreram afogados: o pai, Adelino, de 43 anos; a mãe, Amélia, 36, e os cinco filhos menores, Adelino, 10, Fátima, 9, António, 7, Filomena, 5, e Carlos, 2. Também houve vítimas que, simplesmente, não tiveram nem estrelinha, nem anjo da guarda, e estavam no local errado à hora errada. Aconteceu com Ana Cristina de Sousa Ribeiro de Abreu, que contava apenas um ano de idade. Com residência na lisboeta e sequíssima Avenida de Roma, nessa noite não estava em casa e acabou por perder a vida. A bebé apareceu a boiar no rio Jamor, em Barcarena. O mesmo sucedeu com Sebastião do Carmo Cabaço, de 62 anos. Residente em Alhos Vedros, do outro lado do Tejo, foi encontrado morto em Ponte de Frielas, concelho de Loures. António Coelho da Graça, de 30 anos, casado com Elvira Assunção da Purificação Vicente da Graça, de 28, pais de Paulo Vicente da Graça, de 2, e de Rui Manuel Vicente da Graça, de 7 – os quatro mortos por submersão acidental. Idálio Vicente Pereira e Maria Luiza da Conceição Carvalho, ambos de 28 anos, pais de José Alexandre de Carvalho Pereira, de 4 anos, e de Maria Sousa Carvalho Pereira, de 5 – os quatro mortos por submersão acidental. Mário da Silva Rodrigues, casado com Almerinda de Jesus da Silva, ambos de 42 anos, pais de Adérito da Silva Rodrigues, de 11 – os três mortos por submersão acidental. Joaquim José Pereira Pires, 1 ano de idade, irmão de José Manuel Pereira Pires, 7 anos, e de Maria Sousa Pereira Pires, 8 anos – mortos por submersão acidental. Casimira Pereira Elias, 26 anos, casada, mãe de Anabela Pereira da Costa Vicente, 4, e de Olga Pereira da Costa Vicente, três meses de idade – mortas por submersão acidental. Apolinário Marques Pinheiro, casado com Maria Rita Perdigoto, ambos de 42 anos, pais de António Perdigoto Pinheiro, de 20 anos, solteiro, encontrado no dia 19 de Dezembro de 1967, nuns terrenos anexos às Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, em Alverca do Ribatejo – os três mortos por afogamento. Brás Carapinha Cuba, 35 anos, casado com Catarina Rosa Mira, 30, pais de Manuel Rosa Cuba, 6, e de Maria Rita Rosa Mira Carapinha, 4 – todos mortos por afogamento. Henrique Caetano Dias, 30 anos, casado com Laurinda Gertrudes dos Santos Dias, 28, pais de Júlio dos Santos Dias, 7, e Henrique Manuel dos Santos Dias, 2 –mortos por afogamento. Júlio da Silva Burmeira, 43 anos, casado, pai de José António Vaz da Silva Burmeira, 6, e Hernâni Vaz da Silva Burmeira, 3 – mortos por afogamento. Maria Dolores Cristiano de Oliveira e Maria Virgínia Cristiano de Oliveira, irmãs gémeas de 10 anos – mortas por afogamento. Maria de Jesus Capitão dos Santos, 10 anos, irmã de Fernanda Maria Capitão dos Santos, 7 – mortas por afogamento. Maria José Restolho Ferreira, 17 anos, irmã de Germana Maria Restolho Ferreira, 10 – mortas por afogamento. Manuel Rogério Martins Maçana, 38 anos, casado, pai de Maria Manuela Santa Clara Maçana, 11, Ana Bela Santa Clara Maçana, 6, Rogério Lúcio Santa Clara Maçana, 4, e Maria Adelaide Santa Clara Maçana, 2 – os cinco mortos por afogamento acidental. Desconhecido. Masculino. Aparentando 45 a 50 anos, 1,60 m de altura, forte, de cabelo preto e curto com entradas não muito grandes, vestindo apenas uma camisola, camisa de tecido militar e cuecas brancas. Encontrado cerca das 13h do dia 18 de Dezembro, na margem esquerda do rio Tejo, na área da freguesia de Vila Franca de Xira, entre Figueirinhas e Faial, deitado de bruços sobre umas pedras, a respeito do qual se ignoram todos os elementos de identificação. Florbela Silva Ferrão, 3 anos. Afogamento. Maria do Rosário da Costa Oliveira, 1 mês de vida. Afogamento. * Os mundos do salazarismo eram tão socialmente estanques que os remediados e os bem-postos podiam viver anos, décadas, sem sequer imaginar a miséria que fermentava nos arredores de Lisboa e no interior do País. Mas ela existia, medrava calada e, uns anos antes, no seu célebre discurso de Chaves – na campanha presidencial de 1958 – um Noé de seu nome Humberto Delgado acusou os governantes de Portugal de não conhecerem esses cenários de fome, ou de os desprezarem: «Se esses senhores entrassem num bairro-de-lata…», desafiou, aludindo à descoberta do mundo de pobreza suburbana, que se acentuava no reverso do «milagre económico português» supostamente em curso. As palavras quentes e empolgantes de Delgado, nesse dia histórico no Cine-Teatro de Chaves (o seu único registo de voz da campanha eleitoral), fecharam com uma frase que veio a alcançar um significado profético: «Todos nós, cidadãos pacíficos de uma candidatura pacífica, queremos pacificamente conquistar a paz. Mas os esbirros do governo, como têm visto, andam a chamar-nos subversivos nos jornais e a tratar-nos na via pública como malfeitores. Ninguém sabe, portanto, minhas senhoras e meus senhores, onde isto pode ir ter. Há uma coisa, porém, que quero jurar aqui. Eu estou pronto a morrer pela liberdade!» Humberto Delgadofoi assassinado a mando de Salazar em 1965. Pensando que iria reunir-se com opositores ao regime do Estado Novo, dirigiu-se à fronteira espanhola perto de Olivença. Ao seu encontro, liderada pelo inspector Rosa Casaco, foi uma brigada da PIDE. Chegados ao ponto de encontro, um deles, Casimiro Monteiro, rapidamente aproximou-se do general e, empunhando uma pistola com silenciador, disparou contra a sua cabeça, executando-o ali mesmo. A sua secretária, aterrorizada, começou a gritar e foi também alvejada.. Os corpos foram transportados nas bagageiras dos carros e levados para um caminho chamado Los Malos Pasos, a cerca de 30 quilómetros, onde foram largados numa vala, cobertos com ácido sulfúrico e cal viva. Os cadáveres viriam a ser descobertos semanas depois, a 24 de Abril, por umas crianças que andavam a brincar. Nem o General sem Medo, nem os pobres dos bairros-de-lata que denunciou, sobreviveriam à perfídia da ditadura. Guilhermina tinha 16 anos e acabara de adormecer na cama de ferro, logo depois de apagar o candeeiro a petróleo, com uma mão sobre a barriga onde gerava o seu primeiro filho. Era quase meia- noite e só faltavam cinco horas para se levantar e logo caminhar mais de cinco quilómetros até à fábrica da conserveira nacional, onde pelava marmelos a troco de 20 escudos por mês. Marmelada de cortar à faca e geleia, bela tradição da doçaria portuguesa que deixava muita descascadeira com amargo de boca depois de diariamente tratar de quilos e quilos de fruta, isto quando não perdia pontas dos dedos. O pai de Guilhermina começou a berrar, transido com a visita inesperada que destroçava a cabana de lusalite onde viviam. Era o rio da Costa, braço do Trancão, onde iam buscar água todos os dias que invertera o sentido do caminho e chegara, tarde e sem pedir licença, vil e vingativo, a trespassar paredes, a triturar tudo à sua passagem. Em segundos, aquele visgo deu a volta à cintura de Guilhermina e, de seguida, ao pescoço. Pai e filha lá conseguiram trepar até ao telhado com a irmã de 6 anos e a mãe, que guardava no colo o seu mais novo – um bebé de 6 meses. E as outras irmãs? A noite era só vozes desesperadas a subir pelo céu acima. Nessas ruas da Urmeira, em Loures, como em quase todas as zonas afectadas, as Grandes Cheias haviam cortado a iluminação. Tudo denso, preto, fendido a berros. Com a camisa de noite enodada de lama e de sangue, Guilhermina ainda agarrou a mãe que escorregara até à ponta do telhado, deixando cair o pequenino filho que segurava nos braços. A mulher, apunhalada pela dor, queria lançar-se no ébano para o salvar. Eis Teresa, a tal mãe do bebé-milagre que foi depois entregue para adopção. «Ouvia-se um barulho que parecia de metralhadoras. Era o som das casas a partirem-se e a desabar. E ouviam-se muitos gritos. ”Acudam, acudam.” Depois os gritos passaram a gemidos. E ficaram cada vez mais sumidos até não se ouvir mais nada», recordou Guilhermina, heroína, aos 66 anos ao jornal Expresso. Essa menina de 16 anos, grávida, foi resgatada já de manhã pelos bombeiros, que a transportaram inanimada para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Foi lá que soube que as irmãs e o sobrinho tinham morrido. Felizmente, como relatado, dias depois, um jornal publicou a fotografia do seu irmão. E a família, ainda a convalescer das múltiplas perdas sofridas, teve de travar nova guerra. A Misericórdia não queria deixá-los levá-lo, não porque duvidassem de que era deles, mas porque já lhe tinham traçado outro destino. Só que a mãe de Guilhermina não voltou a baixar os braços. Aquele colo já tinha vacilado, talvez um milímetro apenas, o suficiente para perder uma parte de si, na noite da tragédia. Mas agora, ressequido pela calamidade, não mais hesitaria. Foi uma batalha, mas, no final, lá conseguiram trazer o pequenino. Durante anos, sem um único pertence, sem roupas, sem mobília, sem nada, ficaram a viver de favor na casa de uns amigos, à espera de serem realojados na mesma zona. Só que nem mesmo um milagre apaga a força das assombrações, nem mesmo um prodígio cala o boqueirão do inferno, e a mãe continuou a «gritar de noite e de dia» pela morte das filhas. O pai, que já bebia, mas não se asfixiara na lama, afogava-se agora no álcool. Já o filho que Guilhermina gerava no seu jovem ventre nasceu em Abril com problemas neurológicos devido ao trauma vivido na gravidez. O trauma gera trauma. A jovem mãe trabalhou noite e dia para conseguir sair do bairro maldito, para não ter de voltar, todos os dias, ao local do crime. Era bem pior do que caminhar de segunda a segunda para a fábrica. Mas por mais que fujas, não foges de ti mesmo, e não foi a mudança que lhe aliviou a memória, sempre a latejar, sempre a pulsar-lhe em baques na base da cabeça. Aquela menina grávida que trabalhava na conserveira para que os remediados e os bem- postos comessem marmelada continuou a viver dentro de si, e Guilhermina nunca mais pôde suportar a chuva. Dava-lhe calafrios, sezões, quase convulsões. Nunca se aproximou do mar, ficou com pavor de barcos, com a tragédia sempre a inundar-lhe a massa cinzenta, ideia obstinada, intrusiva, pensamento à procura de pensador. Condenada, viveu a vida toda em cima daquele telhado, ensopada em sangue e barro: «Eu também era para morrer naquele dia. Não teve de ser, mas é uma sobrevivência de luta», recordou ao mesmo jornal. Sentença perpétua. A síndrome do sobrevivente é um transtorno psicológico grave, ligado à culpa de haver passado por um grande trauma e ter sobrevivido. A pessoa acredita que escapou a um evento traumático porque fez algo de errado ao contrário dos demais, experimentando sentimentos destrutivos de responsabilidade, sente-se uma espécie de eleito invertido. É uma consciência enviesada de que o próprio respira e o outro não, que o outro não merecia perder a vida enquanto o próprio não merecia prosseguir. Porquê eu? Guilhermina trancou-se sobre si mesma. Nada mais podia sair nem nada nunca mais podia entrar. Esta condição foi descrita e sistematizada na década de 60 do século xx, posto que as suas características coincidiam com as observadas em muitos sobreviventes do Holocausto, bem como nos resistentes às bombas em Hiroxima e Nagasáqui. Mais tarde, percebeu-se que este quadro clínico surge em contextos muito diversos, como a sobrevivência a uma doença com probabilidade de cura residual, a um desastre de avião, a um ataque terrorista, a uma epidemia. Neste quadro, habitualmente a pessoa culpa-se pela morte dos outros. Para compensar o delito de estar vivo, tenta-se parar de viver: abandona-se o trabalho, a escola, os amigos. Age-se como se estivesse morto. Depois, esse peso esmagador, a par dos efeitos directos do trauma, favorece o aparecimento de sintomas físicos, psíquicos e comportamentais: perturbações do sono, ansiedade, pensamentos negativos, transtornos gastrointestinais, isolamento social, alterações bruscas do humor, cefaleias, depressão. O químico e escritor Primo Levi, sobrevivente ao Holocausto, eterno fugitivo às suas vivências em Auschwitz, explorou a sua culpa de sobrevivente extensivamente nos seus livros autobiográficos, nomeadamente na obra Os Afogados e os Sobreviventes. No final da sua existência, desfiava dias aterrado na depressão e ainda hoje se especula se a sua morte terá sido suicídio. Elie Wiesel, outro escritor que sobreviveu aos campos de concentração nazis, afirmou: «Primo Levi morreu em Auschwitz há quarenta anos.» Também Elvis Presley sofria de Síndrome do Sobrevivente, atormentado pela culpa relativa à morte do seu gémeo Jesse Garon, um nado-morto (fantasiando extensamente sobre a privação de nutrientes que lhe infligiu, sustentado pelo luto patológico da mãe). Igualmente, Antero de Quental nunca superou a morte prematura do seu irmão, sentindo sempre que era dele um indevido substituto ou derivado. A Guilhermina, a menina grávida, a vida sempre lhe doeu como gangrena. Carlos Paço, mais tarde vice-presidente do Centro Paroquial de Santa Catarina em Lisboa, tinha 17 anos na altura das Grandes Cheias.Era o chefe do respectivo grupo de escuteiros que prestou auxílio na Urmeira, Loures. Se há tantas coisas que o tempo embacia, há outras que a memória transforma em relicário. Desse recordatório faz parte a chamada que recebeu na manhã do dia 26 de Novembro. Do outro lado, estava o chefe Oliveira. Pedia-lhe que organizasse um grupo de voluntários para ir ajudar a população afectada. Num curto espaço de tempo, Carlos reuniu entre oito a dez escuteiros, «os mais velhos do agrupamento de Santa Catarina», lembrou ao site Júlia.pt. A mãe, preocupada com o seu soldado da guerra na capital, disse-lhe: «Vai, filho, mas e se te acontece alguma coisa?». O adolescente, que frequentava o sétimo ano do liceu Passos Manuel, foi rápido e directo na resposta: «Tenho de ir.» A pequena expedição encontrou-se então na sede regional, na zona do Chiado, onde uma carrinha de caixa aberta faria o transporte até ao Bairro da Guilhermina e do seu bebé. «Quando lá chegámos, o cenário era devastador.» A zona, completamente inundada, parecia o rio Tejo. Sofás, frigoríficos, camas, colchões, cadáveres de animais e, o mais temido, corpos de pessoas flutuavam nas águas. À chegada foram divididos em equipas e «todos os voluntários tiveram de ser vacinados contra o tétano», uma das maleitas que aguardava a sua oportunidade como abutre em campo árido. A sua missão durou três dias. No primeiro, tanto ajudaram a remover os destroços, lixo e corpos mortos (muitas galinhas), como procuraram levar os sobreviventes para locais onde estivessem em segurança. Aos bombeiros cabia resgatar os cadáveres. Nos dois dias seguintes, o trabalho foi orientado para a recolha e distribuição de bens e alimentos. Carlos contou que as cheias desencadearam um movimento de solidariedade. Depois das chuvas torrenciais chegou um sol brilhante e calor. Mas também o cheiro fétido dos corpos de pessoas e animais em decomposição. E lama, muita lama. «Eu lembro-me de, mesmo com galochas calçadas, ficarmos enterrados a cada passo.» Foi o serviço mais duro de sempre. Quando tudo terminou, ficou o orgulho de ter ajudado misturado com o lancinante desgosto. Já Álvaro Mata, dos Bombeiros Voluntários de Loures, era pintor de automóveis e motorista da corporação. Lembra-se de que a última coisa que fez antes de estar oito dias ao serviço por causa das Grandes Cheias de 1967 foi acudir aos seus – comprar leite para o filho. «Deixei o leite e fui para os bombeiros. Um dos carros foi ver de umas pessoas em Frielas, mas a água era tanta ou tão pouca que nunca mais conseguiu passar para cá. Era até à Calçada de Carriche uma altura de lama de mais de dois metros. A água do lado do Lumiar vinha toda directa ali, com canas, com tudo. O rio era a estrada», contou ao Diário de Notícias. Perdeu a conta ao que fez nesses dias – «se fosse dizer o que vi e o que fiz, tinha de escrever quatro ou cinco livros.» O bombeiro José Martins viu, impotente, famílias inteiras a serem sepultadas com o aluvião: «Eu nessa noite estava de serviço ao quartel. Fui chamado para a Urmeira. A estrada da Paiã era um mar de água. Quando lá cheguei, via as casas a ir por água abaixo. Famílias inteiras. Nada se podia fazer. Se a gente tentasse ir, íamos também”», recordou ao Diário de Notícias. Os Bairros da Urmeira e de Santa Maria, na Pontinha, que estavam encostados ao rio, foram destruídos pelas cheias, registando grande número de mortos e de feridos. Alguns corpos foram encontrados a quilómetros dali. No concelho de Loures e, particularmente, na localidade de Fanhões, a violência das águas atingiu também os cemitérios, desenterrando os mortos sepultados há não muito tempo, espalhando o horror e mais odor nauseabundo. A água levantava sepulturas e estraçalhava caixões e covas. Mortos antigos misturados com recentemente falecidos, tudo boiava na lama, maldizendo os arrabaldes esquecidos de Portugal. Conceição Monteiro, que viria a ser secretária pessoal de Francisco Sá Carneiro depois do 25 de Abril, vivia em Loures, uma das zonas mais atingidas pelo temporal. Era catequista e, integrada na Conferência de São Vicente de Paulo, trabalhava com mulheres dos bairros mais pobres, com as quais formou um pequeno clube. Na noite do temporal, jantava no Estoril com o seu marido e, no dia seguinte, o casal regressou à sua residência. Ao chegar perto de Loures, numa curva, avistou a planície lá em baixo. E o horizonte era assustador: «Lama, lama, lama. O vale inteiro parecia mousse de chocolate, estava tudo castanho de uma ponta à outra.» Naquela mousse havia carros, animais mortos, casas e pessoas. Conceição ficou com a casa destruída e chocada com a morte de 24 dos seus vizinhos. Alguns ainda tentaram subir a árvores, mas foram arrastados, levados nesse liquefeito corredor da morte. Havia uma ponte que rebentou no momento em que o médico da terra lá passava com as duas filhas. O corpo dele só foi encontrado meses depois, perto de Sacavém. Na região de Loures, como em todos os outros locais atingidos, o quartel dos bombeiros voluntários rapidamente se transformou em nervo, em centro de refugiados, morgue, plataforma de operações, tudo. Apesar do espaço exíguo, era central de informações locais e ponto de apoio às populações que acorriam a pedir notícias e ajuda. Os vivos iam ali saber dos mortos; as famílias, aos gemidos e aos soluços, iam perguntar pelos desaparecidos, que a esperança ainda não estava na lama. Por toda a vila, carros com altifalantes percorreriam as ruas, solicitando agasalhos e alimentos para os que tinham ficado ao desabrigo. E lá iam chegando peças de roupa e de calçado, cobertores e colchões; panelas de sopa, cabazes de pão, jarros de leite e de café, garrafões de vinho, travessas com comida, pães, chouriços, presuntos, caixas de cerveja. Magros consolos. Nessa noite, morreu também o delegado de Saúde de Loures. «Veio um outro delegado e fez-se assim: a quem era reconhecido pelas famílias era feito o funeral. Aqueles que não eram identificados eram levados para a morgue do Hospital de São José. Andámos nisto muitos dias. Todos os dias levávamos quatro, cinco, seis corpos para São José. Estive quase um mês aqui nos bombeiros. Descansava três a quatro horas no comando, mas a azáfama era muito grande», relatou Guilherme Duarte Esteves ao DN. Recordou ainda a onda de solidariedade e a forma como o quartel teve de se adaptar às novas funções: «Começaram a trazer roupas para as pessoas que estavam aqui. As pessoas que aqui ficaram, algumas mal viam, perderam óculos, perderam tudo. Tive de as alojar nas camaratas dos bombeiros. Pedi uma série de macas à Mocidade Portuguesa para deitar essas pessoas. Tínhamos uma camioneta que ia todos os dias à Ribeira buscar alimentos. Havia uma firma, que era a Marques Raso, que nos emprestou dois fogões grandes e ofereceu o gás para fazer a comida. Essas pessoas estiveram aqui sensivelmente mês e meio até que o Salazar as começou a mandar para a Mitra», contou Guilherme Esteves. Ainda hoje os lisboetas associam Mitra a uma imagem de repulsa pela mendicidade e pobreza. O antigo Albergue da Mitra, situado no Beato, era onde a polícia despejava os vagabundos apanhados a pedir nas ruas da capital durante o Estado Novo. Nesse regime, os mendigos, outrora ponte entre os ricos e os pobres, elo de ligação entre mundos como os xamãs e druidas, passaram a ser diabolizados, cavando-se o fosso entre os «bons» e os «maus» pobres. Só a mendicidade «por necessidade», associada à invalidez, à menoridade ou à velhice, podia ser tolerada pelas autoridades. Andaria à esmola quem tivesse caderneta e placa a atestar o estatuto. Isso mesmo. Na rua, a pedir, só quem estivesse formalmente autorizado para tal. Ou seja, foi até instituído o direito a mendigar, reservado, portanto, aos «pobres bons». Os outros, os «falsos» mendigos, pedintes não licenciados, sem carimbo e burocracia, arriscavam-se a ser julgados como vadios e enclausurados. O mais comum era a polícia capturá-los, levá-los para os calabouços e soltá-los volvidos uns dias. Mas existiram