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1 Mídias comunitárias: outros cenários e cidadanias Denise Cogo 1 Alternativa, popular, local, comunitária... As várias denominações que nomearam e seguem nomeando a mídias comunitária no Brasil e na América Latina nos desafiam a pensar porque, nessa última década, é o termo comunitário que assume centralidade para definir as experiências e projetos envolvendo as mídias locais e de bairro, as mídias produzidas e geridas por comunidades e movimentos sociais organizados. O comunitário assume essa centralidade em um momento em que o cenário da comunicação e das mídias se pluraliza como resultado da reconfiguração de processos e práticas políticas, econômicas e socioculturais em âmbito nacional e internacional. O fim das ditaduras nos anos 80 na maioria dos países latino-americanos, a perda de espaço da chamada Igreja progressista ligada à Teologia da Libertação, as lutas sociais que culminaram com a institucionalização de projetos como o das rádios e das televisões comunitárias no Brasil no final dos anos 90, a aceleração dos processos de segmentação e fragmentação tecnológica, com a expansão da Internet, contribuíram para essa pluralização e também para uma redefinição do caráter político atribuído a muitas experiências e projetos de comunicação comunitária que se desenvolveram pautados seja pela criação de espaços e canais alternativos seja como oposição às mídias massivas. O que vem favorecendo, inclusive, a apropriação e usos crescentes do termo comunitário não apenas pelos movimentos sociais, mas também pelos sistemas massivos de comunicação. Em um estudo sobre as mídias comunitárias, a pesquisadora brasileira Cicília Peruzzo identifica, no Brasil, duas grandes vertentes na mídia local: uma que, movida pelos interesses de mercado, trata dos temas locais, e outra que, sem objetivos lucrativos, se move por interesses em contribuir para o desenvolvimento comunitário. A autora parte principalmente do que denomina de efervescência dos meios de comunicação local observada, desde a década de 90, quando tais mídias passam a se orientar pelas dinâmicas dos próprios lugares onde se situam. Televisões regionais, rádios AMs e FMs comerciais 1 Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, em São Leopoldo (RS), Brasil. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do projeto de cooperação internacional Brasil-Espanha sobre Mídia, migrações e interculturalidade desenvolvido em parceria com o Observatorio y Grupo de Investigación en Comunicación y Migración (MIGRACOM) da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) com financiamento da CAPES-Brasil e MEC (Espanha). E-mail: denisecogo@uol.com.br. 2 etc., passam a abrir mais espaços para programas vinculados nessas localidades onde estão situados. “Sem falar do espaço criado através dos canais de uso gratuito ou de “acesso público” no sistema cabo de televisão e nos espaços de comunicação conquistados pelas rádios comunitárias2 no país. 3 De (re) configurações como essa analisada por Peruzzo, resulta a exigência de entendimento do papel que pode ser desempenhado, atualmente, pelas mídias comunitárias na sua relação com os processos de cidadania, a partir de pelo menos quatro perspectivas que passo a assinalar brevemente: Uma primeira diz respeito ao crescente deslocamento do conceito ou noção de massivo que fundamentam as experiências de comunicação comunitária para a noção de midiático ou de culturas midiáticas. Por tal perspectiva, a mídia passa a ser compreendida não apenas como lugar de interação entre produção e recepção, mas como “marca, modelo, matriz, racionalidade produtora e organizadora de sentido” 4, conforme postula a pesquisadora Maria Cristina Matta quando se empenha em entender as repercussões desses processos na construção das modalidades e das agendas de ação e intervenção de atores e movimentos sociais na sociedade comtemporânea. Trata-se de entender o que Matta define como confiança na capacidade dos meios de comunicação em configurar a realidade e como essa confiança vem operando para a estruturação das práticas ou modalidades de protesto desses movimentos ou de dinamização de suas demandas por cidadania através da ocupação que fazem dos espaços das mídias e/ou do emprego de mídias comunitárias. Uma segunda perspectiva faz referência à incorporação, na agenda dos movimentos sociais, de demandas pautadas na diferença e nas identidades culturais. O incremento das tecnologias da comunicação, a intensificação dos contatos, conexões e intercâmbio entre culturas, favorecidos pelas múltiplas redes globais e pela aceleração dos processos migratórios no marco dessas redes, são fatores que vêm favorecendo a emergência e afirmação de múltiplas identidades culturais assim como a busca de sua visibilidade pública através das mídias. Essas micropolíticas cotidianas de visibilidade midiática vão contribuindo para incorporar à agenda pública uma multiplicidade de posicionamentos 2 As emissoras comunitárias estão regulamentadas pela lei 9.612/1998 e pelo Decreto-Lei 2.615 /1998, operando através de transmissores de baixa potência. 3 PERUZZO, Cicilia. Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitária. Anais do XXVI Congresso Brasileiros de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte: Intercom, 2003. 4 MATTA, Maria Cristina. De la cultura masiva a la cultura mediática. Diálogos de la Comunicación. Lima: Felafacs. nº 56, p. 80-90, out. 1999. 3 pautados não mais apenas na classe social, mas no gênero, etnia, religiosidade, geração, imigração, etc. O que implica, ainda, em refletir como os movimentos sociais vão articulando, no marco da formulação de suas políticas comunicacionais e midiáticas, a questão do reconhecimento e da diferença com a questão da redistribuição dos recursos materiais e simbólicos nas sociedades contemporâneas. No âmbito do chamado multiculturalismo comercial, Stuart Hall alerta para os riscos de se acreditar que o reconhecimento público da diferença ou da diversidade cultural, através, por exemplo, da visibilidade midiática, possa assegurar a resolução (e dissolução) de problemas da desigualdade dissociados da construção de políticas de redistribuição de poder e de recursos na sociedade. Uma terceira perspectiva refere-se à incidência, nas estratégias e políticas comunicacionais e midiáticas dos movimentos sociais, de políticas públicas derivadas das novas modalidades de gestão e participação populares implementadas recentemente naquelas cidades e estados brasileiros em que, nas últimas duas décadas, assumiram governos que se definem pela implementação de projetos políticos populares e democráticos, como é o caso do Partido dos Trabalhadores. Em muitas comunidades e movimentos sociais, observam-se iniciativas e projetos de mídias comunitárias derivados de decisões e recursos oriundos de instâncias como a do Orçamento Participativo ou, ainda, impulsionados por gerações de jovens formadas nesse ambiente de participação na formulação coletiva de políticas públicas. Uma última perspectiva orienta-se por uma preocupação que parece manter vigência desde as experiências dos chamados jornais alternativos, como o Pasquim, nos anos 70 ou, ainda, da comunicação popular praticada nas Comunidades Eclesiais de Base nos anos 80 e 90: uma comunicação centrada no processo, e não apenas nos efeitos e conteúdos, em que o trabalho com as mídias comunitárias assume uma perspectiva também comunicacional assim como um caráter pedagógico e político, conforme postulam Mario Kaplún e Paulo Freire, dois dos principais pensadores que inspiraram as concepções de comunicação popular e comunitária na América Latina. Uma síntese aparece em Freire quando define a comunicação “como a situação social em que as pessoas criam conhecimento juntas ao invés de transmiti-lo, dá-lo ou impô-lo” 5 Pesquisas acadêmicas sobre as mídias 5 LIMA, Venício Artur de. Comunicação e cultura: as idéias de Paulo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 64. 4 comunitárias vêm ajudando a reafirmar que a ocupação dos espaços institucionalizados dos meios de comunicação, como é o caso dos processos de regulamentação das rádios e TVs comunitárias na década de 90 no Brasil não asseguram necessariamente a instauração de processos comunicacionais democráticos. Mas, ao contrário, inauguram dinâmicas que comportam tensões e disputas assim como demandam lógicas de negociação em que a construção de processos de comunicação de maior ou menor horizontalidade e/ou simetria dependem mais das interações que se desenrolam no exercício dessa institucionalização e para a qual podem concorrer múltiplas definições de comunitário. Da interação entre essas quatro perspectivas analisadas brevemente nesse texto, observamos a reafirmação e/ou emergência de pelo menos quatro instâncias de exercício da cidadania que concorrem, de forma mais ou menos articulada, nos projetos e práticas de comunicação comunitária na contemporaneidade: as cidadanias sociopolítica, cultural e mundial. A um conceito mais clássico de cidadania, ancorado no exercício de direitos civis, políticos e sociais em que se combinam os ideais ocidentais de liberdade, participação e igualdade, se agrega uma noção de cidadania fundamentada em demandas culturais e identitárias, pautadas no reconhecimento da “diferença”. E a essas duas associa-se mais recentemente a chamada cidadania mundial, entendida como um princípio alternativo da ordem mundial que pressupõe o reconhecimento de direitos e deveres equivalentes em esferas transversais de tomadas de decisões que afetam as necessidades e interesses vitais dos indivíduos. Bibliografia CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. COGO, Denise. Comunicação, mídia e cidadania: um percurso pelas interfaces de um Núcleo de Pesquisa da Intercom. In: COGO, Denise, MAIA, João (orgs.). Comunicação para a cidadania. Rio de Janeiro/Joinville: UERJ/IELUSC, 2005. (no prelo) COGO, Denise Maria. Mídias, identidades culturais e cidadania: sobre cenários e políticas de visibilidade midiática dos movimentos sociais. In: PERUZZO, Cicilia M. Krohling. (Org.). Vozes cidadãs – Aspectos teóricos e análises de experiências de comunicação popular e sindical na América Latina. São Paulo, 2004. 5 COGO, Denise. No ar... uma rádio comunitária. São Paulo: Paulinas, 1998. HALL, Stuart. A questão multicultural. In: HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais . Belo Horizonte: Editora UFMG/ Representação da UNESCO no Brasil, 2003. HELD, David. Un pacto global. Madrid: Taurus, 2005. KAPLÚN, Mario. Una pedagogia de la comunicación – el comunicador popular. La Habana: Editorial Caminos, 2002. LIMA, Venício Artur de. Comunicação e cultura: as idéias de Paulo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 64. MATTA, Maria Cristina. De la cultura masiva a la cultura mediática. Diálogos de la Comunicación. Lima: Felafacs. nº 56, p. 80-90, out. 1999. PERUZZO, Cicilia. Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitária. Anais do XXVI Congresso Brasileiros de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte: Intercom, 2003.