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Introdução à
Teologia II
Prof. Pe. Adenilson S. Ferreira (org.)
Apostila Ad usum scholarum
1o. Semestre/2010
Universidade Católica de Petrópolis
Introdução à Teologia II
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ÍNDICE
APRESENTAÇÃO 2
Capítulo I
NOÇÕES BÁSICAS DE CRISTOLOGIA
1. Delineamento 3
2. As profissões de fé primitivas 4
3. A vida de Jesus Cristo e sua credibilidade histórica 5
4. A Mensagem de Jesus 12
5. Mistério Pascal 22
Capítulo II
NOÇÕES BÁSICAS DE ECLESIOLOGIA
1. Delineamento 33
2. Fundação da Igreja por Cristo 34
3. Natureza da Igreja 38
3.1. Igreja, Corpo de Cristo 38
3.2. Igreja, Povo de Deus 39
3.3. Igreja, Sacramento Universal de Salvação 40
4. A credibilidade da Igreja 41
Capítulo III
ELEMENTOS DE TEOLOGIA MORAL
1. Delineamento 44
2. O atuar livre do homem e seu aperfeiçoamento pessoal 45
3. O Ato Moral 46
4. Os mandamentos 48
5. Virtudes 66
Capítulo IV
A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
1. Delineamento 70
2. O conceito 71
3. Fundamentos ou fontes 73
4. Síntese histórica das intervenções do Magistério da Igreja em Matéria Social 73
5. Dignidade da Pessoa Humana 79
6. Os direitos naturais do homem 80
7. A comunidade humana 82
8. O bem comum 85
9. Relação dos Documentos da Igreja sobre a questão social 86
ANEXOS
Anexo 1: Os evangelhos canônicos 88
Anexo 2: Os Evangelhos Apócrifos 91
Anexo 3: A historicidade dos Evangelhos 97
Anexo 4: Uma comunidade a caminho 99
Anexo 5: Os Dez Mandamentos 111
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 112
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APRESENTAÇÃO
O curso de Introdução à Teologia II oferecido pela Universidade Católica de
Petrópolis se propõe a dar, em linhas gerais, uma visão geral dos conteúdos básicos
da fé católica, assim como a reflexão teológica sobre esses dados.
Estudaremos alguns dos elementos de Cristologia, Eclesiologia, Teologia
Moral e Doutrina Social da Igreja. Estas quatro disciplinas integram o currículo da
Ciência Teológica.
A presente apostila, organizada para uso interno dos estudantes da
Universidade Católica de Petrópolis, traz um esquema simples e objetivo, com a
organização de textos, com a pretensão de levar os alunos a uma iniciação em
assuntos que poderão ser aprofundados em ulteriores estudos.
Bons estudos!
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Capítulo I
NOÇÕES BÁSICAS DE CRISTOLOGIA
1. Delineamento
Abre-se o nosso curso de Teologia com um estudo elementar de Cristologia.
Etimologicamente falando, a Cristologia é o estudo ou o discurso (logos) sobre
Jesus Cristo. Na verdade, trata-se do tratado central da Teologia cristã, pois Jesus Cristo é
o revelador do Pai e do Espírito Santo, nosso redentor e modelo para o qual todos os
homens devem tender.
... a teologia cristã há de ser essencialmente cristocêntrica. Não que a
cristologia esgote toda a teologia, mas oferece a ela a necessária chave
interpretativa, funcionando assim como princípio hermenêutico de todo
o edifício. Protologia e escatologia, antropologia e teologia, eclesiologia e
sacramentologia, são diferentes partes de uma construção teológica que
busca sua unidade e coerência, seu sentido e sua chave hermenêutica na
pessoa e no acontecimento de Jesus Cristo que a centraliza.1
Nosso ponto de vista será o da fé católica. Mas não podemos deixar de olhar o
pensamento de outros cristãos com suas contribuições para nossa cultura teológica.
Partindo dos Evangelhos, as narrativas de Marcos (8,29) e de Mateus (16,15) se
caracterizam por mostrar Jesus, antes do anúncio a seus discípulos de sua paixão iminente,
fazendo-lhes a pergunta decisiva: ―E vós, quem dizeis que eu sou‖?
A Cristologia busca responder essa pergunta.
Primeiramente, os dois evangelistas contam qual era a idéia que o povo tinha de
Jesus: João Batista (...) ou um dos profetas. Mas Pedro toma a palavra e diz-lhe: ―Tu és o
Cristo‖ (Mc 8,29) ou ―Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo‖ (Mt 16,16).
Em qualquer uma dessas formulações – aliás a diferença entre elas é,
provavelmente, menor do que parece à primeira vista –, talvez a resposta de
Pedro possa ser assumida, simbolicamente, como a primeira afirmação cristológica.
Mas, na realidade, era como que uma antecipação, uma preparação da fé cristológica, que,
1 DUPUIS Jacques, Introdução à Cristologia, p. 9.
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desabrocharia na Páscoa.
De fato, esta resposta de Pedro, em Cesárea de Filipe, coincide com o
conteúdo da primeira pregação querigmática da Igreja apostólica- No dia de Pentecostes,
segundo referem os Atos, quando Pedro se levantou com os onze para dirigir aos
judeus a mensagem considerada como a primeira pregação cristã o ponto alto de suas
palavras foi: ―Que toda a casa de Israel saiba com certeza: a esse Jesus que vós
crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2,36).
O Cristo, o Senhor, o Filho de Deus, esses três títulos constituem o núcleo da
fé cristológica primitiva e evidenciam, claramente, o lugar central que essa confissão
ocupou, desde o início, na fé da Igreja cristã.
O essencial consiste em atribuir ao homem Jesus um título particular
emprestado à terminologia teológica do Antigo Testamento: Masiah ( ) – termo
traduzido para o grego Χριστός – que significa em português ―ungido‖.
Nasceu assim a confissão de fé ―Jesus é o Cristo‖ que só mais tarde evoluiria,
semanticamente, para o nome composto ―Jesus Cristo‖ ( ).
Quanto ao nome ―Jesus‖, vale a pena dizer que é uma adaptação para o português
de um nome hebraico que aparece na Bíblia em duas formas: Yehoshua ( ) e Yeshua
( ). Yeshua é uma forma abreviada do nome Yehoshua.
2. As profissões de fé primitivas
Em alguns textos, podemos detectar como que pequenas profissões de Fé
explícitas na divindade de Jesus. Nos textos de S. Paulo, os exegetas encontraram
fragmentos que correspondem à fé apostólica (expressões da fé cristã).
Vejamos esquematicamente:
perspectiva
querigmática
estes textos visam despertar a fé,
a adesão pessoal dos ouvintes.
1Cor 15,1-3
1Ts 4,14
1Cor 12,3
Rm 1, 3-4
Fl 2, 6-11
Rm 10,9
1Tm 3,16
1Pd 3,18-22
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Percebe-se, assim, que:
O mistério
de
Cristo
é verdade
salvífica
revelada
proclamada
crida
confessada
vivida
na fé
da
Igreja
A fé Igreja é normativa para o cristão que não queira excluir a si mesmo da
comunidade eclesial. Conhecendo-a e aceitando-a nos unimos àqueles que foram
testemunhas oculares do mistério de Cristo (cf. Lc 1,2).
Enquanto nos unirmos em comunhão com eles, chegamos à comunhão com Deus
Pai (cf. 1Jo 1,1-4). Conservando, na força do Espírito, o tesouro recebido (cf. 2Tm 1,14),
contribuímos com nosso testemunho de fé para aquele testemunho que se dá no decorrer
dos séculos (uma fé no mesmo e único Senhor – cf. Ef 4,5).
O testemunho dos apóstolos, guiado pelo Espírito da Verdade, estampado no
Novo Testamento sob inspiração divina é a norma fontal (norma normans) da fé da Igreja.
Os evangelhos proclamam, sob vários ângulos, o mesmo mistério.
3. A vida de Jesus Cristo e sua credibilidade histórica2
Falar de Jesus Cristo é falar da essência mesma do cristianismo.
O cristianismo implica princípios filosóficos, porém não é uma filosofia; contém
princípios éticos, porém não é uma ética; possui princípios sociais, porém não é um
movimento social. O cristianismo é Cristo!
Se eliminássemos a encarnação do Filho da
nossa história para a nossa salvação, teríamos eliminado a essência do cristianismo!
2 As páginas seguintes deste capítulo foram elaboradas, sobretudo, a partir da Apostila preparada pelo Mons. Gilson
Andrade Silva para as aulas do Curso de Introdução a Teologia II da Universidade Católica de Petrópolis.
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Daí a grande importância que se deve dar no cristianismo a um autêntico
conhecimento do Filho de Deus feito carne. Por isso iniciamos essas noções básicas acerca de
Cristo por uma investigação às fontes do conhecimento histórico de Cristo.
Sendo assim, podemos colocar a pergunta: que sabemos historicamente sobre
Jesus Cristo?
Sobre Ele temos especialmente o testemunho dos evangelhos, mas também temos
algum conhecimento seu em fontes não cristãs. Existem vários testemunhos extra-bíblicos
sobre Jesus que desde o ponto de vista histórico descrevem o Jesus de Nazaré de quem os
Evangelhos falam. Trata-se de escritores romanos, de personagens famosos do mundo
judeu, como também achados arqueológicos que confirmam situações descritas nos
evangelhos.
a) Escritores romanos
Plínio o Jovem
O imperador romano Trajano havia enviado um comandante de legião a uma
província da Ásia menor (Bitínia), chamado Plínio o Jovem. Este dirigiu uma carta ao
Imperador, no ano 112, interrogando-o sobre que conduta deveria ter para com os cristãos
(Ep. X, 96). Plínio diz que chegara à conclusão de que o cristianismo era uma grande
superstição. Pelo que diz respeito às práticas cristãs há um único ponto significante:
«reúnem-se antes do amanhecer, cantam a Cristo, como se fosse Deus…» (Ep. X, 96,7).
Assim, o texto testemunha o culto a Cristo.
Tácito (ano 115)
O testemunho de Tácito é mais importante com relação às coordenadas históricas
de Cristo. Famoso historiador romano, escreve seus Anales pelo ano 115-117, nos quais fala
a propósito do grande incêndio de Roma do 64 que Nero atribuiu aos cristãos, pois a voz
popular atribuía a ele o incêndio. Tácito diz o seguinte:
Para fazer cessar esta voz, apresentou como réus e atormentou com
penas refinadas àqueles que, desprezados por suas abominações, eram
conhecidos pelo povo com o nome de cristãos. Este nome lhes vinha de
Cristo, que, sob o reinado de Tibério, foi condenado à morte pelo
procurador Pôncio Pilatos. Esta condenação suprimiu, em seus
princípios, a perniciosa superstição, porém logo surgiu de novo não só
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na Judéia, onde o mal tivera sua origem, mas também em Roma, para
onde converge todo o abominável e desonroso e onde encontra
seguidores.
Esta referência histórica tem uma importância enorme, pois reflete o estilo próprio
de Tácito. O contexto, o estilo e o tom a tornam totalmente crível a juízo dos críticos. Nela
se dá o dado inquestionável do julgamento de Cristo por parte de Pilatos no tempo de
Tibério. Vemos, assim, a concordância dessa referência de Tácito com a de outro
historiador, neste caso cristão, o evangelista Lucas:
No ano quinze do império de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos
procurador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia; Filipe, seu irmão,
tetrarca de Ituréia e Traconítide; e Lisânias, tetrarca de Abilene; no
pontificado de Anás e Caifás, foi dirigida a palavra de Deus a João, filho
de Zacarias, no deserto (Lc 3,1-2).
b) O mundo judeu
Flávio Josefo: um escritor judeu fala de Jesus
O historiador judeu, Flávio Josefo, alude a Cristo em duas ocasiões na obra
Antiguidades judaicas, escritas pelo ano 93-94.
Menciona em primeiro lugar a Tiago, apóstolo, como «irmão de Jesus a quem
chamam o Cristo» (cf. Ant. XVII, 3,3). Este testemunho é fidedigno, trata-se de uma
afirmação sobre Tiago, chefe da Igreja de Jerusalém, nitidamente neutro.
A passagem que mais diretamente alude a Cristo é o chamado Testimonium
Flavianum, um breve texto que fala de Jesus nas Antiguidades. Um texto muito discutido
porque alguns pretendem ver nele uma interpolação (alteração do texto) cristã.
Alguns historiadores, no entanto, reconhecem que «se é autêntico, contém o
testemunho mais antigo sobre Jesus, escrito por um homem que não era cristão». O texto
diz assim:
Neste tempo começou sua vida pública Jesus, um homem sábio se é que
se pode chamá-lo um homem. Realizava obras extraordinárias e
ensinava aos homens, os quais recebiam gozosamente a verdade.
Ganhou a muitos judeus e também a muitos do mundo helenista. Ele era
o Cristo. Por indicação de nossos príncipes, Pilatos o condenou à morte
na cruz. Não obstante, seus seguidores não o abandonaram, pois lhes
apareceu outra vez vivo aos três dias, segundo tinham predito sobre ele
isto e outras muitas coisas os profetas enviados por Deus. E até agora
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não se extinguiu a facção dos cristãos, assim chamados pelo nome de
seu fundador (Ant. XX, 9,1).
A crítica moderna encontra dificuldades em alguns elementos deste texto. Hoje, a
maioria dos críticos opina que, sobre um texto original, uma mão cristã pode ter
interpolado certos dados, pois não se compreende que um judeu confesse que Jesus seja o
Cristo e que tenha ressuscitado. Porém não há dúvida de que o texto faça clara referência à
atividade didática e taumatúrgica de Jesus, ao passo que menciona a intervenção de
Pilatos em sua morte.
c) Os Evangelhos
A fonte principal sobre a vida de Jesus se encontra, sem dúvida, nos Evangelhos.
Porém, os Evangelhos não são uma biografia no sentido moderno da palavra. São, na
realidade, uma recopilação da mensagem e dos fatos fundamentais de Cristo que foram
escritos com o fim de comunicar a fé nele. Estes fatos e estas palavras de Cristo, antes de
ser postas por escrito, a comunidade primitiva cristã os tinha transmitido em sua liturgia e
em sua pregação.
Os Evangelhos são, na realidade, catequese testemunho de fé de pessoas que
crêem em Cristo e que querem comunicar a fé que têm. Foram escritos à luz da Páscoa, o
que permitiu aos redatores ver os feitos de Jesus com uma nova luz.
Os redatores dos Evangelhos se serviram de documentos escritos anteriores, numa
primeira recopilação, e investigações pessoais, ao mesmo que tempo que davam aos seus
escritos uma intencionalidade teológica.
Um destes documentos anteriores é a chamada Quelle («fonte», em alemão), que
recolhia em si discursos e logia (frases curtas memorizáveis) de Cristo, existente já nos anos
quarenta, que foi utilizada por Lucas e Mateus. Outra fonte escrita é a conhecida com o
nome de «tríplice tradição», que recolhe os fatos da vida de Cristo, da qual se serviram os
três sinóticos. É interessante observar o início do Evangelho de Lucas (1, 1-4):
Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se
cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o
princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra – a mim
também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde
o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que
verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste.
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O fato de que os Evangelhos contenham um testemunho de fé não significa que
eles não transmitam um verdadeiro conteúdo histórico.
Pouco a pouco foi-se elaborando uma criteriologia científica que examina os
Evangelhos como documentos da história e permite chegar a uma certeza dos fatos e ditos
fundamentais de Jesus desde um ponto de vista histórico.
Estes
escritos foram elaborados por estudiosos como: N.A. Dahl, F. Mussner, B.
Rigaux, H. Schürmann, H. Conzelmann, W. Trilling, X. Léon-Dufour, C. Martini, H.K.
McArthur, N. Perrin, I. de la Potterie, J. Caba, N.J. McEleny, R. Latourelle. Elaboraram-se,
desse modo, os critérios de historicidade, cada dia mais usados no estudo da historicidade
dos Evangelhos.
Estes critérios jogaram abaixo o velho mito, sustentado pela escola de R.
Bultmann, de que a comunidade primitiva inventou o núcleo dos Evangelhos,
apresentando Jesus de forma totalmente diferente do que historicamente foi.
Em síntese, a exegese católica não admite que a comunidade primitiva tenha
exercido no acontecimento Jesus (vida e mensagem) uma ação criadora e deformante até o
ponto de constituir uma espécie de tela opaca que impedisse todo acesso à realidade de
Jesus.
Afirma, pelo contrário, que dispomos de critérios válidos, criticamente elaborados,
que nos permitem escutar, se não as «mesmas palavras de Jesus», pelo menos a mensagem
autêntica de Jesus e alcançar uns fatos «acontecidos de verdade» que pertencem a Jesus de
Nazaré.
Sobre os Evangelhos é importante ainda recordar o que a Igreja em seu
ensinamento (Magistério) afirma. Um texto que se destaca entre outros é o da Constituição
Dogmática sobre a Revelação, Dei Verbum.
O referido documento insiste que a Igreja «firme e constantemente, manteve e
mantém que os quatro referidos Evangelhos, cuja historicidade afirma sem vacilar,
comunicam fielmente o que Jesus Filho de Deus, vivendo entre os homens, fez e ensinou
realmente para a salvação (At 1, 1-2)».
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d) Dados fundamentais dos Evangelhos sobre a história de Jesus de Nazaré
Depois de termos apresentado alguns elementos importantes do testemunho
acerca de Jesus Cristo, passamos agora a delinear uma imagem de Jesus Cristo, da vida de
Jesus Cristo, segundo o percurso oferecido pelo Evangelho.
Nazareno
Em primeiro lugar Jesus aparece como Nazareno. Procedente de Nazaré, esse fato
não foi para ele algo muito vantajoso uma vez que os judeus ortodoxos e para os
dirigentes de Jerusalém, a Galiléia era considerada como parcialmente pagã. Certamente
por isso Natanael, que depois será um dos apóstolos, lembra a Filipe a frase proverbial:
«De Nazaré pode sair algo bom?» (Jo 1,46). Por outro lado Mateus cita uma grande
passagem do profeta Isaias para tornar compreensível a origem galiléia de Jesus e o
apresenta como querido por Deus (cf. Mt 4,13-16).
Batizado
Em segundo lugar como batizado por João, o Batista. É evidente que este batismo
provocou dificuldades já no início da pregação de Jesus: se Ele foi batizado por João, este é
maior que aquele!
Por isso não é de se estranhar que as narrações evangélicas procurem justificar
esse fato. Mateus, por exemplo, relata o diálogo entre João e Jesus que esclarece a questão
(cf. Mt 3,14s.).
Pregador do Reino
Dado fundamental de toda a atividade de Jesus é o fato de ele ser apresentado
como pregador do reino, tanto através de suas palavras quanto de suas obras.
A centralidade do Reino na pregação é um dado inquestionável a partir de uma
leitura atenta dos Evangelhos. Uma análise particularizada, por exemplo, das Bem-
aventuranças, do Pai Nosso, das parábolas… por citar textos significativos, leva-nos à
conclusão citada.
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Sobre este aspecto da mensagem de Cristo dedicaremos mais adiante algumas
reflexões.
Próximo de Deus
Outro dado fundamental é sua proximidade de Deus cuja expressão mais
significativa é a sua maneira de se relacionar com ele: Abba.
Este vocábulo não se encontra nunca nas orações judaicas anteriores a Jesus nem
na literatura religiosa contemporânea ou posterior a ele, é reconhecido como a grande
novidade de Jesus ao dirigir-se ao Deus. A invocação Abba, surgida da linguagem
familiar, expressa no uso normal os sentimentos de abandono, de confiança e de
proximidade do Filho com relação a seu pai.
Na boca de Jesus essa expressão destaca que a proximidade, a confiança e o
abandono são precisamente os laços existenciais que o unem a Deus. Os apóstolos
conservaram esta recordação com atenção e configurou não só sua própria oração (Gl 4,6;
Rm 8,15; Mt 6,9…) mas também o critério para examinar a veracidade do testemunho de
Cristo (cf. Mt 26,42; Lc 23,46; Jo 11,41…).
Morto na Cruz
Um dado decisivo sobre Jesus é sua morte na cruz, a morte mais infame conhecida
pela justiça romana, não permitida aos cidadãos romanos. Foi um fato que surpreendeu e
escandalizou judeus e pagãos.
Paulo recorda: «A cruz, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos» (1Cor
1,23). Esta morte de Jesus é fruto do aparente fracasso de sua obra, mas que na lógica cristã
faz parte dos planos de Deus para dar-lhe a vitória definitiva.
Ressuscitado e glorificado
Jesus, segundo o testemunho do NT, particularmente dos Evangelhos, depois da
morte foi testemunhado como vencedor da morte, ou seja, ressuscitado e glorificado.
De fato, é incompreensível todo o NT sem o testemunho central, decisivo,
incontestável, dos apóstolos sobre a vitória de Jesus sobre a morte. É um testemunho
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encontrado em todas as partes no NT. E esse é um dado fundamental da imagem de Jesus
do NT. Também aprofundaremos mais adiante esse tema.
Pregado, seguido e celebrado pelas primeiras comunidades
Esse é precisamente um último dado fundamental sobre Jesus. Nos escritos neo-
testamentários se percebe uma profunda marca das comunidades primitivas, que pregam
Jesus de Nazaré, seguem-no, e celebram a liturgia em sua memória. As primeiras
comunidades se sentem mandatárias de Jesus: em sua missão e proclamação, em sua
catequese e em sua liturgia.
Em síntese
Nestas breves linhas começamos a entrever o mistério de Jesus de Nazaré, ao
longo do desenvolvimento do nosso curso aprofundaremos nesse mesmo mistério.
Uma primeira aproximação de Jesus nos vai revelando o mistério de sua própria
pessoa: Jesus de Nazaré, batizado por João, pregador do Reino, próximo de Deus-Abbá, morto na
cruz, testemunhado como vencedor da morte e pregado, seguido e celebrado pelas primeiras
comunidades.
4. A mensagem de Jesus
a) O Reino chegou.
Depois de uma vida oculta em Nazaré, Jesus aparece em público no batismo do
Jordão. Os evangelistas nos narram a cena (cf. Mc 1,1ss), depois disso Jesus começa sua
pregação.
O Reino é o centro, o objeto e o término da pregação primitiva de Jesus. Este Reino
é definitivo e salvador, isto é, escatológico. Também as obras de Jesus são sinais do Reino:
mais ainda, a expressão deste Reino que assume toda a pessoa humana e toda a história, a
partir do dom de Deus suscitando fatos dignos de admiração (daí a expressão latina
miraculum: digno de admiração).
Todos os exegetas estão de acordo que o centro da pregação de Jesus é a chegado
do Reino de Deus. Marcos resume assim sua pregação: ―Cumpriu-se o tempo e o reino de
Deus está próximo, convertei-vos e crede na boa-nova‖ (Mc 1,15).
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O tema do Reino, indubitavelmente, respondia perfeitamente à expectativa dos
judeus: esperavam a chegada do reino messiânico. Porém a expressão, em boca de Jesus,
entra em contradição com a expectativa judaica: é um reino que chega sem manifestações
clamorosas (cf. Lc 7,20-21) nem acontecimentos grandiosos. O reino chegou e, no entanto,
as legiões romanas continuam na Palestina. É um reino que vem do alto
e cuja chegada
não se deve ao esforço humano.
Em que consiste o Reino?
Trata-se da salvação de Deus que chega definitivamente em Cristo para a
humanidade:
a libertação do pecado e da morte;
a participação na vida divina por Cristo;
uma nova idéia de Deus que ama os homens por cima dos seus méritos
(contrariamente à concepção farisaica), uma idéia de Deus que escandaliza
porque ama também desmerecidamente os publicanos e as mulheres de
má vida, sem pedir em troca outra coisa senão a conversão do pecado e a
simplicidade do coração (cf. Lc 15,11-31).
Jesus escandaliza com sua mensagem, com a comunhão de mesa com os
pecadores, que não tinha outra intenção que torná-los participantes do amor
misericordioso de seu Pai (cf. Lc 5,32; 19,10; Mt 18,12-14), de modo que por seu
arrependimento precederão aos fariseus no Reino (cf. Mt 21,31).
Esta é a primeira dimensão do Reino que Jesus prega: o amor imerecido do Pai.
Pertencer ao Reino é deixar-se amar por um amor não suspeitado, escandaloso, seja qual
for nossa situação de miséria, pecado, enfermidade ou abandono aparente de Deus.
Porém, Cristo não se limita a anunciar o Reino que chega, mas ele mesmo se
identifica com ele. Existe uma equivalência constante entre entregar tudo por Cristo ou
por causa do Reino, seguir a Cristo e aceitar o Reino (Mt 19,29; Mc 10,29). Com sua
chegada, pregação e milagres, chegou definitivamente o Reino: «Dizei a João: os cegos
vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os mortos ressuscitam, os pobres são
evangelizados» (Lc 7,22-23; Mt 11,5).
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Uma idéia de Orígenes expressa isto com exatidão: Cristo é a «autobasileia», ou
seja, ele mesmo é o Reino em pessoa. Quem o acolhe, quem se converte a Ele, recebeu o
Reino. Diz Fainel:
«Este é um dos dados fundamentais de toda a pregação de Cristo. Ter
acesso ao Reino é simplesmente seguir a Cristo e arriscar a vida por Ele.
E, ao revés, negar-se a seguir Cristo é perder a vida e excluir-se a si
mesmo do Reino» (La Iglesia I, p. 56)
b) O Reino sofre ainda uma tensão.
De fato já chegou e a ele pertence tudo o que se converte a Cristo, porém ainda
não foi consumado, pois o será quando seja vencido definitivamente o mal com a segunda
vinda de Cristo (cf. Rm 8,18ss.): Cristo rompeu o tempo e abriu o céu.
O Reino implica também a luta contra a injustiça social, dado que é pecado e fruto
do pecado (Lc 16,19-31; Mt 25). O cristão deverá aceitar que a partir da graça, ou seja, da
condição de filho de Deus e da libertação do pecado que recebemos como dom, deverá
lutar contra a injustiça como fruto da sua pertença ao Reino.
Com o Reino chegou para o ser humano a única e definitiva oportunidade para a
salvação. Sua salvação depende do aceitar a Cristo neste tempo que vivemos e converter-
se (voltar-se) para Ele. Por isso Cristo fala com um sentido de urgência escatológica.
c) Os pobres e o Reino.
O estilo do Reino é aquele delineado por Cristo nas Bem-aventuranças. Limitamo-
nos aqui somente à primeira: «Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino dos
céus» (Mt 5,3), por ser uma chave para entender todas as demais.
O conceito de pobre apresenta uma clara evolução no AT. Nos primeiros livros
existe uma exaltação dos bens materiais como dom de Deus; a pobreza e a carência são um
mal. Porém, com a retribuição do mais além vai-se vendo, pouco a pouco, seu valor
relativo e vai-se compreendendo que os bens deste mundo, bons em si mesmos, podem
levar ao pecado por causa da confiança neles, da auto-suficiência e do esquecimento de
Deus.
Os profetas insistem no fato da dificuldade da fidelidade a Deus na abundância,
porém também não propõem como ideal a miséria. O livro dos Provérbios neste sentido
diz: «Não me dês nem pobreza nem riqueza, faze com que eu tome a porção de que
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necessito, para uma vez saciado, não te negue e diga: quem é o Senhor?, ou, empobrecido,
roube ou profane o nome do meu Deus» (30,8-9).
Porém o conceito de pobre chega a ter um sentido religioso: são os anawin, os
«pobres de Javé». No desterro, sem terra e sem templo, em meio a tantas dificuldades, vai-
se formando um resto que se salvará da ruína e formará um novo Israel. São os anawin,
«pobres de Javé», aqueles que em sua indigência colocaram sua confiança em Deus.
O termo «anaw» tem um matiz de doçura, de piedade. Pobre é aquele que por
amor à humildade, à mansidão, à justiça, prefere suportar a injustiça antes que cometê-la.
Neste sentido são significativos alguns textos do profeta Isaías postos na boca de Deus:
«Aquele em quem fixo os meus olhos é o humilde e contrito de coração, que treme diante
de minha palavra» (Is 66,2).
Quando o Evangelho fala de pobres, não exclui a ninguém do Reino, mas destaca
que a riqueza é um perigo sério para entrar nele. O evangelho não ensina que os pobres
sejam necessariamente amigos de Deus e os ricos necessariamente seus inimigos. O
evangelista Lucas não diz «pobres de espírito» como Mateus, mas «pobres». Segundo
alguns exegetas, a versão de Lucas aparece a mais próxima às palavras de Cristo. No
entanto, não existe contradição entre eles.
Por que Jesus Cristo chama de bem-aventurados os pobres? Será que é porque lhes
trouxera um programa político-social para aliviar sua miséria? Evidentemente que não,
ainda que, como é lógico, o evangelho deva conduzir a superar as diferenças sociais entre
os homens. Jesus Cristo, que clama contra os ricos que enganam os pobres ou
simplesmente vivem com luxo ao lado da miséria dos outros (Lc 6,24-26), chama de bem-
aventurados aos pobres porque estão na condição ideal para receber a graça, o amor e a
predileção divina. O rico se apega facilmente ao dinheiro e cai com facilidade na
autosuficiência, por isso está longe de compreender que o amor de Deus seja o valor
supremo da vida para ele. Este é o perigo das riquezas que tanto fala Lucas.
Freqüentemente a riqueza é o grande obstáculo para o Reino: «Nenhum criado
pode servir a dois senhores: odiará a um e amará o outro…Não podeis servir a Deus e as
riquezas» (Lc 16,13). A advertência de Jesus aos ricos é forte: «Ai de vós ricos, que agora
estais saciados, que agora rides» (Lc 6,24). O pobre, ao contrário, está numa situação ideal
para deixar-se amar por Deus e ver nisso o valor supremo.
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É importante notar que a pobreza evangélica vai mais além da pobreza material; é
uma pobreza com sentido religioso, mesmo quando tenha claras implicações sociais. Não é
só a pobreza do dinheiro, mas da falta de saúde, a situação de quem se sente
marginalizado, diminuído em suas possibilidades, sozinho, mergulhado no pecado e na
miséria moral, com tal de que a partir dessa situação se abra à misericórdia inédita e não
merecida de Deus.
Pobre de espírito, no fundo, é ser rico em espírito, porque aquele que
compreendeu que existe algo por cima de tudo: o amor de Deus que não merecemos e que
nos chega inclusive escandalosamente em nossa situação de pecadores. Por isso o pobre
que encontrou este amor surpreendente, este Deus que chega inclusive ao ridículo da cruz
para nos mostrar seu amor, sobra-lhe tudo: o conforto, a comodidade, o dinheiro, a fama, o
prestígio. São coisa que para ele não contam.
d) Sinais do Reino
A atividade de Cristo é resumida pelos evangelistas com uma dupla dimensão:
«Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, proclamando a boa nova do
Reino e curando toda enfermidade e toda doença do povo» (Mt 4,23)
Com efeito, não podemos separar
a mensagem dos sinais de Cristo. A mensagem é
radicada na pregação do Reino, e os milagres e exorcismos são os sinais que confirmam
sua chegada: «Porém se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, é porque o
Reino de Deus chegou» (Mt 12,28).
Jesus realiza seus milagres sempre no contexto do Reino, buscando a conversão.
Por isso repreende as cidades de Cafarnaum, Corazaím e Betsaida, porque, tendo visto os
milagres que viram, não se converteram (cf. Mt 11,20-24).
É paradigmática a cura que Jesus realiza do paralítico: perdoa os seus pecados e,
diante da indignação dos fariseus pelo fato de sua pretensão divina, diz-lhes: «Para que
vejais que o Filho do Homem tem poder de perdoar os pecados, toma tua cama, vai em
paz» (Mc 2,9). Realiza os milagres como sinais da chegada do Reino. Fora deste contexto
não realiza milagres nenhum. Quando lhe pedem um número de circo, como no caso de
Herodes ou na sua própria cidade, nega-se a fazer (cf. Mc 6,5).
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Jesus realiza os milagres em seu próprio nome. Não os faz em nome de Javé como
os profetas do AT. Suas palavras são: «Eu te digo, eu te ordeno».
Ao mesmo tempo chama a atenção a simplicidade que domina Jesus. Nada de
formas mágicas, nem intervenção cirúrgica, nada de processos hipnóticos ou sugestão.
Realiza os milagres comovido em seu coração e sempre num contexto religioso. A máxima
discrição circunda sua atividade taumatúrgica. Nunca se busca a si mesmo, nunca realiza
um milagre para deslumbrar. Aos que são curados recomenda o silêncio. Quando o povo
o exalta, Jesus se retira.
Depois da multiplicação dos pães obriga os discípulos a fugirem da febre
messiânica que havia se disseminado nas pessoas (cf. Jo 6,15). No momento de realizar a
ressurreição da filha de Jairo diz: «Dorme» (Mc 5,39), e o mesmo com relação a Lázaro (cf.
Jo 11,6).
Nunca realizou prodígios punitivos para deslumbrar ou explorar o medo do povo
supersticioso, como se vê nos evangelhos apócrifos. O único caso que se poderia atribuir é
o da figueira amaldiçoada (cf. Mt 21,18-22); porém, na mentalidade judaica este episódio é
totalmente compreensível: é uma profecia em ação (recurso amplamente usado no AT),
uma maneira de ensinar através de um símbolo ou mostrar um fato que ocorrerá no
futuro. Como a figueira, o povo judeu será rejeitado por sua incredulidade.
Os milagres que Jesus realiza em dia de sábado levam a marca característica de
sua atitude anti-rabínica3.
Os milagres de Cristo têm também uma dimensão apologética, isto é, ele os realiza
como sinais de que o Pai o enviou. Nicodemos reconhece que Jesus vem «da parte de
Deus» porque ninguém pode realizar os milagres que ele faz (cf. Jo 3,2). O cego de
nascimento diz: «Se este homem não viesse de Deus não poderia fazer nada» (Jo 9,33). Os
judeus se perguntam: «Quando o Messias vier fará tantos milagres como faz este
homem?» (Jo 7,31). Jesus pessoalmente censura os judeus: «Se não faço as obras de meu
Pai, não deveis crer em mim; mas se as faço, mesmo que não credes em mim, crede pelas
obras e assim sabereis e reconhecereis que o Pai está em mim e eu no Pai» (Jo 10,37-38). E
observa Jesus: «Se eu não tivesse feito no meio deles obras como ninguém jamais realizou,
não teriam pecado» (Jo 15,24). Suas obras provam, portanto, sua origem divina.
3 Cf. Mt 12,9-14; Mc 1,1-28; 3,1-6; Lc 4,31-34; 6,6-11.
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Curas e exorcismos. Com sua pregação, Jesus pretende destruir o domínio de
Satanás, que escraviza o homem por meio do pecado, da enfermidade e da morte. Por isso,
mediante a conversão, as curas e os exorcismos, Jesus destrói efetivamente o domínio de
Satanás.
Há textos dos Evangelhos nos quais se fala de doenças sem atribuir a nenhum
poder fora do natural. São os casos em que se fala em termos puramente médicos: febre da
sogra de Pedro, o paralítico de Cafarnaum, o homem da mão seca, o leproso, o cego de
Jericó, etc.
Há também casos de doentes em que, ao mesmo tempo que se fala de «possessão»,
termina-se dizendo simplesmente que «foram curados» por Cristo. São, portanto, casos em
que não se pode concluir simplesmente que se trate de possessão diabólica (cf. Lc 13,11-
12). Nestes casos poderíamos falar de mentalidade popular.
No entanto, existe um terceiro grupo de casos em que podemos falar de possessão,
pois neles temos um enfrentamento pessoal de Jesus com o demônio. Já nas tentações do
deserto (cf. Mc 1,12-13) aparece o demônio com a função pessoal e ativa de tentador, e
Cristo o enfrenta num confronto pessoal: «Não tentarás ao Senhor, teu Deus» (Mt 4,7).
O demônio, por sua vez, exige ser adorado. Porém, ainda mais, Jesus tem
consciência de destruir o reino de Satanás e estabelecer o reino de Deus até o ponto que,
diante do demônio, apresenta-se Jesus como o «mais forte» que acorrenta o «forte» e o
despoja de seus bens (Mc 3,27). Jesus tem a consciência de viver um combate pessoal com
o demônio.
Jesus fala do demônio em momentos cruciais e com palavras solenes. Aos seus
discípulos chama a atenção quanto a ação do demônio. No pai-nosso Jesus pede ao Pai que
«nos liberte do maligno» (Mt 6,13), como lêem muitos exegetas. Em suas parábolas e em
suas recomendações fala do demônio4. No momento de deixar o Cenáculo, Cristo declara
como iminente a derrota do «príncipe deste mundo» (Jo 14,30), e com sua morte Jesus
chega a dizer que o «príncipe deste mundo já foi julgado» (Jo 16,11).
Ocorre, portanto, um confronto por causa do Reino, um enfrentamento pessoal de
Jesus com o demônio por causa do Reino. Por isso pode-se dizer que «não se pode
4 Cf. Mt 13,19; Lc 8,2; 22,31; Jo 17,5.
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eliminar da Escritura a existência do demônio como ser pessoal sem alterar a mensagem
cristã em sua própria essência»5.
e) Os milagres podem ser conhecidos?
Atualmente apresenta-se a seguinte objeção com relação ao milagre: «mas não
serão eles obras da força humana, afinal não sabemos até onde chega a força do ser
humano. Certas curas de Jesus atribuídas rapidamente a uma força sobrenatural poderiam
ser explicadas na atualidade a partir da força humana. Não chamemos de milagre ao que
talvez no futuro possa explicar-se pela mesma força da natureza ou pela sugestão».
Certamente, não sabemos até onde possa chegar a sugestão ou a força mesma da
natureza, porém sabemos até onde não pode chegar: a água não se converte em vinho por
sugestão, os pães não se multiplicam por uma palavra de ordem e uma oração.
Para determinar se um fenômeno em concreto é milagre ou não, basta utilizar
alguns critérios básicos:
que se trate de um fato que supere o curso da natureza, observadas em
muitas e variadas ocasiões;
que tal fenômeno não tenha paralelos no mundo profano;
que se exclua a intervenção de possíveis fatores humanos que pudessem
explicá-lo.
f) Os milagres de Cristo e a história
Existe quem admite sem problemas a historicidade da mensagem de Cristo, porém
não a de seus milagres, o que não deixa de ser uma opção arbitrária pelas seguintes razões:
os relatos dos milagres nos evangelhos não são um apêndice do qual se
pudesse prescindir: em concreto, no evangelho de Marcos, se
prescindimos do relato da Paixão, os milagres de Cristo supõem o 47% de
seu evangelho6;
além disso, os milagres aparecem estreitamente unidos à mensagem de
Jesus: ambos, pregação e milagres, aparecem como sinais da chegada do
Reino (têm a mesma
intenção e respondem à mesma lógica);
5 L. MONDEN, El milagro, signo de salud, Barcelona 1963, p.127.
6 Como diz W. Trilling, «os relatos de milagres ocupam um lugar tão grande nos evangelhos que seria impossível que
todos eles tivessem sido inventados posteriormente e atribuídos a Jesus».
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outro dado importante é que muitos milagres de Jesus tiveram um caráter
público: não se trata de rumores, mas de milagres realizados diante de
todo Israel, como a multiplicação dos pães ou a ressurreição de Lázaro,
que foi comprovada pelos judeus de Jerusalém (cf. Jo 12,18);
além disso, os evangelhos foram escritos quando ainda viviam os
contemporâneos de Jesus, que poderiam ter negado seus milagres.
De fato ninguém, nem mesmo os inimigos de Jesus, negaram que ele realizasse
prodígios. Os fariseus não os podem negar e usam o recurso de atribuí-los ao poder do
diabo (cf. Mt 12,26-27). É curioso que uma tradição judaica que aparece no Talmud
babilônico fale também dos milagres de Cristo atribuindo-os à magia.
Porém a historicidade dos milagres de Cristo fica garantida não só pelo fato de
que aparecem em todas as fontes que compõem os evangelhos, mas porque, quando são
comparados com as narrativas helênicas de milagres, aparece uma evidente diferença com
eles (argumento de descontinuidade).
Foi R. Bultmann quem defendeu a tese que as narrações evangélicas estavam
influenciadas pelas narrativas helênicas: chegou a dizer que os milagres de natureza (os
que não são curas, como a multiplicação dos pães) são uma cópia dos helênicos.
No entanto, na Vida de Apolônio de Tiana (contemporâneo de Cristo, cuja vida foi
escrita por Filostrato em 217, num ambiente polêmico contra o cristianismo), os milagres
que aparecem são fantasias, às vezes tão ingênuos como a de uma mulher que havia tido
sete partos difíceis. Numa nova gravidez, pede Apolonio ao marido que vá até o quarto da
mulher, levando uma lebre viva amarrada na cintura, e que dê voltas ao redor de sua
cama com ela. Num momento determinado, a soltará e assim nascerá a criança com
facilidade.
Só se encontra nela um único caso de um milagre sério: Apolônio ressuscita nos
arredores de Roma uma moça que estava sendo levada para o cemitério. Porém, o próprio
Filostrato pergunta-se se se tratava ou não de uma morte aparente, já que Apolônio não
havia percebido que ainda saia vapor do rosto da moça, talvez «por causa da chuva fina
que caía».
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Quanto aos milagres realizados nos santuários do deus da medicina, Esculápio,
sabe-se hoje que neles havia grupos de médicos que trabalhavam, porque em muitos ex-
votos aparecem prescrições médicas e utensílios apropriados. A imaginação popular
também deixou se levar, como no caso de Cleo, uma moça que grávida havia cinco anos
não conseguia dar à luz. Vai ao santuário, pede ao deus para dar à luz e a criança nasce e
vai correndo sozinho lavar-se na fonte.
Bastaria comparar as narrativas evangélicas com as apócrifas para comprovar que
estes últimos se deixam levar por um estilo que não é o de Jesus. No Evangelho de Tomé,
por exemplo, aparece Cristo fazendo passarinhos de argila e dando-lhes vida com um
sopro. No entanto, os milagres de Jesus têm um selo característico como sinais do Reino,
localizados, além disso, num clima religioso e relatados com tal sobriedade que são
totalmente diferentes dos supostos milagres helênicos.
Diz um estudioso do assunto:
A notável sobriedade, a ausência de exageros e a simplicidade de um
lado contrastam o exibicionismo e as vozes de mercado de outro lado; a
dignidade, a seriedade, o esquecimento de si de Jesus e o contexto de
oração em seus milagres contrastam com os transes, as fantasmagorias e
o espírito de luta dos taumaturgos. Nos evangelhos nenhum milagre é
inútil, carente de importância, duvidoso em suas intenções, como
acontece freqüentemente nos milagres mitológicos. Também não existe
neles nenhum milagre de punição nem sede desenfreada do espetacular.
Não se realiza nenhum milagre durante a infância nem durante a
paixão.
Os argumentos contra a historicidade dos milagres de Cristo são muito frágeis
quando se apela ao recurso de que estejam relatados com a mesma estrutura que os
helênicos (exposição da enfermidade, pedido de cura, cura e ação de graças). Diante deste
argumento de R. Bultmann, A. Richardson se pergunta: «cabe mencionar outra forma de
expor uma cura milagrosa sem torná-la ininteligível?»
Argumento pobre é também recorrer a diferenças de detalhes entre as diversas
narrativas de um milagre nos evangelhos, pois este dado é, mais bem, sinal de que usam
diferentes fontes que coincidem no fundamental, que dá garantia de historicidade. Às
vezes as diferenças provêem do estilo mesmo dos evangelistas, e ninguém se preocupou
em adaptar, o que é um sinal de historicidade. Pelo contrário, uma uniformidade total
poderia ser, mais bem, sinal de retoques e artifícios.
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Na realidade não houve ainda nenhum argumento autêntico contra a
historicidade dos milagres de Cristo. Fazem afirmações contra eles que não há argumentos
que apoiem. Pergunta-se também se a rejeição deles não se deva a preconceitos e opções
teológicas tomadas a priori.
O milagre é rejeitado, em muitos casos, porque interpela à consciência. Isso é
muito bem explicado na narrativa do cego de nascença (cf. Jo 9). Os fariseus não aceitam o
milagre por soberba («não aceitamos a esse tal»); os pais, por questão de comodidade
(porque senão os expulsam da sinagoga). Porém o cego tem o coração limpo e pensa
assim: «Aqui há uma coisa clara: eu antes não via e agora vejo. E nunca se ouviu dizer que
ninguém tenha dado vista a um cego de nascimento. Portanto, o que me curou vem de
Deus» (cf. Jo 9,31-33). E expulsaram-no da sinagoga.
Não cabe dizer que os milagres de Cristo sejam ambíguos e que só a fé os possa
discernir; as obras de Deus não são ambíguas, mas sim o coração do homem. Cristo fala
sobre isso claramente: «Se vocês não crêem em mim pelo que eu lhes digo, creiam pelo
menos pelas obras» (Jo 10,38).
1.5. O Mistério Pascal
a) Que sabia Cristo sobre a sua morte?
Jesus foi condenado à morte pelo parlamento de seu povo, o sinédrio. Foi
condenado por blasfêmia, porque disse que o filho do homem viria sobre as nuvens (cf. Mt
26,64). Caifás rasga as vestes: «Agora está tudo claro, este homem tinha subvertido nossa
sociedade, é claro que ele não vem de Deus, pois não pode vir dele um blasfemo».
A acusação diante de Pilatos é clara: «Nós temos uma lei e segundo esta lei ele
deve morrer, porque se passa por filho de Deus» (Jo 19,7).
Para Pilatos não importava a motivação religiosa e, por isso, os judeus que
conhecem sua psicologia e sabem que ele está na Palestina por força de carreirismo e
ambição, põem em jogo sua carreira ao dizer: «Se soltas este homem, não és amigo de
César, todo o que se faz rei é inimigo de César» (Jo 19,12).
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Pilatos não entendia que aquele homem, com a aparência que tinha, pudesse ser
um subversivo. Por isso lhe pergunta: «Tu és o rei dos judeus?» (Jo 18,33). Porém Pilatos o
condenou… estava em jogo sua carreira diante do César.
Porém, o que sabia Cristo sobre a sua morte? Será que ele pôde dar a ela um
sentido redentor? Hoje é muito freqüente ouvir dizer que Cristo foi condenado porque seu
programa político-social se chocou com as autoridades de seu povo,
diz-se que ele não
sabia que ia morrer e que, portanto, não podia dar um sentido redentor à sua morte.
Faz-se uma caricatura do conceito de satisfação de Cristo ao Pai: apresenta-se um
Pai que pede vingança e quer satisfazer sua justiça vindicativa condenando seu Filho ao
castigo. Que pai é esse?
A verdade é que o ensinamento da Igreja não falou de castigo para entender a
satisfação de Cristo ao Pai. Foi Lutero que abundou nesse conceito7. O Catecismo da Igreja
Católica usa os termos «satisfação», «reparação» e «expiação», porém não na perspectiva
do castigo, mas desde a perspectiva do amor8.
b) Subida a Jerusalém
Jesus Cristo foi voluntariamente à cruz. Encontrava-se em Cesaréia de Filipo, antes
de ter enfrentamentos sérios com os judeus, quando tomou a decisão de ir em direção à
cruz.
Depois da confissão de Pedro, diz o evangelho: «E começou a ensinar-lhes que o
filho do homem tinha que sofrer muito e ser reprovado pelos anciãos, os sumos sacerdotes
e os escribas, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia» (Mc 8,31).
Pedro discute com Cristo porque vê fracassar suas esperanças, e se interpõe em
seu caminho: «Isso não vai acontecer-te». Jesus lhe responde: «Afasta-te de mim, Satanás,
porque tu pensas como os homens e não como Deus» (Mc 8,33).
É impossível imaginar que a comunidade cristã primitiva inventasse uma cena
desse tipo. O próprio Marcos anota que Jesus descia para Jerusalém «diante deles» (Mc
10,32), que estavam surpreendidos e o seguiam com medo. Jesus Cristo dirigiu-se
7 LUTERO, Com. in Gal. 3,3. Weimar 41/1, 437-438.
8 Cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 614-616.
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voluntariamente à Cruz. Ele mesmo o dirá: «Ninguém me tira a vida, eu a dou
voluntariamente» (Jo 10,18).
Cristo pôde prever a sua morte: sua postura diante do sábado, sua atitude diante
da lei e, sobretudo, sua ação purificadora do templo (cf. Mc 11,15ss), eram motivos mais
que suficientes para sua prisão. O próprio fim que tivera o Batista, freqüentemente
relacionado com ele, o teria feito pensar nela.
Jesus também fala com muita freqüência de sua morte: cf. Mc 2,19-20; 14,21). No
total encontramos oito predições solenes de sua crucifixão!
Qual é o sentido que Cristo dá a essa sua morte?
Foi na última ceia onde ele expressou o sentido redentor de sua morte: «Tomai,
comei, isto é o meu corpo… Este é meu sangue da aliança que vai ser derramado por
muitos para remissão dos pecados» (Mt 26,26-28). Jesus se serve aqui da profecia do servo
de Yahvé para dar a entender que sua vida se entrega em expiação dos pecados da
humanidade. O texto de Mateus e de Marcos é o mais primitivo, e seu sabor aramaico
(«por muitos»; «por todos») é eco vivo das palavras sobre o servo (cf. Is 53,11-12).
c) Em reparação dos pecados
Esta oferenda de Cristo ao Pai realizada na cruz é um mistério de amor: «Jesus, ao
aceitar em seu coração humano o amor do Pai para com os homens, ―amou-os até o
extremo‖ (Jo 13,1), porque ―ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos
amigos‖ (Jo 15,13)… Aceitou livremente sua paixão e sua morte por amor ao Pai e aos
homens que o Pai queria salvar»9.
O sacrifício de Cristo é, antes de tudo, um dom do Pai que entrega o Filho para
reconciliar-nos com Ele. Porém, ao mesmo tempo, é uma oferenda do filho de Deus feito
homem que, livremente e por amor, oferece sua obediência ao Pai para reparar nossa
desobediência10.
É o amor até o extremo o que confere valor de redenção e reparação, de satisfação
e expiação ao sacrifício de Cristo11.
9 Ibdem, n. 609.
10 Ibdem, n. 614.
11 Ibdem, n. 616.
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Para entender o mistério da reparação de Cristo ao Pai por causa do pecado é
preciso entender que o pecado é algo que o afeta pessoalmente.
Na Bíblia o pecado aparece como uma realidade misteriosa que ofende a Deus em
si mesmo. O mesmo termo que se usa para designar infidelidade conjugal (zanah)
emprega-se também para descrever a infidelidade a Deus12. A experiência dolorosa que
vive o profeta Oséias, por exemplo, na infidelidade da sua esposa, Deus vai empregá-la
para expressar a dor que lhe causa a infidelidade do seu povo.
No AT se utiliza uma dupla imagem para expressar o pecado como ofensa a Deus:
o adultério13 e a imagem do filho que abandona o pai (cf. Os 11,3-4).
No NT, na parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32), descreve-se o pecado como
ofensa de um filho que abandona o pai. A alegria do pai no momento do retorno do filho
nos ajuda a compreender a profundidade de sua tristeza quando o filho deixou a casa.
Com esta parábola Jesus quis revelar os sentimentos de seu Pai com relação ao homem
pecador.
Deus quis ter, a nosso respeito, uma relação gratuita de amor paterno, mostrar-se
como Pai, sair de si mesmo e criar com o homem uma nova relação.
O que o pecado faz é impedir a Deus que consume seu amor como Pai. O pecador
rejeita a Deus como Pai, não o deixa ser Pai. Isto, naturalmente, não causa nenhum dano
efetivo na natureza divina, porém o impede dar-se como Pai ou, melhor, consumar sua
comunicação como Pai.
O único que fica efetivamente danificado pelo pecado é o próprio homem, que
com ele se escraviza e destrói, porém também é verdade que pelo pecado Deus não pôde
consumar seu amor paterno. Neste sentido há no homem um poder sobre Deus: sua
liberdade pecadora e pode-se dizer que, de algum modo, Deus se colocou à mercê do
homem.
Desse modo podemos entender como o pecado afeta a Deus, enquanto chega a seu
coração a resposta negativa do homem e o impede, de algum modo, levar adiante seu
plano, consumar seu amor. Existe, portanto, no pecado uma dimensão teológica que nos
impede reduzi-lo a uma falta ética ou moral.
12 Cf. Jr 2,20; 3,6.8; Ez 16, 15-17; Os 2,7; 4,12.
13 Cf. Ez 16,16; Dt 31,16; Is 57,3; Os 2,6ss.
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A partir daqui podemos entender o que Cristo fez na cruz: corresponder ao amor
não correspondido ao Pai, por própria iniciativa sua. Cristo, que conhece a fundo a
profundidade do amor desprezado do Pai, veio à terra para dizer-lhe sim, para
corresponder a seu amor e pedir-lhe que não retire seu amor aos homens.
O Pai já não queria nem sacrifícios nem oblações de animais, então Cristo disse:
«Eis-me aqui, venho fazer tua vontade» (Hb 10,6-7). E o Pai, alegre por isso, debruçou-se
sobre o Filho e nos amou n’Ele. Assim, Paulo pode dizer que em Cristo temos já a garantia
do amor do Pai: «Quem não poupou seu próprio Filho, mas por nós o entregou, como não
nos dará todas as coisas juntamente com ele?» (Rm 8,32); «a prova que Deus nos ama é que
Cristo, sendo nós ainda pecadores, morreu por nós» (Rm 5,8). «Com efeito, quando ainda
estávamos sem forças, no tempo determinado, Cristo morreu pelos ímpios» (Rm 5,6-7).
«Morreu pelos ímpios». Esse é Cristo na cruz, fracassado, «desprezado, rejeitado
da humanidade, homem de dores, provado pelo sofrimento, como alguém diante de quem
se desvia o rosto, era desprezado e não estimado» (Is 53,3-4).
Este Cristo da cruz será escândalo para os judeus e loucura para os pagãos (cf.
1Cor 2,2). No entanto, este Cristo fracassado não deixa em paz a nenhum homem. Existe
nele demasiada paz em meio a tanto suplício, bastante ternura em meio a tanta agonia,
demasiado silêncio no que é a verdade. Tudo terminara num fracasso, no mais espantoso
fracasso.
Assim morre Jesus.
Tudo terminou num espantoso fracasso. Aos pés da cruz só
estão umas mulheres, sua mãe entre elas. Os outros fugiram. Como ficar na cruz? Seus
discípulos não podiam esperar uma coisa assim. Ainda que lhe tenham ouvido anunciar a
sua morte, não o podiam crer. Esperavam que ao final algo acontecesse. Aquele que fizera
tantos milagres não podia terminar assim.
Pelo que se podia ver venceram seus inimigos. No entanto, nesta morte espantosa
há algo que fala. O soldado que o viu morrer, estremecido pelo que havia visto, exclama:
«Verdadeiramente este homem era o filho de Deus» (Mc 15,39).
Um homem como J.J. Rousseau diria algo parecido: «Que obsessão, que
preconceitos levam a comparar o filho de Sofronisca (Sócrates) com o filho de Maria! Que
distância um do outro! Sócrates, morrendo sem dor, sem ignomínia, sustentou facilmente
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até o fim o seu personagem e, se esta fácil morte não tivesse honrado sua vida, poderíamos
duvidar de se Sócrates, com tudo, não teria sido sofista… A morte de Sócrates filosofando
tranqüilamente com seus amigos é a mais doce que se pode desejar; a morte de Jesus
expirando entre tormentos, escarnecido, mal visto por todo o povo, é a mais horrível que
se possa ter. Se a vida e a morte de Sócrates são as de um sábio, a vida e a morte de Jesus
são as de um Deus»14.
É como se esse rosto maltratado e morto dissesse ainda: ninguém morreu assim.
Não se entende que uma pessoa humana possa morrer assim e morrer em silêncio, sem
uma queixa… Na morte de Cristo há um silêncio que crê e espera, porém, em quê?
d) A Ressurreição de Cristo
Aconteceu no primeiro dia da semana (Jo 20,1) que mais tarde seria chamado dies
Domini – domingo – dia do Senhor. Maria Madalena dirigiu-se a Pedro e João correndo
naquela manhã para anunciar-lhes o ocorrido. Num momento onde ninguém esperava
nada. Tudo tinha terminado no mais espantoso fracasso, porém as palavras das mulheres
lhes causaram espanto.
e) Jesus ressuscitou
A primeira coisa que as mulheres que foram ao sepulcro para embalsamar o corpo
comprovaram foi o fato do sepulcro vazio (cf. Mc 16,6ss). A seguir um anjo lhes explica
que Cristo está vivo, ressuscitou.
O fato de ter encontrado o sepulcro vazio causou-lhes, a princípio, espanto! Só o
encontro pessoal com Cristo foi capaz de dissipar esse medo inicial e encheu-as de alegria.
Os discípulos espantaram-se com o anúncio das mulheres. Sua reação não podia
ter sido outra que a da incredulidade. Só o encontro com Cristo dissiparia as dúvidas e
incertezas. Assim, Cristo apareceu a Pedro, aos dois discípulos que iam a caminho de
Emaús e aos onze, aparição que mais testemunhos temos.
Por si só o sepulcro vazio não podia dar garantias de que Cristo ressuscitara.
Foram sobretudo as aparições que as deram. Porém, não seriam essas aparições visões ou
imaginações interiores dos discípulos?
14 J.J. ROUSSEAU, Emile, in Oeuvres II, Paris 1905, 208.
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Se analisamos os relatos, vemos imediatamente que o verbo que se usa para falas
das aparições é opthé («deixou-se ver»), porque na tradução grega dos LXX era o verbo
consagrado para falar das aparições de Yahvé. Quer dizer isto que não se trata de uma
visão como experiência subjetiva, mas de uma iniciativa de Deus que vem aos seus: o
Ressuscitado é visto porque aparece, não aparece porque é visto.
O NT tem outro termo, horama, para falar de visões interiores. Termo nunca
empregado para falar das aparições de Jesus. O próprio Paulo, que teve visões e êxtases,
fala delas como que excusando-se (cf. 2Cor 12,11), enquanto que ao referir-se ao seu
encontro com Cristo no caminho de Damasco, fala sem excusa alguma. E Paulo explica
que foi por causa desse encontro que ele foi constituído apóstolo e só por causa dele se
apresenta como testemunha da ressurreição de Cristo (cf. 1Cor 15,8).
Assim mesmo, o termo martyrs (testemunha) tem o sentido de ser garantia de algo
que se viu ou ouviu externamente: «Nós não podemos nos calar sobre o que vimos e
ouvimos» (At 4,20), responde Pedro ao Sinédrio. Os apóstolos têm consciência de que, com
seu testemunho, invalidam a sentença injusta do Sinédrio sobre Cristo. Seu testemunho
tem por isso um sentido judicial, de prova contrária.
f) Ressurreição transcendente e histórica
A ressurreição de Cristo não é como a de Lázaro. Lázaro ressuscita e retorna à
vida normal. A ressurreição de Cristo, ao contrário, é uma ressurreição final, definitiva,
gloriosa, escatológica: seu corpo é um corpo glorioso que venceu definitivamente a morte.
É uma ressurreição transcendente. Ninguém viu Cristo ressuscitar. No entanto, é
uma ressurreição que não foge a história, pois deixou marcas nela: o sepulcro vazio e as
aparições. É por meio destas marcas que os apóstolos conheceram o fato da ressurreição.
Se não tivessem visto Cristo ressuscitado, não teriam acreditado nunca em sua
ressurreição. Como recorda o Catecismo da Igreja Católica (cf. n° 643), os apóstolos não
estavam para visões de tipo místico, uma vez que a condenação de Cristo fora a
condenação de um maldito segundo a lei, de tal modo que a fé que eles tinham estava
jogada pelo chão, a ponto de partir para a Galiléia para retomarem sua vida habitual,
conforme nos recordam as palavras dos discípulos de Emaús (cf. Lc 24,21).
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Introdução à Teologia II
29
E mais ainda, uma ressurreição como a de Cristo, não podiam nem mesmo
imaginar, pois os judeus acreditavam na ressurreição gloriosa dos homens ao final da
história, porém não podiam pensar numa ressurreição definitiva (mesmo que fosse a do
messias) dentro da história, de tal modo que o dia seguinte fosse um dia normal.
Por isso, quando vêem a Cristo ressuscitado, num primeiro momento duvidam. É
lógico que manifestassem surpresa e incredulidade: era algo que não podiam imaginar,
além disso, estavam diante de um corpo glorioso.
No entanto, depois de um primeiro vacilar, chegam a reconhecer o corpo de Jesus
sem dúvida nenhuma: um corpo glorioso, invisível por si mesmo, mas que se torna visível
para quem ele quer manifestar-se, pois de outro modo seus discípulos não teriam crido na
ressurreição.
Assim o diz o Catecismo, quando expressa que a ressurreição de Cristo é
transcendente (cf. CEC 646), porém ao mesmo tempo é um acontecimento histórico
demonstrável pelo sepulcro vazio e as aparições (cf. CEC 647).
g) Historicidade dos relatos
Porém, são históricos os relatos da descoberta do sepulcro vazio e das aparições?
Vejamos sua consistência histórica, aplicando-lhes os critérios de historicidade.
Em primeiro lugar, o testemunho da ressurreição de Cristo (sepulcro e aparições)
aparecem em todas as fontes dos evangelhos e do NT: não existe testemunho mais
unânime.
Em segundo lugar, a ressurreição de Cristo é algo inimaginável para a
mentalidade judaica: «O acontecimento que aqui se afirma tinha para eles todos os traços
para ser improvável e até impossível. A ressurreição escatológica, e esta é a que se afirma
de Jesus, não uma mera revivificação, estava reservada para o final dos tempos. Assim se
podia constatar numas poucas passagens do AT em que se fala dela, e assim pensavam os
fariseus em oposição aos saduceus (cf. Mc 12,18-27). Era, pois, improvável uma
ressurreição escatológica prematura de um indivíduo, mesmo que este fosse o messias,
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Introdução à Teologia II
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porque ela teria marcado o fim dos tempos e, no entanto, o mundo continuava
existindo
como ontem e ante-ontem»15.
Nem mesmo com relação ao messias era previsível uma ressurreição. Teria sido
necessário que no AT houvesse profecias claras a respeito de uma ressurreição tal como a
confessam os apóstolos e que, além disso, fossem assim entendidas pelos doutores da lei e
os judeus piedosos daquele tempo. Diferente é que, uma vez conhecido o fato da
ressurreição de Jesus, certas passagens do AT sejam iluminadas, como o Salmo 16 que
Pedro utiliza em seu discurso (At 2). Por si só, o AT não oferecia muita luz ao redor de
uma ressurreição do messias que previamente fosse conhecida. As mesmas predições de
Jesus não tinham sido entendidas pelos seus discípulos.
Além disso, as primeiras testemunhas da ressurreição são mulheres, quando na
sociedade judaica o testemunho de uma mulher não tinha nenhum valor. Como podiam
inventar um detalhe assim? Nos mesmos relatos os apóstolos aparecem como homens sem
esperança alguma, abatidos e deprimidos. Jesus mesmo os trata de «insensatos e lentos»
(Lc 24,25), gente que não esperava nada. Podia a comunidade primitiva inventar isto de
seus próprios chefes?
Apesar do atrativo mítico que podia ter um acontecimento assim, ninguém nos
evangelhos cedeu à tentação de descrever o fato mesmo da ressurreição, como acontece,
pelo contrário, no Evangelho de Pedro, apócrifo. Os relatos não podem ser mais sóbrios: «
nós O vimos», «apareceu»… Não dizem mais. Não sabem explicar, só podem professar a
fé que eles têm no fato.
W. Pannenberg censura a R. Bultmann quando este diz que a comunidade
primitiva inventou os relatos da ressurreição: para um judeu é absolutamente impossível
confessar como messias a um maldito, a um crucificado, porque Cristo foi condenado como
um maldito segundo a lei16.
Como pode aceitar isto uma comunidade judaica para a qual o messias é o homem
que triunfa com a espada? Sem a ressurreição não se entende que um dos grandes
pensadores daquele tempo, Saulo de Tarso, deixasse de ser o mais violento perseguidor do
15 M. GONZÁLEZ GIL, Cristo, misterio de Dios II, Madrid 1976, p.316.
16 W. PANNENBERG, Fundamentos de cristología, Salamanca 1974.
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cristianismo, e se convertesse em seu grande defensor. Que aconteceu? Explica-o
claramente Paulo: encontrou-se com Jesus no caminho de Damasco, isso foi tudo.
Não se entende tampouco que homens tão defensores do monoteísmo como eram
os judeus defendam agora sem dúvida alguma que o Pai é Deus e que Cristo é Deus. Com
isso começava um dos maiores problemas ideológicos da história humana: um problema
que perdurou durante sete séculos, debates, concílios, heresias…
Faltava inclusive a terminologia adequada que teve de ser inventada para o caso.
Era uma nova idéia de Deus, absolutamente incompatível com a filosofia do tempo; um
Deus que, sem deixar de ser único, era misteriosamente múltiplo; um Deus que se tinha
encarnado e sofrido, algo inaceitável para toda idéia platônica.
Aquela Igreja nascente não tinha possibilidade nenhuma de seguir em frente,
porém era uma Igreja disposta ao martírio: «Nós não podemos calar sobre o que temos
visto e ouvido» (At 4,20).
h) Dimensão salvífica da ressurreição
A ressurreição não é somente o fato histórico que justifica o cristianismo: «Se Cristo
não ressuscitou, vã é nossa fé, vã também nossa pregação» (1Cor 15,14). É também um fato
salvífico de primeira linha, enquanto que como Paulo afirma, se Cristo não ressuscitou,
estamos ainda em nossos pecados (1Cor 15,16).
Com efeito, a ressurreição de Cristo é, antes de mais nada, a aceitação do sacrifício
da parte do Pai. O Pai aceita o sacrifício de Cristo, ressuscitando-o.
Agora em Cristo temos garantido o amor do Pai, que nos ama em seu Filho, por seu
Filho e com seu Filho. O Pai nos amou definitivamente em Cristo. Já não retira o seu amor.
Selou a aliança definitiva. Só se condenará aquele que voluntária e livremente ria deste
Deus que por nós passou pelo ridículo da cruz e nos entregou o que tinha de mais caro, o
seu Filho. A este Deus não se pode pedir que ame mais; deu tudo ao entregar o seu Filho.
Pelo amor do Pai ficamos também libertos da escravidão do maligno (cf. CEC 2853),
do sofrimento e da morte: as escravidões que o primeiro pecado do homem tinha
introduzido na humanidade estão vencidas. A vida tem sentido porque Cristo ressuscitou:
«Não temos outro nome pelo qual possamos ser salvos» (At 4,12).
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É certo que o maligno, mesmo vencido, pode continuar tentando o homem; é certo
que o sofrimento e a morte continuam sendo uma realidade para nós. O que muda agora é
que o pecado, o sofrimento e a morte não têm mais a última palavra, e um dia inclusive
superaremos a morte com a ressurreição.
Cristo, que fora humilhado na carne, foi agora constituído em glória e poder (cf. Rm
1,3-4). A descida de Cristo à mansão dos mortos significa que ele experimentou realmente
a morte e que tornou os justos do AT participantes de seu triunfo (cf. CEC 631-635).
Os cristãos, com esta moral de vitória, atrevem-se agora a desafiar o mundo
corrompido da antiguidade: sofrerão o martírio, não lhes importa.
Assim descreve um autor do séc. II, Diogneto, a magnanimidade destes cristãos:
Os cristãos não se distinguem dos demais homens porque vivem numa
região diferente, tampouco se distinguem por seu idioma ou seus
vestidos. Não moram em cidades próprias, nem empregam uma
linguagem desconhecida, nem levam uma vida singular. Sua doutrina
não foi descoberta por eles com a força da reflexão ou pela busca da
capacidade humana, nem se tornam, como tantos outros, os defensores
de uma doutrina humana. Vivem em cidades gregas ou bárbaras,
segundo onde lhe correspondeu viver; seguem os costumes locais em
seu modo de vestir, alimentar-se e comportar-se, manifestando ao
mesmo tempo as leis extraordinárias e verdadeiramente paradoxais de
sua república espiritual. São cidadãos de suas respectivas pátrias, mas
vivem como estrangeiros domiciliados. Cumprem todos os deveres de
cidadãos e suportam todas as cargas como estrangeiros: qualquer região
estrangeira é para eles pátria, e qualquer pátria, região estrangeira.
Casam-se como todos, e têm filhos; porém não abandonam os recém
nascidos. Participam todos da mesma mesa, porém não do mesmo leito.
Vivem ―na carne‖, porém não ―segundo a carne‖. Habitam na terra,
porém são cidadãos do céu. Cumprem as leis estabelecidas, e com seu
estilo de vida superam as leis. Amam a todos, e por todos são
perseguidos. São ignorados e condenados; matam-nos, porém são
vivificados. São mendigos e enriquecem a muitos; carecem de tudo e
tudo lhes sobra. São desonrados e se sentem glorificados; são caluniados
e são justificados. Sendo insultados, bendizem, ao serem ultrajados,
respondem honrando aos demais. Fazem o bem e são castigados como
criminosos; e, enquanto padecem o castigo, alegram-se como se
nascessem para a vida. Os judeus fazem-lhes a guerra como se fossem
estrangeiros e os gregos os perseguem; porém aqueles que os odeiam
não são capazes de dizer a causa para a sua inimizade17.
17 Carta a Diogneto 5 (PG 2,1173-1174).
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Capítulo II
NOÇÕES BÁSICAS DE ECLESIOLOGIA
1. Delineamento
Chamamos Eclesiologia aquela parte da Teologia que estuda a Igreja: sua origem,
sua natureza, sua constituição, sua missão, sua relação com o mundo, etc.
Nos primeiros séculos, a eclesiologia era mais vida e consciência do
que teologia
sistemática. Isso não significa que não tivessem uma consciência viva, clara e precisa do
que é a Igreja.
Até mesmo, podemos dizer, que de tal modo a Igreja estava presente em suas
reflexões que um tratado particular sobre ela seria desnessário18, pois a mesma era
entendida e experimentada basicamente:
desde a categoria de mistério, enquanto continuidade da história da
Salvação narrada na Bíblia (entendia-se que na Igreja da Nova Aliança são
realizadas as prerrogativas de Israel e as promessas do Antigo Testamento);
como um organismo vivo do qual se participa existencialmente;
como Ecclesia mater (a Igreja é mãe: portadora da salvação e geradora do
homem novo graças ao Batismo);
como mistério de comunhão (entendida a partir do vínculo entre bispos e
fiéis, bispos e fiéis entre si).
Por isso, a sistematização da eclesiologia não se fazia necessária. Até então toda a
reflexão teológica se dava in medio Ecclesiae. Não havia razão para um tratado sobre a
Igreja quando esta era algo óbvio e estava fortemente afirmada. Porém, é evidente que se
fez inevitável quando começou a ser questionada (por diversos fatores) na história.
Assim, o tratado sobre a Igreja (De Ecclesia) nasceu mais tarde, num contexto
polêmico, marcado por condicionamentos sociopolíticos: as disputas entre Felipe, o Belo
(1285-1314) e Bonifácio VIII (1294-1303). Só partir desta época começa a sistematização da
18 Cf. L. BOUYER, La Iglesia de Dios, Madrid 1973, p. 19-20.
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reflexão teológica sobre a Igreja e o tratado começa a se desenvolver e a se consolidar em
diversas etapas até os nossos dias.
O fato é que, atualmente, algumas perguntas são inevitáveis. O que é a Igreja? Por
que tenho que crer nela? Por que aceitar a sua mediação e não relacionar-me diretamente
com Cristo? Que garantias tenho de que Cristo fundou a Igreja e de que ela não seja
simplesmente uma iniciativa humana? Qual é a sua finalidade?
2. A fundação da Igreja por Cristo
A questão da formação da Igreja e de sua relação com Jesus é algo fundamental
para a fé cristã, pois se torna muito comum em nossos dias a oposição entre Cristo e a
Igreja.
Podemos citar, por exemplo, o pensamento do teólogo e filósofo francês Alfred
Loisy (1857-1940), modernista, que afirmara: « Jesus pregou o reino de Deus, e o que veio
foi a Igreja »19. Com esta frase (que se tornou popular) dá a entender que a Igreja não foi
querida por Deus.
Segundo o então Cardeal J. Ratzinger pode-se compreender este pensamento de
Loisy, primeiramente, quando se observa que Jesus, em sua mensagem, não anunciou
imediatamente o advento da Igreja, mas do Reino de Deus e, ainda, quando se constata
que existem 122 passagens do Novo Testamento falando do Reino de Deus (das quais 99
pertencem aos Evangelhos Sinóticos e 90 são diretamente palavras de Jesus)20.
Diante da aparente contradição, a primeira questão a ser investigada é se a
fundação da Igreja corresponde ou não à intenção de Cristo. Para isso precisamos buscar o
testemunho do Novo Testamento.
a) O Reino de Deus e a Igreja
Como vimos em nossos estudos de Cristologia, todos os exegetas estão de acordo
que o centro da pregação de Jesus é a chegada do Reino de Deus. Porém, devemos admitir
que Jesus, junto com a pregação do Reino, buscava ao mesmo tempo a formação de uma
comunidade.
19 A. LOISY, L’évangile et l’Église, Paris 1902, p. 111.
20 Cf. RATZINGER J., Compreender a Igreja hoje – vocação para a comunhão, pp. 13-14.
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Analisando os textos evangélicos, percebermos que Jesus não se entende como um
indivíduo isolado. Ele veio, com efeito, congregar ―os que estavam dispersos‖ (cf. Jo 11,52
e Mt 12,30), pois concebe a realização do Reino numa comunidade unida à sua Pessoa.
Toda a sua obra consistem em reunir o novo povo. Na sua pregação usou muitas imagens
para falar da congregação do povo de Deus: por exemplo, em Mc 14,27 e em Lc 12,32, fala
de rebanho.
Observemos também que o Reino chega para o Povo de Deus, o velho Israel que o
rejeita. Diante desta rejeição, nasce o novo Israel que o acolhe na fé.
O episódio dos magos que, guiados por uma estrela vão adorar Jesus (cf. Mt 2,1-
23), por exemplo, tem sido estudado pela exegese moderna, que descobre nessa passagem
uma verdade eclesiológica: o Cristianismo nasce em berço judeu, mas são os pagãos que o
abraçam21:
Belém
Jerusalém
Magos
Esse dado pode ser comprovando também quando se lê nas Sagradas Escrituras
que Jesus Cristo:
quis reunir a todo Israel como «a galinha a seus pintainhos» (Lc 13,34),
porém não quiseram;
diz na parábola dos vinhateiros homicidas: « Tirar-vos-ão o reino de Deus
para dá-lo a um povo que dê seus frutos » (Mt 21,43);
fala que os primeiros convidados à festa não quiseram entrar, por isso
convoca a todos os que se encontram pelos caminhos (cf. Mt 22,1-6).
O novo povo surge pela aceitação do Reino que chega com a sua pessoa. A Igreja
no Novo Testamento é a comunidade que o Reino cria diante da rejeição de Israel. Porém,
21 A apresentação da história como mestra da vida ou o desejo de fazer de episódios históricos veículos de ensinamentos
religiosos era comum entre os judeus antigos. Estes chegaram a criar um gênero literário correspondente a este intuito,
gênero chamado midraxe ou também haggadáh. O midraxe é um relato de fundo histórico, ornamentado com traços
fictícios, que tem por objetivo colocar em realce o ensinamento religioso do fato narrado.
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Jesus constitui a Igreja sobre o resto de Israel e em continuidade histórica com o antigo
povo, como veremos a seguir.
b) A aliança
Outro elemento de grande importância para a compreensão da continuidade
histórica da Igreja com o antigo povo se encontra no tema da Aliança.
O antigo Israel foi constituído como povo pela aliança que Deus estabeleceu com
ele, simbolizada no rito que Moisés realizou ao aspergir o sangue dos animais sobre as
doze pedras que representavam as doze tribos de Israel e sobre outra pedra central que
representava Deus, dizendo: «Este é o sangue da aliança» (Ex 24,8).
Por sua vez, Cristo estabelece o novo povo de Deus sobre a base da nova e
definitiva aliança que se sela com seu sangue: «Este é o sangue da aliança que será
derramado por todos para o perdão dos pecados» (Mt 26,28; Mc 14,24).
Lucas e Paulo falam da «nova aliança» (Lc 22,20; 1Cor 11,25) em conexão com a
profecia de Jeremias sobre a nova aliança que Deus busca selar com seu povo (cf. Jr 31,31-
34). Foi em sua morte que Cristo entregou o seu Espírito, para que nascesse a Igreja.
c) A instituição dos Doze
Um fato que historicamente não pode ser colocado em dúvida e que revela a
vontade de Cristo de reunir ao redor de si o novo povo messiânico é a instituição dos
Doze (cf. Mc 3,13-19; Lc 6, 12-19; Mt 10,1-4; At 1,13).
Com a escolha dos doze apostólos, Jesus mostra o seu desejo de fundar o novo
Israel. Lembremo-nos que o antigo povo era constituído em doze tribos, a partir dos doze
filhos de Jacó. Jesus se apresenta como patriarca de um novo Israel.
De fato, a este número é dada muita importância na Igreja primitiva22, de tal modo
que aos apóstolos simplesmente são chamados de «os doze»23. Sua primeira missão
consiste simplesmente em ser doze, e a ela se acrescentam, logo a seguir mais duas
funções: ―para estarem com ele e para enviá-los‖ (Mc 3,14).
22 Este número que os reúne em uma comunidade claramente delimitada, é de tal importância, que é completado outra
vez depois da traição de Judas (At 1,15-26).
23 Nas quatro listas que temos com os nomes dos apóstolos, pode-se observar que cada uma delas está distribuída em
três grupos de quatro, encabeçando estes grupos sempre os mesmos nomes (Pedro, Felipe, Tiago Alfeu) e variando
ligeiramente a partir deles, como fruto de uma técnica de memorização existente na Igreja primitiva.
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O grupo dos doze está em toda a trama do evangelho. É o grupo com o qual Jesus
convive pessoalmente e ao qual instrui de forma particular. Porém, ao contrário do que
acontecia com os discípulos dos rabinos, é Jesus quem os escolhe.
O centro do ensinamento não é mais a Torá (a lei), mas o Reino, que se identifica
com a pessoa de Jesus. O discípulo quanto mais sabe não se torna independente (como
acontecia com os rabinos), porém procura identificar-se mais com a pessoa de Jesus para
realizar a obra salvífica, pois lhes enviará ao mundo como representantes seus (cf. Lc 4,43;
Mt 10,40; 21,37; Jo 3,16-19.34; 5,24.30; 6,38).
São enviados por Cristo para continuarem sua missão: cf. Jo 17,18; 20,21. Os
apóstolos continuam a mesma missão de Cristo e recebem a tarefa de continuar a mesma
missão na terra, por encargo de Cristo: Jesus dissera que quem o via, via o Pai (Jo 14,9),
agora diz que quem escuta os apóstolos, a Ele escuta, e quem os despreza, a Ele despreza
(Lc 10,16).
O mesmo poder que Cristo possui é o que Ele transmite aos apóstolos. É o poder
(exousia) que o Pai lhe deu no céu e sobre a terra (cf. Mt 28,16-20). Os apóstolos participam
em seu ministério profético de pregação e recebem a sua mesma autoridade para dirigir a
Igreja em seu nome: «Eu vos asseguro: tudo o que ligardes na terra será ligado também no
céu, e tudo o que desligardes na terra ficará desligado também no céu» (Mt 18,18).
d) O grupo dos Setenta ou Setenta e dois discípulos
O grupo dos Setenta ou Setenta e Dois, do qual São Lucas nos fala, completa esse
simbolismo: setenta ou setenta e dois era, segundo a tradição judaica (Gn 10; Ex 1,5; Dt
32,8), o número das nações do mundo.
Os setenta e dois discípulos significam que Jesus reivindica para si toda a
humanidade, que deve tornar-se sua discípula: são o sinal que o novo Israel abrangerá
todos os povos da terra.
e) Igreja – o germe e o princípio do Reino
Como se vê, ao longo de sua vida, o Senhor Jesus foi colocando as bases de uma
Igreja que se manifestaria propriamente no dia de Pentecostes.
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Por isso não existe oposição entre o Reino que Cristo buscou e a Igreja que
convocou. A Igreja e o Reino nascem juntos e coincidirão plenamente no céu. Aqui não
coincidem plenamente porque pode haver membros da Igreja que não vivam em graça e
podem dar-se também homens fora dela que vivam o amor de Deus.
Enquanto isso, a Igreja vem a ser o germe e o princípio do Reino, a presença e a
comunidade que o Reino cria, nasce como resultado da chegada do Reino e a razão de si
mesma está em função do Reino.
3. A natureza da Igreja
Etimologicamente, o termo grego ekklesía ( , do qual deriva o termo latino
ecclesia, de que provém igreja, na Septuaginta traduz sempre a expressão hebraica qahal,
que significa ―aviso de convocação‖ e ―assembléia reunida‖.
No Novo Testamento, a frequência do termo se tornará progressiva, pelo uso
evangélico exclusivo presente em Mt 16,18; 18,17, até às 144 vezes em que é usada no
restante do Novo Testamento.
Não é tão fácil elaborar uma definição sobre a Igreja, porque é impossível reunir
numa definição toda sua riqueza. Porém, normalmente, para explicar o que ela é, costuma-
se usar o recurso de algumas imagens e símbolos que ajudem a entender o seu mistério.
Aqui nos apropriaremos de três grandes imagens:
Igreja, Corpo de Cristo
Igreja, Povo de Deus
Igreja, Sacramento Universal de Salvação
3.1. A Igreja como Corpo de Cristo
Em 1Cor 12,12ss, São Paulo nos fala da Igreja como corpo de Cristo. Com esta
imagem, colaca-se em relevo mais especificamente três aspectos: (1) a unidade de todos os
membros entre si, pela união a Cristo; (2) Cristo, Cabeça do Corpo; (3) a Igreja, Esposa de
Cristo.
Essa idéia expressa não só a idéia de diversidade de funções e de encargos que se
dão na Igreja com o fim de salvação, mas, sobretudo, o mistério da união dos batizados em
Cristo.
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Desde o princípio, Jesus associou os discípulos à sua vida. Revelou-lhes
o mistério do Reino: deu-lhes parte na sua missão, na sua alegria e nos
seus sofrimentos. Jesus fala duma comunhão ainda mais íntima entre Ele
e os que o seguem: «Permanecei em mim, como eu em vós [...]. Eu sou a
cepa, vós os ramos» (Jo 15, 4-5). E anuncia uma comunhão misteriosa e
real entre o seu próprio Corpo e o nosso: «Quem come a minha Carne e
bebe o meu Sangue permanece em Mim e Eu nele» (Jo 6, 56)24.
A comparação da Igreja com um corpo lança uma luz particular sobre a ligação
íntima existente entre a Igreja e Cristo. Ela não está somente reunida à volta d'Ele: está
unificada n'Ele, no seu Corpo.
A Igreja é corpo de Cristo, porque torna os seus membros participantes da mesma
vida e do mesmo Espírito de Cristo. O cristão participa da vida de Cristo, porque a ele é
incorporado por meio do batismo. Só é corpo de Cristo porque tem a Cristo como cabeça.
Assim, de Cristo procede todo o fluxo vital dos membros.
A unidade de Cristo e da Igreja, Cabeça e membros do Corpo, implica também a
distinção entre ambos, numa relação pessoal. Este aspecto é, muitas vezes, expresso pela
imagem do esposo e da esposa:
O tema de Cristo Esposo da Igreja foi preparado pelos profetas e
anunciado por João Batista (Jo 3,29). O próprio Senhor se designou como
«o Esposo» (Mc 2, 19). E o Apóstolo apresenta a Igreja e cada fiel,
membro do seu Corpo, como uma esposa «desposada» com Cristo
Senhor, para formar com Ele um só Espírito (1Cor 6,15-16). Ela é a
Esposa imaculada do Cordeiro imaculado (Ap 22,17) que Cristo amou,
pela qual se entregou «para a santificar» (Ef 5, 26), que associou a si por
uma aliança eterna, e à qual não cessa de prestar cuidados como ao Seu
próprio Corpo (Ef 5,29 )25.
3.2. Igreja como Povo de Deus
A imagem preferida pelo Concílio Vaticano II para falar da Igreja foi a de povo de
Deus. O Concílio apresentou a Igreja como povo de Deus antes de falar da hierarquia, a
fim de mostrar que a hierarquia é um serviço estabelecido por Cristo e necessário na
Igreja, mas só tem sentido dentro do povo de Deus em seu conjunto e como serviço ao
mesmo. Antes e mais importante, que ser bispo ou papa, é ser cristão e pertencer pelo
batismo ao povo de Deus e ao corpo místico de Cristo.
24 Catecismo da Igreja Católica, n. 787.
25 Ibdem, n. 796.
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Esta imagem, que foi recuperada das fontes mesmas da revelação cristã, tem a
vantagem de apresentar a dignidade de todos os membros batizados e porque permite
garantir a natureza comunitária e histórica da Igreja.
É um povo que, como Israel, tem sua origem na vocação de Deus; um povo
conquistado por Cristo por meio do seu sangue (cf. 1Pd 1,19) e que deve ser santo, como
corresponde a um povo que é propriedade de Deus; um povo que tem uma missão no
mundo:
«anunciar os louvores daquele que nos chamou». É, pois, um povo que não nasce
da decisão de seus membros, mas da vocação de Deus.
É um povo formado por todos os fiéis: leigos, religiosos e pastores. A Igreja não é
o clero, nem é do clero, ela é constituída por todos os fiéis de Cristo. Houve certa tendência
a identificar a Igreja com a hierarquia, quando na verdade a Igreja é composta por todos os
batizados e pelo simples fato de serem batizados.
É certo que no povo de Deus há diferenças essenciais nas funções que se exercem,
porém todas elas são exercidas no povo de Deus e para o povo de Deus, de modo que todo
o povo possui uma responsabilidade inalienável na Igreja: evangelizar e santificar-se na
Igreja.
A missão desse povo é a mesma de Cristo - sacerdotal, profética e régia:
como povo sacerdotal, toda a vida desse povo é uma oferenda a Deus,
vida marcada pela santidade, que deve fazer resplandecer no mundo a
santidade de Deus;
sua missão profética é aquela de testemunhar a Cristo (profeta é aquele
que fala em lugar de Deus – o batizado é profeta enquanto testemunha de
Cristo que anuncia e dá razão de sua salvação e denuncia aquelas
realidades que não estão de acordo com Cristo);
a missão real consiste precisamente em instaurar todas as coisas em Cristo
e em ordená-las segundo o desígnio criador e redentor de Deus.
3.3. Igreja, Sacramento Universal de Salvação
Quando afirmamos que a Igreja é instrumento universal de salvação, é pelo fato
de que nela encontramos o prolongamento do mistério mesmo da encarnação: se Cristo é
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Deus conosco, a Igreja é Cristo conosco; se Cristo é sacramento do Pai, a Igreja é o
sacramento que revela e que torna Cristo presente; se a Igreja tem pretensões de
universalidade, é simplesmente porque prolonga na terra a sacramentalidade de Cristo.
Este é o mistério da Igreja: ser prolongamento do mistério de Cristo e de sua encarnação.
O Concílio Vaticano II disse que a Igreja é em Cristo «como um sacramento ou
sinal ou instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano»
(LG 1). Dizer que a Igreja é sacramento significa que ela é sinal visível e eficaz da
salvação que nos veio por meio de Cristo.
Cristo é a única fonte de salvação, Cristo e a Igreja formam uma única coisa: o que
podemos dizer de Cristo como mediador único da salvação é aplicável também à Igreja,
corpo no qual se prolonga e se consuma o mistério da cabeça. Por isso o Vaticano II ensina
que a Igreja é necessária para a salvação. «Com efeito, só Cristo é mediador e caminho de
salvação, e se torna presente a todos nós em seu corpo, que é a Igreja» (LG 14).
4. A credibilidade da Igreja
A fundação da Igreja por Cristo é a base da pretensão que ela tem de não ser uma
realidade puramente humana, originada pela decisão dos homens e destinada a conseguir
uns fins imanentes. A Igreja se apresenta com uma autoridade que participa da autoridade
de Cristo26.
A certeza de que a Igreja responde ao plano de salvação realizado por Cristo, tem
sua continuação natural no exame do modo como sua dependência de Cristo resplandece
na atualidade, ou seja, como sua realidade visível é sinal das realidades invisíveis, de
forma que a unidade de ambas – aspecto visível e aspecto de mistério, ao mesmo tempo –
apareça como a identidade mais profunda da Igreja27.
Quando falamos de credibilidade da Igreja estamos com isso querendo
argumentar sobre como essa Igreja querida por Deus constitui, em si mesma, em sua história,
uma razão para crer.
26 Cf. C. IZQUIERDO, Teología fundamental, EUNSA, Pamplona 1998, p.533-547.
27 Dada a extensão do tema e os objetivos próprios deste curso abordaremos a parte da credibilidade da Igreja indo ao
coração do mistério da Igreja como manifestação de Cristo, não desenvolvendo todo o caminho que a apologética
clássica desenvolvera sobre o assunto nos tratados De vera Ecclesia Christi.
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Introdução à Teologia II
42
Nesse sentido, um ponto de partida importante é a relação inseparável entre a
Igreja como sinal, e Cristo. O sinal total é «Cristo na Igreja». A Igreja é sinal à medida que
conduz e transparece a Cristo. O sinal pleno da atuação e salvação de Deus na história é
Cristo, enquanto que a Igreja é sinal de Cristo, e por isso, sinal da salvação. Essa reflexão
exige, portanto, que ao tratar da Igreja, esteja sempre presente sua essencial relação com
Cristo.
A grande dificuldade ao tratar desse assunto é a presença na Igreja, não só do
humano e do defectível, mas da realidade do pecado que dá dentro dela e que desfigura
seu rosto de Esposa do Senhor. Esse pecado, não estabelece uma ruptura entre ela e
Cristo? Dito de outra maneira: pode-se pensar que a Igreja continua sendo fiel a Cristo
apesar do pecado dos seus membros?
A resposta à pergunta é afirmativa: sim, a Igreja continua sendo a Igreja de Cristo
porque o pecado não a destrói nem a separa de seu Senhor. O Concílio Vaticano II se
ocupa desta questão e afirma da Igreja que «foi enriquecida com toda a verdade revelada
por Deus e com todos os meios de salvação» (UR 4), e ao mesmo tempo que traz consigo
os sinais de sua verdade «não sem mancha nem ruga».
A Igreja, recorda o Concílio, «ao receber em seu próprio seio a pecadores, é ao
mesmo tempo santa e necessitada de purificação constante, busca sem cessar a penitência
e a renovação» (LG 8). A Igreja se vê confortada com a graça de Deus que o Senhor lhe
prometeu, de modo que «na debilidade da carne não falha em sua perfeita fidelidade, mas
persevera como digna esposa do Senhor» (LG 9).
Devemos, pois, abordar a relação pecado-santidade na Igreja como uma questão
fundamental para ter acesso à sua significatividade. Não se devem esquecer, no entanto,
outros sinais que estão presentes nela.
O cristianismo como fenômeno histórico tem configuração eclesial: os
homens encontram o cristianismo na Igreja e como Igreja. Precisamente
à Igreja se pede contas da palavra que é anunciada pela sua boca, dos
sacramentos que nela são celebrados, do significado existencial do
evangelho que nela […] se oferece, e através dela sobre o mundo28.
Alguns fatos históricos como a Inquisição, a vida escandalosa de alguns altos
eclesiásticos, a forma política do governo na mesma Igreja, a divisão interna e externa —
28 T. CITRINI, La Chiesa e i sacramenti, em Enciclopedia di Teologia Fondamentale, p. 557.
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separação dos cristãos —, e, em geral a presença do pecado nos membros da Igreja,
constituem para algumas pessoas contra-sinais da mensagem que a Igreja prega.
Em Cristo não existe, nem pode existir, o pecado, e tudo n’Ele é expressão de seu
ser enviado pelo Pai. No caso da Igreja é preciso levar em conta que ela está constituída
pela ação de Deus e inseparavelmente pela ação humana que vai necessariamente
acompanhada pela debilidade e o pecado. Onde se pode, então, apreciar a ação do Espírito
Santo?
Não se pode apreciar empiricamente em um ou outro aspecto isolado. Fatos como
a defesa da pessoa humana, desde o tempo da escravidão até à defesa da vida não nascida;
a defesa da dignidade da mesma pessoa; a santidade que brota na mesma Igreja, em forma
de vidas heroicamente vividas; a estabilidade da Igreja; a força evocadora do mistério
cristão que deu lugar à uma multidão de manifestações artísticas; a força assimiladora da
fé cristã que cristianizou culturas diferentes; a força da caridade e da
reconciliação que tem
sido uma realidade constante na Igreja; a fidelidade da Igreja à sua própria identidade e
missão apesar dos inconvenientes e das pressões de vários tipos, o que tem levado a Igreja
a ser sinal de contradição... Estas e outras muitas realidades são em si mesmas
manifestações de uma ação que supera a imanência histórica.
O modo como a Igreja e sua história são sinais da presença e da ação de Deus, é
precisamente, considerar a Igreja em sua totalidade, levando em consideração o conjunto
mais que os elementos isolados. Quando se faz assim, os diversos elementos e aspectos se
mostram formando um todo. É preciso entender que o humano e o divino dão-se nela numa
tensão que não traz consigo uma anulação mútua, mas que ambas realidades configuram a única
Igreja de Cristo até a escatologia.
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Capítulo III
ELEMENTOS DE TEOLOGIA MORAL
1. Delineamento
Como insinua o próprio nome, a Teologia Moral, ou simplemente Moral, é o
estudo dos costumes humanos, mediante princípios da fé e da razão em relação ao fim
supremo do homem. Como parte da Teologia, procura deduzir da Palavra de Deus as
normas concretas que levam a pessoa humana à sua plena realização.
A Teologia Moral é uma ciência e, enquanto tal, possui um objeto: pois não se
pode conceber uma ciência que não o possua. Mas o que é o objeto de uma ciência? Antes
de abordarmos o objeto da Teologia Moral, precisamos saber do que se trata.
Etimologicamente, ―objeto‖ vem do latim objectum e significa ―o que é atirado
diante‖, ou ―posto diante‖. Em Filosofia, o termo não pode ser entendido como simples
sinônimo de ―coisa‖. Objeto, em sentido lato, é tudo aquilo a que se dirige o ato consciente
de um sujeito. É o fim a que se tende. De uma forma bem genérica, podemos dizer que o
objeto de uma ciência é tudo aquilo de que ela se ocupa no seu estudo. Em outras
palavras, ―aquilo que uma ciência estuda‖ chama-se objeto. Visto este objeto como um
todo, diz-se objeto material. O ponto de vista que estuda, se chama objeto formal (ou
essencial), ou seja o objeto formal é o ponto de vista sob o qual uma ciência encara o objeto
material29.
O objeto material da Teologia Moral são os atos humanos, realizados com livre
consentimento da vontade. O objeto formal são os atos humanos enquanto dirigidos para
o fim supremo, que é Deus, conhecido à luz da Revelação, iniciada na época dos patriarcas
bíblicos (Abraão, Isaac, Jacó...), consumada por Jesus Cristo e transmitida a nós pelo
Magistério da Igreja.
29 Por exemplo: o homem é objeto material de muitas ciências: Antropologia, Psicologia, Filosofia, Medicina, etc. O que
distingue uma ciência da outra, na verdade, é o objeto formal. Ou ainda: o corpo humano é objeto material da Anatomia,
da Fisiologia, da Medicina, etc... Mas cada uma destas ciências estuda o mesmo objeto material — o corpo humano —
sob o ponto de vista da estrutura, do funcionamento dos órgãos, de saúde, etc...
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Portanto não podemos entender a Moral católica como um sistema de preceitos e
proibições. A Teologia Moral, como a Igreja a quer, tende a levar os homens à realização
de sua vocação suprema, que é a vocação à perfeição e à santidade, pois nenhuma criatura
é chamada à mediocridade.
2. O atuar livre do homem e seu aperfeiçoamento pessoal
O homem é um ser livre e manifesta sua liberdade na realização de atos que
procedem da vontade iluminada pela inteligência.
Segundo S. Tomás as ações que o homem realiza só podem ser qualificadas de
humanas quando procedem do homem enquanto homem.
O homem domina seus atos graças à inteligência e a vontade; por isso se diz que a
liberdade é um poder da inteligência e da vontade. Em conseqüência disto só se
consideram especificamente humanas as ações que procedem de uma decisão deliberada;
as demais é preferível chama-las ―atos do homem, pois não procedem do homem
enquanto homem.
Uma vez aceita esta idéia fundamental devemos acrescentar que :
O homem, enquanto dono de seus atos, dirige-os ao bem que lhe é
atrativo. Porém deve discernir se esse bem está em consonância com o
BEM PRÓPRIO DO HOMEM em sua natureza. A verdade sobre o homem
está radicada no fato de que somos imagem e semelhança de Deus. É
próprio da verdade do homem o amor a Deus e a o próximo. Portanto,
todo ato humano é bom ou mau, segundo a relação com esta verdade
fundamental sobre o homem.
Outro elemento que se deve levar em conta: o homem pode ser
condicionado, pressionado, empurrado, por não poucos nem leves fatores
externos, como pode estar sujeito a tendências, taras, hábitos, ligados a sua
condição pessoal. Em não poucos casos estes fatores externos ou internos
podem atenuar, em maior ou menor mediada, sua liberdade e, portanto,
sua responsabilidade e sua culpabilidade. Mas é uma verdade de fé,
corroborada pela experiência e pela razão, que a pessoa humana é livre.
Não se pode ingnorar esta verdade, para descarregar sobre realidades
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externas as estruturas, os sistemas, os pecado dos indivíduos singulares.
Entre outras coisas, esta seria cancelar a dignidade e a liberdade da
pessoa30.
O caráter imanente do ato livre: ―como os atos livres aperfeiçoam ao
homem‖.
a) O agir humano tem um duplo aspecto: o fático (facere) e o moral
(agere). Agindo o homem não só produz objetos ou influi sobre o
mundo exterior, mas transforma a si mesmo, como dono de seus
atos. Junto a seus resultados ou conseqüências externas, todo ato
livre imprime uma marca no sujeito, segundo sua bondade ou
maldade moral. Daqui se depreende que, não só realizamos ações
boas ou más, mas que estas nos fazem bons ou maus.
b) O homem é livre para agir e para possuir-se, para construir-se. O
homem que se autopossui tem domínio de seus atos e exercitando
este domínio decide sobre si mesmo. A estas afirmações constatadas
pela experiência, temos que entender que o agir do homem tem um
aspecto transeunte, por ele produz ou transforma, domina, o
universo material, e outro imanente, pois por ele se transforma a si
mesmo como pessoa, aproximando-se ou afastando-se de seu fim,
Deus. É no ―agere‖ onde o homem trabalha sua própria dignidade e
felicidade temporal e eterna. Precisamente, um dos pontos em que o
cristianismo revolucionou o mundo antigo foi este: frente a divisão
dos homens em classes por tido de trabalho que realizavam, o
cristianismo deixou claro que o fundamento da dignidade do
homem não está na tarefa que cumpre, mas no modo que esta tarefa
desenvolve a sua pessoa. "As fontes da dignidade da pessoa do
trabalho se deve buscar, sobretudo, não em sua dimensão objetiva
(produto), mas na subjetiva (dignidade da pessoa do trabalhador)".31
A ética cristã não é uma ética de terceira pessoa, da perspectiva do
observador externo, mas de primeira pessoa, da interioridade
dinâmica, da pureza do coração.
3. O Ato Moral
3.1. Sua estrutura pessoal
O ato moral é um ato humano considerado desde sua ordenação a Deus. Como já
vimos toda a pessoa está implicada no ato humano. Em todo ato livre se entrelaçam o
conhecimento e a vontade.
30 JP II, Exhort. Apost. Reconciliatio et Paenitentia, nº 16.
31 João Paulo II, Encíclica Laborem Exercens, nº 6.
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O conhecimento é uma condição indispensável para que exista um ato livre. A
inteligência é necessária
porque não se pode querer nada que previamente não tenha sido
conhecido.
Seu juízo, a advertência, compreende a realização do ato, sua moralidade e os
meios para alcançar o fim. Para que um ato possa ser considerado moralmente imputável,
é suficiente a advertência virtual. Para que um ato seja bom ou mau, basta a advertência
genérica. Para que exista pecado mortal é necessária sempre a advertência plena.
É necessário que vontade esteja iluminada pela inteligência. O consentimento é o
ato em que a vontade quer o bem apresentado pela inteligência. O consentimento
imperfeito basta para que um ato seja imputável. Há consentimento perfeito quando se
realiza um ato, a não ser que a advertência seja parcial ou que haja coação. Para que haja
pecado mortal requer-se consentimento perfeito.
No ato humano intervêm também os dinamismos somáticos e psíquicos da
pessoa. Porém não se deve negar que a vontade exerce certo domínio sobre esses
dinamismos.
As circunstâncias do ato moral são aqueles aspectos acidentais do objeto moral ou
do fim do agente que afetam a bondade da ação, mas sem mudar sua substância.
3.2. Os impedimentos do ato moral
Os impedimentos do ato moral são os elementos que reduzem o conhecimento ou
a vontade do ato e, por conseguinte, diminuem ou anulam a liberdade. São eles:
Violência: uma ação é completamente involuntária e não imputável
somente se a resistência e o rechaço da violência são totais (os atos
internos são sempre imputáveis);
Medo: não anula totalmente a responsabilidade a não ser que seja tão forte
que impeça o uso da razão (as leis humanas não obrigam em caso de
medo grave);
Ignorância: só a ignorância inculpável ou invencível anula a
responsabilidade (a ignorância permitida culpavelmente pode diminuir a
responsabilidade a não ser que essa ignorância tenha sido buscada de
propósito);
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Enfermidade mental: na medida em que um estado patológico debilita ou
priva do uso de razão, a responsabilidade moral diminui ou desaparece.
4. Os mandamentos
Os preceitos do Decálogo, que nos trazem a herança da Antiga Aliança de Deus
com Israel (Ex 20, 1-17; Dt 5,1-22), assentam os alicerces da vocação do homem feito à
imagem de Deus à perfeição.
Os Dez Mandamentos fazem parte da revelação de Deus. Mas, ao mesmo tempo,
ensinam-nos a verdadeira humanidade do homem. Por essa razão, dizemos que o
Decálogo contém uma expressão privilegiada da lei natural.
Os mandamentos põem em relevo os deveres essenciais do homem e, por
conseguinte, indiretamente, os direitos fundamentais inerentes à natureza da pessoa
humana. Assinalam a maneira certa e segura de como devemos atuar: indicam o caminho
da felicidade nesta vida e na vida eterna.
Contemplando as coisas criadas observamos que seguem umas leis naturais. Deus
ordenou todas as coisas de modo que cada uma cumpra sua finalidade: os minerais, as
plantas, os animais, o ser humano.
A essa ordem nós a chamamos lei eterna e, como está escrita na natureza humana,
obriga a todos os seres humanos de todos os tempos. Por ser uma participação da lei
eterna, o ser humano não pode mudá-la, sendo, portanto, universal e imutável.
Por terem a lei natural gravada no coração, os seres humanos podem chegar ao
conhecimento de seus princípios fundamentais. Contudo, às vezes torna-se difícil conhecê-
la; o pecado original e os pecados pessoais posteriores obscurecem seu conhecimento. Por
isso, Santo Agostinho dizia: Deus «escreveu nas tábuas da Lei o que os homens não fiam
nos seus corações»32.
Por isso, Deus não se contentou em gravar no coração humano sua lei, mas a
manifestou claramente. No monte Sinai, quando o povo eleito tinha saído do Egito,
anunciou a Moisés os dez mandamentos, dando-os esculpidos em duas tábuas de pedra,
para que nunca se esquecesse de cumpri-los.
32 Santo Agostinho, Enarratio in Psalmum, 57, I: CCL 39, 708.
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Os Dez Mandamentos enunciam as exigências do amor de Deus e do próximo. Os
três primeiros referem-se mais ao amor de Deus e os outros sete, ao amor do próximo.
A lei que Deus deu a Moisés no Sinai foi levada à perfeição por Jesus Cristo. Ele
diz que não veio abolir a lei, mas levá-la a plenitude. O Decálogo foi confirmado no
Evangelho que nos conta que um jovem se aproximou de Jesus e lhe perguntou: “Mestre, o
que devo fazer para ganhar a vida eterna?”. O Senhor lhe respondeu: “Se queres entrar na vida,
observa os mandamentos” (Mateus 19,17).
Ele recomendou aos seus discípulos que a guardasse e ensinasse a todos os seres
humanos. Seguir a Jesus Cristo implica cumprimento dos mandamentos.
Jesus diz: «Eu sou a videira, e vós ramos. Aquele que permanece em
mim e eu nele produz muito fruto, porque, sem Mim, nada podeis
fazer» (Jo 15, 5). O fruto indicado nesta palavra é a santidade de uma
vida fecundada pela união a Cristo. Quando cremos em Jesus Cristo,
comungamos nos seus mistérios e guardamos os seus mandamentos,
o Salvador mesmo vem amar em nós o seu Pai e os seus irmãos, o
nosso Pai e os nossos irmãos. A sua pessoa torna-se, graças ao
Espírito, a regra viva e interior do nosso agir. «É este o meu
mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei» (Jo 15,
12)33.
Na fidelidade à Sagrada Escritura e em conformidade com o exemplo de Jesus, a
Tradição da Igreja reconheceu no Decálogo uma importância e um significado
primordiais. Reconheceu que nele está o fundamento moral da Nova Aliança no Sangue
de Cristo:
A partir de Santo Agostinho, os "Dez Mandamentos" tem um lugar
preponderante na catequese dos futuros batizados e dos fiéis. No
século XV, começou o costume de exprimir os preceitos do Decálogo
em fórmulas rimadas, fáceis de decorar, e positivas, que ainda hoje se
usam. Os catecismos da Igreja expuseram muitas vezes a moral cristã
seguindo a ordem dos «Dez Mandamentos34.
Quanto à divisão e a numeração dos mandamentos, podemos dizer que variaram
no decurso da história. O atual Catecismo da Igreja Católica segue a divisão dos
mandamentos estabelecida por Santo Agostinho. É a mesma das «confissões» luteranas.
Os Padres gregos procederam a uma divisão um tanto diversa, que se encontra nas Igrejas
ortodoxas e nas comunidades reformadas.
33 Catecismo da Igreja Católica, n. 2074.
34 Catecismo da Igreja Católica, n. 2065.
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Os dez mandamentos são um presente de Deus, são o instrumento com o qual
Deus manifesta ao ser humano o que é bom e o que é mal, o que é verdadeiro e o que é
falso, o que lhe agrada e o que lhe desagrada. Cada mandamento proíbe (parte negativa) e
ordena (parte positiva): proíbe o que é contrário ao amor de Deus e do próximo e
prescreve o que lhe é essencial.
4.1. O Primeiro Mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas”
Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, dessa casa da
escravidão. Não terás outros deuses perante Mim. Não farás de ti
nenhuma imagem esculpida, nem figura que existe lá no alto do céu ou
cá em baixo, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás
diante delas nem lhes prestarás culto (Ex 20, 2-5).
Está escrito: "Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto"
(Mt 4, 10).
A afirmação: «Eu sou o Senhor teu Deus» implica, para o fiel, guardar e praticar as
três virtudes teologais e evitar os pecados que lhe são opostos.
A fé crê em Deus e rejeita o que lhe é contrário, como, por exemplo, a
dúvida voluntária,
a incredulidade, a heresia, a apostasia e o cisma.
A esperança é a expectativa confiante da visão bem-aventurada de Deus e
da sua ajuda, evitando o desespero e a presunção.
A caridade ama a Deus sobre todas as coisas: são rejeitadas portanto a
indiferença, a ingratidão, a tibieza, a acédia ou preguiça espiritual e o ódio
a Deus, que nasce do orgulho.
A Palavra do Senhor: «Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto»
(Mt 4,10) implica adorar a Deus como Senhor de tudo o que existe; prestar-lhe o culto
devido individual e comunitariamente; rezar-lhe com expressões de louvor, de ação de
graças, de intercessão e de súplica; oferecer-Lhe sacrifícios, sobretudo o sacrifício espiritual
da nossa vida, em união com o sacrifício perfeito de Cristo; e manter as promessas e os
votos que lhe fizermos.
Todo o homem tem o direito e o dever moral de procurar a verdade, em especial
no que se refere a Deus e à sua Igreja, e, uma vez conhecida, de abraçar e guardar
fielmente, prestando a Deus um culto autêntico.
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Ao mesmo tempo, a dignidade da pessoa humana requer que, em matéria
religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência nem seja impedido de
agir em conformidade com ela, dentro dos limites da ordem pública, privada ou
publicamente, de forma individual ou associada.
Este mandamento proíbe:
o politeísmo e a idolatria, que diviniza uma criatura, o poder, o dinheiro, e
até mesmo o demônio;
a superstição, que é um desvio do culto devido ao verdadeiro Deus, e que
se expressa nas várias formas de adivinhação, magia, feitiçaria e
espiritismo;
a irreligião, expressa no tentar a Deus com palavras ou atos, no sacrilégio,
que profana pessoas ou coisas sagradas sobretudo a Eucaristia, e na
simonia, que pretende comprar ou vender realidades espirituais;
o ateísmo, que nega a existência de Deus, fundando-se muitas vezes numa
falsa concepção de autonomia humana;
o agnosticismo, segundo o qual nada se poder saber de Deus, e que inclui o
indiferentismo e o ateísmo prático.
4.2. O Segundo Mandamento: “Não tomar o santo Nome de Deus em vão”
Não invocarás em vão o nome do Senhor teu Deus (Ex 20, 7).
Foi dito aos antigos: "Não faltarás ao que tiveres jurado" [...]. Pois Eu
digo-vos que não jureis, em caso algum (Mt 5, 33-34).
Este mandamento se obedece invocando, bendizendo, louvando e glorificando o
santo Nome de Deus.
Deve, pois, ser evitado o abuso de invocar o Nome de Deus para justificar um
crime, e ainda todo o uso inconveniente do seu Nome, como a blasfêmia, que por sua
natureza é um pecado grave, as imprecações e a infidelidade às promessas feitas em Nome de
Deus.
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O juramento falso é proibido porque, assim, se chama a Deus, que é a própria
Verdade, como testemunha da mentira. «Não jurar nem pelo Criador, nem pela criatura, senão
com verdade, por necessidade e com reverência» (S. Inácio de Loiola).
Por sua vez entende-se por perjúrio fazer, sob juramento, uma promessa com
intenção de a não manter ou de violar a promessa feita sob juramento. É um pecado grave
contra Deus, que é sempre fiel às suas promessas.
4.3. O Terceiro Mandamento: GUARDAR OS DOMINGOS E DIAS SANTOS DE
GUARDA.
Lembra-te do dia do sábado para o santificares. Durante seis dias
trabalharás e farás todos os teus trabalhos. Mas o sétimo dia é o sábado
do Senhor teu Deus. Não farás nele nenhum trabalho (Ex 20, 8-10).
O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado: o Filho
do Homem até do sábado é Senhor (Mc 2, 27-28).
Deus «abençoou o dia de Sábado e o declarou sagrado» (Ex 20,11) porque este
dia recorda o repouso de Deus no sétimo dia da criação e também a libertação de Israel da
escravidão do Egito e a Aliança que Deus estabeleceu com o povo.
Jesus reconhece a santidade do Sábado e, com a sua autoridade divina, dá-lhe a
sua interpretação autêntica: «O Sábado foi feito para o homem e não o homem para o
Sábado» (Mc 2,27).
Para os cristãos, o dia de Sábado foi substituído pelo Domingo, porque nele se
celebra a ressurreição de Cristo. Como «primeiro dia da semana» (Mc 16,2) ele evoca a
primeira criação; como «oitavo dia», que segue o Sábado, significa a nova criação,
inaugurada com a Ressurreição de Cristo. Tornou-se assim para os cristãos o primeiro de
todos os dias e de todas as festas: o dia do Senhor, no qual Ele, com a sua Páscoa, leva à
realização a verdade espiritual do Sábado judaico e anuncia o repouso eterno do homem
em Deus.
Os cristãos santificam o Domingo e as festas de preceito participando na Eucaristia
do Senhor e abstendo-se também das atividades que o impedem de prestar culto a Deus e
perturbam a alegria própria do dia do Senhor ou o devido descanso da mente e do corpo.
São permitidas as atividades ligadas a necessidades familiares ou a serviços de grande
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Introdução à Teologia II
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utilidade social, desde que não criem hábitos prejudiciais à santificação do Domingo, à
vida de família e à saúde.
Para que todos possam gozar de repouso suficiente e de tempo livre, que lhes
permitam cuidar da vida religiosa, familiar, cultural e social; para dispor de tempo
propício à meditação, reflexão, silêncio e estudo; e para fazer boas obras, servir os doentes
e os anciãos.
4.4. O Quarto Mandamento: HONRAR PAI E MÃE.
Honra pai e mãe, a fim de prolongares os teus dias na terra que o Senhor
teu Deus te vai dar (Ex 20, 12).
Era-lhes submisso (Lc 2, 51).
O quarto mandamento manda honrar e respeitar os nossos pais e aqueles que
Deus, para o nosso bem, revestiu com a sua autoridade.
Dirige-se expressamente aos filhos nas suas relações com o pai e a mãe, porque
esta relação é a mais universal. Mas diz respeito igualmente às relações de parentesco com
os membros do grupo familiar. Exige também que se preste honra, afeição e
reconhecimento aos avós e antepassados.
E, enfim, extensivo aos deveres dos alunos para com os professores, dos
empregados para com os patrões, dos subordinados para com os chefes e dos cidadãos
para com a pátria e para com quem os administra ou governa.
a) A importância da família
Um homem e uma mulher, unidos em matrimônio, formam com os filhos uma
família. Deus instituiu a família e dotou-a da sua constituição fundamental. O matrimônio
e a família são ordenados ao bem dos esposos e à procriação e educação dos filhos. Entre
os membros da família estabelecem-se relações pessoais e responsabilidades primárias. Em
Cristo, a família torna-se igreja doméstica, porque ela é comunidade de fé, de esperança e de
amor.
A família é a célula originária da sociedade humana e precede qualquer
reconhecimento da autoridade pública. Os princípios e os valores familiares constituem o
fundamento da vida social. A vida de família é uma iniciação à vida da sociedade.
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Por isso, a sociedade tem o dever de sustentar e consolidar o matrimônio e a
família, no respeito também do princípio de subsidiariedade. Os poderes públicos devem
respeitar, proteger e favorecer a verdadeira natureza do matrimônio e da família, a moral
pública, os direitos dos pais e a prosperidade doméstica.
Entre os deveres fundamentais da família cristã estabelece-se o dever
eclesial: colocar-se ao serviço da edificação do Reino de Deus na história,
mediante a participação na vida e na missão da Igreja. Para melhor
compreender os fundamentos, os conteúdos e as características de tal
participação, ocorre aprofundar os
vínculos múltiplos e profundos que
ligam entre si a Igreja e a família cristã, e constituem esta última como
«uma Igreja em miniatura» (Ecclesia domestica), fazendo com que esta, a
seu modo, seja imagem viva e representação histórica do próprio
mistério da Igreja. Por sua vez a família cristã está inserida a tal ponto
no mistério da Igreja que se torna participante, a seu modo, da missão de
salvação própria da Igreja: os cônjuges e os pais cristãos, em virtude do
sacramento, «têm assim, no seu estado de vida e na sua ordem, um dom
próprio no Povo de Deus». Por isso não só «recebem» o amor de Cristo
tornando-se comunidade «salva», mas também são chamados a
«transmitir» aos irmãos o mesmo amor de Cristo, tornando-se assim
comunidade «salvadora». Deste modo, enquanto é fruto e sinal da
fecundidade sobrenatural da Igreja, a família cristã torna-se símbolo,
testemunho, participação da maternidade da Igreja.35
A família cristã é uma comunhão de pessoas, vestígio e imagem da comunhão do
Pai e do Filho, no Espírito Santo. A sua atividade procriadora e educativa é o reflexo da
obra criadora do Pai. É chamada a partilhar da oração e do sacrifício de Cristo. A oração
quotidiana e a leitura da Palavra de Deus fortalecem nela a caridade. A família cristã é
evangelizadora e missionária.
b) Os filhos em relação aos pais
O próprio Senhor Jesus lembrou a força deste ―mandamento de Deus‖. E o
Apóstolo ensina: ―Filhos, obedecei aos vossos pais, no Senhor, pois é isso que é justo‖.
"Honra pai e mãe" – tal é o primeiro mandamento, com uma promessa "para que sejas feliz
e gozes de longa vida sobre a terra" (Ef 6, 1-3).
A observância do quarto mandamento comporta a respectiva recompensa: ―Honra
pai e mãe, a fim de prolongares os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te vai dar‖ (Ex
20, 12). O respeito por este mandamento proporciona, com os frutos espirituais, os frutos
35 João Paulo II, Familiaris Consortio, n. 49.
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temporais da paz e da prosperidade. Pelo contrário, a sua inobservância acarreta grandes
danos às comunidades e às pessoas humanas.
Em relação aos pais, os filhos devem respeito (piedade filial), reconhecimento,
docilidade e obediência, contribuindo assim, também com as boas relações entre irmãos e
irmãs, para o crescimento da harmonia e da santidade de toda a vida familiar. Se os pais se
encontrarem em situação de indigência, de doença, de solidão ou de velhice, os filhos
adultos devem-lhes ajuda moral e material.
c) Os deveres dos pais para com os filhos
Os pais, participantes da paternidade divina, são os primeiros responsáveis da
educação dos filhos e os primeiros anunciadores da fé. Têm o dever de amar e respeitar os
filhos como pessoas e filhos de Deus e, dentro do possível, de prover às suas necessidades
materiais e espirituais, escolhendo para eles uma escola adequada e ajudando-os com
prudentes conselhos na escolha da profissão e do estado de vida. Em particular, têm a
missão de educá-los na fé cristã, principalmente com o exemplo, a oração, a catequese
familiar e a participação na vida eclesial.
Os laços familiares são importantes mas não absolutos, porque a primeira vocação
do cristão é seguir Jesus, amando-o: «Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é
digno de Mim; quem ama a filha ou o filho mais do que a Mim não é digno de Mim» (Mt
10,37). Os pais devem, com alegria, ajudar os filhos no seguimento de Jesus, em todos os
estados de vida, mesmo na vida consagrada ou no ministério sacerdotal.
d) O exercício da autoridade nos diferentes âmbitos da sociedade civil
A autoridade deve ser exercida, como um serviço, respeitando os direitos
fundamentais da pessoa humana, uma justa hierarquia de valores, as leis, a justiça
distributiva, e o princípio de subsidiariedade. No exercício da autoridade, cada um deve
procurar o interesse da comunidade em vez do próprio e deve inspirar as suas decisões na
verdade acerca de Deus, do homem e do mundo.
e) Os deveres dos cidadãos em relação às autoridades civis
Os que estão submetidos à autoridade vejam os superiores como representantes
de Deus e colaborem lealmente no bom funcionamento da vida pública e social. Isto
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comporta o amor e o serviço da pátria, o direito e o dever de votar, o pagamento dos
impostos, a defesa do país e o direito a uma crítica construtiva.
Em consciência, o cidadão não deve obedecer quando os mandamentos das
autoridades civis se opõem às exigências da ordem moral: «É necessário obedecer mais a
Deus do que aos homens» (At 5,29).
4.5. O Quinto Mandamento: NÃO MATAR.
Não matarás (Ex 20, 13).
Ouvistes o que foi dito aos antigos: "Não matarás. Aquele que matar terá
de responder em juízo". Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar contra o
seu irmão, será réu perante o tribunal (Mt 5, 21-22).
a) O respeito pela vida humana
A vida humana deve ser respeitada porque é sagrada. Desde o seu início ela supõe
a ação criadora de Deus e mantém-se para sempre numa relação especial com o Criador,
seu único fim. A ninguém é lícito destruir diretamente um ser humano inocente, pois é um
ato gravemente contrário à dignidade da pessoa e à santidade do Criador. «Não causarás a
morte do inocente e do justo» (Ex 23, 7).
A legítima defesa
A legítima defesa das pessoas e das sociedades não vai contra tal norma porque
com a ela se exerce a escolha de defender e valorizar o direito à própria vida e à dos
outros, e não a escolha de matar. Para quem tem responsabilidade pela vida do outro, a
legítima defesa pode até ser um dever grave. Todavia ela não deve comportar um uso da
violência maior que o necessário.
A pena
A pena, infligida por uma legítima autoridade pública, tem como objetivo
compensar a desordem introduzida pela culpa, preservar a ordem pública e a segurança
das pessoas, e contribuir para a emenda dos culpados.
A pena infligida deve ser proporcionada à gravidade do delito. Hoje, na seqüência
das possibilidades do Estado para reprimir o crime tornando inofensivo o culpado, os
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casos de absoluta necessidade da pena de morte «são agora muito raros, se não mesmo
praticamente inexistentes» (Evangelium vitae).
Quando forem suficientes os meios incruentos, a autoridade deve limitar-se ao seu
uso, porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum, são mais
conformes à dignidade da pessoa humana e não retiram definitivamente ao culpado a
possibilidade de se redimir.
b) Os pecados contra o quinto mandamento
O quinto mandamento proíbe como gravemente contrários à lei moral:
O homicídio direto e voluntário e a cooperação nele;
O aborto direto, querido como fim ou como meio, e também a cooperação
nele, crime que leva consigo a pena de excomunhão, porque o ser
humano, desde a sua concepção, deve ser, em modo absoluto, respeitado e
protegido totalmente36;
A eutanásia direta, que consiste em pôr fim à vida de pessoas com
deficiências, doentes ou moribundas, mediante um ato ou omissão duma
ação devida37;
O suicídio e a cooperação voluntária nele, enquanto ofensa grave ao justo
amor de Deus, de si e do próximo: a responsabilidade pode ser ainda
agravada por causa do escândalo ou atenuada por especiais perturbações
psíquicas ou temores graves.
c) O respeito à dignidade das pessoas
O respeito à alma do outro: o escândalo
O escândalo, que consiste em levar alguém a fazer o mal, evita-se respeitando a
alma e o corpo da pessoa. Se alguém
induz deliberadamente outro a pecar gravemente,
comete uma culpa grave.
36 O direito inalienável à vida de cada ser humano, desde a sua concepção, é um elemento constitutivo da sociedade civil
e da sua legislação. Quando o Estado não coloca a sua força ao serviço dos direitos de todos e em particular dos mais
fracos, e entre eles dos concebidos ainda não nascidos, passam a ser minados os próprios fundamentos do Estado de
direito (2274).
37 Os cuidados habitualmente devidos a uma pessoa doente não podem ser legitimamente interrompidos. São legítimos o
uso de analgésicos, que não têm como fim a morte, e também a renúncia ao «excesso terapêutico», isto é, à utilização de
tratamentos médicos desproporcionados e sem esperança razoável de êxito positivo.
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O respeito à saúde
O dever dum razoável cuidado da saúde física, da nossa e da dos outros, evitando
todavia o culto do corpo e toda a espécie de excessos. Evitar o uso de estupefacientes, com
gravíssimos danos para a saúde e a vida humana e também o abuso dos alimentos, do
álcool, do tabaco e dos remédios.
São moralmente legítimas se estão ao serviço do bem integral da pessoa e da
sociedade e não trazem riscos desproporcionados à vida e à integridade física e psíquica
dos indivíduos, que devem ser oportunamente esclarecidos e dar o seu consentimento.
A transplantação de órgãos é moralmente aceitável com o consentimento do
doador e sem riscos excessivos para ele. Para o ato nobre da doação de órgãos depois da
morte, deve acertar-se plenamente a morte real do doador.
d) As práticas contra o respeito à integridade corpórea da pessoa humana
Os raptos e sequestros de pessoas;
O terrorismo;
A tortura;
As violências;
A esterilização direta.
As amputações e as mutilações duma pessoa só são moralmente
consentidas para indispensáveis fins terapêuticos da mesma.
e) O respeito aos mortos
Os moribundos têm direito a viver com dignidade os últimos momentos da sua
vida terrena, sobretudo com a ajuda da oração e dos sacramentos que preparam para o
encontro com o Deus vivo.
Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade. A sua
cremação é permitida, se não puser em causa a fé na ressurreição dos corpos.
f) A salvaguarda da paz
O Senhor, que proclama «bem-aventurados os obreiros da paz» (Mt 5, 9), pede a paz
do coração e denuncia a imoralidade da ira, que é desejo de vingança pelo mal recebido, e
do ódio, que leva a desejar o mal ao próximo. Estas atitudes, se voluntárias e consentidas
em matéria de grande importância, são pecados graves contra a caridade.
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A paz no mundo, a qual é exigida para o respeito e desenvolvimento da vida
humana, não é a simples ausência de guerra ou equilíbrio entre as forças em contraste,
mas é «a tranqüilidade da ordem» (S. Agostinho), «fruto da justiça» (Is 32, 17) e efeito da
caridade. A paz terrena é imagem e fruto da paz de Cristo.
A paz no mundo exige a distribuição eqüitativa e a tutela dos bens das pessoas, a
livre comunicação entre os seres humanos, o respeito da dignidade das pessoas e dos
povos, a assídua prática da justiça e da fraternidade.
g) Evitar a guerra
O uso da força militar é moralmente justificado pela presença contemporânea das
seguintes condições: certeza de um dano permanente e grave; ineficácia doutras
alternativas pacíficas; fundadas possibilidades de êxito; ausência de males piores,
considerado o poder atual dos meios de destruição.
Compete ao juízo prudente dos governantes, aos quais compete também o direito
de impor aos cidadãos a obrigação da defesa nacional, salvo o direito pessoal à objecção de
consciência, a realizar-se com outra forma de serviço à comunidade humana.
A lei moral permanece sempre válida, mesmo em caso de guerra. Devem tratar-se
com humanidade os não combatentes, os soldados feridos e os prisioneiros. As acções
deliberadamente contrárias ao direito dos povos e as disposições que as impõem são
crimes que a obediência cega não pode desculpar. Devem-se condenar as destruições em
massa, bem como o extermínio de um povo ou duma minoria étnica, que são pecados
gravíssimos e obrigam moralmente a resistir às ordens de quem os ordena.
Devemos fazer tudo o que é razoavelmente possível para evitar de qualquer modo
a guerra, devido aos males e injustiças que ela provoca. É necessário, em especial, evitar a
acumulação e comércio de armas não devidamente regulamentadas pelos poderes
legítimos; as injustiças, sobretudo econômicas e sociais; as discriminações étnicas e
religiosas; a inveja, a desconfiança, o orgulho e o espírito de vingança. Tudo quanto se
fizer para eliminar estas e outras desordens ajudará a construir a paz e a evitar a guerra.
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4.6. O Sexto Mandamento: NÃO COMETER O ADULTÉRIO
Não cometerás adultério (Ex 20, l4; Cf. Dt 5, 18).
Ouvistes que foi dito: "Não cometerás adultério". Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério
com ela no seu coração (Mt 5, 27-28).
Embora no texto bíblico se leia «não cometerás adultério» (Ex 20,14), a Tradição da
Igreja segue complexivamente todos os ensinamentos morais do Antigo e Novo
Testamento, e considera o sexto mandamento como englobando todos os pecados contra a
castidade.
Deus criou o ser humano como homem e mulher, com igual dignidade pessoal, e
inscreveu nele a vocação ao amor e à comunhão. Compete a cada um aceitar a sua
identidade sexual, reconhecendo a sua importância para a pessoa toda, bem como o valor
da especificidade e da complementaridade.
A castidade é a integração positiva da sexualidade na pessoa. A sexualidade torna-
se verdadeiramente humana quando é bem integrada na relação pessoa a pessoa. A
castidade é uma virtude moral, um dom de Deus, uma graça, um fruto do Espírito.
Supõe a aprendizagem do domínio de si, que é uma pedagogia de liberdade
humana aberta ao dom de si. Para tal fim, é necessária uma educação integral e
permanente, através de etapas graduais de crescimento.
São numerosos os meios à disposição que ajudam a viver a castidade: a graça de
Deus, a ajuda dos sacramentos, a oração, o conhecimento de si, a prática duma ascese
adaptada às situações, o exercício das virtudes morais, em particular da virtude da
temperança, que procura fazer com que as paixões sejam guiadas pela razão.
Todos, seguindo Cristo modelo de castidade, são chamados a levar uma vida
casta, segundo o próprio estado de vida: uns na virgindade ou no celibato consagrado,
forma eminente de uma mais fácil entrega a Deus com um coração indiviso; os outros, se
casados, vivendo a castidade conjugal; os não casados vivem a castidade na continência.
a) Os principais pecados contra a castidade
São pecados gravemente contrários à castidade, cada um segundo a natureza do
objeto: o adultério, a masturbação, a fornicação, a pornografia, a prostituição, o estupro, os
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atos homossexuais. Estes pecados são expressão do vício da luxúria. Cometidos contra os
menores, são atentados ainda mais graves contra a sua integridade física e moral.
b) A missão das autoridades civis em relação à castidade
As autoridades civis, obrigadas a promover o respeito pela dignidade da pessoa,
devem contribuir para criar um ambiente favorável à castidade, mesmo impedindo, com
leis apropriadas, a difusão de algumas das chamadas graves
ofensas à castidade, para
proteger sobretudo os menores e os mais débeis.
c) Os bens do amor conjugal
Os bens do amor conjugal, que para os batizados é santificado pelo sacramento do
matrimônio, são: a unidade, a fidelidade, a indissolubilidade e a abertura à fecundidade.
O ato conjugal tem um duplo significado: unitivo (a mútua doação dos esposos) e
procriador (a abertura à transmissão da vida). Ninguém deve quebrar a conexão
inquebrável que Deus quis entre os dois significados do ato conjugal, excluindo um deles.
A regulação dos nascimentos, que é uma componente da paternidade e
maternidade responsáveis, é objetivamente conforme à moralidade quando é realizada
pelos esposos sem imposições externas, nem por egoísmo, mas com base em motivos
sérios e o recurso a métodos conformes aos critérios objetivos da moralidade, isto é, com a
continência periódica e o recurso aos períodos infecundos.
É intrinsecamente imoral toda a ação – como, por exemplo, a esterilização direta
ou a contracepção – que, na previsão do ato conjugal ou na sua realização ou no
desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como objetivo ou como
meio, impedir a procriação.
A inseminação e a fecundação artificiais são imorais porque dissociam a
procriação do ato com que os esposos se entregam mutuamente, instaurando assim um
domínio da técnica sobre a origem e o destino da pessoa humana.
Além disso, a inseminação e a fecundação heteróloga, com o recurso a técnicas que
envolvem uma pessoa estranha ao casal dos esposos, prejudicam o direito do filho a
nascer dum pai e duma mãe conhecidos por ele, ligados entre si pelo matrimônio e tendo
o direito exclusivo a tornarem-se pais, só um através do outro.
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O filho é um dom de Deus, o maior dom do matrimônio. Não existe um direito a ter
filhos («o filho exigido, a todo o custo»). Existe, ao contrário, o direito do filho a ser o fruto
do ato conjugal dos seus progenitores e o direito a ser respeitado como pessoa desde o
momento da sua concepção.
No caso em que o dom do filho não lhes tivesse sido concedido, os esposos,
esgotados os recursos médicos legítimos, podem mostrar a sua generosidade, mediante o
cuidado ou a adoção, ou então realizando serviços significativos em favor do próximo.
Deste modo, realizarão uma preciosa fecundidade espiritual.
d) As ofensas contra a dignidade do matrimônio
As ofensas contra a dignidade do matrimônio são: o adultério, o divórcio, a
poligamia, o incesto, a união de fato (convivência, concubinato) e o ato sexual antes ou
fora do matrimônio.
4.7 - O Sétimo Mandamento:NÃO ROUBAR38 .
«Não furtarás» (Ex 20, 15).
«Não roubarás» (Mt 19, 18).
a) A destinação universal e a propriedade privada dos bens
O sétimo mandamento enuncia o destino, a distribuição universal e a propriedade
privada dos bens, e ainda o respeito das pessoas, dos seus bens e da integridade da
criação. A Igreja encontra fundada neste mandamento também a sua doutrina social, que
compreende o reto agir na atividade econômica e na vida social e política, o direito e o
dever do trabalho humano, a justiça e a solidariedade entre as nações, o amor aos pobres.
O direito à propriedade privada existe se ela for adquirida ou recebida de modo
justo e desde que seja respeitado o destino universal dos bens para a satisfação das
necessidades fundamentais de todos os homens.
O fim da propriedade privada é a garantia da liberdade e da dignidade de cada
uma das pessoas, ajudando-as a satisfazer as necessidades fundamentais próprias
daqueles por quem se tem a responsabilidade e dos outros que vivem em necessidade.
38 O catecismo quando trata deste mandamento trata também da doutrina social da Igreja. Mas não trataremos do
assunto aqui, porque será estudado mais adiante.
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b) O respeito às pessoas e aos seus bens
O sétimo mandamento prescreve o respeito dos bens alheios, mediante a prática
da justiça e da caridade, da temperança e da solidariedade.
Em particular, exige o respeito das promessas e dos contratos estipulados; a reparação da
injustiça cometida e a restituição do mal feito; o respeito pela integridade da criação
mediante o uso prudente e moderado dos recursos minerais, vegetais e animais que há no
universo, com especial atenção para com as espécies ameaçadas de extinção.
c) O respeito pela integridade da Criação
O homem deve tratar os animais, criaturas de Deus, com benevolência, evitando
quer o amor excessivo para com eles, quer o seu uso indiscriminado, sobretudo para
experimentações científicas efetuadas para lá dos limites razoáveis e com sofrimentos
inúteis para os próprios animais.
d) As proibições do sétimo mandamento
O sétimo mandamento, antes de mais, proíbe o furto que é a usurpação do bem
alheio contra a razoável vontade do seu proprietário. É o que também sucede no
pagamento de salários injustos; na especulação sobre o valor dos bens para obter
vantagens com prejuízo para os outros; na falsificação de cheques ou faturas.
Proíbe, além disso, cometer fraudes fiscais ou comerciais, causar um dano às
propriedades privadas ou públicas. Proíbe também a usura, a corrupção, o abuso privado
dos bens sociais, os trabalhos culpavelmente mal feitos e o esbanjamento.
4.8 - O Oitavo Mandamento: NÃO LEVANTAR FALSOS TESTEMUNHOS
«Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo» (Ex 20, 16).
«Foi dito aos antigos: "Não faltarás ao que tiveres jurado; hás-de cumprir
os teus juramentos para com o Senhor"» (Mt 5, 33).
a) Viver na verdade
Toda a pessoa é chamada à sinceridade e à veracidade no agir e no falar. Cada um
tem o dever de procurar a verdade e de aderir a ela, organizando toda a sua vida segundo
as exigências da verdade. Em Jesus Cristo, a verdade de Deus manifestou-se na sua
totalidade: Ele é a Verdade. Seguir Jesus é viver do «Espírito de verdade» (Jo 14,17) e evitar
a duplicidade, a simulação e a hipocrisia.
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O cristão deve testemunhar a verdade evangélica em todos os campos da
actividade pública e privada, mesmo com o sacrifício da própria vida, se necessário. O
martírio é o supremo testemunho dado em favor da verdade da fé.
b) As proibições do oitavo mandamento (As ofensas à verdade)
O falso testemunho, o perjúrio e a mentira, cuja gravidade se mede pela
natureza da verdade que ela deforma, das circunstâncias, das intenções do
mentiroso e dos danos causados às vítimas;
O juízo temerário, a maledicência, a difamação, a calúnia, que lesam ou
destroem a boa reputação e a honra a que a pessoa tem direito;
A lisonja, a adulação ou complacência, sobretudo se finalizadas à realização
de pecados graves ou à obtenção de vantagens ilícitas.
Uma culpa contra a verdade exige a reparação, quando se ocasionou dano a
outrem.
O oitavo mandamento requer o respeito da verdade, acompanhado pela discrição
da caridade: na comunicação e na informação, que devem assegurar o bem pessoal e comum,
a defesa da vida particular e o perigo de escândalo; na reserva dos segredos profissionais,
que se devem sempre manter, salvo em casos excepcionais, por motivos graves e
proporcionados. Exige-se também o respeito pelas confidências feitas sob o sigilo do
segredo.
c) O uso dos meios de comunicação social
A informação mediática deve estar ao serviço do bem comum, ser sempre
verdadeira no conteúdo e, salva a justiça e a caridade, deve ser também íntegra. Além
disso deve
expressar-se em modo honesto e conveniente, respeitando escrupulosamente as
leis morais, os direitos legítimos e a dignidade da pessoa.
d) A relação entre a verdade, a beleza e a arte sacra
A verdade é bela por si mesma. Ela comporta o esplendor da beleza espiritual.
Além da palavra, existem numerosas formas de expressão da verdade, em especial as
obras artísticas. São o fruto do talento dado por Deus e do esforço do homem. A arte sacra,
para ser verdadeira e bela, deve evocar e glorificar o Mistério de Deus revelado em Cristo
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e conduzir à adoração e ao amor de Deus Criador e Salvador, Beleza excelsa de Verdade e
de Amor.
4.9 – O Nono Mandamento: GUARDAR CASTIDADE NOS PENSAMENTOS E NOS
DESEJOS
Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a mulher do
próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, ou o seu
jumento, nem nada que lhe pertença (Ex 20, 17).
Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu
adultério com ela no seu coração (Mt 5, 28).
a) A purificação do coração
O nono mandamento exige vencer a concupiscência carnal nos pensamentos e nos
desejos. A luta contra a concupiscência passa pela purificação do coração e pela prática da
virtude da temperança.
b) O combate pela pureza
O nono mandamento proíbe cultivar pensamentos e desejos relativos às ações
proibidas pelo sexto mandamento.
O batizado, com a graça de Deus, em luta contra os desejos desordenados, chega à
pureza do coração mediante a virtude e o dom da castidade, a pureza de intenção e do
olhar exterior e interior, com a disciplina dos sentidos e da imaginação e pela oração.
c) As outras exigências da pureza
A pureza exige o pudor, que, preservando a intimidade da pessoa, exprime a
delicadeza da castidade e orienta os olhares e os gestos em conformidade com a dignidade
das pessoas e da sua comunhão. Ela liberta do erotismo difuso e afasta de tudo aquilo que
favorece a curiosidade mórbida. Requer uma purificação do ambiente social, mediante uma
luta constante contra a permissividade dos costumes, que assenta numa concepção
errónea da liberdade humana.
4.10. O Décimo Mandamento: NÃO COBIÇAR AS COISAS ALHEIAS
Não cobiçarás [...] nada que pertença [ao teu próximo]» (Ex 20, 17).
Não cobiçarás a casa [do teu próximo], nem o seu campo, nem o seu
servo nem a sua serva, o seu boi, ou o seu jumento, nem nada que lhe
pertença (Dt 5, 21).
Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração (Mt 6, 21).
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a) As exigências e proibições do décimo mandamento
Este mandamento completa o precedente e exige uma atitude interior de respeito
em relação à propriedade alheia. Proíbe a avidez, a cupidez desregrada dos bens dos outros e
a inveja, que consiste na tristeza que se experimenta perante os bens alheios e o desejo
imoderado de deles se apoderar.
b) A pobreza de coração
Jesus requer aos seus discípulos que O prefiram a tudo e a todos. O
desprendimento das riquezas – segundo o espírito da pobreza evangélica – e o abandono à
providência de Deus, que nos liberta da preocupação pelo amanhã, preparam-nos para a
bem-aventurança dos «pobres em espírito, porque deles é já o reino dos céus» (Mt 5, 3).
O maior desejo do homem é ver a Deus. Este é o grito de todo o seu ser: ―Quero
ver a Deus!‖. De fato, o homem realiza a verdadeira e perfeita felicidade na visão e na
bem-aventurança d’Aquele que o criou por amor e o atrai a Si no seu infinito amor. Diz S.
Gregório de Nisa: ―Aquele que vê a Deus obteve todos os bens que se podem imaginar‖
5. As virtudes
Depois de termos estudado os mandamentos, entendendo-os como deveres para
com Deus e para com o próximo e como ―caminho para uma vida livre e feliz‖, nesta parte
de nosso estudo nos dedicaremos ao estudo das virtudes.
Diz S. Gregório de Nissa: ―o fim de uma vida virtuosa é tornar-se semelhante a
Deus‖. A vida moral não consiste numa sucessão de atos descontínuos, mas é a expressão
de hábitos que dão continuidade de certa unidade ao comportamento humano.
Segundo o Catecismo da Igreja Católica, a virtude é uma disposição habitual e
firme para fazer o bem. É o oposto do vício que significa uma tendência ao pecado
adquirida por uma repetição de atos maus.
Cada vício afasta de Deus e pode levar a alma a uma separação total dele. Por isso
trata-se de um obstáculo à santidade.
Por outro lado, as virtudes são os caminhos, os meios indispensáveis à santidade.
Etimologicamente, a palavra virtude vem de vir (varão, em latim) e significa uma
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disposição forte e vigorosa. A virtude sendo um hábito permanente39 pode tornar-se uma
segunda natureza, pois proporciona uma execução rápida, sem hesitação e deleitosa de
seu ato. É vitória sobre a volubilidade e inconstância.
5. 1. Divisão
a) Distinguimos virtudes adquiridas e virtudes infusas.
As virtudes adquiridas são aquelas que decorrem de sucessivos atos bons
da mesma índole; estes vão predispondo o sujeito a novos atos bons da
mesma índole, originando assim o hábito ou a virtude respectiva.
As virtudes infusas são princípios de ação bons que Deus comunica às
nossas almas, sem que façamos esforços por adquiri-los; são dons de Deus.
São Paulo alude a isso, dizendo: ―o amor de Deus foi difundido em nossos
corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado‖ (Rm 5,5). Todo cristão
recebe, no batismo, juntamente com a graça santificante, virtudes infusas,
que o habilitam a agir num plano novo, ou seja, como filho de Deus.
b) Distinguimos virtudes teologais e virtudes morais.
As virtudes teologais dizem respeito diretamente a Deus; são a fé, a
esperança e a caridade, das quais trata frequentmente São Paulo (cf. 1 Cor
13,13; 1Ts 1,3; 5,8). No cristão, as virtudes teologais são sempre infusas40.
As virtudes morais dizem respeito diretamente às criaturas; guiam a
conduta do homem em relação aos bens deste mundo. Entre as virtudes
morais, as virtudes cardeais41 são as mais importantes. São quatro:
prudência, justiça, fortaleza e temperança.
As virtudes morais podem ser naturais (ou adquiridas) e sobrenaturais (ou
infusas). No Batismo o cristão recebe a habilitação para ser prudente, justo, corajoso e
temperante não só no plano da natureza, mas da filiação divina.
39 Notemos que as criaturas abaixo do homem geralmente têm uniformidade no agir. O homem não tem essa
uniformidade porque é livre. Compete à razão procurar o rumo certo e fazer que a vontade se volte para ele; assim a
exitência inteira é penetrada pela racionalidade; ela se espiritualiza.
40 Isto não quer dizer que o cristão seja sempre uma pessoa de fé ou de amor... mas, significa que todo cristão, desde o
seu Batismo, tem certas potencialidades para conhecer como Deus conhece e amar como Deus ama.
41 São chamadas virtudes cardeais porque constituem os cardines (gonzos) ou as dobradiças e os eixos em torno das quais
gira toda a moral.
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5.2. As virtudes cardeais
As virtudes humanas são perfeições habituais e estáveis da inteligência e da
vontade, que regulam os nossos atos, ordenam as nossas paixões e guiam a nossa conduta
segundo a razão e a fé. Adquiridas e reforçadas por atos moralmente bons e repetidos, são
purificadas e elevadas pela graça divina.
São as virtudes, chamadas cardeais, que reagrupam todas as outras e que
constituem a charneira da vida virtuosa. Como vismos anteriormente, são elas:
prudência,
justiça, fortaleza e temperança.
A prudência dispõe a razão para discernir em todas as circunstâncias o
nosso verdadeiro bem e a escolher os justos meios para o atingir. Ela
conduz as outras virtudes, indicando-lhes a regra e a medida.
A justiça consiste na constante e firme vontade de dar aos outros o que
lhes é devido. A justiça para com Deus é chamada «virtude da religião».
A fortaleza assegura a firmeza nas dificuldades e a constância na procura
do bem, chegando até à capacidade do eventual sacrifício da própria vida
por uma causa justa.
A temperança modera a atração dos prazeres, assegura o domínio da
vontade sobre os instintos e proporciona o equilíbrio no uso dos bens
criados.
5.3. As virtudes teologais
As virtudes teologais são as virtudes que têm como origem, motivo e objeto
imediato o próprio Deus. São infundidas no homem com a graça santificante, tornam-nos
capazes de viver em relação com a Trindade e fundamentam e animam o agir moral do
cristão, vivificando as virtudes humanas. Elas são o penhor da presença e da ação do
Espírito Santo nas faculdades do ser humano.
As virtudes teologais são: fé, esperança e caridade.
A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que Ele
nos revelou e que a Igreja nos propõe para acreditarmos, porque Ele é a
própria Verdade. Pela fé, o homem entrega-se a Deus livremente. Por isso,
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o crente procura conhecer e fazer a vontade de Deus, porque «a fé opera
pela caridade» (Gal 5,6).
A esperança é a virtude teologal por meio da qual desejamos e esperamos
de Deus a vida eterna como nossa felicidade, colocando a nossa confiança
nas promessas de Cristo e apoiando-nos na ajuda da graça do Espírito
Santo para merecê-la e perseverar até ao fim da vida terrena.
A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as
coisas e ao próximo como a nós mesmos por amor de Deus. Jesus faz dela
o mandamento novo, a plenitude da lei. A caridade é «o vínculo da
perfeição» (Col 3,14) e o fundamento das outras virtudes, que ela anima,
inspira e ordena: sem ela «não sou nada» e «nada me aproveita» (1 Cor
13,1-3).
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Introdução à Teologia II
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Capítulo IV
DOUTRINA SOCIALDA IGREJA
1. Delineamento
A última parte de nosso estudo se propõe a dar, em linhas gerais, uma visão da
Doutrina Social da Igreja. A presente apostila que nos orientará em nosso estudo sobre a
Doutrina Social da Igreja traz um esquema simples e objetivo, com a organização de
textos, com a pretensão de levar os alunos a uma iniciação no assunto que poderá ser
aprofundado em ulteriores estudos.
A Igreja Católica possui um corpo doutrinário bem desenvolvido sobre questões
sociais, políticas e culturais que não chegou ainda ao conhecimento da maior parte dos
católicos. A Igreja não é indiferente a tudo o que na sociedade se decide, se produz e se
vive.
A sociedade – com tudo o que nela se realiza – diz respeito ao homem. O
Cristianismo difere radicalmente de todas as outras religiões por seu caráter humanístico e
social: o seu interesse está definitivamente posto na pessoa humana.
Cuidar do homem, para a Igreja, significa envolver a sociedade na sua solicitude
missionária e salvífica. A Igreja deseja que haja o encontro entre a mensagem evangélica e
a história humana. A Doutrina Social é parte integrante do ministério de evangelização da
Igreja, pois, esta precisa anunciar o Evangelho na complexa rede de relações sociais.
A Igreja tem clareza de que a redenção realizada por Cristo e confiada à sua
missão é de ordem sobrenatural. Mas, o aspecto sobrenatural não elimina ou se sobrepõe
ao natural, ao contrário o eleva.
Certamente, a missão própria confiada por Cristo à sua Igreja, não é de
ordem política, econômica ou social: o fim que lhe propôs é, com efeito,
de ordem religiosa. Mas é justamente desta mesma missão religiosa que
derivam encargos, luz e energia que podem servir para o
estabelecimento e consolidação da comunidade humana segundo a Lei
divina. E também, quando for necessário, tendo em conta as
circunstâncias de tempos e lugares, pode ela própria, e até deve, suscitar
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obras destinadas ao serviço de todos, sobretudo dos pobres, tais como
obras caritativas e outras semelhantes42.
As sérias crises que estamos enfrentando no campo social nos desafiam enquanto
cristãos a uma invectiva árdua e apaixonada contra a pobreza, a fome, a doença, a miséria,
ou seja, contra tudo aquilo que depõe contra a dignidade humana. A realidade social deve
ser transformada com a força do Evangelho.
Isso não quer dizer que a Igreja possua soluções fáceis para problemas difíceis. Na
verdade, busca sabedoria para discernir e responder às diversas necessidades de nossos
tempos, baseando-se em princípios imutáveis colhidos da Revelação e da lei natural: por
isso a Doutrina social da Igreja, ―pertence não ao domínio da ideologia, mas da teologia e
especialmente da teologia moral‖43.
Que este estudo sumário possa despertar em nossos alunos o compromisso de
uma fé que gere a justiça, pois, uma fé viva gera uma ação comprometida com a
transformação da sociedade.
2. O conceito
A expressão Doutrina Social da Igreja44 designa ―o conjunto de escritos e mensagens
– cartas, encíclicas, exortações, pronunciamentos, declarações – que compõem o
pensamento do magistério católico a respeito da chamada questão social‖45.
Estamos diante de uma doutrina de caráter social, isto é, escrita para iluminar os
problemas, sobretudo as situações em que a vida humana se encontra mais ameaçada, e
conduzir as pessoas à busca de soluções46.
Trata-se, ao mesmo tempo, de uma reflexão e de uma proposta ética e moral para
o agir cristão nas realidades sócioeconômicas, tendo como meta a consecução do bem
comum.
Cristo veio salvar o homem todo. Por isso, seria uma redução suspeitosa da doutrina
cristã se considerássemos no homem apenas a sua alma individual (isolada). Todo ser
42 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 42.
43 João Paulo II, Encíclica Sollicitudo rei socialis, n.41.
44 Alguns autores preferem usar a expressão Ensino Social da Igreja. A palavra doutrina denota uma série de princípios
fechados, definidos, imutáveis. Já o termo ensino ou ensinamento mantém o seu caráter aberto, dinâmico e flexível,
disposto sempre a aprofundar a compreensão de acordo com o passar dos tempos.
45 Cf. CNBB, Temas da Doutrina Social da Igreja, p.13.
46 Cf. Ibdem, pp. 17-18.
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humano possui uma dimensão social, ou seja, foi feita para estar e para se realizar numa
sociedade.
Nessa perspectiva, a Igreja é levada a tratar também da comunidade humana.
Assim, no cumprimento de sua missão, anunciar o Evangelho, traz uma palavra de
orientação sobre os assuntos mais diversos: a economia, a política, a pobreza, a injustiça
social, as leis sobre o aborto, eutanásia, esterilização dos pobres que prejudicam a vida
espiritual.
Pela relevância pública do Evangelho e da fé e pelos efeitos perversos da
injustiça, vale dizer, do pecado, a Igreja não pode ficar indiferente às vicissitudes
sociais: ―Compete à Igreja anunciar sempre e por toda parte os princípios
morais, referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer
questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da
pessoa humana ou a salvação das almas‖47.
A importância
teológica da Doutrina sobre a sociedade resulta da visão de que,
dentro plano da salvação, as relações sociais adquirem uma significação profunda, porque
os homens ―pelas circunstâncias sociais nas quais vivem e estão mergulhados desde a
infância, são com freqüência afastados da prática do bem e impelidos ao mal‖48.
O Cardeal Secretário de Estado, Ângelo Sodano declara que ―no decorrer da sua
história e, em particular, nos últimos cem anos a Igreja jamais renunciou, de acordo com as
palavras do Papa Leão XIII, a dizer a palavra que lhe compete sobre a questão da vida
social‖49.
A Igreja tem o direito de ensinar a posição Moral Cristã segundo as diretrizes de
Cristo. Assim, ela cumpre seu dever de formar a consciência do cidadão. A vida
econômica e política apresenta inúmeros problemas na sociedade contemporânea.
A Doutrina Social da Igreja tem por objetivo orientar os homens para a sua própria
natureza, para os princípios básicos da convivência social, para as leis inscritas no coração
de toda comunidade sã e progressista, para as ações fundamentais que permitam a
concretização de vidas humanas dignas, livres e felizes, já aqui na Terra.
47 PONTIFICIO CONSELHO ―JUSTIÇA E PAZ‖, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 71.
48 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, o.c., n. 25.
49 Esta declaração se encontra na Carta do Cardeal ao Cardeal Renato Raffaele Martinho, presidente do Pontifício
Conselho da Justiça e da Paz de 29 de junho de 2004 – Cf. PONTIFICIO CONSELHO ―JUSTIÇA E PAZ‖, Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, o.c., p.9.
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3. Fundamentos ou fontes
Os fundamentos ou as fontes para a Doutrina Social da Igreja, segundo Pio XII,
são duas:
a Lei Natural: fundamentada nos fatos concretos e na dignidade humana;
a Lei Cristã: fundamentada nas Escrituras, na Tradição e no Magistério.
Estas duas perspectivas não se contradizem, mas combinam-se e defendem-se
mutuamente na Natureza Humana.
A Doutrina Social da Igreja não deseja mais que relembrar ao homem os princípios
da própria Lei Natural enriquecidos pela Revelação. No entanto, a Igreja vê a Lei Natural e
a Natureza Humana como realidades inegavelmente e essencialmente ligadas e
subordinadas a Deus – o Humanismo Cristão.
A ausência do reconhecimento desta subordinação é, na verdade, princípio de
uma ―cultura de morte‖, inumana, reducionista e profundamente cruel50. Neste sentido a
Igreja defende uma Doutrina Social que é mais rica, mais profunda, mais verdadeira, e,
por outro lado, mais exigente, que a mera moral natural.
4. Síntese histórica das intervenções do Magistério da Igreja em Matéria Social
Em primeiro lugar, convém dizer que a Doutrina Social da Igreja não foi pensada
desde o início como um sistema orgânico. Foi se formando aos poucos, com progressivos
pronunciamentos do Magistério sobre as questões sociais. Isso não quer dizer que os
problemas sociais estivessem ausentes das publicações anteriores na história da Igreja. São
inúmeras as referências à situação real e concreta dos pobres desde os primeiros séculos
do cristianismo e da tradição católica51.
Convencionalmente, marca-se como início da moderna Doutrina Social da Igreja a
Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891, encíclica do Papa Leão XIII, "sobre a condição dos
operários".
O documento surge numa sociedade profundamente transformada pela
Revolução Industrial. Uma sociedade formada de pessoas que vivem na alma e no corpo
50 Cf. JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae, n. 4.
51 Cf. CNBB, Temas da Doutrina Social da Igreja, o.c., p. 22.
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os efeitos de um salto gigantesco em termos científico-tecnológicos. A revolução industrial
trouxe avanços inegáveis, especialmente através da imensa capacidade de produção
através da máquina. Na verdade, representou uma revolução em quatro dimensões: uma
de ordem sócio-econômica, com surgimento e consolidação da indústria; outra de ordem
política, através do fortalecimento dos Estados-nação a partir da Revolução Francesa;
outra, ainda, de ordem científica, que se afirma pelo aprofundamento e sistematização do
conhecimento e do método experimental; outra, enfim, de ordem filosófica, fundada no
pensamento da razão ilustrada e na emergência da subjetividade.
Mas esse conjunto de transformações trouxe também efeitos negativos. Se é
verdade que o poder das máquinas multiplicou em muito a capacidade de produzir bens,
alimentos e equipamentos, também é verdade que os benefícios de semelhante progresso
não foram eqüitativamente distribuídos. Os ―tempos modernos‖ ou a ―era da máquina‖
vieram acompanhados, simultaneamente, de um enorme potencial produtivo e de uma
crescente desigualdade social.
Nesse contexto, Leão XIII defendeu como dever do Estado garantir os direitos dos
operários, sublinhando a importância do seu direito de criar sindicatos para reivindicar a
realização de seus legítimos interesses. O Papa não só rejeitou o socialismo, mas
responsabilizou o capitalismo pela questão social, propondo uma verdadeira política
social que inspirou toda política social e trabalhista contemporânea.
Pio XI comemorando os 40 anos da Rerum Novarum, promulga sua encíclica,
Quadragesimo Anno, no dia 15 de maio de 1931. É a segunda grande encíclica social, que
procura resgatar o legado de Leão XIII no novo contexto histórico que se afigurava
ameaçador. Decepcionado com as democracias liberais, Pio XI estava convicto que o
destino da humanidade seria decidido no confronto dos grandes blocos totalitários
emergentes: o nazi-facismo, de um lado e o comunismo marxista de outro. Teve a audácia
não só de condenar estes sistemas, mas também de propor um sistema alternativo, o
corporativismo cristão fundado na preocupação de preservar a dignidade inalienável da
pessoa humana esmagada pelos regimes tota1itários e a primazia do bem comum sobre os
interesses tanto corporativos como classistas. A tragédia da Segunda Guerra Mundial não
permitiu que a proposta de Pio XI tivesse a merecida ressonância.
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Sabe-se que o Pio XII desejava comemorar com uma encíclica o 50º aniversário da
Rerum Novarum em 1941. O mundo porém, vivia os horrores da guerra. Não havia
ambiente para uma celebração festiva. O Papa dedicou entretanto sua radiomensagem de
1º de junho daquele ano para comemorar o cinqüentenário da encíclica de Leão XIII,
focalizando o tema do destino universal dos bens: inspirado nele, focaliza os grandes
princípios da doutrina social da Igreja que deverão mobilizar os católicos no esforço de
reconstrução de uma nova ordem social a ser empreendida depois da tormenta da guerra.
Em 1961, João XXIII publica também no dia 15 de maio, sua encíclica social Mater
et Magistra em homenagem ao 70º aniversário da Rerum Novarum. É a mais longa encíclica
social e nela, o Papa examina as novas dimensões que assumira a questão social desde
Leão XIII. Considerando os sinais dos tempos, intui que a questão social não reduzia só a
disputa das classes pela apropriação dos meios de produção, mas assumira já dimensões
planetárias: era a disputa dos recursos do planeta entre os povos desenvolvidos e a imensa
multidão dos que viviam ou sobreviviam nas condições de subdesenvolvimento. Detecta
os caminhos de um crescente processo de socialização destinado a permitir ao maior
número, inclusive aos homens do campo, o acesso a níveis de vida compatíveis
com sua
dignidade de filhos de Deus.
João XXIII abria caminho para a mensagem social de Paulo VI que em sua
encíclica, Populorum Progressio, de 26 de março de 1967, incorpora definitivamente a
temática do desenvolvimento na reflexão social da Igreja.
Paulo VI via com angústia a distância crescente entre os povos desenvolvidos e
subdesenvolvidos. Era impossível consolidar a paz, o grande anseio da humanidade, tema
da última encíclica, Pacem in Terris, de João XXIII, no contexto de um mundo dividido por
imensas desigualdades: "O desenvolvimento é o novo nome da paz".
O Papa, entretanto, não reduzia o desenvolvimento ao mero crescimento
econômico. Ele sabia da impostura dos grandes sistemas, capitalismo e comunismo, que
propunham como solução de todos os problemas a satisfação indefinida de um desejo
insaciável de consumo. Para ele, o mais importante não é ter mais; o ter mais só se justifica
na medida em que permite ser mais.
Sua mensagem é o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os
homens. Daí o seu apelo à solidariedade internacional. Renova seu apelo em Carta
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Apostólica ao Cardeal Secretário de Estado, em 1971, a Octogésima Adveniens,
comemorando o 80º aniversário da Rerum Novarum, na qual deixa claro que a Igreja
renuncia a qualquer pretensão de propor um sistema alternativo. É missão dos leigos
comprometidos na política construir os modelos adequados às diversidades nacionais.
João Paulo II pretendia celebrar o 90º aniversário da mesma encíclica, no dia 15 de
maio de 1981. O atentado de que foi vítima a 13 de maio adiou a publicação de sua
encíclica. Ele já redigira, entretanto, um discurso aos operários, que o Cardeal Agostino
Casaroli, Secretário de Estado, leu na Praça São Pedro no mesmo dia, 15 de maio.
A encíclica Laborem Exercens aparece a 14 de setembro do mesmo ano. Nela, o
Romano Pontífice inova profundamente a abordagem do problema social, quando diz: "o
trabalho é uma chave e provavelmente a chave essencial de toda a questão social" (n. 3).
Na realidade, até então, toda a questão social era centrada no problema da
propriedade. João Paulo II não hesita em afirmar que "a propriedade dos meios de
produção - tanto a propriedade privada como a pública ou coletiva – só é legítima na
medida em que serve ao trabalho" (Laborem Exercens, n. 14).
Na sua segunda encíclica social, Sollicitudo Rei Socialis, de 30 de dezembro de 1987,
o Papa comemora o 20º aniversário da Populorum Progressio em que voltava a insistir na
tese de que só a solidariedade internacional pode promover o desenvolvimento integral.
A Centesimus Annus promulgada a 1º de maio, na festa de São José Operário,
propõe-se fazer uma "releitura" (n. 3), da primeira encíclica social: a Rerum Novarum, de
Leão XIII, cujo Centenário a Igreja já está comemorando no mundo inteiro.
Essa releitura nos convida a um tríplice olhar; "olhar para traz", para o contexto do
fim do século passado em que emerge a Rerum Novarum e para os princípios fundamentais
que ela formulou: "olhar ao redor" para as novas "coisas novas" deste nosso fim de século:
"olhar ao futuro", para o advento do terceiro milênio "carregado de incógnitas e de
promessas" (n. 3).
Com a morte de João Paulo II, sobe ao Pontificado, em 19 de abril de 2005, o
Cardeal Joseph Ratzinger que adota o nome de Bento XVI. Em 25 de dezembro de 2005,
solenidade do Natal, entrega aos fiéis católicos a sua primeira Encíclica: Deus caritas est.
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A Encíclica é composta por duas partes. A primeira parte oferece uma reflexão
teológico-filosófica sobre o «amor» nas suas diversas dimensões - eros, philia, agape –
especificando alguns fatos essenciais sobre o amor de Deus pelo homem e a intrínseca
ligação que tal amor tem com o humano. A Segunda parte, que mais nos interessa aqui,
trata do exercício concreto do mandamento do amor ao próximo.
O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de mais para
cada um dos fiéis, mas é também para a comunidade eclesial inteira, que, na sua atividade
caritativa, deve respeitar o amor trinitário.
Nesta encíclica o Romano Pontífice chama a atenção para três aspectos da
atividade caritativa cristã:
para além da competência profissional, deve basear-se sobre a experiência
de um encontro pessoal com Cristo, cujo amor tocou o coração do crente
suscitando nele o amor pelo próximo;
deve ser independente de partidos e ideologias (o programa do cristão —
o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus é «um coração que
vê» — coração que vê onde há necessidade de amor, e atua em
conseqüência);
não deve ser um meio em função daquilo que hoje é referido como
proselitismo: o amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins
(isto, porém, não significa que a ação caritativa deva, por assim dizer,
deixar Deus e Cristo de lado, pois o cristão sabe quando é tempo de falar
de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor).
Destaca ainda que o hino à caridade de S.Paulo (cf. 1 Cor 13) deve ser a Magna
Carta de todo o serviço eclesial para proteger do risco de se degradar em puro ativismo.
Em sua segunda encíclica Spes salvi (2007) Bento XVI trata do tema da esperança.
Embora a encíclica não tenha sido escrita para falar de questões sociais, o Pontífice chama
a atenção para o seguinte erro: o perigo da fé no progresso ou a ―ideologia do progresso‖
(n. 17ss) que se apresenta então como a nova forma da esperança ―cristã‖.
Bento XVI aponta que concepções bíblicas tem sido secularizadas; que espera-se
algo que deverá ser realizado pelo homem, com sua razão e liberdade. Pretende-se
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Introdução à Teologia II
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construir o ―reino de Deus‖, mas sem Deus. A ação redentora tem sido esperada do
homem, não de Deus. Porém, o verdadeiro Reino de Deus é dom, é sempre mais do que
merecemos e do que o homem pode alcançar com seus esforços.
A terceira encíclica de Bento XVI – Caritas in Veritate (2009)– tem o seu início com
as seguintes palavras: "A caridade na verdade, que Jesus testemunhou" é "a força
propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade
inteira". O Papa recorda que "a caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja".
Por outro lado, considerando "o risco de ser mal entendida e de excluí-la da vida
ética", ela deve ser conjugada com a verdade. E adverte: "Um Cristianismo de caridade
sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de sentimentos úteis para a
convivência social, mas marginais." (n. 1-4)
O progresso necessita da verdade. Sem ela – afirma o Pontífice – "a atividade
social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores
na sociedade". (n. 5)
Bento XVI se detém sobre dois "critérios orientadores da ação moral" que derivam
do princípio "caridade na verdade": a justiça e o bem comum. Cada cristão é chamado à
verdade, também através de um "caminho institucional" que incida na vida da polis, do
viver social. (n. 6-7)
O Pontífice evidencia que "as causas do subdesenvolvimento não são
primariamente de ordem material". Elas estão, antes de tudo, na vontade, no pensamento
e, mais ainda, "na falta de fraternidade entre os homens e entre os povos". "A sociedade
cada vez mais globalizada – sublinha – torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos". É
preciso, então, mobilizar-se, a fim de que a economia evolua "para metas plenamente
humanas". (n. 19-20)
Bento XVI faz questão de sublinhar que o respeito pela vida "não pode
ser de
modo algum separado" do desenvolvimento dos povos. Em várias partes do mundo –
adverte – continuam a ser aplicadas práticas de controle demográfico que "chegam mesmo
a impor o aborto".
Outro aspecto ligado ao desenvolvimento é o direito à liberdade religiosa. As
violências – escreve o Papa – "refreiam o desenvolvimento autêntico", e isso "aplica-se de
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Introdução à Teologia II
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modo especial ao terrorismo de índole fundamentalista". Ao mesmo tempo, a promoção
do ateísmo por parte de muitos países "tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual
indispensável para se empenhar no desenvolvimento humano integral". (n. 29)
No quarto capítulo, a Encíclica aborda o tema do Desenvolvimento dos povos,
direitos e deveres, ambiente (n. 76-77). Na Conclusão da Encíclica, o Papa sublinha que o
desenvolvimento "necessita de cristãos com os braços levantados para Deus, em atitude de
oração", de "amor e de perdão, de renúncia a si mesmos, de acolhimento do próximo, de
justiça e de paz". (n. 78-79)
5. Dignidade da Pessoa Humana
[Cristo] revela plenamente o homem ao mesmo homem. Tal é... a
dimensão humana do mistério da Redenção. Nesta dimensão o homem
volta a encontrar a grandeza, a dignidade e o valor próprio da sua
humanidade.52
A mais incisiva preocupação dos papas, a partir de Leão XIII, sempre foi a
centralidade e a dignidade da pessoa humana. A promoção integral do homem, a
liberdade de expressão e de religião, a defesa incondicional da vida, o combate a todo tipo
de preconceito, discriminação e racismo são temas correlato que enriquecem as páginas
dos documentos.
O ser humano, como lembra a Gaudium et Spes, é autor, centro e fim do
desenvolvimento econômico. Nada o atinge mais profundamente do que o fato de ter-se
tornado mero instrumento diante dos imperativos da economia de mercado ou do
coletivismo. A dignidade da pessoa humana deve ser o objetivo último da produção de
bens, da organização política e das expressões culturais.
A igualdade fundamental entre os homens exige um reconhecimento
cada vez maior. Porque todos eles, dotados de alma racional e criados à
imagem de Deus, têm a mesma natureza e a mesma origem. E porque,
redimidos por Cristo, desfrutam da mesma vocação e de idêntico
destino. É evidente que não todos os homens são iguais no que toca à
capacidade física e às qualidades intelectuais e morais. No entanto, toda
forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja social
ou cultural, por motivos de sexo, raça, cor, condição social, língua ou
religião, deve ser vencida e eliminada por ser contrária ao plano
divino...53
Nos dias de hoje, a pobreza, a fome e a violência, entre outros males, ameaçam
52 JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Redemptor hominis, n. 10.
53 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, o.c., n. 29.
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Introdução à Teologia II
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esse princípio desde os seus fundamentos. Daí a necessidade de manter viva a opção
preferencial pelos pobres, como sujeitos da própria libertação.
Não podemos falar de dignidade humana sem falar de condições reais de vida, o
que em termos concretos significa o respeito aos direitos fundamentais tais como:
alimentação, saúde, educação, trabalho, habitação, entre outros.
Da mesma maneira que o homem não pode rejeitar os deveres que o
vinculam ao Estado e foram impostos por Deus... assim também a
sociedade não pode despojar o homem dos direitos pessoais que lhe
foram concedidos pelo Criador.54
6. Os direitos naturais do homem
A defesa e a promoção dos Direitos Humanos tocam em muitas dimensões da
vida humana, com ênfase na dimensão ética e religiosa, que ocupa um lugar central na
Doutrina Social Cristã. Quem atua na evangelização busca fundamentar teologicamente a
sua ação voltada para os Direitos Humanos. A fé permite vê-los como um campo de onde
se pode falar de Deus e com Deus e, portanto, percebê-los como campo de salvação, aberto
à graça, tanto de quem confessa a fé em Jesus Cristo quanto daqueles que possuem outra
crença ou religião.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) foi um marco importante na trajetória do
compromisso da Igreja com a promoção e defesa dos Direitos Humanos. Fiel à sua missão,
a Igreja assume os Direitos Humanos como elemento central da evangelização.
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (n. 1) afirma que ―nada de
verdadeiramente humano é alheio ao coração da Igreja, porque a Igreja assume as alegrias
e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de nosso tempo,
sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, como alegrias e esperanças, tristezas e
angústias das discípulas e discípulos de Cristo‖.
Na visão do Concílio, os Direitos Humanos repousam na dignidade inerente a
toda pessoa humana. Dessa dignidade decorrem direitos universais e invioláveis,
superiores a qualquer lei humana. O acesso a esses direitos vai possibilitar às pessoas levar
unia vida digna de um ser humano.
Simultaneamente, aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa
54 PIO XI, Carta Encíclica Divini Redemptoris, n. 30
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humana, por ser superior a todas as coisas e seus direitos serem universais e invioláveis. É
necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para
levar uma vida verdadeiramente humana: alimentação, vestuário, casa, direito de escolher
livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa
fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria
consciência, direito à proteção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria
religiosa55.
Durante o período conciliar, a Encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII, com o
tema "o respeito dos Direitos Humanos como condição para a paz", marcou um novo
despertar e um novo compromisso da Igreja com os Direitos Humanos.
As Conferências do Episcopado Latino-americano de Medellín e Puebla
desencadearam um novo vigor na opção preferencial pelos pobres e oprimidos, o qual
atingiu todos os setores da Igreja. No Brasil, após o golpe militar de 1964, a Igreja Católica
assumiu e liderou uma ampla e decisiva ação em defesa dos Direitos Humanos. Casos
parecidos foram se repetindo em diferentes países do Continente que se viram envolvidos
em golpes militares. Em alguns desses países houve resposta positiva apenas de alguns
selares, não chegando a uma resposta coletiva das Igrejas.
A IV Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho, realizada em
Santo Domingo, na segunda parte do seu documento sobre promoção humana, apela para
o compromisso com os Direitos Humanos como o primeiro a ser assumido pelos cristãos:
"O Evangelho é a raiz profunda dos Direitos Humanos. Toda violação dos Direitos
Humanos contradiz o plano de Deus e é pecado". Nesse mesmo documento, os Bispos
constatam que atualmente há um avanço quanto a declarações e legislações sobre Direitos
Humanos, ao mesmo tempo afirmam que existe uma profunda violação dos Direitos
Humanos, especialmente pelas precárias condições de vida de grande parcela da
população mundial.
No início do novo milênio, João Paulo II viu como um dos grandes desafios dos
tempos atuais "o vilipêndio dos Direitos Humanos fundamentais de tantas pessoas,
especialmente das crianças"56. E fez a seguinte advertência: "Quando se permite a violação
55 Cf. CONCÍLIO VATICANO
II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, o.c., n. 26.
56 JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Novo millenium ineunte, n. 51.
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de um só Direito Humano, abrem-se as portas para a violação de todos".
A progressiva tomada de consciência sobre direitos fundamentais da pessoa
humana, como expressão jurídica e política da dignidade do ser humano, tem sua
formulação privilegiada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela
Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro de 1948.
Essa Declaração constitui, sem dúvida, um verdadeiro marco cultural na história
da humanidade. Destaca aqueles direitos inerentes à pessoa humana como tal e, portanto,
são lógica e historicamente anteriores ao Estado. Assim, o Estado não outorga esses
direitos, mas simplesmente tem de reconhecê-los.
Os Direitos Humanos, expressos nos 30 artigos da declaração da ONU, podem
classificar-se em:
a) direitos civis e políticos, enquanto consideram a pessoa como cidadã (por
exemplo, o direito ao voto, à liberdade pessoal);
b) direitos econômicos, sociais e culturais, que fazem referência a um
tratamento de igualdade dentro da mesma sociedade (por exemplo, o
direito ao trabalho, à saúde, à educação);
c) direitos coletivos, que correspondem aos grupos humanos (por exemplo,
o direito a um meio ambiente saudável, ao desenvolvimento sustentável, à
autodeterminação cultural e religiosa).
7. A comunidade humana
Enquanto o inundo animal está dividido em numerosas espécies e tipos que
muitas vezes se combatem impiedosamente, os homens, apesar de sua diferenciação quan-
to à cor da pele e nacionalidade, estão tinidos metafisicamente pela mesma natureza
humana. A limitação desumana do ―ser homem‖ à própria tribo, à própria raça, ao
próprio povo ou à própria classe, conduz à bestialidade. Uma vez que os homens não são
somente ―muitos da mesma espécie‖, eles formam — independentemente de acordos ou
consentimentos — sob o ponto de vista moral-espiritual, jurídico e econômico, uma
unidade espontânea e de antemão existente.
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Introdução à Teologia II
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7.1. A unidade moral-espiritual da humanidade
Pela natureza humana, igual em todos os homens, a ordenação de toda a
humanidade está assentada sobre os mesmos valeres morais-espirituais do verdadeiro, do
bom, do belo e do santo. A realização destes valores é efetuada pela colaboração de todos
os povos e círculos de cultura na história mundial.
Sendo que a economia e o trânsito mundiais, a imprensa e o rádio, a ameaça de
guerra e a ânsia de paz, uniram toda a humanidade duma maneira única na história,
numa unidade fatal, o reconhecimento de valores fundamentais comuns, da ordem
espiritual e moral, se tornou atualmente mais imperioso do que em épocas anteriores, uma
vez que os continentes e os círculos culturais raramente entravam em contacto mútuo.
A paz mundial tem suas bases mais profundas não no sistema da formação de
blocos, nem no equilíbrio das armas, mas na unidade espiritual dos homens e dos povos.
Pio XII advertia por este motivo: ―Que se abram os bloqueios das fronteiras, que se
removam os arames farpados, que cada povo possa livremente observar a vida de todos os
demais, que se rompa o isolamento de certos países do restante do mundo cultural, tão ne-
fasto para a paz (23-12-1950). Apesar de todas as ―cortinas de ferro‖, a consciência da
solidariedade mundial se torna sempre mais forte, no seio de todos os povos. Ao mesmo
tempo esta unificação do mundo representa uma solicitação para a Igreja, que sempre foi
adepta da catolicidade, mas que por demasiadamente longo tempo esteve encerrada no
―Ocidente cristão‖. Os cristãos são chamados a colaborarem na construção de uni mundo
fraternal.
7.2. A humanidade como comunidade de direitos
Da doutrina do direito natural, que obriga a todos os homens, segue que a
humanidade é uma comunidade de direitos. Todo o orbe terrestre é de certa maneira ―um
único ser comum‖ (Francisco de Vitória) ou ―uma unidade que não somente se
fundamenta na igualdade de espécie dos homens, mas que é ao mesmo tempo de natureza
política e moral‖ (Francisco Suárez).
Pio XII de modo particular acentuou esta doutrina: O direito natural proveniente
de Deus une «não somente os indivíduos, mas também os povos» (24-12-1940). Cada
Estado individual está encerrado na ―ordem de direitos internacionais e com isto na or-
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Introdução à Teologia II
84
dem do direito natural, que tudo fundamenta e coroa‖, de modo a não se poder considerar
―como soberano no sentido de liberdade absoluta‖ (6-12-1953). O bem comum e o fim
essencial dos Estados individuais não pode subsistir nem ser pensado sem a relação íntima
com a unidade de todo o gênero humano (24-12-1951). O princípio do bem comum, que
até então se limitava somente ao Estado, foi de modo particularmente claro alargado na
encíclica Mater et Magistra, passando a ser entendido como o bem comum de toda a
humanidade.
7.3. A solidariedade econômica da humanidade
Uma vez que Deus originariamente tinha confiado os bens terrenos ―a toda a
família humana‖ e não a certos povos ou homens determinados57, a humanidade, também
sob o ponto de vista econômico, forma unia unidade de solidariedade. Deus dispôs as
coisas de tal modo, opina João Crisóstomo ( 407), que nem tudo crescesse e fosse
produzido em todas as regiões, com o fim de unir desta forma mais intimamente os
homens através da troca de mercadorias. Teodoreto de Ciro ( 458) comparou o mar entre
os povos com o mercado de uma cidade que se expandiu, e as ilhas, com as hospedarias
para os comerciantes.
Pio XII aplicou estes pensamentos à situação presente: O proveito próprio ―deve
ser substituído, conforme as prescrições das leis divinas, por uma solidariedade honrosa,
legal e econômica, ou seja, por uma cooperação fraternal dos povos‖ (24-12-1940). No
âmbito de uma ―ordem nova, baseada nos princípios morais‖, ―não há lugar para cálculos
estreitos e egoístas, que de tal forma tendem à apropriação das fontes de auxilio
econômico e das matérias-primas, destinadas ao bem comum, de modo a disto excluírem
as nações menos favorecidas pela natureza‖ (24-12-1941).
João XXIII reassumiu este pensamento e advertiu ―os países que dispõem com
exuberância de meios de subsistência, ao dever de não permanecerem indiferentes diante
das comunidades políticas cujos membros lutam coar dificuldades internas, que quase
chegam a arruinar-se devido à miséria e à fome‖. Os homens em todas as partes do
mundo são ao mesmo tempo ―moradores de uma e da mesma casa‖, de modo que ―uma
paz durável e fecunda não é possível se, o desnível das condições econômicas for
57 PIO XI, Carta Encíclia Quadragesimo Anno, n. 45)
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Introdução à Teologia II
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excessivo‖58.
8. O bem comum
Como vimos anteriormente, o homem é naturalmente, um ser social: precisa da
convivência com o próximo, só se realiza pessoalmente nesta convivência, e, por mandato
divino, deve refletir no amor do próximo o seu amor a Deus.
Para isso existe a sociedade, o governo, as leis: unicamente para garantir o bem
comum dos indivíduos enquanto tal e enquanto pessoas que vivem em comunidade.
Por bem comum não entendemos simplesmente a soma dos bens individuais,
porque a sociedade não é uma mera conglomeração de indivíduos. Não entendemos
também uma oposição aos direitos individuais – porque a sociedade não se opõe ao
indivíduo.
O bem comum é o bem
da sociedade em si, como tal, formada como é pelos
indivíduos. Não significa só um interesse geral, pois isso daria uma idéia de vantagens
meramente materiais (como satisfações egoístas, lucros e proveitos sem indicar se estes são
lícitos ou ilícitos).
O conceito de ―bem comum‖ na DSI compreende elementos materiais, porém, é
mais amplo: traz consigo um significado moral (valores morais que aperfeiçoam a pessoa
humana). Traz na linha do ser humano, racional e livre, um aperfeiçoamento, um
acabamento, um valor. Procura a satisfação de suas necessidades materiais, físicas, mas
também de suas nobres aspirações.
Pio XII, em sua radiomensagem, em 24 de dezembro de 1942, definiu o bem
comum como a realização durável ―daquelas condições exteriores necessárias ao conjunto
dos cidadãos para o desenvolvimento das suas qualidades, das suas funções, da sua vida
material, intelectual e religiosa‖.
O bem comum se fundamenta naquela antropologia que vê o homem como
imagem de Deus e entende que o seu bem só pode vir da reta adequação à lei de Deus ou
à lei natural.
58 JOÃO XXIII, Carta Encíclica Mater et Magistra, n. 154.
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O bem comum prevê, portanto, que todas as coisas sociais e temporais, por menos
religiosas que sejam, devem prever este BEM do homem e da sua natureza, desde os meios
de comunicação até a saúde, o ensino, as condições de trabalho, a ciência, o lazer, a polícia,
a ecologia, a arte, etc. Este se baseia na natureza humana e, portanto, vale para todas as
pessoas, quaisquer que seja sua origem, credo, raça, classe, etc. Nenhuma autoridade, nem
o estado, nem a força, nem a cultura, podem legitimamente atuar em função de outro bem
que não o bem comum.
O princípio se bifurca em dois planos: o nacional e o mundial.
O bem comum nacional é a responsabilidade e a própria razão de ser o
Estado que pode tudo aquilo e só aquilo que promove o bem comum, ou seja,
o bem de todos, sem discriminações. Ele é precisamente o conjunto das
condições concretas que permitam a todos atingir níveis de vida compatíveis
com sua dignidade. A primazia do bem comum e a consagração da
democracia como único regime político que preserva a dignidade da pessoa
humana.
O bem comum em sua dimensão mundial é o bem da comunidade das
nações confiado a uma autoridade supranacional e cujos sujeitos são
precisamente os diversos países do mundo. Sua concretização e as condições
de sua eficácia são ainda apenas esboçadas, nas grandes organizações
supranacionais, sob a tutela da ONU, mas parece constituir o desfecho de
uma evolução milenar, inscrita na própria natureza social do homem. O bem
comum universal será o grande desafio do próximo milênio, para recuperar a
implosão do 2º mundo e a marginalização do 3º mundo59.
9. Relação de documentos da Igreja sobre a questão social
LEÃO XIII, Rerum Novarum ("Das coisas novas" - Sobre a Situação dos
Trabalhadores - 1891).
PIO XI, Carta Encíclica Divini Redemptoris (DoDivino Redentor - sobre o
comunismo ateu - 1937)
59 JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Centesimus Annus, n. 52.
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PIO XI, Quadragesimo Anno ("No quadragésimo ano" - Sobre a
Reconstrução da Ordem Social - 1931).
JOÃO XXIII, Mater et Magistra ( "A Mãe e Mestra" - Cristianismo e
Progresso Social - 1961).
JOÃO XXIII, Pacem in Terris (Paz na Terra - 1963).
CONCÍLIO VATICANO II, Gaudium et Spes ("Alegria e Esperança" - A
Igreja no Mundo Atual - 1965).
PAULO VI, Populorum Progressio ("O progresso dos povos" - Sobre o
Desenvolvimento dos Povos - 1967)
PAULO VI: Octogesima Adveniens ( "Chegando a octogésima" - Convocação
à Ação - 1971)
PAULO VI, Evangelii Nuntiandi ("De anunciar o Evangelho" - A
Evangelização no Mundo Atual - 1975).
JOÃO PAULO II, Redemptor Hominis (O Redentor da Humanidade - 1979).
JOÃO PAULO II, Laborem Exercens (Sobre o Trabalho Humano - 1981).
JOÃO PAULO II, Sollicitudo Rei Socialis (A Solicitude Social da Igreja -
1987).
JOÃO PAULO II, Centesimus Annus (O Ano Centenário - 1991).
JOÃO PAULO II, Tertio Millenio Adveniente (No terceiro milênio que chega
– sobre a preparação para o jubileu do ano 2000 - 1994).
JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida - 1995).
JOÃO PAULO II, Novo millenium ineunte (No início do novo milênio – no
termo no grande jubileu – 2001).
BENTO XVI, Deus caritas est (Deus é amor – sobre o amor cristão – 2005).
BENTO XVI, Spes Salvi (A esperança do salvo – sobre a esperança cristã –
2007).
BENTO XVI, Caritate in veritate (Pela caridade na verdade – sobre o
desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade - 2009).
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ANEXOS
Anexo 1
OS EVANGELHOS CANÔNICOS
A palavra ―Evangelho‖ vem do grego ―Euangélion‖ ( e significa ―Boa
Notícia‖. Entre os cristãos, este vocábulo passou a designar a mensagem de Jesus Cristo,
―aquilo que Jesus fez e disse‖ (At 1,1). Daí fez-se a expressão ―Evangelho de Cristo‖, que
significa o Evangelho pregado por Jesus Cristo e a mensagem que Ele nos trouxe da parte
do Pai.
Trata-se de um gênero literário que apareceu depois das Cartas autênticas de
Paulo e propôs-se transmitir fatos e palavras da vida de Jesus de Nazaré, que as Cartas
não tinham ainda referido.
Mt aramaico
50
Tradição
joanéia
Mc grego 65/70
Lc grego 75
Mt grego 80
João 100
Os Evangelhos transmitem-nos fatos históricos (Dv 19), mas não de maneira "fria"
e "isenta", à maneira da historiografia moderna; os fatos e as palavras de Jesus são
coloridos pela experiência das comunidades da primeira geração cristã, que vai dos anos
30 a 70.
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A Igreja Católica reconhece como inspirados quatro narrações do Evangelho, os
chamados Evangelhos Canônicos:
Mateus Marcos
Lucas João
A Igreja soube sempre separar ―o trigo do joio‖, a partir de três critérios
necessários para um Evangelho ser autêntico:
1) ter uma ligação direta com o grupo dos Apóstolos; nasce daqui a atribuição de
cada um deles a um nome importante, se possível, testemunha ocular de Jesus:
Evangelho segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas e segundo João
(critério apostólico);
2) incluir palavras e fatos históricos da vida de Jesus, e não apenas um destes
conteúdos (critério literário);
3) ser utilizado na pregação e na liturgia da Igreja (critério litúrgico).
Sendo assim, a Tradição ligava os Evangelhos de Mateus e de João aos respectivos
Apóstolos; o de Lucas a Lucas, companheiro de Paulo; o de Marcos, a um companheiro de
Pedro que se chamava João Marcos.
Com isso, pretendia-se ligar estes escritos à sua fonte, que é Cristo, e às suas
testemunhas oculares. De fato, os Quatro Evangelhos representam o último estádio da
tradição acerca das obras e das palavras de Jesus. Podemos distinguir três períodos:
O 1.° período é constituído pelo próprio Jesus, de 6 a.C. a 30 d.C. Lembremo-
nos que Jesus nada escreveu: apenas anunciou oralmente a mensagem, através
dos caminhos da Galiléia, da Samaria e da Judéia, reunindo à sua volta um
pequeno grupo de discípulos a quem iniciou nos mistérios do Reino dos céus
(Mt 13,11).
O 2.° período tem o seu início depois da morte e ressurreição de Jesus. Depois
da desilusão (Lc 24,18-21)
e do medo (Jo 20,19-23), os Apóstolos, com a força do
Espírito do Pentecostes (At 2,1-13), lançaram-se no anúncio da mensagem do
Mestre, não se preocupando muito com a escrita, mas com a urgência do
anúncio do Reino. Rapidamente se formaram muitas comunidades cristãs, tanto
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Introdução à Teologia II
90
na Palestina como nas cidades do Império. Este 2.° período, ou primeira geração
cristã, vai dos anos 30 a 70.
O 3.° período é constituído pela segunda geração cristã, ou seja, pelos
discípulos dos Apóstolos e de outras testemunhas oculares de Jesus. Cada um
deles tinha deixado mais marcada alguma tradição acerca de Jesus; agora,
juntam-se as diferentes "tradições" para não se perder a memória do Senhor.
Este período vai dos anos 60 a 100. É neste período que aparece a redação
definitiva dos Quatro Evangelhos.
A tonalidade própria de cada um desses Evangelhos, a nível literário e teológico,
faz com que eles sejam semelhantes, mas também diferentes entre si. Essa tonalidade tem
origem no estilo de cada evangelista e na intenção teológica de responder às necessidades
específicas da comunidade a quem dirige o seu Evangelho.
A título de curiosidade, vale a pena dizer que os quatro evangelistas são
simbolizados pelos animais descritos em Ez 1,10 e Ap 4,6-8:
1. S. Mateus começa o seu evangelho pela origem de
Cristo enquanto homem. Por isso se lhe deu por
símbolo um rosto humano.
2. S. Marcos começa pela pregação de S. João Batista
no deserto. O seu símbolo é o leão, animal do
deserto.
3. S. Lucas começa pelo sacrifício de Zacarias, pai de
João Batista. Tem como símbolo um touro, animal
por excelência dos sacrifícios.
4. S. João começa com uma página sublime sobre a geração do Verbo. Tem por
símbolo uma águia, que habita nas alturas.
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Anexo 2
OS EVANGELHOS APÓCRIFOS
Junto aos intelectuais e crentes, os apócrifos são um assunto que sempre despertou
e ainda desperta muita curiosidade.
No início da era cristã, denominava-se apócrifa a literatura não lida em público na
Liturgia, mas passível de leitura particular.
Etimologicamente, a palavra apókryphon significa ―oculto‖. Tais escritos são assim
considerados não por se tratar de livros secretos, mas porque seu conteúdo doutrinal não
conseguiu se impor.
Começaram a circular rapidamente, pois são citados na segunda metade do séc.
II, mas não gozavam da garantia apostólica como os quatro que tinham sido reconhecidos
e, além do mais, muitos deles continham doutrinas que não estavam conformes com os
ensinamentos apostólicos.
Estes escritos, nos primeiros séculos, apareceram paralelamente aos livros
incluídos pela Igreja no cânon de Escrituras inspiradas. Como o cânon das Escrituras
Sagradas foi fixado no século IV, a partir daí se precisa a noção de apócrifo60 como aqueles
escritos que não fazem parte do cânon bíblico.
É válido dizer que existem apócrifos do Antigo e do Novo Testamento. Os
primeiros são obras de autores judeus, alguns com posteriores acréscimos de cristãos. A
literatura apócrifa do Antigo Testamento floresceu entre os séculos II a.C. a II d.C.
Entre os principais apócrifos do Antigo Testamento podemos citar dentre outros:
Testamento dos 12 Patriarcas;
Salmos de Salomão;
Odes de Salomão;
Oração de Manassés;
3° e 4° livro de Macabeus;
Livro dos Jubileus;
60 Os protestantes chamam-nos de pseudo-epígrafes.
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Vida de Adão e Eva;
Testamento de Adão;
Apocalipse de Moisés;
Testamento de Jô;
Testamento de Salomão;
Carta de Aristeu;
Livros de Henoc;
Assunção de Moisés.
Os apócrifos neotestamentários geralmente são classificados como os livros canônicos
correspondentes, em quatro grupos: evangelhos, atos, epístolas e apocalipses. Entre os
numerosos apócrifos do Novo Testamento podemos citar:
Evangelho segundo os Hebreus;
Evangelho dos Ebionitas;
Evangelho dos Nazarenos;
Evangelho dos Egípcios;
Proto-Evangelho de Tiago;
Transitas Mariae;
Evangelho de Tomé;
Evangelho de Pedro, Matias, Bartolomeu, Judas, Barnabé e Nicodemos;
Atos de Pedro;
Atos de João;
Atos de Paulo;
Atos de Paulo e Tecla;
Atos de Barnabé, André, Felipe;
Carta de Nosso Senhor a Abgar, rei de Edessa;
Correspondência entre Paulo e Sêneca, etc.
Atualmente, desse grande número de apócrifos, só restam fragmentos.
É preciso ter bem presente que se trata de escritos que pretendem ser conside-
rados sagrados sem que a Igreja os tenha aceito como inspirados. Portanto, embora não
aceitos no cânon dos livros inspirados, têm pretensão de equiparar-se a esses.
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93
Na história da Igreja, o termo apócrifos recebeu cedo um significado
bastante preciso, designando todos os escritores que, de modo e com
feições literárias diversas, mas sempre imitando a literatura bíblica, rei-
vindicavam para si uma autoridade sagrada, às vezes superior à dos
próprios escritos canônicos. Não é fácil dar uma definição deles. Mas
resumindo, podemos dizer que os apócrifos do Novo Testamento são os
escritos que não fazem parte do cânon bíblico do NT, mas pelo título,
pela apresentação, pelo modo de tratar o argumento, e por outros
elementos internos (estilo, gênero literário etc.) e externos se apresentam
como textos canônicos e, tácita ou expressamente, reivindicam uma
autoridade sagrada igual aos do cânon ou pretendem substituí-los ou
completá-los 61.
Quanto aos evangelhos apócrifos, podemos dizer que são aqueles que a Igreja
não aceitou como autêntica tradição apostólica, ainda que normalmente fossem
apresentados com o nome de algum apóstolo. Entre as informações dos Santos Padres,
considerando aqueles que foram conservados pela piedade cristã e os que eram atestados
de uma ou outra maneira em papiros, o número dos "evangelhos apócrifos" conhecidos é
algo superior a cinqüenta.
Tais escritos têm dupla origem:
vários provêm da parte de cristãos simples, admiradores de Jesus e
desejosos de exaltá-lo, a ponto de fazer dele um taumaturgo todo-
poderoso desde a infância. A respectiva linguagem é popular e, por vezes,
incorreta. Os milagres atribuídos a Jesus são extravagantes, ou vez por
outra, de mau gosto. Não são anteriores ao século II;
outros Evangelhos apócrifos têm origem em escolas heréticas,
especialmente em correntes do Gnosticismo dualista (a matéria seria má e
o espírito bom).
Podemos admitir que entre os motivos que originaram esses escritos está o desejo
legítimo de escrever ditos e fatos de Cristo e dar-lhes ampliações e complementações de
acordo com a curiosidade, pois é natural, por exemplo, que o povo quisesse saber muito
mais sobre a "infância" de Jesus do que aquilo que Mateus e Lucas nos contam. O mesmo
vale dizer da mãe de Jesus: seu nascimento, sua infância, sua família etc. Na medida em
que os escritores canônicos eram mais divulgados entre a massa, os fiéis como os pagãos
queriam saber mais sobre a educação e a virgindade de Maria, a vida depois da morte, a
61 MORALDI Luigi, Evangelhos Apócrifos. S. Paulo: Paulus, 1999, pp. 14-15.
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sorte dos justos que morreram antes de Cristo, a história dos apóstolos. Daniel-Rops,
membro da Academia Francesa, em seu livro, afirma:
No extremo fervor desses
primeiros tempos, no ingênuo e terno desejo
de conhecer o maior número possível de pormenores sobre Jesus, outros
escritos tinham surgido ao mesmo tempo que os dos Apóstolos, nos
quais a imaginação popular se tinha insinuado de forma indiscreta.
Além disso, à medida que se iam instaurando certas discussões
teológicas, e que se produziram até certos desvios doutrinais, podiam
ser postos a circular textos devidos a intérpretes demasiado hábeis, e até
a mistificadores, com o fim de favorecer certos desígnios menos retos.
Numa palavra: desde os primeiros tempos da Igreja apareceu essa
literatura que se chama apócrifa, mundo estranho, amálgama de
verdades e delírios, aonde a nossa Idade Média irá buscar muitos temas
plásticos, onde nem tudo é inaceitável, mas que a Igreja teve a prudência
de olhar com desconfiança62.
Como se vê, trata-se simplesmente de textos que, por algum motivo, não eram
lidos no culto público. Esses escritos se referem ao que a imaginação do povo de Deus
concebia, desenvolvendo temas abordados pelos livros canônicos. Não têm
necessariamente algo de proibido, pois existem neles algumas verdades históricas que a
Tradição cristã respeita, como por exemplo: os nomes dos genitores de Maria (Joaquim e
Ana); a apresentação de Maria no templo aos três anos de idade; o nascimento de Jesus
numa caverna entre o boi e o asno; os nomes dos dois ladrões Dimas e Gestas, os três reis
magos com seus nomes Melquior, Gaspar e Baltasar; o encontro de Verônica com o Senhor
na Via Dolorosa...
Em síntese: apócrifo opõe-se a canônico, pois canônico era o livro lido no culto
público, porque considerado Palavra de Deus inspirada aos homens. Como se vê nada
tinha (ou tem) de esotérico, escondido ao grande público.
A seguir apresentamos dois trechos de textos apócrifos a título de ilustração.
Exemplo 1
DO RELATO DO FILÓSOFO ISRAELITA TOMÉ
SOBRE A INFÂNCIA DO SENHOR63
I – Prólogo
Eu, Tomé israelita, julguei necessário dar a conhecer a todos os irmãos, procedentes da
gentilidade, as maravilhas da infância de Nosso Senhor Jesus Cristo, que ele realizou em
62 ROPS, Daniel. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. São Paulo: Quadrante, 1988, p. 260.
63 Evangelhos Apócrifos – tradução e introdução de Urbano Zilles. 3ª. ed. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2004.
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nossa terra, na qual nasceu. Começou da seguinte maneira:
II – Os passarinhos
1 – Quando este menino completou cinco anos de idade, certo dia estava brincando no
leito de um riacho, depois de chover. Recolheu a corrente em pequenos regos, tornando água
instantaneamente cristalina, dominando-a com uma simples palavra.
2 – Depois fez um lodo de barro e com ele formou doze passarinhos. Era sábado, quando fez
isto, e havia outras crianças brincando com ele.
3 – Mas, certo homem judeu, vendo o que Jesus fizera em dia de sábado, dirigiu-se logo a seu
pai José, dizendo-lhe: "Olha, teu filho, que está no arroio, tomou lodo e formou doze
passarinhos, profanando o sábado".
4 – Quando José chegou ao lugar e viu o sucedido, repreendeu-o: "Por que fazes em sábado o
que está proibido?" Mas Jesus, batendo palmas, ordenou aos passarinhos: "Voai!" E os
passarinhos abriram as asas e voaram gorjeando.
5 – Os judeus, ao verem isto, ficaram cheios de admiração e retiraram-se para contar aos
anciãos e chefes o que tiram visto Jesus fazer.
Exemplo 2
XX – A palmeira milagrosa
(Extraído do Evangelho do Pseudo-Mateus,
das narrações da fuga para o Egisto)
1 – Aconteceu que, no terceiro dia da viagem, Maria sentiu-se fatigada pelo exagerado calor do
deserto. E, enxergando uma palmeira, disse a José: ―Gostaria de descansar um pouco à sombra
daquela árvore‖. Com toda pressa José conduziu-a até a palmeira e a fez descer do jumento.
Quando Maria sentou-se, olhou para a copa da palmeira e viu-a cheia de frutos, disse a José: ―Se
possível, eu gostaria de comer algum fruto desta palmeira‖. Mas José respondeu-lhe: ―Admira-me
tu dizeres isto, vendo a altura desta palmeira da qual tu pensas comer frutos. A mim mais me
preocupa a falta de água, pois já acabou aquela que levamos nos odres e não temos mais o que
comer nós e os jumentos‖.
2 – Então o menino Jesus, que repousava alegre no colo da mãe, disse à palmeira: ―Inclina-te,
árvore, e com teus frutos sacia minha mãe‖. A essas palavras, a palmeira inclinou sua copa até aos
pés de Maria, podendo apanhar todos os frutos com os quais todos se alimentaram. Mas, depois de
colhidos todos os frutos, a palmeira ainda continuava nessa posição, esperando que a mesma voz
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lhe ordenasse erguer-se. Por fim Jesus disse-lhe: ―Levanta-te, palmeira, e recolhe teu vigor, pois
serás companheira das minhas árvores que povoam o jardim de meu Pai. E agora faze romper de
tuas raízes o veio de água escondido na terra para que dele brote água com a qual possamos saciar
nossa sede‖. No mesmo instante, a palmeira ergueu-se, e de sua raiz começou a jorrar uma fonte
de água cristalina, muito fresca e clara. Vendo, porém, a água da fonte, todos se encheram de
grande alegria e puderam saciar sua sede como a dos jumentos e dos outros animais. Em seguida,
deram graças a Deus.
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Anexo 3
A HISTORICIDADE DOS EVANGELHOS
Dom Estevao Bettencourt, OSB
Ponderem-se as seguintes razões:
1) Os Evangelhos nos apresentam particularidades históricas, geográficas, políticas e religiosas da
Palestina:
Lc 2, 1; 3, 1s: César Augusto e Tibério imperadores, além dos governantes da
Palestina: Põncio Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás;
Mc 3, 6; Mt 22, 23: os partidos dos fariseus, herodianos, saduceus;
Jo 5, 2: a piscina de Betesda;
Jo 19, 13: o Lithóstrotos ou Gábata...
Ora tais peculiaridades supõem testemunhas que viveram antes do ano de 70 d.C., pois em 70 a
terra de Israel foi invadida e transformada pelos romanos.
2) Os Apóstolos e evangelistas dificilmente poderiam mentir, pois viviam em ambiente hostil,
pronto a denunciar qualquer desonestidade da parte dos mensageiros da Boa-Nova.
Sem dúvida, a fantasia dos discípulos imaginou muitas lendas a respeito de Jesus. Todavia
esses episódios fantasistas não foram reconhecidos pela Igreja, e por isso passavam a constituir
a literatura apócrifa. Nesta nota-se a tendência a apresentar um Jesus maravilhoso, que desde a
infância surpreende seus pais e amiguinhos pelos prodígios que realiza. O estilo dos
Evangelhos canônicos é, ao contrário, muito simples e despretensioso, deixando mesmo o leitor
diante de passagens que se tornaram "cruz dos intérpretes" (cf. Mc 3, 21; 6, 5; 10, 10...); tem-se
a impressão de que os Evangelistas possuíam a certeza de estar transmitindo a verdade...
verdade que não precisaria de ser artificialmente embelezada.
3) Os Apóstolos e Evangelistas nunca teriam inventado um Messias do tipo de Jesus. Com efeito,
não cabia na mente dos judeus o conceito de Deus feito homem e homem crucificado. São
Paulo mesmo notava que tal concepção era escândalo para os judeus e loucura para os gregos
(cf. 1 Cor 1, 23). Os judeus, através dos séculos, tendiam a exaltar cada vez mais a
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transcendência de Deus, distanciando-o dos homens.
4) A figura de Jesus é de tal dimensão intelectual, moral e psicológica que seria difícil a rudes
homens da Galiléia inventá-la.
5) Quanto aos milagres em especial, se Jesus não os tivesse realizado, não se explicaria o
entusiasmo do povo e dos discípulos, que sobreviveu à morte do Senhor na Cruz. Com efeito, a
pregação de Jesus não era apta a suscitar fácil entusiasmo: ao povo dominado pelos estrangei-
ros, Jesus ensinava o amor aos inimigos; proibia o divórcio, que era habitual em Israel; incutia
a abnegação e a renúncia... Dificilmente um tal pregador teria sido endeusado se não houvesse
realizado sinais que se impusessem aos discípulos. Ao contrário, se admitimos a historicidade
dos milagres de Jesus, compreendemos o fascínio exercido pelo Mestre... Em particular, a
ressurreição corporal de Jesus sempre foi considerado o milagre decisivo que autentica a
pregação cristã (cf. 1Cor 15,14.17); ora, se não houvesse ressurreição de Jesus, o Cristianismo
estaria baseado sobre mentira, fraude ou doença mental e alucinação de alguns poucos
pescadores da Galiléia; tal conseqüência seria um autêntico portento, talvez mais milagroso do
que a própria ressurreição corporal de Jesus.
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Anexo 4
UMA COMUNIDADE A C A M I N H O
Sobre a Igreja e sua renovação permanente64
Nota preliminar
Este texto foi preparado como discurso para o "Meeting pela amizade entre os
povos", organizado pelo movimento "Comunione e Liberazione" (Comunhão e Libertação)
em Ríminí. O tema geral do encontro foi definido em tomo de três figuras emblemáticas:
―L’ammiratore (o admirador) -Tomás Becket – Einstein‖, às quais o texto se refere diversas
vezes. A meu discurso coube o tema: ―Una compagnia sempre reformanda (Uma
comunidade em constante renovação)‖. A primeira parte faz referência a este título, amplo
e por isso um tanto vago.
1. Descontentamento com a Igreja
Não é preciso uma grande imaginação para perceber que a "comunidade" sobre a
qual quero falar aqui é a Igreja. O termo "Igreja" possivelmente foi evitado no título porque
provoca espontaneamente reações de defesa na maior parte das pessoas de hoje. Já ouvimos
falar demais da Igreja - dizem consigo - e na maioria das vezes não foi nada agradável. A
palavra e a realidade da Igreja caíram em descrédito. E parece que esse clima desfavorável
nem mesmo será superado por uma reforma permanente. Ou simplesmente até agora não
se descobriu o tipo de reforma que poderia transformara Igreja numa comunidade a
caminho, na qual valeria a pena conviver?
Mas comecemos com uma pergunta: Por que a Igreja desagrada a tantas pessoas e
até mesmo a crentes, a pessoas que até ontem poderiam ser contadas entre as mais fiéis e
talvez ainda hoje o sejam, mesmo sofrendo? Os motivos são diversos e até mesmo opostos,
conforme a posição de cada um. Alguns sofrem porque a Igreja se adaptou
demasiadamente aos critérios do mundo; outros se aborrecem, porque ela continua ainda
muito longe deste mundo. Para a maioria das pessoas o primeiro motivo deste
aborrecimento com a Igreja é o de ser Igreja uma instituição semelhante a muitas outras e,
64 Fonte: RATZINGER, Joseph. Compreender a Igreja hoje: vocação para a comunhão, 3ª. ed., Petrópolis, Vozes, 2006,
pp. 75-87.
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Introdução à Teologia II
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como tal, limitar liberdade. Esta sede de liberdade é a forma pela qual se exprimem, hoje, a
nossa ânsia de redenção e o sentimento de que ainda não fomos salvos, de que ainda
continuamos alienados. O clamor por liberdade quer uma existência que não seja cercada
por predeterminações capazes de impedir meu próprio desenvolvimento ou o caminho
que eu gostaria de trilhar. Entretanto, encontramos, por toda parte, essas barreiras que nos
detêm e nos impedem de ir adiante. Tais barreiras erguidas pela Igreja parecem ser duas
vezes mais pesadas porque penetram em nossa esfera mais pessoal e mais íntima. Na
realidade, as normas de vida da Igreja são muito mais do que regras de trânsito destinadas
a evitar, o quanto possível, choques na convivência humana. Elas dizem respeito à minha
caminhada interior e dizem como devo entender e atuar minha liberdade. Exigem de
mim que decisões que não posso tomar sem a dor da renúncia. Não estão querendo
negar-nos os mais belos frutos do jardim da vida? Porventura, com a estreiteza de tantos
preceitos e proibições, não estão barrando o caminho que nos leva a horizontes mais
largos? O pensamento e a vontade não são privados de sua grandeza? A libertação não
deve ser necessariamente uma fuga desta tutela espiritual? A única reforma verdadeira
não deverá consistir em derrubar tudo isto? Mas, neste caso, que ainda restaria desta
comunidade em marcha?
A amargura para com a Igreja tem ainda um motivo mais específico. Com efeito,
em um mundo dominado por uma rígida disciplina e por pressões inevitáveis, a Igreja
sempre de novo se torna objeto de uma esperança silenciosa. Espera-se que ela seja como
uma ilha de vida melhor em meio a tudo isto, um pequeno oásis de liberdade, para onde
pudéssemos retirar-nos de vez em quando. A decepção ou a ira contra a Igreja tem um
caráter particular, porque silenciosamente dela se espera mais que de todas as instituições
mundanas. Ela deveria ser a realização do sonho de um mundo melhor. No mínimo
gostaríamos de experimentar nela o gosto da liberdade, o gosto de sermos redimidos, a
sensação de sairmos da caverna, como diz São Gregório Magno, inspirando-se em Platão.
Mas como a Igreja, em seu aspecto concreto, está muito longe desses sonhos, sabendo demais
à instituição e tendo aspecto de tudo o que é humano, ela é objeto de uma cólera
particularmente amarga; cólera, todavia, que não apaga o interesse pela Igreja, porque não
se pode extinguir o sonho que nos levou a ela. Uma vez que a Igreja não é como no-la
representam os sonhos, procuramos desesperadamente conformá-la aos nossos desejos:
um lugar onde gozemos de todas as liberdades, um espaço em que se rompam todos os
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Introdução à Teologia II
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nossos limites e onde experimentemos aquela utopia que deve existir em algum lugar. Da
mesma forma como gostaríamos de construir um mundo melhor com nossa atividade
política, assim também pensamos que deveríamos finalmente - talvez como primeira etapa
rumo a esse objetivo - construir a Igreja melhor- uma Igreja plena de humanidade, plena de
senso fraterno e criatividade, um lugar de reconciliação de tudo e para todos.
2. Reforma inútil
Mas de que modo isto deve acontecer? Como pode ter sucesso uma tal reforma?
Ora bem, devemos simplesmente começar, dizem-nos. Isto é dito muitas vezes, com a
ingênua presunção do iluminista convicto de que as gerações passadas não compreenderam
a realidade ou eram temerosas e pouco iluminadas. Porém, dizem, temos a coragem e a
inteligência para fazê-lo. Por mais resistência que os reacionários e "fundamentalistas"
oponham a este nobre objetivo é preciso começá-lo.
Existe uma receita muito clara para um primeiro passo. A Igreja não é uma
democracia. Ao que parece, ela ainda não incorporou na sua constituição aquele patrimônio
de direitos à liberdade que o iluminismo conquistou e desde então foi reconhecido como a
regra fundamental das formações políticas e sociais. Assim parece a coisa mais normal do
mundo recuperar, afinal, o que ainda falta e começar a integrar este patrimônio de estruturas
de liberdade. Este caminho – assim o afirmam – conduz da Igreja assistencialista à Igreja
comunidade. Ninguém deve ser mais receptor passivo dos dons próprios da existência
cristã. Pelo contrário, todos devem ser sujeito atuantes. A Igreja já não deve ser aplicada de
cima para baixo. Não! Somos nós mesmos que a "faremos" e a faremos sempre nova.
Assim
ela se tornará finalmente a "nossa" Igreja e nós seremos os responsáveis por ela. O aspecto
passivo dá lugar ao aspecto ativo. A Igreja surge através de discussões, compromissos e
decisões. No debate evidencia-se o que hoje se pode exigir, e o que por todos pode ser
visto, hoje ainda, como parte da fé ou diretrizes morais. Cunham-se novas formulas de fé
abreviadas. Na Alemanha foi dito, em nível eclesiástico bastante elevado, que a
própria Liturgia não deve mais corresponder a um esquema prefixado, mas deve surgir no
próprio lugar, em determinada situação, através da comunidade concreta. Mesmo esta
comunidade não deve ser algo de preconcebido, mas feita por si mesma, expressão da própria
identidade. Neste caminho a palavra da Escritura constitui geralmente um pequeno obstáculo,
mas não é possível renunciar inteiramente a ela. É então preciso selecionar os textos bíblicos, e
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não são muitos os que se deixam sem dificuldade empregar e adaptar àquela auto-realização à
qual a Liturgia - segundo dizem - é destinada.
Mas esta obra de reforma, através da qual agora afinal a autogestão democrática se
introduz, mesmo no interior da Igreja, substituindo qualquer imposição hierárquica, logo
suscita várias questões. Quem tem agora propriamente o direito de tomar decisões? Com base
em que isto se faz? Na democracia política este problema se resolve com o sistema da
representação: nas eleições as pessoas escolhem seus representantes, que tomarão decisões por
elas. Este encargo é limitado no tempo e seu alcance circunscrito, em grandes linhas, pelo
sistema partidário, e compreende somente aqueles aspectos da ação política que a
constituição atribui aos órgãos representativos. Mas também aqui encontramos problemas: a
minoria deve curvar-se diante da maioria, e esta minoria pode ser muito grande. Além disso,
nem sempre existe a garantia de que o representante que escolhi vai agir e falar realmente de
conformidade como que eu penso. Desta forma, observando-se as coisas de mais de perto,
percebe-se que mesmo a maioria não pode considerar-se totalmente como sujeito ativo do
acontecimento político, devendo assim aceitar "decisões vindas de fora", para não colocar em
risco todo o sistema. Existe, no entanto, um problema geral mais importante com relação a este
ponto. Tudo o que os homens fazem pode ser anulado por outros. Nem tudo o que provém do
gosto humano pode agradar a outros. Tudo o que uma maioria decide pode ser revogado por outra
maioria. Uma Igreja que se baseia nas decisões da maioria torna-se uma Igreja meramente humana.
Reduz-se ao nível do factível, do plausível, do que é fruto de meras opiniões. A expressão ―creio‖ é
simplesmente sinônima de ―nós somos da opinião‖. Uma Igreja que se faz a si mesma tem o sabor
do ―sim mesmo‖ que desagrada a outros ―si mesmos‖ e bem cedo revela sua insignificância. Reduz-
se ao domínio do empírico: com uma Igreja assim ninguém pode mais sonhar.
3. A essência da verdadeira reforma
O ativista é o contrário daquele que admira ("ammiratore", admirador). Ele restringe
o campo de sua própria razão, perdendo de vista o mistério. Quanto mais quisermos decidir
e agir na Igreja por nossa própria conta, tanto menos espaço haverá dentro dela para todos nós.
A grande dimensão libertadora da Igreja não consiste naquilo que nós próprios fazemos, mas
naquilo que nos é dado gratuitamente e que não provém de nossa vontade nem de nossa
invenção; é algo que nos precede e vem até nós, sem ter sido imaginado por nós e é "maior do
que o nosso coração" (cf. 1Jo 3,20). A reformatio necessária em todas as épocas não plasma a
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Introdução à Teologia II
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"nossa" Igreja, inventada segundo nosso capricho, mas exige a permanente abolição de
nossas próprias estruturas, em favor da pura luz que nos vem do alto como irrupção da
liberdade verdadeira.
Permiti-me que vos explique este meu pensamento com uma imagem que descobri em
Michelangelo, que a retomou de antigos conhecimentos da mística e da filosofia cristãs. Com
olhar de artista, Michelangelo via na pedra que estava diante dele a imagem pura que só
esperava para ser libertada e trazida à luz. Para ele, a tarefa do artista consistia apenas em
retirar da pedra aquilo que encobria a imagem. Michelangelo considerava a verdadeira
atividade artística como um libertar e trazer à luz, e não como um fazer. Encontramos a
mesma idéia, aplicada ao campo antropológico, em São Boaventura que, inspirando-se na
imagem do escultor, explica o caminho através do qual o homem se torna autenticamente ele
próprio. O grande teólogo franciscano afirma que o escultor não faz uma coisa. Seu trabalho é
uma ablatio: consiste em eliminar aquilo que é impróprio. Deste modo, com a ablatio surge a
nobilis forma – a forma nobre. Assim também o homem deve, antes e primeiro que tudo,
receber a purificação, para que nele resplandeça a imagem de Deus - a purificação pela qual
o escultor, ou seja, Deus, o liberta de todas as escórias que encobrem seu verdadeiro
semblante e fazem com que ele pareça um bloco disforme de pedra, enquanto nele já habita a
forma divina.
Se a entendermos corretamente, poderemos encontrar nesta imagem o modelo
fundamental para a reforma da Igreja. Esta sempre precisará de novas estruturas humanas
mediante as quais possa falar e agir em cada época histórica. Instituições eclesiásticas e
ordenamentos jurídicos não são maus. Pelo contrário, em certo sentido são simplesmente
necessários e indispensáveis. Mas envelhecem e podem se apresentar como o essencial,
desviando o olhar do que é verdadeiramente essencial. Por isto devem ser sempre eliminadas
como andaimes desnecessários. Reforma é sempre ablatio: uma ablação, para que se torne
visível a forma nobilis, a face da esposa e com ela a face do próprio Esposo, o Senhor vivo.
Essa ablatio, essa ―teologia negativa‖ é um caminho rumo a uma meta inteiramente
positiva. Só assim o divino penetra e só assim surge uma congregatio, uma assembléia,
uma purificação, aquela comunidade pura e almejada, na qual um "eu" não se opõe a outro
"eu". Pelo contrário, a doação, o entregar-se com confiança, que fazem parte do amor,
tornam-se um receber recíproco de todo o bem e de tudo o que é puro. Assim vale para
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todos a palavra do Pai cheio de bondade que lembra ao filho mais velho invejoso o que
constitui o conteúdo de toda liberdade e uma utopia que se tornou realidade: "Tudo o que
é meu é teu..." (Lc 15,31; cf. Jo 17,10).
A verdadeira reforma é, pois, ablatio (ablação) que, como tal, se torna congregatio
(assembléia). Procuremos compreender um pouco mais concretamente esta idéia
fundamental. No início dissemos que iríamos contrapor ao ativista o admirador
(ammiratore), e nós optamos por este. Mas que entendemos por esta contraposição? O
ativista coloca sua atividade acima de tudo, limitando seu horizonte ao âmbito do palpável
objeto de sua ação. Na realidade, ele só vê objetos. É incapaz de perceber aquilo que é
maior do que ele, porque isto imporia um limite à sua atividade. Ele restringe o mundo ao
âmbito do empírico. O homem é amputado. O ativista constrói o seu próprio cárcere
contra o qual, em seguida, protesta em voz alta. Saber admirar-se significa dizer um não ao
empírico, ao imanente como limite último, e prepara o homem para o ato de fé que
escancara os horizontes do Eterno, do Infinito. E só o ilimitado é suficientemente amplo
para a nossa natureza, para a última vocação de nosso ser. Se este horizonte desaparece, a
liberdade que resta se torna pequena
demais e toda libertação que então se nos oferece será
apenas um substitutivo insípido que jamais poderá satisfazer. A primeira e fundamental
ablatio, necessária à Igreja, é sempre o próprio ato de fé, que rompe as barreiras do finito e
nos abre nossos espaços ao infinito. A fé nos conduz a "um lugar espaçoso", como nos
dizem os Salmos (p. ex. Sl 31[30],9). O pensamento moderno nos fechou cada vez mais no
cárcere do positivismo, condenando-nos ao pragmatismo. Este sabe alcançar muitas
coisas, sabe viajar à Lua e mesmo mais longe, por espaços incomensuráveis. Não obstante,
permanecemos sempre no mesmo lugar, porque não ultrapassamos a verdadeira fronteira
do quantitativo e do factível. Alberto Camus descreve o absurdo desta forma de liberdade
na figura do imperador Calígula. Este tinha tudo à disposição; entretanto, tudo, para ele,
era pouco. Em seu louco desejo de ter sempre mais, e coisas cada vez maiores, ele grita:
Quero a Lua; dai-me a Lua. Hoje podemos mais ou menos ter a Lua, mas se não se abrem as
fronteiras entre terra e céu, entre Deus e o mundo, a Lua será apenas um pedaço a mais da
Terra e o termos chegado lá não nos aproxima um passo sequer da liberdade e da
plenitude tão almejadas.
A libertação fundamental que a Igreja nos pode oferecer consiste em nos manter
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dentro do horizonte do eterno e em fazer-nos sair dos limites de nosso saber e de nosso
poder. Por isto, a própria fé, em toda a sua grandeza e amplitude, é sempre a reforma
essencial de que precisamos. É sempre a partir dela que devemos reexaminar as estruturas
humanas que se constituíram dentro da Igreja. Isto significa que a Igreja deve ser a ponte da
fé e não pode, principalmente na vida de suas associações dentro do mundo, colocar-se
como um fim em si mesma. Encontramos hoje, aqui e ali, mesmo em altos círculos ecle-
siásticos, a idéia de que uma pessoa é tanto mais cristã quanto mais se envolve em
atividades eclesiásticas. Pratica-se uma espécie de terapia ocupacional eclesiástica. Para
cada um arranja-se uma comissão ou, de qualquer modo, uma função dentro da Igreja.
Fazem crer que sempre se deve falar da Igreja ou fazer alguma coisa que diga respeito a
ela. Mas um espelho que só reflete a si mesmo não é mais espelho. Uma janela que não
deixa o olhar abrir-se livremente, mas se interpõe como um obstáculo entre o observador e a
paisagem, não tem razão de existir. Pode acontecer que uma pessoa exerça
ininterruptamente atividades dentro das associações eclesiásticas e, no entanto, não ser
cristã. Pode ocorrer que alguém viva da Palavra e dos sacramentos e pratique o amor que
vem da fé, sem jamais ter sido visto em associações eclesiásticas, sem se ter ocupado com
novidades da política eclesiástica, sem ter participado de sínodos e ter votado neles, e, no
entanto, ser um verdadeiro cristão. Não precisamos de uma Igreja mais humana;
precisamos de uma Igreja mais divina, que será então realmente humana. É por isto que
tudo o que é feito pelo homem dentro da Igreja deve ser visto em seu caráter de puro
serviço, subordinado ao essencial.
A liberdade que nós, com razão, esperamos da Igreja e dentro da Igreja não se
realiza pelo simples fato de introduzirmos nela o princípio da maioria. Ela não depende de
que uma maioria mais ampla possível prevaleça sobre uma minoria mais estrita possível.
Ela não depende de que alguém possa impor sua própria vontade aos outros, mas de que
todos se sintam ligados à palavra e à vontade aquele Único, que é nosso Senhor e nossa
liberdade. A atmosfera se torna pesada e sufocante na Igreja, quando os que estão
revestidos do ministério se esquecem de que o Sacramento não é uma atribuição de
poder, mas uma expropriação de mim mesmo em favor daquele em cujo nome devo falar
e agir. Mas quando a uma maior responsabilidade corresponde a uma maior expropriação
de seu eu, ninguém é escravo do outro; então reina o Senhor e vale o princípio: "O Senhor
é o Espírito, e, onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade" (2Cor 3,17). Quanto
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mais estruturas nós construímos, ainda que sejam as mais modernas, tanto menos espaço
existe para o Espírito, menos espaço para o Senhor e menos espaço para a liberdade. Julgo
que sob este ponto de vista deveríamos começar um exame de consciência sincero em
todos os níveis dentro da Igreja. Isto deveria ter conseqüências concretas em todos os
níveis e trazer uma ablatio que deixasse transparecer novamente a verdadeira fisionomia
da Igreja e pudesse nos devolver, de maneira inteiramente nova, o sentimento da
liberdade e de estarmos em casa.
4. Moral, perdão e expiação: o centro pessoal da reforma
Antes de prosseguirmos, consideremos por um momento aquilo que dissemos
até agora. Falamos de duas "ablações": de uma dupla libertação, que é um ato duplo de
purificação e de renovação. Primeiramente falamos da fé que rompe o muro do finito e
liberta o olhar para a amplitude do Eterno, e não só o olhar, como também o caminho.
Com efeito, a fé não é apenas conhecer; é também operar. Não é só uma brecha aberta no
muro; é também uma mão libertadora que nos tira da caverna. Daí extraímos as
conseqüências para as instituições: a estrutura essencial da Igreja precisa sempre de novo
expressar-se em formas concretas, para permear com sua vida cada época e cada espaço;
mas essas formas importantes, porém contingentes, jamais devem substituir-se ao essencial.
A Igreja não existe para nos manter ocupados, como uma instituição mundana, nem para
se conservar; ela existe, para ser em todos nós abertura e passagem para a vida eterna.
Agora devemos dar mais um passo e transpor tudo isto do plano geral e objetivo
para o plano pessoal. Com efeito, aqui também se faz necessária uma "ablação" libertadora.
Nossos irmãos nem sempre manifestam a "forma nobre", a imagem de Deus neles inscrita.
Primeiramente vemos apenas a imagem de Adão, a imagem do homem decaído ainda que
não totalmente destruído. Vemos a crosta de pó e de sujeira que encobriram a imagem. Por
isto, todos nós precisamos do verdadeiro Escultor, que elimine aquilo que deforma a
imagem. Precisamos do perdão, que é o cerne de todas as reformas verdadeiras
Certamente não é por acaso que a remissão dos pecados ocupa uma parte essencial nas três
etapas decisivas da Igreja nascente, narradas pelos Evangelhos. Em primeiro lugar está a
entrega das chaves a Pedro. O poder de ligar e desligar, de abrir e fechar, de que fala o
Evangelho, é, em seu núcleo, o encargo de fazer entrar, de acolher em casa, de perdoar (Mt
16,19). Encontramos a mesma coisa, de novo, na Última Ceia, onde a partir do corpo de
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Cristo e no corpo de Cristo é inaugurada a nova comunidade. Esta se torna possível,
porque o Senhor derramou seu sangue "por muitos para a remissão dos pecados" (Mt
26,28). Por último, na sua primeira aparição aos Onze, o Ressuscitado funda a
comunidade de sua paz, concedendo-lhes o poder de perdoar (Jo 20,19-23). A Igreja não é
a comunidade daqueles que "não precisam de médico" (Mc 2,17), mas comunidade de
pecadores convertidos que vivem da graça e a comunicam aos outros.
Se lermos atentamente o Novo Testamento, veremos que o perdão nada tem em si
de mágico; tampouco o perdoar é um esquecimento fingido ou um fazer de conta que nada
aconteceu. É um processo real de mudança, como o que o escultor opera. Retirar a culpa
realmente remove alguma coisa. A graça do perdão em nós se manifesta na penitência.
Neste sentido, o perdão é um processo ativo e passivo.
A poderosa palavra de Deus
dirigida a nós produza dor da mudança e se torna em nós transformação ativa. O perdão e
a penitência, a graça e a conversão pessoal não estão em contradição entre si, mas são as
duas faces de um único e mesmo fato. Esta fusão de atividade e passividade exprime a
forma essencial da existência humana, porque toda a nossa capacidade criadora começa
com o fato de sermos criados, de termos nossa capacidade criadora por pura iniciativa
criadora de Deus.
Chegamos aqui a um ponto verdadeiramente central: acredito que o núcleo da
crise espiritual de nossa época tem suas raízes no obscurecimento acerca da graça do
perdão. Antes, porém, destaquemos o aspecto positivo da atualidade: a dimensão moral
volta pouco a pouco a gozar de consideração. Começa a ser reconhecido, ou melhor, tor-
nou-se evidente que todo progresso técnico é discutível e, em última análise, destrutivo,
se não corresponder a um avanço moral. Reconhece-se que não existe reforma do homem
ou da humanidade sem uma renovação moral. Mas, no fundo, o clamor pela moral fica
sem força, porque os parâmetros se escondem sob um nevoeiro de discussões. Na
realidade, o homem não pode suportar pura e simplesmente a moral, não pode viver dela:
ela se torna para ele "lei" que provoca resistência e gera o pecado. Por isso, onde o perdão,
um perdão verdadeiro e eficaz, não é reconhecido ou não é objeto de fé, a moral é
delineada de tal maneira que as condições do pecado para cada homem jamais possam se
verificar. A atual discussão sobre a moral tende, em grande parte, a libertar o homem da
culpa, fazendo com que as condições de sua possibilidade jamais possam existir. Vem-
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nos à mente a frase mordaz de Pascal: Ecce patres, qui tollunt peccata mundi! Eis os
padres que tiram o pecado do mundo. Segundo esses "moralistas" simplesmente não
existe mais culpa. Naturalmente, esta maneira de libertar o mundo é demasiadamente
banal. Os homens assim libertados sabem muito bem que tudo isto não é verdadeiro, que
existe o pecado, que eles próprios são pecadores e que deve existir uma forma eficaz de
superar o pecado. O próprio Jesus não chama aqueles que já se libertaram por si mesmos e
que, por isto, como acreditam, não precisam dele. Ele chama aqueles que sabem que são
pecadores e por isto dele precisam. A moral só conserva sua seriedade, quando existe o
perdão, um perdão verdadeiro e eficaz; do contrário, ela recai em um puro condicional
vazio. Mas só existe o verdadeiro perdão, se se pagou um "preço", um valor
correspondente, se houve desagravo pela culpa, se existe expiação. Não se pode romper o
entrelaçamento que existe entre moral, perdão e expiação; se faltar um dos elementos, todo
o resto cai por terra. Este círculo sempre só existe como um todo; depende dele a salvação
ou não salvação do homem. Nos cinco livros de Moisés, a Torá, esses três elementos se
acham indissoluvelmente ligados entre si, e por isto não é possível retirar desta peça
essencial do cânon do Antigo Testamento uma lei moral sempre válida e deixar o resto
com o passado, à maneira iluminista. Esta forma de atualização moralista do Antigo
Testamento acaba necessariamente em fracasso; foi neste ponto que consistiu o erro de
Pelágio, o qual tem, hoje, mais seguidores do que pode parecer à primeira vista. Jesus, pelo
contrário, cumpriu toda a lei, e não só uma parte dela, e a renovou assim desde as bases. Ele
mesmo, que padeceu para expiar toda culpa, é expiação e perdão, e, por isto, é também o
único fundamento seguro e sempre válido de nossa moral. Não se pode dissociar a moral
da Cristologia, porque não se pode separá-la da expiação e do perdão. Em Cristo se
cumpriu toda a lei e com isto a moral tornou-se uma exigência verdadeira e possível para
nós. Destarte, é a partir do núcleo da fé que se abre continuamente o caminho da
renovação para cada pessoa, para a Igreja como um todo e para a humanidade.
5. O sofrimento, o martírio e a alegria da redenção
Haveria muitas coisas ainda a dizer sobre isto. Procurarei, no entanto, indicar
muito brevemente, nesta parte final, aquilo que em nosso contexto me parece a coisa
mais importante. O perdão e sua realização em mim pela via da penitência e do
seguimento de Cristo é, antes do mais, o centro pessoal de toda renovação. Mas porque o
perdão toca a pessoa em seu núcleo mais profundo, ele congrega na unidade e é também
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o centro da renovação da comunidade. Com efeito, se são retirados de mim o pó e a
sujeira que tornam irreconhecível a imagem de Deus em mim, eu me torno semelhante ao
outro, que é também imagem de Deus, e sobretudo me tomo semelhante ao Cristo que é
a imagem sem limites, o modelo segundo o qual fomos criados. Paulo expressa este
processo em termos verdadeiramente drásticos: a velha imagem passou, surgiu uma
nova (2Cor 5,17); não sou mais eu que vivo, mas é o Cristo que vive em mim (Gl 2,20).
Trata-se de um processo de morte e nascimento. Eu sou arrancado de meu isolamento e
recebido em uma nova comunidade; meu eu foi inserido no eu do Cristo e assim unido
ao de todos os meus irmãos. Só a partir desta profundidade da renovação da pessoa é
que nasce a Igreja, nasce a comunidade que nos une e nos sustenta na vida e na morte. Só
quando consideramos tudo isto é que vemos a Igreja na sua verdadeira grandeza. A Igreja
não é somente um pequeno grupo de ativistas que se reúnem em um certo lugar para pôr
em movimento algumas atividades comunitárias. A Igreja também não é apenas o grupo
daqueles que se reúnem aos domingos para celebrar a Eucaristia. Enfim, a Igreja é mais do
que Papa, bispos e sacerdotes, portadores do ministério sacramental. Todos aqueles que
mencionamos pertencem à Igreja, mas os limites da "comunidade em marcha"
(compagnia), na qual ingressamos através da fé, se estendem para além da morte. Dela
fazem parte todos os santos, desde Abel e Abraão e todas as testemunhas da esperança,
das quais, nos fala o Antigo Testamento, passando por Maria, a Mãe do Senhor e seus
Apóstolos, por Thomas Becket e Thomas Morus, até Maximiliano Kolbe, Edith Stein,
Pier Giorgio Frassatti. Dela fazem parte os desconhecidos, os inominados, "cuja fé só Ele
conhece". Dela fazem parte os homens de todos os lugares e de todas as épocas, cujo
coração se expande, no amor e na esperança, até o Cristo, "autor e plenificador da fé",
como o chama a Carta aos Hebreus (12,2). Eles, os santos, são os que formam a verdadeira
maioria determinante, pela qual nos orientamos. É a eles que nos atemos. Eles traduzem o
divino no humano, o eterno no tempo. Eles são os nossos mestres de humanidade, que não
nos abandonam na dor e na solidão, e mesmo na hora da morte caminham ao nosso lado.
Aqui tocamos um ponto muito importante. Uma visão do mundo incapaz de dar
sentido também ao sofrimento e de transformá-lo em algo de precioso não serve para
nada. Falha precisamente quando surge a questão decisiva da existência. Aqueles que
diante do sofrimento só sabem dizer que ele deve ser combatido nos enganam. Evidente-
mente é preciso tudo fazer para aliviar o sofrimento dos inocentes e limitar a dor. Mas
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não existe vida humana sem sofrimento, e quem não é capaz de aceitar o sofrimento,
perde aquelas purificações, sem as quais não há amadurecimento humano. Na
comunhão como Cristo a dor se toma plena de sentido, não só para mim mesmo, como
processo de ablatio, no qual Deus retira de mimas escórias que encobrem sua imagem,
mas também para todos, de modo que podemos
dizer com São Paulo: "Agora eu me
regozijo nos meus sofrimentos por vós, e completo, na minha carne, o que falta das
tribulações de Cristo pelo seu corpo que é a Igreja" (Col 1,24).
Thomas Becket, que, juntamente com a figura do admirador (ammiratore), e de
Einstein, está por trás dessas nossas considerações, anima-nos a dar o passo final. A vida
vai muito mais além da nossa existência biológica. Quando não existe mais nada pelo
qual valha a pena morrer, também a vida não vale mais a pena. Quando a fé nos abre o
olhar e dilata nosso coração, esta outra frase de São Paulo adquire toda a sua força e luz:
"Ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo, porque se vivemos é para o
Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer
vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor" (Rm 14,7-8). Quanto mais estivermos
radicados na comunidade em marcha com Jesus Cristo e com todos os que lhe pertencem,
tanto mais nossa vida será sustentada por aquela confiança irradiante que São Paulo
exprimiu em outra frase: "Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os
anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura nem
a profundeza, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus
manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 8,38s).
Caros amigos, devemos nos deixar encher por esta fé. Então a Igreja crescerá em
nós como comunhão no caminho rumo à verdadeira vida, e então ela se renovará de dia
para dia. Então se tornará a grande casa com muitas moradas. Então a multiplicidade
dos dons do Espírito poderá operar nela, e veremos "como é bom e suave habitarem juntos
os irmãos... É como o orvalho do Hermon que desce sobre o monte Sião; porque aí o
Senhor nos dá a bênção e a vida para sempre" (Sl 133,13).
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Anexo 5
OS DEZ MANDAMENTOS
Êxodo 20, 2-17 Deuteronômio 5, 6-21 Fórmula Catequética
Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito,
dessa casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti
imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe
lá em cima, nos céus, ou embaixo da terra, ou nas águas
que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante
desses deuses e não os servirás, porque eu, o Senhor teu
Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniqüidade dos
pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles
que me odeiam;
e faço misericórdia até à milésima geração àqueles que me
amam e guardam os meus mandamentos.
Eu sou o Senhor teu Deus,
aquele que te fez sair da
terra do Egito, da casa da
servidão.
Não terás outros deuses
diante de mim...
Amar a Deus sobre
todas as coisas.
Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus,
porque o Senhor não deixará impune aquele que
pronunciar em vão seu nome.
Não pronunciarás em vão
o nome do Senhor teu
Deus...
Não tomar seu santo
nome em vão.
Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo.
Trabalharás durante seis dias e farás todas as suas obras.
O sétimo dia, porém, é sábado do Senhor, teu Deus. Não
farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua
filha, nem o teu escravo nem a tua escrava, nem o teu
animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas.
Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e
tudo o que eles contêm, mas repousou no sétimo dia; por
isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou.
Guarda o dia do sábado
para santificá-lo...
Guardar domingos e
festas de guarda.
Honra teu pai e tua mãe, para que prolongues os teus dias
na terra que o Senhor teu Deus te dá.
Honra teu pai e tua mãe... Honrar pai e mãe.
Não matarás. Não matarás. Não matar.
Não cometerás adultério. Não cometerás adultério. Não pecar contra a
castidade.
Não roubarás. Não roubarás. Não furtar.
Não apresentarás um falso testemunho contra o teu
próximo.
Não apresentarás um falso
testemunho contra o teu
próximo.
Não levantar falso
testemunho.
Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás sua
mulher, nem seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem
seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu
próximo.
Não desejar a mulher
do próximo.
Não cobiçarás a mulher do
teu próximo.
Não desejarás coisa
alguma que pertença a teu
próximo.
Não cobiçar as coisas
alheias.
Estes dez mandamentos resumem-se em dois que são:
Amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a nós mesmos (cf. Mt 22,37).
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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