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FILOSOFIA PARA ADMINISTRAÇÃO E CIÊNCIAS CONTÁBEIS. APOSTILA COMPLETA DO CURSO. PROFESSOR: ANTONIO SATURNINO BRAGA 2013/2. 2 SUMÁRIO PRIMEIRA PARTE: IMAGENS DA NATUREZA E DA RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO. - Tópico 1. Apresentação Geral. Página 03. Primeira Seção da Primeira Parte: Esquema histórico das Imagens de Natureza. - Tópico 2: O surgimento da imagem lógico-científica da natureza. Página 08. - Tópico 3: Ciência antiga: a imagem de mundo e de ciência típica do período antigo e medieval. Página 12. - Tópico 4: Ciência moderna. Imagem de mundo e de ciência inaugurada na revolução científica do século XVII. Página 16. Segunda Seção da Primeira Parte: As Imagens da relação entre sujeito (do conhecimento) e objeto (do conhecimento). - Tópico 5. Esquema geral da segunda seção da primeira parte. Página 21. - Tópico 6: Empirismo e Racionalismo no século XVII. Página 23. - Tópico 7: Empirismo e Idealismo no século XVIII. Página 29. - Tópico 8: Empirismo Lógico e Racionalismo Crítico de Popper. Página 36. - Tópico 9: Reflexões sobre os limites e as condições de aplicação do método hipotético-dedutivo (Popper). Página 42. - Tópico 10: Positivismo e Construtivismo de Thomas Kuhn. Página 48. - Tópico 11: Positivismo e Construtivismo nas esferas da Teoria da Sociedade e da Teoria das Organizações. Pg. 53. SEGUNDA PARTE: IMAGENS DA SOCIEDADE E IMAGENS DAS ORGANIZAÇÕES. - Tópico 12: Apresentação Geral da Segunda Parte. Página 59. - Tópico 13: Mecanicismo. Página 61. - Tópico 14: Materialismo Histórico (Marxismo Ortodoxo). Página 65. - Tópico 15: Funcionalismo. Página 72. - Tópico 16: Abordagem Interpretativa (Hermenêutica). Página 78. - Tópico 17: Alguns conceitos da sociologia de Max Weber, um dos principais expoentes da abordagem interpretativa. Página 84. - Tópico 18: A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Habermas. Página 91. - Tópico 19: Algumas relações entre as imagens da sociedade e as imagens da organização expostas por Gareth Morgan. Pag. 101. 3 Tópico 1. APRESENTAÇÃO GERAL. Nosso curso é um curso de filosofia; filosofia das organizações e da administração ou gestão das organizações. Por ser um curso de filosofia, adotará um método de investigação e análise tipicamente filosófico: em vez de lidar diretamente com os objetos da nossa ação e do nosso conhecimento, nós vamos focalizar nosso modo de ver e compreender os objetos, e nosso modo de ver e compreender nossa relação com os objetos. Nós vamos instaurar uma espécie de mediação reflexiva entre nós e os objetos com que lidamos em nossa vida cotidiana e em nossas atividades acadêmicas e/ou profissionais. Trata-se de uma atitude reflexiva: em lugar de nos colocarmos numa relação direta e imediata com os objetos, como é típico da vida cotidiana, nós vamos nos voltar para essa relação, focalizá-la, analisar o modo como ela pode ser compreendida. Em outras palavras, nosso curso vai analisar “imagens” (modos de ver e compreender), imagens dos objetos e da nossa relação com os objetos. Que objetos são esses? Nosso interesse último é no objeto “organizações” e na nossa relação com essa espécie de objeto – onde o “nós” são as pessoas interessadas no conhecimento (ou teoria) das organizações e na gestão das organizações. Mas as imagens de organização e da nossa relação com as organizações vão constituir o último tópico de nosso curso. Antes de abordar esse tópico, vamos discutir outros tipos de imagens. Na primeira parte do nosso curso, vamos focalizar imagens de natureza e da nossa relação com o objeto “natureza” (fenômenos e processos naturais, como movimentos dos astros, queda dos corpos, crescimento de árvores, etc. – claro que não vamos tratar desses fenômenos e processos como cientistas, mas como filósofos do conhecimento científico). Na segunda parte, antes das imagens das organizações, vamos focalizar imagens do ser humano, dos grupos humanos e das sociedades, e imagens da relação dos cientistas sociais com essa espécie de objeto. A primeira parte vai por sua vez se subdividir em duas seções. A primeira consiste em um esquema bastante simplificado da história das imagens de natureza. A segunda seção é uma história das imagens da relação entre o sujeito que produz 4 conhecimento (científico) da natureza e, por outro lado, o objeto (fenômenos e processos naturais) conhecido ou a ser conhecido neste conhecimento. Nessa segunda seção da primeira parte, nós vamos trabalhar com dois grandes tipos de imagem. De acordo com um desses tipos, as ideias e modos de pensar do sujeito do conhecimento desempenham o papel prioritário na relação com o objeto conhecido ou a ser conhecido. De acordo com o outro tipo, a primazia cabe a dados e características independentes das ideias e modos de pensar do sujeito do conhecimento. Ao tipo mencionado em primeiro lugar pertencem as seguintes imagens da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento: racionalismo, idealismo e construtivismo. E ao tipo mencionado em segundo lugar pertencem as seguintes imagens: empirismo, empirismo lógico e positivismo. Nessa seção, nós (o professor e seus filósofos preferidos) vamos tentar defender a imagem construtivista da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Mas essa defesa não tomará a forma de uma afirmação de que as outras imagens estão erradas. Nosso argumento será que a imagem construtivista é mais perspicaz e menos ingênua, ou seja, equivale a uma visão mais ampla, rica e nuançada da questão. Na segunda parte do curso, como dito acima, vamos focalizar imagens do ser humano, dos grupos humanos e das sociedades, e imagens da relação dos cientistas sociais com essa espécie de objeto. Enquanto na primeira parte o interesse fundamental recai sobre as imagens da relação entre o sujeito e o objeto, nessa segunda parte o interesse fundamental recai sobre as imagens do objeto, que nesse caso são os seres humanos, os grupos humanos e as sociedades (e não mais os fenômenos e processos estritamente naturais). De modo semelhante ao da segunda seção da primeira parte, na segunda parte do curso nós também vamos trabalhar com dois grandes tipos de imagem – nesse caso imagens do objeto estudado pelos cientistas sociais, as sociedades em geral (grupos humanos em geral). De acordo com o primeiro tipo de imagem, os elementos essenciais deste objeto consistem em características, condições, estruturas e processos independentes das ideias e modos de pensar, tomados como fenômenos pertencentes a um plano secundário ou derivado, o das consciências dos seres 5 humanos. Ideias e modos de pensar ficam subordinados a elementos que lhes são independentes. De acordo com o segundo tipo, em contrapartida, os elementos essenciais do objeto “social” consistem nas ideias e modos de pensar que existem e se reproduzem na consciência e/ou na linguagem (atividades de fala) dos seres humanos. Ao primeiro tipo pertencem as seguintes imagens do objeto estudado pelos cientistas sociais: mecanicismo, funcionalismo e materialismo histórico (ou marxismo ortodoxo). Chamaremos essas imagens de imagens “positivistas” da sociedade, em virtude da relação que se pode perceber entre essas imagens de sociedade e a imagem positivista da relação sujeito-objeto, analisada na Primeira Parte. Ao segundo tipo de imagens da sociedade pertencem as seguintes imagens: imagem Interpretativa (ou Hermenêutica) e Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que pode ser considerada uma espécie de “hermenêutica crítica”. Chamaremos essas duas imagens de imagens “construtivistas” da sociedade, em virtude da relação que se pode perceber entre essas duas imagens do objeto “sociedade” e a imagem construtivista da relação sujeito-objeto, analisada na Primeira Parte. Nesta segunda parte do curso, defenderemos a superioridade das imagens construtivistas ou “interpretativas” – tanto a imagem Interpretativa em sentido estrito quanto a “hermenêutica crítica” representada pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Argumentaremos que a consciência e os atos de fala são irredutíveis a elementos puramente “objetivos” (totalmente independentes dos sujeitos dotados de consciência e linguagem), e que as imagens construtivistas estão mais atentas a esse fato. Por fim, no último tópico do curso tentaremos estabelecer relações entre as imagens estudadas na segunda parte e certas “imagens da organização” que podem ser percebidas na história da teoria das organizações. Nosso “orientador” nesta terceira parte será Gareth Morgan, cujo livro “Imagens da Organização” (Editora Atlas) nos inspirou a usar o termo “imagens” para designar modos de ver e compreender. Antecipando o que será visto de forma mais detalhada nesse último tópico, abordaremos aqui três grandes imagens, procurando relacioná-las a algumas das imagens vistas na segunda parte do curso. Em primeiro lugar, a imagem mecanicista das organizações, na qual a organização é vista como uma máquina, e que pode ser 6 aproximada da imagem mecanicista da sociedade em geral. De acordo com esta imagem, a essência da organização são indivíduos isolados entre si, movidos por necessidades estritamente materiais ou financeiras, e que assumem as tarefas e responsabilidades particulares (individuais) próprias de cargos definidos num organograma tecnicamente desenhado. Grandes expoentes dessa imagem são Fayol e Taylor. Em segundo lugar, a imagem funcionalista das organizações, na qual a organização é vista como um organismo, que pode ser aproximada da imagem funcionalista dos grupos sociais em geral. De acordo com esta imagem, a essência da organização reside em redes de relações humanas ou sociais, constituídas por laços de reconhecimento, afinidade, amizade ou interesse, de caráter mais informal do que formal, e cujo conjunto (ou sistema) está submetido a duas necessidades básicas: coerência / integração interna e adaptação ao ambiente externo. Grandes marcos dessa multifacetada imagem são Elton Mayo e os estudos de Hawthorne, Maslow e a hierarquia das necessidades humanas, a Teoria dos Sistemas Abertos e a Teoria da Contingência. Por fim, a imagem interpretativa da organização, na qual a organização é vista como Cultura. De acordo com essa imagem, a essência da organização são os modos de pensar, ou modos de atribuir significado, que seus integrantes aplicam e reproduzem, muitas vezes de forma inconsciente ou irrefletida. Dependendo dos padrões de significação (nome abreviado dos padrões de atribuição de significado) dominantes na cultura organizacional, teremos diferentes tipos de cultura. Podemos ter, por exemplo, uma cultura burocrática, descrita, entre outros, por Max Weber, um dos grandes nomes da abordagem interpretativa da sociedade e das organizações. Outro exemplo seria uma cultura “organicista”, orientada por significados organicistas. Assim, uma mesma organização pode ser analisada de duas maneiras diferentes. O teórico ou gestor que usa um “óculos” mecanicista vai analisar a organização sob o prisma da máquina, identificando qualidades e defeitos típicos da organização-máquina. E o teórico ou gestor que usa um “óculos” interpretativo vai 7 analisar a organização sob o prisma da cultura, identificando qualidades e defeitos típicos da cultura burocrática. De acordo com a abordagem interpretativa ou hermenêutica, tanto a cultura burocrática quanto a cultura organicista (mas a burocrática de forma mais acentuada) caracterizam-se por um baixo grau de reflexividade e consciência: as pessoas aplicam e reproduzem padrões de significação sem perceberem que estão fazendo isso, e sem serem encorajadas a refletir sobre isso. A cultura organizacional não abre espaço para a conscientização e discussão dos padrões de atribuição de significado nela vigentes. Em contraposição a isso, culturas “reflexivas” e “críticas” são culturas que abrem espaço para a conscientização, discussão e crítica dos padrões de significação vigentes em dado momento – nesse sentido elas estão mais abertas à mudança cultural. Iremos relacionar a questão da mudança cultural à “aprendizagem de circuito duplo” analisada por Gareth Morgan no capítulo 4 de seu grande livro. E iremos relacionar este tipo de aprendizagem organizacional (que se distingue da “aprendizagem de circuito único”, um tipo de aprendizagem que nós iremos relacionar à imagem funcionalista ou organicista das organizações) à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, analisada na segunda parte do curso. 8 Tópico 2: O Surgimento da Imagem Lógico-científica da Natureza. Outros títulos: A Transição do Mito (visão de mundo mítico-religiosa) ao Logos (visão de mundo filosófico-científica). As Origens do pensamento filosófico-científico. O surgimento de uma nova maneira de ver e compreender a natureza como um todo: a imagem lógico-científica da realidade. •Surge na Grécia, por volta do século VI a.C. (600-501 a.C.). Primeiro filósofo: Tales de Mileto (maturidade em 585 a.C.). Dá início à chamada “Escola de Mileto”. • Inaugura-se uma tradição de crítica e revisão dos mestres. •Forma de pensar nitidamente nova (pensamento lógico-científico, ou filosófico- científico), distinta do tipo de pensamento culturalmente dominante até então (pensamento mítico). Características do pensamento mítico (ou da visão de mundo mítico-religiosa). Nesta imagem do mundo, as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia estão sempre associadas a entidades sobrenaturais personalizadas (Deuses, agentes sobre- humanos), cujas lutas, uniões e façanhas estão na origem das coisas e acontecimentos do dia-a-dia. Mesmo as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia contêm no seu âmago uma potência sobrenatural com a qual os homens precisam se relacionar devidamente, para preservar seu funcionamento regular e ordenado, segundo a ordem divina do mundo. O que caracteriza essas potências sobrenaturais é o fato de que elas podem atuar de forma absolutamente arbitrária, irregular, irracional, a seu bel-prazer; seu poder não está sujeito às expectativas humanas de “lógica”, “razão”, “regularidade”. Assim, esta é uma visão de mundo marcada pela perfeita aceitação do inesperado, do extraordinário, do mistério. Explicações são histórias sobre a origem de algo, com ênfase na origem da ordem da natureza como um todo, que representa uma espécie de “pacificação” das potências sobrenaturais que habitam o âmago da realidade, levando-as a atuarem de forma regular e ordenada, não caprichosa. Estas explicações da ordem do mundo sempre remetem às lutas, uniões e façanhas de entidades sobrenaturais, que ocorrem em uma outra dimensão do tempo, distinta daquela em que os seres humanos cotidianamente vivem (tempo cotidiano). 9 No âmbito do pensamento mítico, há um vínculo essencial entre as narrativas míticas e rituais mágicos e/ou religiosos destinados a: A) Reproduzir simbolicamente a façanha originária de instauração da ordem do mundo (reprodução mágica do tempo da origem); soberano humano reproduz a façanha do soberano divino. B) Estabelecer uma ligação com a divindade responsável por determinada esfera da realidade, de modo a angariar proteção, favores, etc. Narrativa mítica é sagrada (incontestável), porque vem de uma revelação sobrenatural. O narrador (vidente, “poeta-cantor”) goza de autoridade inquestionável, por ser um escolhido dos deuses, por ter o dom de ver acontecimentos sobrenaturais, por ser inspirado por poderes sobrenaturais, ou, muitas vezes, por ter recebido a narrativa numa cadeia de transmissão originada em alguém que tinha esse tipo de inspiração. O poeta-cantor é parte de uma tradição sagrada. As narrativas míticas admitem incoerências e contradições, elas não se prestam às exigências de inteligibilidade e justificação, próprias do pensamento lógico-científico. Características do pensamento filosófico-científico Visão de mundo marcada pela rejeição da ideia de que a ordem natural baseia-se em poderes sobrenaturais que não se conformam à “lógica” (inteligibilidade subjacente à explicação e à argumentação). Recorre apenas a princípios, elementos e causas essencialmente naturais (ainda que mais abstratos do que os objetos e materiais aparentes). Exemplos: água, ar, fogo, terra; matéria indeterminada; átomo; quente e frio, úmido e seco. Tais elementos e causas operam de maneira “lógica” (LOGOS: inteligibilidade do pensamento e fala dos homens, e também da própria realidade), ou seja, de modo coerente e inteligível, livre de contradições e arbitrariedades. Em oposição à arbitrariedade das potências míticas, admite-se agora a lógica e inteligibilidade da natureza. Significados do termo “Logos”. 1) Fala de tipo argumentativo; 2) Características “racionais” deste tipo de fala; 3) Razão humana; racionalidade como capacidade específica dos homens; 4) Racionalidade e Inteligibilidade da própria Realidade (A natureza é intrinsecamente “lógica”). Assim, o termo grego “Logos” refere-se não apenas ao uso da linguagem humana caracterizado pelas exigências de inteligibilidade e racionalidade, mas também à suposição de que a racionalidade da linguagem humana é um reflexo de uma racionalidade objetiva, imanente à realidade natural e cotidiana. Esta é a suposição essencial da nova imagem de mundo que surge neste momento. 10 O Pensamento filosófico-científico admite questionamento, crítica, ajuste, correção; conforma-se às exigências de inteligibilidade e justificação. Inaugura-se uma tradição de rejeição da atitude “dogmática” e de valorização da atitude de crítica e revisão dos mestres. Pensamento filosófico: busca da estrutura essencial da realidade Naturalismo do pensamento filosófico-científico vincula-se à busca da estrutura essencial da realidade (distinção entre essência e aparência). Conhecimento puramente teórico da realidade como um todo (valorização do conhecimento pelo conhecimento). Vincula-se ao desejo de conhecer e ao prazer de conhecer, vivenciados como elementos independentes de quaisquer fins práticos. Atitude crítica acarreta uma proliferação de propostas de explicação da estrutura essencial da realidade: 1) Elementos naturais mais concretos: água, ar, fogo, terra. 2) Elementos naturais mais abstratos: “indeterminado” (matéria indeterminada), átomo (indivisível), “homeomerias” (átomos com distinções qualitativas), número e relações numéricas (proporções). 3) Elementos formais ainda mais abstratos: 3.1) Mudança, movimento de diferenciação e de geração de contrários (Dialética, Heráclito: o permanente é só aparentemente permanente); 3.2) O “Ser” como unidade/identidade/permanência fundamental, sem a qual a mudança não é inteligível (Parmênides: “Ser é, não-ser não é”). O Correlato social e político da transição do Mito ao Logos. Dos regimes do Direito dos “gene” para o regime das cidades-Estado (“Polis”) •Transição do mito ao “Logos” associa-se a uma mudança social correspondente: a transição dos regimes do Direito dos gene (“gene”: grandes linhagens e famílias aristocráticas) ao regime das cidades-Estado (“Polis”). (por volta de 750 a.C.). •1) Regimes do Direito dos gene: Direito arbitrário dos chefes de grandes famílias. • Sociedades caracterizadas pelo domínio da nobreza agrária, a classe dos “bem- nascidos” (linhagens “superiores”, que se consideravam descendentes de heróis extraordinários). Dentre os chefes das grandes linhagens avulta aquele que tem o título de Rei. 11 •Decisão arbitrária do Rei e do Nobre tem caráter sagrado e força de lei (ela é o Direito); ela não se presta às exigências de justificação e convencimento. Não se reconhece uma Lei comum a todos, à qual todos devem igualmente se submeter. •Conflitos são decididos com base na força; e força aparece como manifestação de um poder extraordinário, sobrenatural. O Regime das cidades-Estado (POLIS) •Regimes “políticos”: uma única Lei, que se aplica a todos. Igualdade dos cidadãos em relação à Lei comum a todos. - Fundam-se no pensamento “lógico” (racional-argumentativo). A Lei é inteligível para todos, e as decisões amparadas na Lei estão submetidas às exigências de explicação, discussão, justificação, convencimento. - Fundam-se na fala “lógica” (racional-argumentativa). Regimes dominados por aqueles que sabem argumentar, debater, persuadir. - Decisões de conflitos pessoais precisam ser amparadas em razões ou argumentos – surgimento dos tribunais. - Decisões sobre os rumos da comunidade precisam ser debatidas, explicadas e justificadas – surgimento das assembléias políticas. - O homem como “Animal Político”: gregário, social, e, simultaneamente, capaz de organizar sua existência social com base na razão, ou seja, no uso da linguagem (comunicação) centrado em argumentação, convencimento e justificação. 12 Tópico 3: Ciência antiga: a imagem de mundo e de ciência típica do período antigo e medieval. Ciência antiga: teleológica, qualitativa e contemplativa (ciência moderna é mecanicista, quantitativa e utilitária). Expoente mais influente da ciência antiga: Aristóteles: século IV a.C. (384-322 a.C.). A) Ciência de caráter teleológico (“telos”: fim, finalidade). Visão (ou Imagem) de mundo baseada na noção de finalidade – concepção teleológica da natureza. Ciência da natureza: identificação de finalidades. Objetivo da ciência é entender o sentido da existência e mudança das coisas, ou seja, entender o “por que” (interpretado em termos de “para que”) as coisas existem e mudam. Tese fundamental: cada coisa da natureza existe para alcançar um determinado lugar (“lugar natural”) ou meta (sua realização perfeita; realização perfeita da função que lhe é própria). Fim, Finalidade: essência de cada coisa. O “verdadeiro ser” de cada coisa consiste na finalidade de sua existência. 3 significados de fim estreitamente relacionados: “Lugar natural” buscado pelo ser, Função (atividade) própria do ser na totalidade da ordem cósmica, e realização plena do potencial próprio do ser. Fim de todas as coisas: ordem, harmonia e beleza do Cosmo como um Todo. Finalidade: causa da mudança direcionada, inteligível. Principal tipo de mudança inteligível: passagem do ser “em potência” ao ser “em ato” (realização do potencial próprio). Potência: possibilidade que se enquadra no direcionamento da essência ou finalidade. Semente é árvore em potência; embrião é homem (ser racional) em potência; adotando um ponto de vista mais específico, o embrião é, por exemplo, escultor (ou médico, ou filósofo, etc.) em potência; pedra é escultura em potência (pode se associar à realização da essência do homem-escultor.) O problema das mudanças aleatórias. Nos objetos do mundo “sublunar” (“região terrestre”), a essência (finalidade, que em Aristóteles equivale à “forma” da coisa) sempre está misturada a um outro elemento, a “matéria”, que representa a mera possibilidade (possibilidade que não se enquadra no direcionamento da essência). A matéria representa uma espécie de dinamismo cego, sem direção ou sentido. Causa das mudanças aleatórias que às vezes perturbam a ordem teleológica da natureza. 13 - Como regra geral, a forma-fim modela e organiza a matéria, enquadrando-a no molde da finalidade, serventia, sentido. Entretanto, às vezes a matéria como dinamismo cego “escapa” ao enquadramento da forma, produzindo eventos aleatórios que perturbam a ordem teleológica da natureza, sem destruí-la, no entanto. B) Ciência de caráter qualitativo. Ciência que se apóia em noções qualitativas, ou seja, noções que se definem pela impressão que causam em nossos sentidos (frio e quente, seco e úmido, leve e pesado, alto e baixo.) Substâncias básicas (fogo, ar, terra, água) são concebidas em termos qualitativos (fogo: quente e seco; ar: quente é úmido; água: fria e úmida, terra: fria e seca). Suas propriedades essenciais também são concebidas em termos qualitativos. Por exemplo, a substância terra é “pesada”: seu lugar natural/destinação são os “lugares baixos”, próximos do centro do planeta em que vivemos. É por isso que os objetos nos quais predomina o componente “terra” caem: a terra neles predominante está buscando seu lugar natural. Universo dividido em regiões qualitativamente distintas: - Região sublunar ou terrestre (“imperfeita”) e região supralunar ou celeste (“perfeita”, porque nela não há mistura com matéria; corpos celestes são constituídos de éter, a “quinta essência”, imaterial. Corpos perfeitos, que realizam movimentos perfeitos: circulares). - Região sublunar: dividida em: lugares altos (lugar natural do fogo), lugares baixos (terra), lugares não inteiramente altos (ar), lugares não inteiramente baixos (água). Cosmo: ordem e harmonia (beleza) do mundo como um todo. Modelo geocêntrico do universo: a Terra está no centro do universo e não se move. C) Ciência de caráter contemplativo. Na visão de mundo da antiguidade, o melhor potencial dos seres humanos é a racionalidade teórica, e o conhecimento científico equivale à realização deste potencial. Assim, o conhecimento científico é visto como fim supremo da existência humana e, portanto, como fim em si mesmo (e não como meio ou instrumento para outros propósitos, como saúde, conforto, prazeres da sensibilidade). A Imagem de Mundo e de conhecimento típica da antiguidade caracteriza-se por uma dissociação bem nítida entre a ciência e, por outro lado, o interesse técnico na intervenção sobre a realidade. 14 - Conhecimento científico não está subordinado à necessidade de resolver problemas da vida cotidiana. Esta necessidade define uma esfera diferente, a esfera da técnica. - Assim, a esfera da ciência é distinta da esfera da técnica (embora esta última também seja um modo de realização do potencial próprio do homem, que é a racionalidade em geral). Conhecimento científico: apreensão, contemplação e fruição da ordem, harmonia e beleza do Cosmo. Apreensão do sentido do mundo como um todo. Conhecimento científico: caminho pelo qual a alma se liberta (ou purifica) de impulsos insaciáveis, que levam à inquietação, ansiedade, frustração e infelicidade. Trata-se dos impulsos aos prazeres da sensibilidade e ao exercício do poder sobre os outros. Prazer do conhecimento é o único tipo de prazer que não vem misturado com certa dose de frustração. Diferentes manifestações da teleologia da natureza - Coisas existem PARA realizar uma ordem harmoniosa e bela (Cosmo). - Homem (ser racional) existe PARA reconhecer e fruir a ordem, harmonia e beleza do cosmo, ou seja, PARA responder adequadamente à ordem, harmonia e beleza como querer-dizer (significado ou sentido) das coisas e do mundo. - Cosmo existe PARA alimentar a vitalidade própria do homem, dirigindo-se às suas capacidades cognitivas em sentido amplo (razão teórica, razão prática, razão técnica). Ordem cósmica existe para realizar o potencial próprio do homem, a racionalidade em geral. - Razão humana: potencial (função) próprio do homem. Manifesta-se em: a) Conhecimento teórico da ordem e harmonia do Cosmo (Ciência, Teoria). b) Conhecimento prático indicativo do “agir bem” em cada situação – onde o “agir bem” é fim em si mesmo, é bom em si mesmo, é elemento constituinte do “viver bem”. (Conhecimento prático, ética). Na esfera da racionalidade prática, a ação humana relaciona-se às paixões da natureza humana e aos interesses e demandas de outros homens. A razão prática é a capacidade de controlar as paixões e discernir ou perceber o “bem agir” em cada situação. Nesse caso, a ação é fim em si mesma. “Viver bem” é “agir bem” em cada situação da vida. c) Conhecimento “técnico” utilizado na produção de artefatos e resultados úteis e/ou belos. (Medicina, arquitetura, navegação, e todas as demais “técnicas” ou “artes”, incluindo as “belas-artes”). 15 Na esfera da racionalidade técnica, a ação relaciona-se aos materiais da natureza (incluindo o corpo humano), e é meio (instrumento) para resultados úteis ou belos. - Aspectos ou Dimensões da felicidade humana: Libertação (purificação) dos impulsos insaciáveis e frustrantes (prazer puramente sensível, poder). Realização do potencial próprio do homem, a racionalidade. Exercício da racionalidade como função ou atividade própria do homem. Atividade do conhecimento em sentido amplo: responder ao potencial de sentido com que a realidade se dirige ao homem, convidando-o à ação “responsiva”. Manifestações da ação “responsiva”: (a) Ciência; (b) “Agir bem” (agir virtuosamente); (c) Ação tecnicamente hábil e eficaz. Sendo que (b) também está envolvido em (a) e (c). 16 Tópico 4: Ciência moderna. Imagem de mundo e de ciência inaugurada na revolução científica do século XVII. Ciência moderna: mecanicista, quantitativa e utilitária (ciência antiga é teleológica, qualitativa e contemplativa). Alguns dados de história da ciência - 336-323 a.C.: Alexandre o Grande difunde a cultura grega por toda a Ásia menor, Mesopotâmia e Egito. Fundação de Alexandria em 331 a.C. Alexandria torna-se grande centro de produção científica, em língua grega (Euclides: 330-277aC; Arquimedes: 287- 212aC, e outras figuras importantes na medicina e astronomia). Conquistada pelos romanos em 30aC, mas a língua da atividade científica permanece sendo primordialmente a grega. Ptolomeu (90-168dC) e Galeno (129-200dC). - 470 d.C. Queda do Império Romano do ocidente. Abafamento da vida urbana e da cultura científica na Europa ocidental. (Império Romano do oriente, com sede em Constantinopla – atual Istambul – só cai em poder dos turcos em 1453 d.C). - 622 dC: início do Islamismo com Maomé –morre em 632. 634-650: grande expansão militar e política. Árabes conquistam Síria, Mesopotâmia, Irã, Egito e norte da África. 711: Invadem a península Ibérica. Bagdá e Córdoba (Espanha) tornam-se importantes centros de atividade filosófico-científica. Córdoba: centro de difusão da ciência aristotélica, já num período de retomada da prática científica na Europa ocidental como um todo. - 1214: Fundação da Universidade de Paris (subordinada à Igreja Católica Romana). - 1224-1274: São Tomás de Aquino realiza uma síntese entre a ciência aristotélica e a visão de mundo do catolicismo, com seus dogmas cientificamente indiscutíveis. Paradigma de pensamento que depois ficou conhecido como “Escolástica”. Principais momentos da revolução científica moderna 1) “Sobre a Revolução dos Orbes Celestes” (1543), de Copérnico. Hipótese do sistema heliocêntrico, em oposição ao sistema geocêntrico formulado por Aristóteles, desenvolvido e modificado por Ptolomeu (90-168 d.C.), e ligado à visão de mundo do cristianismo. Apesar de propor a hipótese do sistema heliocêntrico, Copérnico ainda conserva a idéia de um universo fechado. 2) “Sobre o universo infinito” (1583), de G. Bruno (queimado na fogueira em 1600). (1545-1560: Concílio de Trento; “Contra-Reforma”, em reação à reforma religiosa 17 iniciada por Lutero em 1517. A Inquisição ganha nova força, principalmente na Itália, Espanha e França, agora sob a forma do “Tribunal do Santo Ofício”). 3) “A Nova Astronomia” (1609), de Kepler. Órbitas dos planetas em torno do sol são elípticas, contrariando o princípio escolástico de que corpos celestes realizam movimentos perfeitos, e movimentos perfeitos são movimentos perfeitamente circulares. 4) “A Mensagem Celeste” (1610), de Galileu. Depois de aperfeiçoar o telescópio, Galileu registra e divulga uma série de evidências empíricas em favor do sistema heliocêntrico e do universo infinito (crateras e montanhas na superfície da Lua, contrariando o princípio da imaterialidade e “perfeição” dos corpos celestes; fases de Vênus, que não podiam ser explicadas no sistema de Ptolomeu; satélites em torno de Júpiter, contrariando o “privilégio” da Terra como centro em torno do qual giram todos os corpos celestes; número espantosamente grande de estrelas, incompatíveis com a concepção de um mundo fechado). - A publicação do livro de Galileu desencadeia reação mais violenta contra a “doutrina copernicana” (“suspensão” do livro e da doutrina de Copérnico em 1616 e, num segundo momento, condenação de Galileu em 1633, depois da publicação, em 1632, de “Diálogos sobre os sistemas do mundo”, no qual é retomada a defesa da doutrina copernicana. Galileu morre em 1642). 5) “Princípios matemáticos da filosofia natural” (1687), de Newton. Unifica a astronomia e a mecânica. Universo infinito, regido pelo princípio da inércia e pela força gravitacional. CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA MODERNA. 1) Imagem mecanicista do mundo. Causa dos movimentos reside em forças puramente mecânicas, destituídas de função, finalidade ou sentido. Conhecer a natureza não é entender “por que” (com que finalidade ou sentido) ocorrem as mudanças, mas saber “como” ocorrem os movimentos, ou seja, conhecer as leis (regularidades) segundo as quais os movimentos são determinados, e podem ser previstos. Todo movimento está submetido à necessidade das leis mecânicas da natureza e é em princípio previsível. Natureza está submetida a leis precisas e invariáveis, cujo funcionamento pode ser conhecido pelos homens. Imagem determinista da realidade, e pretensão de poder conhecer a realidade deterministicamente estruturada. 18 2) Imagem quantitativa da realidade (do espaço e da natureza). Concebe os objetos e movimentos em termos essencialmente quantitativos, a partir de noções de caráter quantitativo, como espaço/distância, tempo, velocidade, aceleração, massa, força. (noções que se definem pela possibilidade de medição e de articulação em fórmulas e modelos matemáticos). Leis da natureza são entendidas como correlações entre variáveis quantitativas, expressas em fórmulas matemáticas –“a natureza é um livro escrito em linguagem matemática” (Galileu, em obra de 1623). Matematização da natureza e da ciência da natureza. Espaço homogêneo e infinito, definido em termos puramente geométricos. 3) Imagem utilitária da ciência. Estreita associação entre ciência e técnica. Interesse básico: ter poder sobre a natureza (tornar-se capaz de prever, controlar, usar ou manipular objetos, recursos e processos da natureza). Se o homem conhece “como” se comportam as forças, materiais e processos, torna-se capaz de aproveitá-los e canalizá-los para realizar suas preferências (“Conhecimento é Poder”). Preocupação com a utilidade do conhecimento para propósitos “mundanos”, como conforto, saúde, riqueza, diversão, etc. Interesse na possibilidade de aplicações práticas do conhecimento. Interesse na maximização (indefinidamente reposicionada no futuro) da satisfação das preferências dos sujeitos. A época moderna caracteriza-se por um movimento de “subjetivização” das noções de bem e felicidade: cabe a cada indivíduo, e não ao filósofo, sábio ou religioso, dizer o que é bom para si próprio. O bem (felicidade) deixa de ser definido em termos de realização do potencial e função próprios do homem, interpretados como potencial e função objetivos (independentes das preferências subjetivas de cada um), e passa a ser definido em termos de realização das preferências subjetivas de cada indivíduo. Observação importante sobre a noção de utilidade. Ciência antiga e ciência moderna exibem duas aplicações distintas da noção de utilidade. Na ciência antiga, esta noção é aplicada no princípio de que tudo que existe tem uma utilidade para a ordem abrangente do Cosmo. (utilidade dos objetos para a ordem cósmica). Na ciência moderna, a noção de utilidade encontra aplicação no princípio de que o conhecimento científico deve ter utilidade para os propósitos do homem, ou seja, para a realização das preferências dos homens (utilidade da ciência para os propósitos e preferências dos homens). 19 Na modernidade, conhecimento científico passa a ser visto como instrumento ou meio, e não como fim em si mesmo, como era na antiguidade. Duas tendências embutidas no movimento de rejeição da ciência aristotélico- escolástica, efetuado na revolução científica moderna. •1) Defesa da matematização da natureza e da ciência da natureza. Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é mais ativo, na medida em que o conhecimento matemático é visto como fruto de noções e operações da razão pura do sujeito, como a intuição racional e a dedução (ele não depende de informações passivamente captadas ou recebidas pelos sentidos). Há nesta tendência uma ênfase na atividade cognitiva do sujeito. O princípio do conhecimento tende a ser identificado com a atividade da razão pura do sujeito. O princípio do conhecimento é a atividade de projetar ou lançar uma estrutura lógico- matemática (racional) sobre os dados da realidade. •2) Defesa de observações “puras”, feitas e registradas através dos sentidos (com auxílio de instrumentos), e totalmente depuradas das distorções produzidas pelas suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico-escolástica (tais suposições passam agora a ser taxadas de “preconceitos”). - Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é mais passivo, na medida em que os sentidos constituem uma capacidade essencialmente receptiva: trata-se de receber os dados fornecidos pela natureza de forma absolutamente neutra, ou seja, sem nenhuma mistura com suposições prévias (que passam a ser vistas como “preconceitos”). Há nesta tendência uma ênfase na passividade do sujeito, e na sua neutralidade diante dos dados e informações da natureza. O princípio do conhecimento tende a ser identificado aos dados “puros” ou “brutos” (não-interpretados por suposições prévias) captados pelos sentidos (dados empíricos, ou seja, oriundos da experiência sensível). “Construtivismo/Racionalismo/Idealismo” e “Empirismo/Positivismo” •Tendência (1) sugere que o objeto do conhecimento é numa certa medida “construído” pela razão do sujeito, mediante projeção na realidade de noções, princípios e estruturas da razão pura, de caráter lógico-matemático. - Tendência (1) está na origem das teorias racionalistas e idealistas (que também podem ser chamadas de construtivistas e antipositivistas). Deste ponto de vista, o objeto do conhecimento (a própria realidade, considerada, porém, sob o aspecto da possibilidade de ser conhecida pelo sujeito) é dependente dos princípios e operações da razão pura do sujeito. - Deste ponto de vista, a realidade se torna objeto do conhecimento à medida que o sujeito projeta ou lança uma estrutura lógico-matemática (racional) sobre os dados ou aparições da realidade. 20 •Tendência (2) sugere que o objeto do conhecimento é absolutamente independente dos princípios, conceitos e esquemas conceituais da razão do sujeito. O conhecimento científico deve simplesmente reproduzir (“copiar”) de modo preciso e fiel este objeto independente. - Tendência (2) está na origem das teorias empiristas e positivistas. Deste ponto de vista, o objeto do conhecimento é independente das atividades da razão pura do sujeito. Cabe à razão do sujeito simplesmente conformar-se aos dados (informações) deste objeto independente, recebidos em observações puras, observações não interpretadas por suposições prévias. 21 Tópico 5. Esquema geral da segunda seção da primeira parte. Esquema geral das imagens que serão apresentadas até o final da primeira parte. Imagens da relação entre o sujeito que produz o conhecimento científico (da natureza) e o objeto (fenômenos e processos da natureza) que é conhecido e que pode vir a ser conhecido no conhecimento produzido pelo sujeito. Imagens da relação sujeito-objeto. Duas grandes tradições: empirista-positivista e, do outro lado, racionalista-idealista- construtivista. Para compreender o que está em jogo nessa dicotomia, é preciso levar em conta o seguinte. O sujeito do conhecimento é o ser humano. Quando a realidade a ser conhecida é constituída de ações e relações humanas, como ocorre no caso das ciências humanas e sociais, é altamente discutível afirmar que esta realidade é independente dos seres humanos, como possíveis sujeitos do conhecimento. Entretanto, quando a realidade a ser conhecida é constituída de fenômenos e processos da natureza, é bastante plausível afirmar que esta realidade é totalmente independente dos seres humanos como possíveis sujeitos do conhecimento científico. Tanto a tradição empirista-positivista quanto a tradição racionalista-idealista- construtivista adotam a tese de que a realidade natural é independente do sujeito do conhecimento – elas compartilham essa tese. No debate entre as duas tradições, a realidade natural sempre aparece como realidade independente do sujeito. - Três questões estão em jogo no debate entre as duas tradições. Em primeiro lugar, a questão do acesso à realidade independente: temos ou não um acesso direto ou imediato a esta realidade? Em segundo lugar, a questão dos elementos logicamente prioritários na produção do conhecimento: dados e informações da própria realidade ou princípios e estruturas do sujeito do conhecimento? Em terceiro lugar, a questão de uma possível distinção analítica entre a realidade natural e o objeto do conhecimento humano: deve-se ou não estabelecer essa distinção analiítica? 1ª) Tradição empirista-positivista. A) Temos um acesso direto ou imediato à realidade independente. B) Primazia cabe a “dados” da realidade independente do sujeito, dados passivamente recebidos através dos sentidos. C) Não se estabelece distinção analítica entre o objeto do conhecimento (a própria realidade natural, considerada, entretanto, sob o aspecto da possibilidade de ser “cientificamente” conhecida pelo sujeito do conhecimento, o homem) e a realidade independente do sujeito. O objeto do conhecimento é totalmente identificado à realidade independente. 22 2ª) Tradição racionalista-idealista-construtivista. A) Não temos acesso direto à realidade independente; nosso acesso à realidade sempre é mediado por princípios e estruturas do sujeito do conhecimento. B) Primazia cabe à estrutura mental ou linguístico-cultural do sujeito do conhecimento. C) Estabelece-se uma distinção analítica entre o objeto do conhecimento e a realidade independente. - A realidade independente só se torna objeto do conhecimento (só se torna cognoscível para e pelo sujeito) à medida que o sujeito projeta ou lança uma estrutura mental ou linguístico-cultural sobre os dados (aparições) da realidade. C) Variações na estrutura projetada sobre os dados da realidade independente: C.1) Estrutura lógico-matemática (mental). Racionalismo do século XVII. C.2) Estrutura de regras de organização do espaço-tempo (mental). Idealismo do século XVIII. C.3) Estrutura interpretativa; visão de mundo, paradigma (linguístico-cultural). Construtivismo do século XX/XXI. 23 Tópico 6: Empirismo e racionalismo no século XVII (1601-1700). Empirismo no século XVII: vamos nos concentrar em F. Bacon e J. Locke. Racionalismo no século XVII: vamos nos concentrar em R. Descartes. O contexto histórico do debate •1) Crise das instituições e crenças religiosas, crise da autoridade religiosa. Divisão e conflitos na cristandade europeia, com a Reforma Protestante (início com Lutero em 1517; importância de Calvino – 1509-1564), e guerras entre católicos e protestantes. •2) Crise e esgotamento do conhecimento científico tradicional (aristotélico- escolástico), ou seja, transmitido de forma não-crítica, com base apenas na autoridade dos “sábios”, ligada à autoridade da Igreja Católica. •3) Crenças e autoridades tradicionalmente seguidas eram questionadas e abandonadas. Ambiente de dúvida e incerteza e, ao mesmo tempo, de valorização da capacidade cognitiva da consciência individual (de cada indivíduo). •4) Dúvida quanto ao saber tradicional (ou quanto ao modo habitual de ver a realidade) é tomada como etapa necessária (preparatória) para se chegar à verdade, mediante construção de um novo “edifício do conhecimento”. Dúvida é parte do método do conhecimento. •5) Desejo de evitar o erro, ou seja, não repetir os erros do (pseudo) saber escolástico, entranhado no modo habitual de ver a realidade. - Para evitar o erro, é preciso lançar uma dúvida metódica sobre as bases do conhecimento tradicional (modo habitual de perceber a realidade) e encontrar uma “base segura” para a reconstrução de todo o edifício do conhecimento. A dúvida quanto à visão de mundo típica da ciência aristotélico-escolástica gerou duas concepções distintas da “base segura” da nova ciência: 1ª) Observações puras, dados brutos captados pelos sentidos. Observações depuradas das distorções produzidas pelas suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico- escolástica. Liberados da influência das suposições teleológicas, os sentidos constituem um canal confiável de recepção do objeto do conhecimento (objeto a ser conhecido, ou seja, fenômenos e processos da natureza). Ênfase numa atitude de passividade e neutralidade do sujeito do conhecimento. EMPIRISMO. 24 2ª) Radicalização da dúvida metódica leva a uma dúvida quanto à confiabilidade dos sentidos. Não há certeza e evidência nos dados sensíveis; só há certeza e evidência nas intuições intelectuais (intuições da razão pura). A base segura do conhecimento são intuições (intelectuais) claras e evidentes, ou seja, nas quais há certeza e evidência. RACIONALISMO. Esclarecimentos terminológicos importantes para a compreensão deste debate. 1º) Primeira diferença básica: diferença entre intuição e raciocínio. 1.1) Intuição: apreensão ou visão imediata de um determinado dado ou verdade; quando você simplesmente “vê” ou “percebe” algo (um objeto, um acontecimento, a característica de um objeto ou acontecimento, ou então, no caso da intuição intelectual, uma verdade básica, de caráter lógico ou matemático). A intuição fornece os pontos de partida do raciocínio. 1.2) Raciocínio: quando você chega a determinado conhecimento (conclusão) por meio de um processo argumentativo que parte de outros dados ou conhecimentos (premissas). Quando você “conclui” algo. 2º) Segunda diferença básica. Diferença entre dois tipos de intuição. 2.1) Intuição sensível (operação dos sentidos). Quando você capta um dado ou informação por meio dos sentidos. Quando você literalmente vê um acontecimento, um objeto, uma característica de um acontecimento ou objeto. A intuição sensível equivale à observação de objetos, eventos e características particulares ou singulares (observações do “aqui e agora”). 2.2) Intuição intelectual (operação da razão pura). Quando você “vê” uma verdade básica ou fundamental, de caráter lógico ou lógico-matemático, e referida à estrutura básica da experiência no espaço e tempo. Em oposição às observações da experiência sensível, as verdades da intuição intelectual têm alcance ou abrangência geral, ou seja, equivalem a conhecimentos válidos para todos os lugares e momentos. Exemplos: “coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre si”; “ponto é aquilo que não tem partes”; “uma reta finita pode ser prolongada à vontade”; o postulado euclidiano das retas paralelas (“Dados em um plano uma reta s e um ponto P fora dela, existe no plano uma única reta que passa pelo ponto P e é paralela à reta dada”); “tudo que acontece tem uma causa”, “o efeito não pode ter mais realidade do que a causa”. No racionalismo do século XVII e início do XVIII, verdades fundamentais apreendidas pela intuição intelectual equivalem a Idéias Inatas. Cabe enfatizar o seguinte. Os exemplos de intuição intelectual variam historicamente, alguns deles deixam de ser aceitos em momentos posteriores. Do ponto de vista histórico, muitas “verdades” atribuídas à intuição intelectual deixaram de ser verdades 25 absolutas, independentes do contexto de pesquisa e aplicação. Mas isso não invalida a idéia mais geral de que determinadas hipóteses logicamente independentes da intuição sensível desempenham um papel decisivo na investigação científica. Veremos isso mais à frente. 3º) Terceira diferença básica. Diferença entre dois tipos de raciocínio. 3.1) Indução: partindo de um determinado conjunto de dados ou informações (premissas), você chega a uma conclusão que NÃO está implicitamente contida nestes dados. Mesmo que as informações ou enunciados de que você partiu sejam verdadeiros, e mesmo que o raciocínio seja criterioso, a conclusão pode ser falsa (exemplos: generalização com boa base indutiva, analogia criteriosa). Um raciocínio indutivo criterioso distingue-se de uma dedução formalmente válida. Ao contrário do que ocorre na dedução formalmente válida, a indução, mesmo criteriosa, admite uma “margem de erro”. 3.2) Dedução: partindo de determinadas informações ou enunciados (premissas), você chega a uma conclusão que implicitamente já está contida nestas informações. Se os enunciados de que você partiu são verdadeiros, e se o raciocínio (dedutivo) é formalmente válido, a conclusão necessariamente é verdadeira (exemplos: “sempre que um metal é aquecido, ele se dilata; o corpo x não se dilatou ao ser aquecido; conclusão: o corpo x não é metal”). Se a dedução é formalmente válida, a verdade das premissas (supondo que elas são verdadeiras) transfere-se para a conclusão. O empirismo no século XVII. •Principais defensores do empirismo no século XVII: Francis Bacon (“O Novo Órganon”, publicado em 1620) e John Locke (“Ensaio sobre o Entendimento Humano”, publicado em 1690). •1) “Base Segura” para a construção do conhecimento: experiência sensível (empeiria= experiência sensível); dados e informações captados de forma absolutamente neutra pelos sentidos (mediante eliminação de todos os “pré-conceitos” envolvidos no modo habitual de ver a realidade); dados absolutamente fidedignos. Ênfase na intuição sensível, em comparação com a intuição intelectual. Defesa dos sentidos como canais confiáveis de recepção do objeto do conhecimento, identificado aos dados da realidade externa e independente. Mente humana como folha em branco (“Tábula rasa”), paulatinamente preenchida pelos dados particulares captados pelos sentidos. Não há idéias inatas. •2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: Indução (como generalização, raciocínio que vai das observações particulares à regra ou lei de caráter geral): partindo-se de observações (experiências) de casos particulares da ocorrência 26 de determinados fenômenos [casos em que os fenômenos (p.ex., calor e dilatação de metais) se apresentam, não se apresentam e variam], formulam-se definições, conceitos e leis de caráter geral, válidos para todos os casos dos fenômenos investigados. Leis da natureza são concebidas como correlações regulares e universais de fenômenos da natureza. E a Indução é concebida como método de descoberta das leis da natureza. Ênfase no raciocínio indutivo, em comparação com o raciocínio dedutivo. Para realizar a indução: eliminação das “antecipações da natureza” (idéias pré- concebidas sobre a estrutura e funcionamento da natureza); limpar a mente das falsas noções que a invadiram; “tornar-se uma criança diante da natureza”. Passividade e neutralidade do sujeito. O Racionalismo no século XVII. •Principal defensor do racionalismo no século XVII: René Descartes (“Discurso do Método”, 1637; “Meditações Metafísicas”, 1641). •1) “Base segura” para a construção do conhecimento: intuição intelectual fundamental: “Eu penso, e enquanto penso existo como substância pensante”. Submetendo as idéias presentes em minha mente a um rigoroso questionamento crítico (dúvida metódica), descubro que há princípios e noções que minha razão apreende como claros e evidentes, intelectualmente certos, necessariamente verdadeiros. Trata-se de princípios e idéias inatas, independentes da experiência sensível. (Se fossem oriundos dos sentidos, não se apresentariam como claros, certos, seguros). Para Descartes, as idéias ligadas aos sentidos são incertas, confusas e obscuras. Não sei, por exemplo, se as qualidades “frio”, “amargo”, “vermelho”, tipicamente ligadas aos sentidos, - não sei se essas qualidades estão na substância que se estende no espaço externo (“substância extensa”), ou, apenas, na minha mente (“substância pensante”). Dentre os princípios e idéias inatas, destacam-se os princípios e idéias lógico- matemáticos, utilizados na construção do conhecimento matemático. •2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: dúvida metódica (avaliar todos os candidatos a conhecimento com uma “lupa crítica” rigorosa), intuição intelectual e raciocínio dedutivo (extração de conseqüências logicamente necessárias de idéias e princípios apreendidos por intuição intelectual, ou seja, apreendidos como claros, evidentes, certos). Em Descartes, o próprio resultado do raciocínio dedutivo 27 aparece como uma espécie de intuição intelectual, na medida em que se apresenta com as características da clareza, evidência e certeza. Ideal de um conhecimento certo e seguro elaborado “dentro” da mente (com base apenas nos recursos intelectuais da própria mente). •3) Prova da existência de Deus garante a correspondência do conhecimento elaborado “dentro” da mente aos objetos realmente existentes “fora” da mente. Deus como garantidor da verdade (correspondência a objetos realmente existentes fora da mente) de ideias clara e distintamente intuídas “dentro” da mente (intuição intelectual). Em Descartes, a prova da existência de Deus é uma prova puramente lógico- conceitual, que recorre apenas ao conceito ou idéia de Deus, e ao princípio de causalidade aplicado a essa idéia. Para Descartes, examinando com atenção a ideia de Deus presente em minha mente, percebo clara e distintamente que as propriedades que se me apresentam nessa ideia (poder ilimitado ou infinito) não podem ter sido geradas ou “causadas” por minha própria mente (pois tenho consciência clara e distinta de que sou um ser limitado, com poderes limitados), mas só podem ser a marca ou presença em mim de um ser infinito realmente existente (independentemente de mim). E um ser infinito (ao qual não falta nenhuma qualidade positiva) é um ser bondoso e veraz, que não permitiria que eu estivesse enganado quando, depois de examinar com todo cuidado possível certa idéia em minha mente, me sentisse irresistivelmente impelido a julgá-la verdadeira. Objeto do conhecimento: construído ou independente? •1) Empirismo: realidade externamente dada e objeto do conhecimento são termos absolutamente idênticos. Trata-se de um pólo absolutamente independente do sujeito e das capacidades cognitivas do sujeito. Conhecimento se produz na medida em que a realidade (o objeto) “flui” PARA a mente do sujeito, por meio dos sentidos. - Para o empirismo, o objeto do conhecimento (aquilo que é conhecido nas atividades cognitivas do sujeito) é totalmente independente do sujeito, e o sujeito deve simplesmente “receber” esse objeto, da forma mais passiva e neutra possível. - Para o empirismo, além disso, o conhecimento do objeto pelo sujeito consiste numa cópia precisa e fiel do objeto independente – uma cópia possibilitada pelo fato de os sentidos do sujeito constituírem um acesso direto e confiável a este objeto totalmente independente. 28 •2) Racionalismo: Tendo em vista os propósitos do nosso curso, podemos aproximar o racionalismo cartesiano de teorias idealistas e construtivistas posteriores, de modo a destacar a prioridade do sujeito (das ideias do sujeito, da atividade cognitiva desenvolvida pela razão do sujeito) na relação sujeito-objeto. Ao fazermos isso, estamos desconsiderando aspectos importantes da filosofia de Descartes. Isso só se justifica em função dos propósitos bem específicos de nosso curso. Dito isso, podemos apresentar da seguinte maneira a prioridade do sujeito no racionalismo cartesiano. Para o racionalismo, a realidade só se torna objeto do conhecimento na medida em que o sujeito (mente, consciência), garantido pela prova da existência de Deus, projeta ou põe (“lança”) “fora” dele uma estrutura lógico-conceitual elaborada inicialmente “dentro” da mente (estrutura puramente racional; fundamentalmente, estrutura de relações lógico-matemáticas, aplicadas ao espaço e aos corpos no espaço). Nesse sentido, o objeto do conhecimento não é a realidade independente que é externamente dada ao sujeito (através dos sentidos), mas a realidade que é “construída” pela projeção de uma estrutura puramente racional (inata). (Realidade que é construída à medida que o sujeito projeta fora dele uma estrutura lógico- matemática elaborada dentro de sua mente). Nesse sentido, em vez de ser independente, o objeto do conhecimento é construído pela atividade cognitiva desenvolvida pela razão (pura) do sujeito. O objeto que pode ser conhecido e é realmente conhecido é uma entidade construída pelo sujeito, por meio da projeção de uma estrutural lógico-conceitual elaborada dentro da mente (cuja correspondência com a realidade é garantida pela existência e perfeição de Deus). 29 Tópico 7: Empirismo e Idealismo no século XVIII (1701-1800). Empirismo no século XVIII: D. Hume. Idealismo no século XVIII: I. Kant O contexto histórico do debate •Século XVIII: Liberalismo e Iluminismo. O Liberalismo como doutrina: a) Liberdade do ser humano como princípio e valor (fim) da ordem social. Princípio (e Fim) do Estado não é mais a ordem divina ou tradicional do mundo. Surgem nesse momento duas interpretações distintas da liberdade humana, que dão origem a duas posições distintas dentro do multifacetado campo do liberalismo. A primeira posição interpreta a liberdade em termos mais individualistas: liberdade é o poder de escolha do indivíduo, e o direito de escolha do indivíduo. Enfatiza-aqui a livre escolha. Enfatiza-se também a esfera privada do indivíduo, como esfera em que se exerce sua livre escolha. Um dos principais expoentes dessa interpretação é o empirista John Locke (1632- 1704). A segunda posição interpreta a liberdade associando-a à razão como capacidade de conhecer a Verdade nas questões práticas, a qual pode ser identificada ao Bem e à Justiça: liberdade é a capacidade que o ser humano tem de conhecer e seguir o Bem (o bem conhecido pela razão tende a ser identificado ao que é bom para todos) e a Justiça. Nesta interpretação, a liberdade está estreitamente associada ao direito e ao dever de participar do processo de busca do Bem Comum e da Justiça. Há aqui maior valorização da esfera pública, como esfera em que se desenvolve este processo de busca do Bem Comum, conduzido pela Vontade Geral dos cidadãos, ou seja, a Vontade que, por ser estritamente racional, é idêntica em todos os indivíduos. Desse ponto de vista, a liberdade é a capacidade de seguir a Vontade Geral. Um dos principais expoentes dessa interpretação é o idealista Kant (1724-1804), que foi muito influenciado por Rousseau (1712-1778). Para Kant, o verdadeiro sentido da liberdade humana reside no direito e dever de usar, cultivar e seguir a própria Razão, entendida como capacidade de descobrir e perseguir a Justiça, a Correção, o Bem Comum. B) Defesa dos Direitos Humanos, como condições e garantias do exercício da liberdade. Tais Direitos são apresentados como direitos naturais do homem, ou seja, sua validade não depende das leis contingentemente vigentes nos diferentes Estados. 30 Trata-se dos direitos clássicos do liberalismo: direito à liberdade pessoal e ao devido processo legal (proteção em relação a atos arbitrários ou abusivos por parte dos agentes do Estado ou do governo); direito à liberdade de pensamento e opinião; direito à liberdade de religião e culto (implicando separação entre Estado e Igreja); direito à liberdade de expressão; direito a algum tipo de participação na discussão das questões e decisões políticas. O respeito a tais direitos configura o chamado “Estado de direito”, fundado ainda na igualdade dos cidadãos perante o Estado e a Lei (contra os tradicionais privilégios da nobreza e clero, típicos da ordem absolutista). Estes direitos também podem ser interpretados de duas maneiras, em correspondência com as duas posições acima expostas. Na primeira interpretação, eles são vistos como condições e garantias do exercício da livre escolha na esfera privada do indivíduo. Na segunda interpretação, eles são vistos como condições e garantias do exercício da razão humana, como capacidade de conhecer e seguir o Bem Comum e a Justiça. Para garantir o pleno exercício da Razão, é preciso garantir a liberdade de pensamento, de culto e de expressão. O Liberalismo como movimento político: Movimento de supressão das monarquias absolutas e dos privilégios tradicionais da nobreza e clero, e de instauração dos Estados constitucionais, baseados em declarações dos direitos e liberdades dos cidadãos. Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688, no finalzinho do século XVII); Independência dos EUA, contra a política “absolutista” da monarquia inglesa nas colônias norte-americanas (1776), Revolução Francesa (1789). c) Iluminismo: movimento de idéias bastante próximo ao liberalismo. Crença na capacidade da razão humana de progressivamente desvendar, conhecer e dominar a natureza, tendo em vista a realização da felicidade humana. Rejeição de autoridades externas à razão individual, como a Igreja (anti-clericalismo). Confiança no progresso contínuo do conhecimento científico, como instrumento de promoção da felicidade terrena. Ideal de libertar a humanidade dos grilhões que lhe são impostos pela ignorância e superstição. Difundir as “Luzes”, contra as trevas e obscurantismo (que tendem a ser associados aos dogmas da religião, e especialmente à Igreja católica). - Na França, publicação da primeira “Enciclopédia” (início em 1751): sintetizar em uma obra todo o saber da época, tornando-o disponível a todos os homens-cidadãos. 31 O Empirismo no século XVIII Principal defensor do empirismo no século XVIII: David Hume (“Tratado sobre a natureza humana”, 1739, e “Investigação sobre o Entendimento Humano”, 1748). Questão colocada por Hume: sentidos não captam as características da necessidade e universalidade, que são características fundamentais do conceito de causalidade e das Leis da natureza que a ciência pretende apresentar. Hume problematiza o conceito de indução, tal como compreendido pelos empiristas do séc. XVII. Não há base objetiva para “pularmos” de observações particulares para enunciados necessários e universais (tal “pulo” não se baseia em intuição sensível, pois os sentidos não vêem ou captam a necessidade e universalidade; nem em raciocínio lógico, pois necessidade e universalidade não são conseqüências logicamente necessárias das observações particulares). Para Hume, o que nós literalmente vemos ou observamos são simples regularidades, de alcance limitado ou parcial: até hoje a natureza tem apresentado esta regularidade. Em um sentido estrito e rigoroso, nós não sabemos se esta regularidade equivale a uma “Lei” (necessária e universal) da natureza (“sempre vai ocorrer assim”). Hume estabelece uma diferença entre conhecimento puramente lógico ou lógico- matemático, caracterizado pela necessidade lógica das relações entre idéias, e, por outro lado, conhecimento da natureza, entendida como realidade externa, independente das ideias na mente humana. Para Hume, conhecendo o significado previamente atribuído às noções matemáticas, nós podemos reconhecer certas relações logicamente necessárias entre elas. Mas este tipo de conhecimento é distinto do conhecimento da realidade externa em sentido estrito. Em outras palavras, Hume estabelece uma diferença entre a necessidade lógica das relações entre idéias matemáticas e, por outro lado, a necessidade empírica das relações entre eventos da natureza, que nosso conhecimento da natureza pretende exprimir. E pergunta se essa pretensão é justificada. Podemos de fato “saber” que as relações entre eventos da natureza são rigorosamente necessárias? Podemos de fato conhecer relações causais rigorosamente necessárias entre dados ou eventos da natureza? Estas perguntas são feitas contra o pano de fundo da concepção da ciência como um saber certo e infalível, imune a erros. Desse ponto de vista, se os eventos da natureza são encadeados segundo relações necessárias e deterministas (como era pressuposto), nosso conhecimento da natureza, se é um conhecimento verdadeiro, ou seja, um conhecimento que reflete a própria natureza, deve ser igualmente necessário, no sentido de certo e seguro, isento de “margens de erro”. Desse ponto de vista, ou nesse contexto histórico, a indução era compreendida como um método de descoberta das leis necessárias de encadeamento dos eventos naturais, 32 e não como um método de formulação de correlações estatísticas, admitidamente sujeitas a “margens de erro”. Resposta de Hume aos problemas que ele mesmo coloca: Indução se baseia num fundamento “subjetivo”: hábito/costume da nossa mente de associar necessidade e universalidade às regularidades que observamos. Necessidade e universalidade refletem um hábito da nossa mente. Hume analisa a indução da seguinte maneira. Através da indução, nós transformamos as regularidades observadas, que têm alcance limitado ou parcial, em leis universais e necessárias. Não há nenhuma base objetiva para operarmos essa transformação, mas uma base “subjetiva”: a “natureza” de nossa mente, no sentido dos hábitos de nossa mente, padrões habituais segundo os quais ela opera. Em um sentido rigoroso e estrito, nós não sabemos (com certeza) se as regularidades observadas equivalem a leis universais e necessárias da própria natureza; nós sequer sabemos com certeza se a natureza segue leis necessárias e universais. Entretanto, nossa “natureza” (a natureza de nossa mente, que se exprime em seu modo habitual de comportar-se) nos compele a pensar e julgar assim, e a nos comportar de acordo com esse juízo. Nossos hábitos mentais nos compelem a transformar as regularidades que observamos em leis necessárias da própria natureza. O que nós literalmente vemos ou observamos são simples regularidades, de alcance limitado ou parcial: até hoje a natureza tem apresentado esta regularidade. Em um sentido estrito e rigoroso, nós não sabemos se esta regularidade equivale a uma “Lei” (necessária e universal) da natureza (“sempre vai ocorrer assim”), mas estamos habituados a pensar e esperar que se trata efetivamente de uma Lei. Hume mantém a tese de que a indução representa o método correto para a descoberta ou obtenção das (presumidas, esperadas) leis da natureza, entendidas como leis necessárias do encadeamento dos eventos naturais. Embora baseada num “hábito” da mente, a indução é o melhor método para tentarmos conhecer a realidade objetiva. Por outro lado, a obra humeana sugere uma visão falibilista do conhecimento científico: não podemos ter certeza de que as Leis que atribuímos à natureza (e que formulamos com base na indução) são absolutamente necessárias; não podemos ter certeza de que o conhecimento científico de que dispomos é infalível, isento de “margens de erro”. 33 O Idealismo no século XVIII Em função dos propósitos do nosso curso, vamos considera-lo como um desenvolvimento do racionalismo do século XVII. Principal expoente: Immanuel Kant (Crítica da Razão Pura, 1781). Aceita os problemas apontados por Hume, mas não aceita sua solução. Seguindo Hume, Kant afirma que necessidade e universalidade não são características captadas pelos sentidos. Contra Hume, afirma que elas não se enraízam num mero “hábito” (característica meramente subjetiva) da mente humana, mas numa atividade legisladora (de impor leis) que é simultaneamente construtora da objetividade da realidade. Necessidade e universalidade são expostas como características da estrutura lógico-conceitual que o sujeito impõe a todos os dados que lhe aparecem, e essa atividade de “imposição” constrói a objetividade que a realidade tem para nós. Para Kant, em outras palavras, a mente “constrói” a objetividade que a realidade tem para nós. Ela não produz ou cria os conteúdos da realidade, mas impõe uma estrutura formal a tais conteúdos, encaixando-os nesta estrutura. Esta estrutura formal consiste em regras de organização do espaço-tempo. Para Kant, há regras inatas (sediadas na razão pura) de organização das sensações e de construção da forma geral da realidade objetiva. Trata-se de regras de organização do espaço-tempo, e de organização da nossa experiência no espaço-tempo, que incluem a regra da causalidade, com a necessidade que lhe é típica. Em Kant, o elemento “inato” não equivale mais a conhecimento de objetos, mas a conhecimento da forma geral da realidade objetiva, que vale para todos os conteúdos que sejam ou venham a ser dados na sensibilidade. Por outro lado, o conhecimento da forma geral da realidade objetiva só se transforma em conhecimento de objetos propriamente ditos à medida que é complementado ou preenchido por conteúdos dados na sensibilidade. Os objetos da realidade objetiva consistem em conteúdos (dados na sensibilidade) estruturados e organizados segundo a forma geral imposta pela razão pura. Em outras palavras, os objetos consistem num elemento formal preenchido por conteúdos dados na sensibilidade. Assim, os enunciados que descrevem a forma geral da realidade objetiva apresentam as seguintes características. Por um lado, são enunciados logicamente independentes da experiência sensível (enunciados a priori, ou seja, logicamente anteriores à experiência sensível). Por outro lado, são enunciados que pretendem ser informativos sobre os próprios objetos da nossa experiência, enunciados cuja validade não se restringe à coerência lógica interna a determinado sistema linguístico convencionalmente adotado. 34 No vocabulário kantiano, trata-se de enunciados “sintéticos”, distintos dos enunciados “analíticos”, que equivalem a meras definições, cuja validade restringe-se à coerência lógica interna a um sistema linguístico convencionalmente adotado. Por exemplo, suponhamos que em determinado sistema linguístico não tenham sido adotadas as categorias conceituais de “divorciado” e “viúvo”, por qualquer razão que seja – digamos que no momento de construção do sistema não tinham aparecido, ou não despertaram atenção, ou não apareciam como suficientemente relevantes, os fenômenos que poderiam demandar a introdução e adoção dessas categorias. Neste sistema, o enunciado “todo não-solteiro é casado” equivale a um enunciado estritamente analítico, ele é analiticamente verdadeiro, ou seja, ele é verdadeiro em virtude das relações lógicas internas ao sistema linguístico adotado. Ele tem uma validade meramente analítica, e por isso mesmo “a priori” (independente da experiência). Embora a validade “sintética” (caráter efetivamente informativo) deste enunciado em relação àquilo que acontece em nossa experiência seja questionável ou duvidosa (pois os divorciados em princípio representam não-solteiros que não são casados), isso não é relevante para sua validade meramente analítica, pois o enunciado, tomado como enunciado analítico, é “a priori”, ou seja, logicamente independente do que acontece na experiência sensível. Para Kant, a validade “a priori” (validade que é independente dos eventos da experiência sensível) normalmente equivale a uma validade meramente analítica (baseada apenas nas relações lógicas internas a um determinado sistema linguístico). A exceção são os enunciados “sintéticos a priori”, como, por exemplo, “Tudo que acontece é necessariamente determinado por uma causa (antecedente)”. Para Kant, este enunciado é simultaneamente “a priori” (pois exprime uma regra de organização logicamente anterior à experiência sensível, logicamente independente em relação à experiência sensível) e “sintético” (pois tem um caráter efetivamente informativo a respeito dos objetos que se dão na realidade que é objetiva para os homens). No vocabulário kantiano, é um enunciado “sintético a priori”. Ocorre a mesma coisa com os enunciados da matemática em geral e da geometria euclidiana em particular. Este é um ponto que será retomado mais a frente. No idealismo kantiano, estabelece-se uma distinção entre a natureza ou realidade “em si mesma” (“coisa-em-si”) e a realidade “para nós” (que equivale à “realidade objetiva”). A “realidade para nós” é construída por uma atividade de imposição de regras ou leis de organização: imposição sobre as “aparições (“fenômenos”) de regras de estruturação e organização congênitas à mente, ou seja, inatas. Em outras palavras, a realidade objetiva são os fenômenos, estruturados e organizados por regras e princípios inatos. Todo conhecimento científico ou teórico precisa de uma contribuição da intuição sensível. Kant rejeita a intuição intelectual como fonte de conhecimento de objetos. Só há conhecimento teórico quando as regras de organização “a priori” são efetivamente 35 aplicadas a conteúdos singulares dados na sensibilidade (ou que possam se dar na continuação da investigação científica). Só há conhecimento teórico à medida que a estrutura formal é preenchida por conteúdos efetivamente dados na sensibilidade. Por isso, Kant rejeita a possibilidade de conhecimento teórico de Deus, ou da existência de Deus. Ele a rejeita porque nenhum conteúdo dado na sensibilidade preenche efetivamente o mero conceito de Deus. Esta é uma diferença fundamental em relação a Descartes. Assim, a validade objetiva (ou seja, aplicabilidade à natureza existente fora da mente do sujeito) da estrutura lógico-matemática baseia-se, não mais na perfeição, bondade e veracidade de Deus, mas na atividade “legisladora-impositiva” do sujeito (“sujeito transcendental”, ou seja, o próprio homem, enfocado como condição de possibilidade da própria realidade objetiva). Objeto do conhecimento: construído ou independente? •1) Empirismo de Hume: (a) Objeto do conhecimento (identificado à realidade externa e independente) é independente da consciência do sujeito (igual ao empirismo de Bacon e Locke); (b) Conhecimento teórico (científico) é constituído por observações “puras” dessa realidade independente, com uso do método da indução. (igual ao empirismo de Bacon e Locke); (c) Conhecimento científico é falível, pois nosso acesso à realidade independente não é absolutamente seguro e abrangente (diferente do empirismo de Bacon e Locke). •2) Idealismo de Kant: (a) Objeto do conhecimento é a realidade “para nós”, distinta da realidade “em si mesma”. •(b) Objeto do conhecimento (realidade para nós) é construído pela atividade cognitiva do sujeito: atividade na qual o sujeito impõe a tudo que aparece (os fenômenos) uma estrutura lógico-conceitual única e abrangente. Conhecimento teórico é constituído por observações singulares encaixadas numa estrutura conceitual (causal e determinista) única e abrangente. •(c) Conhecimento científico é rigorosamente necessário (mais precisamente, a estrutura formal é infalível, embora possamos eventualmente nos enganar em relação aos conteúdos que preenchem esta estrutura formal. A lei “tudo que acontece tem uma causa” é infalível, embora possamos às vezes nos equivocar quanto aos conteúdos que preenchem a posição de “causa” em determinado ponto da estrutura formal. Mas este é um aspecto que não é enfatizado). 36 Tópico 8: Empirismo Lógico e Racionalismo Crítico de Popper. O debate entre empirismo lógico e racionalismo crítico se desenvolve, basicamente, entre os anos 1920 e 1950. O empirismo lógico é defendido por um conjunto de filósofos reunidos no chamado “Círculo de Viena”. O racionalismo crítico é defendido pelo filósofo austríaco Karl Popper. Os antecedentes históricos do debate. Os antecedentes que definem o contexto do debate. •1) Desenvolvimento e aplicação empírica de geometrias não-euclidianas (a partir de 1830, aproximadamente). •Conseqüência: abandono da tese (adotada pelo racionalismo do século XVII e idealismo do século XVIII) de que a matemática representa um conhecimento rigorosamente necessário (infalível) da estrutura essencial da realidade objetiva. Reconhecimento de que a verdade matemática (necessidade/coerência lógica de um sistema construído a partir de princípios convencionais, ou convencionalmente adotados) distingue-se essencialmente de verdade empírica (aplicabilidade e validade para a natureza, ou para a realidade objetiva; informatividade em relação à realidade objetiva). A consequência, em outras palavras, foi que a tradição racionalista/idealista (a tradição que confere prioridade ao sujeito na relação sujeito-objeto) teve de abandonar a tese kantiana de que os enunciados da geometria euclidiana são enunciados “sintéticos a priori”, ou seja, enunciados logicamente independentes das informações empíricas, mas ao mesmo tempo necessariamente informativos a respeito de todos os setores ou âmbitos da realidade externa. Em função dos propósitos do nosso curso, o Racionalismo Crítico de Karl Popper, ao ser contrastado com o Empirismo Lógico do Círculo de Viena, pode ser considerado uma versão da tradição racionalista/idealista, ou seja, a tradição que confere prioridade à razão do sujeito na relação sujeito-objeto. Entretanto, ao contrário do que ocorre nas versões anteriores, no Racionalismo Crítico de Popper não se defende a tese das verdades inatas e dos enunciados sintéticos a priori. Breve esclarecimento: geometrias não-euclidianas são geometrias que rejeitam o “Quinto Postulado” de Euclides, adotando outros pontos de partida. O Quinto Postulado é o enunciado segundo o qual “Dados em um plano uma reta s e um ponto p fora dela, existe no plano uma única reta r que passa por P e é paralela a s”. Uma das consequências (conclusões) que podem ser dedutivamente extraídas deste postulado é o enunciado de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180 graus. Ora, na tradição racionalista/idealista, estes dois enunciados (o 5º postulado e a conclusão sobre os ângulos do triângulo) eram vistos como verdades a priori ou inatas (verdades logicamente anteriores ou independentes em relação à experiência sensível, e por isso mesmo indubitáveis, infalíveis) e, simultaneamente, empiricamente 37 informativas, ou seja, necessariamente informativas a respeito de todos os setores e âmbitos da realidade externa. O desenvolvimento e aplicação empírica das geometrias não-euclidianas acabou dando razão a certas sugestões contidas no empirismo de Hume. Pode-se ler em Hume a sugestão de que o 5º Postulado, em vez de ser uma verdade intuitivamente certa e evidente, é uma mera definição, ou seja, uma definição convencionalmente adotada como ponto de partida de um sistema linguístico (no caso, geométrico, construído na linguagem da geometria). Além disso, pode-se ler em Hume a sugestão de que a conclusão sobre os ângulos do triângulo equivale a um enunciado meramente analítico, ou seja, um enunciado logicamente necessário dentro de um determinado sistema linguístico (a geometria euclidiana), mas não necessariamente informativo a respeito de todos os âmbitos ou setores da realidade externa. A validade empírica varia conforme o âmbito de realidade que se está investigando, e depende, portanto, de pesquisa e comprovação empíricas. Em outras palavras, pode-se ler em Hume a sugestão de que os sistemas matemáticos são ferramentas linguísticas, meios de modelagem formal, cuja aplicabilidade à realidade (validade e informatividade em relação à realidade objetiva) varia conforme o contexto de pesquisa. • 2) O desenvolvimento e desdobramento da Física acabou levando à constatação de que os fenômenos físicos são muito mais complexos do que se achava nos primeiros momentos da mecânica newtoniana. Isso acabou reforçando também um segundo aspecto da filosofia de Hume: a admissão do caráter essencialmente falível do nosso conhecimento do mundo físico. Nosso conhecimento sempre tem a forma de hipóteses essencialmente falíveis, ou seja, hipóteses que talvez precisem ser corrigidas ou abandonadas, ou ainda, e isso é o mais importante, hipóteses que não podem deixar de conter certa margem de erro (hipóteses de caráter probabilístico ou estatístico). Mais precisamente, a causa da falibilidade do nosso conhecimento não está apenas na falibilidade dos cientistas, mas na complexidade da própria realidade. Isso significa que a ideia de infalibilidade não deve ser mantida sequer como um ideal regulador, mas deve ser totalmente abandonada. Como veremos mais a frente, embora a constatação da complexidade dos fenômenos físicos não tenha levado a um abandono completo da imagem determinista ou determinística da própria realidade, ela levou à ideia de que, em muitos setores da pesquisa científica, nosso conhecimento precisa assumir a forma de enunciados e modelos de caráter probabilístico ou estatístico, em lugar de enunciados e modelos de caráter determinista. Ainda que a realidade seja deterministicamente encadeada, em muitos casos nosso conhecimento precisa limitar-se a enunciados e modelos de caráter probabilístico e estatístico, ou seja, enunciados admitidamente sujeitos a certa margem de erro. Voltaremos a esse ponto mais a frente. 3) Além disso, em virtude da enorme complexidade e sofisticação das hipóteses e modelos formulados pelos cientistas do século XIX (1801-1900) e início do XX, caíra em 38 descrédito uma tese que fora adotada pelo empirismo nos séculos XVII e XVIII: a tese de que observações não-interpretadas constituem o ponto de partida da descoberta e formulação das leis científicas. PONTO DESTACADO PELO RACIONALISMO CRÍTICO, MAS ADMITIDO PELO EMPIRISMO LÓGICO. Em outras palavras, ao contrário das teorias empiristas dos séculos XVII e XVIII, o empirismo lógico do círculo de Viena admite que as hipóteses científicas não são elaboradas a partir de observações da realidade, mas são livremente inventadas por mentes argutas e até mesmo geniais. - Ocorrem assim alterações importantes em relação à discussão anterior. Vejamos as principais alterações. Alterações em relação ao debate anterior. 1) Não se discute mais o ponto de partida da atividade de produção científica. - No debate anterior, havia discussão quanto a esse ponto de partida: - Empirismo defendia que era “folha em branco” a ser paulatinamente preenchida por observações “puras” (não-interpretadas). - Racionalismo/idealismo defendia que eram idéias inatas geradoras de uma estrutura lógico-conceitual (e matemática) necessariamente verdadeira. •No novo debate: nem uma coisa nem outra; e sim: ponto de partida consiste em hipóteses (falíveis) livremente formuladas pela razão dos cientistas. Os dois lados concordam quanto a isso. 2) Alteração no enfoque que é dado aos métodos respectivamente defendidos por empiristas e racionalistas. - No debate anterior, os empiristas defendiam o método da indução como um método de elaboração das leis da natureza a partir da experiência sensível (observações puras e não-interpretadas da natureza), do mesmo modo que os racionalistas/idealistas defendiam o método da dedução como um método de elaboração das leis da natureza a partir de idéias e princípios inatos. - No novo debate, os empiristas vão defender o método da indução como um método de justificação das hipóteses científicas livremente formuladas pelos cientistas, do mesmo modo que os racionalistas (Popper e seus partidários) vão defender o método da dedução como um método de justificação das hipóteses científicas. - Método de justificação: método que permite afirmar que determinada hipótese é uma boa hipótese, ou uma hipótese melhor que outras hipóteses eventualmente concorrentes. 3) Assim, ocorre uma alteração do cerne da discussão. - No debate anterior, o cerne da discussão era a questão do ponto de partida e do método da elaboração das leis da natureza. 39 - No novo debate, o cerne da discussão é a questão do método de justificação das hipóteses científicas livremente formuladas pela razão dos cientistas. - Com relação a esta questão, os dois lados (empirismo lógico e racionalismo crítico) concordam que não é possível o estabelecimento completo e definitivo da verdade de uma hipótese. Empirismo Lógico defende o ideal de uma confirmação gradativa e crescente das hipóteses (sem chegar ao estabelecimento completo e definitivo da verdade das mesmas), baseada no aumento do número de observações favoráveis ou confirmadoras, equivalendo ao aumento do grau de probabilidade de que desfruta a hipótese. - O empirismo lógico compreende e defende a indução como um método de justificação probabilística das hipóteses científicas. A indução é interpretada e assumida como método utilizado no cálculo da probabilidade de que desfruta a hipótese. Indução como cálculo da probabilidade de uma hipótese ser válida, a partir do conjunto das observações disponíveis. (Justificação probabilística, usando um tipo de lógica indutiva). - À luz dessa concepção, a melhor hipótese é a hipótese mais provável. - Já o Racionalismo Crítico (Karl Popper) defende o ideal de uma justificação por “fracasso na tentativa de refutação”. A justificação é constituída pelo fato de a hipótese passar por um teste em que, à luz dos conhecimentos e expectativas disponíveis, considera-se alto o risco de ela ser refutada por uma observação contrária. - Para Popper, a dedução é o método utilizado na construção dos testes através dos quais se efetua a justificação das hipóteses científicas. Em outras palavras, a dedução é o método utilizado na construção das “tentativas de refutação”. - Para Popper, a justificação das hipóteses científicas não se dá por meio de raciocínio indutivo-probabilístico, mas por meio de raciocínio estritamente dedutivo, que tem a seguinte estrutura: (1) Se a hipótese x é verdadeira, tem de ocorrer o fenômeno y (tanto a hipótese quanto o fenômeno são altamente surpreendentes ou improváveis à luz dos conhecimentos disponíveis). Com base neste primeiro passo dedutivo, montamos um teste para averiguar se o fenômeno y ocorre, embora se possa esperar, à luz dos conhecimentos disponíveis, que ele não vá ocorrer. (2) Se o fenômeno y não ocorre (como era de se esperar), a hipótese x é falsa – a hipótese é refutada. Como dito acima, o teste tem o caráter de uma “tentativa de refutação”. Entretanto, se o fenômeno ocorre, ao contrário do que se esperava, a hipótese passou no teste (na tentativa de refutação), e com isso foi “corroborada” – e para Popper dizer isso é diferente de dizer que a hipótese foi “confirmada” ou “verificada” 40 (“corroboração” é diferente de “confirmação” e “verificação”, como destacaremos logo a seguir). - Para Popper, uma boa hipótese científica apresenta a seguinte característica: à luz dos conhecimentos e expectativas disponíveis, considera-se baixa a probabilidade de o fenômeno y (mencionado acima) ocorrer. Levando-se em conta esta característica, o teste de uma boa hipótese tem o caráter de uma “tentativa de refutação”; em outras palavras, o teste caracteriza-se pelo fato de que se considera alto o risco de a hipótese ser refutada por uma observação contrária. Se isto não ocorre, há um “fracasso na tentativa de refutação”, e para Popper este fracasso equivale a uma boa justificação (ainda que essencialmente temporária) da hipótese em questão. O que é uma “boa” hipótese para Popper? Uma hipótese em princípio improvável que passa com êxito por “tentativas de refutação”. •O método da ciência é o método hipotético-dedutivo. A dedução é importante como método de explicitação de conseqüências logicamente necessárias da hipótese, que possam ser confrontadas com observações registradas em testes montados a partir da hipótese e da dedução das conseqüências que esta necessariamente implica. •Para Popper, corroboração não equivale a uma confirmação da hipótese, no sentido de um aumento da probabilidade de ela ser verdadeira. Corroboração indica apenas o desempenho da hipótese nos testes realizados até o presente; não pretende indicar probabilidade de êxito futuro. “O termo corroboração é preferível à confirmação, para não dar a idéia de que as hipóteses ou leis são verdadeiras, ou se tornam cada vez mais prováveis à medida que passam pelos testes. A corroboração é uma medida que avalia apenas o sucesso passado de uma teoria e não diz nada acerca de seu desempenho futuro” (Fernando Gewandsznajder, “O Método nas Ciências Naturais e Sociais”, Parte I, p.15 – Ed. Pioneira). •Para Popper, o objetivo do cientista não deve ser formular hipóteses com alto grau de probabilidade, mas formular hipóteses com alto grau de “refutabilidade” (probabilidade de ser refutada, avaliada à luz dos conhecimentos e expectativas disponíveis). Hipóteses com alto grau de probabilidade são teoricamente desinteressantes, ao contrário de hipóteses com alto grau de refutabilidade. Quanto maior a refutabilidade de uma hipótese, maior a corroboração que ela ganha ao passar nos testes em que corre alto risco de ser refutada. Popper rejeita a noção de probabilidade como indicativa da qualidade das hipóteses científicas. - Além disso, há uma assimetria entre a verificação (indutiva e probabilística) defendida pelos empiristas e a refutação/corroboração por ele visada. A verificação exige que se colete o maior número possível de observações confirmadoras, ao passo que a refutação se realiza por meio de uma única observação refutadora – e a corroboração é dada por uma única observação surpreendentemente favorável. 41 •Para Popper, a diferença entre o ideal da verificação (ligado ao raciocínio indutivo) e o ideal da refutabilidade/corroboração (ligado ao raciocínio dedutivo) exprime uma diferença na atitude do cientista diante da natureza. O método indutivo exprime o desejo de conformar-se fielmente ao que a natureza se presta a dizer ou informar, ao passo que o método hipotético-dedutivo exprime uma atitude de “forçar” a natureza a responder às perguntas que o cientista soberanamente lhe faz. Pode-se afirmar que, ao ser contrastado com o método indutivo-probabilístico defendido pelo empirismo lógico, o método hipotético-dedutivo exprime a primazia do sujeito na relação sujeito-objeto. Para Popper, o grande cientista abre um novo horizonte de observações relevantes. A partir de suas hipóteses os pesquisadores começam a prestar atenção (“observar”) em fenômenos que antes eram totalmente negligenciados ou ignorados. 42 Tópico 9: Reflexões sobre os limites e as condições de aplicação do método hipotético- dedutivo (Popper). - Para termos maior clareza quanto à natureza e às condições de aplicação dos métodos dedutivo e indutivo analisados na última aula, é importante estabelecermos duas distinções básicas. - Em primeiro lugar, é importante estabelecermos uma distinção entre a imagem que se tem (ou pode ter) da realidade e a imagem que se tem do nosso conhecimento da realidade, ou das possibilidades e limites do nosso conhecimento da realidade. - Como dito acima, o desenvolvimento da Física ao longo do século XIX levou à constatação de que os fenômenos físicos são muito mais complexos do que se pensava nos primeiros momentos da mecânica newtoniana. A partir de meados do século XIX, os físicos passam a admitir que a realidade comporta um número de variáveis, condições e circunstâncias infinitamente maior do que aquele que era focalizado na prática científica dos primeiros momentos da mecânica clássica. Gostaríamos de analisar os efeitos desta constatação para as duas imagens acima distinguidas. - No que diz respeito à imagem de realidade, tal constatação não chegou a acarretar um abandono completo da imagem determinística da realidade, segundo a qual os eventos individuais da realidade estão encadeados por relações de causalidade de caráter determinístico, ou seja, relações que fazem com que cada evento seja rigorosamente determinado por condições antecedentes, e nesse sentido necessário. Embora a questão seja muito discutida, ainda é possível hoje em dia manter uma imagem determinística da realidade, e nós nesse momento vamos supor que ela seja aceita. - No que diz respeito à imagem do nosso conhecimento da realidade, entretanto, a admissão da complexidade acarretou uma modificação importante. Abandonou-se a imagem do conhecimento como um conjunto de enunciados certos e infalíveis. Mais precisamente, abandonou-se o ideal de um conhecimento certo e infalível. Como afirmado acima, passa-se a admitir que a causa da falibilidade do nosso conhecimento não está apenas na falibilidade dos cientistas, mas na complexidade da própria realidade. Isso significa que a ideia de infalibilidade não deve ser mantida sequer como um ideal regulador, mas deve ser totalmente abandonada. Ao admitir que a realidade é infinitamente complexa, o cientista tem de admitir que as hipóteses e modelos que ele propõe sempre podem esbarrar numa variável ou condição negligenciada ou desconhecida. Por mais genial, cauteloso e aplicado que seja o cientista (ou grupo de cientistas), não se pode mais alimentar o ideal de elaborar um modelo teórico capaz de “corresponder” integralmente a todas as circunstâncias e condições da própria realidade. - Em outras palavras, impôs-se uma imagem falibilista do nosso conhecimento da realidade. 43 - A segunda distinção básica que precisamos estabelecer é “interna” à imagem falibilista do nosso conhecimento da realidade. No âmbito dessa imagem falibilista, é possível distinguir duas imagens dos modelos teóricos com que os cientistas procuram lidar com a realidade por eles investigada: uma imagem determinista dos modelos teóricos e uma imagem probabilística e estatística dos modelos teóricos. - Numa imagem determinista do modelo teórico, supõe-se e espera-se que o modelo desde o início abarque as relações, condições e variáveis que são essenciais para previsões suficientemente precisas e bem sucedidas. Nesse caso, fenômenos que não se encaixam no modelo abalam o modelo como um todo. - O método hipotético-dedutivo defendido por Popper associa-se a esta imagem determinista dos modelos teóricos. - Numa imagem probabilística e estatística dos modelos teóricos, admite-se a inevitabilidade e até conveniência de ajustes tópicos nas correlações grosso modo causais apresentadas no modelo. O modelo desde o início se presta a revisões pontuais acarretadas por novas observações. - A metodologia indutiva associada ao empirismo em geral combina melhor com esta imagem probabilístico-estatística dos modelos teóricos. - A partir de agora, vamos desenvolver e esclarecer essas imagens por meio da discussão de alguns exemplos de uso das noções de relação causal e lei causal. - As noções de causa, relação causal e lei causal dizem respeito às relações entre eventos (ocorrências) da realidade. Nós podemos usar essas noções em dois tipos de contexto: contextos regidos por uma imagem determinista do modelo teórico, e contextos regidos por uma imagem probabilístico-estatística do modelo teórico. - Para abreviar a terminologia, vamos chamar os primeiros contextos de “contextos deterministas”, e os segundos de “contextos probabilísticos”. - Como sugerido acima, a diferença entre esses dois tipos de contexto não remete à realidade que se está pretendendo conhecer, mas à nossa pretensão de conhecimento: tem a ver com o tipo de conhecimento que nos sentimos em condições de ter e expressar, ou com o tipo de conhecimento que estamos pretendendo expressar. Tem a ver com os limites que estamos reconhecendo em nosso conhecimento da realidade. - De modo mais preciso, a diferença tem a ver com o tipo de modelo teórico que usamos para tentar conhecer a realidade. - Contextos deterministas são aqueles nos quais temos pretensões mais ousadas de conhecer as relações causais entre os eventos da realidade. Contextos probabilísticos são aqueles nos quais somos mais modestos em nossa pretensão de conhecer tais relações. 44 - Contextos deterministas são aqueles nos quais acreditamos poder conhecer relações causais necessárias entre eventos individuais da realidade – por exemplo, o evento “aquecimento da água a 100°C” (causa) e o evento “ebulição da água” (efeito). - Neste tipo de contexto, se nós acreditamos poder conhecer uma relação causal necessária e determinada entre eventos individuais da realidade, é porque acreditamos que as relações entre os eventos individuais estão subordinadas a uma relação mais geral ou universal, igualmente necessária e determinada, entre tipos de evento. Em outras palavras, acreditamos que a relação entre os eventos individuais está subordinada a uma lei causal universal (por exemplo, “Sempre que a água atinge a temperatura de 100°C, ela entra em ebulição”). - Contextos probabilísticos são aqueles nos quais reconhecemos que o máximo que podemos conhecer são correlações probabilísticas entre eventos individuais, ou correlações estatísticas entre tipos de evento. Se pensarmos, por exemplo, na relação entre o evento “uso do flúor” e o evento “aparecimento da cárie dentária”, admitimos que não podemos conhecer uma relação necessária e determinada entre esses eventos, quer sejam tomados como eventos individuais quer como tipos de evento. - No plano dos eventos individuais, admitimos que a relação entre eles depende de uma série de circunstâncias e variáveis peculiares a cada indivíduo (disposições genéticas, reações endócrinas, ocorrências no plano da alimentação, etc.), algumas das quais talvez não sejamos capazes de conhecer ou ponderar. - Entretanto, ainda que não possamos conhecer nenhuma relação necessária e determinada entre os eventos individualmente tomados, no plano mais geral dos tipos de evento talvez possamos conhecer uma relação relativamente indeterminada – a saber, a frequência relativa do tipo de evento “cárie dentária” num conjunto de seres humanos que usam flúor. Ao compararmos esta relação com a relação que se verifica num conjunto de seres humanos que não usam flúor, e ao verificarmos que a frequência da cárie no primeiro conjunto é significativamente menor do que no segundo, podemos dizer que o uso do flúor “causa” uma diminuição da incidência da cárie dentária. - No plano dos eventos individuais, não se pensa aqui numa relação necessária e determinada, mas meramente probabilística: para qualquer indivíduo, o uso do flúor diminui a probabilidade da ocorrência do fenômeno cárie dentária. No plano dos tipos de evento, não se pensa aqui numa lei causal em sentido estrito, mas numa correlação meramente estatística. - Dois esclarecimentos são importantes. - Em primeiro lugar, a correlação causal de caráter estatístico encontrada numa população como um todo não pode ser automaticamente transferida para qualquer indivíduo em particular, na medida em que, para qualquer indivíduo particular, a relação entre os eventos em questão depende de uma série de circunstâncias e condições peculiares à sua situação específica. Com a afirmação de uma relação causal 45 de caráter estatístico não pretendemos exprimir nenhuma relação peculiar a determinado indivíduo. - Suponhamos que a investigação centrada em certa população permita afirmar que o uso do flúor “causa” uma queda de 80% na frequência da cárie dentária neste conjunto de pessoas. Para qualquer indivíduo em particular, ou para qualquer ser humano tomado individualmente, esta afirmação não equivale à afirmação de que, se este indivíduo usar flúor, a probabilidade de ele apresentar cárie cai exatamente 80%. Podemos dizer que o uso do flúor produz neste indivíduo uma forte tendência à diminuição da incidência da cárie. Mas a relação entre “uso do flúor” e “ocorrência de cárie” vai depender neste caso de variáveis e circunstâncias peculiares a este indivíduo específico. - Segundo esclarecimento, que complementa o primeiro. - Ao admitirmos que não podemos conhecer nenhuma relação necessária e determinada entre os eventos em questão, não necessariamente estamos querendo dizer que a relação entre eles é em si mesma indeterminada. Ao contrário, é perfeitamente possível admitir que, para qualquer indivíduo em particular, a ocorrência ou não ocorrência da cárie dentária é rigorosamente determinada pela série de circunstâncias e condições que lhe são peculiares. O uso ou não do flúor é apenas uma dessas circunstâncias, insuficiente para determinar qualquer efeito específico. O uso do flúor cria uma tendência à não ocorrência da cárie dentária, mas não determina esta não ocorrência. Entretanto, se fôssemos capazes de conhecer e ponderar toda a série de circunstâncias próprias de certo indivíduo, seríamos capazes de mostrar de que modo o uso do flúor se liga a todas as demais circunstâncias numa relação necessária e determinada com a ocorrência ou não ocorrência da cárie dentária. - Para aprimorar este segundo esclarecimento, podemos compará-lo ao exemplo do lançamento de um dado. Embora a questão seja muito discutida, ainda é possível afirmar hoje em dia que, se pudéssemos conhecer toda a série de condições, variáveis e circunstâncias envolvidas num lançamento de dado individualmente tomado (posição inicial exata dos componentes materiais microscópicos, movimento exato dos dedos em relação a tais componentes, movimentos exatos do ar, ou coisas desse tipo), poderíamos conhecer uma relação necessária e determinada entre o evento “lançamento do dado” e o evento “posição final do dado no número 5”, ou seja, poderíamos prever sua trajetória e o número em que ele finalmente para. - Entretanto, como não podemos conhecer todas as condições e circunstâncias causalmente relevantes na trajetória individual do dado, recorremos à probabilidade. Neste caso, é mais comum recorrermos a um cálculo a priori, ou seja, logicamente independente da observação de grande número de lançamentos do dado. Com base num cálculo a priori, dizemos que a probabilidade de cair qualquer número determinado, inclusive “5”, é 1/6. 46 - Podemos agora retornar à diferença entre contextos deterministas e contextos probabilísticos de aplicação da noção de causa. Como sugerido acima, podemos afirmar que essa diferença não consiste na aceitação ou questionamento da tese de que as relações entre os eventos individuais da realidade são relações necessárias e determinadas. Podemos supor que em ambos os contextos esta tese seja aceita. - Contextos probabilísticos são aqueles nos quais admitimos que não somos capazes de abarcar e levar na devida conta todas as variáveis e circunstâncias constitutivas das relações necessárias e determinadas existentes entre eventos individuais da realidade. São aqueles nos quais somos por assim dizer menos confiantes no nosso poder de conhecer toda a realidade, ou a realidade em toda sua complexidade. Ou ainda: menos confiantes na capacidade de nossos modelos teóricos incluírem todas as circunstâncias e condições que são essenciais para as relações necessárias e determinadas entre eventos individuais da realidade. - Contextos deterministas, em contrapartida, são aqueles nos quais acreditamos poder formular um modelo teórico que abranja todas as circunstâncias e condições essenciais para as relações necessárias e determinadas entre eventos individuais da realidade. Aqueles nos quais nos sentimos mais confiantes no poder de nossos modelos teóricos: por acreditarmos que eles incluem todas as circunstâncias e condições causalmente relevantes, acreditamos que eles permitem previsões exatas e determinadas da ocorrência ou não ocorrência de eventos específicos da realidade. - Podemos utilizar a distinção entre esses contextos para efetuar uma análise das diferentes espécies de ciências; uma análise, por exemplo, de certas diferenças entre física, biologia/medicina e ciências sociais. - Ao referirmos a distinção entre contextos deterministas e contextos probabilísticos à menor ou maior intromissão da complexidade essencial da realidade na confiança que depositamos no poder preditivo e cognitivo de nossos modelos teóricos, tornamos possível afirmar que, em comparação com as ciências biológico-médicas, e com as ciências sociais, a física teórica desenvolve-se tipicamente num contexto determinista. - Isso significa que, em comparação com os cientistas dessas outras áreas, os físicos ousam acreditar mais na possibilidade de seus modelos teóricos desde o início abrangerem, de algum modo, todas as condições e variáveis que são essenciais para as relações necessárias e determinadas existentes entre os eventos individuais da realidade. - Tomemos o exemplo da relação causal entre os eventos (individuais) “aquecimento da água a 100°C” e “ebulição da água”. No contexto determinista típico da física, acredita-se que a relação entre esses eventos individuais está subordinada a uma Lei causal de caráter geral, algo do tipo “sempre que a água atinge a temperatura de 100°C, ela entra em ebulição”. 47 - Na verdade, nós sabemos que nem sempre é assim. Em pressões atmosféricas mais baixas do que a do nível do mar, a água ferve a temperaturas inferiores a 100°C. No contexto determinista da física, entretanto, a pretensão do modelo teórico é incluir essa circunstância nas condições de aplicação das leis causais gerais. Não se aceita que esta circunstância seja integrada sob a forma de um ajuste meramente pontual ou tópico, uma espécie de exceção reconhecida da regra. Ao contrário, a circunstância é integrada na medida em que se pensa a lei causal como uma lei que relaciona a ebulição não apenas à temperatura, mas também à pressão. - E a pretensão da física teórica é que a complexidade da realidade possa ser submetida a um modelo teórico capaz de incluir desde o início, e de forma coerente, todas as variáveis e condições que são essenciais para previsões suficientemente precisas e bem sucedidas dos eventos cientificamente relevantes. - Em contrapartida, em comparação com a física teórica, tanto as ciências biológico- médicas quanto as ciências sociais desenvolvem-se tipicamente num contexto probabilístico-estatístico. Os cientistas destas áreas tendem a aceitar mais a inevitabilidade dos enunciados teóricos sofrerem ajustes e acréscimos de caráter tópico, referidos às peculiaridades de situações ou casos mais específicos. - Por exemplo: mesmo um enunciado biológico mais próximo de uma lei causal em sentido estrito, como o enunciado “sempre que ocorre envenenamento com uma dose X de arsênico, o ser humano morre”, - mesmo em relação a um enunciado deste tipo admite-se a possibilidade de que, no caso específico de uma pessoa em particular, não ocorra a morte, em virtude da influência de variáveis e condições peculiares a este indivíduo específico. - E o que dizer das correlações causais sugeridas pelos cientistas sociais? Talvez seja possível propor, por exemplo, uma relação causal entre a ocorrência “sentimento de ser vítima de uma injustiça” (causa) e a ocorrência “atitude agressiva” (efeito). Entretanto, mesmo numa população pequena e delimitada, esse tipo de relação causal só pode assumir a forma de uma correlação estatística altamente suscetível de variações e ajustes pontuais, dependentes das circunstâncias individuais. - A admissão da inevitabilidade de ajustes e acréscimos de caráter mais tópico significa que, em contextos probabilísticos, tanto a elaboração do modelo teórico quanto os testes e aprimoramentos do mesmo enquadram-se melhor no método indutivo defendido pelo empirismo em geral. Ajustes e acréscimos continuamente efetuados a partir das observações de situações específicas são típicos da metodologia indutiva defendida pelos empiristas em geral. - Por outro lado, em contextos deterministas, tanto a elaboração do modelo teórico quanto o teste do mesmo enquadram-se melhor no método hipotético-dedutivo proposto por Karl Popper. 48 - Tópico 10: Positivismo e Construtivismo de Thomas Kuhn. - Positivismo: empirismo lógico E racionalismo crítico de Popper. - Construtivismo: Thomas Kuhn (“A estrutura das revoluções científicas”, 1962). - O construtivismo é um movimento muito mais abrangente do que a obra de Kuhn. Ele inclui a tradição fenomenológico-hermenêutica ligada às obras de Husserl e Heidegger, e também as teorias que, na esteira do esgotamento do empirismo lógico defendido no Círculo de Viena, elaboram a filosofia analítica da linguagem do ponto de vista da cultura, da história e das relações pragmáticas entre os usuários da linguagem. - O filósofo Jürgen Habermas, um dos teóricos nos quais mais nos inspiramos em nosso curso, pode ser considerado um expoente contemporâneo desse movimento. - Entretanto, tendo em vista os propósitos dessa primeira parte do nosso curso, vamos trabalhar mais com a obra e conceitos de Thomas Kuhn. - De acordo com Kuhn, apesar das inegáveis diferenças entre o empirismo lógico e o racionalismo crítico de Popper, há entre eles uma semelhança mais relevante do que as diferenças, que permite juntá-los numa perspectiva única, o positivismo. - O positivismo representa uma continuação da tradição empirista de conceituação da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, com sua ênfase na primazia do objeto. Da mesma forma, o construtivismo representa uma retomada e atualização das características básicas da tradição racionalista/idealista, com sua ênfase na primazia do sujeito; o que muda é o modo de conceituar essa primazia. - Quando o racionalismo crítico de Popper é contrastado apenas com o empirismo lógico, sobressaem características que vinculam Popper à tradição racionalista / idealista, com sua ênfase na primazia do sujeito. - Entretanto, quando Popper é contrastado com as teses centrais da teoria construtivista, sobressaem características que o aproximam da tradição empirista de conceituação da relação sujeito-objeto, com sua ênfase na primazia do objeto. - A esta aproximação entre Popper e o empirismo lógico daremos o nome de “positivismo”. - Para Kuhn, o que une o racionalismo crítico (Popper) ao empirismo lógico é a crença em observações não-interpretadas da realidade, ou a crença de que este tipo de observação constitui a base ou fundamento do procedimento de avaliação e justificação das hipóteses científicas. - De acordo com os construtivistas, no quadro teórico positivista as observações não- interpretadas são tomadas como observações da realidade tal como é em si mesma, independentemente de qualquer “óculos” ou interpretação oriunda dos sujeitos do conhecimento. Observações não-interpretadas equivalem a um acesso “imediato” (sem a mediação de qualquer óculos ou interpretação) à realidade em si mesma. 49 - De acordo com os construtivistas, por acreditarem que observações não- interpretadas equivalem a um acesso imediato à realidade em si mesma, os positivistas acreditam que elas podem ser tomadas como critérios ou indícios da “correspondência” das hipóteses e teorias à realidade em si mesma. - De acordo com os construtivistas, portanto, os positivistas acreditam que devemos trabalhar com uma concepção “correspondentista” da verdade, ou da validade cognitiva de hipóteses e teorias. Avaliar a validade cognitiva das hipóteses é avaliar se elas correspondem ou não à realidade em si mesma. Para fazer esta avaliação, devemos recorrer a observações não-interpretadas, tomadas como indícios desta correspondência. - Para Kuhn, a diferença entre Popper e os empiristas lógicos diz respeito apenas ao modo como posicionam as observações não-interpretadas (nas quais crêem) no quadro dos respectivos procedimentos de justificação. Em Popper, as observações não-interpretadas comparecem no quadro de um procedimento em que o cientista “obriga” a realidade a responder às perguntas que ele ousadamente lhe faz; trata-se de um procedimento em que o cientista submete sua hipótese ou teoria a um teste altamente arriscado (justificação pelo método hipotético-dedutivo). Em Popper, observações não-interpretadas favoráveis são observações “corroboradoras”, ou seja, observações que atestam o fracasso de uma “tentativa (expectativa) de refutação”. No empirismo lógico, em contrapartida, as observações não-interpretadas comparecem no quadro de um procedimento em que o cientista acumula observações confirmadoras de sua hipótese ou teoria, num esforço de verificação (confirmação) gradativa e crescente da mesma (justificação pelo método indutivo do cálculo de probabilidade). No empirismo lógico, observações não-interpretadas favoráveis são observações “confirmadoras”, ou seja, observações que elevam a probabilidade de a hipótese ou teoria ser verdadeira (corresponder à natureza). - Para os construtivistas, ao adotarem a crença de que observações não-interpretadas da realidade constituem a base do procedimento de avaliação e justificação das hipóteses, empirismo lógico e racionalismo crítico concedem primazia ao pólo “objeto” da relação sujeito-objeto. Nessa perspectiva “objetivista” ou “positivista”, a boa hipótese científica é aquela que corresponde à realidade “em si mesma” (totalmente independente do sujeito e dos esquemas conceituais ou interpretativos do sujeito), e as observações não-interpretadas desempenham a função de critério para se avaliar tal correspondência. Observações não-interpretadas favoráveis são tomadas como indícios da correspondência da hipótese à realidade em si mesma, quer sejam conceituadas em termos de observações “corroborantes” (ou não refutadoras), como em Popper, quer em termos de observações “verificadoras ou confirmadoras”, como no empirismo lógico. 50 - Tese fundamental do construtivismo de Thomas Kuhn: não há observações não- interpretadas da realidade; toda observação envolve um componente interpretativo, vinculado ao “paradigma” em que trabalha (e vive) o sujeito do conhecimento. - Paradigma: “visão de mundo” adotada em uma determinada comunidade de usuários da linguagem, ou seja, adotada numa determinada “cultura”. Paradigma: totalidade linguisticamente estruturada de termos, conceitos, princípios básicos de explicação do mundo, princípios de avaliação dos dados observados (exprimindo interesses e valores). Visão de mundo adotada na prática lingüística de uma determinada comunidade de sujeitos que produzem conhecimento em geral e conhecimento científico em particular. - Para Kuhn, não há observações não-interpretadas da realidade: o que percebemos não é a realidade “em si mesma”, mas a realidade visualizada, nomeada, classificada, organizada e reconhecida segundo a totalidade lingüístico-conceitual na qual estamos imersos (ou dentro da qual vivemos). - Para os construtivistas, “ver” é “reconhecer”, ou seja, reconhecer o dado como caso de um conceito (uma regra de classificação e organização dos dados). - Para os construtivistas, não podemos “sair” da esfera de nossa visão de mundo ou paradigma (não podemos “tirar o óculos” com que vemos a realidade) para comparar nossas hipóteses e teorias com a realidade “em si mesma”. Podemos trocar de óculos, ou melhor, efetuar ajustes em nossos óculos, mas não podemos ver as coisas sem (algum) óculos (estrutura linguístico-conceitual). - Para os construtivistas, a totalidade (ou “rede”) dos conceitos e princípios tem prioridade lógica sobre os enunciados e conceitos mais específicos ou particulares: só compreendemos o real significado de conceitos ou enunciados específicos à luz da totalidade conceitual e explicativa de que eles fazem parte. É na rede explicativa como um todo que nos situamos para aplicar os conceitos e princípios que fazem parte da mesma (É por isso que o construtivismo é muitas vezes chamado de “holismo”). - No contexto da prática científica, o peso (ou relevância) de uma observação sempre é definido a partir do paradigma no qual trabalha o cientista. Para Kuhn, atribuir um determinado peso ou relevância a uma observação é uma forma de interpretá-la. - Para Kuhn, ao contrário do que pensa Popper, uma observação desfavorável a uma teoria nunca funciona como refutação cabal da mesma. No contexto do paradigma em que a teoria se encaixa, a observação desfavorável recebe uma interpretação por assim dizer acomodadora. A observação é tomada como (comparativamente) irrelevante, ou seja, de menos peso do que outras observações, favoráveis à teoria. Ou, no máximo, é tomada como indício de que os cientistas ainda não exploraram todo o potencial explicativo da teoria em questão, de que é preciso trabalhar mais em cima da teoria. 51 Em outras palavras, na perspectiva desta interpretação acomodadora, a observação desfavorável aparece como mera “anomalia” (conceito empregado por Kuhn). - A realidade sempre nos aparece pelas lentes ou óculos de nosso paradigma; não podemos ver a realidade “em si mesma”, ou ter acesso à realidade em si mesma. A realidade sempre é a realidade “para nós”. - O objeto do conhecimento sempre é construído pelos sujeitos do conhecimento, à medida que estes aplicam os recursos lingüísticos, conceituais e interpretativos próprios do paradigma no qual vivem e trabalham. - É por isso que a abordagem de Thomas Kuhn representa uma retomada da tradição “construtivista” do racionalismo/idealismo clássicos, com sua ênfase na primazia do pólo “sujeito” na relação sujeito-objeto. - Há uma diferença fundamental, porém: no construtivismo de Thomas Kuhn, a estrutura organizadora que o sujeito projeta sobre a realidade a ser conhecida não é uma estrutura essencialmente mental (individual), inata e a-histórica (invariável no tempo), como ocorria no idealismo kantiano, mas, sim, uma estrutura essencialmente lingüística (intersubjetiva), cultural e histórica (variando no decorrer da história). É uma estrutura mais “interpretativa” do que “organizadora”. Substituição da concepção “correspondentista” da verdade por concepções “epistêmicas”. - Para os partidários do amplo movimento filosófico do construtivismo, a abordagem positivista trabalha com uma concepção equivocada da verdade, a concepção “correspondentista”, segundo a qual a verdade deve ser pensada em termos de correspondência dos enunciados à realidade em si mesma. - Para os construtivistas, não devemos trabalhar com esta concepção correspondentista, porque não dispomos de critérios para operacionaliza-la. Na ausência de observações não-interpretadas, ou seja, na ausência de um acesso imediato à realidade em si mesma, não temos nenhum critério ou indício da correspondência, o que significa que não podemos utilizar a concepção correspondentista. - Para os construtivistas, devemos trabalhar com uma concepção “epistêmica” da verdade: a verdade não deve ser entendida em termos de correspondência do enunciado ou teoria à realidade “em si mesma”, mas em termos de maior ou menor adequação do enunciado ou teoria a critérios cognitivos (epistêmicos) internos à prática científica dos sujeitos. - Variando o âmbito ou contexto da prática científica, os critérios epistêmicos podem variar. Pode haver diferentes concepções epistêmicas da validade das teorias. 52 - Os construtivistas muitas vezes adotam a seguinte tese. No âmbito das ciências da natureza, os critérios epistêmicos estão fundados num interesse básico, subjacente à prática das ciências da natureza: o interesse no êxito ou sucesso na lida com uma realidade que não está ao nosso inteiro dispor. - Este interesse no êxito da lida com a realidade natural desdobra-se nos seguintes interesses: a) Interesse em prever o maior número possível de ocorrências e eventos desta realidade. Interesse em previsões exatas do maior número possível de ocorrências. b) Interesse em exercer o maior controle ou domínio possível sobre as ocorrências e eventos desta realidade. - Podem-se distinguir pelo menos três concepções epistêmicas da verdade. Estas concepções não são incompatíveis entre si, elas muitas vezes se misturam. As diferenças entre elas têm mais a ver com questões de ênfase. 1ª) Concepção que enfatiza a importância da coerência de qualquer hipótese ou teoria mais específica com o quadro teórico mais abrangente preferido pela comunidade científica. Concepção que enfatiza também a importância de se ter um quadro teórico capaz de integrar de forma conceitualmente coerente o maior número e variedade possível de informações sobre a natureza. Importância de um quadro teórico o mais abrangente possível (com maior poder de explicação), e coerente. Concepção “coerentista” da verdade. 2ª) Concepção que enfatiza a importância da justificabilidade e aceitabilidade de certa hipótese ou teoria num contexto ideal de discussão científica, ou seja, um contexto que incorpore o maior número possível de modelos teóricos, de informações sobre a realidade e de critérios de interpretação e ponderação destas informações. Concepção que enfatiza a importância do acordo ou consenso dos cientistas nesse contexto ideal de discussão científica. Concepção “consensual” da verdade. 3ª) Concepção “pragmatista” da verdade, que enfatiza a importância da utilidade do modelo teórico para a previsão, controle e domínio dos eventos e processos naturais, tendo em vista a realização dos propósitos ou preferências dos seres humanos. 53 - Tópico 11: Positivismo e Construtivismo nas esferas da Teoria da Sociedade e da Teoria das Organizações. - Faremos agora uma primeira aproximação das imagens até aqui expostas com a Teoria da Sociedade e com a Teoria das Organizações. Vamos nos concentrar nas imagens positivista e construtivista. Lembremos que, no contraste com a abordagem construtivista, o racionalismo crítico de Popper fica incluído na imagem positivista. - Os princípios básicos de nossa exposição são tomados da obra de J. Habermas. Como foi dito anteriormente, em nosso curso estamos considerando Habermas como um dos principais expoentes da perspectiva construtivista. A exposição que faremos, inclusive da imagem positivista da relação sujeito-objeto e seu correlato na campo das ciências sociais, será efetuada a partir da perspectiva construtivista delineada na obra de J. Habermas. - O primeiro ponto a ser destacado é o seguinte. As organizações não são objetos naturais, mas sociais. Os fenômenos que as constituem não são fenômenos naturais, mas fenômenos humanos e sociais. - As imagens expostas até aqui são imagens da relação entre o sujeito do conhecimento (sujeito que produz conhecimento) e o objeto do conhecimento (objeto conhecido no conhecimento produzido pelo sujeito). Nossa pergunta é: de que modo estas imagens se comportam quando o polo “objeto” é constituído por um objeto social, e não natural? - Comecemos com a imagem positivista da relação sujeito-objeto. - A imagem positivista desta relação é caracterizada pela primazia concedida ao polo “objeto”. O objeto é tomado como uma realidade totalmente independente das ideias e conceitos que os homens (sujeitos do conhecimento) têm sobre ela. Além disso, os positivistas supõem que o sujeito (o cientista) tem um acesso imediato a esta realidade independente, um acesso constituído por observações puras e neutras, depuradas de todo componente interpretativo de caráter meramente cultural. - Assim, no âmbito da imagem positivista, o sujeito (cientista) adota uma atitude (perspectiva) de mero observador de um objeto externo e independente, ou seja, externo e independente em relação aos seus (do sujeito) conceitos, aos seus princípios de explicação e compreensão, aos seus interesses de conhecimento. - Cabe ao sujeito (cientista) reproduzir este objeto independente em descrições neutras e exatas. - De que modo esta imagem se comporta quando o “objeto” é “social”, ou seja, quando o objeto investigado são homens, relações e interações humanas, grupos humanos, sociedades? 54 - A postura de mero observador tem nesse caso os seguintes efeitos. - Há uma desvalorização das ideias e modos de pensar conscientemente adotados pelos seres humanos investigados pelo sujeito-cientista. O cientista positivista não nega que os homens que ele investiga têm ideias e concepções que eles usam em suas vidas. Mas ele trata essas ideias como fenômenos derivados (secundários), de algum modo subordinados a condições, estruturas e processos mais profundos ou fundamentais, e de caráter “objetivo”, quer dizer, independentes das ideias que aparecem no nível “derivado” da consciência. - Assim, a principal consequência da imagem positivista da relação sujeito-objeto é uma imagem positivista do objeto “sociedade”. No âmbito dessa imagem, os componentes essenciais do objeto “sociedade” não são as ideias e modos de pensar conscientemente adotados pelos homens que vivem em sociedade, mas são, sim, estruturas e processos “objetivos”, independentes e prioritários em relação às ideias e modos de pensar que ocupam a consciência dos seres humanos. - O cientista positivista não nega que os homens que ele investiga produzem certo tipo de conhecimento sobre o mundo em que vivem, e que eles usam esse conhecimento nas questões e decisões que têm de enfrentar em suas vidas. - Mas ele estabelece uma distinção radical e essencial entre o conhecimento que ele (cientista) produz, o conhecimento propriamente científico, e este conhecimento “ingênuo” que os homens cotidianamente usam em suas vidas. Ele trata este conhecimento ingênuo como algo que está de algum modo subordinado a condições, estruturas e processos de caráter “objetivo”, independentes da consciência e das ideias que aparecem no nível da consciência. - Para o cientista positivista, o objeto da ciência social são essas estruturas e processos subjacentes e condicionantes (condicionantes dos fenômenos derivados que aparecem no nível da consciência humana). Ele pretende ter acesso a estas estruturas e processos. Ele assume a postura de observador privilegiado desses elementos “objetivos”, seu ideal é revelar tais elementos por meio de descrições “científicas”, ou seja, metódicas e exatas. - E nos âmbitos de aplicação da ciência social, a postura descritiva do observador privilegiado associa-se à postura grosso modo manipuladora de quem pretende saber como usar e/ou dirigir os modos de pensar e decidir próprios das consciências “ingênuas”. -Passemos agora à imagem construtivista da relação sujeito-objeto. - A imagem construtivista desta relação caracteriza-se pela ênfase no papel prioritário desempenhado pelas ideias e modos de pensar do sujeito que produz conhecimento. 55 - O objeto sempre é tomado como objeto do conhecimento humano, ou seja, objeto conhecido no conhecimento produzido por sujeitos. Visto dessa maneira, o objeto aparece do seguinte modo: ele é construído pelos sujeitos; mais precisamente, ele é construído à medida que os sujeitos aplicam seus modos de pensar e compreender aos dados que lhes aparecem. - No âmbito da imagem construtivista, nega-se a possibilidade de um acesso imediato à realidade a ser conhecida. Nosso contato com a realidade sempre é mediado pelo óculos linguístico-conceitual através do qual identificamos, reconhecemos e entendemos os dados que nos aparecem. - O teórico construtivista aplica essa tese inclusive aos sujeitos-cientistas, inclusive a ele próprio. - Para o teórico construtivista, a observação do cientista (de qualquer cientista, inclusive ele próprio) não é essencialmente diferente da observação cotidiana do homem comum. Ambas são feitas através de algum tipo de “óculos”. E o mesmo ocorre com a observação “estética” do artista (ou do amante da beleza da natureza), com a observação “sacralizadora” do homem religioso, etc. - Para o teórico construtivista, todos os homens são em certo sentido “sujeitos de conhecimento” – no sentido, a saber, de que todo homem “constrói” objetos de conhecimento ao aplicar seu “óculos” linguístico-conceitual-interpretativo aos dados que lhe aparecem. - O teórico construtivista enfatiza que o óculos do cientista da natureza apresenta características singulares e marcantes. Este óculos consiste em conceitos e modos de ver e explicar de caráter altamente técnico e especializado, bem distintos daqueles que são empregados na vida cotidiana. - O teórico construtivista enfatiza também que, para os propósitos de previsão e domínio dos fenômenos e processos da natureza, o óculos do cientista natural é indubitavelmente o melhor. - Mas o teórico construtivista enfatiza por outro lado a seguinte tese. O propósito de construir uma boa vida para os homens que vivem em sociedade não se limita ao propósito de previsão e domínio dos processos naturais. Embora as competências ou capacidades implicadas na realização deste último propósito tenham um papel importante na construção da boa vida em sociedade, elas não são as únicas que são importantes, e talvez nem sejam as mais importantes. E o propósito fundamental é o propósito de construir uma boa vida para os homens que vivem em sociedade. - Ao enfatizar que o propósito fundamental de toda forma de conhecimento é o de construir uma boa vida para os homens que vivem em sociedade, o teórico construtivista estabelece uma continuidade entre o trabalho do cientista natural e o trabalho do cientista social. 56 Mais precisamente, ele integra e até mesmo subordina o trabalho do cientista natural ao esforço de construção de uma boa vida em sociedade. - O teórico construtivista focaliza tanto o cientista natural quanto o cientista social como participantes desse esforço de construção de uma boa vida para os homens que vivem em sociedade. No âmbito deste tipo de focalização, o cientista natural aparece como um sujeito que, usando um óculos técnico e especializado, pensa e teoriza sobre os dados da natureza, tendo em vista o interesse em lidar de forma eficiente e bem sucedida com a natureza em geral, com os dados e processos da natureza em geral. - Já o cientista social aparece como um sujeito que, usando um óculos mais reflexivo (e nesse sentido filosófico), pensa e discute sobre os óculos que os homens usam (ou usavam, no caso de sociedades do passado) quando lidam (lidavam) de um certo modo com a natureza; e não apenas com a natureza, mas também com os homens com quem convivem. - No âmbito da imagem construtivista, “usar um certo óculos” equivale a “atribuir certo significado ou sentido”, ou “usar determinado padrão de atribuição de sentido”, ou ainda “usar determinado padrão de significação”. - No âmbito da imagem construtivista, portanto, o cientista social aparece como um sujeito que pensa e discute sobre os óculos ou padrões de significação usados nas diversas atividades que os homens realizam ao lidarem tanto com a natureza quanto uns com os outros. - Assim, à imagem construtivista da relação sujeito-objeto corresponde ou associa-se uma imagem construtivista do objeto “sociedade”. No âmbito da imagem construtivista do objeto “sociedade”, os componentes essenciais deste tipo de objeto são as ideias e modos de pensar (“óculos”, “padrões de significação”) adotados ou empregados pelos homens que vivem em sociedade, nas diferentes espécies de atividade que eles realizam ao lidarem tanto com a natureza quanto uns com os outros. Em outras palavras, no âmbito da imagem construtivista o objeto da ciência social são ideias e modos de pensar (padrões de atribuição de significado). - No âmbito da imagem construtivista, o cientista social não se coloca na posição de um observador privilegiado de estruturas e processos “objetivos” (independentes das ideias e modos de pensar), mas se coloca na posição de intérprete das ideias e modos de pensar que orientam (ou orientavam, no caso de sociedades passadas) as diversas atividades realizadas pelos seres humanos, tanto no trato com a natureza quanto no trato recíproco de uns com os outros. - Colocar-se na posição de intérprete equivale a colocar-se na posição de participante do mundo humano (atual ou passado; idêntico ou distinto do mundo em que o próprio cientista vive) no qual essas ideias e modos de pensar são (eram) utilizados – ele tenta 57 se colocar na posição de participante das atividades nas quais essas ideias e modos de pensar são utilizados. - Assim, mesmo quando o cientista social investiga uma sociedade passada, ou uma sociedade bem distinta daquela em que ele próprio vive, ele procura colocar-se na posição de um participante, ainda que um participante indireto, ou seja, um sujeito que, usando um óculos reflexivo-filosófico, que não é o óculos típico da participação direta e imediata, compreende o sentido das atividades desenvolvidas à medida mesmo que indiretamente participa delas. - Correspondentemente, mesmo quando o cientista social investiga a sociedade em que ele próprio vive, como cientista ele se coloca na posição de um participante indireto, que usa um óculos reflexivo-filosófico, distinto do óculos típico de um envolvimento mais direto e irrefletido. - E nos âmbitos de aplicação da ciência social, a postura participativa do intérprete associa-se a uma postura “comunicativo-dialógica”, de participação nas redes comunicativas através das quais são reproduzidas e eventualmente modificadas ou reconfiguradas as atitudes e modos de pensar constitutivos da sociedade em que o cientista-participante vive. Trata-se de uma participação marcada por um interesse “crítico”: modificar (“desde dentro”, e não por intervenções externas, de um agente externo) padrões de significação comparativamente prejudiciais ou desfavoráveis à boa vida em sociedade, e construir e efetivar os padrões de significação mais propícios à boa vida em sociedade. - Com base nas considerações e análises precedentes, pode-se antecipar o seguinte esquema geral das diferenças entre abordagens positivistas e abordagens construtivistas no campo da teoria das organizações. Este esquema será retomado e elaborado com base nas análises efetuadas na segunda parte do curso. Positivismo na Teoria das Organizações. Construtivismo na Teoria das Organizações. Componentes fundamentais da realidade organizacional são “objetivos”, ou seja, essencialmente independentes das competências e atividades reflexivas próprias da consciência humana. (Exemplos de elementos “objetivos”: impulsos e forças da natureza humana; necessidades da natureza humana; necessidades do “organismo social”; padrões “naturais” de cálculo e decisão racional). Realidade social e organizacional é vista como cultura, ou seja, rede de interações linguísticas constituída por padrões de pensamento (avaliação, interpretação, resposta) dependentes ou pelo menos vinculados à consciência dos sujeitos. (Consciência define-se por certas capacidades e atividades: reflexão, conscientização, questionamento, adesão motivada por razões passíveis de conscientização e discussão crítica). Ênfase na inserção objetiva dos indivíduos num sistema que funciona Ênfase na participação dos sujeitos (dotados de consciência e linguagem) na 58 independentemente das capacidades e atividades reflexivas próprias da consciência humana. (“peça de uma máquina”; “célula de um organismo”). construção, reprodução e/ou alteração da realidade organizacional (ou seja, dos padrões de pensamento constitutivos da cultura organizacional). Ênfase na tese de que o ambiente externo é uma realidade objetiva (independente, simplesmente dada) à qual a organização deve adaptar-se por meio de processos eficientes de captação e processamento de informações. Ênfase na tese de que o ambiente externo é em boa medida uma projeção do modo de pensar e responder (reagir) dominante na organização. Nesse sentido, ênfase na participação dos membros da organização na “construção” do ambiente externo. Analisa a política dentro da organização em termos de disputas de poder que se alimentam e reproduzem de modo objetivo, ou seja, independentemente das capacidades e atividades reflexivas próprias da consciência dos sujeitos. Impulsos de poder, relações de poder e estruturas de poder são apresentadas como elementos aos quais os homens se subordinam de modo automático e irrefletido, e que eles reproduzem do mesmo modo. (Elementos objetivos são elementos simplesmente dados, impermeáveis à reflexividade da consciência do sujeito). Adota-se a tese de que em verdade não há o “sujeito”. Analisa a política dentro da organização a partir dos modos de pensar (interpretações e valores) seguidos pelos participantes (sujeitos dotados de consciência e linguagem), investigando conflitos, divergências e acordos quanto aos modos de pensar. Ênfase e aposta na possibilidade de construção intersubjetiva ou comunicativa de acordos quanto a novos modos de pensar, com base na reflexividade inerente às consciências que se exercem na discussão e embate com outras consciências, por meio da linguagem. 59 - Tópico 12: Apresentação Geral da Segunda Parte. - Nesta segunda parte do curso, vamos analisar algumas imagens do objeto estudado pelos cientistas sociais. O objeto de estudo não é nesse caso a realidade natural, mas a realidade humana e social: seres humanos, ações humanas, relações e interações humanas, grupos humanos, sociedades. - Assim como ocorreu na Primeira Parte, também nessa segunda parte nossa análise vai se orientar por uma divisão entre dois grandes campos, ocupados por tipos opostos de imagens da sociedade. - No primeiro campo colocaremos as imagens positivistas da sociedade. - No segundo campo colocaremos as imagens construtivistas da sociedade. - No âmbito das imagens positivistas da realidade humana e social, os componentes fundamentais desta realidade são condições, estruturas e processos “objetivos”, ou seja, independentes e prioritários em relação às ideias e interpretações empregadas pelos seres humanos que vivem em sociedade. - Alguns exemplos destes elementos “objetivos”, pertencentes a diferentes imagens positivistas da sociedade, são os seguintes: a) Características “objetivas” da natureza humana, como ganância, competitividade, egoísmo. b) Padrões “naturais” de percepção, raciocínio e cálculo, em geral associados às características “objetivas” acima mencionadas. c) Condições e estruturas “objetivas” da produção e distribuição dos bens naturalmente procurados pelos homens, necessários à reprodução dos homens e das relações sociais. d) Estrutura e necessidades “objetivas” do organismo social como um todo. e) Necessidades “objetivas” das “células” (partes) do organismo social como um todo. f) Condições e Leis “objetivas” da vida e evolução dos organismos sociais. - No campo das imagens positivistas da sociedade, colocaremos e analisaremos as seguintes imagens: a) Mecanicismo, exemplificado pela teoria da sociedade de Adam Smith. b) Materialismo histórico, ou Marxismo ortodoxo. c) Funcionalismo, ilustrado por algumas análises de Émile Durkheim. - Já no âmbito das imagens construtivistas da realidade humana e social, os componentes fundamentais desta realidade são ideias e interpretações (modos de pensar, padrões de atribuição de significado) empregadas pelos seres humanos que vivem em sociedade. - No âmbito deste tipo de imagem, ainda que as ideias e interpretações possam ser aplicadas de forma relativamente automática e inconsciente, elas sempre são em alguma medida permeáveis às competências e atividades reflexivas próprias da consciência humana. 60 - No âmbito deste tipo de imagem, concede-se um papel primordial à consciência e às competências típicas da consciência, como compreensão e utilização de ideias e modos de pensar, e reflexão sobre eles. - Ideias e interpretações empregadas nos atos de fala dos seres humanos não são tomadas como fenômenos derivados e secundários, como ocorre no âmbito das imagens positivistas. - No campo das imagens construtivistas da sociedade, colocaremos e analisaremos as seguintes imagens: a) Abordagem Interpretativa da sociedade, exemplificada pela sociologia de Max Weber, incluindo suas análises sobre a cultura burocrática e tecnocrática típica das organizações capitalistas de seu tempo. b) Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que equivale a uma reformulação da “Teoria Crítica” elaborada no marxismo ortodoxo, uma reformulação orientada por certas teses básicas da abordagem interpretativa da sociedade (Nesse sentido, a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt pode ser considerada uma espécie de “interpretacionismo crítico”). 61 - Tópico 13: Mecanicismo. Imagem de sociedade exemplificada pela obra de Adam Smith. - Imagem que pode ser situada no campo das imagens positivistas da sociedade. O contexto histórico de A. Smith Seu livro “A Riqueza das Nações” foi publicado em 1776. •Transição da sociedade tradicional, caracterizada por uma concepção teleológica da vida humana e social, para sociedade moderna, caracterizada por uma concepção individualista. Constatação do definhamento do paradigma teleológico de compreensão dos homens e da sociedade, predominante nos períodos antigo e medieval. •Paradigma teleológico: essência de cada ser humano consiste na atividade / função / destinação que lhe é própria dentro da ordem social; finalidade/função de cada ser humano vincula-se à finalidade/função dos demais e à finalidade comum a todos os membros da sociedade: ordem, harmonia e beleza do Todo (o Bem da ordem política como um Todo). • Numa ordem social tradicional, os meios de coordenação e integração entre os indivíduos estão baseados em expectativas de comportamento de caráter normativo, ou seja, expectativas que exprimem o comportamento em cada caso correto (visto pela sociedade como correto). Tais expectativas estão vinculadas a normas e valores comuns, compartilhados, e são aceitas e internalizadas pelos indivíduos em geral, o que significa que cada indivíduo percebe o cumprimento dessas expectativas normativas como algo de bom para ele. Paradigma teleológico e ordem tradicional. •O paradigma teleológico de compreensão dos homens e da sociedade constitui-se em fundamento de uma ordem social tradicional: ordem na qual os indivíduos se vêem como destinados a um determinado lugar e função numa totalidade integrada e harmoniosa. •Numa sociedade tradicional, o sentido da ação individual consiste na satisfação das expectativas de comportamento definidoras do papel social do agente (guerreiro, senhor de terras, sacerdote, artesão, agricultor, etc.). E os papéis sociais, assim como as expectativas de comportamento que lhes estão respectivamente associadas, são essencialmente complementares: complementam-se numa ordem social que em princípio é aceita e reproduzida por todos. •Assim, a coordenação ou integração das ações individuais, necessária à reprodução do grupo social, está contida no sentido que cada indivíduo atribui às suas ações. O 62 “bom para o indivíduo” consiste na satisfação de expectativas de comportamento que coordenam suas atividades às atividades de todos os demais. Em outras palavras, numa sociedade tradicional o “interesse” de cada homem é corresponder da maneira mais brilhante possível às expectativas de comportamento vinculadas à função social que define sua identidade. Deste ponto de vista, não faz muito sentido falar de uma oposição entre o que é bom para o indivíduo e o que é bom para a sociedade, ou entre interesse pessoal e interesse coletivo. Do ponto de vista da necessidade de coordenação das ações individuais para a preservação e reprodução da sociedade, as ações de cada indivíduo se coordenam naturalmente às dos demais, na medida em que são ditadas por um esquema de funções e expectativas complementares. A coordenação com os outros está por assim dizer contida no sentido que cada homem vê em suas próprias ações, ela é interna ao sentido que cada homem dá às suas próprias ações. • Numa ordem tradicional, portanto, não se manifesta o individualismo moderno (ou pelo menos ele não é socialmente difundido como princípio de estruturação das relações sociais). Individualismo moderno: preocupação com interesse e vantagem estritamente individuais; orientação da vida e das decisões pelo interesse e vantagem estritamente individuais. •Numa sociedade tradicional, objetivo das pessoas não é “progredir na vida” (maximizar interesse e vantagem individuais), mas dar continuidade à realidade social transmitida das gerações anteriores. Ambição não se dirige à vantagem individual, mas ao maior brilho possível no exercício da função própria dentro da ordem tradicional. •Não há mercado de terra, nem de trabalho. Terra e trabalho são partes do caminho de vida concreto a que cada indivíduo e grupo estão destinados, eles não são valores abstratos, abstratamente mensuráveis em termos de um padrão de troca comum e uniforme (moeda). Em outras palavras, terra e trabalho são valores concretos, que não podem ser medidos segundo um padrão quantitativo uniforme e abstrato. Não há uma vida a ser “construída” ou “conquistada” mediante venda de recursos e talentos individuais no “mercado”. Ascensão do paradigma individualista. •Na sociedade moderna, marcada por uma concepção individualista, o sentido da ação individual consiste na busca de fins (interesse e vantagem) estritamente individuais, ou seja, fins adotados por indivíduos atomisticamente concebidos. O que caracteriza essencialmente esses fins é o fato de eles serem diferentes e até conflitantes entre si. •Se o sentido que cada indivíduo atribui às suas ações consiste na busca de um fim diferente e até conflitante em relação aos fins buscados pelos demais indivíduos, a coordenação das ações individuais, necessária à reprodução da sociedade, é em princípio externa ao sentido que cada indivíduo atribui às suas ações. 63 - Para cada indivíduo, a relação com o outro aparece simplesmente como um meio (instrumento) de que ele se serve para perseguir seus fins individuais. Isso contrasta com a vivência das relações sociais predominante numa sociedade tradicional, na qual a relação com o outro aparece como essencial para a excelência buscada por cada indivíduo, na medida em que esta consiste no desempenho excelente da função que lhe é própria no conjunto das relações sociais. A Imagem de sociedade de Adam Smith • A obra de Adam Smith é complexa e sofisticada. Não pretendemos aqui analisa-la em toda sua complexidade e riqueza. Tendo em vista os propósitos de nosso curso, vamos destacar certos aspectos relativamente simples, que permitem utilizá-la como exemplo de certa imagem da sociedade, o mecanicismo. O livro historicamente mais influente de Smith é “A Riqueza das Nações” (1776). •Problemas fundamentais: problema da coordenação das ações individuais, necessária à reprodução da sociedade, e problema da integração social: sem a força integradora da tradição e das autoridades associadas à tradição, e deixando as escolhas socialmente relevantes ao livre-arbítrio de indivíduos essencialmente egoístas, como a sociedade consegue sobreviver e reproduzir-se? •Resposta (simplificada): “Mão Invisível”: mecanismo invisível de coordenação e equilíbrio, pelo qual impulsos e interesses estritamente individualistas (egoístas) são mecanicamente coordenados e integrados, permitindo o funcionamento de uma estrutura eficaz, capaz de maximizar a prosperidade (riqueza) de toda a sociedade. - O mecanismo da “mão invisível” é regulado por condições e circunstâncias objetivas (ou seja, condições e circunstâncias que são consideradas como independentes das ideias e interpretações dos seres humanos) do processo de produção dos bens e serviços, ligadas à oferta e procura dos três fatores fundamentais da produção: terra, capital e trabalho. - Elementos fundamentais da Mão Invisível. (1) Interesse egoísta (cobiça ou ganância do indivíduo): força que leva os indivíduos a empregarem os recursos de que dispõem (trabalho, terra e capital) na atividade ou setor produtivo que promete maior retorno financeiro. (2) Conflito e competição entre indivíduos capazes de cálculos racionais: força que freia a ganância dos indivíduos, levando-os a cobrar e pagar um valor “socialmente ótimo” pelos fatores produtivos que ofertam e procuram no mercado. - Nessa imagem, o valor socialmente ótimo é considerado como algo de “objetivo”, ou seja, “objetivamente” fixado pela disponibilidade “objetiva” dos fatores de produção (terra, trabalho, capital) e pelas necessidades “objetivas” da reprodução da sociedade. Os termos entre aspas indicam tratar-se de elementos que são considerados como independentes das ideias e modos de pensar “subjetivos” presentes no plano da consciência dos seres humanos. 64 - Neste tipo de modelo, a produção e distribuição dos bens e serviços, assim como as condições e circunstâncias que as regulam, aparecem como elementos “objetivos”, ou seja, elementos que atuam e geram efeitos independentemente das ideias e interpretações adotadas pelos seres humanos que entram no processo. - Do mesmo modo, neste tipo de modelo, individualismo, ganância e cálculo racional não são tomados como “ideias”, “modos de pensar” ou “interpretações”; em outras palavras, eles não são tomados como modos de pensar veiculados e empregados nas atividades linguístico-comunicativas dos seres humanos (seres dotados de consciência e linguagem). - Eles são tomados como elementos “objetivos” da natureza humana, logicamente prioritários e independentes em relação à interação linguística de seres dotados de consciência. - Ideias e pensamentos veiculados e empregados em atos de fala são tomados como fenômenos secundários e derivados. Imagem mecanicista da sociedade (um tipo de imagem positivista da sociedade). •Sociedade aparece como uma máquina; imagem da sociedade como máquina. - Ordem social consiste num mecanismo de coordenação e equilíbrio entre indivíduos essencialmente isolados ou separados, movidos por interesses e cálculos racionais de caráter individualista, em princípio alheios à necessidade de integração social. - Componentes essenciais da realidade social: a) Forças “objetivas” da natureza humana: ganância, egoísmo, e racionalidade calculadora (capacidade de discernir os meios mais eficazes para o fim da maximização da vantagem individual). b) Força “objetiva” da existência humana em sociedade: competição entre os indivíduos. Força que freia a ganância de indivíduos capazes de cálculo racional. c) Condições e circunstâncias “objetivas” do processo produtivo, que regulam a oferta e procura dos fatores produtivos fundamentais, e a repartição dos valores produzidos. - Em relação a todos esses componentes, o adjetivo “objetiva(s)” indica elementos que atuam e geram efeitos independentemente das ideias e interpretações adotadas nas atividades comunicativas dos seres humanos (seres dotados de consciência e linguagem). - É nesse sentido que a imagem mecanicista pode ser colocada no campo das imagens positivistas de sociedade. 65 Tópico 14: Materialismo Histórico (Marxismo Ortodoxo). •Materialismo Histórico e Dialético: Karl Marx (1818-1883). Compreensão materialista da abordagem dialética inicialmente desenvolvida por Hegel (1770-1831). - Reunião da Dialética hegeliana com a tradição de análise econômica iniciada com Adam Smith (1723-1790). • Estrutura geral e formal da Dialética Hegeliana, comum à dialética materialista desenvolvida por Marx: 2 idéias básicas: 1ª) Há uma negatividade intrínseca à realidade em geral; a realidade que “está sendo” sempre abriga possibilidades de desenvolvimento distintas dos modos de ser que dominam a realidade atual. Por isso, a realidade é, essencialmente, movimento, mudança, diferenciação. - A realidade é essencialmente histórica. - Mudança não deve ser concebida como mudança de uma realidade (um ser) que permanece. O ser é a mudança. O permanente é, na verdade, apenas aparentemente permanente, e no fundo, ou essencialmente, é permeado ou atravessado pela negatividade, dinamismo, movimento, mudança. 2ª) A negatividade intrínseca à realidade deve ser concebida em termos de uma relação entre dois polos opostos: o polo do que é ou “está sendo” (o Ser que só é como “está sendo”) e, por outro lado, o polo que opõe-se ou nega o primeiro. - Afirmar que a realidade é, essencialmente, relação entre polos opostos equivale a afirmar que, na realidade concreta e efetiva, cada polo só se define e existe na relação com o outro, ou por meio da relação com seu oposto. O isolamento de um dos polos sempre equivale a uma abstração. - Esta relação é de oposição e de complementaridade. A oposição entre os polos é simultaneamente conservada e superada na relação dialética entre eles, ou na unidade dialética entre eles. - A realidade nunca pode ser identificada a um dos polos apenas; a realidade é a relação entre os polos opostos. Isto significa que a resistência, negação e oposição ao que “está sendo” não vêm “de fora” da realidade que está sendo, mas “de dentro”. - Mais precisamente, o polo negativo não apenas instaura determinadas limitações, lacunas e falhas no Ser “que está sendo”, como também as aguça e acirra, levando à sua superação. - O polo negativo leva à superação das limitações próprias de certo momento do processo histórico, o momento “que está sendo”; em outras palavras, ele leva à superação deste momento determinado, e à passagem a outro momento (com outras 66 determinações, quer dizer, outras características e outras limitações) do “está sendo” do Ser. - Nesse sentido, a negatividade do polo negativo é simultaneamente conservada e superada no movimento de realização paulatina do Ser nos diversos momentos do “está sendo”. - Motor da mudança: dinamismo (“inquietação”) produzido pela negatividade intrínseca à realidade. Todo ser está em relação com um não-ser, que o coloca em estado de tensão, movimento, mudança. Dialética e História •Oposição e negatividade constituem o motor da criação contínua de novos polos e novas relações. •História como processo de contínuo aparecimento, exacerbação, superação e recriação dessas relações tensas e conflituosas entre polos antagônicos, ou entre um polo e sua negação. - História: movimento de realização paulatina do Ser por meio dos diversos momentos ou épocas do “está sendo” do Ser. Nesse processo, cada momento do “está sendo” é relação com a negatividade que lhe é própria. A interpretação idealista e a interpretação materialista da concepção dialética da realidade. •A Dialética Hegeliana é “idealista”, ela é uma elaboração do idealismo kantiano, ou seja, do modo idealista de ver a relação sujeito-objeto, inaugurado por Kant (1724- 1804). - A Dialética Hegeliana é uma teoria extraordinariamente complexa, sofisticada e nuançada. Ela não só permite, mas também convida a diferentes apropriações e interpretações, efetuadas a partir de diferentes pontos de partida. Em outras palavras, na Dialética Hegeliana o caminho dialético não só pode como deve ser efetuado a partir de diferentes pontos de partida, o que resulta em ramificações relativamente independentes umas das outras, cuja integração num sistema único é tarefa reconhecidamente hercúlea, que nem de longe tentaremos aqui. - Vamos aqui nos restringir à tentativa de apresentar um modelo simplificado da diferença entre uma interpretação idealista da Dialética, baseada na obra de Hegel, e uma interpretação materialista, baseada na obra de Marx. - Nessa tentativa, como é de se esperar, teremos de reduzir a obra de Marx a um esquema interpretativo igualmente simplificado e simplificador. 67 - Vamos contrastar as duas interpretações estabelecendo certas proximidades iniciais: A) Estabeleçamos que, em ambas as teorias, o polo afirmativo ou positivo (o “Ser”) seja identificado ao sujeito humano e finito. Há uma vagueza neste sujeito inicial. Em princípio, ele equivale à humanidade como um todo. Em muitos momentos da análise, entretanto, ele deve ser identificado a pessoas, figuras típicas, classes ou sociedades particulares, tomadas como porta-vozes ou vanguardas da humanidade em determinada época ou momento histórico, que desempenham o papel “ativo” nas relações e movimentos dialéticos essenciais desta época. B) Estabeleçamos ainda que, em ambas as teorias, o sujeito humano e finito seja identificado a determinado tipo de “Desejo”. - A diferença entre as teorias pode então ser analisada a partir de um esclarecimento da diferença entre os tipos de Desejo situados na base de cada uma delas. - De modo admitidamente simplificador, pode-se afirmar que, na Dialética Idealista, o desejo fundamental é o desejo de compreender adequadamente as coisas, e de agir de modo apropriado, ou seja, de acordo com essa compreensão adequada. - Pode-se afirmar ainda que, na Dialética Idealista, o desejo fundamental é situado ou colocado no plano da consciência humana. O desejo fundamental é um desejo da consciência humana, ou do espírito humano. As compreensões, atitudes e maneiras de agir vinculadas ao desejo fundamental são apresentadas como realizações da consciência humana, e o polo “negativo”, em todas as suas instanciações, só existe na relação com a consciência e o desejo da consciência. - De modo igualmente esquemático e simplificador, pode-se afirmar que, na Dialética Materialista, o desejo fundamental é o desejo de dispor da maior quantidade e variedade possível de bens, para satisfazer na maior medida possível as necessidades concretas da vitalidade humana. - Pode-se afirmar ainda que, na Dialética Materialista, o desejo fundamental é situado no plano de forças e processos vitais logicamente independentes e anteriores à consciência e às ideias e atitudes presentes na consciência. O desejo fundamental é um desejo da vitalidade “objetiva”, constituída por forças e processos logicamente anteriores à consciência. Modelo simplificado da Dialética Idealista. - Admitindo-se que o polo positivo da Dialética Idealista consiste no desejo de compreender adequadamente as coisas, e de agir de modo apropriado, ou seja, de acordo com essa compreensão adequada, pode-se afirmar que o polo negativo consiste no “objeto” que se opõe a este desejo, à medida mesmo que instaura, revela e aguça lacunas ou falhas na realização do mesmo, ou seja, na compreensão e/ou na ação ancoradas neste desejo. 68 - O polo “objeto” pode ser representado (instanciado) por diferentes elementos, dependendo do momento ou etapa do caminho dialético percorrido pela consciência humana e seu desejo fundamental. - “Objeto” é qualquer elemento que em determinado momento do processo dialético (histórico) revela uma falha essencial na compreensão dominante neste momento, e/ou nas ações baseadas nesta compreensão dominante. - O “objeto” pode ser o ambiente natural (aspectos ou fenômenos da natureza que em determinado momento não são compreendidos, por exemplo), ou o ambiente social (por exemplo, comportamentos humanos que em determinado momento não são assimilados pela inteligência e/ou vontade movidas pelo desejo fundamental), ou o substrato natural da existência humana (por exemplo, uma paixão ou impulso que em determinado momento não é assimilado pela inteligência e/ou vontade movidas pelo desejo fundamental), ou outras consciências (quando, por exemplo, um padrão de ação chancelado em determinado momento pelo desejo fundamental exige que outro(s) sujeitos de consciência sejam vencidos). - De modo simplificado, pode-se afirmar que, em todos os casos, a relação dialética fundamental é a relação entre, por um lado, as ideias e/ou atitudes (ou seja, teorias, concepções de vida e de mundo, padrões de ação) produzidas pela consciência que procura realizar o desejo fundamental, e, por outro lado, o objeto “resistente” ou “opositor”, o qual, ao não se adequar às ideias, ou ao resistir às ideias e padrões de ação, instaurando e/ou evidenciando suas limitações e falhas, leva a consciência ao processo de criação de novas ideias e atitudes, às quais corresponderão novos tipos de oposição do objeto, e assim por diante. - A história é história das ideias, concepções e padrões de ação da consciência, ou seja, dos sucessivos modos e momentos através dos quais o “sujeito” (a humanidade como um todo) se forma (educa) e realiza, à medida mesmo que procura superar a “resistência/negação” que o “objeto” em geral (em todas as suas instanciações) lhe opõe. Esquema simplificado da Dialética Materialista: a Imagem Dialético-Materialista da Realidade Social. - Na dialética materialista o Desejo fundamental da Humanidade é o desejo de dispor da maior quantidade e variedade possível de bens, para satisfazer na maior medida possível as necessidades concretas da vitalidade humana, tomada como vitalidade “objetiva” da espécie humana, quer dizer, vitalidade constituída por forças e processos essencialmente naturais, logicamente anteriores às ideias e atitudes que aparecem na consciência. - O processo histórico de realização paulatina do desejo fundamental (dispor da maior quantidade e variedade possível de bens) desdobra-se em duas dimensões: a) A dimensão da produção dos bens; e b) A dimensão da distribuição dos bens. 69 - Na dimensão da produção dos bens, as mudanças dialeticamente geradas ao longo do processo histórico são mudanças, principalmente, nas forças produtivas utilizadas pela humanidade. Trata-se de um desenvolvimento dos instrumentos, ferramentas, máquinas, equipamentos, técnicas, conhecimentos, tecnologias, etc. - O desenvolvimento das forças produtivas equivale a um aumento na capacidade da humanidade de produzir bens, ou seja, equivale à superação de limitações ou falhas na produção dos bens. - Na dimensão da distribuição dos bens, as mudanças dialeticamente geradas ao longo do processo histórico são mudanças nas relações de produção que se estabelecem entre os participantes do processo produtivo. - Na dimensão da distribuição dos bens e valores socialmente produzidos, a cada momento do processo histórico a humanidade (como um todo) divide-se em classes sociais antagônicas, ou seja, grupos que ocupam posições antagônicas nas estruturas de divisão e apropriação tanto dos meios de produção quanto dos bens ou valores socialmente produzidos. - A cada momento do processo dialético a humanidade se divide em duas classes sociais: em primeiro lugar, a classe que deseja (ou que representa o desejo de) uma distribuição mais abrangente dos bens, uma distribuição que satisfaça a uma parcela maior da humanidade, e, no polo oposto, a classe que resiste ao desejo colocado pela primeira classe, e que mantém uma posição de exploração e opressão em relação à primeira classe. - Assim, na dimensão da distribuição, a relação entre as classes em que a humanidade como um todo a cada etapa se divide sempre é uma relação de exploração e opressão. - Na dimensão da distribuição dos bens, as mudanças dialeticamente geradas ao longo do processo histórico são mudanças em determinados padrões de divisão e apropriação, tanto dos meios de produção quanto dos valores socialmente produzidos, equivalendo a mudanças nas relações de poder entre as classes sociais que participam do processo produtivo. - Em cada momento do processo histórico, as mudanças nas relações de produção equivalem à superação de determinadas lacunas ou falhas na distribuição dos bens e valores, ou seja, equivalem a um desenvolvimento da capacidade da humanidade de distribuir os bens e valores da forma mais satisfatória para a humanidade como um todo. - No contexto do nosso interesse num esquema simplificado e simplificador, pode-se afirmar que, na dimensão das mudanças nas forças produtivas, o polo negativo é ocupado principalmente pelo ambiente natural que “resiste” ao desejo do sujeito (a humanidade como um todo) de dispor da maior quantidade possível de bens. - Despertada pela oposição e resistência do ambiente natural, a vitalidade objetiva da humanidade põe em movimento um processo de criação contínua de novas forças 70 produtivas, que a cada momento do processo histórico permitem a superação de determinadas limitações no potencial humano de produzir e dispor de bens. - De modo igualmente simplificado, pode-se afirmar que, na dimensão das mudanças nas relações de produção, o polo ativo ou positivo não é mais ocupado pela humanidade como um todo, mas pela classe social e politicamente explorada, entendida como a classe que, a cada momento do processo histórico, representa e faz avançar o desejo de uma distribuição mais abrangente, que satisfaça a maior parcela possível da humanidade, e, no limite, a humanidade como um todo. Trata-se da classe que, a cada momento do processo histórico-dialético, torna-se porta-voz e vanguarda de determinadas mudanças nos padrões de distribuição dos bens e valores socialmente produzidos, em direção a uma distribuição a mais abrangente e igualitária possível. - Trata-se sempre de mudanças que se tornaram “objetivamente” possíveis em virtude de mudanças no nível mais “técnico” da produção, quer dizer, incrementos das forças produtivas e o consequente aumento da produção global dos bens. - No marxismo ortodoxo, progressos na distribuição dos bens (nas relações de produção) só se tornam objetivamente possíveis a partir de progressos na capacidade de produção dos bens (nas forças produtivas). - De modo correspondente, no âmbito das relações de produção o polo “negativo” é ocupado pela classe social a cada momento privilegiada e opressora, que resiste às mudanças objetivamente possíveis desejadas e alavancadas pela classe revolucionária (nesse mesmo momento). - Além de ser desencadeado e realizado pela vitalidade “objetiva” da espécie humana como um todo, o processo histórico é regido por uma lógica igualmente “objetiva”, ou seja, independente e prioritária em relação às ideias e visões de mundo que aparecem no nível da consciência. - No contexto dessa lógica objetiva, condições “objetivas” determinam as possibilidades e limitações que a cada momento se impõem ao desejo fundamental da humanidade como um todo, tanto no âmbito da produção dos bens (de que a humanidade deseja dispor na maior quantidade possível), quanto no âmbito da distribuição dos bens e valores (de que a humanidade deseja dispor da maneira mais satisfatória possível, ou seja, da maneira mais abrangente, inclusiva e igualitária possível). - Além disso, no contexto dessa lógica objetiva, as condições objetivas determinam também as mudanças que são objetivamente possíveis, tanto no plano da produção quanto no plano da distribuição. - No contexto dessa lógica objetiva, as mudanças no plano mais técnico da produção (equivalendo ao desenvolvimento das forças produtivas, quer dizer, desenvolvimento de novas máquinas, tecnologias, técnicas de organização do trabalho, etc.) antecedem 71 e tornam possíveis as mudanças no plano das relações de produção, que regulam a distribuição dos bens e valores socialmente produzidos. O Caráter Positivista da Imagem Dialético-Materialista da Realidade Social. - De acordo com a teoria Dialético-Materialista, não há na realidade social “dados” inalteráveis, elementos fixos e invariáveis. - Aquilo que em certo momento pode aparecer e ser tomado como um “dado” é na verdade algo que surgiu e que vai se alterar ao longo do processo histórico como um todo. - Por exemplo, o “desejo” humano de dispor e fruir de bens é uma força vital indeterminada, que só existe como algo de “dado” à medida que se determina no tempo – e toda determinação (todo “dado”), ao relacionar-se às limitações e falhas que lhe são próprias, sofre modificações, altera-se no tempo. - Para a teoria Dialético-Materialista, não existem na realidade humana e social características simplesmente dadas, necessidades simplesmente dadas, tendências simplesmente dadas; todos os elementos da realidade humana e social são historicamente produzidos (determinados) e historicamente transformados (redeterminados). - Nesse sentido, a teoria dialético-materialista afasta-se das imagens positivistas típicas, que costumam trabalhar com elementos “simplesmente dados”. No âmbito do positivismo típico, os elementos “objetivos” primordialmente focalizados e empregados nas explicações são normalmente tomados como elementos “simplesmente dados”, ou seja, dados que não estão abertos ao questionamento, negação e mudança. - Por outro lado, porém, ao adotar a interpretação materialista da Dialética, a teoria dialético-materialista configura os componentes essenciais da realidade humana e social (ou os componentes essenciais do processo histórico) como elementos “objetivos”, no sentido positivista do termo, ou seja, elementos logicamente independentes e prioritários em relação às ideias e concepções que ocupam o plano da consciência, ideias e concepções que são veiculadas e empregadas nas interações comunicativas dos seres dotados de consciência. - Na interpretação materialista da Dialética, idéias e modos de pensar são meros “sintomas” de condições “objetivas”, no sentido positivista do termo. - Nesse sentido, a teoria dialético-materialista pode ser colocada no campo das imagens positivistas da realidade social. - Tendo em vista os propósitos do nosso curso, vamos enfatizar este aspecto positivista da teoria dialético-materialista. - Em outras palavras, vamos colocar o Materialismo Histórico-Dialético (ou Marxismo Ortodoxo) no campo das imagens positivistas da realidade social. 72 - Tópico 15: Funcionalismo. - Imagem de Sociedade exemplificada pela primeira obra de Durkheim: “Sobre a Divisão do Trabalho Social” (1893). - Imagem que pode ser situada no campo das imagens positivistas de sociedade. A Questão Fundamental de Durkheim. •Problema fundamental é semelhante ao de Adam Smith: aparente oposição do individualismo moderno às exigências de coordenação e integração que têm de ser satisfeitas para que a sociedade possa se reproduzir. - Se os sujeitos que compõem a sociedade são essencialmente individualistas ou egoístas, não atribuindo nenhum valor intrínseco ao cumprimento de expectativas de comportamento de caráter recíproco e complementar, como explicar a integração social? Como explicar a coordenação das ações individuais necessária à reprodução da sociedade? •Modo de visualizar a solução do problema é diferente. - Recordemos que, na obra de Adam Smith, destacamos o modelo de uma coordenação puramente mecânica entre indivíduos que são e permanecem essencialmente isolados, separados. Neste modelo, a análise toma como ponto de partida interesses essencialmente individuais (próprios da personalidade individual), e a estrutura social aparece como derivada desses interesses. •Em contrapartida, para defender a autonomia e irredutibilidade da sociologia, Durkheim sente necessidade de defender a prioridade da estrutura social sobre a personalidade individual. Em Durkheim, o princípio da integração social não consiste em interesses individuais oriundos da personalidade individual, mas em padrões de relacionamento social que exprimem a estrutura social enquanto tal, e que moldam a personalidade individual. - Na terminologia de Durkheim, padrões de relacionamento social equivalem a formas de “solidariedade social” (padrões de relacionamento social são padrões de ligação dos indivíduos, e em Durkheim “solidariedade social” tem o sentido, justamente, de “ligação entre os indivíduos”, e não o sentido de benevolência ou beneficência). Em Durkheim, portanto, padrões de ligação entre indivíduos são anteriores aos próprios indivíduos, ou seja, os indivíduos nascem e se formam numa estrutura que os liga a outros indivíduos. São os padrões de ligação que moldam a personalidade individual. Individualismo moderno e solidariedade orgânica •Assim, o individualismo moderno (ou seja, a mentalidade grosso modo individualista ou “privatista” típica das sociedades modernas) deixa de ser visto como expressão da 73 natureza ou personalidade do ser humano isoladamente tomado, e passa a ser visto como expressão de um determinado padrão de ligação (“solidariedade”) social, anterior à personalidade individual e formador da mesma. •Em Durkheim, algum tipo de solidariedade social (exprimindo a estrutura social enquanto tal) sempre tem prioridade em relação à personalidade individual. •Dois tipos básicos de solidariedade social: solidariedade mecânica e solidariedade orgânica. ATENÇÃO: a “solidariedade mecânica” analisada por Durkheim não tem nada a ver com a coordenação mecânica que se pode perceber em Adam Smith. - Em Smith, o conceito de “coordenação mecânica” é parte de uma imagem da sociedade que focaliza seus membros como indivíduos essencialmente separados e isolados, que se integram através de um mecanismo puramente mecânico, no sentido de independente de qualquer finalidade ou propósito supra-individual. - No modo de focalizar a sociedade de Smith, indivíduos isolados sempre se integram por meios puramente mecânicos. - Já em Durkheim, o conceito de “solidariedade mecânica” é parte de uma análise da sociedade que focaliza seus membros como indivíduos que sempre existem em estruturas de ligação (com outros indivíduos) que lhes são anteriores (anteriores aos indivíduos em geral). Em Durkheim, o conceito de solidariedade mecânica exprime um modelo particular e específico de ligação entre os indivíduos, distinto de outro modelo específico, o da “solidariedade orgânica” (que inclusive está mais próximo da coordenação mecânica de Adam Smith). - No modo de focalizar a sociedade de Durkheim, indivíduos sempre nascem e são formados em estruturas de ligação social, mas a estrutura pode ser de tipo ou “mecânico” (solidariedade mecânica) ou “orgânico” (solidariedade orgânica). •Individualismo moderno (mentalidade grosso modo individualista ou “privatista” típica das sociedades modernas) é sintoma ou efeito do que Durkheim chama de “solidariedade orgânica”, que ele contrapõe à “solidariedade mecânica”, típica da época pré-moderna, ou das sociedades tradicionais. Solidariedade mecânica •Solidariedade “mecânica”: típica das sociedades tradicionais. - Neste tipo de estrutura social, há forte presença de valores, projetos e propósitos comuns, os indivíduos se veem como habitantes de um mundo comum, como compartilhando um mundo comum, e nesse sentido eles se veem como semelhantes uns aos outros. 74 - Neste tipo de estrutura social, o que liga os indivíduos uns aos outros é essa percepção de uma semelhança fundamental, este sentimento de serem habitantes de um mundo comum, de compartilharem um mundo comum. •Integração baseada na “semelhança” entre os indivíduos (compartilhamento de atitudes, crenças, valores e projetos). O predomínio da solidariedade mecânica fomenta este tipo de semelhança. •Pouca diferenciação entre indivíduos (pouca diferenciação nas atitudes, crenças e valores constitutivos dos projetos de vida). Ideias e valores comuns representam a maior parte do conteúdo da consciência individual. •Indivíduos integram e coordenam suas ações à medida que se percebem como essencialmente semelhantes, ou seja, na medida em que compartilham, num nível básico, uma mesma concepção e projeto de vida (aspirações e expectativas individuais são moldadas por essa concepção compartilhada). Solidariedade Orgânica •Solidariedade “orgânica”. Típica das sociedades modernas, pós-tradicionais. Integração se realiza a partir da diferenciação entre os indivíduos. - Neste tipo de estrutura social, os valores, projetos e propósitos são por assim dizer privatizados, ou seja, são transferidos para a esfera privada de cada indivíduo. - À medida que percebem seus interesses e projetos como essencialmente privados, os indivíduos se percebem como essencialmente diferentes uns dos outros, como habitantes de mundos privados distintos. •Maior parte do conteúdo da consciência individual passa a ser ocupado por fatores (aspirações, interesses, preferências) que diferenciam e separam os indivíduos uns dos outros. •Desenvolvimento de uma consciência “individualista” (indivíduos que se veem como separados e diferenciados em relação aos demais). - Neste tipo de estrutura social, o que liga os indivíduos uns aos outros é a percepção de que, por serem diferentes uns dos outros, podem estabelecer relações de “troca” mutuamente interessantes. •Principal forma de ligação social passa a consistir em “contratos” entre indivíduos que se percebem como habitantes de mundos (privados) diferentes entre si. “Contrato” como um vínculo de “troca” entre indivíduos que se veem como possuindo interesses, projetos e recursos diferentes. 75 Durkheim e o problema da ascensão da solidariedade orgânica •Problema que Durkheim se coloca: por que a solidariedade orgânica se consolidou como principal forma de solidariedade social nas sociedades ocidentais modernas, substituindo a solidariedade mecânica? Resposta de Durkheim (Resposta que contém o embrião da teoria funcionalista). •Explicação de Durkheim contém os germes da abordagem funcionalista. •Sua explicação é: num “ambiente” histórico marcado pelo aumento da “densidade material” (aumento do número de indivíduos em relação a uma determinada superfície de terra) e da “densidade moral” (aumento do número e intensidade dos relacionamentos e contatos entre indivíduos), o fato de os indivíduos se perceberem como diferentes uns dos outros (ou como habitantes de “espaços privados” distintos), e a concomitante formação de uma consciência individualista e “privatista”, têm efeitos benéficos para a sobrevivência e prosperidade da sociedade como um todo. •Se não ocorresse essa “privatização” na concepção dos interesses, projetos e propósitos, aumentariam os conflitos entre indivíduos (quando a densidade aumenta, se os indivíduos se percebem como essencialmente semelhantes, ou como habitantes de um “espaço comum”, os conflitos entre eles tendem a aumentar). - Para Durkheim, a solidariedade orgânica se desenvolveu e consolidou porque representa uma característica que torna as sociedades modernas mais aptas à satisfação das necessidades “vitais” de integração interna e adaptação externa. - A solidariedade orgânica torna as sociedades melhor adaptadas ao ambiente “historicamente dado” típico da era moderna (mudança no ambiente provoca uma mudança no padrão de ligação social). Elementos fundamentais das análises funcionalistas •Transposição da teoria da evolução de Darwin (1859) para o campo da teoria da sociedade. •Concebe as sociedades como organismos, submetidos a certas necessidades vitais e a certas leis da evolução. - Na abordagem funcionalista, tanto as necessidades vitais quanto as leis de evolução dos organismos sociais são concebidas como fatores “objetivos”, ou seja, fatores que surtem seus efeitos independentemente das ideias e concepções veiculadas e empregadas nas interações comunicativas dos seres humanos, ou seres dotados de consciência e linguagem. - Ideias e concepções (por exemplo, ideias e concepções “individualistas” típicas da mentalidade moderna) são tomadas como sintomas ou efeitos da atuação “objetiva” das necessidades vitais de integração interna e adaptação ao ambiente. 76 •Necessidades fundamentais (“objetivas”) dos organismos sociais: integração interna e adaptação ao ambiente externo. •Leis fundamentais da vida e evolução das sociedades: Luta pela Vida e Seleção Natural: só sobrevivem e prosperam as sociedades mais aptas a satisfazerem suas duas necessidades básicas, integração interna e adaptação ao ambiente externo. •Necessidades e leis dos organismos sociais são vistas como fatores “objetivos” (no sentido positivista do termo), ou seja, fatores que existem e atuam independentemente da consciência e das interações comunicativas dos seres humanos. Forma geral das análises funcionalistas. •Se uma característica torna a sociedade mais apta a satisfazer às necessidades de integração interna e/ou adaptação externa, tal característica tende a desenvolver-se e consolidar-se (em virtude da luta pela vida e seleção natural, os grupos que não desenvolvem tal característica tendem a definhar e desaparecer). •Assim, a causa do desenvolvimento e consolidação da característica consiste na função que ela desempenha (ou nos efeitos positivos ou benéficos que ela apresenta) para a satisfação das necessidades de integração interna e adaptação ao ambiente externo. -Explicar um elemento da sociedade (instituição, prática, costume) é identificar e analisar sua função (efeito positivo ou benéfico) para o atendimento das necessidades básicas do organismo social. Leis a-históricas da vida e evolução das sociedades •Pode-se reconstruir a explicação de Durkheim afirmando que, para ele, a solidariedade orgânica se desenvolveu e consolidou porque representa uma característica que torna as sociedades modernas mais aptas à satisfação das necessidades de integração interna e adaptação externa (Em Durkheim, a diferenciação entre os indivíduos e a solidariedade orgânica têm consequências positivas para a satisfação da necessidade de integração interna). •Embora a abordagem funcionalista admita e procure explicar as mudanças por que passam as sociedades ao longo do processo histórico (mudança da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, por exemplo), o fundamento da explicação consiste em “necessidades vitais” e “leis da vida” fixas e imutáveis (a-históricas), e também “objetivas”, no sentido positivista do termo. •Imagem organicista e positivista da sociedade. 77 Algumas Críticas à abordagem funcionalista. •História dos homens e das sociedades é muito curta quando comparada aos períodos de tempo necessários para a atuação da seleção natural; número de sociedades é muito pequeno quando comparado ao número de organismos necessários para a atuação da seleção natural. Aplicação do conceito de seleção natural é implausível. (é pouco plausível afirmar que, em virtude da seleção natural, as sociedades e grupos “inaptos” são varridos do mapa). •Alternativa à seleção natural: Atribuição de uma “intencionalidade oculta”. Toda sociedade “quer” sobreviver e prosperar. Em virtude disso, toda sociedade “procura” satisfazer da melhor maneira possível as necessidades que têm de ser satisfeitas para que ela possa prosperar: integração interna e adaptação ao ambiente externo (necessidades do “organismo social”). Toda sociedade “rejeita” o conflito interno. •Trata o objetivo “prosperidade” como se fosse um objetivo “auto-evidente” e “neutro” – um objetivo que a sociedade (ou grupo) enquanto tal possui, e que seria independente e neutro em relação aos (diferentes e opostos) interesses, valores e propósitos dos homens que dela fazem parte. •Crítica: prosperidade não pode ser tratada como um objetivo neutro. Diferentes visões de prosperidade. Necessidade de colocar questões do tipo: Prosperidade para quem? Que tipo de prosperidade? Por que esse tipo e não outro? 78 - Tópico 16: Abordagem Interpretativa (Hermenêutica). - Imagem Idealista da Sociedade. - Imagem da sociedade como Cultura, ou seja, pluralidade de estruturas de interação comunicativa entre seres dotados de consciência e linguagem, capazes de compreender, aplicar e reproduzir determinados padrões de atribuição de sentido (modos de pensar e interpretar as coisas; modos de agir regidos por estes modos de pensar; ideias em sentido amplo). - Imagem de caráter “Construtivista”: sociedade é “construída” por sujeitos dotados de consciência e linguagem. Sociedade é construída à medida que estes sujeitos aplicam e reproduzem certos padrões interpretativos em suas variadas interações comunicativas (ações humanas sempre ocorrem no âmbito de estruturas linguístico-comunicativas reproduzidas através dos atos de fala dos seres humanos). - A abordagem interpretativa da sociedade pode ser considerada como um dos desdobramentos do idealismo alemão iniciado em Kant, e, particularmente, do idealismo hegeliano. - Entretanto, ao contrário do idealismo hegeliano, a abordagem interpretativa não adota o enquadramento dialético, que em Hegel associa-se a uma filosofia da história de aspecto determinista. - A abordagem interpretativa da sociedade sofre influência de certas ramificações da tradição idealista de conceituação da relação sujeito-objeto, como a Fenomenologia de Husserl (1859-1938) e a “Fundamentação das Ciências do Espírito” de Dilthey (1833-1911). - Alguns dos principais expoentes da abordagem interpretativa da sociedade: - George Herbert Mead (1863-1931). - Max Weber (1864-1920). - Alfred Schütz (1899-1959). Premissas filosóficas da abordagem interpretativa: a influência do idealismo alemão e da fenomenologia. - Na experiência vivida, ou na experiência dos homens que vivem em sociedade, todos os elementos ou itens que fazem parte da existência (quer sejam os dados do ambiente natural, quer as necessidades, impulsos e desejos de caráter mais natural ou biológico, quer sejam seres humanos, e os propósitos e interesses que implicam relações e interações entre seres humanos); - todas as coisas estão por assim dizer “envolvidas” por ideias, modos de pensar ou compreender, equivalendo tanto a modos de atribuir sentido (significado) a estas coisas, quanto a modos de agir impregnados e governados por estes modos de compreender. 79 - Os dados da experiência vivida só existem na relação com a consciência e com as ideias através das quais a consciência reconhece ou atribui sentido a estes dados. Em outras palavras, os dados da experiência humana só existem por meio e “no” meio (ambiente) das ideias (em sentido amplo) que os homens têm ou podem ter sobre eles. As ideias são o “elemento” no qual os dados da experiência vivida existem. - A realidade desses elementos para os homens (a realidade que eles têm na experiência humana, ou na vida humana) equivale ao modo como eles historicamente aparecem para os homens, ou seja, ao modo como eles historicamente são vistos e compreendidos (interpretados) pelos homens. - A realidade que esses elementos têm para os homens equivale ao sentido que eles historicamente têm para os homens, ou seja, depende das ideias com que os homens de uma determinada época ou cultura os situam, organizam e integram em sua concepção e projeto de vida. Três frases equivalentes: (1) As ideias são o “elemento” (“meio”) no qual os dados da experiência vivida existem. (2) A linguagem é o “elemento” (“meio”) no qual os dados da experiência humana existem. (3) O “elemento” (“meio”) no qual os dados da experiência vivida existem é o Sentido. - Isso não significa que todos os dados sejam completamente redutíveis a ideias. - Por exemplo, os impulsos e processos biológicos constitutivos do substrato natural da vida humana não são completamente redutíveis às ideias que os homens têm ou podem vir a ter sobre eles. - Entretanto, na experiência vivida, esses impulsos sempre estão por assim dizer atravessados e envolvidos por determinadas ideias. O dado natural só existe na relação com ideias (muitas vezes há diversas ideias, contrárias entre si). - O cientista da natureza (o médico, por exemplo) procura focalizar os impulsos e processos biológicos independentemente das ideias através das quais as próprias pessoas vivenciam esses processos. - Já as ciências humanas e sociais (a psicanálise ou a antropologia, por exemplo) focalizam as ideias por meio das quais esses elementos biológicos existem e atuam na experiência vivida das pessoas. No âmbito das ciências humanas e sociais, esses fatores biológicos só existem na relação com a consciência e com as ideias através das quais a consciência reconhece o sentido que esses fatores têm na experiência vivida. - Do ponto de vista das ciências humanas e sociais, as ações humanas sempre ocorrem no meio (elemento) das ideias e concepções através das quais os homens as planejam, explicam e justificam. - Essas justificativas muitas vezes assumem o caráter de desculpa, ou seja, o homem se justifica por ter praticado uma ação contrária à concepção que ele em princípio adota e prefere, ou que é preferida no contexto em que ele está atuando. E ele se justifica com uma ideia em princípio contrária àquela que ele (ou a sociedade) mais preza. 80 - Esta oposição entre ideias se expressa em sentimentos típicos de seres dotados de consciência e linguagem, como os sentimentos de vergonha, remorso, culpa. - Essa justificativa pode inclusive assumir a forma da seguinte ideia: “eu sou um animal, não consigo resistir aos meus impulsos”. - Mesmo que o ser humano aja com este tipo de ideia, ele continua agindo “com” uma ideia, e não de modo puramente instintivo, como fazem os animais. - O que define a liberdade humana é, justamente, a necessidade ou inevitabilidade de usar certas ideias e concepções para planejar, explicar e justificar (desculpar) as ações humanas. - As ações que realizamos, inclusive ações ou atos de fala; as ações (inclusive atos de fala) com que respondemos às palavras ou ações dos outros; as ações que planejamos, quer individualmente quer em grupo; as ações que comunicativamente propomos, recomendamos ou ordenamos a outras pessoas; as ações que esperamos dos outros, etc.: para a abordagem interpretativa, as ações humanas sempre são veículo e expressão de ideias, modos de pensar, modos de conferir sentido ou significado. - Para a abordagem interpretativa, portanto, não existem, na experiência e história humanas, dados, condições, estruturas ou leis “objetivas”, no sentido de independentes das ideias veiculadas e empregadas nas interações comunicativas dos seres dotados de consciência e linguagem. - Isto não significa que as ideias empregadas nas estruturas e interações comunicativas sejam sempre conscientemente adotadas e utilizadas. Ao contrário, os expoentes da abordagem interpretativa reconhecem que na grande maioria das vezes nós aplicamos e reproduzimos certos padrões de pensamento de um modo automático e irrefletido, sem estarmos cientes ou conscientes disso. - No âmbito da abordagem interpretativa, entretanto, o “inconsciente” indica apenas os limites da consciência, e não um substrato (“objetivo”) logicamente anterior à consciência. Trata-se dos limites na capacidade da consciência de reflexivamente conscientizar-se dos padrões de pensamento que governam suas ações, e, mais ainda, na capacidade de reflexivamente alterar esses padrões de pensamento. - Grande parte dos padrões mentais que regem nossa sensibilidade, compreensão e conduta são transmitidos a nós sem que tenhamos capacidade de conscientemente refletir sobre eles, analisa-los, exercer escolhas quanto a eles. Mas isso não significa que eles deixam de ser padrões “mentais” (irredutíveis a processos puramente físicos ou fisiológicos), ou seja, padrões que subsistem no meio (“elemento”) da linguagem e do sentido, e não num meio (elemento) puramente físico, independente das interações comunicativas conferidoras e transmissoras de sentido. 81 - No âmbito da abordagem interpretativa, quando um homem “vê” um dado (uma árvore, por exemplo), ele não está simplesmente respondendo ou reagindo a estímulos sensoriais de caráter puramente físico ou fisiológico. - No caso do ser humano, a visão é um processo irredutivelmente mental e linguístico. - O ser humano na verdade “reconhece” o dado, ou seja, identifica-o como caso de certo conceito, nomeando-o com o termo linguístico correspondente. E todo conceito (o conceito árvore, por exemplo) é parte de uma rede linguístico-conceitual, ou seja, é parte de uma estrutura de classificação, organização, interpretação e avaliação dos dados. - Reconhecer um dado como “uma árvore” é conferir-lhe o sentido de “ser árvore”, ou seja, é conferir-lhe certo sentido dentro de certa “visão de mundo”. - A visão de mundo articula o sentido das coisas na totalidade da nossa experiência vivida. Por exemplo: qual o lugar da árvore nas classificações com que organizamos nossos dados? De que modo situamos a árvore naqueles esquemas de interpretação e avaliação que nós empregamos para lidar com os dados? Responder a este tipo de pergunta é estabelecer o sentido do “ser árvore”. E, na experiência vivida, a existência do dado equivale ao sentido que ele tem para nós. Como dito acima, o “elemento” (“meio”) no qual os dados da experiência vivida existem é o Sentido (a linguagem, as ideias). - As teses centrais da abordagem interpretativa da realidade social: - Essência da realidade social é a interação simbólica entre seres humanos. Interação simbólica: transmissão, troca e reprodução de “idéias de sentido”, ou seja, idéias que exprimem o sentido que os objetos e itens da vida social têm para os homens. - O que o cientista social focaliza nunca são dados “objetivos”, mas dados da experiência vivida, ou seja, dados atravessados ou envolvidos por determinadas ideias e interpretações, que exprimem o sentido que esses dados têm para os homens que vivem em sociedade. - A realidade social é composta por uma pluralidade de contextos de interação simbólica: família, escola, associações recreativas, igreja, organizações privadas, agências do Estado, etc. - Estes contextos são regidos por diferentes padrões de pensamento ou interpretação. - O Sentido dos dados varia conforme o contexto de interação. - Um contexto de interação simbólica, regido por certo(s) padrão(ões) de interpretação, equivale a um contexto cultural, a uma cultura. - No âmbito da abordagem interpretativa, reconhece-se que frequentemente há (sub)culturas dentro de culturas mais abrangentes. - As idéias de sentido que os seres humanos transmitem e trocam na interação simbólica cristalizam-se em estruturas e padrões de significação, ou seja, modelos mentais que se tornam independentes das consciências humanas tomadas 82 individualmente; em cada contexto de interação simbólica, a consciência individual encontra padrões de significação relativamente cristalizados e independentes. - A consciência individualmente tomada sempre é formada segundo padrões atitudinais e interpretativos que lhe são anteriores e independentes, e que ela muitas vezes aplica e reproduz de forma automática e irrefletida, inconsciente. - Em cada contexto de interação simbólica tende a destacar-se um padrão de significação dominante, que o indivíduo que participa desse contexto aprende a aplicar e reproduzir. Numa certa medida, as consciências individuais são governadas pelo padrão de significação dominante em cada contexto de interação simbólica. - O indivíduo tem a capacidade de participar de diferentes contextos de interação, ou seja, tem a capacidade de aplicar e reproduzir padrões de significação vigentes em diferentes contextos de interação simbólica. - A consciência individual é formada segundo os padrões de significação vigentes na cultura em que ela vive. A formação da consciência individual ocorre por meio da internalização de padrões de significação culturalmente vigentes. - Ainda que os padrões de significação adquiram certa independência em relação às consciências humanas tomadas individualmente, eles sempre são em alguma medida (mas não de modo completo e absoluto) permeáveis às atividades da consciência humana: reflexão, conscientização, compreensão, avaliação crítica. - Idéias de sentido e padrões de significação nunca são “objetivos” no sentido positivista do termo (elementos totalmente externos e impermeáveis à consciência e às capacidades e atividades próprias da consciência). As variantes da abordagem interpretativa. 1) Do ponto de vista da própria realidade social: 1.A) Ênfase na reprodução relativamente automática e irrefletida dos padrões de significação culturalmente vigentes. Menor ênfase na participação consciente dos sujeitos na construção da realidade social. (Mas esta posição não é incompatível com a tese de que os padrões de significação sempre são em certa medida permeáveis às atividades próprias da consciência, como reflexão, conscientização, compreensão, avaliação crítica). - Ênfase nas estruturas relativamente rígidas geradas pelos padrões de significação culturalmente vigentes. - Ênfase na idéia de que a ação humana está subordinada às estruturas vigentes (conforma-se a elas, tende a reproduzi-las, é limitada por elas). Liberdade humana sempre e inevitavelmente está enquadrada em estruturas culturalmente vigentes. 1.B) Ênfase na possibilidade de participação consciente e refletida dos sujeitos na construção e reconstrução da realidade social. 83 - Ênfase na possibilidade de efetuar mudanças na ordem cultural, por meio da projeção de novas atitudes e idéias de sentido, capazes de se tornarem polos de atração e reconfiguração dentro das redes comunicativas constitutivas da estrutura social. - Ênfase na relativa autonomia da ação individual em relação às estruturas vigentes; liberdade humana é, justamente, poder em alguma medida (mas não de modo completo e absoluto) não conformar-se às estruturas vigentes. 2) Do ponto de vista da metodologia da ciência social. 2.A) Ênfase numa atitude mais neutra em relação às avaliações (juízos valorativos e normativos) inerentes às idéias de sentido e padrões de significação envolvidos nas interações simbólicas. - Ênfase na diferença entre “compreender” idéias de sentido e padrões de significação, que exige “relacionar-se” com as avaliações a eles inerentes, e, por outro lado, julgá- los positiva ou negativamente (diferença entre “relação a valores” e “juízos de valor”). (Diferença entre “ciência social” e “posicionamento político”). 2.B) Ênfase na idéia de que a ciência social sempre é um momento da prática sócio- política do cientista. Toda compreensão da realidade social, mesmo de uma realidade social alheia àquela em que o próprio cientista vive, tem implicações para a auto- compreensão das pessoas que são contemporâneas ao cientista, tem implicações, portanto, para a discussão político-cultural da sociedade em que vive o cientista. - Ênfase na idéia de que a ciência social, mesmo não sendo retórica ou propaganda, tem efeitos indiretos sobre a auto-compreensão das pessoas que lêem o trabalho do cientista social. - Ênfase na tese de que a expressão pública da compreensão do cientista social, mesmo não sendo (e não devendo ser) retórica ou propaganda, é parte da discussão política (político-cultural) da sociedade em que vive o cientista social. - Analisar certos padrões atitudinais e interpretativos implica não apenas relacionar-se aos valores e normas a eles inerentes, mas também “lança-los” ou “projetá-los” de um determinado modo (segundo certa perspectiva) no horizonte de sentido da sociedade em que vive o cientista, ou seja, na discussão político-cultural da sociedade em que vive o cientista. Consciência do sujeito sempre participa do processo social •A consciência do sujeito sempre participa, de algum modo, do processo social (em vez de ser simplesmente conduzida por fatores “objetivos”, como nas abordagens positivistas): essa participação pode consistir numa reprodução mais ou menos irrefletida dos padrões de significação vigentes, mas pode consistir também numa tentativa de re-estruturação dos mesmos, mediante projeção de novas idéias de sentido, capazes de se tornar “fatores de atração” dentro do sistema cultural. (re- estruturação “desde dentro”). 84 - Tópico 17: Alguns conceitos da sociologia de Max Weber (1864-1920), um dos principais expoentes da abordagem interpretativa. I) 4 “tipos ideais” de ação social. Modelos idealizados, abrangentes e abstratos de identificação do sentido da ação humana – na experiência concreta esses tipos se misturam, mas o pesquisador procura analisar qual deles predomina e qual o grau de “desvio” em relação ao tipo puro. 1) Ação afetiva: sentido da ação (explicação ou justificativa que pode ser dada à ação) consiste numa obediência relativamente automática e irrefletida a afetos, sentimentos, emoções, ou seja, a padrões atitudinais (que são um tipo de padrão mental) de caráter mais imediatista. Para se justificar, o agente apresenta como motivo uma emoção de caráter irrefletido. - Na sociologia weberiana, a ação afetiva não equivale a uma ação estritamente “instintiva”, mas a uma ação governada por “ideias” (atitudes ou emoções, tomadas como elementos irredutivelmente mentais, e não neurofisiológicos). Trata-se apenas de ideias de caráter mais imediatista, inconsciente e irrefletido. (Como dito acima, na abordagem interpretativa o “inconsciente” equivale aos limites da consciência, e não a um substrato físico logicamente independente da consciência). Quaisquer que sejam os dados físicos ou fisiológicos presentes nos afetos e emoções, enquanto afetos e sentimentos humanos eles existem no “meio” ou “elemento” da consciência ou mente, que é o elemento da ideia e do sentido. Afetos e emoções equivalem a ideias em sentido amplo, fatores irredutivelmente mentais, ou seja, fatores que não podem ser reduzidos a estruturas e processos logicamente anteriores e independentes em relação aos processos da consciência. Weber classifica a ação afetiva como um tipo de ação “irracional”. A razão desta classificação é o contraste com as ações “racionais”, como se verá logo a seguir. 2) Ação tradicional: sentido da ação consiste na obediência relativamente automática e irrefletida às crenças, costumes e práticas tradicionais, ou seja, há muito tempo transmitidas e seguidas no grupo social em que o agente foi formado. Para se justificar, o agente recorre à vigência de um padrão tradicional de comportamento. Weber também classifica a ação tradicional como um tipo de ação irracional. 3) Ação racional com relação a um valor. Sentido da ação consiste no fato de que ela, nela mesma, encarna um valor consciente e refletidamente assumido pelo agente. - Valores, neste caso, são bens (fins, idéias que os homens buscam seguir e efetivar) “internos” à ação, e que transformam a ação em “fim em si mesma” – em oposição a uma ação que é apenas meio para um bem ou fim que lhe é externo, que está além dela mesma, como ocorre na “ação racional com relação e um fim”, que será analisada logo a seguir. 85 Exemplos de valor: honra, honestidade, lealdade ou fidelidade, amor, vocação, justiça. ** Elaborações que nós podemos fazer do conceito weberiano de “ação racional com relação a um valor”, tendo em vista uma melhor compreensão dos tipos ideais de legitimação da dominação, que serão vistos abaixo. - Nós podemos identificar dois tipos específicos de ação racional com relação a um valor, os quais, embora sejam ações racionais com relação a um valor, representam uma espécie de “mistura” com a ação afetiva e com a ação tradicional, vistas acima. Os dois tipos são: 3.a) Ação racional com relação ao valor “mágico” dos afetos, emoções, sentimentos. Padrão de significação (atribuição de significado) marcado por uma valorização consciente e refletida dos afetos e emoções, como elementos que infundem “encanto” e “magia” à existência, salvando-a do tédio, banalidade, mediocridade. 3.b) Ação racional com relação ao valor “tradição sagrada”. Padrão de significação (atribuição de significado) marcado por uma valorização consciente e refletida da ordem social tradicional, e também do desempenho excelente das obrigações definidoras dos papéis sociais dentro desta ordem. - Valorização consciente e refletida do caráter “sagrado” da tradição, como fonte vital que garante a identidade, continuidade e vigor do grupo; valorização consciente e refletida da “virtude”, entendida como cumprimento excelente das expectativas sociais definidoras do papel social próprio do agente dentro da ordem tradicional. 4) Ação racional com relação a um fim. Sentido da ação remete à utilidade ou eficiência da mesma para fins (resultados) que lhe são externos; ação é meio para a realização de um resultado que lhe é externo, que está além dela, no futuro. Sentido da ação remete às conseqüências da mesma em relação a um resultado ou fim perseguido pelo agente. - No âmbito deste tipo de ação, há uma tendência a conceber os fins em termos, simplesmente, de maximização indefinidamente prorrogada e prolongada de resultados em princípio traduzíveis em termos quantitativos. A eficiência passa a ser o fim (deixa de ser uma qualidade dos meios), e um fim que só pode ser operacionalizado à medida que é traduzido em termos quantitativos. - Weber acreditava que, no âmbito desse tipo de ação social e dessa forma de racionalidade, a realização plena da existência é continuamente reposicionada para o futuro, o que gera um certo grau de ansiedade e frustração, revelando um aspecto de irracionalidade presente nesse padrão de significação (ou modo de pensar) tão influente na cultura ocidental contemporânea. - Para Weber, a rejeição dessa experiência de ansiedade e frustração associada à racionalidade com relação a fins explica a tendência ao desenvolvimento dos dois tipos mais específicos de ação racional com relação a um valor, acima indicados – especialmente a ação racional com relação ao valor “mágico” dos afetos e sentimentos, que é um tipo de ação que pode estar na base de certas formas 86 contemporâneas de legitimação carismática da dominação, como veremos logo a seguir. II) Em estreita associação com o tópico dos tipos de ação social, há o tópico dos “tipos ideais” de legitimação da dominação social: modelos idealizados, abrangentes e abstratos de identificação do sentido ou significado do fenômeno da dominação socialmente aceita e legitimada. Em outras palavras, trata-se de modelos abstratos das idéias e crenças que conferem legitimidade à dominação. Na experiência concreta esses tipos se misturam, mas o pesquisador procura analisar qual deles predomina e qual o grau de “desvio” em relação ao tipo puro. 1) Dominação carismática: legitimação da dominação vincula-se à crença dos dominados no “carisma” do governante, visto como qualidade excepcional, extraordinária, “mágica”. - Pode-se perceber uma correspondência deste tipo de dominação tanto com a ação afetiva (resposta irrefletida a sentimentos de admiração e adoração por um indivíduo “extraordinário”) quanto com a ação racional com relação ao valor dos sentimentos e atitudes de devoção, lealdade e fidelidade ao líder extraordinário. 2) Dominação tradicional: legitimação da dominação vincula-se à crença dos dominados ou na inevitabilidade e irrevogabilidade ou na sacralidade da ordem tradicional, na qual o mando político é tradicionalmente exercido por determinadas famílias ou grupos. - Há uma correspondência tanto com a ação tradicional (obediência irrefletida às normas, costumes e práticas tradicionais) quanto com a ação racional com relação ao valor da sacralidade da ordem tradicional e dos papéis sociais contidos nesta ordem. - A dominação se legitima ou pela crença mais ou menos irrefletida e acrítica na irrevogabilidade da ordem tradicional (o peso das práticas tradicionais, a “naturalidade” do fato de “em nossa sociedade estas pessoas sempre mandaram”), ou pela valorização consciente e refletida da sacralidade da ordem tradicional e da virtude a ela correspondente (valorização do desempenho excelente das expectativas da comunidade, definidoras do papel de cada um dentro da ordem tradicional). 3) Dominação racional, legal e burocrática, que se efetiva por meio da organização burocrática, ou do Estado burocrático. (Como veremos logo a seguir, em Weber, o conceito de “organização burocrática” designa uma organização regida por determinado modo de pensar e atribuir sentido, o modo de pensar próprio da racionalidade com relação a fins. Em outras palavras, na sociologia weberiana a “organização burocrática” é uma organização de cultura burocrática, governada pelo modo de pensar típico da racionalidade com relação a fins). - Neste caso, a legitimação da dominação vincula-se à crença na eficiência “técnica” de uma forma de organização das pessoas e recursos caracterizada pela racionalidade da estrutura ou organograma, qualificação técnica dos ocupantes dos cargos definidos no 87 organograma, impessoalidade e meritocracia no preenchimento dos cargos e na ascensão na hierarquia dos cargos. - Há uma correspondência com a ação racional com relação a fins. Legitimação da dominação se dá por meio da crença na racionalidade técnica, com a idéia de eficiência que lhe é típica. Legitimação da dominação vincula-se à crença na eficiência da Organização racional ou burocrática para a realização indefinidamente prolongada e aumentada de fins (resultados essencialmente futuros) passíveis de quantificação. Predomínio de metas quantificadas, em todas as áreas: produção econômica, consumo, segurança, saúde, educação, etc. - Weber acreditava que, como consequência e expressão deste tipo ideal de legitimação da dominação, os regimes democráticos nos Estados ocidentais contemporâneos tenderiam cada vez mais a uma “tecnocracia”, onde o preenchimento até mesmo dos cargos eletivos estaria mais ligado à noção de competência técnica do que a uma discussão sobre os valores (bens ou fins internos às práticas sociais coletivas) a serem adotados e promovidos pela coletividade. - Em Weber, “tecnocracia” e “burocracia” são termos mais ou menos sinônimos. III) Para Weber, a característica essencial da cultura contemporânea é o predomínio crescente de determinado modo de pensar e atribuir sentido, o da racionalidade com relação a fins. Trata-se do modo de pensar que governa a ação racional com relação a fins, e que se manifesta e exerce nas organizações de caráter tecnocrático ou burocrático, tanto na esfera econômica quanto na esfera política. - Weber propôs uma hipótese famosa a respeito da origem do modo de pensar veiculado na ação racional com relação a fins. De acordo com esta hipótese, o domínio crescente deste tipo de ação social tem sua origem nas idéias e crenças típicas do calvinismo (uma das correntes religiosas mais influentes da reforma protestante). Weber expôs sua hipótese no famoso livro “A Ética Protestante e o Espírito do capitalismo” (1905). Para Weber, o sistema capitalista é a expressão mais importante da ação racional com relação a fins. •Em sua origem, a racionalização da sociedade (no sentido da racionalidade com relação a fins) esteve intimamente associada ao desenvolvimento do “espírito do capitalismo”, caracterizado da seguinte maneira: para maximizar os resultados econômicos (fim indefinidamente reposicionado no futuro), reinvestimento permanente dos ganhos auferidos, com a concomitante busca da maior eficiência. (Para Weber, o que define o capitalismo não é simplesmente o desejo de lucro, mas o desejo de expandir de forma continuada e indefinida as oportunidades de lucro). •“Espírito do capitalismo”. Combinação incomum de: desejo de riqueza e, por outro lado, frugalidade na vida pessoal. Em vez de ganhar para gastar e gozar a vida, ganhar para expandir indefinidamente os ganhos, mediante reinvestimento dos ganhos no 88 processo produtivo. O lucro é buscado para maximizar indefinidamente as oportunidades de lucro. •“Ética protestante”: visão de mundo elaborada nas seitas calvinistas, ou seja, seitas nas quais foram aplicadas e em certa medida modificadas as doutrinas de Calvino (1509-1564), um dos mais importantes líderes da reforma protestante no início da era moderna. Nas seitas calvinistas, o êxito econômico foi tomado como sinal de se ter sido escolhido por Deus (para contrabalançar a ansiedade gerada pela doutrina da predestinação defendida por Calvino). - Doutrina da predestinação defendida por Calvino: Deus predestinou cada um de nós à salvação ou condenação, sem que possamos, por nossos atos ou obras, modificar esse decreto divino. A salvação é para o homem um dom totalmente gratuito da graça divina. Rejeição de práticas “institucionalizadas” com vistas à salvação. - O calvinista não só não pode fazer nada para conquistar sua salvação, como também não tem como saber se será salvo ou condenado, e essa incerteza pode se tornar psicologicamente intolerável. Em virtude de uma inclinação psicológica quase irresistível, ele tende a procurar no mundo sinais de que foi escolhido por Deus. - Algumas seitas calvinistas terminaram por ver no êxito econômico uma prova ou indício da escolha de Deus. A riqueza era buscada, não como meio para se ter conforto, luxo ou prazer, mas como um meio pelo qual se adquiria confiança na escolha de Deus. A autoconfiança era adquirida por meio do trabalho árduo e contínuo, marcado pela renúncia aos luxos e comodidades da vida mundana e pelo reinvestimento permanente da riqueza alcançada. - Assim, o lucro era buscado, não para gozar a vida, mas para produzir e lucrar cada vez mais. Surge assim o “espírito do capitalismo”, que acaba se desvinculando de seus motivos religiosos e levando à plena legitimação do desejo de posse e acumulação de riqueza. • Resultado por assim dizer inesperado da ética protestante: combinação incomum de preocupação com a salvação da alma e preocupação com a otimização das consequências ou resultados econômicos. •Com o tempo, desaparece a preocupação religiosa e fica apenas a preocupação com a eficiência econômica. A teoria weberiana da organização burocrática. - Em Weber, a organização burocrática é a organização regida pelo modo de pensar próprio da ação racional com relação a fins. A organização regida por este modo de pensar equivale a uma cultura burocrática. - Em Weber, portanto, a organização burocrática é uma organização de cultura burocrática. 89 •O “tipo ideal” da organização (cultura) burocrática (manifestação do modo de pensar da racionalidade relativa a fins). •A) Regras impessoais, pautadas pela preocupação com a eficiência, regem o comportamento dos funcionários em todos os níveis. •B) Estrutura impessoal dos cargos, com definição clara e precisa das respectivas tarefas e responsabilidades, atribuídas aos indivíduos que ocupam os cargos (por serem definidos por tarefas e responsabilidades próprias de indivíduos, pode-se afirmar dizer que os cargos do organograma são eminentemente individuais). Preocupação com a eficiência técnica rege a definição do organograma. •C) Cargos são preenchidos segundo o princípio da qualificação técnica e profissional, com ênfase na possibilidade de ascensão na hierarquia dos cargos. Ascensão na hierarquia é regida pelo critério da meritocracia. •D) Hierarquia formal e bem definida das relações de autoridade e controle. Ênfase nas funções de supervisão e controle. •E) Separação nítida entre as tarefas do funcionário dentro da organização e sua vida pessoal fora dela. - É essencial destacarmos o seguinte. Na análise organizacional típica da imagem mecanicista (“teoria clássica da administração”, “administração científica”), o organograma e os cargos “individuais” (definidos por tarefas de responsabilidade de indivíduos específicos) também ocupam posição de destaque. - Mas há uma diferença essencial. Na administração clássica e científica, a preocupação com o organograma comparece no quadro de uma abordagem mecanicista, segundo a qual a essência da organização são indivíduos isolados entre si, movidos por necessidades estritamente materiais ou financeiras, e que assumem as tarefas e responsabilidades particulares (individuais) próprias de cargos definidos num organograma tecnicamente desenhado. - Nesta abordagem, o organograma é um item “objetivamente” necessário na organização, ou seja, um item que se faz necessário independentemente dos padrões de atribuição de sentido presentes na organização, um item logicamente independente e prioritário em relação aos modos de pensar presentes na organização. - Para o teórico da abordagem interpretativa, em contrapartida, a essência da organização são os modos de pensar e atribuir sentido seguidos pelos membros da organização. A essência da organização é a cultura organizacional. - A preocupação e primazia concedidas ao organograma, tomado como estrutura tecnicamente racional de cargos eminentemente individuais, são típicas de determinado tipo de cultura, a cultura burocrática. - Para o teórico interpretativo, a essência da organização (cultura) burocrática não é propriamente o organograma de cargos individualisticamente concebidos, mas as ideias e modos de pensar que atribuem grande significado e relevância ao organograma (ou seja, que se exprimem na importância e prioridade concedidas ao organograma, e também aos mecanismos de supervisão e controle). 90 - Em outras palavras, para os seguidores de Weber, a essência da organização (cultura) burocrática é uma ideia ou interpretação bem específica: a ideia ou interpretação segundo a qual o organograma e os mecanismos de controle (dos indivíduos que são responsáveis pelos cargos do organograma) são os itens mais importantes da organização, e itens “objetivamente” necessários. 91 - Tópico 18: A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. - Teoria da sociedade desenvolvida por pensadores vinculados ao “Instituto de Pesquisa Social” fundado na cidade de Frankfurt em 1923. Principais teóricos: Max Horkheimer (1895-1973). Theodor Adorno (1903-1969). Walter Benjamin (1892-1940). Herbert Marcuse (1898-1978). Jürgen Habermas (nascido em 1929). - Habermas é o autor em que vamos nos apoiar nesta apresentação simplificada da “Teoria Crítica da Escola de Frankfurt”. - Tendo em vista os propósitos de nosso curso e o esquema expositivo seguido até aqui, podemos afirmar que a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt sofre influências dos seguintes movimentos filosóficos. A) A Dialética Idealista de Hegel, depurada, porém, daqueles aspectos conceituais que em Hegel configuram a Dialética como uma filosofia da história de caráter determinista. Na Teoria Crítica contemporânea, as relações dialéticas deixam de ser enquadradas num movimento linear marcado pela necessidade histórica típica de um processo destinado a determinado fim. Cabe destacar que esta interpretação determinista das relações dialéticas caracteriza não apenas a Dialética Idealista de Hegel, mas também a Dialética materialista do marxismo ortodoxo. Na Teoria Crítica contemporânea, especialmente na habermasiana, em vez de serem enquadradas numa filosofia da história marcada pela necessidade (determinismo) e teleologia, as tensões e oposições dialéticas são interpretadas como potenciais de mudança próprios de um processo de aprendizagem que precisa ser assumido e conduzido pelos próprios participantes, coletivamente. Este processo de aprendizagem é interpretado em termos de alterações nos modos de pensar culturalmente dominantes em diferentes épocas, especialmente na nossa. - Por enfatizar os modos de pensar culturalmente dominantes, a Teoria Crítica habermasiana pode ser considerada uma teoria de caráter idealista e construtivista. A sociedade é construída por sujeitos em interação comunicativa, ou seja, interação constituída de atos de fala baseados em ideias e modos de pensar. B) O Marxismo Ortodoxo, do qual herda o conceito de “teoria crítica”. Cabe destacar, entretanto, que a Teoria Crítica frankfurtiana (e especialmente a habermasiana) dissocia o conceito de teoria crítica da abordagem materialista e cientificista típica do marxismo ortodoxo, aproximando-o da abordagem idealista e culturalista típica da filosofia hegeliana, da fenomenologia de Husserl e da sociologia interpretativa de Max Weber. 92 O Conceito Geral de Teoria Crítica. - Conceito oriundo do marxismo ortodoxo. - O Conceito Geral de Teoria Crítica apresenta as seguintes características. - Estabelece-se um vínculo essencial entre teoria social e prática politicamente transformadora, interessada na superação da opressão ou exploração do homem, ou na realização do melhor potencial humano. A teoria social apresenta-se como momento da prática politicamente transformadora. - Por apresentar-se como momento da prática politicamente transformadora, a teoria social “crítica” assume duas tarefas fundamentais. A) Identificação das possibilidades “reais” (em oposição a meros “sonhos”) de mudança social, entendidas como possibilidades enraizadas na dialética da realidade social. Na Teoria Crítica habermasiana, trata-se de um potencial de mudança efetivamente inscrito na dialética da interação comunicativa, tomada como componente essencial de toda e qualquer realidade social, como se verá logo a seguir. B) Identificação dos obstáculos à prática transformadora. Na Teoria Crítica habermasiana, como será esclarecido logo a seguir, o principal obstáculo consiste em um modo de pensar (interpretar o sentido da vida humana e das relações com outros seres humanos) que tem dominado as interações comunicativas na época contemporânea, e que abafa ou oprime as melhores possibilidades da interação comunicativa, que equivalem ao melhor potencial dos seres humanos. A Teoria Crítica Habermasiana. 1) A “interação comunicativa”. - Na Teoria Crítica habermasiana, o componente essencial da realidade social é a “interação comunicativa”. A interação comunicativa é o meio ou elemento no qual e através do qual ocorre a coordenação das ações humanas, fenômeno básico de toda e qualquer realidade social. - Para Habermas, a ligação e coordenação das ações humanas ocorrem por meio da realização, compreensão, aceitação e cumprimento de “atos de fala”, ou seja, proferimentos que veiculam, exprimem e se amparam em concepções e razões de algum modo compartilhadas pelos sujeitos que estão interagindo. - A coordenação das ações ocorre à medida que um ouvinte, ao compreender e aceitar o conteúdo verbal proferido por um falante (o ato de fala feito pelo falante), age da maneira correspondente ou consequente, dando seguimento à ação do falante. Em outras palavras, quando o ouvinte aceita o ato de fala, ele tende a agir da maneira indicada e esperada pelo falante, e assim as ações de falantes e ouvintes se ligam umas às outras. 93 - Para Habermas, a aceitação de um ato de fala baseia-se na compreensão e aceitação das razões pelas quais o falante pretende que sua fala é aceitável. Tais razões incluem concepções compartilhadas (compartilhadas entre os interlocutores) dos objetos e situações, dos interesses e fins perseguidos pelos participantes da situação, e das normas de comportamento aplicáveis em cada contexto. - Habermas usa o termo “acordo” para exprimir o fato de que o ouvinte, ao compreender as razões que explicam ou justificam o conteúdo proposto pelo falante, “aceita” este conteúdo e age da maneira que lhe é correspondente. - Na interação comunicativa, portanto, há acordo quanto à aceitabilidade de determinado ato de fala à medida mesmo que há acordo quanto às razões que amparam essa aceitabilidade, ou seja, acordo em torno de certas concepções (compartilhadas) das situações e dos interesses e fins perseguidos pelos participantes das situações. - Para Habermas, portanto, o aspecto essencial da interação comunicativa são os acordos entre os sujeitos que falam e compreendem as falas dos outros: a coordenação das ações ocorre por meio de acordos intersubjetivos quanto aos conteúdos veiculados nos atos de fala, e, consequentemente, quanto às razões que em cada situação justificam o proferimento de determinados conteúdos verbais, ou que sustentam a aceitabilidade dos atos de fala emitidos pelos interlocutores. - Em outras palavras, a interação comunicativa baseia-se em “acordos” entre os sujeitos: acordos quanto à aceitabilidade de atos de fala específicos e acordos quanto às razões mais abrangentes e genéricas (interpretações das situações, dos interesses e fins dos agentes envolvidos e das normas de comportamento aplicáveis nas situações) que sustentam a aceitabilidade dos atos de fala mais específicos. 2) As duas formas de interação comunicativa. - De modo bastante simplificado, pode-se afirmar que, para Habermas, há duas formas básicas de interação comunicativa, equivalendo a duas formas básicas de acordo intersubjetivo. A) A primeira é a interação comunicativa “fraca”, constituída de acordos intersubjetivos “fracos”. - Trata-se de uma interação comunicativa dominada por um modo de pensar grosso modo “individualista”, que prioriza interesses e fins estritamente particulares, alheios à possibilidade de interesses e fins comuns ou coletivos. - Neste tipo de interação, a única coisa que é comum e compartilhada é, justamente, este modo de pensar grosso modo individualista, que faz com que cada participante tenha uma interpretação “particularista” das razões envolvidas tanto na realização quanto na aceitação dos atos de fala. O ouvinte espera que o ato de fala realizado pelo falante tenha a ver, basicamente, com razões (interesses, fins, projetos) particulares deste falante, e ele aceita e cumpre (comporta-se de modo consequente) o ato de fala à medida que de algum modo percebe razões particulares dele, ouvinte. O falante admite que, para obter a aceitação e cumprimento do ouvinte, ele precisa de algum modo falar a seus interesses, fins e projetos particulares. 94 Nenhum dos participantes conta muito com a possibilidade ou eficácia de valores, interesses e fins efetivamente comuns, compartilhados. - Na interação comunicativa fraca, portanto, a aceitabilidade dos atos de fala depende essencialmente de razões particulares (interesses e fins de indivíduos e grupos isoladamente tomados), típicas do modo de pensar grosso modo individualista e calculador predominante em nossa cultura. - Os acordos intersubjetivos baseados nesse modo de pensar grosso modo individualista são acordos “fracos”. As razões que motivam a adesão dos participantes aos conteúdos acordados são razões eminentemente particulares, que variam de indivíduo para indivíduo, ou de grupos para grupo. - As razões só são “compartilhadas” no sentido de que ambos os participantes (falante e ouvinte) esperam e empregam (e nesse sentido legitimam) razões de tipo particularista, alheias à possibilidade de interesses e projetos efetivamente comuns. - Acordos intersubjetivos fracos exprimem relações de poder ou força: as razões particulares dos mais fortes ou poderosos prevalecem, e as razões particulares dos mais fracos exprimem o reconhecimento de uma relativa falta ou limitação de poder. A aceitação dos mais fracos exprime o poder dos mais fortes de acenar com recompensas e punições de caráter individualista, alheias à possibilidade de interesses, projetos e empreendimentos comuns. - Sistemas de ação (que sempre envolvem coordenação comunicativa de ações individuais) estruturados e regulados pela interação comunicativa “fraca” não podem ter o caráter de um empreendimento comum, experimentado pelos participantes como um empreendimento bom para todos, ou seja, justo. - De um ponto de vista histórico, a interação comunicativa fraca, baseada num modo de pensar grosso modo individualista, é aquela que predomina nas sociedades contemporâneas. - Recorrendo a uma simplificação das análises habermasianas, é possível afirmar que este modo de pensar individualista pode ser identificado ao conceito weberiano de “racionalidade relativa a fins”, que aparece na teoria habermasiana com o nome de “racionalidade instrumental”: um modo de pensar no qual os critérios e procedimentos da racionalidade estão a serviço de interesses e fins de caráter grosso modo particularista, alheios à possibilidade de interesses, fins e projetos efetivamente comuns. B) A segunda forma de interação comunicativa é a interação comunicativa “forte”, constituída de acordos intersubjetivos fortes. - Antes de apresentar as características desta forma de interação, cabe destacar o seguinte: - Sistemas de ação estruturados e regulados pela interação comunicativa “forte” têm o caráter de um empreendimento comum, ou seja, um empreendimento experimentado pelos participantes como bom para todos, justo. - Esta é a “melhor possibilidade” da interação comunicativa, equivalendo ao melhor potencial dos seres humanos. O melhor potencial dos seres humanos é a participação efetiva em empreendimentos comuns e compartilhados, ou seja, empreendimentos experimentados por todos como bons para todos, justos. 95 - A prática politicamente transformadora está interessada em promover ou fomentar este tipo “forte” de interação comunicativa. Ela está interessada na superação daquela forma de opressão encarnada no domínio da interação comunicativa fraca, ou no predomínio de acordos intersubjetivos fracos, que veiculam e reproduzem relações de poder ou força. - O principal obstáculo à prática transformadora reside no modo de pensar individualista predominante em nossa cultura, encarnado na forma de racionalidade que Habermas chama de “racionalidade instrumental”, a qual, ao ser utilizada na interação comunicativa, restringe esta interação à sua forma fraca, abafando e oprimindo o melhor potencial dos seres humanos. - Como vimos acima, a interação comunicativa fraca é regida por concepções, interpretações e razões (justificativas, argumentos) de caráter grosso modo particularista, que exprimem uma orientação do pensamento para interesses e fins admitidamente individuais e individualistas. - Já a interação comunicativa forte está baseada em razões “comuns”: as mesmas razões são compartilhadas entre os diferentes interlocutores, e são elas que subjazem à aceitabilidade dos atos de fala para os interlocutores. Não se trata de razões de tipo “bom para mim” e “bom para ele”, mas de tipo “bom (valioso, importante) para nós todos”, “razoável para todos”, “justo”. Razões comuns exprimem e encarnam uma orientação para interesses, projetos, fins e empreendimentos comuns. - Para marcar o contraste com as razões “particularistas” típicas da interação comunicativa fraca, pode-se afirmar que a interação comunicativa forte é regida por concepções, interpretações e razões de caráter grosso modo “comunitarista”, que veiculam e exprimem uma orientação para interesses, projetos e fins efetivamente comuns. - Na base da interação comunicativa forte está um modo de pensar grosso modo comunitarista, orientado para a construção e efetivação de interesses, projetos e fins verdadeiramente comuns. - Na interação comunicativa forte os participantes acreditam na possibilidade e eficácia de interpretações e valores de caráter comunitarista, no sentido acima indicado. - Os acordos intersubjetivos baseados no modo de pensar grosso modo comunitarista são acordos intersubjetivos fortes. As razões que motivam a adesão dos participantes aos conteúdos acordados têm um caráter fortemente cognitivo, e por isso este tipo de acordo pode ser considerado um “entendimento” em sentido estrito. - No entendimento em sentido estrito, as razões que motivam a adesão dos participantes não consistem em interesses e fins admitidamente particulares, mas consistem no reconhecimento coletivo de que o conteúdo acordado é razoável para todos, ou seja, justo. - As razões são compartilhadas num sentido forte: elas são reconhecidas por todos os participantes como razões que comprovam a razoabilidade do conteúdo acordado para todos os participantes. - Recorrendo a uma simplificação das análises habermasianas, é possível afirmar que o modo de pensar grosso modo comunitarista indicado acima pode ser identificado ao conceito de “racionalidade comunicativa”: um modo de pensar no qual as 96 competências e procedimentos próprios da racionalidade estão a serviço da construção e implementação de interesses, fins e projetos efetivamente comuns. - A racionalidade comunicativa é a capacidade de efetuar discussões, negociações e modificações (reformulações) nas interpretações e razões associadas aos interesses e fins particularistas, de modo a construir e implementar, paulatinamente, interpretações “comunitaristas” das situações de ação, ou seja, de modo a construir e implementar, paulatinamente, interesses, projetos e fins efetivamente comuns. - A passagem de uma perspectiva “particularista” para uma perspectiva “comunitarista” das ações e empreendimentos humanos equivale a um processo de aprendizagem a ser paulatinamente realizado pela sociedade como um todo. 3) As possibilidades “reais” de mudança social, no sentido da efetivação da interação comunicativa forte. - Conforme vimos acima, uma das marcas essenciais do conceito geral de Teoria Crítica é a adoção da tarefa de indicar possibilidades “reais” para a mudança social, em vez de situar esta última no plano do sonho ou utopia. - Na tradição geral da Teoria Crítica, as possibilidades reais de mudança social são entendidas como possibilidades enraizadas ou inscritas na estrutura dialética da realidade social. - Na tradição mais específica da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que abandona a interpretação materialista e determinista das estruturas e processos dialéticos, típica do marxismo ortodoxo, as análises dialéticas dão muito mais atenção ao plano das ideias e modos de pensar, ao plano da cultura. - A Teoria Crítica habermasiana caracteriza-se por uma versão teoricamente mais nítida e poderosa dessa interpretação grosso modo idealista e culturalista da estrutura dialética da realidade social. Nessa versão, o foco da análise dialética recai nas tensões e oposições internas à estrutura contemporânea da interação comunicativa. - No modelo habermasiano, portanto, as possibilidades reais de mudança social são entendidas como possibilidades inscritas na estrutura dialética da interação comunicativa típica das sociedades contemporâneas, que é a interação comunicativa “fraca”. Em outras palavras, trata-se de possibilidades inscritas ou enraizadas em tensões e oposições internas à interação comunicativa fraca. O pressuposto fundamental da interação comunicativa fraca. - Vimos acima que a interação comunicativa típica das sociedades contemporâneas é a interação comunicativa fraca, regida por um modo de pensar grosso modo individualista ou particularista. Afirmamos que a única coisa que é compartilhada na interação comunicativa fraca é, justamente, este modo de pensar grosso modo particularista. 97 - Devemos agora ajustar esta última afirmação, esclarecendo que, em verdade, há outra coisa que é comum e compartilhada, além do modo de pensar individualista: o reconhecimento do outro ser humano como sujeito capaz de compreender e seguir razões – os interesses e vantagens invocados na interação comunicativa fraca são razões, e não influências meramente físicas. - Para Habermas, como vimos acima, a coordenação das ações humanas sempre exige interação comunicativa, ou seja, interação fundada em atos de fala, proferimentos que veiculam conteúdos verbais dotados de sentido ou significado. - Na interação comunicativa, mesmo na interação comunicativa fraca, cada participante dirige-se ao outro esperando que ele seja capaz de compreender e implementar os conteúdos verbais transmitidos no ato de fala; que ele seja capaz, portanto, de compreender as razões subjacentes à aceitabilidade dos conteúdos. - Mesmo na forma mais fraca de interação comunicativa, a ameaça, a pessoa que faz a ameaça espera que a outra seja capaz de compreender o que ela está falando como uma ameaça, e uma ameaça suficientemente grave para leva-la a agir de determinada maneira. Embora seja um tipo de ato de fala relativamente próximo do estímulo ou influenciação meramente físicos, e embora apresente um caráter fortemente manipulador em relação à pessoa que está sendo ameaçada, a ameaça não deixa de ser um ato de fala endereçado a um sujeito capaz de compreender razões ou argumentos. Mesmo a ameaça pressupõe o reconhecimento da outra pessoa como um sujeito capaz de compreender e seguir razões. - Para Habermas, portanto, a interação comunicativa “fraca” pressupõe o reconhecimento de todo ser humano como sujeito capaz de compreender e seguir razões. - E é nesta pressuposição que se instalam as tensões e oposições típicas das estruturas dialéticas em geral, ou seja, tensões e oposições capazes de promover passagens a níveis superiores de consciência e ação. Tais passagens equivalem a um processo de aprendizagem e educação (formação) da humanidade como um todo. - O pressuposto inicial acima indicado (reconhecimento do interlocutor como um sujeito capaz de compreender razões e argumentos) contém um potencial diferente, normativamente mais forte. Há uma tensão e em certo sentido oposição entre esse pressuposto e o potencial normativo nele contido, as quais sugerem – embora não determinem – a passagem a um nível superior de consciência e ação. - O potencial normativo contido no pressuposto inicial é o potencial para o reconhecimento dos direitos comunicativos da outra pessoa – direito de questionar e rejeitar as minhas razões, direito de formular, defender e tentar implementar razões distintas. - O reconhecimento dos direitos comunicativos da outra pessoa contém ainda outro potencial, um pouco diferente, normativamente mais exigente. De novo, emerge uma tensão e em certo sentido oposição entre o reconhecimento dos direitos comunicativos da outra pessoa e o potencial normativo nele contido, as quais sugerem – embora não determinem – a passagem a um nível superior de consciência e ação. - Esse novo potencial é o potencial para o reconhecimento dos meus deveres comunicativos: dever de tentar construir um acordo razoável e justo com o outro, dever de me abrir à possível validade das razões do outro, e de modificar de modo 98 correspondente as razões que eu havia inicialmente defendido, de modo a construir razões efetivamente comuns, igualmente válidas para todos. - Pode-se propor a seguinte imagem das passagens dialéticas a níveis superiores de consciência e ação. A) No “elemento” da interação comunicativa, o ego individualista socialmente poderoso, ao relacionar-se dialeticamente com outro indivíduo, “passa” (passagem dialética) para o reconhecimento deste outro indivíduo como sujeito capaz de compreender e seguir razões. B) No elemento da interação comunicativa, o ego individualista socialmente poderoso, ao relacionar-se dialeticamente com um sujeito capaz de compreender e seguir razões, “passa” para o reconhecimento dos “direitos comunicativos” do outro sujeito. -Direitos como: direito de analisar criticamente as razões apresentadas, direito de questionar e discutir as razões apresentadas, direito de formular e exprimir outras razões, direito de dar início a um processo de barganha e negociação de razões, direito de participar de um processo de ajuste recíproco das razões em princípio contrárias, orientado para a superação das razões de tipo particularista e para a construção de razões de tipo “comunitarista”. - Na estrutura dialética da interação comunicativa fraca, no momento em que se insinua o reconhecimento dos direitos comunicativos insinua-se também o reconhecimento dos deveres comunicativos correspondentes. Em outras palavras, no momento em que se insinua o reconhecimento dos direitos comunicativos “do outro” insinua-se também o reconhecimento dos “meus” deveres comunicativos. Trata-se, essencialmente, do dever de adotar uma atitude sincera e responsável de abertura ao outro, de abertura às razões do outro, de abertura à qualidade e legitimidade das razões do outro. - Em última instância, trata-se do dever de buscar a superação do modo de pensar particularista que abafa as melhores possibilidades da interação comunicativa, e de tentar construir em conjunto uma perspectiva efetivamente comunitarista. - A terceira relação ou passagem dialética seria então a seguinte: C) No “elemento” da interação comunicativa, o ego individualista socialmente poderoso, ao relacionar-se dialeticamente com a admissão de direitos e deveres comunicativos, supera a perspectiva particularista e “passa” para o esforço de construção de projetos e fins efetivamente comuns. - Assim, na Teoria crítica habermasiana, lutar pelo reconhecimento dos meus direitos comunicativos não equivale a lutar pela imposição das minhas razões particularistas, contra as razões particularistas do outro. Lutar para que o outro reconheça os meus direitos comunicativos é, simultaneamente, assumir os meus deveres comunicativos em relação ao outro. É lutar pela superação do modo de pensar particularista que abafa as melhores possibilidades da interação comunicativa, ou o melhor potencial do ser humano; é lutar pela construção de um modo de pensar grosso modo comunitarista. 99 - Assim, às relações e passagens dialéticas próprias do ego individualista socialmente forte ou poderoso correspondem as relações e passagens dialéticas próprias do ego individualista socialmente “fraco”. A) No “elemento” da interação comunicativa, o ego individualista socialmente fraco, ao relacionar-se dialeticamente com o ego individualista socialmente poderoso, “passa” para uma atitude de protesto e luta em favor dos seus direitos comunicativos (ainda situados numa perspectiva particularista). B) No elemento da interação comunicativa, o ego individualista socialmente fraco, ao relacionar-se dialeticamente com a atitude ainda particularista de protesto e luta em favor dos seus interesses particulares (uma atitude cujo ápice dialético é a pura negatividade da “luta pela luta”), supera a perspectiva particularista e “passa” para o esforço de construção com o outro de projetos e fins efetivamente comuns. 4) Os obstáculos à efetivação da interação comunicativa forte: três ideologias das sociedades contemporâneas. - No marxismo ortodoxo, o conceito de ideologia tinha o sentido de ideias propositalmente difundidas pela classe dominante para mascarar uma exploração “objetiva” da classe dominada, ou seja, uma exploração que existe independentemente de qualquer ideia que os seres humanos possam ter acerca dela – quer se trate de ideias falsas, como as ideologias, quer de ideias verdadeiras, como as ideias que ensinam para a classe dominada quais são seus verdadeiros interesses, seus interesses “objetivos”, no sentido positivista analisado anteriormente. - Na Teoria Crítica Habermasiana, à reviravolta “idealista” na compreensão da realidade social e da estrutura dialética da mesma, corresponde uma reformulação do conceito de ideologia. - “Ideologia” passa a designar ideias e modos de pensar que oprimem, abafam ou esvaziam outro modo de pensar e ver as coisas, aquele que é próprio da interação comunicativa forte, e que pode ser chamado de “racionalidade comunicativa” (modo de pensar no qual as competências e procedimentos próprios da racionalidade estão a serviço da construção e implementação de interesses, fins e projetos efetivamente comuns). - A racionalidade comunicativa contém três ingredientes básicos: a) O reconhecimento dos direitos comunicativos do outro. b) O reconhecimento dos meus deveres comunicativos. c) Reflexividade crítica: atitude e prática de conscientização quanto a modos de pensar que possam abafar e esvaziar o melhor potencial humano, e a vivência de que a realização desse potencial é uma atividade boa em si mesma, é fim em si mesma. Como visto acima, trata-se do potencial para a construção e participação em empreendimentos efetivamente comuns. 100 - A estes três ingredientes da racionalidade comunicativa correspondem três tipos de “ideologia” (atitudes, ideias e modos de pensar que abafam o modo de pensar conceituado por Habermas como “racionalidade comunicativa”): a) A Ideologia da violência comunicativa: ideias que veiculam e exprimem uma atitude de desvalorização ou negação dos direitos comunicativos do outro. b) A Ideologia da irresponsabilidade comunicativa: ideias que veiculam e exprimem uma atitude de esquecimento ou negligência em relação aos meus deveres comunicativos – basicamente, o dever de tentar sinceramente aproximar-se do outro, de modo a construir projetos e empreendimentos comuns. c) A Ideologia da anestesia comunicativa: ideias através das quais a interpretação dominante sobre o que é bom para o homem se impõe e reproduz de forma sub- reptícia, inconsciente e irrefletida. Avulta aqui o tema da “Técnica e Ciência como Ideologia”. O fascínio pela técnica e ciência acaba por abafar ou esvaziar a discussão crítica da interpretação segundo a qual o “bom (ou melhor) para o homem” consiste no consumo e conforto (consequências ou resultados indefinidamente expandidos e expansíveis) permitidos por um sistema econômico tecnicamente eficiente, que emprega em larga escala o conhecimento de tipo científico e suas inúmeras aplicações tecnológicas. - E este tipo de interpretação abafa e “oprime” a interpretação segundo a qual o “bom e melhor para o homem” consiste na participação em empreendimentos efetivamente comuns, ou seja, empreendimentos experimentados por todos como bons para todos, ou seja, justos. 101 - Tópico 19: Algumas relações entre as imagens da sociedade e as imagens da organização expostas por Gareth Morgan. 1) Abordagens (Imagens) “positivistas” da organização. 1.1) A abordagem mecanicista no campo da teoria das organizações. - Imagem da organização como “Máquina”. - Expoentes importantes: Fayol (Teoria Clássica da Administração), Taylor (Administração Científica). - Abordagem de caráter positivista: tende a deixar de lado a tese de que a realidade organizacional é construída por sujeitos em interação simbólica, ou seja, interação na qual são transmitidas e trocadas idéias e formas de pensar, relativas ao significado das coisas e do ambiente em geral. - Vê a organização como máquina: a) Visão “atomística” dos indivíduos que trabalham na organização: não coloca ênfase nas relações humanas ou sociais entre os indivíduos. - Funcionários são vistos como indivíduos isolados uns dos outros, com necessidades estritamente materiais (financeiras), e orientados exclusivamente pela racionalidade calculadora ou instrumental, entendida como capacidade de discernir os comportamentos necessários ou eficazes para a maximização da vantagem estritamente individual. - Necessidades materiais, interesses individuais e racionalidade calculadora ou instrumental são tomadas como elementos “objetivos” (no sentido positivista do conceito) da natureza humana. b) Ênfase no organograma: estrutura de cargos com tarefas e responsabilidades bem definidas, estabelecidas muitas vezes em regras escritas. - Uma vez que as tarefas e atividades próprias de cada cargo são tomadas como tarefas de responsabilidade individual, pode-se afirmar que os cargos do organograma são eminentemente individuais. - As ligações entre os cargos individuais são formalmente definidas no organograma, e assumem o aspecto de linhas de comando, supervisão e controle formalmente estabelecidas. - O organograma é tomado como um item “objetivamente” necessário na organização, ou seja, um item que se faz necessário independentemente dos padrões de atribuição de sentido presentes na organização, um item logicamente independente e prioritário em relação aos modos de pensar presentes na organização. c) Ênfase em punições e recompensas associadas às necessidades estritamente materiais dos funcionários, que funcionam como razões ou motivos no âmbito da racionalidade calculadora ou instrumental. d) Ênfase nas linhas de comando, supervisão e controle, de caráter fortemente hierárquico. Tais mecanismos de supervisão e controle também são tomados como itens “objetivamente” necessários, ou seja, itens que são necessários independentemente das ideias e modos de pensar empregados pelos participantes da organização. 102 1.2) A Abordagem funcionalista no campo da teoria das organizações. - Imagem da Organização como um “Organismo”. - Marcos históricos importantes: Elton Mayo e os estudos na fábrica de Hawthorne; Maslow e a hierarquia (pirâmide) das variadas necessidades humanas; a teoria dos sistemas abertos; a teoria da contingência, exemplificada pelos estudos de Burns e Stalker. - Vê a organização como um organismo. a) Processo “vivo” de trocas entre seres humanos com necessidades mais diversificadas e complexas do que as necessidades estritamente materiais ou financeiras focalizadas na imagem mecanicista. - Estas necessidades mais complexas envolvem laços de reconhecimento, afinidade e amizade entre as pessoas, que dão origem a estruturas informais muitas vezes mais importantes do que o organograma formal. - Neste modo de ver, as relações humanas e sociais presentes na organização têm mais relevância do que os funcionários tomados isoladamente. Como vimos, isto é típico da abordagem funcionalista da realidade social. Os indivíduos são focalizados como membros ou partes de uma rede de relações humanas e sociais. b) Ênfase na tese de que não há uma receita única do sucesso organizacional (“teoria da contingência”). A forma adequada de estruturar e gerir a organização depende dos desafios e tarefas que lhe são impostos pelo ambiente (externo). - O ambiente é visto como um fator “objetivo”, ou seja, um fator cujas características e influências (oportunidades, limites, ameaças, etc.) são totalmente independentes das ideias e modos de pensar presentes na organização. Ambiente como elemento “objetivamente dado”. c) Embora a receita do sucesso organizacional varie, toda organização bem-sucedida deve atender a duas necessidades essenciais: integração e coerência interna (coerência entre os diversos aspectos e dimensões da realidade organizacional; integração entre setores, departamentos, funcionários, etc.) e, por outro lado, adaptação ao ambiente externo. - Estas necessidades são interpretadas como necessidades “objetivas”, no sentido positivista do termo: necessidades que existem e surtem efeitos independentemente das idéias, concepções e avaliações que os sujeitos tenham sobre elas. d) Visão grosso modo positivista do ambiente externo: ambiente externo é um elemento “objetivo” (ou “objetivamente” dado), ao qual a organização deve simplesmente adaptar-se. Não se coloca ênfase na tese de que o ambiente está sendo continuamente construído pelas diversas organizações que dele participam ou a ele se referem, ou seja, pelas atitudes, idéias e práticas destas organizações (esta última tese é típica das abordagens construtivistas: hermenêutica e Teoria Crítica da Escola de Frankfurt). e) Ênfase na “aprendizagem de circuito único” como mecanismo de adaptação passiva a um ambiente externo caracterizado por constantes mudanças. Aprendizagem de circuito único: captar informações do ambiente, ou captar informações sobre as mudanças no ambiente; relacionar estas informações às normas 103 operacionais e metas organizacionais; caso as mudanças no ambiente possam afetar o cumprimento das normas e metas, desencadear ações corretivas, sem questionar a pertinência e validade nem das normas nem das metas previamente fixadas. - Os efeitos das ações corretivas podem por sua vez retroagir sobre o próprio sistema, acarretando a necessidade de novas correções, mas sempre de acordo com normas e metas relativamente rígidas ou fixas, que não são postas em discussão neste processo de auto regulação do “organismo” bem adaptado. - Normas e metas organizacionais são tomadas como um “programa” ou “código” fundamental, objetivamente necessário (cuja necessidade não depende nem se vincula a padrões de atribuição de sentido), que não entra em discussão. - Ênfase na aprendizagem de circuito único implica ênfase nas tecnologias e sistemas de informação. - Apesar de enfatizar a importância das relações humanas e sociais no funcionamento da organização, focaliza estas relações de um ponto de vista grosso modo positivista, interpretando-as como manifestações de necessidades humanas objetivas, independentes das idéias e avaliações que os próprios sujeitos têm sobre elas. 2) Abordagem (Imagem) “interpretativa” da organização (abordagem de caráter construtivista). - Neste tipo de abordagem, a organização é vista como “Cultura” (estrutura de ideias e modos de pensar, ou seja, modos de atribuir significado). - Abordagem de caráter construtivista: a organização é construída por sujeitos capazes de compreender, aplicar e reproduzir padrões de atribuição de sentido ou significado. - De acordo com essa imagem, a essência da organização são os modos de pensar, ou modos de atribuir significado, que seus integrantes aplicam e reproduzem, muitas vezes de forma relativamente inconsciente ou irrefletida. Dependendo dos padrões de significação (nome abreviado dos padrões de atribuição de significado) dominantes na cultura organizacional, teremos diferentes tipos de cultura. - De acordo com essa imagem, a essência da organização são os significados atribuídos aos diversos aspectos e itens da realidade organizacional. Por exemplo, o organograma: no âmbito da abordagem interpretativa, a realidade do organograma para os membros da organização consiste ou ao menos depende do significado que eles atribuem ao organograma. Por exemplo, se eles lhe atribuem o significado de elemento “decisivo”, “tecnicamente necessário”, etc., teremos uma cultura grosso modo “burocrática” (ou uma vertente burocrática na cultura organizacional). O foco da análise recai no significado atribuído ao organograma, e não no organograma “em si mesmo”. 104 Nessa abordagem, a preocupação e primazia concedidas ao organograma, tomado como estrutura tecnicamente racional de cargos eminentemente individuais, são típicas de determinado tipo de cultura organizacional, a cultura burocrática. - O mesmo ocorre com o ambiente externo: a realidade do ambiente externo para os membros da organização depende dos padrões de atribuição de significado dominantes na organização. Por exemplo, se os membros da organização atribuem ao ambiente o significado de “fator decisivo, totalmente independente da organização, ao qual a organização deve simplesmente adaptar-se se não quiser ser eliminada pela seleção natural”, teremos uma cultura grosso modo “organicista” ou “funcionalista”. - O foco da análise recai no significado atribuído ao ambiente, e não no ambiente “em si mesmo”. O mesmo ocorre com as relações internas da organização: sua realidade para os membros da organização depende dos padrões de significação que eles aplicam e reproduzem, muitas vezes de forma relativamente automática e irrefletida. - Elementos e itens que compõem a realidade organizacional existem ou atuam por meio das idéias e formas de pensar com que os sujeitos lhes atribuem significados (realidade de uma coisa = modo como esta coisa me aparece, significado que ela tem para mim). - Realidade organizacional é construída por sujeitos que compreendem, aplicam, transmitem e reproduzem as formas de pensar por meio das quais se atribuem significações aos diferentes itens envolvidos nas práticas organizacionais. - Interesse na identificação de modos de pensar dominantes, modos de pensar minoritários, modos de pensar emergentes, etc. 2.1) “Interpretacionismo Crítico” ou “Construtivismo Crítico”. Abordagem Interpretativa interessada na mudança da cultura organizacional e na construção de uma cultura mais participativa e justa. Expressão da Teoria Crítica de Habermas no campo da Teoria das Organizações. - De acordo com essa vertente da abordagem interpretativa (de caráter igualmente construtivista), tanto a cultura burocrática quanto a cultura organicista (mas a burocrática de forma mais acentuada) caracterizam-se por um baixo grau de reflexividade e consciência: as pessoas aplicam e reproduzem padrões de significação sem perceberem que estão fazendo isso, e sem serem encorajadas a refletir sobre isso. A cultura organizacional não abre espaço para a conscientização e discussão dos padrões de atribuição de significado nela vigentes. Em contraposição a isso, culturas “reflexivas”, “críticas” e “dialógicas” são culturas que abrem espaço para a conscientização, discussão e crítica dos padrões de significação vigentes em dado momento – nesse sentido elas estão mais abertas à mudança cultural. 105 - Esta vertente “crítica” da abordagem interpretativa tem forte interesse e coloca forte ênfase na possibilidade de se construir a organização como uma cultura “reflexiva” e “dialógica”, centrada em modos de pensar valorizadores do diálogo e entendimento “forte” entre os sujeitos. a) Valoriza a argumentação e diálogo como princípios para a emergência de decisões e normas de cunho mais compartilhado, que dão à organização o caráter de empreendimento comum, ou seja, experimentado pelos participantes como um empreendimento razoável para todos, bom para todos, justo. b) Valoriza a competência do sujeito para compreender e sentir-se motivado pelo sentido ou significado dessas decisões e normas compartilhadas. c) Valoriza o “fazer-junto” (prática efetivamente coletiva), baseado em decisões dialogicamente construídas, e nesse sentido compartilhadas. d) Valoriza a “aprendizagem em circuito duplo”: usar as informações em geral, tanto externas quanto internas, para discutir e eventualmente alterar os princípios (valores, normas, metas) que orientam as decisões e práticas da organização. Usar as informações, não tanto para manter uma relação “bem adaptada” ao ambiente, de acordo com certas normas e metas fora de questão, mas, muito mais, para “auto-re-organizar-se”, ou seja, remodelar os princípios básicos das práticas organizacionais. Diálogo e discussão capazes de levar a uma “reprogramação” da organização (ou seja, um ajuste nos “programas” e “códigos” do sistema). Auto-re-organização (processo típico dos sistemas capazes de aprendizagem em circuito duplo) como um processo coletivo, comunicativo, dialógico. - Em vez de preocupar-se com um processamento relativamente passivo das informações do ambiente, preocupar-se em projetar novos modos de pensar no ambiente. e) Ênfase na idéia de que o ambiente é até certo ponto construído pela projeção das idéias e atitudes dialogicamente construídas na organização. Não se coloca ênfase num ambiente absolutamente objetivo, no sentido positivista do termo.