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FILOSOFIA PARA ADMINISTRAÇÃO E CIÊNCIAS 
CONTÁBEIS. 
APOSTILA COMPLETA DO CURSO. 
 
 
PROFESSOR: ANTONIO SATURNINO BRAGA 
 
 
 
 
 
2013/2.
2 
 
SUMÁRIO 
 
PRIMEIRA PARTE: IMAGENS DA NATUREZA E DA RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO. 
 
- Tópico 1. Apresentação Geral. Página 03. 
 
Primeira Seção da Primeira Parte: Esquema histórico das Imagens de Natureza. 
 
- Tópico 2: O surgimento da imagem lógico-científica da natureza. Página 08. 
- Tópico 3: Ciência antiga: a imagem de mundo e de ciência típica do período antigo e 
medieval. Página 12. 
- Tópico 4: Ciência moderna. Imagem de mundo e de ciência inaugurada na revolução 
científica do século XVII. Página 16. 
 
Segunda Seção da Primeira Parte: As Imagens da relação entre sujeito (do 
conhecimento) e objeto (do conhecimento). 
- Tópico 5. Esquema geral da segunda seção da primeira parte. Página 21. 
- Tópico 6: Empirismo e Racionalismo no século XVII. Página 23. 
- Tópico 7: Empirismo e Idealismo no século XVIII. Página 29. 
- Tópico 8: Empirismo Lógico e Racionalismo Crítico de Popper. Página 36. 
- Tópico 9: Reflexões sobre os limites e as condições de aplicação do método 
hipotético-dedutivo (Popper). Página 42. 
- Tópico 10: Positivismo e Construtivismo de Thomas Kuhn. Página 48. 
- Tópico 11: Positivismo e Construtivismo nas esferas da Teoria da Sociedade e da 
Teoria das Organizações. Pg. 53. 
 
SEGUNDA PARTE: IMAGENS DA SOCIEDADE E IMAGENS DAS ORGANIZAÇÕES. 
- Tópico 12: Apresentação Geral da Segunda Parte. Página 59. 
- Tópico 13: Mecanicismo. Página 61. 
- Tópico 14: Materialismo Histórico (Marxismo Ortodoxo). Página 65. 
- Tópico 15: Funcionalismo. Página 72. 
- Tópico 16: Abordagem Interpretativa (Hermenêutica). Página 78. 
- Tópico 17: Alguns conceitos da sociologia de Max Weber, um dos principais 
expoentes da abordagem interpretativa. Página 84. 
- Tópico 18: A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Habermas. Página 91. 
- Tópico 19: Algumas relações entre as imagens da sociedade e as imagens da 
organização expostas por Gareth Morgan. Pag. 101. 
3 
 
Tópico 1. APRESENTAÇÃO GERAL. 
 
 Nosso curso é um curso de filosofia; filosofia das organizações e da 
administração ou gestão das organizações. 
 Por ser um curso de filosofia, adotará um método de investigação e análise 
tipicamente filosófico: em vez de lidar diretamente com os objetos da nossa ação e do 
nosso conhecimento, nós vamos focalizar nosso modo de ver e compreender os 
objetos, e nosso modo de ver e compreender nossa relação com os objetos. Nós 
vamos instaurar uma espécie de mediação reflexiva entre nós e os objetos com que 
lidamos em nossa vida cotidiana e em nossas atividades acadêmicas e/ou profissionais. 
Trata-se de uma atitude reflexiva: em lugar de nos colocarmos numa relação direta e 
imediata com os objetos, como é típico da vida cotidiana, nós vamos nos voltar para 
essa relação, focalizá-la, analisar o modo como ela pode ser compreendida. 
 Em outras palavras, nosso curso vai analisar “imagens” (modos de ver e 
compreender), imagens dos objetos e da nossa relação com os objetos. Que objetos 
são esses? Nosso interesse último é no objeto “organizações” e na nossa relação com 
essa espécie de objeto – onde o “nós” são as pessoas interessadas no conhecimento 
(ou teoria) das organizações e na gestão das organizações. Mas as imagens de 
organização e da nossa relação com as organizações vão constituir o último tópico de 
nosso curso. Antes de abordar esse tópico, vamos discutir outros tipos de imagens. 
 Na primeira parte do nosso curso, vamos focalizar imagens de natureza e da 
nossa relação com o objeto “natureza” (fenômenos e processos naturais, como 
movimentos dos astros, queda dos corpos, crescimento de árvores, etc. – claro que 
não vamos tratar desses fenômenos e processos como cientistas, mas como filósofos 
do conhecimento científico). Na segunda parte, antes das imagens das organizações, 
vamos focalizar imagens do ser humano, dos grupos humanos e das sociedades, e 
imagens da relação dos cientistas sociais com essa espécie de objeto. 
 A primeira parte vai por sua vez se subdividir em duas seções. A primeira 
consiste em um esquema bastante simplificado da história das imagens de natureza. A 
segunda seção é uma história das imagens da relação entre o sujeito que produz 
4 
 
conhecimento (científico) da natureza e, por outro lado, o objeto (fenômenos e 
processos naturais) conhecido ou a ser conhecido neste conhecimento. 
 Nessa segunda seção da primeira parte, nós vamos trabalhar com dois grandes 
tipos de imagem. De acordo com um desses tipos, as ideias e modos de pensar do 
sujeito do conhecimento desempenham o papel prioritário na relação com o objeto 
conhecido ou a ser conhecido. De acordo com o outro tipo, a primazia cabe a dados e 
características independentes das ideias e modos de pensar do sujeito do 
conhecimento. Ao tipo mencionado em primeiro lugar pertencem as seguintes 
imagens da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento: racionalismo, 
idealismo e construtivismo. E ao tipo mencionado em segundo lugar pertencem as 
seguintes imagens: empirismo, empirismo lógico e positivismo. 
 Nessa seção, nós (o professor e seus filósofos preferidos) vamos tentar 
defender a imagem construtivista da relação entre o sujeito e o objeto do 
conhecimento. Mas essa defesa não tomará a forma de uma afirmação de que as 
outras imagens estão erradas. Nosso argumento será que a imagem construtivista é 
mais perspicaz e menos ingênua, ou seja, equivale a uma visão mais ampla, rica e 
nuançada da questão. 
 Na segunda parte do curso, como dito acima, vamos focalizar imagens do ser 
humano, dos grupos humanos e das sociedades, e imagens da relação dos cientistas 
sociais com essa espécie de objeto. Enquanto na primeira parte o interesse 
fundamental recai sobre as imagens da relação entre o sujeito e o objeto, nessa 
segunda parte o interesse fundamental recai sobre as imagens do objeto, que nesse 
caso são os seres humanos, os grupos humanos e as sociedades (e não mais os 
fenômenos e processos estritamente naturais). 
 De modo semelhante ao da segunda seção da primeira parte, na segunda parte 
do curso nós também vamos trabalhar com dois grandes tipos de imagem – nesse caso 
imagens do objeto estudado pelos cientistas sociais, as sociedades em geral (grupos 
humanos em geral). De acordo com o primeiro tipo de imagem, os elementos 
essenciais deste objeto consistem em características, condições, estruturas e 
processos independentes das ideias e modos de pensar, tomados como fenômenos 
pertencentes a um plano secundário ou derivado, o das consciências dos seres 
5 
 
humanos. Ideias e modos de pensar ficam subordinados a elementos que lhes são 
independentes. De acordo com o segundo tipo, em contrapartida, os elementos 
essenciais do objeto “social” consistem nas ideias e modos de pensar que existem e se 
reproduzem na consciência e/ou na linguagem (atividades de fala) dos seres humanos. 
 Ao primeiro tipo pertencem as seguintes imagens do objeto estudado pelos 
cientistas sociais: mecanicismo, funcionalismo e materialismo histórico (ou marxismo 
ortodoxo). Chamaremos essas imagens de imagens “positivistas” da sociedade, em 
virtude da relação que se pode perceber entre essas imagens de sociedade e a imagem 
positivista da relação sujeito-objeto, analisada na Primeira Parte. 
Ao segundo tipo de imagens da sociedade pertencem as seguintes imagens: 
imagem Interpretativa (ou Hermenêutica) e Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que 
pode ser considerada uma espécie de “hermenêutica crítica”. Chamaremos essas duas 
imagens de imagens “construtivistas” da sociedade, em virtude da relação
que se pode 
perceber entre essas duas imagens do objeto “sociedade” e a imagem construtivista 
da relação sujeito-objeto, analisada na Primeira Parte. 
 Nesta segunda parte do curso, defenderemos a superioridade das imagens 
construtivistas ou “interpretativas” – tanto a imagem Interpretativa em sentido estrito 
quanto a “hermenêutica crítica” representada pela Teoria Crítica da Escola de 
Frankfurt. Argumentaremos que a consciência e os atos de fala são irredutíveis a 
elementos puramente “objetivos” (totalmente independentes dos sujeitos dotados de 
consciência e linguagem), e que as imagens construtivistas estão mais atentas a esse 
fato. 
 Por fim, no último tópico do curso tentaremos estabelecer relações entre as 
imagens estudadas na segunda parte e certas “imagens da organização” que podem 
ser percebidas na história da teoria das organizações. Nosso “orientador” nesta 
terceira parte será Gareth Morgan, cujo livro “Imagens da Organização” (Editora Atlas) 
nos inspirou a usar o termo “imagens” para designar modos de ver e compreender. 
 Antecipando o que será visto de forma mais detalhada nesse último tópico, 
abordaremos aqui três grandes imagens, procurando relacioná-las a algumas das 
imagens vistas na segunda parte do curso. Em primeiro lugar, a imagem mecanicista 
das organizações, na qual a organização é vista como uma máquina, e que pode ser 
6 
 
aproximada da imagem mecanicista da sociedade em geral. De acordo com esta 
imagem, a essência da organização são indivíduos isolados entre si, movidos por 
necessidades estritamente materiais ou financeiras, e que assumem as tarefas e 
responsabilidades particulares (individuais) próprias de cargos definidos num 
organograma tecnicamente desenhado. Grandes expoentes dessa imagem são Fayol e 
Taylor. 
 Em segundo lugar, a imagem funcionalista das organizações, na qual a 
organização é vista como um organismo, que pode ser aproximada da imagem 
funcionalista dos grupos sociais em geral. De acordo com esta imagem, a essência da 
organização reside em redes de relações humanas ou sociais, constituídas por laços de 
reconhecimento, afinidade, amizade ou interesse, de caráter mais informal do que 
formal, e cujo conjunto (ou sistema) está submetido a duas necessidades básicas: 
coerência / integração interna e adaptação ao ambiente externo. Grandes marcos 
dessa multifacetada imagem são Elton Mayo e os estudos de Hawthorne, Maslow e a 
hierarquia das necessidades humanas, a Teoria dos Sistemas Abertos e a Teoria da 
Contingência. 
 Por fim, a imagem interpretativa da organização, na qual a organização é vista 
como Cultura. De acordo com essa imagem, a essência da organização são os modos 
de pensar, ou modos de atribuir significado, que seus integrantes aplicam e 
reproduzem, muitas vezes de forma inconsciente ou irrefletida. Dependendo dos 
padrões de significação (nome abreviado dos padrões de atribuição de significado) 
dominantes na cultura organizacional, teremos diferentes tipos de cultura. 
 Podemos ter, por exemplo, uma cultura burocrática, descrita, entre outros, por 
Max Weber, um dos grandes nomes da abordagem interpretativa da sociedade e das 
organizações. Outro exemplo seria uma cultura “organicista”, orientada por 
significados organicistas. 
 Assim, uma mesma organização pode ser analisada de duas maneiras 
diferentes. O teórico ou gestor que usa um “óculos” mecanicista vai analisar a 
organização sob o prisma da máquina, identificando qualidades e defeitos típicos da 
organização-máquina. E o teórico ou gestor que usa um “óculos” interpretativo vai 
7 
 
analisar a organização sob o prisma da cultura, identificando qualidades e defeitos 
típicos da cultura burocrática. 
 De acordo com a abordagem interpretativa ou hermenêutica, tanto a cultura 
burocrática quanto a cultura organicista (mas a burocrática de forma mais acentuada) 
caracterizam-se por um baixo grau de reflexividade e consciência: as pessoas aplicam e 
reproduzem padrões de significação sem perceberem que estão fazendo isso, e sem 
serem encorajadas a refletir sobre isso. A cultura organizacional não abre espaço para 
a conscientização e discussão dos padrões de atribuição de significado nela vigentes. 
Em contraposição a isso, culturas “reflexivas” e “críticas” são culturas que abrem 
espaço para a conscientização, discussão e crítica dos padrões de significação vigentes 
em dado momento – nesse sentido elas estão mais abertas à mudança cultural. 
 Iremos relacionar a questão da mudança cultural à “aprendizagem de circuito 
duplo” analisada por Gareth Morgan no capítulo 4 de seu grande livro. E iremos 
relacionar este tipo de aprendizagem organizacional (que se distingue da 
“aprendizagem de circuito único”, um tipo de aprendizagem que nós iremos relacionar 
à imagem funcionalista ou organicista das organizações) à Teoria Crítica da Escola de 
Frankfurt, analisada na segunda parte do curso. 
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Tópico 2: O Surgimento da Imagem Lógico-científica da Natureza. 
 
Outros títulos: A Transição do Mito (visão de mundo mítico-religiosa) ao Logos (visão 
de mundo filosófico-científica). As Origens do pensamento filosófico-científico. O 
surgimento de uma nova maneira de ver e compreender a natureza como um todo: a 
imagem lógico-científica da realidade. 
 
•Surge na Grécia, por volta do século VI a.C. (600-501 a.C.). Primeiro filósofo: Tales de 
Mileto (maturidade em 585 a.C.). Dá início à chamada “Escola de Mileto”. 
 
• Inaugura-se uma tradição de crítica e revisão dos mestres. 
 
•Forma de pensar nitidamente nova (pensamento lógico-científico, ou filosófico-
científico), distinta do tipo de pensamento culturalmente dominante até então 
(pensamento mítico). 
 
Características do pensamento mítico (ou da visão de mundo mítico-religiosa). 
 
Nesta imagem do mundo, as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia estão 
sempre associadas a entidades sobrenaturais personalizadas (Deuses, agentes sobre-
humanos), cujas lutas, uniões e façanhas estão na origem das coisas e acontecimentos 
do dia-a-dia. 
 
Mesmo as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia contêm no seu âmago 
uma potência sobrenatural com a qual os homens precisam se relacionar 
devidamente, para preservar seu funcionamento regular e ordenado, segundo a 
ordem divina do mundo. O que caracteriza essas potências sobrenaturais é o fato de 
que elas podem atuar de forma absolutamente arbitrária, irregular, irracional, a seu 
bel-prazer; seu poder não está sujeito às expectativas humanas de “lógica”, “razão”, 
“regularidade”. 
Assim, esta é uma visão de mundo marcada pela perfeita aceitação do inesperado, do 
extraordinário, do mistério. 
 
Explicações são histórias sobre a origem de algo, com ênfase na origem da ordem da 
natureza como um todo, que representa uma espécie de “pacificação” das potências 
sobrenaturais que habitam o âmago da realidade, levando-as a atuarem de forma 
regular e ordenada, não caprichosa. Estas explicações da ordem do mundo sempre 
remetem às lutas, uniões e façanhas de entidades sobrenaturais, que ocorrem em uma 
outra dimensão do tempo, distinta daquela em que os seres humanos cotidianamente 
vivem (tempo cotidiano). 
 
 
9 
 
No âmbito do pensamento mítico, há um vínculo essencial entre as narrativas míticas e 
rituais mágicos e/ou religiosos destinados a: 
A) Reproduzir simbolicamente a façanha originária de instauração da ordem do mundo 
(reprodução mágica do tempo da origem); soberano humano reproduz a façanha do 
soberano divino. 
B) Estabelecer uma ligação com a divindade responsável por determinada esfera da 
realidade, de modo a angariar proteção, favores, etc. 
 
Narrativa mítica é sagrada (incontestável), porque vem de uma revelação 
sobrenatural. O narrador (vidente,
“poeta-cantor”) goza de autoridade inquestionável, 
por ser um escolhido dos deuses, por ter o dom de ver acontecimentos sobrenaturais, 
por ser inspirado por poderes sobrenaturais, ou, muitas vezes, por ter recebido a 
narrativa numa cadeia de transmissão originada em alguém que tinha esse tipo de 
inspiração. O poeta-cantor é parte de uma tradição sagrada. 
 
As narrativas míticas admitem incoerências e contradições, elas não se prestam às 
exigências de inteligibilidade e justificação, próprias do pensamento lógico-científico. 
 
 
Características do pensamento filosófico-científico 
 
Visão de mundo marcada pela rejeição da ideia de que a ordem natural baseia-se em 
poderes sobrenaturais que não se conformam à “lógica” (inteligibilidade subjacente à 
explicação e à argumentação). 
 
Recorre apenas a princípios, elementos e causas essencialmente naturais (ainda que 
mais abstratos do que os objetos e materiais aparentes). Exemplos: água, ar, fogo, 
terra; matéria indeterminada; átomo; quente e frio, úmido e seco. 
 
Tais elementos e causas operam de maneira “lógica” (LOGOS: inteligibilidade do 
pensamento e fala dos homens, e também da própria realidade), ou seja, de modo 
coerente e inteligível, livre de contradições e arbitrariedades. Em oposição à 
arbitrariedade das potências míticas, admite-se agora a lógica e inteligibilidade da 
natureza. 
 
Significados do termo “Logos”. 1) Fala de tipo argumentativo; 2) Características 
“racionais” deste tipo de fala; 3) Razão humana; racionalidade como capacidade 
específica dos homens; 4) Racionalidade e Inteligibilidade da própria Realidade (A 
natureza é intrinsecamente “lógica”). 
 
Assim, o termo grego “Logos” refere-se não apenas ao uso da linguagem humana 
caracterizado pelas exigências de inteligibilidade e racionalidade, mas também à 
suposição de que a racionalidade da linguagem humana é um reflexo de uma 
racionalidade objetiva, imanente à realidade natural e cotidiana. 
Esta é a suposição essencial da nova imagem de mundo que surge neste momento. 
 
10 
 
O Pensamento filosófico-científico admite questionamento, crítica, ajuste, correção; 
conforma-se às exigências de inteligibilidade e justificação. 
Inaugura-se uma tradição de rejeição da atitude “dogmática” e de valorização da 
atitude de crítica e revisão dos mestres. 
 
 
Pensamento filosófico: busca da estrutura essencial da realidade 
 
Naturalismo do pensamento filosófico-científico vincula-se à busca da estrutura 
essencial da realidade (distinção entre essência e aparência). 
 
Conhecimento puramente teórico da realidade como um todo (valorização do 
conhecimento pelo conhecimento). Vincula-se ao desejo de conhecer e ao prazer de 
conhecer, vivenciados como elementos independentes de quaisquer fins práticos. 
 
Atitude crítica acarreta uma proliferação de propostas de explicação da estrutura 
essencial da realidade: 
1) Elementos naturais mais concretos: água, ar, fogo, terra. 
2) Elementos naturais mais abstratos: “indeterminado” (matéria indeterminada), 
átomo (indivisível), “homeomerias” (átomos com distinções qualitativas), número e 
relações numéricas (proporções). 
3) Elementos formais ainda mais abstratos: 
3.1) Mudança, movimento de diferenciação e de geração de contrários (Dialética, 
Heráclito: o permanente é só aparentemente permanente); 
3.2) O “Ser” como unidade/identidade/permanência fundamental, sem a qual a 
mudança não é inteligível (Parmênides: “Ser é, não-ser não é”). 
 
 
O Correlato social e político da transição do Mito ao Logos. 
 
Dos regimes do Direito dos “gene” para o regime das cidades-Estado (“Polis”) 
 
•Transição do mito ao “Logos” associa-se a uma mudança social correspondente: a 
transição dos regimes do Direito dos gene (“gene”: grandes linhagens e famílias 
aristocráticas) ao regime das cidades-Estado (“Polis”). (por volta de 750 a.C.). 
 
 
•1) Regimes do Direito dos gene: Direito arbitrário dos chefes de grandes famílias. 
 
• Sociedades caracterizadas pelo domínio da nobreza agrária, a classe dos “bem-
nascidos” (linhagens “superiores”, que se consideravam descendentes de heróis 
extraordinários). Dentre os chefes das grandes linhagens avulta aquele que tem o 
título de Rei. 
 
11 
 
•Decisão arbitrária do Rei e do Nobre tem caráter sagrado e força de lei (ela é o 
Direito); ela não se presta às exigências de justificação e convencimento. Não se 
reconhece uma Lei comum a todos, à qual todos devem igualmente se submeter. 
 
•Conflitos são decididos com base na força; e força aparece como manifestação de um 
poder extraordinário, sobrenatural. 
 
O Regime das cidades-Estado (POLIS) 
 
•Regimes “políticos”: uma única Lei, que se aplica a todos. Igualdade dos cidadãos em 
relação à Lei comum a todos. 
 
- Fundam-se no pensamento “lógico” (racional-argumentativo). A Lei é inteligível para 
todos, e as decisões amparadas na Lei estão submetidas às exigências de explicação, 
discussão, justificação, convencimento. 
 
- Fundam-se na fala “lógica” (racional-argumentativa). Regimes dominados por aqueles 
que sabem argumentar, debater, persuadir. 
 
- Decisões de conflitos pessoais precisam ser amparadas em razões ou argumentos – 
surgimento dos tribunais. 
 
- Decisões sobre os rumos da comunidade precisam ser debatidas, explicadas e 
justificadas – surgimento das assembléias políticas. 
 
- O homem como “Animal Político”: gregário, social, e, simultaneamente, capaz de 
organizar sua existência social com base na razão, ou seja, no uso da linguagem 
(comunicação) centrado em argumentação, convencimento e justificação. 
12 
 
Tópico 3: Ciência antiga: a imagem de mundo e de ciência típica do período antigo e 
medieval. 
 
Ciência antiga: teleológica, qualitativa e contemplativa (ciência moderna é 
mecanicista, quantitativa e utilitária). 
 
Expoente mais influente da ciência antiga: Aristóteles: século IV a.C. (384-322 a.C.). 
 
A) Ciência de caráter teleológico (“telos”: fim, finalidade). 
 
Visão (ou Imagem) de mundo baseada na noção de finalidade – concepção teleológica 
da natureza. 
 
Ciência da natureza: identificação de finalidades. Objetivo da ciência é entender o 
sentido da existência e mudança das coisas, ou seja, entender o “por que” 
(interpretado em termos de “para que”) as coisas existem e mudam. 
 
Tese fundamental: cada coisa da natureza existe para alcançar um determinado lugar 
(“lugar natural”) ou meta (sua realização perfeita; realização perfeita da função que 
lhe é própria). 
 
Fim, Finalidade: essência de cada coisa. O “verdadeiro ser” de cada coisa consiste na 
finalidade de sua existência. 
3 significados de fim estreitamente relacionados: “Lugar natural” buscado pelo ser, 
Função (atividade) própria do ser na totalidade da ordem cósmica, e realização plena 
do potencial próprio do ser. 
 
Fim de todas as coisas: ordem, harmonia e beleza do Cosmo como um Todo. 
 
Finalidade: causa da mudança direcionada, inteligível. 
Principal tipo de mudança inteligível: passagem do ser “em potência” ao ser “em ato” 
(realização do potencial próprio). 
 
Potência: possibilidade que se enquadra no direcionamento da essência ou finalidade. 
Semente é árvore em potência; embrião é homem (ser racional) em potência; 
adotando um ponto de vista mais específico, o embrião é, por exemplo, escultor (ou 
médico, ou filósofo, etc.) em potência; pedra é escultura em potência (pode se 
associar à realização da essência do homem-escultor.) 
 
O problema das mudanças aleatórias. Nos objetos do mundo “sublunar” (“região 
terrestre”), a essência (finalidade, que em Aristóteles equivale à “forma” da coisa) 
sempre está misturada a um outro elemento, a “matéria”, que representa a mera 
possibilidade (possibilidade que não se enquadra no direcionamento da essência). A 
matéria representa uma espécie de dinamismo cego, sem direção ou sentido. Causa 
das mudanças aleatórias
que às vezes perturbam a ordem teleológica da natureza. 
13 
 
- Como regra geral, a forma-fim modela e organiza a matéria, enquadrando-a no 
molde da finalidade, serventia, sentido. Entretanto, às vezes a matéria como 
dinamismo cego “escapa” ao enquadramento da forma, produzindo eventos aleatórios 
que perturbam a ordem teleológica da natureza, sem destruí-la, no entanto. 
 
 
B) Ciência de caráter qualitativo. 
 
Ciência que se apóia em noções qualitativas, ou seja, noções que se definem pela 
impressão que causam em nossos sentidos (frio e quente, seco e úmido, leve e pesado, 
alto e baixo.) 
 
Substâncias básicas (fogo, ar, terra, água) são concebidas em termos qualitativos (fogo: 
quente e seco; ar: quente é úmido; água: fria e úmida, terra: fria e seca). Suas 
propriedades essenciais também são concebidas em termos qualitativos. Por exemplo, 
a substância terra é “pesada”: seu lugar natural/destinação são os “lugares baixos”, 
próximos do centro do planeta em que vivemos. 
É por isso que os objetos nos quais predomina o componente “terra” caem: a terra 
neles predominante está buscando seu lugar natural. 
 
Universo dividido em regiões qualitativamente distintas: 
- Região sublunar ou terrestre (“imperfeita”) e região supralunar ou celeste (“perfeita”, 
porque nela não há mistura com matéria; corpos celestes são constituídos de éter, a 
“quinta essência”, imaterial. Corpos perfeitos, que realizam movimentos perfeitos: 
circulares). 
 
- Região sublunar: dividida em: lugares altos (lugar natural do fogo), lugares baixos 
(terra), lugares não inteiramente altos (ar), lugares não inteiramente baixos (água). 
 
Cosmo: ordem e harmonia (beleza) do mundo como um todo. 
 
 Modelo geocêntrico do universo: a Terra está no centro do universo e não se move. 
 
C) Ciência de caráter contemplativo. 
 
Na visão de mundo da antiguidade, o melhor potencial dos seres humanos é a 
racionalidade teórica, e o conhecimento científico equivale à realização deste 
potencial. 
Assim, o conhecimento científico é visto como fim supremo da existência humana e, 
portanto, como fim em si mesmo (e não como meio ou instrumento para outros 
propósitos, como saúde, conforto, prazeres da sensibilidade). 
 
A Imagem de Mundo e de conhecimento típica da antiguidade caracteriza-se por uma 
dissociação bem nítida entre a ciência e, por outro lado, o interesse técnico na 
intervenção sobre a realidade. 
14 
 
- Conhecimento científico não está subordinado à necessidade de resolver problemas 
da vida cotidiana. Esta necessidade define uma esfera diferente, a esfera da técnica. 
- Assim, a esfera da ciência é distinta da esfera da técnica (embora esta última também 
seja um modo de realização do potencial próprio do homem, que é a racionalidade em 
geral). 
 
Conhecimento científico: apreensão, contemplação e fruição da ordem, harmonia e 
beleza do Cosmo. Apreensão do sentido do mundo como um todo. 
 
Conhecimento científico: caminho pelo qual a alma se liberta (ou purifica) de impulsos 
insaciáveis, que levam à inquietação, ansiedade, frustração e infelicidade. Trata-se dos 
impulsos aos prazeres da sensibilidade e ao exercício do poder sobre os outros. Prazer 
do conhecimento é o único tipo de prazer que não vem misturado com certa dose de 
frustração. 
 
 
Diferentes manifestações da teleologia da natureza 
 
- Coisas existem PARA realizar uma ordem harmoniosa e bela (Cosmo). 
 
- Homem (ser racional) existe PARA reconhecer e fruir a ordem, harmonia e beleza do 
cosmo, ou seja, PARA responder adequadamente à ordem, harmonia e beleza como 
querer-dizer (significado ou sentido) das coisas e do mundo. 
 
- Cosmo existe PARA alimentar a vitalidade própria do homem, dirigindo-se às suas 
capacidades cognitivas em sentido amplo (razão teórica, razão prática, razão técnica). 
Ordem cósmica existe para realizar o potencial próprio do homem, a racionalidade em 
geral. 
 
- Razão humana: potencial (função) próprio do homem. Manifesta-se em: 
 
a) Conhecimento teórico da ordem e harmonia do Cosmo (Ciência, Teoria). 
 
b) Conhecimento prático indicativo do “agir bem” em cada situação – onde o “agir 
bem” é fim em si mesmo, é bom em si mesmo, é elemento constituinte do “viver 
bem”. (Conhecimento prático, ética). 
Na esfera da racionalidade prática, a ação humana relaciona-se às paixões da natureza 
humana e aos interesses e demandas de outros homens. A razão prática é a 
capacidade de controlar as paixões e discernir ou perceber o “bem agir” em cada 
situação. Nesse caso, a ação é fim em si mesma. “Viver bem” é “agir bem” em cada 
situação da vida. 
 
c) Conhecimento “técnico” utilizado na produção de artefatos e resultados úteis e/ou 
belos. (Medicina, arquitetura, navegação, e todas as demais “técnicas” ou “artes”, 
incluindo as “belas-artes”). 
15 
 
Na esfera da racionalidade técnica, a ação relaciona-se aos materiais da natureza 
(incluindo o corpo humano), e é meio (instrumento) para resultados úteis ou belos. 
 
 
 
- Aspectos ou Dimensões da felicidade humana: 
 
Libertação (purificação) dos impulsos insaciáveis e frustrantes (prazer puramente 
sensível, poder). 
 
Realização do potencial próprio do homem, a racionalidade. Exercício da racionalidade 
como função ou atividade própria do homem. 
Atividade do conhecimento em sentido amplo: responder ao potencial de sentido com 
que a realidade se dirige ao homem, convidando-o à ação “responsiva”. 
Manifestações da ação “responsiva”: 
(a) Ciência; 
(b) “Agir bem” (agir virtuosamente); 
(c) Ação tecnicamente hábil e eficaz. 
Sendo que (b) também está envolvido em (a) e (c). 
 
16 
 
Tópico 4: Ciência moderna. Imagem de mundo e de ciência inaugurada na revolução 
científica do século XVII. 
 
Ciência moderna: mecanicista, quantitativa e utilitária (ciência antiga é teleológica, 
qualitativa e contemplativa). 
 
Alguns dados de história da ciência 
 
- 336-323 a.C.: Alexandre o Grande difunde a cultura grega por toda a Ásia menor, 
Mesopotâmia e Egito. Fundação de Alexandria em 331 a.C. Alexandria torna-se grande 
centro de produção científica, em língua grega (Euclides: 330-277aC; Arquimedes: 287-
212aC, e outras figuras importantes na medicina e astronomia). Conquistada pelos 
romanos em 30aC, mas a língua da atividade científica permanece sendo 
primordialmente a grega. Ptolomeu (90-168dC) e Galeno (129-200dC). 
 
- 470 d.C. Queda do Império Romano do ocidente. Abafamento da vida urbana e da 
cultura científica na Europa ocidental. (Império Romano do oriente, com sede em 
Constantinopla – atual Istambul – só cai em poder dos turcos em 1453 d.C). 
 
- 622 dC: início do Islamismo com Maomé –morre em 632. 634-650: grande expansão 
militar e política. Árabes conquistam Síria, Mesopotâmia, Irã, Egito e norte da África. 
711: Invadem a península Ibérica. Bagdá e Córdoba (Espanha) tornam-se importantes 
centros de atividade filosófico-científica. Córdoba: centro de difusão da ciência 
aristotélica, já num período de retomada da prática científica na Europa ocidental 
como um todo. 
 
- 1214: Fundação da Universidade de Paris (subordinada à Igreja Católica Romana). 
 
- 1224-1274: São Tomás de Aquino realiza uma síntese entre a ciência aristotélica e a 
visão de mundo do catolicismo, com seus dogmas cientificamente indiscutíveis. 
Paradigma de pensamento que depois ficou conhecido como “Escolástica”. 
 
 
 
Principais momentos da revolução científica moderna 
 
1) “Sobre a Revolução dos Orbes Celestes” (1543), de Copérnico. Hipótese do sistema 
heliocêntrico, em oposição ao sistema geocêntrico formulado por Aristóteles, 
desenvolvido e modificado por Ptolomeu (90-168 d.C.), e ligado à visão de mundo do 
cristianismo. Apesar de propor a hipótese do sistema heliocêntrico, Copérnico ainda 
conserva a idéia de um universo fechado. 
 
2) “Sobre o universo infinito” (1583), de G. Bruno (queimado
na fogueira em 1600). 
(1545-1560: Concílio de Trento; “Contra-Reforma”, em reação à reforma religiosa 
17 
 
iniciada por Lutero em 1517. A Inquisição ganha nova força, principalmente na Itália, 
Espanha e França, agora sob a forma do “Tribunal do Santo Ofício”). 
 
3) “A Nova Astronomia” (1609), de Kepler. Órbitas dos planetas em torno do sol são 
elípticas, contrariando o princípio escolástico de que corpos celestes realizam 
movimentos perfeitos, e movimentos perfeitos são movimentos perfeitamente 
circulares. 
 
4) “A Mensagem Celeste” (1610), de Galileu. Depois de aperfeiçoar o telescópio, 
Galileu registra e divulga uma série de evidências empíricas em favor do sistema 
heliocêntrico e do universo infinito (crateras e montanhas na superfície da Lua, 
contrariando o princípio da imaterialidade e “perfeição” dos corpos celestes; fases de 
Vênus, que não podiam ser explicadas no sistema de Ptolomeu; satélites em torno de 
Júpiter, contrariando o “privilégio” da Terra como centro em torno do qual giram 
todos os corpos celestes; número espantosamente grande de estrelas, incompatíveis 
com a concepção de um mundo fechado). 
- A publicação do livro de Galileu desencadeia reação mais violenta contra a “doutrina 
copernicana” (“suspensão” do livro e da doutrina de Copérnico em 1616 e, num 
segundo momento, condenação de Galileu em 1633, depois da publicação, em 1632, 
de “Diálogos sobre os sistemas do mundo”, no qual é retomada a defesa da doutrina 
copernicana. Galileu morre em 1642). 
 
5) “Princípios matemáticos da filosofia natural” (1687), de Newton. Unifica a 
astronomia e a mecânica. Universo infinito, regido pelo princípio da inércia e pela força 
gravitacional. 
 
 
CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA MODERNA. 
 
1) Imagem mecanicista do mundo. 
 
Causa dos movimentos reside em forças puramente mecânicas, destituídas de função, 
finalidade ou sentido. 
 
Conhecer a natureza não é entender “por que” (com que finalidade ou sentido) 
ocorrem as mudanças, mas saber “como” ocorrem os movimentos, ou seja, conhecer 
as leis (regularidades) segundo as quais os movimentos são determinados, e podem 
ser previstos. 
 
Todo movimento está submetido à necessidade das leis mecânicas da natureza e é em 
princípio previsível. Natureza está submetida a leis precisas e invariáveis, cujo 
funcionamento pode ser conhecido pelos homens. 
Imagem determinista da realidade, e pretensão de poder conhecer a realidade 
deterministicamente estruturada. 
 
 
18 
 
2) Imagem quantitativa da realidade (do espaço e da natureza). 
 
Concebe os objetos e movimentos em termos essencialmente quantitativos, a partir 
de noções de caráter quantitativo, como espaço/distância, tempo, velocidade, 
aceleração, massa, força. (noções que se definem pela possibilidade de medição e de 
articulação em fórmulas e modelos matemáticos). 
 
Leis da natureza são entendidas como correlações entre variáveis quantitativas, 
expressas em fórmulas matemáticas –“a natureza é um livro escrito em linguagem 
matemática” (Galileu, em obra de 1623). Matematização da natureza e da ciência da 
natureza. 
 
Espaço homogêneo e infinito, definido em termos puramente geométricos. 
 
 
3) Imagem utilitária da ciência. 
 
Estreita associação entre ciência e técnica. 
 
Interesse básico: ter poder sobre a natureza (tornar-se capaz de prever, controlar, usar 
ou manipular objetos, recursos e processos da natureza). 
Se o homem conhece “como” se comportam as forças, materiais e processos, torna-se 
capaz de aproveitá-los e canalizá-los para realizar suas preferências (“Conhecimento é 
Poder”). 
 
Preocupação com a utilidade do conhecimento para propósitos “mundanos”, como 
conforto, saúde, riqueza, diversão, etc. Interesse na possibilidade de aplicações 
práticas do conhecimento. Interesse na maximização (indefinidamente reposicionada 
no futuro) da satisfação das preferências dos sujeitos. 
A época moderna caracteriza-se por um movimento de “subjetivização” das noções de 
bem e felicidade: cabe a cada indivíduo, e não ao filósofo, sábio ou religioso, dizer o 
que é bom para si próprio. 
O bem (felicidade) deixa de ser definido em termos de realização do potencial e função 
próprios do homem, interpretados como potencial e função objetivos (independentes 
das preferências subjetivas de cada um), e passa a ser definido em termos de 
realização das preferências subjetivas de cada indivíduo. 
 
Observação importante sobre a noção de utilidade. Ciência antiga e ciência moderna 
exibem duas aplicações distintas da noção de utilidade. 
Na ciência antiga, esta noção é aplicada no princípio de que tudo que existe tem uma 
utilidade para a ordem abrangente do Cosmo. (utilidade dos objetos para a ordem 
cósmica). 
Na ciência moderna, a noção de utilidade encontra aplicação no princípio de que o 
conhecimento científico deve ter utilidade para os propósitos do homem, ou seja, para 
a realização das preferências dos homens (utilidade da ciência para os propósitos e 
preferências dos homens). 
19 
 
Na modernidade, conhecimento científico passa a ser visto como instrumento ou 
meio, e não como fim em si mesmo, como era na antiguidade. 
 
Duas tendências embutidas no movimento de rejeição da ciência aristotélico-
escolástica, efetuado na revolução científica moderna. 
 
•1) Defesa da matematização da natureza e da ciência da natureza. 
Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é mais 
ativo, na medida em que o conhecimento matemático é visto como fruto de noções e 
operações da razão pura do sujeito, como a intuição racional e a dedução (ele não 
depende de informações passivamente captadas ou recebidas pelos sentidos). 
Há nesta tendência uma ênfase na atividade cognitiva do sujeito. O princípio do 
conhecimento tende a ser identificado com a atividade da razão pura do sujeito. O 
princípio do conhecimento é a atividade de projetar ou lançar uma estrutura lógico-
matemática (racional) sobre os dados da realidade. 
 
•2) Defesa de observações “puras”, feitas e registradas através dos sentidos (com 
auxílio de instrumentos), e totalmente depuradas das distorções produzidas pelas 
suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico-escolástica (tais suposições 
passam agora a ser taxadas de “preconceitos”). 
- Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é 
mais passivo, na medida em que os sentidos constituem uma capacidade 
essencialmente receptiva: trata-se de receber os dados fornecidos pela natureza de 
forma absolutamente neutra, ou seja, sem nenhuma mistura com suposições prévias 
(que passam a ser vistas como “preconceitos”). 
Há nesta tendência uma ênfase na passividade do sujeito, e na sua neutralidade diante 
dos dados e informações da natureza. O princípio do conhecimento tende a ser 
identificado aos dados “puros” ou “brutos” (não-interpretados por suposições prévias) 
captados pelos sentidos (dados empíricos, ou seja, oriundos da experiência sensível). 
 
 
“Construtivismo/Racionalismo/Idealismo” e “Empirismo/Positivismo” 
 
•Tendência (1) sugere que o objeto do conhecimento é numa certa medida 
“construído” pela razão do sujeito, mediante projeção na realidade de noções, 
princípios e estruturas da razão pura, de caráter lógico-matemático. 
- Tendência (1) está na origem das teorias racionalistas e idealistas (que também 
podem ser chamadas de construtivistas e antipositivistas). Deste ponto de vista, o 
objeto do conhecimento (a própria realidade, considerada, porém, sob o aspecto da 
possibilidade de ser conhecida pelo sujeito) é dependente dos princípios e operações 
da razão pura do sujeito. 
- Deste ponto de vista, a realidade se torna objeto do conhecimento à medida que o 
sujeito projeta ou lança uma estrutura lógico-matemática (racional) sobre os dados ou 
aparições da realidade. 
 
20 
 
•Tendência (2)
sugere que o objeto do conhecimento é absolutamente independente 
dos princípios, conceitos e esquemas conceituais da razão do sujeito. O conhecimento 
científico deve simplesmente reproduzir (“copiar”) de modo preciso e fiel este objeto 
independente. 
- Tendência (2) está na origem das teorias empiristas e positivistas. Deste ponto de 
vista, o objeto do conhecimento é independente das atividades da razão pura do 
sujeito. Cabe à razão do sujeito simplesmente conformar-se aos dados (informações) 
deste objeto independente, recebidos em observações puras, observações não 
interpretadas por suposições prévias. 
21 
 
Tópico 5. Esquema geral da segunda seção da primeira parte. 
 
Esquema geral das imagens que serão apresentadas até o final da primeira parte. 
 
Imagens da relação entre o sujeito que produz o conhecimento científico (da natureza) 
e o objeto (fenômenos e processos da natureza) que é conhecido e que pode vir a ser 
conhecido no conhecimento produzido pelo sujeito. Imagens da relação sujeito-objeto. 
 
Duas grandes tradições: empirista-positivista e, do outro lado, racionalista-idealista-
construtivista. 
 
Para compreender o que está em jogo nessa dicotomia, é preciso levar em conta o 
seguinte. O sujeito do conhecimento é o ser humano. Quando a realidade a ser 
conhecida é constituída de ações e relações humanas, como ocorre no caso das 
ciências humanas e sociais, é altamente discutível afirmar que esta realidade é 
independente dos seres humanos, como possíveis sujeitos do conhecimento. 
 
Entretanto, quando a realidade a ser conhecida é constituída de fenômenos e 
processos da natureza, é bastante plausível afirmar que esta realidade é totalmente 
independente dos seres humanos como possíveis sujeitos do conhecimento científico. 
 
Tanto a tradição empirista-positivista quanto a tradição racionalista-idealista-
construtivista adotam a tese de que a realidade natural é independente do sujeito do 
conhecimento – elas compartilham essa tese. No debate entre as duas tradições, a 
realidade natural sempre aparece como realidade independente do sujeito. 
 
- Três questões estão em jogo no debate entre as duas tradições. Em primeiro lugar, a 
questão do acesso à realidade independente: temos ou não um acesso direto ou 
imediato a esta realidade? Em segundo lugar, a questão dos elementos logicamente 
prioritários na produção do conhecimento: dados e informações da própria realidade 
ou princípios e estruturas do sujeito do conhecimento? Em terceiro lugar, a questão de 
uma possível distinção analítica entre a realidade natural e o objeto do conhecimento 
humano: deve-se ou não estabelecer essa distinção analiítica? 
 
1ª) Tradição empirista-positivista. 
A) Temos um acesso direto ou imediato à realidade independente. 
B) Primazia cabe a “dados” da realidade independente do sujeito, dados passivamente 
recebidos através dos sentidos. 
C) Não se estabelece distinção analítica entre o objeto do conhecimento (a própria 
realidade natural, considerada, entretanto, sob o aspecto da possibilidade de ser 
“cientificamente” conhecida pelo sujeito do conhecimento, o homem) e a realidade 
independente do sujeito. O objeto do conhecimento é totalmente identificado à 
realidade independente. 
 
 
 
22 
 
2ª) Tradição racionalista-idealista-construtivista. 
A) Não temos acesso direto à realidade independente; nosso acesso à realidade 
sempre é mediado por princípios e estruturas do sujeito do conhecimento. 
B) Primazia cabe à estrutura mental ou linguístico-cultural do sujeito do conhecimento. 
C) Estabelece-se uma distinção analítica entre o objeto do conhecimento e a realidade 
independente. 
- A realidade independente só se torna objeto do conhecimento (só se torna 
cognoscível para e pelo sujeito) à medida que o sujeito projeta ou lança uma estrutura 
mental ou linguístico-cultural sobre os dados (aparições) da realidade. 
C) Variações na estrutura projetada sobre os dados da realidade independente: 
C.1) Estrutura lógico-matemática (mental). Racionalismo do século XVII. 
C.2) Estrutura de regras de organização do espaço-tempo (mental). Idealismo do 
século XVIII. 
C.3) Estrutura interpretativa; visão de mundo, paradigma (linguístico-cultural). 
Construtivismo do século XX/XXI. 
23 
 
Tópico 6: Empirismo e racionalismo no século XVII (1601-1700). 
 
Empirismo no século XVII: vamos nos concentrar em F. Bacon e J. Locke. 
 
Racionalismo no século XVII: vamos nos concentrar em R. Descartes. 
 
O contexto histórico do debate 
 
•1) Crise das instituições e crenças religiosas, crise da autoridade religiosa. Divisão e 
conflitos na cristandade europeia, com a Reforma Protestante (início com Lutero em 
1517; importância de Calvino – 1509-1564), e guerras entre católicos e protestantes. 
 
•2) Crise e esgotamento do conhecimento científico tradicional (aristotélico-
escolástico), ou seja, transmitido de forma não-crítica, com base apenas na autoridade 
dos “sábios”, ligada à autoridade da Igreja Católica. 
 
•3) Crenças e autoridades tradicionalmente seguidas eram questionadas e 
abandonadas. Ambiente de dúvida e incerteza e, ao mesmo tempo, de valorização da 
capacidade cognitiva da consciência individual (de cada indivíduo). 
 
•4) Dúvida quanto ao saber tradicional (ou quanto ao modo habitual de ver a 
realidade) é tomada como etapa necessária (preparatória) para se chegar à verdade, 
mediante construção de um novo “edifício do conhecimento”. Dúvida é parte do 
método do conhecimento. 
 
•5) Desejo de evitar o erro, ou seja, não repetir os erros do (pseudo) saber escolástico, 
entranhado no modo habitual de ver a realidade. 
- Para evitar o erro, é preciso lançar uma dúvida metódica sobre as bases do 
conhecimento tradicional (modo habitual de perceber a realidade) e encontrar uma 
“base segura” para a reconstrução de todo o edifício do conhecimento. 
 
 
A dúvida quanto à visão de mundo típica da ciência aristotélico-escolástica gerou duas 
concepções distintas da “base segura” da nova ciência: 
 
 
1ª) Observações puras, dados brutos captados pelos sentidos. Observações depuradas 
das distorções produzidas pelas suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico-
escolástica. Liberados da influência das suposições teleológicas, os sentidos 
constituem um canal confiável de recepção do objeto do conhecimento (objeto a ser 
conhecido, ou seja, fenômenos e processos da natureza). Ênfase numa atitude de 
passividade e neutralidade do sujeito do conhecimento. EMPIRISMO. 
 
 
 
24 
 
2ª) Radicalização da dúvida metódica leva a uma dúvida quanto à confiabilidade dos 
sentidos. Não há certeza e evidência nos dados sensíveis; só há certeza e evidência nas 
intuições intelectuais (intuições da razão pura). A base segura do conhecimento são 
intuições (intelectuais) claras e evidentes, ou seja, nas quais há certeza e evidência. 
RACIONALISMO. 
 
 
Esclarecimentos terminológicos importantes para a compreensão deste debate. 
 
1º) Primeira diferença básica: diferença entre intuição e raciocínio. 
1.1) Intuição: apreensão ou visão imediata de um determinado dado ou verdade; 
quando você simplesmente “vê” ou “percebe” algo (um objeto, um acontecimento, a 
característica de um objeto ou acontecimento, ou então, no caso da intuição 
intelectual, uma verdade básica, de caráter lógico ou matemático). 
A intuição fornece os pontos de partida do raciocínio. 
 
1.2) Raciocínio: quando você chega a determinado conhecimento (conclusão) por meio 
de um processo argumentativo que parte de outros dados ou conhecimentos 
(premissas). Quando você “conclui” algo. 
 
2º) Segunda diferença básica. Diferença entre dois tipos de intuição. 
2.1) Intuição sensível (operação dos sentidos). Quando você capta um dado ou 
informação por meio dos sentidos. Quando você literalmente vê um acontecimento, 
um objeto, uma característica de um acontecimento
ou objeto. 
A intuição sensível equivale à observação de objetos, eventos e características 
particulares ou singulares (observações do “aqui e agora”). 
 
2.2) Intuição intelectual (operação da razão pura). Quando você “vê” uma verdade 
básica ou fundamental, de caráter lógico ou lógico-matemático, e referida à estrutura 
básica da experiência no espaço e tempo. 
Em oposição às observações da experiência sensível, as verdades da intuição 
intelectual têm alcance ou abrangência geral, ou seja, equivalem a conhecimentos 
válidos para todos os lugares e momentos. 
Exemplos: “coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre si”; “ponto é 
aquilo que não tem partes”; “uma reta finita pode ser prolongada à vontade”; o 
postulado euclidiano das retas paralelas (“Dados em um plano uma reta s e um ponto 
P fora dela, existe no plano uma única reta que passa pelo ponto P e é paralela à reta 
dada”); “tudo que acontece tem uma causa”, “o efeito não pode ter mais realidade do 
que a causa”. 
 
No racionalismo do século XVII e início do XVIII, verdades fundamentais apreendidas 
pela intuição intelectual equivalem a Idéias Inatas. 
 
Cabe enfatizar o seguinte. Os exemplos de intuição intelectual variam historicamente, 
alguns deles deixam de ser aceitos em momentos posteriores. Do ponto de vista 
histórico, muitas “verdades” atribuídas à intuição intelectual deixaram de ser verdades 
25 
 
absolutas, independentes do contexto de pesquisa e aplicação. Mas isso não invalida a 
idéia mais geral de que determinadas hipóteses logicamente independentes da 
intuição sensível desempenham um papel decisivo na investigação científica. Veremos 
isso mais à frente. 
 
3º) Terceira diferença básica. Diferença entre dois tipos de raciocínio. 
3.1) Indução: partindo de um determinado conjunto de dados ou informações 
(premissas), você chega a uma conclusão que NÃO está implicitamente contida nestes 
dados. Mesmo que as informações ou enunciados de que você partiu sejam 
verdadeiros, e mesmo que o raciocínio seja criterioso, a conclusão pode ser falsa 
(exemplos: generalização com boa base indutiva, analogia criteriosa). 
Um raciocínio indutivo criterioso distingue-se de uma dedução formalmente válida. Ao 
contrário do que ocorre na dedução formalmente válida, a indução, mesmo criteriosa, 
admite uma “margem de erro”. 
 
3.2) Dedução: partindo de determinadas informações ou enunciados (premissas), você 
chega a uma conclusão que implicitamente já está contida nestas informações. Se os 
enunciados de que você partiu são verdadeiros, e se o raciocínio (dedutivo) é 
formalmente válido, a conclusão necessariamente é verdadeira (exemplos: “sempre 
que um metal é aquecido, ele se dilata; o corpo x não se dilatou ao ser aquecido; 
conclusão: o corpo x não é metal”). 
Se a dedução é formalmente válida, a verdade das premissas (supondo que elas são 
verdadeiras) transfere-se para a conclusão. 
 
 
 
O empirismo no século XVII. 
 
•Principais defensores do empirismo no século XVII: Francis Bacon (“O Novo Órganon”, 
publicado em 1620) e John Locke (“Ensaio sobre o Entendimento Humano”, publicado 
em 1690). 
 
•1) “Base Segura” para a construção do conhecimento: experiência sensível (empeiria= 
experiência sensível); dados e informações captados de forma absolutamente neutra 
pelos sentidos (mediante eliminação de todos os “pré-conceitos” envolvidos no modo 
habitual de ver a realidade); dados absolutamente fidedignos. 
Ênfase na intuição sensível, em comparação com a intuição intelectual. Defesa dos 
sentidos como canais confiáveis de recepção do objeto do conhecimento, identificado 
aos dados da realidade externa e independente. 
 
Mente humana como folha em branco (“Tábula rasa”), paulatinamente preenchida 
pelos dados particulares captados pelos sentidos. Não há idéias inatas. 
 
•2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: Indução (como 
generalização, raciocínio que vai das observações particulares à regra ou lei de caráter 
geral): partindo-se de observações (experiências) de casos particulares da ocorrência 
26 
 
de determinados fenômenos [casos em que os fenômenos (p.ex., calor e dilatação de 
metais) se apresentam, não se apresentam e variam], formulam-se definições, 
conceitos e leis de caráter geral, válidos para todos os casos dos fenômenos 
investigados. 
Leis da natureza são concebidas como correlações regulares e universais de 
fenômenos da natureza. 
 
E a Indução é concebida como método de descoberta das leis da natureza. 
 
Ênfase no raciocínio indutivo, em comparação com o raciocínio dedutivo. 
 
Para realizar a indução: eliminação das “antecipações da natureza” (idéias pré-
concebidas sobre a estrutura e funcionamento da natureza); limpar a mente das falsas 
noções que a invadiram; “tornar-se uma criança diante da natureza”. Passividade e 
neutralidade do sujeito. 
 
 
O Racionalismo no século XVII. 
 
•Principal defensor do racionalismo no século XVII: René Descartes (“Discurso do 
Método”, 1637; “Meditações Metafísicas”, 1641). 
 
•1) “Base segura” para a construção do conhecimento: intuição intelectual 
fundamental: “Eu penso, e enquanto penso existo como substância pensante”. 
 
Submetendo as idéias presentes em minha mente a um rigoroso questionamento 
crítico (dúvida metódica), descubro que há princípios e noções que minha razão 
apreende como claros e evidentes, intelectualmente certos, necessariamente 
verdadeiros. Trata-se de princípios e idéias inatas, independentes da experiência 
sensível. (Se fossem oriundos dos sentidos, não se apresentariam como claros, certos, 
seguros). 
Para Descartes, as idéias ligadas aos sentidos são incertas, confusas e obscuras. Não 
sei, por exemplo, se as qualidades “frio”, “amargo”, “vermelho”, tipicamente ligadas 
aos sentidos, - não sei se essas qualidades estão na substância que se estende no 
espaço externo (“substância extensa”), ou, apenas, na minha mente (“substância 
pensante”). 
 
Dentre os princípios e idéias inatas, destacam-se os princípios e idéias lógico-
matemáticos, utilizados na construção do conhecimento matemático. 
 
 
•2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: dúvida metódica (avaliar 
todos os candidatos a conhecimento com uma “lupa crítica” rigorosa), intuição 
intelectual e raciocínio dedutivo (extração de conseqüências logicamente necessárias 
de idéias e princípios apreendidos por intuição intelectual, ou seja, apreendidos como 
claros, evidentes, certos). Em Descartes, o próprio resultado do raciocínio dedutivo 
27 
 
aparece como uma espécie de intuição intelectual, na medida em que se apresenta 
com as características da clareza, evidência e certeza. 
 
Ideal de um conhecimento certo e seguro elaborado “dentro” da mente (com base 
apenas nos recursos intelectuais da própria mente). 
 
•3) Prova da existência de Deus garante a correspondência do conhecimento 
elaborado “dentro” da mente aos objetos realmente existentes “fora” da mente. 
 
Deus como garantidor da verdade (correspondência a objetos realmente existentes 
fora da mente) de ideias clara e distintamente intuídas “dentro” da mente (intuição 
intelectual). 
 
Em Descartes, a prova da existência de Deus é uma prova puramente lógico-
conceitual, que recorre apenas ao conceito ou idéia de Deus, e ao princípio de 
causalidade aplicado a essa idéia. 
Para Descartes, examinando com atenção a ideia de Deus presente em minha mente, 
percebo clara e distintamente que as propriedades que se me apresentam nessa ideia 
(poder ilimitado ou infinito) não podem ter sido geradas ou “causadas” por minha 
própria mente (pois tenho consciência clara e distinta de que sou um ser limitado, com 
poderes limitados), mas só podem ser a marca ou presença em mim de um ser infinito 
realmente existente (independentemente de mim). 
 
E um ser infinito (ao qual não falta nenhuma qualidade positiva) é um ser bondoso
e 
veraz, que não permitiria que eu estivesse enganado quando, depois de examinar com 
todo cuidado possível certa idéia em minha mente, me sentisse irresistivelmente 
impelido a julgá-la verdadeira. 
 
 
Objeto do conhecimento: construído ou independente? 
 
•1) Empirismo: realidade externamente dada e objeto do conhecimento são termos 
absolutamente idênticos. Trata-se de um pólo absolutamente independente do sujeito 
e das capacidades cognitivas do sujeito. Conhecimento se produz na medida em que a 
realidade (o objeto) “flui” PARA a mente do sujeito, por meio dos sentidos. 
 
- Para o empirismo, o objeto do conhecimento (aquilo que é conhecido nas atividades 
cognitivas do sujeito) é totalmente independente do sujeito, e o sujeito deve 
simplesmente “receber” esse objeto, da forma mais passiva e neutra possível. 
 
- Para o empirismo, além disso, o conhecimento do objeto pelo sujeito consiste numa 
cópia precisa e fiel do objeto independente – uma cópia possibilitada pelo fato de os 
sentidos do sujeito constituírem um acesso direto e confiável a este objeto totalmente 
independente. 
 
 
28 
 
 
•2) Racionalismo: 
Tendo em vista os propósitos do nosso curso, podemos aproximar o racionalismo 
cartesiano de teorias idealistas e construtivistas posteriores, de modo a destacar a 
prioridade do sujeito (das ideias do sujeito, da atividade cognitiva desenvolvida pela 
razão do sujeito) na relação sujeito-objeto. 
Ao fazermos isso, estamos desconsiderando aspectos importantes da filosofia de 
Descartes. Isso só se justifica em função dos propósitos bem específicos de nosso 
curso. 
Dito isso, podemos apresentar da seguinte maneira a prioridade do sujeito no 
racionalismo cartesiano. 
 
Para o racionalismo, a realidade só se torna objeto do conhecimento na medida em 
que o sujeito (mente, consciência), garantido pela prova da existência de Deus, projeta 
ou põe (“lança”) “fora” dele uma estrutura lógico-conceitual elaborada inicialmente 
“dentro” da mente (estrutura puramente racional; fundamentalmente, estrutura de 
relações lógico-matemáticas, aplicadas ao espaço e aos corpos no espaço). 
 
Nesse sentido, o objeto do conhecimento não é a realidade independente que é 
externamente dada ao sujeito (através dos sentidos), mas a realidade que é 
“construída” pela projeção de uma estrutura puramente racional (inata). (Realidade 
que é construída à medida que o sujeito projeta fora dele uma estrutura lógico-
matemática elaborada dentro de sua mente). 
 
Nesse sentido, em vez de ser independente, o objeto do conhecimento é construído 
pela atividade cognitiva desenvolvida pela razão (pura) do sujeito. O objeto que pode 
ser conhecido e é realmente conhecido é uma entidade construída pelo sujeito, por 
meio da projeção de uma estrutural lógico-conceitual elaborada dentro da mente (cuja 
correspondência com a realidade é garantida pela existência e perfeição de Deus). 
29 
 
Tópico 7: Empirismo e Idealismo no século XVIII (1701-1800). 
 
Empirismo no século XVIII: D. Hume. 
Idealismo no século XVIII: I. Kant 
 
O contexto histórico do debate 
 
•Século XVIII: Liberalismo e Iluminismo. 
 
O Liberalismo como doutrina: 
 
a) Liberdade do ser humano como princípio e valor (fim) da ordem social. Princípio (e 
Fim) do Estado não é mais a ordem divina ou tradicional do mundo. 
 
Surgem nesse momento duas interpretações distintas da liberdade humana, que dão 
origem a duas posições distintas dentro do multifacetado campo do liberalismo. 
 
A primeira posição interpreta a liberdade em termos mais individualistas: liberdade é o 
poder de escolha do indivíduo, e o direito de escolha do indivíduo. Enfatiza-aqui a livre 
escolha. Enfatiza-se também a esfera privada do indivíduo, como esfera em que se 
exerce sua livre escolha. 
Um dos principais expoentes dessa interpretação é o empirista John Locke (1632-
1704). 
 
A segunda posição interpreta a liberdade associando-a à razão como capacidade de 
conhecer a Verdade nas questões práticas, a qual pode ser identificada ao Bem e à 
Justiça: liberdade é a capacidade que o ser humano tem de conhecer e seguir o Bem (o 
bem conhecido pela razão tende a ser identificado ao que é bom para todos) e a 
Justiça. 
Nesta interpretação, a liberdade está estreitamente associada ao direito e ao dever de 
participar do processo de busca do Bem Comum e da Justiça. Há aqui maior 
valorização da esfera pública, como esfera em que se desenvolve este processo de 
busca do Bem Comum, conduzido pela Vontade Geral dos cidadãos, ou seja, a Vontade 
que, por ser estritamente racional, é idêntica em todos os indivíduos. Desse ponto de 
vista, a liberdade é a capacidade de seguir a Vontade Geral. 
Um dos principais expoentes dessa interpretação é o idealista Kant (1724-1804), que 
foi muito influenciado por Rousseau (1712-1778). Para Kant, o verdadeiro sentido da 
liberdade humana reside no direito e dever de usar, cultivar e seguir a própria Razão, 
entendida como capacidade de descobrir e perseguir a Justiça, a Correção, o Bem 
Comum. 
 
 
B) Defesa dos Direitos Humanos, como condições e garantias do exercício da 
liberdade. Tais Direitos são apresentados como direitos naturais do homem, ou seja, 
sua validade não depende das leis contingentemente vigentes nos diferentes Estados. 
30 
 
 
Trata-se dos direitos clássicos do liberalismo: direito à liberdade pessoal e ao devido 
processo legal (proteção em relação a atos arbitrários ou abusivos por parte dos 
agentes do Estado ou do governo); direito à liberdade de pensamento e opinião; 
direito à liberdade de religião e culto (implicando separação entre Estado e Igreja); 
direito à liberdade de expressão; direito a algum tipo de participação na discussão das 
questões e decisões políticas. 
O respeito a tais direitos configura o chamado “Estado de direito”, fundado ainda na 
igualdade dos cidadãos perante o Estado e a Lei (contra os tradicionais privilégios da 
nobreza e clero, típicos da ordem absolutista). 
 
Estes direitos também podem ser interpretados de duas maneiras, em 
correspondência com as duas posições acima expostas. 
Na primeira interpretação, eles são vistos como condições e garantias do exercício da 
livre escolha na esfera privada do indivíduo. 
Na segunda interpretação, eles são vistos como condições e garantias do exercício da 
razão humana, como capacidade de conhecer e seguir o Bem Comum e a Justiça. Para 
garantir o pleno exercício da Razão, é preciso garantir a liberdade de pensamento, de 
culto e de expressão. 
 
 
O Liberalismo como movimento político: 
Movimento de supressão das monarquias absolutas e dos privilégios tradicionais da 
nobreza e clero, e de instauração dos Estados constitucionais, baseados em 
declarações dos direitos e liberdades dos cidadãos. Revolução Gloriosa na Inglaterra 
(1688, no finalzinho do século XVII); Independência dos EUA, contra a política 
“absolutista” da monarquia inglesa nas colônias norte-americanas (1776), Revolução 
Francesa (1789). 
 
 
c) Iluminismo: movimento de idéias bastante próximo ao liberalismo. 
Crença na capacidade da razão humana de progressivamente desvendar, conhecer e 
dominar a natureza, tendo em vista a realização da felicidade humana. Rejeição de 
autoridades externas à razão individual, como a Igreja (anti-clericalismo). Confiança no 
progresso contínuo do conhecimento científico, como instrumento de promoção da 
felicidade terrena. 
 
Ideal de libertar a humanidade dos grilhões que lhe são impostos pela ignorância e 
superstição. Difundir as “Luzes”, contra as trevas e obscurantismo (que tendem a ser 
associados aos dogmas da religião, e especialmente à Igreja católica). 
 
- Na França, publicação da primeira “Enciclopédia” (início em 1751): sintetizar em uma 
obra todo o saber da época, tornando-o disponível a todos os homens-cidadãos. 
 
 
 
31 
 
 
O Empirismo no século XVIII
Principal defensor do empirismo no século XVIII: David Hume (“Tratado sobre a 
natureza humana”, 1739, e “Investigação sobre o Entendimento Humano”, 1748). 
 
Questão colocada por Hume: sentidos não captam as características da necessidade e 
universalidade, que são características fundamentais do conceito de causalidade e das 
Leis da natureza que a ciência pretende apresentar. 
 
Hume problematiza o conceito de indução, tal como compreendido pelos empiristas 
do séc. XVII. Não há base objetiva para “pularmos” de observações particulares para 
enunciados necessários e universais (tal “pulo” não se baseia em intuição sensível, pois 
os sentidos não vêem ou captam a necessidade e universalidade; nem em raciocínio 
lógico, pois necessidade e universalidade não são conseqüências logicamente 
necessárias das observações particulares). 
Para Hume, o que nós literalmente vemos ou observamos são simples regularidades, 
de alcance limitado ou parcial: até hoje a natureza tem apresentado esta regularidade. 
Em um sentido estrito e rigoroso, nós não sabemos se esta regularidade equivale a 
uma “Lei” (necessária e universal) da natureza (“sempre vai ocorrer assim”). 
 
Hume estabelece uma diferença entre conhecimento puramente lógico ou lógico-
matemático, caracterizado pela necessidade lógica das relações entre idéias, e, por 
outro lado, conhecimento da natureza, entendida como realidade externa, 
independente das ideias na mente humana. 
 
Para Hume, conhecendo o significado previamente atribuído às noções matemáticas, 
nós podemos reconhecer certas relações logicamente necessárias entre elas. Mas este 
tipo de conhecimento é distinto do conhecimento da realidade externa em sentido 
estrito. 
 
Em outras palavras, Hume estabelece uma diferença entre a necessidade lógica das 
relações entre idéias matemáticas e, por outro lado, a necessidade empírica das 
relações entre eventos da natureza, que nosso conhecimento da natureza pretende 
exprimir. 
E pergunta se essa pretensão é justificada. Podemos de fato “saber” que as relações 
entre eventos da natureza são rigorosamente necessárias? Podemos de fato conhecer 
relações causais rigorosamente necessárias entre dados ou eventos da natureza? 
Estas perguntas são feitas contra o pano de fundo da concepção da ciência como um 
saber certo e infalível, imune a erros. Desse ponto de vista, se os eventos da natureza 
são encadeados segundo relações necessárias e deterministas (como era pressuposto), 
nosso conhecimento da natureza, se é um conhecimento verdadeiro, ou seja, um 
conhecimento que reflete a própria natureza, deve ser igualmente necessário, no 
sentido de certo e seguro, isento de “margens de erro”. 
Desse ponto de vista, ou nesse contexto histórico, a indução era compreendida como 
um método de descoberta das leis necessárias de encadeamento dos eventos naturais, 
32 
 
e não como um método de formulação de correlações estatísticas, admitidamente 
sujeitas a “margens de erro”. 
 
Resposta de Hume aos problemas que ele mesmo coloca: Indução se baseia num 
fundamento “subjetivo”: hábito/costume da nossa mente de associar necessidade e 
universalidade às regularidades que observamos. Necessidade e universalidade 
refletem um hábito da nossa mente. 
 
Hume analisa a indução da seguinte maneira. Através da indução, nós transformamos 
as regularidades observadas, que têm alcance limitado ou parcial, em leis universais e 
necessárias. Não há nenhuma base objetiva para operarmos essa transformação, mas 
uma base “subjetiva”: a “natureza” de nossa mente, no sentido dos hábitos de nossa 
mente, padrões habituais segundo os quais ela opera. 
 
Em um sentido rigoroso e estrito, nós não sabemos (com certeza) se as regularidades 
observadas equivalem a leis universais e necessárias da própria natureza; nós sequer 
sabemos com certeza se a natureza segue leis necessárias e universais. Entretanto, 
nossa “natureza” (a natureza de nossa mente, que se exprime em seu modo habitual 
de comportar-se) nos compele a pensar e julgar assim, e a nos comportar de acordo 
com esse juízo. Nossos hábitos mentais nos compelem a transformar as regularidades 
que observamos em leis necessárias da própria natureza. 
 
O que nós literalmente vemos ou observamos são simples regularidades, de alcance 
limitado ou parcial: até hoje a natureza tem apresentado esta regularidade. Em um 
sentido estrito e rigoroso, nós não sabemos se esta regularidade equivale a uma “Lei” 
(necessária e universal) da natureza (“sempre vai ocorrer assim”), mas estamos 
habituados a pensar e esperar que se trata efetivamente de uma Lei. 
 
Hume mantém a tese de que a indução representa o método correto para a 
descoberta ou obtenção das (presumidas, esperadas) leis da natureza, entendidas 
como leis necessárias do encadeamento dos eventos naturais. Embora baseada num 
“hábito” da mente, a indução é o melhor método para tentarmos conhecer a realidade 
objetiva. 
 
Por outro lado, a obra humeana sugere uma visão falibilista do conhecimento 
científico: não podemos ter certeza de que as Leis que atribuímos à natureza (e que 
formulamos com base na indução) são absolutamente necessárias; não podemos ter 
certeza de que o conhecimento científico de que dispomos é infalível, isento de 
“margens de erro”. 
 
 
 
 
 
 
 
33 
 
O Idealismo no século XVIII 
 
Em função dos propósitos do nosso curso, vamos considera-lo como um 
desenvolvimento do racionalismo do século XVII. 
 
Principal expoente: Immanuel Kant (Crítica da Razão Pura, 1781). 
 
Aceita os problemas apontados por Hume, mas não aceita sua solução. 
 
Seguindo Hume, Kant afirma que necessidade e universalidade não são características 
captadas pelos sentidos. 
 
Contra Hume, afirma que elas não se enraízam num mero “hábito” (característica 
meramente subjetiva) da mente humana, mas numa atividade legisladora (de impor 
leis) que é simultaneamente construtora da objetividade da realidade. Necessidade e 
universalidade são expostas como características da estrutura lógico-conceitual que o 
sujeito impõe a todos os dados que lhe aparecem, e essa atividade de “imposição” 
constrói a objetividade que a realidade tem para nós. 
Para Kant, em outras palavras, a mente “constrói” a objetividade que a realidade tem 
para nós. Ela não produz ou cria os conteúdos da realidade, mas impõe uma estrutura 
formal a tais conteúdos, encaixando-os nesta estrutura. Esta estrutura formal consiste 
em regras de organização do espaço-tempo. 
 
Para Kant, há regras inatas (sediadas na razão pura) de organização das sensações e de 
construção da forma geral da realidade objetiva. Trata-se de regras de organização do 
espaço-tempo, e de organização da nossa experiência no espaço-tempo, que incluem a 
regra da causalidade, com a necessidade que lhe é típica. 
Em Kant, o elemento “inato” não equivale mais a conhecimento de objetos, mas a 
conhecimento da forma geral da realidade objetiva, que vale para todos os conteúdos 
que sejam ou venham a ser dados na sensibilidade. 
Por outro lado, o conhecimento da forma geral da realidade objetiva só se transforma 
em conhecimento de objetos propriamente ditos à medida que é complementado ou 
preenchido por conteúdos dados na sensibilidade. 
Os objetos da realidade objetiva consistem em conteúdos (dados na sensibilidade) 
estruturados e organizados segundo a forma geral imposta pela razão pura. Em outras 
palavras, os objetos consistem num elemento formal preenchido por conteúdos dados 
na sensibilidade. 
 
Assim, os enunciados que descrevem a forma geral da realidade objetiva apresentam 
as seguintes características. Por um lado, são enunciados logicamente independentes 
da experiência sensível (enunciados a priori, ou seja, logicamente anteriores à 
experiência sensível). 
Por outro lado, são enunciados que pretendem ser informativos sobre os próprios 
objetos da nossa experiência, enunciados
cuja validade não se restringe à coerência 
lógica interna a determinado sistema linguístico convencionalmente adotado. 
34 
 
No vocabulário kantiano, trata-se de enunciados “sintéticos”, distintos dos enunciados 
“analíticos”, que equivalem a meras definições, cuja validade restringe-se à coerência 
lógica interna a um sistema linguístico convencionalmente adotado. 
 
Por exemplo, suponhamos que em determinado sistema linguístico não tenham sido 
adotadas as categorias conceituais de “divorciado” e “viúvo”, por qualquer razão que 
seja – digamos que no momento de construção do sistema não tinham aparecido, ou 
não despertaram atenção, ou não apareciam como suficientemente relevantes, os 
fenômenos que poderiam demandar a introdução e adoção dessas categorias. 
Neste sistema, o enunciado “todo não-solteiro é casado” equivale a um enunciado 
estritamente analítico, ele é analiticamente verdadeiro, ou seja, ele é verdadeiro em 
virtude das relações lógicas internas ao sistema linguístico adotado. Ele tem uma 
validade meramente analítica, e por isso mesmo “a priori” (independente da 
experiência). 
Embora a validade “sintética” (caráter efetivamente informativo) deste enunciado em 
relação àquilo que acontece em nossa experiência seja questionável ou duvidosa (pois 
os divorciados em princípio representam não-solteiros que não são casados), isso não 
é relevante para sua validade meramente analítica, pois o enunciado, tomado como 
enunciado analítico, é “a priori”, ou seja, logicamente independente do que acontece 
na experiência sensível. 
Para Kant, a validade “a priori” (validade que é independente dos eventos da 
experiência sensível) normalmente equivale a uma validade meramente analítica 
(baseada apenas nas relações lógicas internas a um determinado sistema linguístico). 
 
A exceção são os enunciados “sintéticos a priori”, como, por exemplo, “Tudo que 
acontece é necessariamente determinado por uma causa (antecedente)”. Para Kant, 
este enunciado é simultaneamente “a priori” (pois exprime uma regra de organização 
logicamente anterior à experiência sensível, logicamente independente em relação à 
experiência sensível) e “sintético” (pois tem um caráter efetivamente informativo a 
respeito dos objetos que se dão na realidade que é objetiva para os homens). No 
vocabulário kantiano, é um enunciado “sintético a priori”. 
 
Ocorre a mesma coisa com os enunciados da matemática em geral e da geometria 
euclidiana em particular. Este é um ponto que será retomado mais a frente. 
 
No idealismo kantiano, estabelece-se uma distinção entre a natureza ou realidade “em 
si mesma” (“coisa-em-si”) e a realidade “para nós” (que equivale à “realidade 
objetiva”). A “realidade para nós” é construída por uma atividade de imposição de 
regras ou leis de organização: imposição sobre as “aparições (“fenômenos”) de regras 
de estruturação e organização congênitas à mente, ou seja, inatas. Em outras palavras, 
a realidade objetiva são os fenômenos, estruturados e organizados por regras e 
princípios inatos. 
 
Todo conhecimento científico ou teórico precisa de uma contribuição da intuição 
sensível. Kant rejeita a intuição intelectual como fonte de conhecimento de objetos. Só 
há conhecimento teórico quando as regras de organização “a priori” são efetivamente 
35 
 
aplicadas a conteúdos singulares dados na sensibilidade (ou que possam se dar na 
continuação da investigação científica). Só há conhecimento teórico à medida que a 
estrutura formal é preenchida por conteúdos efetivamente dados na sensibilidade. 
 
Por isso, Kant rejeita a possibilidade de conhecimento teórico de Deus, ou da 
existência de Deus. Ele a rejeita porque nenhum conteúdo dado na sensibilidade 
preenche efetivamente o mero conceito de Deus. Esta é uma diferença fundamental 
em relação a Descartes. 
 
Assim, a validade objetiva (ou seja, aplicabilidade à natureza existente fora da mente 
do sujeito) da estrutura lógico-matemática baseia-se, não mais na perfeição, bondade 
e veracidade de Deus, mas na atividade “legisladora-impositiva” do sujeito (“sujeito 
transcendental”, ou seja, o próprio homem, enfocado como condição de possibilidade 
da própria realidade objetiva). 
 
Objeto do conhecimento: construído ou independente? 
 
•1) Empirismo de Hume: 
(a) Objeto do conhecimento (identificado à realidade externa e independente) é 
independente da consciência do sujeito (igual ao empirismo de Bacon e Locke); 
(b) Conhecimento teórico (científico) é constituído por observações “puras” dessa 
realidade independente, com uso do método da indução. (igual ao empirismo de 
Bacon e Locke); 
(c) Conhecimento científico é falível, pois nosso acesso à realidade independente não é 
absolutamente seguro e abrangente (diferente do empirismo de Bacon e Locke). 
 
•2) Idealismo de Kant: 
(a) Objeto do conhecimento é a realidade “para nós”, distinta da realidade “em si 
mesma”. 
•(b) Objeto do conhecimento (realidade para nós) é construído pela atividade 
cognitiva do sujeito: atividade na qual o sujeito impõe a tudo que aparece (os 
fenômenos) uma estrutura lógico-conceitual única e abrangente. Conhecimento 
teórico é constituído por observações singulares encaixadas numa estrutura conceitual 
(causal e determinista) única e abrangente. 
•(c) Conhecimento científico é rigorosamente necessário (mais precisamente, a 
estrutura formal é infalível, embora possamos eventualmente nos enganar em relação 
aos conteúdos que preenchem esta estrutura formal. A lei “tudo que acontece tem 
uma causa” é infalível, embora possamos às vezes nos equivocar quanto aos 
conteúdos que preenchem a posição de “causa” em determinado ponto da estrutura 
formal. Mas este é um aspecto que não é enfatizado). 
36 
 
Tópico 8: Empirismo Lógico e Racionalismo Crítico de Popper. 
 
O debate entre empirismo lógico e racionalismo crítico se desenvolve, basicamente, 
entre os anos 1920 e 1950. O empirismo lógico é defendido por um conjunto de 
filósofos reunidos no chamado “Círculo de Viena”. O racionalismo crítico é defendido 
pelo filósofo austríaco Karl Popper. 
 
Os antecedentes históricos do debate. Os antecedentes que definem o contexto do 
debate. 
 
•1) Desenvolvimento e aplicação empírica de geometrias não-euclidianas (a partir de 
1830, aproximadamente). 
•Conseqüência: abandono da tese (adotada pelo racionalismo do século XVII e 
idealismo do século XVIII) de que a matemática representa um conhecimento 
rigorosamente necessário (infalível) da estrutura essencial da realidade objetiva. 
Reconhecimento de que a verdade matemática (necessidade/coerência lógica de um 
sistema construído a partir de princípios convencionais, ou convencionalmente 
adotados) distingue-se essencialmente de verdade empírica (aplicabilidade e validade 
para a natureza, ou para a realidade objetiva; informatividade em relação à realidade 
objetiva). 
A consequência, em outras palavras, foi que a tradição racionalista/idealista (a 
tradição que confere prioridade ao sujeito na relação sujeito-objeto) teve de 
abandonar a tese kantiana de que os enunciados da geometria euclidiana são 
enunciados “sintéticos a priori”, ou seja, enunciados logicamente independentes das 
informações empíricas, mas ao mesmo tempo necessariamente informativos a 
respeito de todos os setores ou âmbitos da realidade externa. 
 
Em função dos propósitos do nosso curso, o Racionalismo Crítico de Karl Popper, ao 
ser contrastado com o Empirismo Lógico do Círculo de Viena, pode ser considerado 
uma versão da tradição racionalista/idealista, ou seja, a tradição que confere 
prioridade à razão do sujeito na relação sujeito-objeto. 
Entretanto, ao contrário do que ocorre nas versões anteriores, no Racionalismo Crítico 
de Popper não se defende a tese das verdades inatas e dos enunciados sintéticos a 
priori. 
 
Breve esclarecimento: geometrias não-euclidianas são geometrias que rejeitam
o 
“Quinto Postulado” de Euclides, adotando outros pontos de partida. O Quinto 
Postulado é o enunciado segundo o qual “Dados em um plano uma reta s e um ponto 
p fora dela, existe no plano uma única reta r que passa por P e é paralela a s”. Uma das 
consequências (conclusões) que podem ser dedutivamente extraídas deste postulado 
é o enunciado de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180 graus. 
 
Ora, na tradição racionalista/idealista, estes dois enunciados (o 5º postulado e a 
conclusão sobre os ângulos do triângulo) eram vistos como verdades a priori ou inatas 
(verdades logicamente anteriores ou independentes em relação à experiência sensível, 
e por isso mesmo indubitáveis, infalíveis) e, simultaneamente, empiricamente 
37 
 
informativas, ou seja, necessariamente informativas a respeito de todos os setores e 
âmbitos da realidade externa. 
 
O desenvolvimento e aplicação empírica das geometrias não-euclidianas acabou dando 
razão a certas sugestões contidas no empirismo de Hume. Pode-se ler em Hume a 
sugestão de que o 5º Postulado, em vez de ser uma verdade intuitivamente certa e 
evidente, é uma mera definição, ou seja, uma definição convencionalmente adotada 
como ponto de partida de um sistema linguístico (no caso, geométrico, construído na 
linguagem da geometria). Além disso, pode-se ler em Hume a sugestão de que a 
conclusão sobre os ângulos do triângulo equivale a um enunciado meramente 
analítico, ou seja, um enunciado logicamente necessário dentro de um determinado 
sistema linguístico (a geometria euclidiana), mas não necessariamente informativo a 
respeito de todos os âmbitos ou setores da realidade externa. A validade empírica 
varia conforme o âmbito de realidade que se está investigando, e depende, portanto, 
de pesquisa e comprovação empíricas. 
Em outras palavras, pode-se ler em Hume a sugestão de que os sistemas matemáticos 
são ferramentas linguísticas, meios de modelagem formal, cuja aplicabilidade à 
realidade (validade e informatividade em relação à realidade objetiva) varia conforme 
o contexto de pesquisa. 
 
• 2) O desenvolvimento e desdobramento da Física acabou levando à constatação de 
que os fenômenos físicos são muito mais complexos do que se achava nos primeiros 
momentos da mecânica newtoniana. 
Isso acabou reforçando também um segundo aspecto da filosofia de Hume: a admissão 
do caráter essencialmente falível do nosso conhecimento do mundo físico. Nosso 
conhecimento sempre tem a forma de hipóteses essencialmente falíveis, ou seja, 
hipóteses que talvez precisem ser corrigidas ou abandonadas, ou ainda, e isso é o mais 
importante, hipóteses que não podem deixar de conter certa margem de erro 
(hipóteses de caráter probabilístico ou estatístico). 
Mais precisamente, a causa da falibilidade do nosso conhecimento não está apenas na 
falibilidade dos cientistas, mas na complexidade da própria realidade. Isso significa que 
a ideia de infalibilidade não deve ser mantida sequer como um ideal regulador, mas 
deve ser totalmente abandonada. 
 
Como veremos mais a frente, embora a constatação da complexidade dos fenômenos 
físicos não tenha levado a um abandono completo da imagem determinista ou 
determinística da própria realidade, ela levou à ideia de que, em muitos setores da 
pesquisa científica, nosso conhecimento precisa assumir a forma de enunciados e 
modelos de caráter probabilístico ou estatístico, em lugar de enunciados e modelos de 
caráter determinista. Ainda que a realidade seja deterministicamente encadeada, em 
muitos casos nosso conhecimento precisa limitar-se a enunciados e modelos de 
caráter probabilístico e estatístico, ou seja, enunciados admitidamente sujeitos a certa 
margem de erro. Voltaremos a esse ponto mais a frente. 
 
3) Além disso, em virtude da enorme complexidade e sofisticação das hipóteses e 
modelos formulados pelos cientistas do século XIX (1801-1900) e início do XX, caíra em 
38 
 
descrédito uma tese que fora adotada pelo empirismo nos séculos XVII e XVIII: a tese 
de que observações não-interpretadas constituem o ponto de partida da descoberta e 
formulação das leis científicas. PONTO DESTACADO PELO RACIONALISMO CRÍTICO, 
MAS ADMITIDO PELO EMPIRISMO LÓGICO. 
Em outras palavras, ao contrário das teorias empiristas dos séculos XVII e XVIII, o 
empirismo lógico do círculo de Viena admite que as hipóteses científicas não são 
elaboradas a partir de observações da realidade, mas são livremente inventadas por 
mentes argutas e até mesmo geniais. 
 
- Ocorrem assim alterações importantes em relação à discussão anterior. Vejamos as 
principais alterações. 
 
Alterações em relação ao debate anterior. 
 
1) Não se discute mais o ponto de partida da atividade de produção científica. 
- No debate anterior, havia discussão quanto a esse ponto de partida: 
- Empirismo defendia que era “folha em branco” a ser paulatinamente preenchida por 
observações “puras” (não-interpretadas). 
- Racionalismo/idealismo defendia que eram idéias inatas geradoras de uma estrutura 
lógico-conceitual (e matemática) necessariamente verdadeira. 
 
•No novo debate: nem uma coisa nem outra; e sim: ponto de partida consiste em 
hipóteses (falíveis) livremente formuladas pela razão dos cientistas. Os dois lados 
concordam quanto a isso. 
 
2) Alteração no enfoque que é dado aos métodos respectivamente defendidos por 
empiristas e racionalistas. 
- No debate anterior, os empiristas defendiam o método da indução como um método 
de elaboração das leis da natureza a partir da experiência sensível (observações puras 
e não-interpretadas da natureza), do mesmo modo que os racionalistas/idealistas 
defendiam o método da dedução como um método de elaboração das leis da natureza 
a partir de idéias e princípios inatos. 
 
- No novo debate, os empiristas vão defender o método da indução como um método 
de justificação das hipóteses científicas livremente formuladas pelos cientistas, do 
mesmo modo que os racionalistas (Popper e seus partidários) vão defender o método 
da dedução como um método de justificação das hipóteses científicas. 
 
- Método de justificação: método que permite afirmar que determinada hipótese é 
uma boa hipótese, ou uma hipótese melhor que outras hipóteses eventualmente 
concorrentes. 
 
3) Assim, ocorre uma alteração do cerne da discussão. 
- No debate anterior, o cerne da discussão era a questão do ponto de partida e do 
método da elaboração das leis da natureza. 
39 
 
- No novo debate, o cerne da discussão é a questão do método de justificação das 
hipóteses científicas livremente formuladas pela razão dos cientistas. 
 
- Com relação a esta questão, os dois lados (empirismo lógico e racionalismo crítico) 
concordam que não é possível o estabelecimento completo e definitivo da verdade de 
uma hipótese. 
 
Empirismo Lógico defende o ideal de uma confirmação gradativa e crescente das 
hipóteses (sem chegar ao estabelecimento completo e definitivo da verdade das 
mesmas), baseada no aumento do número de observações favoráveis ou 
confirmadoras, equivalendo ao aumento do grau de probabilidade de que desfruta a 
hipótese. 
- O empirismo lógico compreende e defende a indução como um método de 
justificação probabilística das hipóteses científicas. A indução é interpretada e 
assumida como método utilizado no cálculo da probabilidade de que desfruta a 
hipótese. Indução como cálculo da probabilidade de uma hipótese ser válida, a partir 
do conjunto das observações disponíveis. (Justificação probabilística, usando um tipo 
de lógica indutiva). 
- À luz dessa concepção, a melhor hipótese é a hipótese mais provável. 
 
- Já o Racionalismo Crítico (Karl Popper) defende o ideal de uma justificação por 
“fracasso na tentativa de refutação”. A justificação é constituída pelo fato de a 
hipótese passar por um teste em que, à luz dos conhecimentos e expectativas 
disponíveis, considera-se
alto o risco de ela ser refutada por uma observação contrária. 
 
- Para Popper, a dedução é o método utilizado na construção dos testes através dos 
quais se efetua a justificação das hipóteses científicas. Em outras palavras, a dedução é 
o método utilizado na construção das “tentativas de refutação”. 
 
- Para Popper, a justificação das hipóteses científicas não se dá por meio de raciocínio 
indutivo-probabilístico, mas por meio de raciocínio estritamente dedutivo, que tem a 
seguinte estrutura: 
(1) Se a hipótese x é verdadeira, tem de ocorrer o fenômeno y (tanto a hipótese 
quanto o fenômeno são altamente surpreendentes ou improváveis à luz dos 
conhecimentos disponíveis). 
Com base neste primeiro passo dedutivo, montamos um teste para averiguar se o 
fenômeno y ocorre, embora se possa esperar, à luz dos conhecimentos disponíveis, 
que ele não vá ocorrer. 
(2) Se o fenômeno y não ocorre (como era de se esperar), a hipótese x é falsa – a 
hipótese é refutada. 
 
Como dito acima, o teste tem o caráter de uma “tentativa de refutação”. 
Entretanto, se o fenômeno ocorre, ao contrário do que se esperava, a hipótese passou 
no teste (na tentativa de refutação), e com isso foi “corroborada” – e para Popper 
dizer isso é diferente de dizer que a hipótese foi “confirmada” ou “verificada” 
40 
 
(“corroboração” é diferente de “confirmação” e “verificação”, como destacaremos 
logo a seguir). 
 
- Para Popper, uma boa hipótese científica apresenta a seguinte característica: à luz 
dos conhecimentos e expectativas disponíveis, considera-se baixa a probabilidade de o 
fenômeno y (mencionado acima) ocorrer. Levando-se em conta esta característica, o 
teste de uma boa hipótese tem o caráter de uma “tentativa de refutação”; em outras 
palavras, o teste caracteriza-se pelo fato de que se considera alto o risco de a hipótese 
ser refutada por uma observação contrária. Se isto não ocorre, há um “fracasso na 
tentativa de refutação”, e para Popper este fracasso equivale a uma boa justificação 
(ainda que essencialmente temporária) da hipótese em questão. 
O que é uma “boa” hipótese para Popper? Uma hipótese em princípio improvável que 
passa com êxito por “tentativas de refutação”. 
 
•O método da ciência é o método hipotético-dedutivo. A dedução é importante como 
método de explicitação de conseqüências logicamente necessárias da hipótese, que 
possam ser confrontadas com observações registradas em testes montados a partir da 
hipótese e da dedução das conseqüências que esta necessariamente implica. 
 
•Para Popper, corroboração não equivale a uma confirmação da hipótese, no sentido 
de um aumento da probabilidade de ela ser verdadeira. Corroboração indica apenas o 
desempenho da hipótese nos testes realizados até o presente; não pretende indicar 
probabilidade de êxito futuro. “O termo corroboração é preferível à confirmação, para 
não dar a idéia de que as hipóteses ou leis são verdadeiras, ou se tornam cada vez 
mais prováveis à medida que passam pelos testes. A corroboração é uma medida que 
avalia apenas o sucesso passado de uma teoria e não diz nada acerca de seu 
desempenho futuro” (Fernando Gewandsznajder, “O Método nas Ciências Naturais e 
Sociais”, Parte I, p.15 – Ed. Pioneira). 
 
•Para Popper, o objetivo do cientista não deve ser formular hipóteses com alto grau de 
probabilidade, mas formular hipóteses com alto grau de “refutabilidade” 
(probabilidade de ser refutada, avaliada à luz dos conhecimentos e expectativas 
disponíveis). Hipóteses com alto grau de probabilidade são teoricamente 
desinteressantes, ao contrário de hipóteses com alto grau de refutabilidade. Quanto 
maior a refutabilidade de uma hipótese, maior a corroboração que ela ganha ao passar 
nos testes em que corre alto risco de ser refutada. 
Popper rejeita a noção de probabilidade como indicativa da qualidade das hipóteses 
científicas. 
 
- Além disso, há uma assimetria entre a verificação (indutiva e probabilística) 
defendida pelos empiristas e a refutação/corroboração por ele visada. A verificação 
exige que se colete o maior número possível de observações confirmadoras, ao passo 
que a refutação se realiza por meio de uma única observação refutadora – e a 
corroboração é dada por uma única observação surpreendentemente favorável. 
 
41 
 
•Para Popper, a diferença entre o ideal da verificação (ligado ao raciocínio indutivo) e 
o ideal da refutabilidade/corroboração (ligado ao raciocínio dedutivo) exprime uma 
diferença na atitude do cientista diante da natureza. 
O método indutivo exprime o desejo de conformar-se fielmente ao que a natureza se 
presta a dizer ou informar, ao passo que o método hipotético-dedutivo exprime uma 
atitude de “forçar” a natureza a responder às perguntas que o cientista 
soberanamente lhe faz. 
Pode-se afirmar que, ao ser contrastado com o método indutivo-probabilístico 
defendido pelo empirismo lógico, o método hipotético-dedutivo exprime a primazia do 
sujeito na relação sujeito-objeto. 
 
Para Popper, o grande cientista abre um novo horizonte de observações relevantes. A 
partir de suas hipóteses os pesquisadores começam a prestar atenção (“observar”) em 
fenômenos que antes eram totalmente negligenciados ou ignorados. 
42 
 
Tópico 9: Reflexões sobre os limites e as condições de aplicação do método hipotético-
dedutivo (Popper). 
 
- Para termos maior clareza quanto à natureza e às condições de aplicação dos 
métodos dedutivo e indutivo analisados na última aula, é importante estabelecermos 
duas distinções básicas. 
 
- Em primeiro lugar, é importante estabelecermos uma distinção entre a imagem que 
se tem (ou pode ter) da realidade e a imagem que se tem do nosso conhecimento da 
realidade, ou das possibilidades e limites do nosso conhecimento da realidade. 
 
- Como dito acima, o desenvolvimento da Física ao longo do século XIX levou à 
constatação de que os fenômenos físicos são muito mais complexos do que se pensava 
nos primeiros momentos da mecânica newtoniana. A partir de meados do século XIX, 
os físicos passam a admitir que a realidade comporta um número de variáveis, 
condições e circunstâncias infinitamente maior do que aquele que era focalizado na 
prática científica dos primeiros momentos da mecânica clássica. Gostaríamos de 
analisar os efeitos desta constatação para as duas imagens acima distinguidas. 
 
- No que diz respeito à imagem de realidade, tal constatação não chegou a acarretar 
um abandono completo da imagem determinística da realidade, segundo a qual os 
eventos individuais da realidade estão encadeados por relações de causalidade de 
caráter determinístico, ou seja, relações que fazem com que cada evento seja 
rigorosamente determinado por condições antecedentes, e nesse sentido necessário. 
Embora a questão seja muito discutida, ainda é possível hoje em dia manter uma 
imagem determinística da realidade, e nós nesse momento vamos supor que ela seja 
aceita. 
 
- No que diz respeito à imagem do nosso conhecimento da realidade, entretanto, a 
admissão da complexidade acarretou uma modificação importante. Abandonou-se a 
imagem do conhecimento como um conjunto de enunciados certos e infalíveis. Mais 
precisamente, abandonou-se o ideal de um conhecimento certo e infalível. Como 
afirmado acima, passa-se a admitir que a causa da falibilidade do nosso conhecimento 
não está apenas na falibilidade dos cientistas, mas na complexidade da própria 
realidade. Isso significa que a ideia de infalibilidade não deve ser mantida sequer como 
um ideal regulador, mas deve ser totalmente abandonada. 
Ao admitir que a realidade é infinitamente complexa, o cientista tem de admitir que as 
hipóteses e modelos que ele propõe sempre podem esbarrar numa variável ou 
condição negligenciada ou desconhecida. Por mais genial, cauteloso e aplicado que 
seja o cientista (ou grupo de cientistas), não se pode mais alimentar o ideal de elaborar 
um
modelo teórico capaz de “corresponder” integralmente a todas as circunstâncias e 
condições da própria realidade. 
- Em outras palavras, impôs-se uma imagem falibilista do nosso conhecimento da 
realidade. 
 
43 
 
- A segunda distinção básica que precisamos estabelecer é “interna” à imagem 
falibilista do nosso conhecimento da realidade. No âmbito dessa imagem falibilista, é 
possível distinguir duas imagens dos modelos teóricos com que os cientistas procuram 
lidar com a realidade por eles investigada: uma imagem determinista dos modelos 
teóricos e uma imagem probabilística e estatística dos modelos teóricos. 
 
- Numa imagem determinista do modelo teórico, supõe-se e espera-se que o modelo 
desde o início abarque as relações, condições e variáveis que são essenciais para 
previsões suficientemente precisas e bem sucedidas. Nesse caso, fenômenos que não 
se encaixam no modelo abalam o modelo como um todo. 
- O método hipotético-dedutivo defendido por Popper associa-se a esta imagem 
determinista dos modelos teóricos. 
 
- Numa imagem probabilística e estatística dos modelos teóricos, admite-se a 
inevitabilidade e até conveniência de ajustes tópicos nas correlações grosso modo 
causais apresentadas no modelo. O modelo desde o início se presta a revisões 
pontuais acarretadas por novas observações. 
- A metodologia indutiva associada ao empirismo em geral combina melhor com esta 
imagem probabilístico-estatística dos modelos teóricos. 
 
- A partir de agora, vamos desenvolver e esclarecer essas imagens por meio da 
discussão de alguns exemplos de uso das noções de relação causal e lei causal. 
 
- As noções de causa, relação causal e lei causal dizem respeito às relações entre 
eventos (ocorrências) da realidade. Nós podemos usar essas noções em dois tipos de 
contexto: contextos regidos por uma imagem determinista do modelo teórico, e 
contextos regidos por uma imagem probabilístico-estatística do modelo teórico. 
- Para abreviar a terminologia, vamos chamar os primeiros contextos de “contextos 
deterministas”, e os segundos de “contextos probabilísticos”. 
 
- Como sugerido acima, a diferença entre esses dois tipos de contexto não remete à 
realidade que se está pretendendo conhecer, mas à nossa pretensão de 
conhecimento: tem a ver com o tipo de conhecimento que nos sentimos em condições 
de ter e expressar, ou com o tipo de conhecimento que estamos pretendendo 
expressar. Tem a ver com os limites que estamos reconhecendo em nosso 
conhecimento da realidade. 
- De modo mais preciso, a diferença tem a ver com o tipo de modelo teórico que 
usamos para tentar conhecer a realidade. 
 
- Contextos deterministas são aqueles nos quais temos pretensões mais ousadas de 
conhecer as relações causais entre os eventos da realidade. Contextos probabilísticos 
são aqueles nos quais somos mais modestos em nossa pretensão de conhecer tais 
relações. 
 
44 
 
- Contextos deterministas são aqueles nos quais acreditamos poder conhecer relações 
causais necessárias entre eventos individuais da realidade – por exemplo, o evento 
“aquecimento da água a 100°C” (causa) e o evento “ebulição da água” (efeito). 
 
- Neste tipo de contexto, se nós acreditamos poder conhecer uma relação causal 
necessária e determinada entre eventos individuais da realidade, é porque 
acreditamos que as relações entre os eventos individuais estão subordinadas a uma 
relação mais geral ou universal, igualmente necessária e determinada, entre tipos de 
evento. Em outras palavras, acreditamos que a relação entre os eventos individuais 
está subordinada a uma lei causal universal (por exemplo, “Sempre que a água atinge a 
temperatura de 100°C, ela entra em ebulição”). 
 
- Contextos probabilísticos são aqueles nos quais reconhecemos que o máximo que 
podemos conhecer são correlações probabilísticas entre eventos individuais, ou 
correlações estatísticas entre tipos de evento. Se pensarmos, por exemplo, na relação 
entre o evento “uso do flúor” e o evento “aparecimento da cárie dentária”, admitimos 
que não podemos conhecer uma relação necessária e determinada entre esses 
eventos, quer sejam tomados como eventos individuais quer como tipos de evento. 
 
- No plano dos eventos individuais, admitimos que a relação entre eles depende de 
uma série de circunstâncias e variáveis peculiares a cada indivíduo (disposições 
genéticas, reações endócrinas, ocorrências no plano da alimentação, etc.), algumas das 
quais talvez não sejamos capazes de conhecer ou ponderar. 
 
- Entretanto, ainda que não possamos conhecer nenhuma relação necessária e 
determinada entre os eventos individualmente tomados, no plano mais geral dos tipos 
de evento talvez possamos conhecer uma relação relativamente indeterminada – a 
saber, a frequência relativa do tipo de evento “cárie dentária” num conjunto de seres 
humanos que usam flúor. Ao compararmos esta relação com a relação que se verifica 
num conjunto de seres humanos que não usam flúor, e ao verificarmos que a 
frequência da cárie no primeiro conjunto é significativamente menor do que no 
segundo, podemos dizer que o uso do flúor “causa” uma diminuição da incidência da 
cárie dentária. 
 
- No plano dos eventos individuais, não se pensa aqui numa relação necessária e 
determinada, mas meramente probabilística: para qualquer indivíduo, o uso do flúor 
diminui a probabilidade da ocorrência do fenômeno cárie dentária. No plano dos tipos 
de evento, não se pensa aqui numa lei causal em sentido estrito, mas numa correlação 
meramente estatística. 
 
- Dois esclarecimentos são importantes. 
- Em primeiro lugar, a correlação causal de caráter estatístico encontrada numa 
população como um todo não pode ser automaticamente transferida para qualquer 
indivíduo em particular, na medida em que, para qualquer indivíduo particular, a 
relação entre os eventos em questão depende de uma série de circunstâncias e 
condições peculiares à sua situação específica. Com a afirmação de uma relação causal 
45 
 
de caráter estatístico não pretendemos exprimir nenhuma relação peculiar a 
determinado indivíduo. 
 
- Suponhamos que a investigação centrada em certa população permita afirmar que o 
uso do flúor “causa” uma queda de 80% na frequência da cárie dentária neste 
conjunto de pessoas. Para qualquer indivíduo em particular, ou para qualquer ser 
humano tomado individualmente, esta afirmação não equivale à afirmação de que, se 
este indivíduo usar flúor, a probabilidade de ele apresentar cárie cai exatamente 80%. 
Podemos dizer que o uso do flúor produz neste indivíduo uma forte tendência à 
diminuição da incidência da cárie. Mas a relação entre “uso do flúor” e “ocorrência de 
cárie” vai depender neste caso de variáveis e circunstâncias peculiares a este indivíduo 
específico. 
 
- Segundo esclarecimento, que complementa o primeiro. 
- Ao admitirmos que não podemos conhecer nenhuma relação necessária e 
determinada entre os eventos em questão, não necessariamente estamos querendo 
dizer que a relação entre eles é em si mesma indeterminada. Ao contrário, é 
perfeitamente possível admitir que, para qualquer indivíduo em particular, a 
ocorrência ou não ocorrência da cárie dentária é rigorosamente determinada pela 
série de circunstâncias e condições que lhe são peculiares. O uso ou não do flúor é 
apenas uma dessas circunstâncias, insuficiente para determinar qualquer efeito 
específico. O uso do flúor cria uma tendência à não ocorrência da cárie dentária, mas 
não determina esta não ocorrência. Entretanto, se fôssemos capazes de conhecer e 
ponderar toda a série de circunstâncias próprias de certo indivíduo, seríamos capazes 
de mostrar de que modo o uso do flúor se liga a todas as demais circunstâncias numa 
relação necessária e determinada com a ocorrência ou não ocorrência da cárie 
dentária. 
 
- Para aprimorar este segundo esclarecimento, podemos compará-lo ao exemplo do
lançamento de um dado. Embora a questão seja muito discutida, ainda é possível 
afirmar hoje em dia que, se pudéssemos conhecer toda a série de condições, variáveis 
e circunstâncias envolvidas num lançamento de dado individualmente tomado 
(posição inicial exata dos componentes materiais microscópicos, movimento exato dos 
dedos em relação a tais componentes, movimentos exatos do ar, ou coisas desse tipo), 
poderíamos conhecer uma relação necessária e determinada entre o evento 
“lançamento do dado” e o evento “posição final do dado no número 5”, ou seja, 
poderíamos prever sua trajetória e o número em que ele finalmente para. 
 
- Entretanto, como não podemos conhecer todas as condições e circunstâncias 
causalmente relevantes na trajetória individual do dado, recorremos à probabilidade. 
Neste caso, é mais comum recorrermos a um cálculo a priori, ou seja, logicamente 
independente da observação de grande número de lançamentos do dado. Com base 
num cálculo a priori, dizemos que a probabilidade de cair qualquer número 
determinado, inclusive “5”, é 1/6. 
 
46 
 
- Podemos agora retornar à diferença entre contextos deterministas e contextos 
probabilísticos de aplicação da noção de causa. Como sugerido acima, podemos 
afirmar que essa diferença não consiste na aceitação ou questionamento da tese de 
que as relações entre os eventos individuais da realidade são relações necessárias e 
determinadas. Podemos supor que em ambos os contextos esta tese seja aceita. 
 
- Contextos probabilísticos são aqueles nos quais admitimos que não somos capazes de 
abarcar e levar na devida conta todas as variáveis e circunstâncias constitutivas das 
relações necessárias e determinadas existentes entre eventos individuais da realidade. 
São aqueles nos quais somos por assim dizer menos confiantes no nosso poder de 
conhecer toda a realidade, ou a realidade em toda sua complexidade. Ou ainda: menos 
confiantes na capacidade de nossos modelos teóricos incluírem todas as circunstâncias 
e condições que são essenciais para as relações necessárias e determinadas entre 
eventos individuais da realidade. 
 
- Contextos deterministas, em contrapartida, são aqueles nos quais acreditamos poder 
formular um modelo teórico que abranja todas as circunstâncias e condições 
essenciais para as relações necessárias e determinadas entre eventos individuais da 
realidade. Aqueles nos quais nos sentimos mais confiantes no poder de nossos 
modelos teóricos: por acreditarmos que eles incluem todas as circunstâncias e 
condições causalmente relevantes, acreditamos que eles permitem previsões exatas e 
determinadas da ocorrência ou não ocorrência de eventos específicos da realidade. 
 
- Podemos utilizar a distinção entre esses contextos para efetuar uma análise das 
diferentes espécies de ciências; uma análise, por exemplo, de certas diferenças entre 
física, biologia/medicina e ciências sociais. 
 
- Ao referirmos a distinção entre contextos deterministas e contextos probabilísticos à 
menor ou maior intromissão da complexidade essencial da realidade na confiança que 
depositamos no poder preditivo e cognitivo de nossos modelos teóricos, tornamos 
possível afirmar que, em comparação com as ciências biológico-médicas, e com as 
ciências sociais, a física teórica desenvolve-se tipicamente num contexto determinista. 
 
- Isso significa que, em comparação com os cientistas dessas outras áreas, os físicos 
ousam acreditar mais na possibilidade de seus modelos teóricos desde o início 
abrangerem, de algum modo, todas as condições e variáveis que são essenciais para as 
relações necessárias e determinadas existentes entre os eventos individuais da 
realidade. 
 
- Tomemos o exemplo da relação causal entre os eventos (individuais) “aquecimento 
da água a 100°C” e “ebulição da água”. No contexto determinista típico da física, 
acredita-se que a relação entre esses eventos individuais está subordinada a uma Lei 
causal de caráter geral, algo do tipo “sempre que a água atinge a temperatura de 
100°C, ela entra em ebulição”. 
 
47 
 
- Na verdade, nós sabemos que nem sempre é assim. Em pressões atmosféricas mais 
baixas do que a do nível do mar, a água ferve a temperaturas inferiores a 100°C. No 
contexto determinista da física, entretanto, a pretensão do modelo teórico é incluir 
essa circunstância nas condições de aplicação das leis causais gerais. Não se aceita que 
esta circunstância seja integrada sob a forma de um ajuste meramente pontual ou 
tópico, uma espécie de exceção reconhecida da regra. Ao contrário, a circunstância é 
integrada na medida em que se pensa a lei causal como uma lei que relaciona a 
ebulição não apenas à temperatura, mas também à pressão. 
 
- E a pretensão da física teórica é que a complexidade da realidade possa ser 
submetida a um modelo teórico capaz de incluir desde o início, e de forma coerente, 
todas as variáveis e condições que são essenciais para previsões suficientemente 
precisas e bem sucedidas dos eventos cientificamente relevantes. 
 
- Em contrapartida, em comparação com a física teórica, tanto as ciências biológico-
médicas quanto as ciências sociais desenvolvem-se tipicamente num contexto 
probabilístico-estatístico. Os cientistas destas áreas tendem a aceitar mais a 
inevitabilidade dos enunciados teóricos sofrerem ajustes e acréscimos de caráter 
tópico, referidos às peculiaridades de situações ou casos mais específicos. 
 
- Por exemplo: mesmo um enunciado biológico mais próximo de uma lei causal em 
sentido estrito, como o enunciado “sempre que ocorre envenenamento com uma dose 
X de arsênico, o ser humano morre”, - mesmo em relação a um enunciado deste tipo 
admite-se a possibilidade de que, no caso específico de uma pessoa em particular, não 
ocorra a morte, em virtude da influência de variáveis e condições peculiares a este 
indivíduo específico. 
 
- E o que dizer das correlações causais sugeridas pelos cientistas sociais? Talvez seja 
possível propor, por exemplo, uma relação causal entre a ocorrência “sentimento de 
ser vítima de uma injustiça” (causa) e a ocorrência “atitude agressiva” (efeito). 
Entretanto, mesmo numa população pequena e delimitada, esse tipo de relação causal 
só pode assumir a forma de uma correlação estatística altamente suscetível de 
variações e ajustes pontuais, dependentes das circunstâncias individuais. 
 
- A admissão da inevitabilidade de ajustes e acréscimos de caráter mais tópico significa 
que, em contextos probabilísticos, tanto a elaboração do modelo teórico quanto os 
testes e aprimoramentos do mesmo enquadram-se melhor no método indutivo 
defendido pelo empirismo em geral. Ajustes e acréscimos continuamente efetuados a 
partir das observações de situações específicas são típicos da metodologia indutiva 
defendida pelos empiristas em geral. 
 
- Por outro lado, em contextos deterministas, tanto a elaboração do modelo teórico 
quanto o teste do mesmo enquadram-se melhor no método hipotético-dedutivo 
proposto por Karl Popper. 
 
48 
 
- Tópico 10: Positivismo e Construtivismo de Thomas Kuhn. 
 
 
- Positivismo: empirismo lógico E racionalismo crítico de Popper. 
- Construtivismo: Thomas Kuhn (“A estrutura das revoluções científicas”, 1962). 
 
- O construtivismo é um movimento muito mais abrangente do que a obra de Kuhn. 
Ele inclui a tradição fenomenológico-hermenêutica ligada às obras de Husserl e 
Heidegger, e também as teorias que, na esteira do esgotamento do empirismo lógico 
defendido no Círculo de Viena, elaboram a filosofia analítica da linguagem do ponto de 
vista da cultura, da história e das relações pragmáticas entre os usuários da linguagem. 
- O filósofo Jürgen Habermas, um dos teóricos nos quais mais nos inspiramos em nosso 
curso, pode ser considerado um expoente contemporâneo desse movimento. 
- Entretanto, tendo em vista os propósitos dessa primeira parte do nosso curso, vamos 
trabalhar
mais com a obra e conceitos de Thomas Kuhn. 
 
- De acordo com Kuhn, apesar das inegáveis diferenças entre o empirismo lógico e o 
racionalismo crítico de Popper, há entre eles uma semelhança mais relevante do que 
as diferenças, que permite juntá-los numa perspectiva única, o positivismo. 
 
- O positivismo representa uma continuação da tradição empirista de conceituação da 
relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, com sua ênfase na primazia do 
objeto. Da mesma forma, o construtivismo representa uma retomada e atualização 
das características básicas da tradição racionalista/idealista, com sua ênfase na 
primazia do sujeito; o que muda é o modo de conceituar essa primazia. 
 
- Quando o racionalismo crítico de Popper é contrastado apenas com o empirismo 
lógico, sobressaem características que vinculam Popper à tradição racionalista / 
idealista, com sua ênfase na primazia do sujeito. 
- Entretanto, quando Popper é contrastado com as teses centrais da teoria 
construtivista, sobressaem características que o aproximam da tradição empirista de 
conceituação da relação sujeito-objeto, com sua ênfase na primazia do objeto. 
 
- A esta aproximação entre Popper e o empirismo lógico daremos o nome de 
“positivismo”. 
 
- Para Kuhn, o que une o racionalismo crítico (Popper) ao empirismo lógico é a crença 
em observações não-interpretadas da realidade, ou a crença de que este tipo de 
observação constitui a base ou fundamento do procedimento de avaliação e 
justificação das hipóteses científicas. 
 
- De acordo com os construtivistas, no quadro teórico positivista as observações não-
interpretadas são tomadas como observações da realidade tal como é em si mesma, 
independentemente de qualquer “óculos” ou interpretação oriunda dos sujeitos do 
conhecimento. Observações não-interpretadas equivalem a um acesso “imediato” 
(sem a mediação de qualquer óculos ou interpretação) à realidade em si mesma. 
49 
 
- De acordo com os construtivistas, por acreditarem que observações não-
interpretadas equivalem a um acesso imediato à realidade em si mesma, os 
positivistas acreditam que elas podem ser tomadas como critérios ou indícios da 
“correspondência” das hipóteses e teorias à realidade em si mesma. 
 
- De acordo com os construtivistas, portanto, os positivistas acreditam que devemos 
trabalhar com uma concepção “correspondentista” da verdade, ou da validade 
cognitiva de hipóteses e teorias. Avaliar a validade cognitiva das hipóteses é avaliar se 
elas correspondem ou não à realidade em si mesma. Para fazer esta avaliação, 
devemos recorrer a observações não-interpretadas, tomadas como indícios desta 
correspondência. 
 
- Para Kuhn, a diferença entre Popper e os empiristas lógicos diz respeito apenas ao 
modo como posicionam as observações não-interpretadas (nas quais crêem) no 
quadro dos respectivos procedimentos de justificação. 
 
Em Popper, as observações não-interpretadas comparecem no quadro de um 
procedimento em que o cientista “obriga” a realidade a responder às perguntas que 
ele ousadamente lhe faz; trata-se de um procedimento em que o cientista submete 
sua hipótese ou teoria a um teste altamente arriscado (justificação pelo método 
hipotético-dedutivo). 
Em Popper, observações não-interpretadas favoráveis são observações 
“corroboradoras”, ou seja, observações que atestam o fracasso de uma “tentativa 
(expectativa) de refutação”. 
 
No empirismo lógico, em contrapartida, as observações não-interpretadas 
comparecem no quadro de um procedimento em que o cientista acumula observações 
confirmadoras de sua hipótese ou teoria, num esforço de verificação (confirmação) 
gradativa e crescente da mesma (justificação pelo método indutivo do cálculo de 
probabilidade). 
No empirismo lógico, observações não-interpretadas favoráveis são observações 
“confirmadoras”, ou seja, observações que elevam a probabilidade de a hipótese ou 
teoria ser verdadeira (corresponder à natureza). 
 
- Para os construtivistas, ao adotarem a crença de que observações não-interpretadas 
da realidade constituem a base do procedimento de avaliação e justificação das 
hipóteses, empirismo lógico e racionalismo crítico concedem primazia ao pólo “objeto” 
da relação sujeito-objeto. Nessa perspectiva “objetivista” ou “positivista”, a boa 
hipótese científica é aquela que corresponde à realidade “em si mesma” (totalmente 
independente do sujeito e dos esquemas conceituais ou interpretativos do sujeito), e 
as observações não-interpretadas desempenham a função de critério para se avaliar 
tal correspondência. Observações não-interpretadas favoráveis são tomadas como 
indícios da correspondência da hipótese à realidade em si mesma, quer sejam 
conceituadas em termos de observações “corroborantes” (ou não refutadoras), como 
em Popper, quer em termos de observações “verificadoras ou confirmadoras”, como 
no empirismo lógico. 
50 
 
 
- Tese fundamental do construtivismo de Thomas Kuhn: não há observações não-
interpretadas da realidade; toda observação envolve um componente interpretativo, 
vinculado ao “paradigma” em que trabalha (e vive) o sujeito do conhecimento. 
 
- Paradigma: “visão de mundo” adotada em uma determinada comunidade de usuários 
da linguagem, ou seja, adotada numa determinada “cultura”. 
 
Paradigma: totalidade linguisticamente estruturada de termos, conceitos, princípios 
básicos de explicação do mundo, princípios de avaliação dos dados observados 
(exprimindo interesses e valores). Visão de mundo adotada na prática lingüística de 
uma determinada comunidade de sujeitos que produzem conhecimento em geral e 
conhecimento científico em particular. 
 
- Para Kuhn, não há observações não-interpretadas da realidade: o que percebemos 
não é a realidade “em si mesma”, mas a realidade visualizada, nomeada, classificada, 
organizada e reconhecida segundo a totalidade lingüístico-conceitual na qual estamos 
imersos (ou dentro da qual vivemos). 
- Para os construtivistas, “ver” é “reconhecer”, ou seja, reconhecer o dado como caso 
de um conceito (uma regra de classificação e organização dos dados). 
 
- Para os construtivistas, não podemos “sair” da esfera de nossa visão de mundo ou 
paradigma (não podemos “tirar o óculos” com que vemos a realidade) para comparar 
nossas hipóteses e teorias com a realidade “em si mesma”. 
Podemos trocar de óculos, ou melhor, efetuar ajustes em nossos óculos, mas não 
podemos ver as coisas sem (algum) óculos (estrutura linguístico-conceitual). 
 
- Para os construtivistas, a totalidade (ou “rede”) dos conceitos e princípios tem 
prioridade lógica sobre os enunciados e conceitos mais específicos ou particulares: só 
compreendemos o real significado de conceitos ou enunciados específicos à luz da 
totalidade conceitual e explicativa de que eles fazem parte. É na rede explicativa como 
um todo que nos situamos para aplicar os conceitos e princípios que fazem parte da 
mesma (É por isso que o construtivismo é muitas vezes chamado de “holismo”). 
 
- No contexto da prática científica, o peso (ou relevância) de uma observação sempre é 
definido a partir do paradigma no qual trabalha o cientista. Para Kuhn, atribuir um 
determinado peso ou relevância a uma observação é uma forma de interpretá-la. 
 
- Para Kuhn, ao contrário do que pensa Popper, uma observação desfavorável a uma 
teoria nunca funciona como refutação cabal da mesma. No contexto do paradigma em 
que a teoria se encaixa, a observação desfavorável recebe uma interpretação por 
assim dizer acomodadora. A observação é tomada como (comparativamente) 
irrelevante, ou seja, de menos peso do que outras observações, favoráveis à teoria. 
Ou, no máximo, é tomada como indício de que os cientistas ainda não exploraram 
todo o potencial explicativo da teoria em questão, de que é preciso trabalhar mais em 
cima da teoria. 
51 
 
Em outras palavras, na perspectiva desta interpretação
acomodadora, a observação 
desfavorável aparece como mera “anomalia” (conceito empregado por Kuhn). 
 
- A realidade sempre nos aparece pelas lentes ou óculos de nosso paradigma; não 
podemos ver a realidade “em si mesma”, ou ter acesso à realidade em si mesma. A 
realidade sempre é a realidade “para nós”. 
 
- O objeto do conhecimento sempre é construído pelos sujeitos do conhecimento, à 
medida que estes aplicam os recursos lingüísticos, conceituais e interpretativos 
próprios do paradigma no qual vivem e trabalham. 
 
- É por isso que a abordagem de Thomas Kuhn representa uma retomada da tradição 
“construtivista” do racionalismo/idealismo clássicos, com sua ênfase na primazia do 
pólo “sujeito” na relação sujeito-objeto. 
 
- Há uma diferença fundamental, porém: no construtivismo de Thomas Kuhn, a 
estrutura organizadora que o sujeito projeta sobre a realidade a ser conhecida não é 
uma estrutura essencialmente mental (individual), inata e a-histórica (invariável no 
tempo), como ocorria no idealismo kantiano, mas, sim, uma estrutura essencialmente 
lingüística (intersubjetiva), cultural e histórica (variando no decorrer da história). É 
uma estrutura mais “interpretativa” do que “organizadora”. 
 
Substituição da concepção “correspondentista” da verdade por concepções 
“epistêmicas”. 
 
- Para os partidários do amplo movimento filosófico do construtivismo, a abordagem 
positivista trabalha com uma concepção equivocada da verdade, a concepção 
“correspondentista”, segundo a qual a verdade deve ser pensada em termos de 
correspondência dos enunciados à realidade em si mesma. 
 
- Para os construtivistas, não devemos trabalhar com esta concepção 
correspondentista, porque não dispomos de critérios para operacionaliza-la. Na 
ausência de observações não-interpretadas, ou seja, na ausência de um acesso 
imediato à realidade em si mesma, não temos nenhum critério ou indício da 
correspondência, o que significa que não podemos utilizar a concepção 
correspondentista. 
 
- Para os construtivistas, devemos trabalhar com uma concepção “epistêmica” da 
verdade: a verdade não deve ser entendida em termos de correspondência do 
enunciado ou teoria à realidade “em si mesma”, mas em termos de maior ou menor 
adequação do enunciado ou teoria a critérios cognitivos (epistêmicos) internos à 
prática científica dos sujeitos. 
 
- Variando o âmbito ou contexto da prática científica, os critérios epistêmicos podem 
variar. Pode haver diferentes concepções epistêmicas da validade das teorias. 
 
52 
 
- Os construtivistas muitas vezes adotam a seguinte tese. No âmbito das ciências da 
natureza, os critérios epistêmicos estão fundados num interesse básico, subjacente à 
prática das ciências da natureza: o interesse no êxito ou sucesso na lida com uma 
realidade que não está ao nosso inteiro dispor. 
 
- Este interesse no êxito da lida com a realidade natural desdobra-se nos seguintes 
interesses: 
a) Interesse em prever o maior número possível de ocorrências e eventos desta 
realidade. Interesse em previsões exatas do maior número possível de ocorrências. 
b) Interesse em exercer o maior controle ou domínio possível sobre as ocorrências e 
eventos desta realidade. 
 
- Podem-se distinguir pelo menos três concepções epistêmicas da verdade. Estas 
concepções não são incompatíveis entre si, elas muitas vezes se misturam. As 
diferenças entre elas têm mais a ver com questões de ênfase. 
 
1ª) Concepção que enfatiza a importância da coerência de qualquer hipótese ou teoria 
mais específica com o quadro teórico mais abrangente preferido pela comunidade 
científica. 
Concepção que enfatiza também a importância de se ter um quadro teórico capaz de 
integrar de forma conceitualmente coerente o maior número e variedade possível de 
informações sobre a natureza. Importância de um quadro teórico o mais abrangente 
possível (com maior poder de explicação), e coerente. 
Concepção “coerentista” da verdade. 
 
2ª) Concepção que enfatiza a importância da justificabilidade e aceitabilidade de certa 
hipótese ou teoria num contexto ideal de discussão científica, ou seja, um contexto 
que incorpore o maior número possível de modelos teóricos, de informações sobre a 
realidade e de critérios de interpretação e ponderação destas informações. 
Concepção que enfatiza a importância do acordo ou consenso dos cientistas nesse 
contexto ideal de discussão científica. 
Concepção “consensual” da verdade. 
 
3ª) Concepção “pragmatista” da verdade, que enfatiza a importância da utilidade do 
modelo teórico para a previsão, controle e domínio dos eventos e processos naturais, 
tendo em vista a realização dos propósitos ou preferências dos seres humanos. 
53 
 
- Tópico 11: Positivismo e Construtivismo nas esferas da Teoria da Sociedade e da 
Teoria das Organizações. 
 
- Faremos agora uma primeira aproximação das imagens até aqui expostas com a 
Teoria da Sociedade e com a Teoria das Organizações. Vamos nos concentrar nas 
imagens positivista e construtivista. 
Lembremos que, no contraste com a abordagem construtivista, o racionalismo crítico 
de Popper fica incluído na imagem positivista. 
 
- Os princípios básicos de nossa exposição são tomados da obra de J. Habermas. Como 
foi dito anteriormente, em nosso curso estamos considerando Habermas como um dos 
principais expoentes da perspectiva construtivista. A exposição que faremos, inclusive 
da imagem positivista da relação sujeito-objeto e seu correlato na campo das ciências 
sociais, será efetuada a partir da perspectiva construtivista delineada na obra de J. 
Habermas. 
 
- O primeiro ponto a ser destacado é o seguinte. As organizações não são objetos 
naturais, mas sociais. Os fenômenos que as constituem não são fenômenos naturais, 
mas fenômenos humanos e sociais. 
 
- As imagens expostas até aqui são imagens da relação entre o sujeito do 
conhecimento (sujeito que produz conhecimento) e o objeto do conhecimento (objeto 
conhecido no conhecimento produzido pelo sujeito). 
Nossa pergunta é: de que modo estas imagens se comportam quando o polo “objeto” 
é constituído por um objeto social, e não natural? 
 
- Comecemos com a imagem positivista da relação sujeito-objeto. 
- A imagem positivista desta relação é caracterizada pela primazia concedida ao polo 
“objeto”. O objeto é tomado como uma realidade totalmente independente das ideias 
e conceitos que os homens (sujeitos do conhecimento) têm sobre ela. 
Além disso, os positivistas supõem que o sujeito (o cientista) tem um acesso imediato 
a esta realidade independente, um acesso constituído por observações puras e 
neutras, depuradas de todo componente interpretativo de caráter meramente 
cultural. 
 
- Assim, no âmbito da imagem positivista, o sujeito (cientista) adota uma atitude 
(perspectiva) de mero observador de um objeto externo e independente, ou seja, 
externo e independente em relação aos seus (do sujeito) conceitos, aos seus princípios 
de explicação e compreensão, aos seus interesses de conhecimento. 
- Cabe ao sujeito (cientista) reproduzir este objeto independente em descrições 
neutras e exatas. 
 
- De que modo esta imagem se comporta quando o “objeto” é “social”, ou seja, 
quando o objeto investigado são homens, relações e interações humanas, grupos 
humanos, sociedades? 
 
54 
 
- A postura de mero observador tem nesse caso os seguintes efeitos. 
 
- Há uma desvalorização das ideias e modos de pensar conscientemente adotados 
pelos seres humanos investigados pelo sujeito-cientista. 
O cientista positivista não nega que os homens que ele investiga têm ideias e 
concepções que eles usam em suas vidas. Mas ele trata essas ideias como fenômenos 
derivados (secundários), de algum modo subordinados a condições, estruturas e 
processos mais profundos ou fundamentais, e de caráter “objetivo”, quer dizer, 
independentes das ideias que aparecem no nível “derivado”
da consciência. 
 
- Assim, a principal consequência da imagem positivista da relação sujeito-objeto é 
uma imagem positivista do objeto “sociedade”. 
No âmbito dessa imagem, os componentes essenciais do objeto “sociedade” não são 
as ideias e modos de pensar conscientemente adotados pelos homens que vivem em 
sociedade, mas são, sim, estruturas e processos “objetivos”, independentes e 
prioritários em relação às ideias e modos de pensar que ocupam a consciência dos 
seres humanos. 
 
- O cientista positivista não nega que os homens que ele investiga produzem certo tipo 
de conhecimento sobre o mundo em que vivem, e que eles usam esse conhecimento 
nas questões e decisões que têm de enfrentar em suas vidas. 
- Mas ele estabelece uma distinção radical e essencial entre o conhecimento que ele 
(cientista) produz, o conhecimento propriamente científico, e este conhecimento 
“ingênuo” que os homens cotidianamente usam em suas vidas. Ele trata este 
conhecimento ingênuo como algo que está de algum modo subordinado a condições, 
estruturas e processos de caráter “objetivo”, independentes da consciência e das 
ideias que aparecem no nível da consciência. 
 
- Para o cientista positivista, o objeto da ciência social são essas estruturas e processos 
subjacentes e condicionantes (condicionantes dos fenômenos derivados que aparecem 
no nível da consciência humana). 
Ele pretende ter acesso a estas estruturas e processos. Ele assume a postura de 
observador privilegiado desses elementos “objetivos”, seu ideal é revelar tais 
elementos por meio de descrições “científicas”, ou seja, metódicas e exatas. 
 
- E nos âmbitos de aplicação da ciência social, a postura descritiva do observador 
privilegiado associa-se à postura grosso modo manipuladora de quem pretende saber 
como usar e/ou dirigir os modos de pensar e decidir próprios das consciências 
“ingênuas”. 
 
-Passemos agora à imagem construtivista da relação sujeito-objeto. 
 
- A imagem construtivista desta relação caracteriza-se pela ênfase no papel prioritário 
desempenhado pelas ideias e modos de pensar do sujeito que produz conhecimento. 
 
55 
 
- O objeto sempre é tomado como objeto do conhecimento humano, ou seja, objeto 
conhecido no conhecimento produzido por sujeitos. 
Visto dessa maneira, o objeto aparece do seguinte modo: ele é construído pelos 
sujeitos; mais precisamente, ele é construído à medida que os sujeitos aplicam seus 
modos de pensar e compreender aos dados que lhes aparecem. 
 
- No âmbito da imagem construtivista, nega-se a possibilidade de um acesso imediato 
à realidade a ser conhecida. Nosso contato com a realidade sempre é mediado pelo 
óculos linguístico-conceitual através do qual identificamos, reconhecemos e 
entendemos os dados que nos aparecem. 
 
- O teórico construtivista aplica essa tese inclusive aos sujeitos-cientistas, inclusive a 
ele próprio. 
 
- Para o teórico construtivista, a observação do cientista (de qualquer cientista, 
inclusive ele próprio) não é essencialmente diferente da observação cotidiana do 
homem comum. Ambas são feitas através de algum tipo de “óculos”. E o mesmo 
ocorre com a observação “estética” do artista (ou do amante da beleza da natureza), 
com a observação “sacralizadora” do homem religioso, etc. 
 
- Para o teórico construtivista, todos os homens são em certo sentido “sujeitos de 
conhecimento” – no sentido, a saber, de que todo homem “constrói” objetos de 
conhecimento ao aplicar seu “óculos” linguístico-conceitual-interpretativo aos dados 
que lhe aparecem. 
 
- O teórico construtivista enfatiza que o óculos do cientista da natureza apresenta 
características singulares e marcantes. Este óculos consiste em conceitos e modos de 
ver e explicar de caráter altamente técnico e especializado, bem distintos daqueles 
que são empregados na vida cotidiana. 
- O teórico construtivista enfatiza também que, para os propósitos de previsão e 
domínio dos fenômenos e processos da natureza, o óculos do cientista natural é 
indubitavelmente o melhor. 
 
- Mas o teórico construtivista enfatiza por outro lado a seguinte tese. O propósito de 
construir uma boa vida para os homens que vivem em sociedade não se limita ao 
propósito de previsão e domínio dos processos naturais. 
Embora as competências ou capacidades implicadas na realização deste último 
propósito tenham um papel importante na construção da boa vida em sociedade, elas 
não são as únicas que são importantes, e talvez nem sejam as mais importantes. 
E o propósito fundamental é o propósito de construir uma boa vida para os homens 
que vivem em sociedade. 
 
- Ao enfatizar que o propósito fundamental de toda forma de conhecimento é o de 
construir uma boa vida para os homens que vivem em sociedade, o teórico 
construtivista estabelece uma continuidade entre o trabalho do cientista natural e o 
trabalho do cientista social. 
56 
 
Mais precisamente, ele integra e até mesmo subordina o trabalho do cientista natural 
ao esforço de construção de uma boa vida em sociedade. 
 
- O teórico construtivista focaliza tanto o cientista natural quanto o cientista social 
como participantes desse esforço de construção de uma boa vida para os homens que 
vivem em sociedade. 
No âmbito deste tipo de focalização, o cientista natural aparece como um sujeito que, 
usando um óculos técnico e especializado, pensa e teoriza sobre os dados da natureza, 
tendo em vista o interesse em lidar de forma eficiente e bem sucedida com a natureza 
em geral, com os dados e processos da natureza em geral. 
 
- Já o cientista social aparece como um sujeito que, usando um óculos mais reflexivo (e 
nesse sentido filosófico), pensa e discute sobre os óculos que os homens usam (ou 
usavam, no caso de sociedades do passado) quando lidam (lidavam) de um certo modo 
com a natureza; e não apenas com a natureza, mas também com os homens com 
quem convivem. 
 
- No âmbito da imagem construtivista, “usar um certo óculos” equivale a “atribuir 
certo significado ou sentido”, ou “usar determinado padrão de atribuição de sentido”, 
ou ainda “usar determinado padrão de significação”. 
- No âmbito da imagem construtivista, portanto, o cientista social aparece como um 
sujeito que pensa e discute sobre os óculos ou padrões de significação usados nas 
diversas atividades que os homens realizam ao lidarem tanto com a natureza quanto 
uns com os outros. 
 
- Assim, à imagem construtivista da relação sujeito-objeto corresponde ou associa-se 
uma imagem construtivista do objeto “sociedade”. 
No âmbito da imagem construtivista do objeto “sociedade”, os componentes 
essenciais deste tipo de objeto são as ideias e modos de pensar (“óculos”, “padrões de 
significação”) adotados ou empregados pelos homens que vivem em sociedade, nas 
diferentes espécies de atividade que eles realizam ao lidarem tanto com a natureza 
quanto uns com os outros. 
Em outras palavras, no âmbito da imagem construtivista o objeto da ciência social são 
ideias e modos de pensar (padrões de atribuição de significado). 
 
- No âmbito da imagem construtivista, o cientista social não se coloca na posição de 
um observador privilegiado de estruturas e processos “objetivos” (independentes das 
ideias e modos de pensar), mas se coloca na posição de intérprete das ideias e modos 
de pensar que orientam (ou orientavam, no caso de sociedades passadas) as diversas 
atividades realizadas pelos seres humanos, tanto no trato com a natureza quanto no 
trato recíproco de uns com os outros. 
 
- Colocar-se na posição de intérprete equivale a colocar-se na posição de participante 
do mundo humano (atual ou passado; idêntico ou distinto do mundo em que o próprio 
cientista vive) no qual essas ideias e modos de pensar são (eram) utilizados – ele tenta 
57 
 
se colocar na posição de participante das atividades nas quais essas ideias e modos de 
pensar são utilizados. 
 
- Assim, mesmo
quando o cientista social investiga uma sociedade passada, ou uma 
sociedade bem distinta daquela em que ele próprio vive, ele procura colocar-se na 
posição de um participante, ainda que um participante indireto, ou seja, um sujeito 
que, usando um óculos reflexivo-filosófico, que não é o óculos típico da participação 
direta e imediata, compreende o sentido das atividades desenvolvidas à medida 
mesmo que indiretamente participa delas. 
- Correspondentemente, mesmo quando o cientista social investiga a sociedade em 
que ele próprio vive, como cientista ele se coloca na posição de um participante 
indireto, que usa um óculos reflexivo-filosófico, distinto do óculos típico de um 
envolvimento mais direto e irrefletido. 
 
- E nos âmbitos de aplicação da ciência social, a postura participativa do intérprete 
associa-se a uma postura “comunicativo-dialógica”, de participação nas redes 
comunicativas através das quais são reproduzidas e eventualmente modificadas ou 
reconfiguradas as atitudes e modos de pensar constitutivos da sociedade em que o 
cientista-participante vive. 
Trata-se de uma participação marcada por um interesse “crítico”: modificar (“desde 
dentro”, e não por intervenções externas, de um agente externo) padrões de 
significação comparativamente prejudiciais ou desfavoráveis à boa vida em sociedade, 
e construir e efetivar os padrões de significação mais propícios à boa vida em 
sociedade. 
 
 
 
- Com base nas considerações e análises precedentes, pode-se antecipar o seguinte 
esquema geral das diferenças entre abordagens positivistas e abordagens 
construtivistas no campo da teoria das organizações. Este esquema será retomado e 
elaborado com base nas análises efetuadas na segunda parte do curso. 
 
Positivismo na Teoria das Organizações. Construtivismo na Teoria das Organizações. 
Componentes fundamentais da 
realidade organizacional são “objetivos”, 
ou seja, essencialmente independentes 
das competências e atividades reflexivas 
próprias da consciência humana. 
(Exemplos de elementos “objetivos”: 
impulsos e forças da natureza humana; 
necessidades da natureza humana; 
necessidades do “organismo social”; 
padrões “naturais” de cálculo e decisão 
racional). 
Realidade social e organizacional é vista 
como cultura, ou seja, rede de interações 
linguísticas constituída por padrões de 
pensamento (avaliação, interpretação, 
resposta) dependentes ou pelo menos 
vinculados à consciência dos sujeitos. 
(Consciência define-se por certas 
capacidades e atividades: reflexão, 
conscientização, questionamento, adesão 
motivada por razões passíveis de 
conscientização e discussão crítica). 
Ênfase na inserção objetiva dos 
indivíduos num sistema que funciona 
Ênfase na participação dos sujeitos 
(dotados de consciência e linguagem) na 
58 
 
independentemente das capacidades e 
atividades reflexivas próprias da 
consciência humana. (“peça de uma 
máquina”; “célula de um organismo”). 
construção, reprodução e/ou alteração da 
realidade organizacional (ou seja, dos 
padrões de pensamento constitutivos da 
cultura organizacional). 
Ênfase na tese de que o ambiente 
externo é uma realidade objetiva 
(independente, simplesmente dada) à 
qual a organização deve adaptar-se por 
meio de processos eficientes de 
captação e processamento de 
informações. 
Ênfase na tese de que o ambiente externo 
é em boa medida uma projeção do modo 
de pensar e responder (reagir) dominante 
na organização. Nesse sentido, ênfase na 
participação dos membros da organização 
na “construção” do ambiente externo. 
Analisa a política dentro da organização 
em termos de disputas de poder que se 
alimentam e reproduzem de modo 
objetivo, ou seja, independentemente 
das capacidades e atividades reflexivas 
próprias da consciência dos sujeitos. 
Impulsos de poder, relações de poder e 
estruturas de poder são apresentadas 
como elementos aos quais os homens se 
subordinam de modo automático e 
irrefletido, e que eles reproduzem do 
mesmo modo. (Elementos objetivos são 
elementos simplesmente dados, 
impermeáveis à reflexividade da 
consciência do sujeito). Adota-se a tese 
de que em verdade não há o “sujeito”. 
Analisa a política dentro da organização a 
partir dos modos de pensar (interpretações 
e valores) seguidos pelos participantes 
(sujeitos dotados de consciência e 
linguagem), investigando conflitos, 
divergências e acordos quanto aos modos 
de pensar. Ênfase e aposta na possibilidade 
de construção intersubjetiva ou 
comunicativa de acordos quanto a novos 
modos de pensar, com base na 
reflexividade inerente às consciências que 
se exercem na discussão e embate com 
outras consciências, por meio da 
linguagem. 
 
59 
 
- Tópico 12: Apresentação Geral da Segunda Parte. 
 
- Nesta segunda parte do curso, vamos analisar algumas imagens do objeto estudado 
pelos cientistas sociais. O objeto de estudo não é nesse caso a realidade natural, mas a 
realidade humana e social: seres humanos, ações humanas, relações e interações 
humanas, grupos humanos, sociedades. 
 
- Assim como ocorreu na Primeira Parte, também nessa segunda parte nossa análise 
vai se orientar por uma divisão entre dois grandes campos, ocupados por tipos opostos 
de imagens da sociedade. 
- No primeiro campo colocaremos as imagens positivistas da sociedade. 
- No segundo campo colocaremos as imagens construtivistas da sociedade. 
 
- No âmbito das imagens positivistas da realidade humana e social, os componentes 
fundamentais desta realidade são condições, estruturas e processos “objetivos”, ou 
seja, independentes e prioritários em relação às ideias e interpretações empregadas 
pelos seres humanos que vivem em sociedade. 
 
- Alguns exemplos destes elementos “objetivos”, pertencentes a diferentes imagens 
positivistas da sociedade, são os seguintes: 
a) Características “objetivas” da natureza humana, como ganância, competitividade, 
egoísmo. 
b) Padrões “naturais” de percepção, raciocínio e cálculo, em geral associados às 
características “objetivas” acima mencionadas. 
c) Condições e estruturas “objetivas” da produção e distribuição dos bens 
naturalmente procurados pelos homens, necessários à reprodução dos homens e das 
relações sociais. 
d) Estrutura e necessidades “objetivas” do organismo social como um todo. 
e) Necessidades “objetivas” das “células” (partes) do organismo social como um todo. 
f) Condições e Leis “objetivas” da vida e evolução dos organismos sociais. 
 
- No campo das imagens positivistas da sociedade, colocaremos e analisaremos as 
seguintes imagens: 
a) Mecanicismo, exemplificado pela teoria da sociedade de Adam Smith. 
b) Materialismo histórico, ou Marxismo ortodoxo. 
c) Funcionalismo, ilustrado por algumas análises de Émile Durkheim. 
 
 
- Já no âmbito das imagens construtivistas da realidade humana e social, os 
componentes fundamentais desta realidade são ideias e interpretações (modos de 
pensar, padrões de atribuição de significado) empregadas pelos seres humanos que 
vivem em sociedade. 
- No âmbito deste tipo de imagem, ainda que as ideias e interpretações possam ser 
aplicadas de forma relativamente automática e inconsciente, elas sempre são em 
alguma medida permeáveis às competências e atividades reflexivas próprias da 
consciência humana. 
60 
 
- No âmbito deste tipo de imagem, concede-se um papel primordial à consciência e às 
competências típicas da consciência, como compreensão e utilização de ideias e 
modos de pensar, e reflexão sobre eles. 
- Ideias e interpretações empregadas nos atos de fala dos seres humanos não são 
tomadas como fenômenos derivados e secundários, como ocorre no âmbito das 
imagens positivistas. 
 
- No campo das imagens construtivistas da sociedade, colocaremos e analisaremos as 
seguintes imagens: 
a) Abordagem Interpretativa da sociedade, exemplificada pela sociologia de
Max 
Weber, incluindo suas análises sobre a cultura burocrática e tecnocrática típica das 
organizações capitalistas de seu tempo. 
b) Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que equivale a uma reformulação da “Teoria 
Crítica” elaborada no marxismo ortodoxo, uma reformulação orientada por certas 
teses básicas da abordagem interpretativa da sociedade (Nesse sentido, a Teoria 
Crítica da Escola de Frankfurt pode ser considerada uma espécie de 
“interpretacionismo crítico”). 
 
61 
 
- Tópico 13: Mecanicismo. 
 
Imagem de sociedade exemplificada pela obra de Adam Smith. 
 
- Imagem que pode ser situada no campo das imagens positivistas da sociedade. 
 
O contexto histórico de A. Smith 
 
Seu livro “A Riqueza das Nações” foi publicado em 1776. 
 
•Transição da sociedade tradicional, caracterizada por uma concepção teleológica da 
vida humana e social, para sociedade moderna, caracterizada por uma concepção 
individualista. 
Constatação do definhamento do paradigma teleológico de compreensão dos homens 
e da sociedade, predominante nos períodos antigo e medieval. 
 
•Paradigma teleológico: essência de cada ser humano consiste na atividade / função / 
destinação que lhe é própria dentro da ordem social; finalidade/função de cada ser 
humano vincula-se à finalidade/função dos demais e à finalidade comum a todos os 
membros da sociedade: ordem, harmonia e beleza do Todo (o Bem da ordem política 
como um Todo). 
 
• Numa ordem social tradicional, os meios de coordenação e integração entre os 
indivíduos estão baseados em expectativas de comportamento de caráter normativo, 
ou seja, expectativas que exprimem o comportamento em cada caso correto (visto 
pela sociedade como correto). Tais expectativas estão vinculadas a normas e valores 
comuns, compartilhados, e são aceitas e internalizadas pelos indivíduos em geral, o 
que significa que cada indivíduo percebe o cumprimento dessas expectativas 
normativas como algo de bom para ele. 
 
Paradigma teleológico e ordem tradicional. 
•O paradigma teleológico de compreensão dos homens e da sociedade constitui-se em 
fundamento de uma ordem social tradicional: ordem na qual os indivíduos se vêem 
como destinados a um determinado lugar e função numa totalidade integrada e 
harmoniosa. 
 
•Numa sociedade tradicional, o sentido da ação individual consiste na satisfação das 
expectativas de comportamento definidoras do papel social do agente (guerreiro, 
senhor de terras, sacerdote, artesão, agricultor, etc.). E os papéis sociais, assim como 
as expectativas de comportamento que lhes estão respectivamente associadas, são 
essencialmente complementares: complementam-se numa ordem social que em 
princípio é aceita e reproduzida por todos. 
 
•Assim, a coordenação ou integração das ações individuais, necessária à reprodução 
do grupo social, está contida no sentido que cada indivíduo atribui às suas ações. O 
62 
 
“bom para o indivíduo” consiste na satisfação de expectativas de comportamento que 
coordenam suas atividades às atividades de todos os demais. 
Em outras palavras, numa sociedade tradicional o “interesse” de cada homem é 
corresponder da maneira mais brilhante possível às expectativas de comportamento 
vinculadas à função social que define sua identidade. Deste ponto de vista, não faz 
muito sentido falar de uma oposição entre o que é bom para o indivíduo e o que é 
bom para a sociedade, ou entre interesse pessoal e interesse coletivo. 
Do ponto de vista da necessidade de coordenação das ações individuais para a 
preservação e reprodução da sociedade, as ações de cada indivíduo se coordenam 
naturalmente às dos demais, na medida em que são ditadas por um esquema de 
funções e expectativas complementares. A coordenação com os outros está por assim 
dizer contida no sentido que cada homem vê em suas próprias ações, ela é interna ao 
sentido que cada homem dá às suas próprias ações. 
 
• Numa ordem tradicional, portanto, não se manifesta o individualismo moderno (ou 
pelo menos ele não é socialmente difundido como princípio de estruturação das 
relações sociais). 
Individualismo moderno: preocupação com interesse e vantagem estritamente 
individuais; orientação da vida e das decisões pelo interesse e vantagem estritamente 
individuais. 
 
•Numa sociedade tradicional, objetivo das pessoas não é “progredir na vida” 
(maximizar interesse e vantagem individuais), mas dar continuidade à realidade social 
transmitida das gerações anteriores. Ambição não se dirige à vantagem individual, mas 
ao maior brilho possível no exercício da função própria dentro da ordem tradicional. 
 
•Não há mercado de terra, nem de trabalho. Terra e trabalho são partes do caminho 
de vida concreto a que cada indivíduo e grupo estão destinados, eles não são valores 
abstratos, abstratamente mensuráveis em termos de um padrão de troca comum e 
uniforme (moeda). Em outras palavras, terra e trabalho são valores concretos, que não 
podem ser medidos segundo um padrão quantitativo uniforme e abstrato. 
Não há uma vida a ser “construída” ou “conquistada” mediante venda de recursos e 
talentos individuais no “mercado”. 
 
Ascensão do paradigma individualista. 
 
•Na sociedade moderna, marcada por uma concepção individualista, o sentido da ação 
individual consiste na busca de fins (interesse e vantagem) estritamente individuais, ou 
seja, fins adotados por indivíduos atomisticamente concebidos. O que caracteriza 
essencialmente esses fins é o fato de eles serem diferentes e até conflitantes entre si. 
 
•Se o sentido que cada indivíduo atribui às suas ações consiste na busca de um fim 
diferente e até conflitante em relação aos fins buscados pelos demais indivíduos, a 
coordenação das ações individuais, necessária à reprodução da sociedade, é em 
princípio externa ao sentido que cada indivíduo atribui às suas ações. 
63 
 
- Para cada indivíduo, a relação com o outro aparece simplesmente como um meio 
(instrumento) de que ele se serve para perseguir seus fins individuais. Isso contrasta 
com a vivência das relações sociais predominante numa sociedade tradicional, na qual 
a relação com o outro aparece como essencial para a excelência buscada por cada 
indivíduo, na medida em que esta consiste no desempenho excelente da função que 
lhe é própria no conjunto das relações sociais. 
 
A Imagem de sociedade de Adam Smith 
 
• A obra de Adam Smith é complexa e sofisticada. Não pretendemos aqui analisa-la em 
toda sua complexidade e riqueza. Tendo em vista os propósitos de nosso curso, vamos 
destacar certos aspectos relativamente simples, que permitem utilizá-la como exemplo 
de certa imagem da sociedade, o mecanicismo. 
O livro historicamente mais influente de Smith é “A Riqueza das Nações” (1776). 
 
•Problemas fundamentais: problema da coordenação das ações individuais, necessária 
à reprodução da sociedade, e problema da integração social: sem a força integradora 
da tradição e das autoridades associadas à tradição, e deixando as escolhas 
socialmente relevantes ao livre-arbítrio de indivíduos essencialmente egoístas, como a 
sociedade consegue sobreviver e reproduzir-se? 
 
•Resposta (simplificada): “Mão Invisível”: mecanismo invisível de coordenação e 
equilíbrio, pelo qual impulsos e interesses estritamente individualistas (egoístas) são 
mecanicamente coordenados e integrados, permitindo o funcionamento de uma 
estrutura eficaz, capaz de maximizar a prosperidade (riqueza) de toda a sociedade. 
 
- O mecanismo da “mão invisível” é regulado por condições e circunstâncias objetivas 
(ou seja, condições e circunstâncias que são consideradas como independentes das 
ideias e interpretações dos seres humanos) do processo de produção dos bens e 
serviços, ligadas à oferta e procura dos três fatores fundamentais da produção: terra, 
capital e trabalho. 
 
- Elementos fundamentais da Mão Invisível. 
(1) Interesse egoísta (cobiça ou ganância
do indivíduo): força que leva os indivíduos a 
empregarem os recursos de que dispõem (trabalho, terra e capital) na atividade ou 
setor produtivo que promete maior retorno financeiro. 
(2) Conflito e competição entre indivíduos capazes de cálculos racionais: força que 
freia a ganância dos indivíduos, levando-os a cobrar e pagar um valor “socialmente 
ótimo” pelos fatores produtivos que ofertam e procuram no mercado. 
- Nessa imagem, o valor socialmente ótimo é considerado como algo de “objetivo”, ou 
seja, “objetivamente” fixado pela disponibilidade “objetiva” dos fatores de produção 
(terra, trabalho, capital) e pelas necessidades “objetivas” da reprodução da sociedade. 
Os termos entre aspas indicam tratar-se de elementos que são considerados como 
independentes das ideias e modos de pensar “subjetivos” presentes no plano da 
consciência dos seres humanos. 
 
64 
 
- Neste tipo de modelo, a produção e distribuição dos bens e serviços, assim como as 
condições e circunstâncias que as regulam, aparecem como elementos “objetivos”, ou 
seja, elementos que atuam e geram efeitos independentemente das ideias e 
interpretações adotadas pelos seres humanos que entram no processo. 
- Do mesmo modo, neste tipo de modelo, individualismo, ganância e cálculo racional 
não são tomados como “ideias”, “modos de pensar” ou “interpretações”; em outras 
palavras, eles não são tomados como modos de pensar veiculados e empregados nas 
atividades linguístico-comunicativas dos seres humanos (seres dotados de consciência 
e linguagem). 
 
- Eles são tomados como elementos “objetivos” da natureza humana, logicamente 
prioritários e independentes em relação à interação linguística de seres dotados de 
consciência. 
- Ideias e pensamentos veiculados e empregados em atos de fala são tomados como 
fenômenos secundários e derivados. 
 
Imagem mecanicista da sociedade (um tipo de imagem positivista da sociedade). 
 
•Sociedade aparece como uma máquina; imagem da sociedade como máquina. 
 
- Ordem social consiste num mecanismo de coordenação e equilíbrio entre indivíduos 
essencialmente isolados ou separados, movidos por interesses e cálculos racionais de 
caráter individualista, em princípio alheios à necessidade de integração social. 
 
- Componentes essenciais da realidade social: 
a) Forças “objetivas” da natureza humana: ganância, egoísmo, e racionalidade 
calculadora (capacidade de discernir os meios mais eficazes para o fim da maximização 
da vantagem individual). 
b) Força “objetiva” da existência humana em sociedade: competição entre os 
indivíduos. Força que freia a ganância de indivíduos capazes de cálculo racional. 
c) Condições e circunstâncias “objetivas” do processo produtivo, que regulam a oferta 
e procura dos fatores produtivos fundamentais, e a repartição dos valores produzidos. 
 
- Em relação a todos esses componentes, o adjetivo “objetiva(s)” indica elementos que 
atuam e geram efeitos independentemente das ideias e interpretações adotadas nas 
atividades comunicativas dos seres humanos (seres dotados de consciência e 
linguagem). 
 
- É nesse sentido que a imagem mecanicista pode ser colocada no campo das imagens 
positivistas de sociedade. 
65 
 
Tópico 14: Materialismo Histórico (Marxismo Ortodoxo). 
 
•Materialismo Histórico e Dialético: Karl Marx (1818-1883). Compreensão materialista 
da abordagem dialética inicialmente desenvolvida por Hegel (1770-1831). 
- Reunião da Dialética hegeliana com a tradição de análise econômica iniciada com 
Adam Smith (1723-1790). 
 
• Estrutura geral e formal da Dialética Hegeliana, comum à dialética materialista 
desenvolvida por Marx: 
 
2 idéias básicas: 
 
1ª) Há uma negatividade intrínseca à realidade em geral; a realidade que “está sendo” 
sempre abriga possibilidades de desenvolvimento distintas dos modos de ser que 
dominam a realidade atual. Por isso, a realidade é, essencialmente, movimento, 
mudança, diferenciação. 
- A realidade é essencialmente histórica. 
- Mudança não deve ser concebida como mudança de uma realidade (um ser) que 
permanece. O ser é a mudança. O permanente é, na verdade, apenas aparentemente 
permanente, e no fundo, ou essencialmente, é permeado ou atravessado pela 
negatividade, dinamismo, movimento, mudança. 
 
2ª) A negatividade intrínseca à realidade deve ser concebida em termos de uma 
relação entre dois polos opostos: o polo do que é ou “está sendo” (o Ser que só é 
como “está sendo”) e, por outro lado, o polo que opõe-se ou nega o primeiro. 
 
- Afirmar que a realidade é, essencialmente, relação entre polos opostos equivale a 
afirmar que, na realidade concreta e efetiva, cada polo só se define e existe na relação 
com o outro, ou por meio da relação com seu oposto. O isolamento de um dos polos 
sempre equivale a uma abstração. 
 
- Esta relação é de oposição e de complementaridade. A oposição entre os polos é 
simultaneamente conservada e superada na relação dialética entre eles, ou na unidade 
dialética entre eles. 
 
- A realidade nunca pode ser identificada a um dos polos apenas; a realidade é a 
relação entre os polos opostos. Isto significa que a resistência, negação e oposição ao 
que “está sendo” não vêm “de fora” da realidade que está sendo, mas “de dentro”. 
 
- Mais precisamente, o polo negativo não apenas instaura determinadas limitações, 
lacunas e falhas no Ser “que está sendo”, como também as aguça e acirra, levando à 
sua superação. 
- O polo negativo leva à superação das limitações próprias de certo momento do 
processo histórico, o momento “que está sendo”; em outras palavras, ele leva à 
superação deste momento determinado, e à passagem a outro momento (com outras 
66 
 
determinações, quer dizer, outras características e outras limitações) do “está sendo” 
do Ser. 
- Nesse sentido, a negatividade do polo negativo é simultaneamente conservada e 
superada no movimento de realização paulatina do Ser nos diversos momentos do 
“está sendo”. 
 
- Motor da mudança: dinamismo (“inquietação”) produzido pela negatividade 
intrínseca à realidade. Todo ser está em relação com um não-ser, que o coloca em 
estado de tensão, movimento, mudança. 
 
Dialética e História 
 
•Oposição e negatividade constituem o motor da criação contínua de novos polos e 
novas relações. 
 
•História como processo de contínuo aparecimento, exacerbação, superação e 
recriação dessas relações tensas e conflituosas entre polos antagônicos, ou entre um 
polo e sua negação. 
 
- História: movimento de realização paulatina do Ser por meio dos diversos momentos 
ou épocas do “está sendo” do Ser. Nesse processo, cada momento do “está sendo” é 
relação com a negatividade que lhe é própria. 
 
A interpretação idealista e a interpretação materialista da concepção dialética da 
realidade. 
 
•A Dialética Hegeliana é “idealista”, ela é uma elaboração do idealismo kantiano, ou 
seja, do modo idealista de ver a relação sujeito-objeto, inaugurado por Kant (1724-
1804). 
 
- A Dialética Hegeliana é uma teoria extraordinariamente complexa, sofisticada e 
nuançada. Ela não só permite, mas também convida a diferentes apropriações e 
interpretações, efetuadas a partir de diferentes pontos de partida. 
Em outras palavras, na Dialética Hegeliana o caminho dialético não só pode como deve 
ser efetuado a partir de diferentes pontos de partida, o que resulta em ramificações 
relativamente independentes umas das outras, cuja integração num sistema único é 
tarefa reconhecidamente hercúlea, que nem de longe tentaremos aqui. 
 
- Vamos aqui nos restringir à tentativa de apresentar um modelo simplificado da 
diferença entre uma interpretação idealista da Dialética, baseada na obra de Hegel, e 
uma interpretação materialista, baseada na obra de Marx. 
 
- Nessa tentativa, como é de se esperar, teremos de reduzir a obra de Marx a um 
esquema interpretativo igualmente simplificado e simplificador.
67 
 
- Vamos contrastar as duas interpretações estabelecendo certas proximidades iniciais: 
 
A) Estabeleçamos que, em ambas as teorias, o polo afirmativo ou positivo (o “Ser”) 
seja identificado ao sujeito humano e finito. 
Há uma vagueza neste sujeito inicial. Em princípio, ele equivale à humanidade como 
um todo. Em muitos momentos da análise, entretanto, ele deve ser identificado a 
pessoas, figuras típicas, classes ou sociedades particulares, tomadas como porta-vozes 
ou vanguardas da humanidade em determinada época ou momento histórico, que 
desempenham o papel “ativo” nas relações e movimentos dialéticos essenciais desta 
época. 
 
B) Estabeleçamos ainda que, em ambas as teorias, o sujeito humano e finito seja 
identificado a determinado tipo de “Desejo”. 
 
- A diferença entre as teorias pode então ser analisada a partir de um esclarecimento 
da diferença entre os tipos de Desejo situados na base de cada uma delas. 
 
- De modo admitidamente simplificador, pode-se afirmar que, na Dialética Idealista, o 
desejo fundamental é o desejo de compreender adequadamente as coisas, e de agir de 
modo apropriado, ou seja, de acordo com essa compreensão adequada. 
- Pode-se afirmar ainda que, na Dialética Idealista, o desejo fundamental é situado ou 
colocado no plano da consciência humana. O desejo fundamental é um desejo da 
consciência humana, ou do espírito humano. As compreensões, atitudes e maneiras de 
agir vinculadas ao desejo fundamental são apresentadas como realizações da 
consciência humana, e o polo “negativo”, em todas as suas instanciações, só existe na 
relação com a consciência e o desejo da consciência. 
 
- De modo igualmente esquemático e simplificador, pode-se afirmar que, na Dialética 
Materialista, o desejo fundamental é o desejo de dispor da maior quantidade e 
variedade possível de bens, para satisfazer na maior medida possível as necessidades 
concretas da vitalidade humana. 
- Pode-se afirmar ainda que, na Dialética Materialista, o desejo fundamental é situado 
no plano de forças e processos vitais logicamente independentes e anteriores à 
consciência e às ideias e atitudes presentes na consciência. O desejo fundamental é 
um desejo da vitalidade “objetiva”, constituída por forças e processos logicamente 
anteriores à consciência. 
 
Modelo simplificado da Dialética Idealista. 
 
- Admitindo-se que o polo positivo da Dialética Idealista consiste no desejo de 
compreender adequadamente as coisas, e de agir de modo apropriado, ou seja, de 
acordo com essa compreensão adequada, pode-se afirmar que o polo negativo 
consiste no “objeto” que se opõe a este desejo, à medida mesmo que instaura, revela 
e aguça lacunas ou falhas na realização do mesmo, ou seja, na compreensão e/ou na 
ação ancoradas neste desejo. 
 
68 
 
- O polo “objeto” pode ser representado (instanciado) por diferentes elementos, 
dependendo do momento ou etapa do caminho dialético percorrido pela consciência 
humana e seu desejo fundamental. 
- “Objeto” é qualquer elemento que em determinado momento do processo dialético 
(histórico) revela uma falha essencial na compreensão dominante neste momento, 
e/ou nas ações baseadas nesta compreensão dominante. 
 
- O “objeto” pode ser o ambiente natural (aspectos ou fenômenos da natureza que em 
determinado momento não são compreendidos, por exemplo), ou o ambiente social 
(por exemplo, comportamentos humanos que em determinado momento não são 
assimilados pela inteligência e/ou vontade movidas pelo desejo fundamental), ou o 
substrato natural da existência humana (por exemplo, uma paixão ou impulso que em 
determinado momento não é assimilado pela inteligência e/ou vontade movidas pelo 
desejo fundamental), ou outras consciências (quando, por exemplo, um padrão de 
ação chancelado em determinado momento pelo desejo fundamental exige que 
outro(s) sujeitos de consciência sejam vencidos). 
 
- De modo simplificado, pode-se afirmar que, em todos os casos, a relação dialética 
fundamental é a relação entre, por um lado, as ideias e/ou atitudes (ou seja, teorias, 
concepções de vida e de mundo, padrões de ação) produzidas pela consciência que 
procura realizar o desejo fundamental, e, por outro lado, o objeto “resistente” ou 
“opositor”, o qual, ao não se adequar às ideias, ou ao resistir às ideias e padrões de 
ação, instaurando e/ou evidenciando suas limitações e falhas, leva a consciência ao 
processo de criação de novas ideias e atitudes, às quais corresponderão novos tipos de 
oposição do objeto, e assim por diante. 
 
- A história é história das ideias, concepções e padrões de ação da consciência, ou seja, 
dos sucessivos modos e momentos através dos quais o “sujeito” (a humanidade como 
um todo) se forma (educa) e realiza, à medida mesmo que procura superar a 
“resistência/negação” que o “objeto” em geral (em todas as suas instanciações) lhe 
opõe. 
 
Esquema simplificado da Dialética Materialista: a Imagem Dialético-Materialista da 
Realidade Social. 
 
- Na dialética materialista o Desejo fundamental da Humanidade é o desejo de dispor 
da maior quantidade e variedade possível de bens, para satisfazer na maior medida 
possível as necessidades concretas da vitalidade humana, tomada como vitalidade 
“objetiva” da espécie humana, quer dizer, vitalidade constituída por forças e processos 
essencialmente naturais, logicamente anteriores às ideias e atitudes que aparecem na 
consciência. 
 
- O processo histórico de realização paulatina do desejo fundamental (dispor da maior 
quantidade e variedade possível de bens) desdobra-se em duas dimensões: 
a) A dimensão da produção dos bens; e 
b) A dimensão da distribuição dos bens. 
69 
 
 
- Na dimensão da produção dos bens, as mudanças dialeticamente geradas ao longo 
do processo histórico são mudanças, principalmente, nas forças produtivas utilizadas 
pela humanidade. Trata-se de um desenvolvimento dos instrumentos, ferramentas, 
máquinas, equipamentos, técnicas, conhecimentos, tecnologias, etc. 
- O desenvolvimento das forças produtivas equivale a um aumento na capacidade da 
humanidade de produzir bens, ou seja, equivale à superação de limitações ou falhas na 
produção dos bens. 
 
- Na dimensão da distribuição dos bens, as mudanças dialeticamente geradas ao longo 
do processo histórico são mudanças nas relações de produção que se estabelecem 
entre os participantes do processo produtivo. 
 
- Na dimensão da distribuição dos bens e valores socialmente produzidos, a cada 
momento do processo histórico a humanidade (como um todo) divide-se em classes 
sociais antagônicas, ou seja, grupos que ocupam posições antagônicas nas estruturas 
de divisão e apropriação tanto dos meios de produção quanto dos bens ou valores 
socialmente produzidos. 
- A cada momento do processo dialético a humanidade se divide em duas classes 
sociais: em primeiro lugar, a classe que deseja (ou que representa o desejo de) uma 
distribuição mais abrangente dos bens, uma distribuição que satisfaça a uma parcela 
maior da humanidade, e, no polo oposto, a classe que resiste ao desejo colocado pela 
primeira classe, e que mantém uma posição de exploração e opressão em relação à 
primeira classe. 
 
- Assim, na dimensão da distribuição, a relação entre as classes em que a humanidade 
como um todo a cada etapa se divide sempre é uma relação de exploração e opressão. 
 
- Na dimensão da distribuição dos bens, as mudanças dialeticamente geradas ao longo 
do processo histórico são mudanças em determinados padrões de divisão e 
apropriação, tanto dos meios de produção quanto dos valores socialmente produzidos, 
equivalendo a mudanças nas relações de poder entre as classes sociais que participam 
do processo produtivo. 
 
- Em cada momento do processo histórico, as mudanças nas relações de produção 
equivalem à superação de determinadas lacunas ou falhas na distribuição dos bens e 
valores, ou seja, equivalem
a um desenvolvimento da capacidade da humanidade de 
distribuir os bens e valores da forma mais satisfatória para a humanidade como um 
todo. 
 
- No contexto do nosso interesse num esquema simplificado e simplificador, pode-se 
afirmar que, na dimensão das mudanças nas forças produtivas, o polo negativo é 
ocupado principalmente pelo ambiente natural que “resiste” ao desejo do sujeito (a 
humanidade como um todo) de dispor da maior quantidade possível de bens. 
- Despertada pela oposição e resistência do ambiente natural, a vitalidade objetiva da 
humanidade põe em movimento um processo de criação contínua de novas forças 
70 
 
produtivas, que a cada momento do processo histórico permitem a superação de 
determinadas limitações no potencial humano de produzir e dispor de bens. 
 
- De modo igualmente simplificado, pode-se afirmar que, na dimensão das mudanças 
nas relações de produção, o polo ativo ou positivo não é mais ocupado pela 
humanidade como um todo, mas pela classe social e politicamente explorada, 
entendida como a classe que, a cada momento do processo histórico, representa e faz 
avançar o desejo de uma distribuição mais abrangente, que satisfaça a maior parcela 
possível da humanidade, e, no limite, a humanidade como um todo. 
Trata-se da classe que, a cada momento do processo histórico-dialético, torna-se 
porta-voz e vanguarda de determinadas mudanças nos padrões de distribuição dos 
bens e valores socialmente produzidos, em direção a uma distribuição a mais 
abrangente e igualitária possível. 
 
- Trata-se sempre de mudanças que se tornaram “objetivamente” possíveis em virtude 
de mudanças no nível mais “técnico” da produção, quer dizer, incrementos das forças 
produtivas e o consequente aumento da produção global dos bens. 
- No marxismo ortodoxo, progressos na distribuição dos bens (nas relações de 
produção) só se tornam objetivamente possíveis a partir de progressos na capacidade 
de produção dos bens (nas forças produtivas). 
 
- De modo correspondente, no âmbito das relações de produção o polo “negativo” é 
ocupado pela classe social a cada momento privilegiada e opressora, que resiste às 
mudanças objetivamente possíveis desejadas e alavancadas pela classe revolucionária 
(nesse mesmo momento). 
 
- Além de ser desencadeado e realizado pela vitalidade “objetiva” da espécie humana 
como um todo, o processo histórico é regido por uma lógica igualmente “objetiva”, ou 
seja, independente e prioritária em relação às ideias e visões de mundo que aparecem 
no nível da consciência. 
 
- No contexto dessa lógica objetiva, condições “objetivas” determinam as 
possibilidades e limitações que a cada momento se impõem ao desejo fundamental da 
humanidade como um todo, tanto no âmbito da produção dos bens (de que a 
humanidade deseja dispor na maior quantidade possível), quanto no âmbito da 
distribuição dos bens e valores (de que a humanidade deseja dispor da maneira mais 
satisfatória possível, ou seja, da maneira mais abrangente, inclusiva e igualitária 
possível). 
 
- Além disso, no contexto dessa lógica objetiva, as condições objetivas determinam 
também as mudanças que são objetivamente possíveis, tanto no plano da produção 
quanto no plano da distribuição. 
- No contexto dessa lógica objetiva, as mudanças no plano mais técnico da produção 
(equivalendo ao desenvolvimento das forças produtivas, quer dizer, desenvolvimento 
de novas máquinas, tecnologias, técnicas de organização do trabalho, etc.) antecedem 
71 
 
e tornam possíveis as mudanças no plano das relações de produção, que regulam a 
distribuição dos bens e valores socialmente produzidos. 
 
 
O Caráter Positivista da Imagem Dialético-Materialista da Realidade Social. 
 
- De acordo com a teoria Dialético-Materialista, não há na realidade social “dados” 
inalteráveis, elementos fixos e invariáveis. 
- Aquilo que em certo momento pode aparecer e ser tomado como um “dado” é na 
verdade algo que surgiu e que vai se alterar ao longo do processo histórico como um 
todo. 
- Por exemplo, o “desejo” humano de dispor e fruir de bens é uma força vital 
indeterminada, que só existe como algo de “dado” à medida que se determina no 
tempo – e toda determinação (todo “dado”), ao relacionar-se às limitações e falhas 
que lhe são próprias, sofre modificações, altera-se no tempo. 
- Para a teoria Dialético-Materialista, não existem na realidade humana e social 
características simplesmente dadas, necessidades simplesmente dadas, tendências 
simplesmente dadas; todos os elementos da realidade humana e social são 
historicamente produzidos (determinados) e historicamente transformados 
(redeterminados). 
 
- Nesse sentido, a teoria dialético-materialista afasta-se das imagens positivistas 
típicas, que costumam trabalhar com elementos “simplesmente dados”. No âmbito do 
positivismo típico, os elementos “objetivos” primordialmente focalizados e 
empregados nas explicações são normalmente tomados como elementos 
“simplesmente dados”, ou seja, dados que não estão abertos ao questionamento, 
negação e mudança. 
 
- Por outro lado, porém, ao adotar a interpretação materialista da Dialética, a teoria 
dialético-materialista configura os componentes essenciais da realidade humana e 
social (ou os componentes essenciais do processo histórico) como elementos 
“objetivos”, no sentido positivista do termo, ou seja, elementos logicamente 
independentes e prioritários em relação às ideias e concepções que ocupam o plano 
da consciência, ideias e concepções que são veiculadas e empregadas nas interações 
comunicativas dos seres dotados de consciência. 
- Na interpretação materialista da Dialética, idéias e modos de pensar são meros 
“sintomas” de condições “objetivas”, no sentido positivista do termo. 
 
- Nesse sentido, a teoria dialético-materialista pode ser colocada no campo das 
imagens positivistas da realidade social. 
 
- Tendo em vista os propósitos do nosso curso, vamos enfatizar este aspecto positivista 
da teoria dialético-materialista. 
- Em outras palavras, vamos colocar o Materialismo Histórico-Dialético (ou Marxismo 
Ortodoxo) no campo das imagens positivistas da realidade social. 
72 
 
- Tópico 15: Funcionalismo. 
 
- Imagem de Sociedade exemplificada pela primeira obra de Durkheim: “Sobre a 
Divisão do Trabalho Social” (1893). 
 
- Imagem que pode ser situada no campo das imagens positivistas de sociedade. 
 
A Questão Fundamental de Durkheim. 
 
•Problema fundamental é semelhante ao de Adam Smith: aparente oposição do 
individualismo moderno às exigências de coordenação e integração que têm de ser 
satisfeitas para que a sociedade possa se reproduzir. 
- Se os sujeitos que compõem a sociedade são essencialmente individualistas ou 
egoístas, não atribuindo nenhum valor intrínseco ao cumprimento de expectativas de 
comportamento de caráter recíproco e complementar, como explicar a integração 
social? Como explicar a coordenação das ações individuais necessária à reprodução da 
sociedade? 
 
•Modo de visualizar a solução do problema é diferente. 
 
- Recordemos que, na obra de Adam Smith, destacamos o modelo de uma 
coordenação puramente mecânica entre indivíduos que são e permanecem 
essencialmente isolados, separados. Neste modelo, a análise toma como ponto de 
partida interesses essencialmente individuais (próprios da personalidade individual), e 
a estrutura social aparece como derivada desses interesses. 
 
•Em contrapartida, para defender a autonomia e irredutibilidade da sociologia, 
Durkheim sente necessidade de defender a prioridade da estrutura social sobre a 
personalidade individual. 
Em Durkheim, o princípio da integração social não consiste em interesses individuais 
oriundos da personalidade individual, mas em padrões de relacionamento social que 
exprimem a estrutura social enquanto tal, e que moldam a personalidade individual. 
 
- Na terminologia de
Durkheim, padrões de relacionamento social equivalem a formas 
de “solidariedade social” (padrões de relacionamento social são padrões de ligação dos 
indivíduos, e em Durkheim “solidariedade social” tem o sentido, justamente, de 
“ligação entre os indivíduos”, e não o sentido de benevolência ou beneficência). 
Em Durkheim, portanto, padrões de ligação entre indivíduos são anteriores aos 
próprios indivíduos, ou seja, os indivíduos nascem e se formam numa estrutura que os 
liga a outros indivíduos. São os padrões de ligação que moldam a personalidade 
individual. 
 
Individualismo moderno e solidariedade orgânica 
 
•Assim, o individualismo moderno (ou seja, a mentalidade grosso modo individualista 
ou “privatista” típica das sociedades modernas) deixa de ser visto como expressão da 
73 
 
natureza ou personalidade do ser humano isoladamente tomado, e passa a ser visto 
como expressão de um determinado padrão de ligação (“solidariedade”) social, 
anterior à personalidade individual e formador da mesma. 
•Em Durkheim, algum tipo de solidariedade social (exprimindo a estrutura social 
enquanto tal) sempre tem prioridade em relação à personalidade individual. 
 
•Dois tipos básicos de solidariedade social: solidariedade mecânica e solidariedade 
orgânica. 
 
ATENÇÃO: a “solidariedade mecânica” analisada por Durkheim não tem nada a ver 
com a coordenação mecânica que se pode perceber em Adam Smith. 
 
- Em Smith, o conceito de “coordenação mecânica” é parte de uma imagem da 
sociedade que focaliza seus membros como indivíduos essencialmente separados e 
isolados, que se integram através de um mecanismo puramente mecânico, no sentido 
de independente de qualquer finalidade ou propósito supra-individual. 
- No modo de focalizar a sociedade de Smith, indivíduos isolados sempre se integram 
por meios puramente mecânicos. 
 
- Já em Durkheim, o conceito de “solidariedade mecânica” é parte de uma análise da 
sociedade que focaliza seus membros como indivíduos que sempre existem em 
estruturas de ligação (com outros indivíduos) que lhes são anteriores (anteriores aos 
indivíduos em geral). 
 
Em Durkheim, o conceito de solidariedade mecânica exprime um modelo particular e 
específico de ligação entre os indivíduos, distinto de outro modelo específico, o da 
“solidariedade orgânica” (que inclusive está mais próximo da coordenação mecânica 
de Adam Smith). 
 
- No modo de focalizar a sociedade de Durkheim, indivíduos sempre nascem e são 
formados em estruturas de ligação social, mas a estrutura pode ser de tipo ou 
“mecânico” (solidariedade mecânica) ou “orgânico” (solidariedade orgânica). 
 
•Individualismo moderno (mentalidade grosso modo individualista ou “privatista” 
típica das sociedades modernas) é sintoma ou efeito do que Durkheim chama de 
“solidariedade orgânica”, que ele contrapõe à “solidariedade mecânica”, típica da 
época pré-moderna, ou das sociedades tradicionais. 
 
Solidariedade mecânica 
 
•Solidariedade “mecânica”: típica das sociedades tradicionais. 
 
- Neste tipo de estrutura social, há forte presença de valores, projetos e propósitos 
comuns, os indivíduos se veem como habitantes de um mundo comum, como 
compartilhando um mundo comum, e nesse sentido eles se veem como semelhantes 
uns aos outros. 
74 
 
 
- Neste tipo de estrutura social, o que liga os indivíduos uns aos outros é essa 
percepção de uma semelhança fundamental, este sentimento de serem habitantes de 
um mundo comum, de compartilharem um mundo comum. 
 
•Integração baseada na “semelhança” entre os indivíduos (compartilhamento de 
atitudes, crenças, valores e projetos). O predomínio da solidariedade mecânica 
fomenta este tipo de semelhança. 
 
•Pouca diferenciação entre indivíduos (pouca diferenciação nas atitudes, crenças e 
valores constitutivos dos projetos de vida). Ideias e valores comuns representam a 
maior parte do conteúdo da consciência individual. 
 
•Indivíduos integram e coordenam suas ações à medida que se percebem como 
essencialmente semelhantes, ou seja, na medida em que compartilham, num nível 
básico, uma mesma concepção e projeto de vida (aspirações e expectativas individuais 
são moldadas por essa concepção compartilhada). 
 
Solidariedade Orgânica 
 
•Solidariedade “orgânica”. Típica das sociedades modernas, pós-tradicionais. 
Integração se realiza a partir da diferenciação entre os indivíduos. 
 
- Neste tipo de estrutura social, os valores, projetos e propósitos são por assim dizer 
privatizados, ou seja, são transferidos para a esfera privada de cada indivíduo. 
 
- À medida que percebem seus interesses e projetos como essencialmente privados, os 
indivíduos se percebem como essencialmente diferentes uns dos outros, como 
habitantes de mundos privados distintos. 
 
•Maior parte do conteúdo da consciência individual passa a ser ocupado por fatores 
(aspirações, interesses, preferências) que diferenciam e separam os indivíduos uns dos 
outros. 
•Desenvolvimento de uma consciência “individualista” (indivíduos que se veem como 
separados e diferenciados em relação aos demais). 
 
- Neste tipo de estrutura social, o que liga os indivíduos uns aos outros é a percepção 
de que, por serem diferentes uns dos outros, podem estabelecer relações de “troca” 
mutuamente interessantes. 
 
•Principal forma de ligação social passa a consistir em “contratos” entre indivíduos que 
se percebem como habitantes de mundos (privados) diferentes entre si. 
“Contrato” como um vínculo de “troca” entre indivíduos que se veem como possuindo 
interesses, projetos e recursos diferentes. 
 
 
75 
 
Durkheim e o problema da ascensão da solidariedade orgânica 
 
•Problema que Durkheim se coloca: por que a solidariedade orgânica se consolidou 
como principal forma de solidariedade social nas sociedades ocidentais modernas, 
substituindo a solidariedade mecânica? 
 
Resposta de Durkheim (Resposta que contém o embrião da teoria funcionalista). 
 
•Explicação de Durkheim contém os germes da abordagem funcionalista. 
 
•Sua explicação é: num “ambiente” histórico marcado pelo aumento da “densidade 
material” (aumento do número de indivíduos em relação a uma determinada 
superfície de terra) e da “densidade moral” (aumento do número e intensidade dos 
relacionamentos e contatos entre indivíduos), o fato de os indivíduos se perceberem 
como diferentes uns dos outros (ou como habitantes de “espaços privados” distintos), 
e a concomitante formação de uma consciência individualista e “privatista”, têm 
efeitos benéficos para a sobrevivência e prosperidade da sociedade como um todo. 
 
•Se não ocorresse essa “privatização” na concepção dos interesses, projetos e 
propósitos, aumentariam os conflitos entre indivíduos (quando a densidade aumenta, 
se os indivíduos se percebem como essencialmente semelhantes, ou como habitantes 
de um “espaço comum”, os conflitos entre eles tendem a aumentar). 
 
- Para Durkheim, a solidariedade orgânica se desenvolveu e consolidou porque 
representa uma característica que torna as sociedades modernas mais aptas à 
satisfação das necessidades “vitais” de integração interna e adaptação externa. 
- A solidariedade orgânica torna as sociedades melhor adaptadas ao ambiente 
“historicamente dado” típico da era moderna (mudança no ambiente provoca uma 
mudança no padrão de ligação social). 
 
Elementos fundamentais das análises funcionalistas 
 
•Transposição da teoria da evolução de Darwin (1859) para o campo da teoria da 
sociedade. 
 
•Concebe as sociedades como organismos, submetidos a certas necessidades vitais e a 
certas leis da evolução. 
 
- Na abordagem funcionalista, tanto as necessidades vitais quanto as leis de evolução 
dos organismos sociais são concebidas como fatores “objetivos”, ou seja, fatores que 
surtem seus efeitos independentemente das ideias e concepções veiculadas e 
empregadas nas interações comunicativas dos seres
humanos, ou seres dotados de 
consciência e linguagem. 
- Ideias e concepções (por exemplo, ideias e concepções “individualistas” típicas da 
mentalidade moderna) são tomadas como sintomas ou efeitos da atuação “objetiva” 
das necessidades vitais de integração interna e adaptação ao ambiente. 
76 
 
 
•Necessidades fundamentais (“objetivas”) dos organismos sociais: integração interna e 
adaptação ao ambiente externo. 
 
•Leis fundamentais da vida e evolução das sociedades: Luta pela Vida e Seleção 
Natural: só sobrevivem e prosperam as sociedades mais aptas a satisfazerem suas duas 
necessidades básicas, integração interna e adaptação ao ambiente externo. 
 
•Necessidades e leis dos organismos sociais são vistas como fatores “objetivos” (no 
sentido positivista do termo), ou seja, fatores que existem e atuam 
independentemente da consciência e das interações comunicativas dos seres 
humanos. 
 
Forma geral das análises funcionalistas. 
 
•Se uma característica torna a sociedade mais apta a satisfazer às necessidades de 
integração interna e/ou adaptação externa, tal característica tende a desenvolver-se e 
consolidar-se (em virtude da luta pela vida e seleção natural, os grupos que não 
desenvolvem tal característica tendem a definhar e desaparecer). 
 
•Assim, a causa do desenvolvimento e consolidação da característica consiste na 
função que ela desempenha (ou nos efeitos positivos ou benéficos que ela apresenta) 
para a satisfação das necessidades de integração interna e adaptação ao ambiente 
externo. 
-Explicar um elemento da sociedade (instituição, prática, costume) é identificar e 
analisar sua função (efeito positivo ou benéfico) para o atendimento das necessidades 
básicas do organismo social. 
 
Leis a-históricas da vida e evolução das sociedades 
 
•Pode-se reconstruir a explicação de Durkheim afirmando que, para ele, a 
solidariedade orgânica se desenvolveu e consolidou porque representa uma 
característica que torna as sociedades modernas mais aptas à satisfação das 
necessidades de integração interna e adaptação externa (Em Durkheim, a 
diferenciação entre os indivíduos e a solidariedade orgânica têm consequências 
positivas para a satisfação da necessidade de integração interna). 
 
•Embora a abordagem funcionalista admita e procure explicar as mudanças por que 
passam as sociedades ao longo do processo histórico (mudança da solidariedade 
mecânica para a solidariedade orgânica, por exemplo), o fundamento da explicação 
consiste em “necessidades vitais” e “leis da vida” fixas e imutáveis (a-históricas), e 
também “objetivas”, no sentido positivista do termo. 
 
•Imagem organicista e positivista da sociedade. 
 
 
77 
 
Algumas Críticas à abordagem funcionalista. 
 
•História dos homens e das sociedades é muito curta quando comparada aos períodos 
de tempo necessários para a atuação da seleção natural; número de sociedades é 
muito pequeno quando comparado ao número de organismos necessários para a 
atuação da seleção natural. 
Aplicação do conceito de seleção natural é implausível. (é pouco plausível afirmar que, 
em virtude da seleção natural, as sociedades e grupos “inaptos” são varridos do 
mapa). 
 
•Alternativa à seleção natural: Atribuição de uma “intencionalidade oculta”. Toda 
sociedade “quer” sobreviver e prosperar. Em virtude disso, toda sociedade “procura” 
satisfazer da melhor maneira possível as necessidades que têm de ser satisfeitas para 
que ela possa prosperar: integração interna e adaptação ao ambiente externo 
(necessidades do “organismo social”). Toda sociedade “rejeita” o conflito interno. 
 
•Trata o objetivo “prosperidade” como se fosse um objetivo “auto-evidente” e 
“neutro” – um objetivo que a sociedade (ou grupo) enquanto tal possui, e que seria 
independente e neutro em relação aos (diferentes e opostos) interesses, valores e 
propósitos dos homens que dela fazem parte. 
 
•Crítica: prosperidade não pode ser tratada como um objetivo neutro. Diferentes 
visões de prosperidade. Necessidade de colocar questões do tipo: Prosperidade para 
quem? Que tipo de prosperidade? Por que esse tipo e não outro? 
78 
 
- Tópico 16: Abordagem Interpretativa (Hermenêutica). 
 
- Imagem Idealista da Sociedade. 
 
- Imagem da sociedade como Cultura, ou seja, pluralidade de estruturas de interação 
comunicativa entre seres dotados de consciência e linguagem, capazes de 
compreender, aplicar e reproduzir determinados padrões de atribuição de sentido 
(modos de pensar e interpretar as coisas; modos de agir regidos por estes modos de 
pensar; ideias em sentido amplo). 
 
- Imagem de caráter “Construtivista”: sociedade é “construída” por sujeitos dotados de 
consciência e linguagem. 
Sociedade é construída à medida que estes sujeitos aplicam e reproduzem certos 
padrões interpretativos em suas variadas interações comunicativas (ações humanas 
sempre ocorrem no âmbito de estruturas linguístico-comunicativas reproduzidas 
através dos atos de fala dos seres humanos). 
 
- A abordagem interpretativa da sociedade pode ser considerada como um dos 
desdobramentos do idealismo alemão iniciado em Kant, e, particularmente, do 
idealismo hegeliano. 
- Entretanto, ao contrário do idealismo hegeliano, a abordagem interpretativa não 
adota o enquadramento dialético, que em Hegel associa-se a uma filosofia da história 
de aspecto determinista. 
 
- A abordagem interpretativa da sociedade sofre influência de certas ramificações da 
tradição idealista de conceituação da relação sujeito-objeto, como a Fenomenologia 
de Husserl (1859-1938) e a “Fundamentação das Ciências do Espírito” de Dilthey 
(1833-1911). 
 
- Alguns dos principais expoentes da abordagem interpretativa da sociedade: 
- George Herbert Mead (1863-1931). 
- Max Weber (1864-1920). 
- Alfred Schütz (1899-1959). 
 
 
Premissas filosóficas da abordagem interpretativa: a influência do idealismo alemão e 
da fenomenologia. 
 
- Na experiência vivida, ou na experiência dos homens que vivem em sociedade, todos 
os elementos ou itens que fazem parte da existência (quer sejam os dados do 
ambiente natural, quer as necessidades, impulsos e desejos de caráter mais natural ou 
biológico, quer sejam seres humanos, e os propósitos e interesses que implicam 
relações e interações entre seres humanos); - todas as coisas estão por assim dizer 
“envolvidas” por ideias, modos de pensar ou compreender, equivalendo tanto a 
modos de atribuir sentido (significado) a estas coisas, quanto a modos de agir 
impregnados e governados por estes modos de compreender. 
79 
 
- Os dados da experiência vivida só existem na relação com a consciência e com as 
ideias através das quais a consciência reconhece ou atribui sentido a estes dados. Em 
outras palavras, os dados da experiência humana só existem por meio e “no” meio 
(ambiente) das ideias (em sentido amplo) que os homens têm ou podem ter sobre 
eles. As ideias são o “elemento” no qual os dados da experiência vivida existem. 
 
- A realidade desses elementos para os homens (a realidade que eles têm na 
experiência humana, ou na vida humana) equivale ao modo como eles historicamente 
aparecem para os homens, ou seja, ao modo como eles historicamente são vistos e 
compreendidos (interpretados) pelos homens. 
 
- A realidade que esses elementos têm para os homens equivale ao sentido que eles 
historicamente têm para os homens, ou seja, depende das ideias com que os homens 
de uma determinada época ou cultura os situam, organizam e integram em sua 
concepção e projeto de vida. 
 
Três frases equivalentes: (1) As ideias são o “elemento” (“meio”) no qual os dados da 
experiência vivida existem. (2) A linguagem é o “elemento” (“meio”) no qual os dados 
da experiência humana existem. (3) O “elemento” (“meio”) no qual os dados da 
experiência vivida existem é o Sentido. 
 
- Isso não significa que todos os dados sejam completamente
redutíveis a ideias. 
- Por exemplo, os impulsos e processos biológicos constitutivos do substrato natural da 
vida humana não são completamente redutíveis às ideias que os homens têm ou 
podem vir a ter sobre eles. 
- Entretanto, na experiência vivida, esses impulsos sempre estão por assim dizer 
atravessados e envolvidos por determinadas ideias. O dado natural só existe na relação 
com ideias (muitas vezes há diversas ideias, contrárias entre si). 
 
- O cientista da natureza (o médico, por exemplo) procura focalizar os impulsos e 
processos biológicos independentemente das ideias através das quais as próprias 
pessoas vivenciam esses processos. 
- Já as ciências humanas e sociais (a psicanálise ou a antropologia, por exemplo) 
focalizam as ideias por meio das quais esses elementos biológicos existem e atuam na 
experiência vivida das pessoas. No âmbito das ciências humanas e sociais, esses 
fatores biológicos só existem na relação com a consciência e com as ideias através das 
quais a consciência reconhece o sentido que esses fatores têm na experiência vivida. 
 
- Do ponto de vista das ciências humanas e sociais, as ações humanas sempre ocorrem 
no meio (elemento) das ideias e concepções através das quais os homens as planejam, 
explicam e justificam. 
- Essas justificativas muitas vezes assumem o caráter de desculpa, ou seja, o homem se 
justifica por ter praticado uma ação contrária à concepção que ele em princípio adota 
e prefere, ou que é preferida no contexto em que ele está atuando. E ele se justifica 
com uma ideia em princípio contrária àquela que ele (ou a sociedade) mais preza. 
80 
 
- Esta oposição entre ideias se expressa em sentimentos típicos de seres dotados de 
consciência e linguagem, como os sentimentos de vergonha, remorso, culpa. 
- Essa justificativa pode inclusive assumir a forma da seguinte ideia: “eu sou um 
animal, não consigo resistir aos meus impulsos”. 
- Mesmo que o ser humano aja com este tipo de ideia, ele continua agindo “com” uma 
ideia, e não de modo puramente instintivo, como fazem os animais. 
 
- O que define a liberdade humana é, justamente, a necessidade ou inevitabilidade de 
usar certas ideias e concepções para planejar, explicar e justificar (desculpar) as ações 
humanas. 
 
- As ações que realizamos, inclusive ações ou atos de fala; as ações (inclusive atos de 
fala) com que respondemos às palavras ou ações dos outros; as ações que planejamos, 
quer individualmente quer em grupo; as ações que comunicativamente propomos, 
recomendamos ou ordenamos a outras pessoas; as ações que esperamos dos outros, 
etc.: para a abordagem interpretativa, as ações humanas sempre são veículo e 
expressão de ideias, modos de pensar, modos de conferir sentido ou significado. 
 
- Para a abordagem interpretativa, portanto, não existem, na experiência e história 
humanas, dados, condições, estruturas ou leis “objetivas”, no sentido de 
independentes das ideias veiculadas e empregadas nas interações comunicativas dos 
seres dotados de consciência e linguagem. 
 
- Isto não significa que as ideias empregadas nas estruturas e interações comunicativas 
sejam sempre conscientemente adotadas e utilizadas. 
Ao contrário, os expoentes da abordagem interpretativa reconhecem que na grande 
maioria das vezes nós aplicamos e reproduzimos certos padrões de pensamento de um 
modo automático e irrefletido, sem estarmos cientes ou conscientes disso. 
 
- No âmbito da abordagem interpretativa, entretanto, o “inconsciente” indica apenas 
os limites da consciência, e não um substrato (“objetivo”) logicamente anterior à 
consciência. Trata-se dos limites na capacidade da consciência de reflexivamente 
conscientizar-se dos padrões de pensamento que governam suas ações, e, mais ainda, 
na capacidade de reflexivamente alterar esses padrões de pensamento. 
 
- Grande parte dos padrões mentais que regem nossa sensibilidade, compreensão e 
conduta são transmitidos a nós sem que tenhamos capacidade de conscientemente 
refletir sobre eles, analisa-los, exercer escolhas quanto a eles. 
Mas isso não significa que eles deixam de ser padrões “mentais” (irredutíveis a 
processos puramente físicos ou fisiológicos), ou seja, padrões que subsistem no meio 
(“elemento”) da linguagem e do sentido, e não num meio (elemento) puramente 
físico, independente das interações comunicativas conferidoras e transmissoras de 
sentido. 
 
81 
 
- No âmbito da abordagem interpretativa, quando um homem “vê” um dado (uma 
árvore, por exemplo), ele não está simplesmente respondendo ou reagindo a 
estímulos sensoriais de caráter puramente físico ou fisiológico. 
- No caso do ser humano, a visão é um processo irredutivelmente mental e linguístico. 
- O ser humano na verdade “reconhece” o dado, ou seja, identifica-o como caso de 
certo conceito, nomeando-o com o termo linguístico correspondente. E todo conceito 
(o conceito árvore, por exemplo) é parte de uma rede linguístico-conceitual, ou seja, é 
parte de uma estrutura de classificação, organização, interpretação e avaliação dos 
dados. 
- Reconhecer um dado como “uma árvore” é conferir-lhe o sentido de “ser árvore”, ou 
seja, é conferir-lhe certo sentido dentro de certa “visão de mundo”. 
- A visão de mundo articula o sentido das coisas na totalidade da nossa experiência 
vivida. Por exemplo: qual o lugar da árvore nas classificações com que organizamos 
nossos dados? De que modo situamos a árvore naqueles esquemas de interpretação e 
avaliação que nós empregamos para lidar com os dados? Responder a este tipo de 
pergunta é estabelecer o sentido do “ser árvore”. E, na experiência vivida, a existência 
do dado equivale ao sentido que ele tem para nós. 
Como dito acima, o “elemento” (“meio”) no qual os dados da experiência vivida 
existem é o Sentido (a linguagem, as ideias). 
 
 
- As teses centrais da abordagem interpretativa da realidade social: 
 
- Essência da realidade social é a interação simbólica entre seres humanos. 
Interação simbólica: transmissão, troca e reprodução de “idéias de sentido”, ou seja, 
idéias que exprimem o sentido que os objetos e itens da vida social têm para os 
homens. 
 
- O que o cientista social focaliza nunca são dados “objetivos”, mas dados da 
experiência vivida, ou seja, dados atravessados ou envolvidos por determinadas ideias 
e interpretações, que exprimem o sentido que esses dados têm para os homens que 
vivem em sociedade. 
 
- A realidade social é composta por uma pluralidade de contextos de interação 
simbólica: família, escola, associações recreativas, igreja, organizações privadas, 
agências do Estado, etc. 
- Estes contextos são regidos por diferentes padrões de pensamento ou interpretação. 
- O Sentido dos dados varia conforme o contexto de interação. 
- Um contexto de interação simbólica, regido por certo(s) padrão(ões) de 
interpretação, equivale a um contexto cultural, a uma cultura. 
- No âmbito da abordagem interpretativa, reconhece-se que frequentemente há 
(sub)culturas dentro de culturas mais abrangentes. 
 
- As idéias de sentido que os seres humanos transmitem e trocam na interação 
simbólica cristalizam-se em estruturas e padrões de significação, ou seja, modelos 
mentais que se tornam independentes das consciências humanas tomadas 
82 
 
individualmente; em cada contexto de interação simbólica, a consciência individual 
encontra padrões de significação relativamente cristalizados e independentes. 
- A consciência individualmente tomada sempre é formada segundo padrões 
atitudinais e interpretativos que lhe são anteriores e independentes, e que ela muitas 
vezes aplica e reproduz de forma automática e irrefletida, inconsciente. 
 
- Em cada contexto de interação simbólica tende a destacar-se um padrão de 
significação dominante, que o indivíduo que participa desse contexto aprende a aplicar 
e reproduzir. Numa certa medida, as consciências individuais são governadas
pelo 
padrão de significação dominante em cada contexto de interação simbólica. 
 
- O indivíduo tem a capacidade de participar de diferentes contextos de interação, ou 
seja, tem a capacidade de aplicar e reproduzir padrões de significação vigentes em 
diferentes contextos de interação simbólica. 
 
- A consciência individual é formada segundo os padrões de significação vigentes na 
cultura em que ela vive. A formação da consciência individual ocorre por meio da 
internalização de padrões de significação culturalmente vigentes. 
 
- Ainda que os padrões de significação adquiram certa independência em relação às 
consciências humanas tomadas individualmente, eles sempre são em alguma medida 
(mas não de modo completo e absoluto) permeáveis às atividades da consciência 
humana: reflexão, conscientização, compreensão, avaliação crítica. 
 
- Idéias de sentido e padrões de significação nunca são “objetivos” no sentido 
positivista do termo (elementos totalmente externos e impermeáveis à consciência e 
às capacidades e atividades próprias da consciência). 
 
As variantes da abordagem interpretativa. 
 
1) Do ponto de vista da própria realidade social: 
 
1.A) Ênfase na reprodução relativamente automática e irrefletida dos padrões de 
significação culturalmente vigentes. Menor ênfase na participação consciente dos 
sujeitos na construção da realidade social. (Mas esta posição não é incompatível com a 
tese de que os padrões de significação sempre são em certa medida permeáveis às 
atividades próprias da consciência, como reflexão, conscientização, compreensão, 
avaliação crítica). 
- Ênfase nas estruturas relativamente rígidas geradas pelos padrões de significação 
culturalmente vigentes. 
- Ênfase na idéia de que a ação humana está subordinada às estruturas vigentes 
(conforma-se a elas, tende a reproduzi-las, é limitada por elas). Liberdade humana 
sempre e inevitavelmente está enquadrada em estruturas culturalmente vigentes. 
 
1.B) Ênfase na possibilidade de participação consciente e refletida dos sujeitos na 
construção e reconstrução da realidade social. 
83 
 
- Ênfase na possibilidade de efetuar mudanças na ordem cultural, por meio da 
projeção de novas atitudes e idéias de sentido, capazes de se tornarem polos de 
atração e reconfiguração dentro das redes comunicativas constitutivas da estrutura 
social. 
- Ênfase na relativa autonomia da ação individual em relação às estruturas vigentes; 
liberdade humana é, justamente, poder em alguma medida (mas não de modo 
completo e absoluto) não conformar-se às estruturas vigentes. 
 
2) Do ponto de vista da metodologia da ciência social. 
2.A) Ênfase numa atitude mais neutra em relação às avaliações (juízos valorativos e 
normativos) inerentes às idéias de sentido e padrões de significação envolvidos nas 
interações simbólicas. 
- Ênfase na diferença entre “compreender” idéias de sentido e padrões de significação, 
que exige “relacionar-se” com as avaliações a eles inerentes, e, por outro lado, julgá-
los positiva ou negativamente (diferença entre “relação a valores” e “juízos de valor”). 
(Diferença entre “ciência social” e “posicionamento político”). 
 
2.B) Ênfase na idéia de que a ciência social sempre é um momento da prática sócio-
política do cientista. Toda compreensão da realidade social, mesmo de uma realidade 
social alheia àquela em que o próprio cientista vive, tem implicações para a auto-
compreensão das pessoas que são contemporâneas ao cientista, tem implicações, 
portanto, para a discussão político-cultural da sociedade em que vive o cientista. 
- Ênfase na idéia de que a ciência social, mesmo não sendo retórica ou propaganda, 
tem efeitos indiretos sobre a auto-compreensão das pessoas que lêem o trabalho do 
cientista social. 
- Ênfase na tese de que a expressão pública da compreensão do cientista social, 
mesmo não sendo (e não devendo ser) retórica ou propaganda, é parte da discussão 
política (político-cultural) da sociedade em que vive o cientista social. 
- Analisar certos padrões atitudinais e interpretativos implica não apenas relacionar-se 
aos valores e normas a eles inerentes, mas também “lança-los” ou “projetá-los” de um 
determinado modo (segundo certa perspectiva) no horizonte de sentido da sociedade 
em que vive o cientista, ou seja, na discussão político-cultural da sociedade em que 
vive o cientista. 
 
Consciência do sujeito sempre participa do processo social 
 
•A consciência do sujeito sempre participa, de algum modo, do processo social (em vez 
de ser simplesmente conduzida por fatores “objetivos”, como nas abordagens 
positivistas): essa participação pode consistir numa reprodução mais ou menos 
irrefletida dos padrões de significação vigentes, mas pode consistir também numa 
tentativa de re-estruturação dos mesmos, mediante projeção de novas idéias de 
sentido, capazes de se tornar “fatores de atração” dentro do sistema cultural. (re-
estruturação “desde dentro”). 
 
84 
 
- Tópico 17: Alguns conceitos da sociologia de Max Weber (1864-1920), um dos 
principais expoentes da abordagem interpretativa. 
 
 
I) 4 “tipos ideais” de ação social. Modelos idealizados, abrangentes e abstratos de 
identificação do sentido da ação humana – na experiência concreta esses tipos se 
misturam, mas o pesquisador procura analisar qual deles predomina e qual o grau de 
“desvio” em relação ao tipo puro. 
 
1) Ação afetiva: sentido da ação (explicação ou justificativa que pode ser dada à ação) 
consiste numa obediência relativamente automática e irrefletida a afetos, 
sentimentos, emoções, ou seja, a padrões atitudinais (que são um tipo de padrão 
mental) de caráter mais imediatista. 
Para se justificar, o agente apresenta como motivo uma emoção de caráter irrefletido. 
 
- Na sociologia weberiana, a ação afetiva não equivale a uma ação estritamente 
“instintiva”, mas a uma ação governada por “ideias” (atitudes ou emoções, tomadas 
como elementos irredutivelmente mentais, e não neurofisiológicos). Trata-se apenas 
de ideias de caráter mais imediatista, inconsciente e irrefletido. (Como dito acima, na 
abordagem interpretativa o “inconsciente” equivale aos limites da consciência, e não a 
um substrato físico logicamente independente da consciência). 
Quaisquer que sejam os dados físicos ou fisiológicos presentes nos afetos e emoções, 
enquanto afetos e sentimentos humanos eles existem no “meio” ou “elemento” da 
consciência ou mente, que é o elemento da ideia e do sentido. 
Afetos e emoções equivalem a ideias em sentido amplo, fatores irredutivelmente 
mentais, ou seja, fatores que não podem ser reduzidos a estruturas e processos 
logicamente anteriores e independentes em relação aos processos da consciência. 
 
Weber classifica a ação afetiva como um tipo de ação “irracional”. A razão desta 
classificação é o contraste com as ações “racionais”, como se verá logo a seguir. 
 
2) Ação tradicional: sentido da ação consiste na obediência relativamente automática 
e irrefletida às crenças, costumes e práticas tradicionais, ou seja, há muito tempo 
transmitidas e seguidas no grupo social em que o agente foi formado. Para se 
justificar, o agente recorre à vigência de um padrão tradicional de comportamento. 
 
Weber também classifica a ação tradicional como um tipo de ação irracional. 
 
3) Ação racional com relação a um valor. Sentido da ação consiste no fato de que ela, 
nela mesma, encarna um valor consciente e refletidamente assumido pelo agente. 
 
- Valores, neste caso, são bens (fins, idéias que os homens buscam seguir e efetivar) 
“internos” à ação, e que transformam a ação em “fim em si mesma” – em oposição a 
uma ação que é apenas meio para um bem ou fim que lhe é externo, que está além 
dela mesma, como ocorre na “ação racional com relação e um fim”, que será analisada 
logo a seguir. 
85 
 
Exemplos de valor: honra, honestidade, lealdade ou fidelidade, amor, vocação,
justiça. 
 
** Elaborações que nós podemos fazer do conceito weberiano de “ação racional com 
relação a um valor”, tendo em vista uma melhor compreensão dos tipos ideais de 
legitimação da dominação, que serão vistos abaixo. 
- Nós podemos identificar dois tipos específicos de ação racional com relação a um 
valor, os quais, embora sejam ações racionais com relação a um valor, representam 
uma espécie de “mistura” com a ação afetiva e com a ação tradicional, vistas acima. Os 
dois tipos são: 
 
3.a) Ação racional com relação ao valor “mágico” dos afetos, emoções, sentimentos. 
Padrão de significação (atribuição de significado) marcado por uma valorização 
consciente e refletida dos afetos e emoções, como elementos que infundem “encanto” 
e “magia” à existência, salvando-a do tédio, banalidade, mediocridade. 
 
3.b) Ação racional com relação ao valor “tradição sagrada”. Padrão de significação 
(atribuição de significado) marcado por uma valorização consciente e refletida da 
ordem social tradicional, e também do desempenho excelente das obrigações 
definidoras dos papéis sociais dentro desta ordem. 
- Valorização consciente e refletida do caráter “sagrado” da tradição, como fonte vital 
que garante a identidade, continuidade e vigor do grupo; valorização consciente e 
refletida da “virtude”, entendida como cumprimento excelente das expectativas 
sociais definidoras do papel social próprio do agente dentro da ordem tradicional. 
 
 
4) Ação racional com relação a um fim. Sentido da ação remete à utilidade ou 
eficiência da mesma para fins (resultados) que lhe são externos; ação é meio para a 
realização de um resultado que lhe é externo, que está além dela, no futuro. Sentido 
da ação remete às conseqüências da mesma em relação a um resultado ou fim 
perseguido pelo agente. 
- No âmbito deste tipo de ação, há uma tendência a conceber os fins em termos, 
simplesmente, de maximização indefinidamente prorrogada e prolongada de 
resultados em princípio traduzíveis em termos quantitativos. A eficiência passa a ser o 
fim (deixa de ser uma qualidade dos meios), e um fim que só pode ser 
operacionalizado à medida que é traduzido em termos quantitativos. 
- Weber acreditava que, no âmbito desse tipo de ação social e dessa forma de 
racionalidade, a realização plena da existência é continuamente reposicionada para o 
futuro, o que gera um certo grau de ansiedade e frustração, revelando um aspecto de 
irracionalidade presente nesse padrão de significação (ou modo de pensar) tão 
influente na cultura ocidental contemporânea. 
- Para Weber, a rejeição dessa experiência de ansiedade e frustração associada à 
racionalidade com relação a fins explica a tendência ao desenvolvimento dos dois tipos 
mais específicos de ação racional com relação a um valor, acima indicados – 
especialmente a ação racional com relação ao valor “mágico” dos afetos e 
sentimentos, que é um tipo de ação que pode estar na base de certas formas 
86 
 
contemporâneas de legitimação carismática da dominação, como veremos logo a 
seguir. 
 
 
II) Em estreita associação com o tópico dos tipos de ação social, há o tópico dos “tipos 
ideais” de legitimação da dominação social: modelos idealizados, abrangentes e 
abstratos de identificação do sentido ou significado do fenômeno da dominação 
socialmente aceita e legitimada. 
Em outras palavras, trata-se de modelos abstratos das idéias e crenças que conferem 
legitimidade à dominação. Na experiência concreta esses tipos se misturam, mas o 
pesquisador procura analisar qual deles predomina e qual o grau de “desvio” em 
relação ao tipo puro. 
 
1) Dominação carismática: legitimação da dominação vincula-se à crença dos 
dominados no “carisma” do governante, visto como qualidade excepcional, 
extraordinária, “mágica”. 
- Pode-se perceber uma correspondência deste tipo de dominação tanto com a ação 
afetiva (resposta irrefletida a sentimentos de admiração e adoração por um indivíduo 
“extraordinário”) quanto com a ação racional com relação ao valor dos sentimentos e 
atitudes de devoção, lealdade e fidelidade ao líder extraordinário. 
 
2) Dominação tradicional: legitimação da dominação vincula-se à crença dos 
dominados ou na inevitabilidade e irrevogabilidade ou na sacralidade da ordem 
tradicional, na qual o mando político é tradicionalmente exercido por determinadas 
famílias ou grupos. 
- Há uma correspondência tanto com a ação tradicional (obediência irrefletida às 
normas, costumes e práticas tradicionais) quanto com a ação racional com relação ao 
valor da sacralidade da ordem tradicional e dos papéis sociais contidos nesta ordem. 
- A dominação se legitima ou pela crença mais ou menos irrefletida e acrítica na 
irrevogabilidade da ordem tradicional (o peso das práticas tradicionais, a 
“naturalidade” do fato de “em nossa sociedade estas pessoas sempre mandaram”), ou 
pela valorização consciente e refletida da sacralidade da ordem tradicional e da virtude 
a ela correspondente (valorização do desempenho excelente das expectativas da 
comunidade, definidoras do papel de cada um dentro da ordem tradicional). 
 
3) Dominação racional, legal e burocrática, que se efetiva por meio da organização 
burocrática, ou do Estado burocrático. (Como veremos logo a seguir, em Weber, o 
conceito de “organização burocrática” designa uma organização regida por 
determinado modo de pensar e atribuir sentido, o modo de pensar próprio da 
racionalidade com relação a fins. Em outras palavras, na sociologia weberiana a 
“organização burocrática” é uma organização de cultura burocrática, governada pelo 
modo de pensar típico da racionalidade com relação a fins). 
- Neste caso, a legitimação da dominação vincula-se à crença na eficiência “técnica” de 
uma forma de organização das pessoas e recursos caracterizada pela racionalidade da 
estrutura ou organograma, qualificação técnica dos ocupantes dos cargos definidos no 
87 
 
organograma, impessoalidade e meritocracia no preenchimento dos cargos e na 
ascensão na hierarquia dos cargos. 
 
- Há uma correspondência com a ação racional com relação a fins. Legitimação da 
dominação se dá por meio da crença na racionalidade técnica, com a idéia de 
eficiência que lhe é típica. Legitimação da dominação vincula-se à crença na eficiência 
da Organização racional ou burocrática para a realização indefinidamente prolongada 
e aumentada de fins (resultados essencialmente futuros) passíveis de quantificação. 
Predomínio de metas quantificadas, em todas as áreas: produção econômica, 
consumo, segurança, saúde, educação, etc. 
- Weber acreditava que, como consequência e expressão deste tipo ideal de 
legitimação da dominação, os regimes democráticos nos Estados ocidentais 
contemporâneos tenderiam cada vez mais a uma “tecnocracia”, onde o 
preenchimento até mesmo dos cargos eletivos estaria mais ligado à noção de 
competência técnica do que a uma discussão sobre os valores (bens ou fins internos às 
práticas sociais coletivas) a serem adotados e promovidos pela coletividade. 
- Em Weber, “tecnocracia” e “burocracia” são termos mais ou menos sinônimos. 
 
 
III) Para Weber, a característica essencial da cultura contemporânea é o predomínio 
crescente de determinado modo de pensar e atribuir sentido, o da racionalidade com 
relação a fins. Trata-se do modo de pensar que governa a ação racional com relação a 
fins, e que se manifesta e exerce nas organizações de caráter tecnocrático ou 
burocrático, tanto na esfera econômica quanto na esfera política. 
 
- Weber propôs uma hipótese famosa a respeito da origem do modo de pensar 
veiculado na ação racional com relação a fins. De acordo com esta hipótese, o domínio 
crescente deste tipo de ação social tem sua origem nas idéias e crenças típicas do 
calvinismo (uma das correntes religiosas mais influentes da reforma protestante). 
Weber expôs sua hipótese no famoso livro “A Ética Protestante e o Espírito
do 
capitalismo” (1905). 
Para Weber, o sistema capitalista é a expressão mais importante da ação racional com 
relação a fins. 
 
•Em sua origem, a racionalização da sociedade (no sentido da racionalidade com 
relação a fins) esteve intimamente associada ao desenvolvimento do “espírito do 
capitalismo”, caracterizado da seguinte maneira: para maximizar os resultados 
econômicos (fim indefinidamente reposicionado no futuro), reinvestimento 
permanente dos ganhos auferidos, com a concomitante busca da maior eficiência. 
(Para Weber, o que define o capitalismo não é simplesmente o desejo de lucro, mas o 
desejo de expandir de forma continuada e indefinida as oportunidades de lucro). 
 
•“Espírito do capitalismo”. Combinação incomum de: desejo de riqueza e, por outro 
lado, frugalidade na vida pessoal. Em vez de ganhar para gastar e gozar a vida, ganhar 
para expandir indefinidamente os ganhos, mediante reinvestimento dos ganhos no 
88 
 
processo produtivo. O lucro é buscado para maximizar indefinidamente as 
oportunidades de lucro. 
 
•“Ética protestante”: visão de mundo elaborada nas seitas calvinistas, ou seja, seitas 
nas quais foram aplicadas e em certa medida modificadas as doutrinas de Calvino 
(1509-1564), um dos mais importantes líderes da reforma protestante no início da era 
moderna. 
Nas seitas calvinistas, o êxito econômico foi tomado como sinal de se ter sido 
escolhido por Deus (para contrabalançar a ansiedade gerada pela doutrina da 
predestinação defendida por Calvino). 
- Doutrina da predestinação defendida por Calvino: Deus predestinou cada um de nós 
à salvação ou condenação, sem que possamos, por nossos atos ou obras, modificar 
esse decreto divino. A salvação é para o homem um dom totalmente gratuito da graça 
divina. Rejeição de práticas “institucionalizadas” com vistas à salvação. 
- O calvinista não só não pode fazer nada para conquistar sua salvação, como também 
não tem como saber se será salvo ou condenado, e essa incerteza pode se tornar 
psicologicamente intolerável. Em virtude de uma inclinação psicológica quase 
irresistível, ele tende a procurar no mundo sinais de que foi escolhido por Deus. 
- Algumas seitas calvinistas terminaram por ver no êxito econômico uma prova ou 
indício da escolha de Deus. A riqueza era buscada, não como meio para se ter 
conforto, luxo ou prazer, mas como um meio pelo qual se adquiria confiança na 
escolha de Deus. A autoconfiança era adquirida por meio do trabalho árduo e 
contínuo, marcado pela renúncia aos luxos e comodidades da vida mundana e pelo 
reinvestimento permanente da riqueza alcançada. 
- Assim, o lucro era buscado, não para gozar a vida, mas para produzir e lucrar cada vez 
mais. Surge assim o “espírito do capitalismo”, que acaba se desvinculando de seus 
motivos religiosos e levando à plena legitimação do desejo de posse e acumulação de 
riqueza. 
 
• Resultado por assim dizer inesperado da ética protestante: combinação incomum de 
preocupação com a salvação da alma e preocupação com a otimização das 
consequências ou resultados econômicos. 
•Com o tempo, desaparece a preocupação religiosa e fica apenas a preocupação com a 
eficiência econômica. 
 
A teoria weberiana da organização burocrática. 
 
- Em Weber, a organização burocrática é a organização regida pelo modo de pensar 
próprio da ação racional com relação a fins. A organização regida por este modo de 
pensar equivale a uma cultura burocrática. 
- Em Weber, portanto, a organização burocrática é uma organização de cultura 
burocrática. 
 
 
 
89 
 
•O “tipo ideal” da organização (cultura) burocrática (manifestação do modo de pensar 
da racionalidade relativa a fins). 
•A) Regras impessoais, pautadas pela preocupação com a eficiência, regem o 
comportamento dos funcionários em todos os níveis. 
•B) Estrutura impessoal dos cargos, com definição clara e precisa das respectivas 
tarefas e responsabilidades, atribuídas aos indivíduos que ocupam os cargos (por 
serem definidos por tarefas e responsabilidades próprias de indivíduos, pode-se 
afirmar dizer que os cargos do organograma são eminentemente individuais). 
Preocupação com a eficiência técnica rege a definição do organograma. 
•C) Cargos são preenchidos segundo o princípio da qualificação técnica e profissional, 
com ênfase na possibilidade de ascensão na hierarquia dos cargos. Ascensão na 
hierarquia é regida pelo critério da meritocracia. 
•D) Hierarquia formal e bem definida das relações de autoridade e controle. Ênfase 
nas funções de supervisão e controle. 
•E) Separação nítida entre as tarefas do funcionário dentro da organização e sua vida 
pessoal fora dela. 
 
- É essencial destacarmos o seguinte. Na análise organizacional típica da imagem 
mecanicista (“teoria clássica da administração”, “administração científica”), o 
organograma e os cargos “individuais” (definidos por tarefas de responsabilidade de 
indivíduos específicos) também ocupam posição de destaque. 
 
- Mas há uma diferença essencial. Na administração clássica e científica, a preocupação 
com o organograma comparece no quadro de uma abordagem mecanicista, segundo a 
qual a essência da organização são indivíduos isolados entre si, movidos por 
necessidades estritamente materiais ou financeiras, e que assumem as tarefas e 
responsabilidades particulares (individuais) próprias de cargos definidos num 
organograma tecnicamente desenhado. 
- Nesta abordagem, o organograma é um item “objetivamente” necessário na 
organização, ou seja, um item que se faz necessário independentemente dos padrões 
de atribuição de sentido presentes na organização, um item logicamente 
independente e prioritário em relação aos modos de pensar presentes na organização. 
 
- Para o teórico da abordagem interpretativa, em contrapartida, a essência da 
organização são os modos de pensar e atribuir sentido seguidos pelos membros da 
organização. A essência da organização é a cultura organizacional. 
- A preocupação e primazia concedidas ao organograma, tomado como estrutura 
tecnicamente racional de cargos eminentemente individuais, são típicas de 
determinado tipo de cultura, a cultura burocrática. 
 
- Para o teórico interpretativo, a essência da organização (cultura) burocrática não é 
propriamente o organograma de cargos individualisticamente concebidos, mas as 
ideias e modos de pensar que atribuem grande significado e relevância ao 
organograma (ou seja, que se exprimem na importância e prioridade concedidas ao 
organograma, e também aos mecanismos de supervisão e controle). 
 
90 
 
- Em outras palavras, para os seguidores de Weber, a essência da organização (cultura) 
burocrática é uma ideia ou interpretação bem específica: a ideia ou interpretação 
segundo a qual o organograma e os mecanismos de controle (dos indivíduos que são 
responsáveis pelos cargos do organograma) são os itens mais importantes da 
organização, e itens “objetivamente” necessários. 
91 
 
- Tópico 18: A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. 
 
- Teoria da sociedade desenvolvida por pensadores vinculados ao “Instituto de 
Pesquisa Social” fundado na cidade de Frankfurt em 1923. 
 
Principais teóricos: Max Horkheimer (1895-1973). Theodor Adorno (1903-1969). 
Walter Benjamin (1892-1940). Herbert Marcuse (1898-1978). Jürgen Habermas 
(nascido em 1929). 
 
- Habermas é o autor em que vamos nos apoiar nesta apresentação simplificada da 
“Teoria Crítica da Escola de Frankfurt”. 
 
- Tendo em vista os propósitos de nosso curso e o esquema expositivo seguido até 
aqui, podemos afirmar que a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt sofre influências dos 
seguintes movimentos filosóficos. 
 
A) A Dialética Idealista de Hegel, depurada, porém, daqueles aspectos conceituais que 
em Hegel configuram a Dialética como uma filosofia da história de caráter 
determinista. 
Na Teoria Crítica contemporânea, as relações dialéticas deixam de
ser enquadradas 
num movimento linear marcado pela necessidade histórica típica de um processo 
destinado a determinado fim. 
Cabe destacar que esta interpretação determinista das relações dialéticas caracteriza 
não apenas a Dialética Idealista de Hegel, mas também a Dialética materialista do 
marxismo ortodoxo. 
Na Teoria Crítica contemporânea, especialmente na habermasiana, em vez de serem 
enquadradas numa filosofia da história marcada pela necessidade (determinismo) e 
teleologia, as tensões e oposições dialéticas são interpretadas como potenciais de 
mudança próprios de um processo de aprendizagem que precisa ser assumido e 
conduzido pelos próprios participantes, coletivamente. 
Este processo de aprendizagem é interpretado em termos de alterações nos modos de 
pensar culturalmente dominantes em diferentes épocas, especialmente na nossa. 
 
- Por enfatizar os modos de pensar culturalmente dominantes, a Teoria Crítica 
habermasiana pode ser considerada uma teoria de caráter idealista e construtivista. 
A sociedade é construída por sujeitos em interação comunicativa, ou seja, interação 
constituída de atos de fala baseados em ideias e modos de pensar. 
 
B) O Marxismo Ortodoxo, do qual herda o conceito de “teoria crítica”. 
Cabe destacar, entretanto, que a Teoria Crítica frankfurtiana (e especialmente a 
habermasiana) dissocia o conceito de teoria crítica da abordagem materialista e 
cientificista típica do marxismo ortodoxo, aproximando-o da abordagem idealista e 
culturalista típica da filosofia hegeliana, da fenomenologia de Husserl e da sociologia 
interpretativa de Max Weber. 
 
 
92 
 
O Conceito Geral de Teoria Crítica. 
 
- Conceito oriundo do marxismo ortodoxo. 
 
- O Conceito Geral de Teoria Crítica apresenta as seguintes características. 
- Estabelece-se um vínculo essencial entre teoria social e prática politicamente 
transformadora, interessada na superação da opressão ou exploração do homem, ou 
na realização do melhor potencial humano. A teoria social apresenta-se como 
momento da prática politicamente transformadora. 
- Por apresentar-se como momento da prática politicamente transformadora, a teoria 
social “crítica” assume duas tarefas fundamentais. 
A) Identificação das possibilidades “reais” (em oposição a meros “sonhos”) de 
mudança social, entendidas como possibilidades enraizadas na dialética da realidade 
social. 
Na Teoria Crítica habermasiana, trata-se de um potencial de mudança efetivamente 
inscrito na dialética da interação comunicativa, tomada como componente essencial 
de toda e qualquer realidade social, como se verá logo a seguir. 
B) Identificação dos obstáculos à prática transformadora. 
Na Teoria Crítica habermasiana, como será esclarecido logo a seguir, o principal 
obstáculo consiste em um modo de pensar (interpretar o sentido da vida humana e 
das relações com outros seres humanos) que tem dominado as interações 
comunicativas na época contemporânea, e que abafa ou oprime as melhores 
possibilidades da interação comunicativa, que equivalem ao melhor potencial dos 
seres humanos. 
 
 
A Teoria Crítica Habermasiana. 
 
1) A “interação comunicativa”. 
 
- Na Teoria Crítica habermasiana, o componente essencial da realidade social é a 
“interação comunicativa”. A interação comunicativa é o meio ou elemento no qual e 
através do qual ocorre a coordenação das ações humanas, fenômeno básico de toda e 
qualquer realidade social. 
- Para Habermas, a ligação e coordenação das ações humanas ocorrem por meio da 
realização, compreensão, aceitação e cumprimento de “atos de fala”, ou seja, 
proferimentos que veiculam, exprimem e se amparam em concepções e razões de 
algum modo compartilhadas pelos sujeitos que estão interagindo. 
- A coordenação das ações ocorre à medida que um ouvinte, ao compreender e aceitar 
o conteúdo verbal proferido por um falante (o ato de fala feito pelo falante), age da 
maneira correspondente ou consequente, dando seguimento à ação do falante. Em 
outras palavras, quando o ouvinte aceita o ato de fala, ele tende a agir da maneira 
indicada e esperada pelo falante, e assim as ações de falantes e ouvintes se ligam 
umas às outras. 
 
93 
 
- Para Habermas, a aceitação de um ato de fala baseia-se na compreensão e aceitação 
das razões pelas quais o falante pretende que sua fala é aceitável. Tais razões incluem 
concepções compartilhadas (compartilhadas entre os interlocutores) dos objetos e 
situações, dos interesses e fins perseguidos pelos participantes da situação, e das 
normas de comportamento aplicáveis em cada contexto. 
- Habermas usa o termo “acordo” para exprimir o fato de que o ouvinte, ao 
compreender as razões que explicam ou justificam o conteúdo proposto pelo falante, 
“aceita” este conteúdo e age da maneira que lhe é correspondente. 
- Na interação comunicativa, portanto, há acordo quanto à aceitabilidade de 
determinado ato de fala à medida mesmo que há acordo quanto às razões que 
amparam essa aceitabilidade, ou seja, acordo em torno de certas concepções 
(compartilhadas) das situações e dos interesses e fins perseguidos pelos participantes 
das situações. 
- Para Habermas, portanto, o aspecto essencial da interação comunicativa são os 
acordos entre os sujeitos que falam e compreendem as falas dos outros: a 
coordenação das ações ocorre por meio de acordos intersubjetivos quanto aos 
conteúdos veiculados nos atos de fala, e, consequentemente, quanto às razões que em 
cada situação justificam o proferimento de determinados conteúdos verbais, ou que 
sustentam a aceitabilidade dos atos de fala emitidos pelos interlocutores. 
- Em outras palavras, a interação comunicativa baseia-se em “acordos” entre os 
sujeitos: acordos quanto à aceitabilidade de atos de fala específicos e acordos quanto 
às razões mais abrangentes e genéricas (interpretações das situações, dos interesses e 
fins dos agentes envolvidos e das normas de comportamento aplicáveis nas situações) 
que sustentam a aceitabilidade dos atos de fala mais específicos. 
 
2) As duas formas de interação comunicativa. 
 
- De modo bastante simplificado, pode-se afirmar que, para Habermas, há duas formas 
básicas de interação comunicativa, equivalendo a duas formas básicas de acordo 
intersubjetivo. 
 
A) A primeira é a interação comunicativa “fraca”, constituída de acordos 
intersubjetivos “fracos”. 
- Trata-se de uma interação comunicativa dominada por um modo de pensar grosso 
modo “individualista”, que prioriza interesses e fins estritamente particulares, alheios 
à possibilidade de interesses e fins comuns ou coletivos. 
- Neste tipo de interação, a única coisa que é comum e compartilhada é, justamente, 
este modo de pensar grosso modo individualista, que faz com que cada participante 
tenha uma interpretação “particularista” das razões envolvidas tanto na realização 
quanto na aceitação dos atos de fala. O ouvinte espera que o ato de fala realizado pelo 
falante tenha a ver, basicamente, com razões (interesses, fins, projetos) particulares 
deste falante, e ele aceita e cumpre (comporta-se de modo consequente) o ato de fala 
à medida que de algum modo percebe razões particulares dele, ouvinte. O falante 
admite que, para obter a aceitação e cumprimento do ouvinte, ele precisa de algum 
modo falar a seus interesses, fins e projetos particulares. 
94 
 
Nenhum dos participantes conta muito com a possibilidade ou eficácia de valores, 
interesses e fins efetivamente comuns, compartilhados. 
- Na interação comunicativa fraca, portanto, a aceitabilidade dos atos de fala depende 
essencialmente de razões particulares (interesses e fins de indivíduos e grupos 
isoladamente tomados), típicas do modo de pensar grosso modo individualista e 
calculador predominante em nossa cultura. 
- Os acordos intersubjetivos baseados nesse modo de pensar grosso modo 
individualista são acordos “fracos”. As razões que motivam a adesão dos
participantes 
aos conteúdos acordados são razões eminentemente particulares, que variam de 
indivíduo para indivíduo, ou de grupos para grupo. 
- As razões só são “compartilhadas” no sentido de que ambos os participantes (falante 
e ouvinte) esperam e empregam (e nesse sentido legitimam) razões de tipo 
particularista, alheias à possibilidade de interesses e projetos efetivamente comuns. 
- Acordos intersubjetivos fracos exprimem relações de poder ou força: as razões 
particulares dos mais fortes ou poderosos prevalecem, e as razões particulares dos 
mais fracos exprimem o reconhecimento de uma relativa falta ou limitação de poder. A 
aceitação dos mais fracos exprime o poder dos mais fortes de acenar com 
recompensas e punições de caráter individualista, alheias à possibilidade de interesses, 
projetos e empreendimentos comuns. 
- Sistemas de ação (que sempre envolvem coordenação comunicativa de ações 
individuais) estruturados e regulados pela interação comunicativa “fraca” não podem 
ter o caráter de um empreendimento comum, experimentado pelos participantes 
como um empreendimento bom para todos, ou seja, justo. 
- De um ponto de vista histórico, a interação comunicativa fraca, baseada num modo 
de pensar grosso modo individualista, é aquela que predomina nas sociedades 
contemporâneas. 
- Recorrendo a uma simplificação das análises habermasianas, é possível afirmar que 
este modo de pensar individualista pode ser identificado ao conceito weberiano de 
“racionalidade relativa a fins”, que aparece na teoria habermasiana com o nome de 
“racionalidade instrumental”: um modo de pensar no qual os critérios e 
procedimentos da racionalidade estão a serviço de interesses e fins de caráter grosso 
modo particularista, alheios à possibilidade de interesses, fins e projetos efetivamente 
comuns. 
 
B) A segunda forma de interação comunicativa é a interação comunicativa “forte”, 
constituída de acordos intersubjetivos fortes. 
- Antes de apresentar as características desta forma de interação, cabe destacar o 
seguinte: 
- Sistemas de ação estruturados e regulados pela interação comunicativa “forte” têm o 
caráter de um empreendimento comum, ou seja, um empreendimento experimentado 
pelos participantes como bom para todos, justo. 
- Esta é a “melhor possibilidade” da interação comunicativa, equivalendo ao melhor 
potencial dos seres humanos. O melhor potencial dos seres humanos é a participação 
efetiva em empreendimentos comuns e compartilhados, ou seja, empreendimentos 
experimentados por todos como bons para todos, justos. 
95 
 
- A prática politicamente transformadora está interessada em promover ou fomentar 
este tipo “forte” de interação comunicativa. Ela está interessada na superação daquela 
forma de opressão encarnada no domínio da interação comunicativa fraca, ou no 
predomínio de acordos intersubjetivos fracos, que veiculam e reproduzem relações de 
poder ou força. 
- O principal obstáculo à prática transformadora reside no modo de pensar 
individualista predominante em nossa cultura, encarnado na forma de racionalidade 
que Habermas chama de “racionalidade instrumental”, a qual, ao ser utilizada na 
interação comunicativa, restringe esta interação à sua forma fraca, abafando e 
oprimindo o melhor potencial dos seres humanos. 
 
- Como vimos acima, a interação comunicativa fraca é regida por concepções, 
interpretações e razões (justificativas, argumentos) de caráter grosso modo 
particularista, que exprimem uma orientação do pensamento para interesses e fins 
admitidamente individuais e individualistas. 
- Já a interação comunicativa forte está baseada em razões “comuns”: as mesmas 
razões são compartilhadas entre os diferentes interlocutores, e são elas que subjazem 
à aceitabilidade dos atos de fala para os interlocutores. Não se trata de razões de tipo 
“bom para mim” e “bom para ele”, mas de tipo “bom (valioso, importante) para nós 
todos”, “razoável para todos”, “justo”. Razões comuns exprimem e encarnam uma 
orientação para interesses, projetos, fins e empreendimentos comuns. 
- Para marcar o contraste com as razões “particularistas” típicas da interação 
comunicativa fraca, pode-se afirmar que a interação comunicativa forte é regida por 
concepções, interpretações e razões de caráter grosso modo “comunitarista”, que 
veiculam e exprimem uma orientação para interesses, projetos e fins efetivamente 
comuns. 
- Na base da interação comunicativa forte está um modo de pensar grosso modo 
comunitarista, orientado para a construção e efetivação de interesses, projetos e fins 
verdadeiramente comuns. 
- Na interação comunicativa forte os participantes acreditam na possibilidade e eficácia 
de interpretações e valores de caráter comunitarista, no sentido acima indicado. 
- Os acordos intersubjetivos baseados no modo de pensar grosso modo comunitarista 
são acordos intersubjetivos fortes. As razões que motivam a adesão dos participantes 
aos conteúdos acordados têm um caráter fortemente cognitivo, e por isso este tipo de 
acordo pode ser considerado um “entendimento” em sentido estrito. 
 
- No entendimento em sentido estrito, as razões que motivam a adesão dos 
participantes não consistem em interesses e fins admitidamente particulares, mas 
consistem no reconhecimento coletivo de que o conteúdo acordado é razoável para 
todos, ou seja, justo. 
- As razões são compartilhadas num sentido forte: elas são reconhecidas por todos os 
participantes como razões que comprovam a razoabilidade do conteúdo acordado 
para todos os participantes. 
- Recorrendo a uma simplificação das análises habermasianas, é possível afirmar que o 
modo de pensar grosso modo comunitarista indicado acima pode ser identificado ao 
conceito de “racionalidade comunicativa”: um modo de pensar no qual as 
96 
 
competências e procedimentos próprios da racionalidade estão a serviço da 
construção e implementação de interesses, fins e projetos efetivamente comuns. 
 
- A racionalidade comunicativa é a capacidade de efetuar discussões, negociações e 
modificações (reformulações) nas interpretações e razões associadas aos interesses e 
fins particularistas, de modo a construir e implementar, paulatinamente, 
interpretações “comunitaristas” das situações de ação, ou seja, de modo a construir e 
implementar, paulatinamente, interesses, projetos e fins efetivamente comuns. 
- A passagem de uma perspectiva “particularista” para uma perspectiva 
“comunitarista” das ações e empreendimentos humanos equivale a um processo de 
aprendizagem a ser paulatinamente realizado pela sociedade como um todo. 
 
 
3) As possibilidades “reais” de mudança social, no sentido da efetivação da interação 
comunicativa forte. 
 
- Conforme vimos acima, uma das marcas essenciais do conceito geral de Teoria Crítica 
é a adoção da tarefa de indicar possibilidades “reais” para a mudança social, em vez de 
situar esta última no plano do sonho ou utopia. 
- Na tradição geral da Teoria Crítica, as possibilidades reais de mudança social são 
entendidas como possibilidades enraizadas ou inscritas na estrutura dialética da 
realidade social. 
- Na tradição mais específica da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que abandona a 
interpretação materialista e determinista das estruturas e processos dialéticos, típica 
do marxismo ortodoxo, as análises dialéticas dão muito mais atenção ao plano das 
ideias e modos de pensar, ao plano da cultura. 
- A Teoria Crítica habermasiana caracteriza-se por uma versão teoricamente mais 
nítida e poderosa dessa interpretação grosso modo idealista e culturalista da estrutura 
dialética da realidade social. Nessa versão, o foco da análise dialética recai nas tensões 
e oposições internas à estrutura contemporânea da interação comunicativa. 
- No modelo habermasiano, portanto, as possibilidades reais de mudança social são 
entendidas como possibilidades inscritas na estrutura dialética da interação
comunicativa típica das sociedades contemporâneas, que é a interação comunicativa 
“fraca”. Em outras palavras, trata-se de possibilidades inscritas ou enraizadas em 
tensões e oposições internas à interação comunicativa fraca. 
 
 
O pressuposto fundamental da interação comunicativa fraca. 
 
- Vimos acima que a interação comunicativa típica das sociedades contemporâneas é a 
interação comunicativa fraca, regida por um modo de pensar grosso modo 
individualista ou particularista. Afirmamos que a única coisa que é compartilhada na 
interação comunicativa fraca é, justamente, este modo de pensar grosso modo 
particularista. 
 
97 
 
- Devemos agora ajustar esta última afirmação, esclarecendo que, em verdade, há 
outra coisa que é comum e compartilhada, além do modo de pensar individualista: o 
reconhecimento do outro ser humano como sujeito capaz de compreender e seguir 
razões – os interesses e vantagens invocados na interação comunicativa fraca são 
razões, e não influências meramente físicas. 
- Para Habermas, como vimos acima, a coordenação das ações humanas sempre exige 
interação comunicativa, ou seja, interação fundada em atos de fala, proferimentos que 
veiculam conteúdos verbais dotados de sentido ou significado. 
- Na interação comunicativa, mesmo na interação comunicativa fraca, cada 
participante dirige-se ao outro esperando que ele seja capaz de compreender e 
implementar os conteúdos verbais transmitidos no ato de fala; que ele seja capaz, 
portanto, de compreender as razões subjacentes à aceitabilidade dos conteúdos. 
- Mesmo na forma mais fraca de interação comunicativa, a ameaça, a pessoa que faz a 
ameaça espera que a outra seja capaz de compreender o que ela está falando como 
uma ameaça, e uma ameaça suficientemente grave para leva-la a agir de determinada 
maneira. Embora seja um tipo de ato de fala relativamente próximo do estímulo ou 
influenciação meramente físicos, e embora apresente um caráter fortemente 
manipulador em relação à pessoa que está sendo ameaçada, a ameaça não deixa de 
ser um ato de fala endereçado a um sujeito capaz de compreender razões ou 
argumentos. Mesmo a ameaça pressupõe o reconhecimento da outra pessoa como um 
sujeito capaz de compreender e seguir razões. 
- Para Habermas, portanto, a interação comunicativa “fraca” pressupõe o 
reconhecimento de todo ser humano como sujeito capaz de compreender e seguir 
razões. 
- E é nesta pressuposição que se instalam as tensões e oposições típicas das estruturas 
dialéticas em geral, ou seja, tensões e oposições capazes de promover passagens a 
níveis superiores de consciência e ação. Tais passagens equivalem a um processo de 
aprendizagem e educação (formação) da humanidade como um todo. 
 
- O pressuposto inicial acima indicado (reconhecimento do interlocutor como um 
sujeito capaz de compreender razões e argumentos) contém um potencial diferente, 
normativamente mais forte. Há uma tensão e em certo sentido oposição entre esse 
pressuposto e o potencial normativo nele contido, as quais sugerem – embora não 
determinem – a passagem a um nível superior de consciência e ação. 
- O potencial normativo contido no pressuposto inicial é o potencial para o 
reconhecimento dos direitos comunicativos da outra pessoa – direito de questionar e 
rejeitar as minhas razões, direito de formular, defender e tentar implementar razões 
distintas. 
- O reconhecimento dos direitos comunicativos da outra pessoa contém ainda outro 
potencial, um pouco diferente, normativamente mais exigente. De novo, emerge uma 
tensão e em certo sentido oposição entre o reconhecimento dos direitos 
comunicativos da outra pessoa e o potencial normativo nele contido, as quais sugerem 
– embora não determinem – a passagem a um nível superior de consciência e ação. 
- Esse novo potencial é o potencial para o reconhecimento dos meus deveres 
comunicativos: dever de tentar construir um acordo razoável e justo com o outro, 
dever de me abrir à possível validade das razões do outro, e de modificar de modo 
98 
 
correspondente as razões que eu havia inicialmente defendido, de modo a construir 
razões efetivamente comuns, igualmente válidas para todos. 
 
- Pode-se propor a seguinte imagem das passagens dialéticas a níveis superiores de 
consciência e ação. 
 
A) No “elemento” da interação comunicativa, o ego individualista socialmente 
poderoso, ao relacionar-se dialeticamente com outro indivíduo, “passa” (passagem 
dialética) para o reconhecimento deste outro indivíduo como sujeito capaz de 
compreender e seguir razões. 
B) No elemento da interação comunicativa, o ego individualista socialmente poderoso, 
ao relacionar-se dialeticamente com um sujeito capaz de compreender e seguir razões, 
“passa” para o reconhecimento dos “direitos comunicativos” do outro sujeito. 
-Direitos como: direito de analisar criticamente as razões apresentadas, direito de 
questionar e discutir as razões apresentadas, direito de formular e exprimir outras 
razões, direito de dar início a um processo de barganha e negociação de razões, direito 
de participar de um processo de ajuste recíproco das razões em princípio contrárias, 
orientado para a superação das razões de tipo particularista e para a construção de 
razões de tipo “comunitarista”. 
- Na estrutura dialética da interação comunicativa fraca, no momento em que se 
insinua o reconhecimento dos direitos comunicativos insinua-se também o 
reconhecimento dos deveres comunicativos correspondentes. Em outras palavras, no 
momento em que se insinua o reconhecimento dos direitos comunicativos “do outro” 
insinua-se também o reconhecimento dos “meus” deveres comunicativos. Trata-se, 
essencialmente, do dever de adotar uma atitude sincera e responsável de abertura ao 
outro, de abertura às razões do outro, de abertura à qualidade e legitimidade das 
razões do outro. 
- Em última instância, trata-se do dever de buscar a superação do modo de pensar 
particularista que abafa as melhores possibilidades da interação comunicativa, e de 
tentar construir em conjunto uma perspectiva efetivamente comunitarista. 
 
 
- A terceira relação ou passagem dialética seria então a seguinte: 
C) No “elemento” da interação comunicativa, o ego individualista socialmente 
poderoso, ao relacionar-se dialeticamente com a admissão de direitos e deveres 
comunicativos, supera a perspectiva particularista e “passa” para o esforço de 
construção de projetos e fins efetivamente comuns. 
 
- Assim, na Teoria crítica habermasiana, lutar pelo reconhecimento dos meus direitos 
comunicativos não equivale a lutar pela imposição das minhas razões particularistas, 
contra as razões particularistas do outro. Lutar para que o outro reconheça os meus 
direitos comunicativos é, simultaneamente, assumir os meus deveres comunicativos 
em relação ao outro. É lutar pela superação do modo de pensar particularista que 
abafa as melhores possibilidades da interação comunicativa, ou o melhor potencial do 
ser humano; é lutar pela construção de um modo de pensar grosso modo 
comunitarista. 
99 
 
 
- Assim, às relações e passagens dialéticas próprias do ego individualista socialmente 
forte ou poderoso correspondem as relações e passagens dialéticas próprias do ego 
individualista socialmente “fraco”. 
A) No “elemento” da interação comunicativa, o ego individualista socialmente fraco, 
ao relacionar-se dialeticamente com o ego individualista socialmente poderoso, 
“passa” para uma atitude de protesto e luta em favor dos seus direitos comunicativos 
(ainda situados numa perspectiva particularista). 
B) No elemento da interação comunicativa, o ego individualista socialmente fraco, ao 
relacionar-se dialeticamente com a atitude ainda particularista de protesto e luta em 
favor dos seus interesses particulares (uma atitude cujo ápice dialético é a pura 
negatividade da “luta pela luta”), supera a perspectiva particularista e “passa”
para o 
esforço de construção com o outro de projetos e fins efetivamente comuns. 
 
4) Os obstáculos à efetivação da interação comunicativa forte: três ideologias das 
sociedades contemporâneas. 
 
- No marxismo ortodoxo, o conceito de ideologia tinha o sentido de ideias 
propositalmente difundidas pela classe dominante para mascarar uma exploração 
“objetiva” da classe dominada, ou seja, uma exploração que existe 
independentemente de qualquer ideia que os seres humanos possam ter acerca dela – 
quer se trate de ideias falsas, como as ideologias, quer de ideias verdadeiras, como as 
ideias que ensinam para a classe dominada quais são seus verdadeiros interesses, seus 
interesses “objetivos”, no sentido positivista analisado anteriormente. 
 
- Na Teoria Crítica Habermasiana, à reviravolta “idealista” na compreensão da 
realidade social e da estrutura dialética da mesma, corresponde uma reformulação do 
conceito de ideologia. 
 
- “Ideologia” passa a designar ideias e modos de pensar que oprimem, abafam ou 
esvaziam outro modo de pensar e ver as coisas, aquele que é próprio da interação 
comunicativa forte, e que pode ser chamado de “racionalidade comunicativa” (modo 
de pensar no qual as competências e procedimentos próprios da racionalidade estão a 
serviço da construção e implementação de interesses, fins e projetos efetivamente 
comuns). 
- A racionalidade comunicativa contém três ingredientes básicos: 
a) O reconhecimento dos direitos comunicativos do outro. 
b) O reconhecimento dos meus deveres comunicativos. 
c) Reflexividade crítica: atitude e prática de conscientização quanto a modos de pensar 
que possam abafar e esvaziar o melhor potencial humano, e a vivência de que a 
realização desse potencial é uma atividade boa em si mesma, é fim em si mesma. 
Como visto acima, trata-se do potencial para a construção e participação em 
empreendimentos efetivamente comuns. 
 
 
100 
 
- A estes três ingredientes da racionalidade comunicativa correspondem três tipos de 
“ideologia” (atitudes, ideias e modos de pensar que abafam o modo de pensar 
conceituado por Habermas como “racionalidade comunicativa”): 
 
a) A Ideologia da violência comunicativa: ideias que veiculam e exprimem uma atitude 
de desvalorização ou negação dos direitos comunicativos do outro. 
 
b) A Ideologia da irresponsabilidade comunicativa: ideias que veiculam e exprimem 
uma atitude de esquecimento ou negligência em relação aos meus deveres 
comunicativos – basicamente, o dever de tentar sinceramente aproximar-se do outro, 
de modo a construir projetos e empreendimentos comuns. 
 
c) A Ideologia da anestesia comunicativa: ideias através das quais a interpretação 
dominante sobre o que é bom para o homem se impõe e reproduz de forma sub-
reptícia, inconsciente e irrefletida. Avulta aqui o tema da “Técnica e Ciência como 
Ideologia”. 
O fascínio pela técnica e ciência acaba por abafar ou esvaziar a discussão crítica da 
interpretação segundo a qual o “bom (ou melhor) para o homem” consiste no 
consumo e conforto (consequências ou resultados indefinidamente expandidos e 
expansíveis) permitidos por um sistema econômico tecnicamente eficiente, que 
emprega em larga escala o conhecimento de tipo científico e suas inúmeras aplicações 
tecnológicas. 
- E este tipo de interpretação abafa e “oprime” a interpretação segundo a qual o “bom 
e melhor para o homem” consiste na participação em empreendimentos efetivamente 
comuns, ou seja, empreendimentos experimentados por todos como bons para todos, 
ou seja, justos. 
 
101 
 
- Tópico 19: Algumas relações entre as imagens da sociedade e as imagens da 
organização expostas por Gareth Morgan. 
 
 
1) Abordagens (Imagens) “positivistas” da organização. 
 
1.1) A abordagem mecanicista no campo da teoria das organizações. 
 
- Imagem da organização como “Máquina”. 
- Expoentes importantes: Fayol (Teoria Clássica da Administração), Taylor 
(Administração Científica). 
- Abordagem de caráter positivista: tende a deixar de lado a tese de que a realidade 
organizacional é construída por sujeitos em interação simbólica, ou seja, interação na 
qual são transmitidas e trocadas idéias e formas de pensar, relativas ao significado das 
coisas e do ambiente em geral. 
- Vê a organização como máquina: 
a) Visão “atomística” dos indivíduos que trabalham na organização: não coloca ênfase 
nas relações humanas ou sociais entre os indivíduos. 
- Funcionários são vistos como indivíduos isolados uns dos outros, com necessidades 
estritamente materiais (financeiras), e orientados exclusivamente pela racionalidade 
calculadora ou instrumental, entendida como capacidade de discernir os 
comportamentos necessários ou eficazes para a maximização da vantagem 
estritamente individual. 
- Necessidades materiais, interesses individuais e racionalidade calculadora ou 
instrumental são tomadas como elementos “objetivos” (no sentido positivista do 
conceito) da natureza humana. 
b) Ênfase no organograma: estrutura de cargos com tarefas e responsabilidades bem 
definidas, estabelecidas muitas vezes em regras escritas. 
- Uma vez que as tarefas e atividades próprias de cada cargo são tomadas como 
tarefas de responsabilidade individual, pode-se afirmar que os cargos do organograma 
são eminentemente individuais. 
- As ligações entre os cargos individuais são formalmente definidas no organograma, e 
assumem o aspecto de linhas de comando, supervisão e controle formalmente 
estabelecidas. 
- O organograma é tomado como um item “objetivamente” necessário na organização, 
ou seja, um item que se faz necessário independentemente dos padrões de atribuição 
de sentido presentes na organização, um item logicamente independente e prioritário 
em relação aos modos de pensar presentes na organização. 
c) Ênfase em punições e recompensas associadas às necessidades estritamente 
materiais dos funcionários, que funcionam como razões ou motivos no âmbito da 
racionalidade calculadora ou instrumental. 
d) Ênfase nas linhas de comando, supervisão e controle, de caráter fortemente 
hierárquico. Tais mecanismos de supervisão e controle também são tomados como 
itens “objetivamente” necessários, ou seja, itens que são necessários 
independentemente das ideias e modos de pensar empregados pelos participantes da 
organização. 
102 
 
 
1.2) A Abordagem funcionalista no campo da teoria das organizações. 
 
- Imagem da Organização como um “Organismo”. 
- Marcos históricos importantes: Elton Mayo e os estudos na fábrica de Hawthorne; 
Maslow e a hierarquia (pirâmide) das variadas necessidades humanas; a teoria dos 
sistemas abertos; a teoria da contingência, exemplificada pelos estudos de Burns e 
Stalker. 
 
- Vê a organização como um organismo. 
a) Processo “vivo” de trocas entre seres humanos com necessidades mais 
diversificadas e complexas do que as necessidades estritamente materiais ou 
financeiras focalizadas na imagem mecanicista. 
- Estas necessidades mais complexas envolvem laços de reconhecimento, afinidade e 
amizade entre as pessoas, que dão origem a estruturas informais muitas vezes mais 
importantes do que o organograma formal. 
- Neste modo de ver, as relações humanas e sociais presentes na organização têm mais 
relevância do que os funcionários tomados isoladamente. Como vimos, isto é típico da 
abordagem funcionalista da realidade social. Os indivíduos são focalizados como 
membros ou partes de uma rede de relações humanas e sociais. 
b) Ênfase na tese de que não há uma receita única do sucesso organizacional (“teoria 
da contingência”). A forma adequada de estruturar e gerir a organização depende dos 
desafios e tarefas que lhe são impostos pelo ambiente (externo). 
- O ambiente é visto como um fator “objetivo”, ou seja, um fator cujas características e 
influências (oportunidades, limites, ameaças, etc.) são totalmente independentes das 
ideias e modos de pensar
presentes na organização. Ambiente como elemento 
“objetivamente dado”. 
c) Embora a receita do sucesso organizacional varie, toda organização bem-sucedida 
deve atender a duas necessidades essenciais: integração e coerência interna 
(coerência entre os diversos aspectos e dimensões da realidade organizacional; 
integração entre setores, departamentos, funcionários, etc.) e, por outro lado, 
adaptação ao ambiente externo. 
- Estas necessidades são interpretadas como necessidades “objetivas”, no sentido 
positivista do termo: necessidades que existem e surtem efeitos independentemente 
das idéias, concepções e avaliações que os sujeitos tenham sobre elas. 
d) Visão grosso modo positivista do ambiente externo: ambiente externo é um 
elemento “objetivo” (ou “objetivamente” dado), ao qual a organização deve 
simplesmente adaptar-se. 
Não se coloca ênfase na tese de que o ambiente está sendo continuamente construído 
pelas diversas organizações que dele participam ou a ele se referem, ou seja, pelas 
atitudes, idéias e práticas destas organizações (esta última tese é típica das 
abordagens construtivistas: hermenêutica e Teoria Crítica da Escola de Frankfurt). 
e) Ênfase na “aprendizagem de circuito único” como mecanismo de adaptação passiva 
a um ambiente externo caracterizado por constantes mudanças. 
Aprendizagem de circuito único: captar informações do ambiente, ou captar 
informações sobre as mudanças no ambiente; relacionar estas informações às normas 
103 
 
operacionais e metas organizacionais; caso as mudanças no ambiente possam afetar o 
cumprimento das normas e metas, desencadear ações corretivas, sem questionar a 
pertinência e validade nem das normas nem das metas previamente fixadas. 
- Os efeitos das ações corretivas podem por sua vez retroagir sobre o próprio sistema, 
acarretando a necessidade de novas correções, mas sempre de acordo com normas e 
metas relativamente rígidas ou fixas, que não são postas em discussão neste processo 
de auto regulação do “organismo” bem adaptado. 
- Normas e metas organizacionais são tomadas como um “programa” ou “código” 
fundamental, objetivamente necessário (cuja necessidade não depende nem se vincula 
a padrões de atribuição de sentido), que não entra em discussão. 
- Ênfase na aprendizagem de circuito único implica ênfase nas tecnologias e sistemas 
de informação. 
- Apesar de enfatizar a importância das relações humanas e sociais no funcionamento 
da organização, focaliza estas relações de um ponto de vista grosso modo positivista, 
interpretando-as como manifestações de necessidades humanas objetivas, 
independentes das idéias e avaliações que os próprios sujeitos têm sobre elas. 
 
 
2) Abordagem (Imagem) “interpretativa” da organização (abordagem de caráter 
construtivista). 
 
- Neste tipo de abordagem, a organização é vista como “Cultura” (estrutura de ideias e 
modos de pensar, ou seja, modos de atribuir significado). 
 
- Abordagem de caráter construtivista: a organização é construída por sujeitos capazes 
de compreender, aplicar e reproduzir padrões de atribuição de sentido ou significado. 
 
- De acordo com essa imagem, a essência da organização são os modos de pensar, ou 
modos de atribuir significado, que seus integrantes aplicam e reproduzem, muitas 
vezes de forma relativamente inconsciente ou irrefletida. Dependendo dos padrões de 
significação (nome abreviado dos padrões de atribuição de significado) dominantes na 
cultura organizacional, teremos diferentes tipos de cultura. 
 
- De acordo com essa imagem, a essência da organização são os significados atribuídos 
aos diversos aspectos e itens da realidade organizacional. 
 
Por exemplo, o organograma: no âmbito da abordagem interpretativa, a realidade do 
organograma para os membros da organização consiste ou ao menos depende do 
significado que eles atribuem ao organograma. Por exemplo, se eles lhe atribuem o 
significado de elemento “decisivo”, “tecnicamente necessário”, etc., teremos uma 
cultura grosso modo “burocrática” (ou uma vertente burocrática na cultura 
organizacional). 
O foco da análise recai no significado atribuído ao organograma, e não no 
organograma “em si mesmo”. 
104 
 
Nessa abordagem, a preocupação e primazia concedidas ao organograma, tomado 
como estrutura tecnicamente racional de cargos eminentemente individuais, são 
típicas de determinado tipo de cultura organizacional, a cultura burocrática. 
 
- O mesmo ocorre com o ambiente externo: a realidade do ambiente externo para os 
membros da organização depende dos padrões de atribuição de significado 
dominantes na organização. Por exemplo, se os membros da organização atribuem ao 
ambiente o significado de “fator decisivo, totalmente independente da organização, ao 
qual a organização deve simplesmente adaptar-se se não quiser ser eliminada pela 
seleção natural”, teremos uma cultura grosso modo “organicista” ou “funcionalista”. 
- O foco da análise recai no significado atribuído ao ambiente, e não no ambiente “em 
si mesmo”. 
 
O mesmo ocorre com as relações internas da organização: sua realidade para os 
membros da organização depende dos padrões de significação que eles aplicam e 
reproduzem, muitas vezes de forma relativamente automática e irrefletida. 
 
- Elementos e itens que compõem a realidade organizacional existem ou atuam por 
meio das idéias e formas de pensar com que os sujeitos lhes atribuem significados 
(realidade de uma coisa = modo como esta coisa me aparece, significado que ela tem 
para mim). 
 
- Realidade organizacional é construída por sujeitos que compreendem, aplicam, 
transmitem e reproduzem as formas de pensar por meio das quais se atribuem 
significações aos diferentes itens envolvidos nas práticas organizacionais. 
 
- Interesse na identificação de modos de pensar dominantes, modos de pensar 
minoritários, modos de pensar emergentes, etc. 
 
2.1) “Interpretacionismo Crítico” ou “Construtivismo Crítico”. 
Abordagem Interpretativa interessada na mudança da cultura organizacional e na 
construção de uma cultura mais participativa e justa. 
Expressão da Teoria Crítica de Habermas no campo da Teoria das Organizações. 
 
- De acordo com essa vertente da abordagem interpretativa (de caráter igualmente 
construtivista), tanto a cultura burocrática quanto a cultura organicista (mas a 
burocrática de forma mais acentuada) caracterizam-se por um baixo grau de 
reflexividade e consciência: as pessoas aplicam e reproduzem padrões de significação 
sem perceberem que estão fazendo isso, e sem serem encorajadas a refletir sobre isso. 
A cultura organizacional não abre espaço para a conscientização e discussão dos 
padrões de atribuição de significado nela vigentes. 
Em contraposição a isso, culturas “reflexivas”, “críticas” e “dialógicas” são culturas que 
abrem espaço para a conscientização, discussão e crítica dos padrões de significação 
vigentes em dado momento – nesse sentido elas estão mais abertas à mudança 
cultural. 
 
105 
 
- Esta vertente “crítica” da abordagem interpretativa tem forte interesse e coloca forte 
ênfase na possibilidade de se construir a organização como uma cultura “reflexiva” e 
“dialógica”, centrada em modos de pensar valorizadores do diálogo e entendimento 
“forte” entre os sujeitos. 
a) Valoriza a argumentação e diálogo como princípios para a emergência de decisões e 
normas de cunho mais compartilhado, que dão à organização o caráter de 
empreendimento comum, ou seja, experimentado pelos participantes como um 
empreendimento razoável para todos, bom para todos, justo. 
b) Valoriza a competência do sujeito para compreender e sentir-se motivado pelo 
sentido ou significado dessas decisões e normas compartilhadas. 
c) Valoriza o “fazer-junto” (prática efetivamente coletiva), baseado em decisões 
dialogicamente construídas, e nesse sentido compartilhadas. 
d) Valoriza a “aprendizagem em circuito duplo”: usar
as informações em geral, tanto 
externas quanto internas, para discutir e eventualmente alterar os princípios (valores, 
normas, metas) que orientam as decisões e práticas da organização. 
Usar as informações, não tanto para manter uma relação “bem adaptada” ao 
ambiente, de acordo com certas normas e metas fora de questão, mas, muito mais, 
para “auto-re-organizar-se”, ou seja, remodelar os princípios básicos das práticas 
organizacionais. 
Diálogo e discussão capazes de levar a uma “reprogramação” da organização (ou seja, 
um ajuste nos “programas” e “códigos” do sistema). 
Auto-re-organização (processo típico dos sistemas capazes de aprendizagem em 
circuito duplo) como um processo coletivo, comunicativo, dialógico. 
- Em vez de preocupar-se com um processamento relativamente passivo das 
informações do ambiente, preocupar-se em projetar novos modos de pensar no 
ambiente. 
e) Ênfase na idéia de que o ambiente é até certo ponto construído pela projeção das 
idéias e atitudes dialogicamente construídas na organização. Não se coloca ênfase 
num ambiente absolutamente objetivo, no sentido positivista do termo.

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