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FILOSOFIA PARA ADMINISTRAÇÃO E CIÊNCIAS CONTÁBEIS. APOSTILA DO CURSO, segunda parte. PROFESSOR: ANTONIO SATURNINO BRAGA MARÇO DE 2012. 2 SUMÁRIO da segunda parte. SEGUNDA PARTE: ANÁLISE FILOSÓFICA DOS GRANDES TIPOS DE TEORIA DA SOCIEDADE. - Aula 9: Imagens fundamentais da realidade: nas ciências da natureza e nas ciências da sociedade. Página 3. - Aula 10: Teoria mecanicista (positivista) da sociedade, com origem na teoria da sociedade de Adam Smith. Página 6. - Aula 11: Teoria funcionalista (positivista) da sociedade, com origem na obra de Durkheim. Página 9. - Aula 12: Materialismo histórico do marxismo ortodoxo (concepção positivista). Página 13. - Aula 13: A abordagem interpretativa da sociedade (antipositivista, idealista ou construtivista). Página 18. - Aula 14: Alguns tópicos da sociologia de Max Weber, um dos principais expoentes da abordagem interpretativa. Página 21. - Aula 15: A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt (teoria de caráter construtivista). Página 25. - Aula 16: As abordagens sociológicas no campo da teoria das organizações. Página 29. 3 Aula 9 Imagens fundamentais da realidade: nas ciências da natureza e nas ciências da sociedade Construtivismo culturalista e imagem da realidade •Holismo metodológico: a realidade que o sujeito vê (e com a qual ele lida) não é a realidade “em si mesma”, mas é a realidade classificada, organizada e interpretada a partir de (e de acordo com) uma certa imagem da realidade –a imagem que ele adota (o objeto do conhecimento sempre é epistemologicamente construído pelos sujeitos). Diagnóstico do positivismo, desde o ponto de vista do construtivismo culturalista. •Embora pretenda enxergar, investigar e descrever a realidade em si mesma, o positivista na verdade trabalha a partir de uma certa imagem da realidade –a imagem positivista da realidade. •A principal falha do teórico positivista NÃO é que a imagem que ele adota esteja errada, mas, sim, que ele não percebe que está adotando uma imagem (ele ingenuamente pensa que está tratando da realidade em si mesma). •O positivismo: duas características complementares: •(a) Ingenuidade metodológica (ingenuidade que sempre tem algo de negativo, na medida em que implica desconsideração da possibilidade de lidar com a realidade a partir de outra imagem). •(b) A imagem positivista da realidade exprime certos traços da moderna ciência da natureza. A questão é saber se é bom adotar essa imagem de realidade na esfera das ciências humanas e sociais. Imagem positivista da realidade •Características gerais da imagem positivista da realidade (exprimem a imagem de natureza construída e adotada a partir da revolução científica moderna). •(a) Algo que existe, se estrutura e opera de modo completamente independente do sujeito – de suas capacidades cognitivas, idéias, valores e interesses. Realidade como algo de completamente externo e alheio a elementos típicos do sujeito: consciência, reflexão, idéias sobre o sentido das ações e da existência humana em geral (no plano mais genérico, idéias sobre o que é bom e mau, sobre o certo e o errado, sobre o que vale a pena e o que não vale a pena; a partir das quais se produzem idéias mais específicas, sobre o sentido de interações e ações mais específicas). •(b) Estrutura/sistema fixo e imutável – leis de funcionamento invariáveis. •(c) Leis de caráter geral (determinístico ou probabilístico), permitindo previsão, controle, intervenção e manipulação. 4 •(d) Leis de caráter quantitativo (correlações numéricas entre variáveis quantitativas). Diagnóstico feito pelo construtivismo da imagem positivista no campo das ciências da natureza •(1) Não podemos ter certeza de que natureza “em si mesma” seja assim (completamente alheia a elementos típicos do sujeito e da consciência do sujeito, com leis de funcionamento fixas e imutáveis, de caráter geral e quantitativo), mas nós vemos a natureza dessa maneira – natureza “para nós” é assim. •(2) No campo das ciências da natureza, essa imagem tem rendido bons frutos, tanto em termos de conhecimento em sentido estrito quanto em termos de aplicações técnicas (tem se mostrado com alto potencial explicativo e com grande fecundidade na resolução de problemas de ordem técnica). Diagnóstico feito pelo construtivismo da imagem positivista no campo das ciências sociais •Características da imagem positivista da realidade “sociedade”: (a) Componentes fundamentais dos objetos “sociedade” e “homem em sociedade” são elementos “objetivos” (ou seja, independentes da consciência, reflexão e idéias dos homens, e, por isso mesmo, invariáveis, ou não alteráveis pela consciência humana). Por exemplo, “forças da natureza humana” e “características objetivas da racionalidade humana” (elementos típicos das abordagens individualistas e mecanicistas); ou “luta pela vida” e “seleção natural” (elementos típicos das abordagens organicistas-funcionalistas); ou “condições objetivas do processo de produção dos meios materiais de satisfação das necessidades humanas” (elemento típico da abordagem do materialismo histórico do marxismo ortodoxo). b) Sujeito do conhecimento científico é um mero observador de uma realidade objetiva e independente, e o conhecimento científico é uma descrição que corresponde a esta realidade independente. Problemas (em relação ao materialismo histórico do marxismo ortodoxo, a discussão destes problemas precisa ser nuançada). •Naturaliza (objetifica) a sociedade. Vê a sociedade como algo que se estrutura e funciona de modo independente da consciência, reflexão, idéias e valores dos sujeitos em geral. Vê a sociedade como regida, essencialmente, por leis fixas e invariáveis, que permitem previsão e intervenção de cunho manipulador. • “Coisifica” o homem. Vê o homem como objeto “natural”, ou seja, entidade regida por condições de comportamento invariáveis, independentes de idéias sobre o bem/mal (idéias sobre o sentido das ações, interações e vidas humanas em geral) conscientemente adotadas. Idéias são reduzidas a meras manifestações de condições “objetivas” de racionalidade e/ou comportamento, condições relativamente fixas e invariáveis. Enfatiza e valoriza as possibilidades de previsão e intervenção de cunho manipulador. 5 •Imagem de caráter conservador – desqualifica a possibilidade de mudanças no homem e na sociedade; desqualifica o projeto de mudanças sociais, apresentando-o como utópico (expressão apenas de desejos e sonhos, sem correspondência com a realidade). Imagem antipositivista da sociedade •Características: •(a) “Culturaliza” a sociedade. Vê a sociedade como constituída, essencialmente, por padrões de significação (padrões de interpretação e resposta às informações em geral e aos dados naturais em particular). Um padrão de significação é uma imagem que os sujeitos têm sobre o sentido de suas relações com a natureza e com os outros, sobre o sentido de suas ações, interações, e existências em geral. Em outras palavras, um padrão de significação exprime idéias sobre o que é bom e o que é ruim na existência humana, sobre o que deve e o que não deve ser feito, sobre a melhor maneira de escolher e agir. - A sociedade (cultura) é construída por sujeitos dotados de consciência e linguagem, ou seja, sujeitos capazes de compreender, aplicar, reproduzir e eventualmente alterar os padrões de significação segundo os quais são formados e educados. Os componentes básicos da sociedade (idéias de sentido e padrões de significação) são essencialmente dependentes das práticas comunicativas de sujeitos dotados de consciência e linguagem. - O sujeito do conhecimento científico (o sujeito que produz ciência social) indiretamente participa do processo cultural de geração, reprodução e alteração das idéias de sentido e padrões de significação, participando também da tensão, negatividade e variabilidade que são inerentes ao processo de geração e reprodução das idéias. •(b) Enfatiza a consciência humana: a capacidade do sujeito de conscientizar-se do padrão de significação (idéia sobre o sentido) que está seguindo, de refletir sobre ele e segui-lo de modo consciente. - A consciência está ligada a um fenômeno muito comum na experiência do homem em sociedade: idéias e avaliações às quais o sujeito às vezes não consegue corresponder, gerando sentimentos de culpa e vergonha (Ao ser envolvido por uma idéia de sentido, o impulso biológico é tema de uma avaliação/prescrição à qual o sujeito nem sempre consegue corresponder; mas o fato é que, para o homem em sociedade, o impulso biológico só existe envolvido por alguma idéia de sentido, ainda que seja uma idéia segundo a qual “idéias são bobagens” e “o homem no fundo é um mero animal”). •(c) Enfatiza a liberdade humana: mesmo reconhecendo que padrões de significação tendem a estabilizar-se e cristalizar-se (tendem a reproduzir-se de forma relativamente automática e irrefletida), enfatiza a possibilidade do sujeito alterar o padrão de significação que está regendo sua existência social, por meio de participação consciente na rede de comunicação do sistema cultural. •(d) Chama atenção para o fato de que, se os participantes do sistema cultural “compram” e seguem uma imagem grosso modo “positivista” sobre o sentido de sua existência individual e social (por exemplo, grupo social como máquina ou organismo), a sociedade vai se estruturar e funcionar de modo correspondente – o grupo ou sociedade não “é” máquina ou organismo, é cultura, mas uma cultura que se compreende como máquina ou organismo. 6 Aula 10. Teoria mecanicista (positivista) de sociedade, com origem na teoria de sociedade de Adam Smith. O contexto histórico de A. Smith Seu livro “A Riqueza das Nações” foi publicado em 1776. •Transição da cultura tradicional (paradigma teleológico da sociedade) para cultura moderna (paradigma individualista da sociedade). •Constatação do definhamento do paradigma teleológico de compreensão dos homens e da sociedade, predominante nos períodos antigo e medieval. •Paradigma teleológico: essência de cada ser humano consiste na atividade/função/destinação que lhe é própria dentro da ordem social; finalidade de cada ser humano vincula-se à finalidade dos demais e à finalidade comum a todos os membros da sociedade: ordem, harmonia e beleza do Todo. • Numa ordem social tradicional, os meios de coordenação e integração entre os indivíduos estão baseados em expectativas de comportamento de caráter normativo, ou seja, expectativas que exprimem o comportamento em cada caso correto (visto pela sociedade como correto). Tais expectativas são aceitas e internalizadas pelos indivíduos em geral, o que significa que cada indivíduo percebe o cumprimento dessas expectativas como algo de bom para ele. Paradigma teleológico e ordem tradicional. •O paradigma teleológico de compreensão dos homens e da sociedade constitui- se em fundamento de uma ordem social tradicional: ordem na qual os indivíduos se vêem como destinados a um determinado lugar e função numa totalidade integrada e harmoniosa. •Numa cultura tradicional, o sentido da ação individual consiste na satisfação das expectativas de comportamento definidoras do papel social do agente (guerreiro, senhor de terras, sacerdote, artesão, agricultor, etc.). E os papéis sociais, assim como as expectativas de comportamento que lhes estão respectivamente associadas, são essencialmente complementares: complementam-se numa ordem social que em princípio é aceita e reproduzida por todos. •Coordenação das ações individuais necessária à reprodução do grupos social está contida no sentido que cada indivíduo atribui às suas ações. Ordem Social Tradicional •Numa ordem tradicional, não se manifesta o individualismo moderno (ou pelo menos ele não é socialmente difundido como princípio de estruturação das relações sociais). Individualismo moderno: preocupação com interesse e vantagem estritamente individuais; orientação da vida e das decisões pelo interesse e vantagem estritamente individuais. 7 •Numa sociedade tradicional, objetivo das pessoas não é “progredir na vida” (maximizar interesse e vantagem individuais), mas dar continuidade à realidade social transmitida das gerações anteriores. Ambição não se dirige à vantagem individual, mas ao maior brilho possível no exercício da função própria dentro da ordem tradicional. •Não há mercado de terra, nem de trabalho (terra e trabalho são partes do caminho de vida concreto a que cada indivíduo e grupo estão destinados). Não há uma vida a ser “construída” ou “conquistada” mediante venda de recursos e talentos individuais no “mercado”. Ascensão do paradigma individualista. •Na cultura moderna (paradigma individualista), o sentido da ação individual consiste na busca de fins (interesse e vantagem) estritamente individuais, ou seja, fins adotados por indivíduos atomisticamente concebidos. O que caracteriza essencialmente esses fins é o fato de eles serem diferentes e até conflitantes entre si. •Se o sentido que cada indivíduo atribui às suas ações consiste na busca de um fim diferente e até conflitante em relação aos fins buscados pelos demais indivíduos, a coordenação das ações individuais necessária à reprodução da sociedade é em princípio externa ao sentido que cada indivíduo atribui às suas ações. - Para cada indivíduo, a relação com o outro aparece simplesmente como um meio (instrumento) de que ele se serve para perseguir seus fins individuais. Isso contrasta com a vivência das relações sociais predominante numa sociedade tradicional, na qual a relação com o outro aparece como essencial para a excelência buscada por cada indivíduo, na medida em que esta consiste no desempenho excelente da função que lhe é própria no Todo das relações sociais. A teoria da sociedade de Adam Smith •Obra fundamental. “A Riqueza das Nações” (1776). •Problemas fundamentais: problema da coordenação das ações individuais necessária à reprodução da sociedade e problema da integração social: sem a força integradora da tradição e da autoridade emanada da tradição, e deixando as escolhas socialmente relevantes ao livre-arbítrio de indivíduos essencialmente egoístas, como a sociedade consegue sobreviver e reproduzir-se? •Resposta: “Lei do mercado”: Lei da oferta e da procura dos fatores de produção e dos bens produzidos. “Mão Invisível”: mecanismo invisível de coordenação, pelo qual impulsos e interesses estritamente individualistas (egoístas) são mecanicamente canalizados para a funcionamento de uma estrutura eficaz, capaz de maximizar a prosperidade (riqueza) de toda a sociedade. •Elementos fundamentais da lei do mercado. 1) Interesse egoísta (cobiça do indivíduo): força que leva os indivíduos a empregarem seus recursos (trabalho, terra e dinheiro) na atividade que promete maior retorno financeiro e nos bens que prometem maior satisfação ou vantagem individual. 2) Conflito e competição 8 entre indivíduos: força que freia a cobiça e ganância dos indivíduos, levando-os a cobrar e pagar um valor “socialmente ótimo” pelos fatores e produtos que ofertam e procuram no mercado. Imagem mecanicista da sociedade (um tipo de imagem positivista da sociedade). •Sociedade aparece como uma máquina; imagem da sociedade como máquina. - Componentes essenciais da realidade social: a) Forças “objetivas” da natureza humana: cobiça, egoísmo, e racionalidade calculadora ou instrumental (capacidade de discernir os meios mais eficazes para o fim da maximização da vantagem individual). b) Força “objetiva” da existência humana em sociedade: competição entre os indivíduos: força que freia a ganância individual. c) Lei “objetiva” do funcionamento da sociedade: Lei da oferta e da procura. •Componentes da “máquina social”: indivíduos separados e isolados, movidos por forças egoístas em princípio alheias à necessidade de coordenação e integração numa ordem estável e eficaz. •Mecanismo de coordenação e integração: mecanismo que canaliza tais forças “individualistas” (e egoístas) para a construção e funcionamento de uma estrutura social materialmente eficaz. •Forças que podem ser aproveitadas e canalizadas pelas estruturas mecânicas de integração: interesse no máximo retorno financeiro; medo da privação financeira ou material, racionalidade instrumental como capacidade de discernir comportamentos necessários ou eficazes para a maximização da vantagem individual. - Negligencia-se a possibilidade de a integração social efetuar-se por meio de idéias e projetos comuns ou compartilhados. Imagem positivista da sociedade - Em Adam Smith, desejo de lucro, interesse na vantagem individual, egoísmo, competitividade e racionalidade calculadora (instrumental) são vistos como forças fundamentais da “natureza humana”, ou seja, como elementos totalmente independente da consciência, reflexão, idéias e valores dos sujeitos (atuação dessas forças é independente da consciência ou idéias que os sujeitos possam ter acerca delas). •Tais elementos não são vistos como padrões de significação (idéias e padrões de interpretação acerca do sentido das ações e interações humanas) historicamente produzidos e culturalmente transmitidos, distintos dos padrões vigentes em outras épocas e culturas, e em princípio mutáveis (ainda que fortemente enraizados e cristalizados na cultura ocidental contemporânea). •Imagem positivista da realidade social: imagem na qual a sociedade é vista como algo que se estrutura e funciona com base em elementos e leis “objetivos”, alheios à consciência e idéias de sentido que os sujeitos possam ter a respeito deles. (Ou seja, algo que se estrutura e funciona com base em leis cuja atuação não depende das idéias, interpretações, juízos e avaliações que os sujeitos possam ter a respeito delas; leis que nesse sentido atuam “às costas” da consciência dos sujeitos). 9 Aula 11. Teoria funcionalista (positivista) de sociedade, com origem na obra de Durkheim. •Primeira obra de Durkheim: “Sobre a Divisão do Trabalho Social” (1893). •Problema fundamental é semelhante ao de Adam Smith: (aparente) oposição do individualismo moderno às exigências de coordenação e integração que têm de ser satisfeitas para que a sociedade possa se reproduzir. - Se os sujeitos que compõem a sociedade são essencialmente individualistas, não atribuindo nenhum valor intrínseco ao cumprimento de expectativas de comportamento de caráter recíproco e complementar, como explicar a integração social? Como explicar a coordenação das ações individuais necessária à reprodução da sociedade? •Modo de visualizar a solução do problema é diferente. Smith: coordenação puramente mecânica entre indivíduos que são e permanecem essencialmente isolados, separados. Prioridade dos interesses do indivíduo (psique individual) sobre a estrutura social. •Para defender a autonomia e irredutibilidade da sociologia, Durkheim sente necessidade de defender a prioridade da estrutura social sobre a psique dos indivíduos. O princípio da integração social consiste, não em interesses individuais oriundos da psique individual, mas em padrões de relacionamento social que exprimem a estrutura social enquanto tal, e que moldam a psique individual. - Na terminologia de Durkheim, padrões de relacionamento social equivalem a formas de “solidariedade social” (padrões de relacionamento social são padrões de ligação dos indivíduos, e em Durkheim “solidariedade social” tem o sentido, justamente, de “ligação entre os indivíduos”, e não o sentido de benevolência ou beneficência). Em Durkheim, portanto, padrões de ligação entre indivíduos são anteriores aos próprios indivíduos, ou seja, os indivíduos existem numa estrutura que os liga a outros indivíduos. São os padrões de ligação que moldam a psique individual. Individualismo moderno e solidariedade orgânica •Assim, o individualismo moderno deixa de ser visto como expressão da natureza/psique (eterna, fixa e imutável) do indivíduo, e passa a ser visto como expressão de um determinado padrão de ligação (“solidariedade”) social, anterior à psique individual e formador da mesma. •Algum tipo de solidariedade social (exprimindo a estrutura social enquanto tal) sempre tem prioridade em relação à psique individual. •Dois tipos básicos de solidariedade social: solidariedade mecânica e solidariedade orgânica. ATENÇÃO: a “solidariedade mecânica” analisada por Durkheim não tem nada a ver com a coordenação mecânica que se pode perceber em Adam Smith. 10 - Em Smith, o conceito de “coordenação mecânica” é parte de uma análise da sociedade que focaliza seus membros como indivíduos essencialmente separados e isolados, que se integram por meios puramente mecânicos (ou seja, meios completamente independentes de qualquer finalidade ou propósito supra- individual). - No modo de focalizar a sociedade de Smith, indivíduos isolados sempre se integram por meios puramente mecânicos. - Já em Durkheim, o conceito de solidariedade mecânica é parte de uma análise da sociedade que focaliza seus membros como indivíduos que sempre existem em estruturas de ligação (com outros indivíduos) que lhes são anteriores. Em Durkheim, o conceito de solidariedade mecânica exprime um modelo particular e específico de ligação entre os indivíduos, distinto de outro modelo específico, o da “solidariedade orgânica” (que inclusive está mais próximo da coordenação mecânica de Adam Smith). - No modo de focalizar a sociedade de Durkheim, indivíduos sempre existem em estruturas de ligação social, mas a estrutura pode ser de tipo ou “mecânico” (solidariedade mecânica) ou “orgânico” (solidariedade orgânica). •Individualismo moderno é sintoma ou efeito do que Durkheim chama de “solidariedade orgânica”, que ele contrapõe à “solidariedade mecânica”, típica da época pré-moderna. Solidariedade mecânica •Solidariedade “mecânica”: típica de sociedades pré-modernas. •Integração baseada na semelhança “psicológica” entre os indivíduos (atitudes, crenças e valores comuns). O predomínio da solidariedade mecânica fomenta este tipo de semelhança. •Pouca diferenciação entre indivíduos (pouca diferenciação nas atitudes, crenças e valores constitutivos dos projetos de vida). Idéias e valores comuns representam a maior parte do conteúdo da consciência individual. •Indivíduos integram e coordenam suas ações porque são essencialmente semelhantes, ou seja, porque compartilham, num nível básico, uma mesma concepção e projeto de vida (aspirações e expectativas individuais são moldadas por essa concepção compartilhada). Solidariedade Orgânica •Solidariedade “orgânica”. Típica das sociedades modernas, pós-tradicionais. Integração se constitui a partir da diferenciação entre os indivíduos. •Maior parte do conteúdo da consciência individual passa a ser ocupado por fatores (aspirações, interesses, preferências) que diferenciam e separam os indivíduos uns dos outros. •Desenvolvimento de uma consciência “individualista” (indivíduos que se vêem como separados e diferenciados em relação aos demais). •Principal forma de ligação social passa a consistir em “contratos” entre indivíduos diferentes entre si (contrato como um vínculo entre indivíduos com recursos e interesses essencialmente diferentes). 11 Durkheim e o problema da ascensão da solidariedade orgânica •Problema que Durkheim se coloca: por que a solidariedade orgânica se consolidou como principal forma de solidariedade social nas sociedades ocidentais modernas, substituindo a solidariedade mecânica? Resposta de Durkheim (Durkheim e a abordagem funcionalista). •Explicação de Durkheim contém os germes da abordagem funcionalista. •Num ambiente marcado pelo aumento da “densidade material” (aumento do número de indivíduos em relação a uma determinada superfície de terra) e da “densidade moral” (aumento do número e intensidade dos relacionamentos e intercâmbios entre indivíduos) da sociedade, a diferenciação dos indivíduos e a formação de uma consciência individualista têm efeitos benéficos para a sobrevivência e prosperidade da sociedade como um todo. •Se não ocorresse essa diferenciação, aumentariam os conflitos entre indivíduos (quando a densidade aumenta, se os indivíduos são essencialmente semelhantes os conflitos entre eles tendem a aumentar). Para Durkheim, portanto, a solidariedade orgânica se desenvolveu e consolidou porque representa uma característica que torna as sociedades modernas mais aptas à satisfação das necessidades “vitais” de integração interna e adaptação externa. - A solidariedade orgânica torna as sociedades melhor adaptadas ao ambiente “material” típico da época moderna (mudança no ambiente provoca uma mudança no padrão de ligação social). Elementos fundamentais das explicações funcionalistas •Transposição da teoria da evolução de Darwin (1859) para o campo da teoria da sociedade. •Concebe as sociedades como organismos, submetidos a certas necessidades vitais e a certas leis da evolução. •Necessidades fundamentais dos organismos sociais (necessidades eternas, fixas e imutáveis): integração interna e adaptação ao ambiente externo. •Leis fundamentais da vida das sociedades (eternas, fixas, imutáveis): Luta pela vida e seleção natural: só sobrevivem e prosperam as sociedades melhor adaptadas ao seu ambiente. •Necessidades e leis dos organismos sociais são vistas como fatores “objetivos” (no sentido positivista do termo), ou seja, fatores que existem e atuam independentemente da consciência e idéias que os sujeitos possam ter acerca delas (imagem organicista e positivista das sociedades). Forma geral das explicações funcionalistas. 12 •Se uma característica torna a sociedade mais apta a satisfazer às necessidades de integração interna e adaptação externa, tal característica tende a desenvolver- se e consolidar-se (em virtude da luta pela vida, as sociedades que não desenvolvem tal característica tendem a definhar e desaparecer). •Assim, a causa da consolidação da característica consiste na função que ela desempenha (ou nos efeitos positivos ou benéficos que ela apresenta) para a satisfação das necessidades de integração interna e adaptação ao ambiente externo. -Explicar um elemento da sociedade (instituição, prática, costume) é identificar e analisar sua função (efeito positivo ou benéfico) para o atendimento das necessidades básicas do organismo social. Leis a-históricas da vida das sociedades •Pode-se reconstruir a explicação de Durkheim afirmando que, para ele, a solidariedade orgânica se desenvolveu e consolidou porque representa uma característica que torna as sociedades modernas mais aptas à satisfação das necessidades de integração interna e adaptação externa (Em Durkheim, a diferenciação entre os indivíduos e a solidariedade orgânica têm conseqüências positivas para a satisfação da necessidade de integração interna) •Embora a abordagem funcionalista admita e procure explicar as mudanças por que passam as sociedades ao longo do processo histórico (mudança da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, por exemplo), o fundamento da explicação consiste em leis fixas e imutáveis (a-históricas) da vida em geral, inclusive da vida das sociedades (luta pela vida e seleção natural). •Imagem organicista e positivista da sociedade. Críticas à abordagem funcionalista •História dos homens e das sociedades é muito curta quando comparada aos períodos de tempo necessários para a atuação da seleção natural; número de sociedades é muito pequeno quando comparado ao número de organismos necessários para a atuação da seleção natural. Aplicação do conceito de seleção natural é implausível. (é pouco plausível afirmar que, em virtude da seleção natural, as sociedades “inaptas” são varridas do mapa). •Alternativa à seleção natural: Atribuição de uma “intencionalidade oculta”. Toda sociedade “quer” sobreviver e prosperar. Em virtude disso, toda sociedade “procura” satisfazer da melhor maneira possível as necessidades que têm de ser satisfeitas para que ela possa prosperar: integração interna e adaptação ao ambiente externo (necessidades do “organismo social”). Toda sociedade “rejeita” o conflito interno. •Trata o objetivo “prosperidade” como se fosse um objetivo “auto-evidente” e “neutro” – um objetivo que a sociedade enquanto tal possui, e que seria independente e neutro em relação aos (diferentes e opostos) interesses, valores e propósitos dos homens que dela fazem parte. •Crítica: prosperidade não pode ser tratada como um objetivo neutro. Diferentes visões de prosperidade. Necessidade de colocar questões do tipo: Prosperidade para quem? Que tipo de prosperidade? Por que esse tipo e não outro? 13 Aula 12. Materialismo histórico do marxismo ortodoxo (concepção positivista). •Materialismo histórico e dialético: Karl Marx (1818-1883). Compreensão materialista da abordagem dialética inicialmente desenvolvida por Hegel (1770- 1831). •Dialética: 2 idéias básicas: 1ª) Há uma negatividade intrínseca à realidade humana em geral; a realidade que “está sendo” sempre abriga possibilidades de desenvolvimento distintas dos modos de ser que dominam a realidade atual. Por isso, a realidade é, essencialmente, movimento, mudança, diferenciação. A realidade humana é essencialmente histórica. - Mudança não deve ser concebida como mudança de uma realidade (um ser) que permanece. O ser é a mudança. O permanente é na verdade apenas aparentemente permanente, e no fundo, ou essencialmente, é permeado ou atravessado pela negatividade, dinamismo, movimento, mudança. 2ª) A realidade humana sempre é relação entre dois pólos opostos: o pólo que está sendo e o pólo que “nega” o que está sendo. O pólo negativo constrói-se sobre as lacunas, falhas ou fraquezas do pólo existente, ele se nutre delas e ao mesmo tempo as aguça, levando à sua superação. Trata-se de negação e superação que vêm “de dentro” do pólo existente. - Motor da mudança: dinamismo (“inquietação”) produzido pela negatividade intrínseca à realidade. Todo ser está em relação com um não-ser, que o coloca em estado de tensão, movimento, mudança. - Afirmar que a realidade é, essencialmente, relação entre pólos opostos equivale a afirmar que, na realidade humana, cada pólo só se define e existe na relação com o outro, ou por meio da relação com seu oposto. Dialética e História •Oposição e negatividade constituem o motor da criação contínua de novos pólos e novas relações. •História como processo de contínuo aparecimento, exacerbação, superação e recriação dessas relações tensas e conflituosas entre pólos antagônicos, ou entre um pólo e sua negação. Da dialética idealista para a dialética materialista •A dialética hegeliana é idealista. - Nessa abordagem, a relação dialética fundamental é a relação entre as idéias (teorias, concepções de vida, visões de mundo, etc.) da consciência dos sujeitos e, por outro lado, o objeto (a natureza, tanto a natureza externa quanto a natureza do próprio homem, ou substrato natural da vida humana) que, ao não se adequar a elas, ou ao resistir a elas (apontando suas falhas ou fraquezas), leva o sujeito ao processo de criação de uma nova idéia do (ou sobre o) objeto, à qual corresponderá um novo tipo de inadequação do objeto, e assim por diante. 14 - A história é história das idéias e concepções da consciência, ou seja, dos sucessivos modos pelos quais a humanidade, por meio dos produtos de sua reflexão, procura superar a “resistência/negação” que a natureza opõe às suas idéias (elementos com os quais os homens procuram explicar a realidade em geral e sua própria vida em particular – ênfase na necessidade humana de “explicar as coisas”). •A dialética marxista (do marxismo ortodoxo) é materialista. - Nessa abordagem, a relação dialética fundamental é a relação entre as necessidades materiais (vitais) dos sujeitos e, por outro lado, o objeto material (a natureza ou ambiente externo) que, ao resistir a elas (negar sua satisfação simples e imediata), leva os sujeitos ao processo de criação de um novo objeto material (um novo ambiente natural), ao qual corresponderá um novo tipo (ou novo patamar) de necessidade material, que por sua vez sofrerá resistência do ambiente natural, e assim por diante. - A história é história das necessidades humanas e dos produtos do trabalho humano, ou seja, dos sucessivos modos pelos quais a humanidade, por meio dos produtos do seu trabalho, procura superar a “resistência/negação” que a natureza externa opõe às suas necessidades “materiais/vitais” (ênfase na necessidade humana de satisfazer suas necessidades vitais ou materiais, tomadas como necessidades “objetivas”, ou seja, enraizadas num processo que causa efeitos independentemente da consciência e das idéias dos sujeitos). - Na dialética materialista do marxismo ortodoxo, as necessidades vitais dos homens são vistas como elementos “objetivos”, no sentido positivista do termo: elementos que existem e atuam independentemente das idéias ou avaliações que os homens possam fazer (ou não fazer) sobre eles. - Essa é uma das razões pelas quais o materialismo histórico (dialético) do marxismo ortodoxo pode ser considerado uma abordagem positivista da sociedade. Dialética idealista e dialética materialista •Na dialética idealista, as “necessidades vitais” aparecem como vivências da consciência: algo sobre o qual a consciência tem algum tipo de idéia. (Algo que é bom satisfazer de uma determinada maneira, e não de outra; ou então algo que é bom saber controlar ou reprimir; ou então algo que é bom colocar depois de outro aspecto da vida humana, como algo menos importante; etc.) •Na dialética materialista do marxismo ortodoxo, as necessidades vitais (naturais) aparecem como fatores que atuam “às costas” da consciência e sobre ela. A consciência é determinada “pelas costas” por necessidades “objetivas”, pelas condições “objetivas” do processo de produção dos meios de satisfação dessas necessidades, e pelas leis “objetivas” que regem a evolução dessas condições e desse processo, e a conseqüente produção de sempre renovadas necessidades “objetivas”. Daí a feição positivista do marxismo ortodoxo. 15 Relações dialéticas na abordagem materialista •Essência da realidade humana e social: processo pelo qual os homens procuram produzir os meios materiais de satisfação de suas necessidades vitais – processo social do trabalho (processo econômico é focalizado como processo de organização e realização do trabalho coletivo dos homens). •Relação entre homens (pólo do sujeito) e ambiente natural (pólo do objeto). Oposição entre, de um lado, o desejo humano de melhoria das condições materiais da existência (ou de satisfação, no maior grau possível, de suas necessidades materiais ou vitais) e, de outro lado, a resistência e os obstáculos que o ambiente natural (objeto, realidade objetiva) opõe a esse desejo. •A relação dialética também pode ser apresentada como: relação entre o desejo do sujeito de melhorar suas condições concretas de existência (tese) e, por outro lado, a negação desse pólo – a natureza como obstáculo que impede o sujeito de realizar plenamente seu desejo, e que aponta para falhas ou lacunas na capacidade do sujeito de satisfazer seu desejo (antítese). •Síntese: uma determinada forma de trabalhar a natureza, uma determinada forma de pôr a marca dos humanos na natureza, uma determinada forma de “dobrar” a resistência da natureza. Para Marx, isso equivale a um determinado tipo de sociedade (homens habitando um ambiente natural humanizado pelo trabalho). Síntese: um determinado tipo de sociedade •Um determinado tipo de sociedade equivale a um determinado modo de realizar o processo social de trabalho, constituído por quatro características fundamentais: •A) Um determinado conjunto de forças produtivas (instrumentos, ferramentas, máquinas, técnicas, conhecimentos) •B) Um determinado sistema de relações de produção entre os homens (divisão do trabalho social, distribuição dos produtos do trabalho social e regulamentação da propriedade dos meios de produção de que a sociedade dispõe). - Para Marx, quando há propriedade privada dos meios de produção as relações sociais de produção sempre são relações de exploração: um grupo (classe social), os proprietários dos meios de produção, explorando outro grupo (outra classe social), os que foram privados dos meios de produção. •C) Uma determinada forma de satisfazer o desejo dos sujeitos de melhoria das suas condições concretas de existência (em outras palavras, um determinado nível de satisfação das necessidades e desejos humanos). •D) Uma determinada configuração das relações de exploração e dominação entre os homens: um determinado sistema de classes sociais e de luta de classes (característica vinculada à característica B). Negação da síntese: 1) História como desenvolvimento técnico •A síntese inicial (um determinado tipo de sociedade = um determinado modo de realizar o processo social do trabalho) já é momento (tese) de uma relação com o pólo constituído por sua negação (antítese). 16 •A negação de um determinado tipo de sociedade surge da própria sociedade, na medida em que esta se define por um determinado nível de satisfação das necessidades e desejos humanos. Um nível de satisfação dos desejos desperta a sensação de falhas ou lacunas que ainda precisam ser sanadas; desperta novos desejos, novas necessidades, em relação aos quais a natureza vai representar um novo tipo de resistência. •Desenvolvimento de novas forças produtivas, capacitando o sujeito a dobrar a nova resistência do ambiente natural e, com isso, criar um novo tipo de sociedade (uma nova síntese, ou seja, um novo tipo de humanização do ambiente natural) – história como progresso técnico da humanidade. •Cada etapa do progresso técnico equivale a uma nova forma de realizar o processo social do trabalho, a uma nova forma de “humanizar” a natureza e, conseqüentemente, a um novo tipo de sociedade. Síntese e negação da síntese no campo das relações de produção •Mas a esfera das forças produtivas não é a única esfera em que se estabelece a dinâmica da negação da síntese inicial. Tal dinâmica também se estabelece na esfera das relações de produção entre os homens. •Para realizar o processo social do trabalho, os homens estabelecem entre si um determinado sistema de relações de produção, que regula a divisão do trabalho social, a distribuição dos produtos do trabalho social e a institucionalização da propriedade dos meios de produção de que a sociedade dispõe. - O sistema das relações de produção é caracterizado pela oposição interna entre interesses da classe dominante e interesses da classe dominada. •Nessa dimensão da sociedade, surge uma manifestação específica do desejo de melhoria das condições concretas de vida: o desejo de superação da exploração, avançado pela classe social e politicamente dominada, o qual equivale a um desejo de superação das falhas ético-políticas do sistema vigente de relações de produção. - E esse desejo encontra sua negação (obstáculo, resistência) no desejo da classe dominante de conservar o sistema vigente de relações de produção. 2) Negação da síntese: história como desenvolvimento ético-político •Um determinado tipo de sociedade = Uma determinada configuração das relações de exploração e dominação entre os homens. •A negação de um determinado tipo de sociedade surge da própria sociedade, na medida em que esta se define por uma determinada configuração das relações de exploração entre os homens. Tal configuração desperta a sensação de falhas ou lacunas que ainda precisam ser sanadas: desperta o desejo da classe sócio- politicamente dominada de melhorar suas condições de existência, em relação ao qual a classe dominante vai antepor obstáculos e resistência. •Falhas e oposições internas ao “modo de produção” (forças produtivas + relações de produção) levam à superação de uma determinada configuração das relações de exploração, com suas lacunas específicas, e à instauração de um 17 outro sistema de relações de produção, com outras falhas, outra configuração das relações de exploração. •História como processo de desenvolvimento ético-político, em direção a um estágio final em que será abolida a essência mesma de todas as formas de exploração: a propriedade privada dos meios de produção. “Leis objetivas” do processo histórico •A abordagem do materialismo dialético adota a tese de que há leis objetivas do processo histórico, ou seja, leis que em última instância atuam independentemente da consciência, reflexividade, idéias, avaliações e atitudes dos indivíduos que a elas estão submetidos (feição positivista do marxismo). •Leis que exprimem a dinâmica e negatividade intrínsecas ao processo de produção dos meios materiais da existência (processo de produção: forças produtivas + relações de produção). - Leis que exprimem uma contradição “objetiva” (atuando independentemente da consciência dos indivíduos) entre o desenvolvimento das forças produtivas e, por outro lado, o sistema de relações de produção. - As forças produtivas se desenvolvem “mais rápido” do que as relações de produção, gerando não apenas novas possibilidades de satisfação dos desejos humanos, mas também uma classe social que é porta-voz dessas possibilidades, que por sua vez são entravadas pelo sistema de relações de produção historicamente vigente, que com isso aparece como envelhecido, obsoleto. 18 Aula 13. A abordagem interpretativa da sociedade (antipositivista, idealista ou construtivista). Também chamada de abordagem fenomenológica, ou hermenêutica. Imagem antipositivista da sociedade: ênfase na participação dos sujeitos na construção da realidade social. Alguns dos principais expoentes: - George Herbert Mead (1863-1931). - Max Weber (1864-1920). - Alfred Schütz (1899-1959). Influências do idealismo de Hegel (1770-1831) e da fenomenologia de E. Husserl (1859-1938). - Teses centrais dessas teorias filosóficas: - Todos os elementos ou itens envolvidos na existência humana (tanto os dados do ambiente natural quanto as necessidades, impulsos e desejos dos seres humanos em geral, assim como as relações que eles mantêm uns com os outros) só existem por meio das idéias dos homens sobre eles, quer dizer, por meio das diversas e variadas idéias que os homens vão elaborando sobre eles ao longo do tempo e da história. - A realidade desses elementos para os homens (a realidade que eles têm para os homens) equivale ao modo como eles historicamente aparecem para os homens, ou ao modo como eles historicamente são vistos e compreendidos pelos homens. - A realidade que esses elementos têm para os homens equivale ao sentido que eles historicamente têm para os homens, ou seja, equivale às idéias com que os homens de uma determinada época ou cultura os situam, organizam e integram em sua concepção e projeto de vida. - As teses centrais da abordagem interpretativa da realidade social: - Essência da realidade social é a interação simbólica entre seres humanos. Interação simbólica: transmissão e troca de “idéias de sentido”, ou seja, idéias que exprimem o sentido que os objetos da vida social têm para os homens. - A realidade social é composta por uma pluralidade de contextos de interação simbólica: família, escola, associações recreativas, igreja, organizações privadas, agências do Estado, etc. - As idéias de sentido que os seres humanos transmitem e trocam na interação simbólica cristalizam-se em padrões de significação, ou seja, modelos mentais que se tornam independentes das consciências humanas tomadas individualmente; em cada contexto de interação simbólica, a consciência 19 individual encontra padrões de significação relativamente cristalizados e independentes. - Em cada contexto de interação simbólica tende a destacar-se um padrão de significação dominante, que o indivíduo que participa desse contexto aprende a aplicar e reproduzir. Numa certa medida as consciências individuais são governadas pelo padrão de significação dominante em cada contexto de interação simbólica. - O indivíduo tem a capacidade de participar de diferentes contextos de interação, ou seja, tem a capacidade de aplicar e reproduzir padrões de significação vigentes em diferentes contextos de interação simbólica. - A consciência individual é formada segundo os padrões de significação vigentes na cultura em que ela vive. A formação da consciência individual ocorre por meio da internalização de padrões de significação culturalmente vigentes. - Ainda que os padrões de significação adquiram certa independência em relação às consciências humanas tomadas individualmente, eles sempre são em alguma medida permeáveis às atividades da consciência humana: reflexão, conscientização, compreensão, avaliação crítica. - Idéias de sentido e padrões de significação nunca são “objetivos” no sentido positivista do termo (elementos totalmente externos ou impermeáveis à consciência e às atividades próprias da consciência). As variantes da abordagem interpretativa. 1) Do ponto de vista da própria realidade social: 1.A) Ênfase na reprodução relativamente automática e irrefletida dos padrões de significação culturalmente vigentes. Menor ênfase na participação consciente dos sujeitos na construção da realidade social. (Mas esta ênfase não é incompatível com a tese de que os padrões de significação sempre são em certa medida permeáveis às atividades próprias da consciência, como reflexão, conscientização, compreensão, avaliação crítica). - Ênfase nas estruturas relativamente rígidas geradas pelos padrões de significação culturalmente vigentes. - Ênfase na idéia de que a ação humana está subordinada às estruturas vigentes (conforma-se a elas, tende a reproduzi-las, é limitada por elas). Liberdade humana sempre e inevitavelmente está enquadrada em estruturas culturalmente vigentes. 1.B) Ênfase na participação consciente e refletida dos sujeitos na construção e reconstrução da realidade social. - Ênfase na possibilidade de efetuar mudanças na ordem cultural, por meio da projeção de novas atitudes e idéias de sentido. 20 - Ênfase na relativa autonomia da ação individual em relação às estruturas vigentes; liberdade humana é, justamente, poder não conformar-se às estruturas vigentes. 2) Do ponto de vista da metodologia da ciência social. 2.A) Ênfase numa atitude mais neutra em relação às avaliações (juízos valorativos e normativos) inerentes às idéias de sentido e padrões de significação envolvidos na interações simbólicas. - Ênfase na diferença entre compreender idéias de sentido e padrões de significação, que exige relacionar-se com as avaliações a eles inerentes, e julgá- los positiva ou negativamente (diferença entre “relação a valores” e “juízos de valor”). (Diferença entre “ciência social” e “posicionamento político”). 2.B) Ênfase na idéia de que a ciência social sempre é um momento da prática sócio-política do cientista. Toda compreensão da realidade social, mesmo de uma realidade social alheia àquela em que o próprio cientista vive, tem implicações para a auto-compreensão das pessoas que são contemporâneas ao cientista. - Ênfase na idéia de que a ciência social, mesmo não sendo retórica ou propaganda, tem efeitos indiretos sobre a auto-compreensão das pessoas que lêem o trabalho do cientista social. Consciência do sujeito sempre participa do processo social •A consciência do sujeito sempre participa, de algum modo, do processo social (em vez de ser simplesmente conduzida por fatores objetivos, como nas abordagens positivistas): essa participação pode consistir numa reprodução mais ou menos irrefletida dos padrões de significação vigentes, mas pode consistir também numa tentativa de re-estruturação dos mesmos, mediante projeção de novas idéias de sentido, capazes de se tornar “fatores de atração” dentro do sistema cultural. (re-estruturação “desde dentro”). 21 Aula 14 Alguns tópicos da sociologia de Max Weber (1864-1920), um dos principais expoentes da abordagem interpretativa. I) 4 “tipos ideais” de ação social. Modelos idealizados, abrangentes e abstratos de identificação do sentido da ação – na experiência concreta esses tipos se misturam, mas o pesquisador procura analisar qual deles predomina e qual o grau de “desvio” em relação ao tipo puro. 1) Ação afetiva: sentido da ação consiste numa obediência automática e irrefletida a afetos, sentimentos, emoções. Para se justificar, o agente apresenta como motivo uma emoção de caráter irrefletido (Weber a classifica como um tipo de ação “irracional”). 2) Ação tradicional: sentido da ação consiste na obediência relativamente automática e irrefletida às crenças, costumes e práticas tradicionais, ou seja, há muito tempo transmitidos e seguidos no grupo social em que o agente foi formado. Para se justificar, o agente recorre à vigência de um padrão tradicional de comportamento (Weber também a classifica como um tipo de ação irracional). 3) Ação racional com relação a um valor. Sentido da ação consiste no fato de que ela, nela mesma, encarna um valor consciente e refletidamente assumido pelo agente. Valores, neste caso, são bens (fins, idéias que os homens buscam seguir e efetivar) “internos” à ação, e que transformam a ação em “fim em si mesma” – em oposição a uma ação que é apenas meio para um bem ou fim que lhe é externo, que está além dela mesma. Exemplos de valor: honra, honestidade, lealdade, amor, vocação, justiça. * Elaborações que nós podemos fazer do conceito weberiano de “ação racional com relação a um valor”, tendo em vista uma melhor compreensão dos tipos ideais de legitimação da dominação, que serão vistos abaixo: 3.a) Ação racional com relação ao valor “mágico” dos afetos, emoções, sentimentos. Valorização consciente e refletida dos afetos e emoções como elementos que infundem “encanto” e “magia” à existência, salvando-a do tédio, banalidade, mediocridade. 3.b) Ação racional com relação aos valores “tradição sagrada” e “virtude”. Valorização consciente e refletida da ordem (visão de mundo) tradicional, e também do desempenho excelente das obrigações definidoras dos papéis sociais dentro desta ordem. - Valorização consciente e refletida do caráter “sagrado” da tradição, como fonte vital que garante a identidade, continuidade e vigor do grupo; valorização consciente e refletida da “virtude”, entendida como cumprimento excelente das expectativas sociais definidoras do papel social próprio do agente dentro da ordem tradicional. 4) Ação racional com relação a um fim. Sentido da ação remete à utilidade ou eficiência da mesma para fins (resultados) que lhe são externos; ação é meio para a realização de um resultado que lhe é externo, que está além dela, no futuro. Sentido da ação remete às conseqüências da mesma em relação a um resultado ou fim perseguido pelo agente. 22 - No âmbito deste tipo de ação, há uma tendência a conceber os fins em termos, simplesmente, de maximização indefinidamente prorrogada e prolongada de resultados em princípio traduzíveis em termos quantitativos. A eficiência passa a ser o fim (deixa de ser uma qualidade dos meios), e um fim que só pode ser operacionalizado à medida que é traduzido em termos quantitativos. - Weber acreditava que, no âmbito desse tipo de ação social e dessa forma de racionalidade, a realização plena da existência é continuamente reposicionada para o futuro, o que gera um certo grau de ansiedade e frustração, revelando um aspecto de irracionalidade presente nesse padrão de significação tão influente na cultura ocidental contemporânea. II) Em estreita associação com este tópico dos tipos de ação social, há o tópico dos “tipos ideais” de legitimação da dominação social: modelos idealizados, abrangentes e abstratos de identificação do sentido ou significado do fenômeno da dominação. Em outras palavras, trata-se de modelos abstratos das idéias e crenças que conferem legitimidade à dominação. Na experiência concreta esses tipos se misturam, mas o pesquisador procura analisar qual deles predomina e qual o grau de “desvio” em relação ao tipo puro. 1) Dominação carismática: legitimação da dominação vincula-se à crença dos dominados no “carisma” do governante, visto como qualidade excepcional, extraordinária, “mágica”. - Correspondência com a ação afetiva (resposta irrefletida a sentimentos de admiração e adoração por um indivíduo “extraordinário”) e com a ação racional com relação ao valor dos sentimentos e atitudes de devoção, lealdade e fidelidade ao líder extraordinário. 2) Dominação tradicional: legitimação da dominação vincula-se à crença dos dominados ou na inevitabilidade e irrevogabilidade ou na sacralidade da ordem tradicional, na qual o mando político é tradicionalmente exercido por determinadas famílias ou grupos. - Correspondência com a ação tradicional (obediência irrefletidas às normas e costumes tradicionais) e com a ação racional com relação ao valor da sacralidade da ordem tradicional e dos papéis sociais contidos nesta ordem. - A dominação se legitima ou pela crença mais ou menos irrefletida e acrítica na irrevogabilidade da ordem tradicional (o peso das práticas tradicionais, a “naturalidade” do fato de “em nossa sociedade estas pessoas sempre mandaram”), ou pela refletida valorização da sacralidade da ordem tradicional e da virtude a ela correspondente (valorização do desempenho excelente das expectativas da comunidade, definidoras do papel de cada um dentro da ordem tradicional). 3) Dominação racional, legal e burocrática, que se efetiva por meio da organização burocrática, ou do Estado burocrático. Legitimação da dominação vincula-se à crença na eficiência “técnica” de uma forma de organização das pessoas e recursos caracterizada pela racionalidade da estrutura ou organograma, qualificação técnica dos ocupantes dos cargos definidos no organograma, impessoalidade e meritocracia no preenchimento dos cargos. 23 - Correspondência com a ação racional com relação a fins. Legitimação da dominação se dá por meio da crença na racionalidade técnica ou instrumental, com a idéia de eficiência que lhe é típica. Legitimação da dominação vincula-se à crença na eficiência da Organização racional ou burocrática para a realização indefinidamente prolongada e aumentada de fins (resultados essencialmente futuros) passíveis de quantificação, como riqueza, segurança, saúde, educação. - Weber acreditava que, como expressão deste tipo ideal de legitimação da dominação, os regimes democráticos nos Estados ocidentais contemporâneos tenderiam cada vez mais a uma “tecnocracia”, onde o preenchimento até mesmo dos cargos eletivos estaria mais ligado à noção de competência técnica do que a uma discussão sobre os valores (bens ou fins internos às práticas sociais coletivas) a serem adotados e promovidos pela coletividade. - Em Weber, “tecnocracia” e “burocracia” são termos mais ou menos sinônimos. III) Para Weber, a característica essencial da cultura contemporânea é o predomínio crescente da racionalidade com relação a fins, ou da ação racional com relação a fins, que se manifesta e exerce nas organizações de caráter tecnocrático ou burocrático, tanto na esfera econômica quanto na esfera política. - Para Weber, o domínio crescente deste tipo de ação social tem sua origem nas idéias e crenças típicas do calvinismo (uma das correntes religiosas mais influentes da reforma protestante). Weber expôs sua teoria no famoso livro “A Ética Protestante e o Espírito do capitalismo” (1905). Para Weber, o sistema capitalista é a expressão mais importante da ação racional com relação a fins. •Em sua origem, a racionalização da sociedade (no sentido da racionalidade com relação a fins) esteve intimamente associada ao desenvolvimento do “espírito do capitalismo”: para maximizar os resultados econômicos (fim indefinidamente reposicionado no futuro), reinvestimento permanente dos ganhos auferidos, com a concomitante busca da maior eficiência. •“Espírito do capitalismo”. Combinação incomum de: desejo de riqueza e, por outro lado, frugalidade na vida pessoal. Em vez de ganhar para gastar e gozar a vida, ganhar para expandir indefinidamente os ganhos, mediante reinvestimento dos ganhos no processo produtivo. O lucro é buscado para maximizar indefinidamente o lucro. •“Ética protestante” (visão de mundo elaborada nas seitas calvinistas; seitas nas quais foram elaboradas e em certa medida modificadas as doutrinas de Calvino- 1509-1564, um dos mais importantes líderes da reforma protestante no início da era moderna): nas seitas calvinistas, o êxito econômico foi tomado como sinal de ter sido escolhido por Deus (para contrabalançar ansiedade gerada pela doutrina da predestinação defendida por Calvino). - Doutrina da predestinação defendida por Calvino: Deus predestinou cada um de nós à salvação ou condenação, sem que possamos, por nossos atos ou obras, modificar esse decreto divino. A salvação é para o homem um dom totalmente gratuito da graça divina. Rejeição de todas as práticas ritualísticas e sacramentais com vistas à salvação. 24 - Assim, o calvinista não só não pode fazer nada para conquistar sua salvação, como também não tem como saber se será salvo ou condenado, e essa incerteza pode se tornar psicologicamente intolerável. Em virtude de uma inclinação psicológica quase irresistível, ele tende a procurar no mundo sinais de que foi escolhido por Deus. Algumas seitas calvinistas terminaram por ver no êxito econômico uma prova da escolha de Deus. A riqueza era buscada, não como meio para se ter conforto e luxo, mas como um meio pelo qual se adquiria confiança na escolha de Deus. A autoconfiança era adquirida por meio do trabalho árduo e contínuo, marcado pela renúncia aos luxos e comodidades da vida mundana e pelo reinvestimento permanente da riqueza alcançada. - Assim, o lucro era buscado, não para gozar a vida, mas para produzir e lucrar cada vez mais. Surge assim o “espírito do capitalismo”, que acaba se desvinculando de seus motivos religiosos e levando à plena legitimação do desejo de posse e acumulação de riqueza. • Resultado inesperado da ética protestante: combinação incomum de preocupação com a salvação da alma e preocupação com a otimização das conseqüências econômicas. •Com o tempo, desaparece a preocupação religiosa e fica apenas a preocupação com a eficiência econômica. A teoria weberiana da organização burocrática. •O “tipo ideal” da organização burocrática (manifestação da racionalidade relativa a fins). •A) Regras impessoais, pautadas pela preocupação com a eficiência, regem o comportamento dos funcionários em todos os níveis. •B) Estrutura impessoal dos cargos, com definição clara e precisa das respectivas tarefas e responsabilidades. Preocupação com a eficiência técnica rege a definição do organograma. •C) Cargos são preenchidos segundo o princípio da qualificação técnica e profissional, com ênfase na possibilidade de ascensão na hierarquia dos cargos. Ascensão na hierarquia é regida pelo critério da meritocracia. •D) Hierarquia formal e bem definida das relações de autoridade e controle. Ênfase nas funções de supervisão e controle. •E) Separação nítida entre as tarefas do funcionário dentro da organização e sua vida pessoal fora dela. 25 Aula 15 A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt (teoria de caráter construtivista). Principais teóricos •Max Horkheimer (1895-1973). Theodor Adorno (1903-1969). Walter Benjamin (1892-1940). Herbert Marcuse (1898-1978). Jürgen Habermas (1929-). - Abordagem antipositivista ou construtivista: “interpretacionismo crítico”. Marxismo elaborado do ponto de vista da abordagem hermenêutica ou interpretativa. - Características que compartilha com a abordagem interpretativa (antipositivismo): ênfase nas idéias dos sujeitos, ou seja, nas idéias de sentido e padrões de significação seguidos pelos sujeitos. Ênfase na cultura. - “Teoria Crítica”: interesse nas possibilidades reais de mudança social, ou seja, possibilidades enraizadas na dinâmica dialética da realidade social (vista como dialética das idéias de sentido e padrões de significação). - Interesse nas possibilidades de produção de uma cultura mais propícia à realização do melhor potencial humano, entendido em termos de exercício igualitário e justo da liberdade humana. - Influência da teoria de Max Weber: Na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, a racionalidade com relação a fins passa a ser chamada de racionalidade instrumental, ou racionalidade estratégica, caracterizada, tal como em Weber, pela valorização da eficiência propiciada pela ciência e pela técnica. A racionalidade instrumental é vista como o padrão de significação dominante na cultura contemporânea, e um padrão de significação que acaba por funcionar como justificativa para um sistema sócio-político caracterizado por formas mais sutis de exploração e opressão, que a humanidade já teria condições de superar. - Origem: teoria crítica do marxismo clássico (lembrando que a teoria crítica do marxismo clássico tinha feição positivista, por colocar a ênfase em necessidades, interesses, condições e leis “objetivas”, ou seja, independentes das idéias “subjetivas” vividas pelos sujeitos). - Características gerais da “teoria crítica”. 1) Vínculo essencial entre teoria social e prática politicamente transformadora, orientada para a superação da opressão/exploração do homem, ou para a realização do melhor potencial humano. 2) Teoria social como momento da prática politicamente transformadora. 2.a) Identificação das possibilidades reais de mudança social, ou seja, possibilidades enraizadas na dialética da realidade social. 2.b) Identificação dos obstáculos à prática transformadora. - Essência da opressão no marxismo clássico: exploração da força/energia de trabalho do homem, possibilitada pela propriedade privada dos meios de produção dos bens materiais. 26 - Para o marxismo clássico, a mudança social fundamental é mudança no sistema das relações de produção, rumo à abolição da propriedade privada dos meios de produção. - Identificação das possibilidades reais de mudança social, no marxismo clássico. - Para o marxismo clássico, as possibilidade reais de mudança social são possibilidades enraizadas na dialética da realidade social, vista como dialética de um processo histórico “objetivo”, que se desenvolve e efetiva independentemente das idéias de sentido adotadas pelos sujeitos, vistas como idéias de caráter meramente “subjetivo” (“meras idéias”). - Dialética do processo histórico “objetivo”: contradições “objetivas” no modo de produção (progresso das forças produtivas versus envelhecimento das relações de produção) e conflitos “objetivos” entre classe dominante e classe dominada. - Para o marxismo clássico, a prática transformadora deve ser orientada pelo conhecimento de como acirrar essas contradições e conflitos “objetivos”. - Obstáculos à prática transformadora no marxismo clássico. a) “Falsa consciência” da classe dominada: falta de percepção do seu “verdadeiro interesse objetivo” (distinto das idéias meramente subjetivas sobre o que é bom, importante, certo, valioso, etc.). b) Ideologias difundidas pela classe dominante para disfarçar a luta de classes e o “verdadeiro interesse objetivo” das classes dominadas: religião, credo liberal. - Prática transformadora no marxismo clássico. - Lutar pelo acirramento das contradições objetivas no modo de produção (favorecer os grupos e atividades que promovem o desenvolvimento das forças produtivas em cada país). E “ensinar/mostrar” à classe dominada qual é seu “verdadeiro interesse objetivo”. - Mudanças na teoria crítica efetuadas pelos teóricos da Escola de Frankfurt. - Essência da opressão na Escola de Frankfurt: abafamento do potencial (ou energia) racional, reflexivo e/ou comunicativo próprio do ser humano, um potencial vinculado a práticas nas quais se exercem as formas não-instrumentais da racionalidade, definidas pelo fato de se orientarem para bens internos às próprias práticas (trata-se de atividades que são vividas como fins em si mesmas, por serem expressão, justamente, da racionalidade e criatividade dos homens). - Habermas, um dos principais teóricos da Escola de Frankfurt, acredita que o “fazer junto” baseado na discussão e criação compartilhada das normas e planos de ação é a principal dessas práticas. - Para Habermas, a criação compartilhada dos planos de ação apresenta duas características básicas: reconhecimento de cada pessoa como um possível contribuidor, implicando direito de falar, e ser ouvido e considerado. Em segundo lugar, busca de razões comuns ou compartilhadas (razões que todos possam reconhecer como boas para todos, ou ao menos justas para todos), em substituição a razões admitidamente particulares, válidas ou boas apenas para este ou aquele indivíduo (ou grupo). Isso significa que o “fazer junto” é reconhecido por todos como um empreendimento comum a todos, ou bom para todos. 27 - Para a Escola de Frankfurt em geral, o abafamento do melhor potencial humano é algo que se efetiva por meio da reprodução automática e irrefletida dos padrões de significação historicamente vigentes, centrados nas noções de eficiência, controle, domínio, manipulação, segurança no trato com a realidade objetiva (padrão de significação constituído pela racionalidade com relação a fins analisada por Weber e renomeada pelos frankfurtianos como “racionalidade instrumental/estratégica). - Para Habermas, a mudança social fundamental é mudança no padrão de significação mais influente na organização da sociedade; a mudança visa a subordinação do padrão de significação constituído pela racionalidade instrumental ao padrão de significação constituído pela racionalidade comunicativa (que pode ser aproximada daquilo que Weber chamou de racionalidade com relação a um valor, onde o “valor” – tomado como bem interno à ação – é o “entendimento”, ou seja, o compartilhamento de uma visão da situação e o “fazer junto” fundado nessa visão compartilhada). - Identificação das possibilidades reais de mudança social, na Escola de Frankfurt. - Para a Escola de Frankfurt, as possibilidades reais de mudança social são possibilidades enraizadas na dialética da realidade social, vista, entretanto, como dialética dos padrões de significação que se desenrolam no tempo. - Assim, o desgaste do padrão de significação constituído pela racionalidade com relação a fins (racionalidade instrumental/estratégica) sugere a possível emergência de um padrão de significação distinto, que se encontra em tensão e oposição latente com o primeiro, e que está mais presente em domínios de ação menos abrangentes e sistêmicos. - Na teoria de Habermas, trata-se de um padrão de significação constituído pela racionalidade dialógico-comunicativa, próxima da racionalidade com relação a valores de Weber, onde o valor, ou seja, o bem interno à própria ação, é o entendimento entre os participantes da ação comunicativa. - Tomado como bem interno à ação de cunho comunicativo, o “entendimento” consiste num conjunto de elementos: revigoramento consciente e refletido da interpretação da situação que é compartilhada pelos participantes, adesão consciente e racionalmente motivada a tal interpretação comum ou compartilhada, e, finalmente, o “fazer junto” que decorre desse tipo de adesão. - Em outras palavras, o bem interno à “ação comunicativa” é o exercício do “poder comunicativo” do grupo, que exprime a “energia comunicativa” do grupo. - Para Habermas, o desgaste da racionalidade instrumental equivale ao desgaste das interações comunicativas baseadas apenas em razões particulares, como o interesse de um indivíduo particular, ou o medo de um indivíduo particular. - Para Habermas, a “ação comunicativa”, que é a interação baseada em atos de fala, funda-se na compreensão e aceitação do ouvinte em relação aos enunciados do falante. É claro que essa compreensão e aceitação podem perfeitamente basear-se em razões meramente particulares, do tipo “compreendo que a proposta dele é boa para os interesses dele, e aceito porque vejo que não aceitar será ruim para mim”. Habermas fala nesse caso de uma “ação comunicativa fraca”. Para ele, porém, a meta de obter a compreensão e aceitação do outro, própria da ação comunicativa em geral, como que sugere o recurso a razões 28 compartilhadas, associadas a uma visão do empreendimento como um empreendimento bom para todos, ou, ao menos, justo para todos. Trata-se nesse caso da “ação comunicativa forte”. Para Habermas, a ação comunicativa forte representa uma idealização que está contida e que é influente até mesmo nos contextos de ação caracterizados pela ação comunicativa fraca. - Obstáculos à prática transformadora na Escola de Frankfurt. - Em vez de “falsa consciência” (consciência que não percebe seu verdadeiro interesse “objetivo”), como no marxismo ortodoxo, “consciência abafada” (abafamento da atividade de reflexão crítica sobre o que é bom na existência; abafamento da capacidade de perceber e vivenciar bens internos às próprias atividades ou práticas). - Conceito de ideologia deixa de enfatizar a produção deliberada ou proposital da falsa consciência (como no marxismo ortodoxo), e passa a enfatizar o processo de abafamento da atividade reflexiva das consciências (processo de reprodução automática e irrefletida de idéias de sentido como eficiência, controle, domínio, manipulação, certeza, segurança, progresso técnico-científico, aumento de produtividade, etc., oriundas do padrão de significação constituído pela racionalidade instrumental). - Técnica e ciência passam a ser conceituadas como “ideologia”, justamente por funcionarem como uma justificativa automática e irrefletida do valor “eficiência”, que está na base do “sistema” que abafa a liberdade ou autonomia das pessoas, ou seja, abafa a capacidade das pessoas de perceberem e vivenciarem bens e prazeres internos às suas próprias atividades ou práticas. 29 Aula 16. As abordagens sociológicas no campo da teoria das organizações. - Abordagens mais relevantes: abordagem mecanicista, funcionalismo, abordagem interpretativa e Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. 1) A abordagem mecanicista no campo da teoria das organizações: abordagem de caráter positivista: tende a deixar de lado a tese de que a realidade organizacional é construída por sujeitos em interação simbólica, ou seja, interação na qual são transmitidas e trocadas idéias e formas de pensar, relativas ao significado das coisas e do ambiente em geral. - Vê a organização como máquina: a) Visão “atomística” dos indivíduos que trabalham na organização: não coloca ênfase nas relações entre os indivíduos. Funcionários são vistos como indivíduos isolados com necessidades estritamente materiais, e orientados exclusivamente pela racionalidade calculadora ou instrumental, entendida como capacidade de discernir os comportamentos necessários ou eficazes para a maximização da vantagem estritamente individual. Necessidades materiais, interesses individuais e racionalidade calculadora ou instrumental são tomadas como elementos “objetivos” (no sentido positivista do conceito) da natureza humana. b) Ênfase no organograma: estrutura de cargos com tarefas e responsabilidades bem definidas, estabelecidas muitas vezes em regras escritas. c) Ênfase em punições e recompensas associadas às necessidades estritamente materiais dos funcionários, que funcionam como razões ou motivos no âmbito da racionalidade calculadora ou instrumental. d) Ênfase nas linhas de comando, supervisão e controle, de caráter fortemente hierárquico. 2) Abordagem funcionalista no campo da teoria das organizações: apesar de enfatizar mais a importância das relações humanas no funcionamento da organização, focaliza estas relações de um ponto de vista grosso modo positivista, interpretando-as como manifestações de necessidades humanas objetivas, independentes das idéias e avaliações que os próprios sujeitos têm sobre elas. - Vê a organização como um organismo vivo. a) Processo “vivo” de trocas entre seres humanos com necessidades mais complexas do que as necessidades estritamente materiais. Estas necessidades mais complexas envolvem laços de reconhecimento e amizade entre as pessoas, que dão origem a estruturas informais muitas vezes mais importantes do que o organograma formal. b) Ênfase na tese de que não há uma receita única do sucesso organizacional. A forma adequada de estruturar e gerir a organização depende dos desafios e tarefas que lhe são impostos pelo ambiente. 30 c) Embora a receita varie, toda organização bem-sucedida deve atender a duas necessidades essenciais: integração e coerência interna (coerência entre os diversos aspectos e dimensões da realidade organizacional; integração entre setores, departamentos, funcionários, etc.) e, por outro lado, adaptação ao ambiente externo. - Estas necessidades são interpretadas como necessidades “objetivas”, no sentido positivista do termo: elementos que existem e surtem efeitos independentemente das idéias, concepções e avaliações que os sujeitos tenham sobre eles. d) Visão grosso modo positivista do ambiente externo: ambiente externo é um elemento “objetivo” ao qual a organização deve simplesmente adaptar-se. Não se coloca ênfase na tese de que o ambiente está sendo continuamente construído pelas diversas organizações que dele participam ou a ele se referem, ou seja, pelas atitudes, idéias e práticas destas organizações (esta última tese é típica das abordagens antipositivistas da hermenêutica e da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt). e) Ênfase na “aprendizagem de circuito único” como mecanismo de adaptação passiva a um ambiente externo caracterizado por constantes mudanças. Aprendizagem de circuito único: captar informações do ambiente; relacionar estas informações às normas operacionais e metas organizacionais; desencadear ações corretivas, sem questionar a pertinência e validade nem das normas nem das metas previamente fixadas. 3) Abordagem interpretativa na teoria das organizações. Abordagem antipositivista e construtivista: elementos e itens que compõem a realidade organizacional existem por meio das idéias e formas de pensar com que os sujeitos lhes atribuem significados (realidade de uma coisa = modo como esta coisa me aparece, significado que ela tem para mim). - Ênfase na cultura organizacional, definida como rede das idéias e modos de pensar com que os membros da organização exprimem o significado dos diferentes itens da realidade organizacional. - Realidade organizacional é construída por sujeitos que compreendem, aplicam, transmitem e reproduzem as formas de pensar por meio das quais se atribuem significações aos diferentes itens envolvidos nas práticas organizacionais. - Interesse na identificação de modos de pensar dominantes, modos de pensar minoritários, modos de pensar emergentes, etc. 4) Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Abordagem antipositivista e construtivista das organizações, que vê a organização como cultura, ou seja, realidade construída pelas interações simbólicas dos sujeitos. Mas, diferentemente da abordagem interpretativa, tem forte interesse e coloca forte ênfase na possibilidade de se criar a organização como uma cultura “dialógica”, centrada em modos de pensar valorizadores do diálogo e entendimento “forte” entre os sujeitos. 31 a) Valoriza a argumentação e diálogo como princípios para a emergência de decisões e normas de cunho mais compartilhado. b) Valoriza a competência do sujeito para compreender e sentir-se motivado pelo sentido ou significado dessas decisões e normas compartilhadas. c) Valoriza o “fazer-junto” (prática efetivamente coletiva) baseado em decisões coletivamente construídas, e nesse sentido compartilhadas. d) Valoriza a “aprendizagem em circuito duplo”: usar as informações em geral, tanto externas quanto internas, para discutir e eventualmente alterar os princípios (valores, normas, metas) que orientam as decisões e práticas da organização. Usar as informações, não tanto para manter uma relação “bem adaptada” ao ambiente, de acordo com certas normas e metas inquestionáveis, mas, muito mais, para “auto-reorganizar-se”, ou seja, remodelar os princípios das práticas organizacionais. Diálogo e discussão capazes de levar a uma “reprogramação” da organização. Auto-re-organização (processo típico dos sistemas capazes de aprendizagem em circuito duplo) como um processo coletivo, comunicativo, dialógico. - Em vez de preocupar-se com um processamento relativamente passivo das informações do ambiente, preocupar-se em projetar novos modos de pensar no ambiente. e) Ênfase na idéia de que o ambiente é até certo ponto construído pela projeção das idéias e atitudes dialogicamente construídas na organização. Não se coloca ênfase num ambiente absolutamente objetivo, no sentido positivista do termo.