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texto 10 - “O mito de Er”: a componente místico-religiosa do platonismo “Eu não ficaria admirado se Eurípedes afirmasse a verdade quando disse: Quem pode saber se viver não é morrer e morrer não é viver? e que nós, na realidade, talvez estejamos mortos. De fato, já ouvi também homens sábios dizerem que nós, agora, estamos mortos e que o corpo é um túmulo para nós”(Platão, Górgiass, 492 e) “Para eles, quando chegaram, tiveram logo de se apresentar a Láquesis. Primeiro, um hierofanta alinhou-os em ordem: depois, tirando dos joelhos de Láquesis lotes e modelos de vida, subiu para um estrado elevado e gritou: “Proclamação da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efêmeras, ireis começar uma nova carreira e renascer na condição mortal. Não será um espírito que vos tirará a escolha, sois vós que ides escolher o vosso espírito. O primeiro que o destino designar será o primeiro a escolher a vida à qual ficará ligado pela necessidade. Quanto à virtude, não tem mestre; cada um terá mais ou menos, conforme a honrará ou negligenciará. Cada um é responsável pela sua escolha, a divindade está fora de causa. Com estas palavras, atirou os destinos para a assembléia, e cada um apanhou aquele que lhe caiu mais perto, salvo Er, a quem não foi permitido. Cada um conheceu então a posição que lhe cabia escolher. Depois disso, o mesmo hierofanta expôs por terra diante deles os modelos de vida, cujo número ultrapassava de longe o das almas presentes. Havia-os de todas as espécies: todas as vidas possíveis de animais e todas as vidas humanas; encontravam-se aí tiranias, algumas duradouras até à morte, outras interrompidas a meio e terminando na pobreza, no exílio, na mendicidade; havia também vidas de homens afamados quer pela beleza dos seus corpos e rostos ou pelo vigor e força na luta quer pela sua nobreza ou pelas grandes qualidades dos seus antepassados. Havia também vidas de homens obscuros quanto a todos estes aspectos, e vidas de mulheres com a mesma variedade. Mas não havia nada regulamentado para a posição que as almas tomariam, porque cada uma deveria necessariamente mudar segundo a escolha que fizesse. Quanto aos outros elementos da nossa condição, estavam misturados uns com os outros, a riqueza, a pobreza, a doença, a saúde; também havia meios termos entre os extremos. É este, ao que parece, caro Glauco, o momento crítico para o homem, e é justamente por isso que cada um de nós deve deixar da lado qualquer outro estudo, e cuidar de procurar e cultivar somente aquela. Talvez ele possa descobrir e reconhecer o homem que lhe comunicará a capacidade e a ciência de discernir as boas e as más condições e de escolher sempre e em qualquer parte a melhor, tanto quanto lhe for possível, calculando que efeitos têm todas as qualidades que acabo de dizer sobre a virtude durante a vida, quer juntas quer separadas. Que aprenda dele a prever o bem ou o mal que produz tal mistura de beleza com pobreza ou riqueza e com esta ou aquela disposição da alma, e as conseqüências que terão, ao misturarem-se entre si, o nascimento ilustre ou obscuro, a vida privada e os cargos públicos, o vigor ou a fraqueza, a facilidade ou a dificuldade em aprender e todas as qualidades espirituais do mesmo gênero, naturais ou adquiridas. Então, tirando a conclusão de tudo isso, e sem perder de vista a natureza da alma, será capaz de escolher entre uma vida má e uma vida boa, chamando má àquela vida que acabaria por tornar a alma mais injusta, e boa àquela que a tornaria melhor, sem olhar a tudo o resto; porque vimos que, durante a vida e depois da morte, é a melhor escolha que se poderia fazer. E é preciso guardar esta opinião dura como o aço descendo ao Hades, a fim de que já não se deixe espantar lá em baixo pelas riquezas e pelos males desta natureza, nem se deixe precipitar em tiranias ou outras escolhas do mesmo gênero, que causariam inúmeros males sem remédio e far-nos-iam sofrer, a nós mesmos, males ainda maiores, mas que, de preferência, queira escolher sempre entre as condições a condição de meio termo, evitando os excessos nos dois sentidos, e tanto quanto possível nesta vida e em todas as que se seguirão; porque é a isso que está ligada a felicidade do homem. No exato momento em que o hierofanta lançava os destinos, juntara, segundo a informação do mensageiro dos infernos, estas palavras: “Mesmo o último, se escolhe judiciosamente e se esforça por viver bem, pode conseguir apanhar uma condição conveniente e boa. Que o primeiro escolha com atenção e o último não perca a coragem”. O Panfílio contava que, logo que o hierofanta pronunciou estas palavras, aquele a quem tinha saído o primeiro destino, avançando imediatamente, escolheu a maior tirania e, levado pela imprudência e por uma avidez imensa, ficou com ela sem ter examinado suficientemente todas as conseqüências da sua escolha. Não viu que o seu quinhão o destinava a comer os seus próprios filhos e a cometer outros horrores; mas, quando o examinou à vontade, bateu no peito e lamentou-se de ter escolhido daquela maneira, sem se lembrar das advertências do hierofanta; porque, em vez de se acusar a si mesmo dos seus males, ele atirava-se à fortuna, aos demônios, a tudo, de preferência a ele próprio. Ora, era um daqueles que viera do céu e tinha vivido antes num Estado bem governado; mas, se tivera virtude, era devido ao hábito, não à filosofia, e pode-se afirmar que, entre as almas que se deixaram surpreender assim, as que vieram do céu não eram as menos numerosas; e a razão é que elas Não tinham sido experimentadas pelos sofrimentos; pelo contrário, a maior parte das que vieram da terra, tendo elas próprias sofrido e visto as outras sofrer, não procediam à escolha com precipitação. Resultava deste fato, como também da sorte da tiragem do destino, que a maior parte das almas trocava males por bens e vice-versa. Se, com efeito, cada vez que um homem vem a este mundo, se aplicasse a um estudo são da filosofia, e se o destino não o chamasse a escolher entre os últimos, teria oportunidade, segundo o que se sabe das coisas do outro mundo, não somente de viver feliz aqui em baixo, mas ainda de viajar deste mundo ao outro e voltar, não pelo áspero caminho subterrâneo, mas pela estrada unida do céu. Era, dizia Er, um espetáculo curioso, ver de que maneira as diferentes almas escolhiam a sua vida: nada de mais lamentável, de mais ridículo, de mais estranho; a maioria, com efeito, não era guiada na sua escolha senão pelos hábitos da vida anterior. Ele viu, dizia, a alma que fora de Orfeu escolher a vida de um cisne, porque não queria nascer no seio de uma mulher, devido ao ódio contra as mulheres que o tinham morto; viu a alma de Tâmiras escolher a vida de um rouxinol; também viu um cisne trocar a sua existência pela de um homem, e outros animais cantores fazerem o mesmo. A alma que o destino chamara em vigésimo lugar para escolher tomou a vida de um leão: era a de Ajax, filho de Telêmaco, que já não desejava o estado de homem, pela relembrança do julgamento das armas. Depois foi a alma de Agamenón; também ela, tendo ganho aversão à raça humana devido às infelicidades passadas, trocou a sua condição pela de uma águia. Colocada pelo destino no meio das outras, a alma de Atalante, tendo considerado as grandes honras dadas aos atletas, não teve força para passar a outra condição e escolheu-as. Depois dela, viu a alma de Épeos, filho de Panopeia, passar à condição de uma mulher engenhosa. Longe, nas últimas posições, viu a alma do bobo Tersites revestir-se da forma de um macaco. Enfim, a alma de Ulisses, a quem o acaso designara a última posição, avançou para escolher; mas, aliviado da ambição pela recordação das provações passadas, procurou durante bastante tempo a vida de um particular estranho aos negócios; teve alguma dificuldade em encontrar uma que estava caída para um canto, desdenhada pelas outras. Ao aperceber-se dela, ela disse que teria feito a mesma escolha, se o destino a tivesse designado em primeiro lugar, e apressou-sea ficar com ela. Os animais faziam o mesmo: passavam à condição de homens ou à de outros animais, os animais injustos nas espécies selvagens, os justos nas espécies pacíficas, e faziam entre si as misturas de todos os destinos. Depois de todas as almas terem escolhido a sua condição, dirigiram-se para Láquesis na ordem em que tinham tirado o seu lote. Esta deu a cada uma o espírito que tinha preferido, a fim de que lhe servisse de guardião na vida e a fizesse cumprir com o destino que escolhera. Primeiro, o espírito levava-a a Cloto, e colocando-a na mão desta parca e sob o fuso que ela fazia rodar, ratificava assim o destino que a alma tinha escolhido depois da tiragem à sorte. Depois de ter tocado no fuzo, levava-a em seguida à trama de Átropos para tornar irrevogável o que tinha sido fiado por Cloto, depois, sem que pudesse voltar atrás, a alma aproximava-se do trono da Necessidade; por fim, passava para o outro lado deste trono. Quando todas já tivessem passado por aí, dirigiam-se juntas para a planície do Letes, com um calor sufocante e terrível; porque não havia na planície nem árvores nem plantas. Com a noite, acamparam na borda do rio Ameles, cuja água não pode ser guardada em nenhum recipiente; cada alma tem de beber uma certa quantidade desta água; as que não forem impedidas pela prudência bebem demais. Depois que se bebeu, esquece-se tudo. A seguir, adormeceram; mas, a meio da noite, estalou uma tempestade, com um tremor de terra, e de repente as almas saltaram dos seus lugares, cada uma por seu lado, para o mundo superior, onde deveriam renascer, e desapareceram como estrelas. (Platão.A República. X, 617 d -621b.) Leituras complementares: ERLER, Michael;GRAESER, Andréas (orgs.) Filósofos da Antiguidade. Dos primórdios ao período clássico. São Leopoldo: Unisinos, 2003 PECORARO, Rossano(org). Os filósofos. Clássicos da Filosofia. De Sócrates a Rousseau. Petrópolis: Vozes/PucRJ, 2008. �PAGE �3� �PAGE �1�