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2. Tipo e tipicidade 2.1. Noção de tipo A fragmentariedade do Direito Penal tem como consequência uma construção tipológica individualizadora de condutas que considera gravemente lesivas de determinados bens jurídicos que devem ser tutelados. A lei, ao definir crimes, limita-se, frequentemente, a dar uma descrição objetiva do comportamento proibido, cujo exemplo mais característico é o do homicídio, “matar alguém”. No entanto, em muitos delitos, o legislador utiliza-se de outros recursos, doutrinariamente denominados elementos normativos ou subjetivos do tipo, que levam implícito um juízo de valor. A teoria do tipo criou a tipicidade como característica essencial da dogmática do delito, fundamentando-se no conceito causal de ação, concebida por Von Liszt70. Reconhecendo, desde logo, a unidade do delito, destacamos a necessidade metodológica de distinguir os estágios ou degraus valorativos que permitem a atribuição de responsabilidade penal, quais sejam, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade, facilitando o estudo, a compreensão e a análise do fenômeno delitivo na sua totalidade. Tipo é o conjunto dos elementos do fato punível descrito na lei penal. O tipo exerce uma função limitadora e individualizadora das condutas humanas penalmente relevantes. É uma construção que surge da imaginação do legislador, que descreve legalmente as ações que considera, em tese, delitivas. Tipo é um modelo abstrato que descreve um comportamento proibido. Cada tipo possui características e elementos próprios que os distinguem uns dos outros, tornando-os todos especiais, no sentido de serem inconfundíveis, inadmitindo-se a adequação de uma conduta que não lhes corresponda perfeitamente. Cada tipo desempenha uma função particular, e a falta de correspondência entre uma conduta e um tipo não pode ser suprida por analogia ou interpretação extensiva. O tipo, como conjunto dos elementos do injusto característicos de uma determinada classe de delito, compreende a descrição dos elementos que identificam a conduta proibida pela norma; mas não alcança a descrição dos elementos do tipo permissivo, que caracterizam as causas de justificação. Portanto, quando nos referimos tecnicamente ao tipo penal, nos referimos ao tipo de delito, que, na definição de Welzel, “é a descrição concreta da conduta proibida (do conteúdo da matéria da norma). É uma figura puramente conceitual”71. Nesses termos, optamos claramente por manter o tipo como categoria sistemática autônoma frente à antijuridicidade. Ademais, seguindo o modelo valorativo escalonado do fenômeno delitivo, entendemos que o conceito de tipo não tem o mesmo significado de crime, pois, para identificar uma conduta como crime, é necessário, ainda, analisar se a conduta típica é antijurídica e culpável. Seguindo essa linha de raciocínio, crime não se confunde com injusto, embora ambos tenham caráter substantivo. Na afirmação de Jescheck, injusto é a conduta valorada de antijurídica72. Com efeito, injusto é toda e qualquer conduta típica e antijurídica, mesmo que não seja culpável. Em outros termos, só é crime o injusto culpável. Logo, o injusto, ainda que seja uma conduta antijurídica, pode não se completar como crime efetivamente, pela falta da culpabilidade73. 2.2. Juízo de tipicidade Há uma operação intelectual de conexão entre a infinita variedade de fatos possíveis da vida real e o modelo típico descrito na lei. Essa operação, que consiste em analisar se determinada conduta se adapta aos requisitos descritos na lei, para qualificá-la como infração penal, chama-se “juízo de tipicidade”, que, na afirmação de Zaffaroni, “cumpre uma função fundamental na sistemática penal. Sem ele a teoria ficaria sem base, porque a antijuridicidade deambularia sem estabilidade e a culpabilidade perderia sustentação pelo desmoronamento do seu objeto”74. Quando o resultado desse juízo for positivo significa que a conduta analisada reveste-se de tipicidade. No entanto, a contrario sensu, quando o juízo de tipicidade for negativo estaremos diante da aticipidade da conduta, o que significa que a conduta não é relevante para o Direito Penal, mesmo que seja ilícita perante outros ramos jurídicos (v. g., civil, administrativo, tributário etc.). 2.3. Tipicidade A tipicidade é uma decorrência natural do princípio da reserva legal: nullum crimen nulla poena signe praevia lege. Tipicidade é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal. “Tipicidade é a correspondência entre o fato praticado pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na lei penal incriminadora”75. Um fato para ser adjetivado de típico precisa adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei. A adequação típica pode operar-se de forma imediata ou de forma mediata. A adequação típica imediata ocorre quando o fato se subsume imediatamente no modelo legal, sem a necessidade da concorrência de qualquer outra norma, como, por exemplo, matar alguém: essa conduta praticada por alguém amolda-se imediatamente ao tipo descrito no art. 121 do CP, sem precisar do auxílio de nenhuma outra norma jurídica. No entanto, a adequação típica mediata, que constitui exceção, necessita da concorrência de outra norma, de caráter extensivo, normalmente presente na Parte Geral do Código Penal, que amplie a abrangência da figura típica. Nesses casos, o fato praticado pelo agente não vem a se adequar direta e imediatamente ao modelo descrito na lei, o que somente acontecerá com o auxílio de outra norma ampliativa, como ocorre, por exemplo, com a tentativa e a participação em sentido estrito, bem como com o crime omissivo impróprio, que exige a conjugação do tipo de proibição violado com a norma extensiva do art. 13, § 2º, e suas alíneas. Na hipótese da tentativa, há uma ampliação temporal da figura típica, e no caso da participação a ampliação é espacial e pessoal da conduta tipificada. 2.4. Funções do tipo penal De um modo geral, atribuem-se inúmeras funções ao tipo penal, dentre as quais destacam-se como fundamentais as seguintes: a função indiciária, a função de garantia e a função diferenciadora do erro. a) Função indiciária O tipo circunscreve e delimita a conduta penalmente ilícita. A circunstância de uma ação ser típica indica que, provavelmente, será também antijurídica. A realização do tipo já antecipa que, provavelmente, também há uma infringência do Direito, embora esse indício não integre a proibição. Enfim, como vimos na concepção de Mayer, a tipicidade é a ratio cognoscendi da antijuridicidade, isto é, a adequação do fato ao tipo faz surgir o indício de que a conduta é antijurídica, e essa presunção somente cederá ante a configuração de uma causa de justificação. No entanto, não se pode ignorar, a função indiciária do tipo fica fortemente enfraquecida nos crimes culposos e nos crimes comissivos por omissão, em que o tipo é aberto, não contendo a descrição completa da conduta ilícita. b) Função de garantia (fundamentadora e limitadora) O tipo de injusto é a expressão mais elementar, ainda que parcial, da segurança decorrente do princípio de legalidade, consagrado pela fórmula latina nullum crimen sine lege. A garantia do princípio de legalidade está expressamente reconhecida, tanto no art. 5º, XXXIX, da CF de 1988, como no art. 1º do Código Penal. Todo cidadão, antes de realizar um fato, deve ter a possibilidade de saber se sua ação é ou não punível. Essa função de determinar a punibilidade das condutas proibidas já fora atribuída pelo próprio Beling e incorporada por Welzel, segundo o qual “o tipo tem a função de descrever de forma objetiva a execução de uma ação proibida”76. Em verdade, o tipo cumpre, além da função fundamentadora do injusto, também uma função limitadora do âmbito do penalmente relevante.Assim, tudo o que não corresponder a um determinado tipo de injusto será penalmente irrelevante. Nesse sentido, apoiando-se em Lang-Hinrichsen e Engisch, Claus Roxin definiu o conceito que abrange todas as circunstâncias a que se refere o princípio nullum crimen sine lege como “tipo de garantia”77. Com essa definição, Roxin faz uma expressa alusão ao significado político-criminal do tipo, no sentido de que somente por meio da descrição típica da conduta proibida é possível garantir a estruturação de um Direito Penal do fato, e que não seja admissível um Direito Penal de autor. c) Função diferenciadora do erro A teoria do tipo tem igualmente função importante diante da teoria do erro jurídico-penal. Hoje é indiscutível que o dolo do agente deve abranger todos os elementos constitutivos do tipo penal. Quando o processo intelectual-volitivo não atinge um dos componentes da ação descrita na lei, o dolo não se aperfeiçoa, isto é, não se completa. O autor somente poderá ser punido pela prática de um fato doloso quando conhecer as circunstâncias fáticas que o constituem78. O eventual desconhecimento de um ou outro elemento constitutivo do tipo constitui erro de tipo, excludente do dolo, e, por extensão, da própria tipicidade, quando se tratar de erro inevitável. Essa modalidade de erro, à evidência, não se confunde com o erro de proibição, qual seja, quando o agente sabe o que faz, mas imagina que sua ação é permitida. 3. Bem jurídico e conteúdo do injusto Admite-se atualmente que o bem jurídico constitui a base da estrutura e interpretação dos tipos penais. O bem jurídico, no entanto, não pode identificar-se simplesmente com a ratio legis, mas deve possuir um sentido social próprio, anterior à norma penal e em si mesmo decidido, caso contrário, não seria capaz de servir a sua função sistemática, de parâmetro e limite do preceito penal e de contrapartida das causas de justificação na hipótese de conflito de valorações79. A proteção de bem jurídico, como fundamento de um Direito Penal liberal, oferece um critério material, extremamente importante e seguro na construção dos tipos penais, porque, assim, “será possível