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Gestão Tradicional de Portfólio: Um Castelo de Mentiras Rodrigo de Toledo Avelino F. Gomes Filho 24 de Setembro de 2020 Índice I As mentiras do castelo 1 1 1o andar de mentiras: Escopo fixo 6 2 2o andar de mentiras: Estimativas de prazo e custo 14 3 3o andar de mentiras: Estimativa de valor 22 4 4o andar de mentiras: Acompanhamento de projetos 26 II Limpando o castelo 31 5 Transparência e Agilidade 34 6 Escopo flexível 45 7 Foco no problema e não na solução 60 IIIDerrubando o Castelo 73 8 Lean startup e eliminação de ideias 76 9 Triplo L: Limitando o Trabalho Paralelo 79 10 Acompanhamento por Resultado 92 IVEvoluindo para Valor Contínuo 117 11 Produtos mais que projetos 120 12 Alocação de pessoas 123 13 Redistribuição orçamentária 132 A A décima mentira: dragão Caopex 133 Bibliografia 134 Parte I As mentiras do castelo O castelo É triste ver como nas grandes empresas as pessoas vêm se enganando por tanto tempo. O atual modelo projetizado das empresas acaba por criar um Castelo de Mentiras. A existência de tal cas- telo de enganação não é o único problema. A construção desse castelo é feita envolvendo diversas pessoas, muitas delas de altíssimo nível hierárquico, com as horas mais caras da organização. O esforço empenhado no castelo é um desperdício de custo gigantesco. Porém, isso ainda é pequeno se comparado ao impacto que a mentira traz: • projetos inócuos; • estruturas inúteis; • burocracias extremas; • falta de foco; • verdadeiros valores ignorados; e • desperdício de tempo de vidas humanas. O último item é o pior deles! Recentemente em uma palestra nossa, havia mais de trezentas pessoas, fizemos a clássica pergunta: – Quem já trabalhou em algo que no final nunca foi usado? Mais uma vez, vimos quase a totalidade de mãos le- vantadas. Mas dessa vez esticamos um pouco mais: – Quem trabalhou mais de um ano permaneça com a mão levantada! Várias mãos ainda permaneceram... – dois anos, três anos, quatro anos? Achamos uma recordista daquele grupo (em outras sessões já vi tempos maiores, chegando até oito anos). Mas esticamos ainda mais: – Quantas pessoas trabalharam nesse projeto de qua- tro anos? Com a resposta de trinta pessoas, pudemos fazer agora as contas (30 x 4): cento e vinte anos jogados fora. Ou seja, considerando que pessoas podem trabalhar por quarenta anos, aquele projeto matou o equivalente a três 2 vidas de trabalho para nada. É como se falássemos para três pessoas que acabaram de sair da faculdade que tudo o que eles farão até se aposentarem não servirá nunca para ninguém. Se você já trabalhou em algo que nunca foi usado, faça também as suas contas (multiplique o nú- mero de pessoas pelo tempo) e veja o desperdício de vidas humanas (muito mais doloroso do que falar de dinheiro desperdiçado). Portfólio anual de projetos Todo ano, diversas organizações têm que fechar o orça- mento e o portfólio de projetos para o ano seguinte. Num processo cíclico que inclui um grande esforço no ano an- terior para essa tomada de decisão. Nos dias de hoje há uma demanda crescente de ideias que podem virar projeto. O avanço tecnológico impulsi- ona para que a quantidade de opções seja muito maior que a nossa capacidade de executar os projetos. Isso re- quer alguma política de escolha de quais são os projetos que entrarão no nosso portfólio, em detrimento de outros que ficarão de fora. As mentiras descritas neste livro são reflexos dessa escassez, afinal, não será possível fazer tudo o que se deseja. Começam a aparecer jogos políticos, desconfiança 3 mútua, pressões, práticas de autodefesa etc. Esse castelo de mentiras tem vários andares sobre- postos da base até a cobertura. Na nossa experiência profissional ajudando diferentes organizações, foi possível identificar alguns padrões de mentiras. Decidimos então mapeá-las em diversos personagens, moradores desse cas- telo, como descritos nos primeiros capítulos do livro. Aviso 1 Há dois anos temos apresentado os nove personagens do castelo em conferências, workshops e treinamentos. Os atendentes geram uma conexão imediata com as menti- ras, reforçando a nossa crença de que há um padrão de repetição em diferentes organizações. Aliás, parece ser internacional, pois o mesmo aconteceu em diferentes paí- ses (Brasil, EUA, México, França e Áustria). É muito comum, em um processo de empatia, o pú- blico mapear os personagens às pessoas reais em suas empresas. Porém, avisamos que não há uma relação um para um entre personagens e pessoas na vida real. Al- gumas das mentiras que vamos relatar são executadas às vezes por mais de uma pessoa; e uma mesma pessoa pode interpretar mais de um personagem. Qualquer semelhança com a realidade é mera coinci- 4 dência! Ou não. Aviso 2 Cuidado para não culpar diretamente as pessoas! O problema está no sistema e não nas pessoas [ME- ADOWS; WRIGHT, 2008]. Se os padrões se repetem, então não adianta trocar as pessoas dentro da empresa, porque as mentiras estarão lá novamente. Mas então, o que fazer? Temos que mudar o sistema! Uma vez que criamos consciência sobre os padrões de mentiras e todas as mazelas decorrentes dele, é nossa obrigação alterar- mos o sistema para que isso não se perpetue na vida das pessoas! Se não nos esforçamos nesse sentido, nós nos tornamos os culpados dessa história! Não culpe as pessoas, culpe o sistema! Donella Meadows 5 Capítulo 1 1o andar de mentiras: Escopo fixo A primeira grande mentira está na crença de que o escopo de um projeto deve ser todo escrito no início e que isso não deveria mudar. Todas as vezes em que perguntamos em empresas quais são os maiores problemas de projetos de longo prazo, as respostas sempre incluem pelo menos um desses itens: • o escopo vive mudando, • os requisitos foram mal levantados no início, ou • o cliente não sabe o que quer. Esse relato aparece em todos os tipos de empresa: startups ou grandes corporações, empresas novas ou tra- dicionais, no Brasil ou no exterior. Se isso sempre é re- latado, não deveríamos mais considerar um problema, deveríamos considerar isso um fato! FATO: o escopo vai mudar; FATO: o cliente não sabe o que quer! Uma vez que consideramos isso um fato, a pergunta é: qual é o melhor método que podemos usar? (Nossa resposta aqui é a adoção de métodos ágeis com escopo flexível. Mais sobre isso na Parte “Qual é a alternativa?”) Figura 1.1: No primeiro andar de mentira, o escopo fixo, moram três personagens: Rei Jassei, Astrônomo Nada- muda, e a Princesa Jaquê. Portanto, o primeiro personagem é o Rei Jassei (vide Figura 1.2). O Rei representa aquela pessoa que está confiante que já sabe a solução. A verdade é que muitas vezes nem o problema ele sabe. 7 Figura 1.2: A primeira mentira do nosso castelo é o Rei Jassei. Ele sabe exatamente o que quer. Ele fecha o escopo do projeto e assume a paternidade ou maternidade da solução. “Aqui quem manda sou eu”. Fica ainda pior quando essa ideia leva o nome do rei. Agora ele irá defender sua ideia como se a sua sobrevivên- cia dependesse dela. Essa relação entre criador e criatura impede que o seu pedido seja questionável, e à medida que o tempo passa, o apego vai se tornando ainda maior. Essa individualização da criação (“ideia do fulano”, “ideia da beltrana”) é reflexo de um processo criativo ruim. Na verdade, as melhores criações são aquelas que 8 consideram a inteligência coletiva, pessoas criando em cima das sugestões uns dos outros (vide TED talk: “When ideas have sex” [RIDLEY, 2010]). Em um processo criativo saudável, não se sabe de quem foi a ideia. Rodrigo de Toledo A verdade é que é natural o escopo mudar. São di- versos os motivos: • o cenário do mercado muda; • a concorrência avança; • o nosso entendimento refina; e • as métricas do produto apontam novas direções. Portanto, é desejado que o escopo mude! Muitas empresas têm um termômetro medindo se um projeto muda de escopo. Esse termômetro é importante, mas estávamos medindo na direção errada. Devemos conti- nuar usando esse termômetro sim, mas para dispararum alarme toda vez em que haja um projeto em que o escopo não está mudando. “Toca o alarme aí porque esse pro- jeto não está mudando o escopo”. Se o escopo não está 9 mudando, isso é sinal de que ou não estamos entregando com frequência, ou não estamos mostrando para as pes- soas certas ou não há mais valor no que está sendo feito. O normal é mudar como veremos no Capítulo 7, Foco no problema e não na solução. Figura 1.3: Astrônomo Nadamuda é aquela mentira em que a pessoa consegue prever com exatidão um ce- nário futuro. Sendo assim, ele tem certeza de que nada mudará nos próximos meses ou anos antes da entrega do produto. O personagem Astrônomo Nadamuda (Figura 1.3) é aquele que está se iludindo sobre o futuro. Ele usa a situação atual como justificativa do que será feito, mas 10 que só estará pronto depois de um ano, como se o cenário não fosse mudar nesse meio tempo. Acreditar nisso, ou similarmente, acreditar que somos capazes de prever o futuro, é a mentira representada por esse personagem. Segundo o Standish group, mesmo os projetos que en- tregaram com sucesso o escopo definido no início, apenas 20% das funcionalidades são efetivamente usadas (e quase 50% rarissimamente usadas) [STANDISH GROUP, 2014]. Parte desse grande número de inutilidades é decorrente da forma como levantamos os requisitos de grandes pro- jetos. Quando uma área cliente finalmente tem um pro- jeto aprovado, ele sente como uma oportunidade para fazer demanda. É claro que isso o induz a pedir itens de utilidade duvidosa, pois ele quer aproveitar ao máximo a janela de oportunidade. Falaremos sobre a solução de problemas decorrentes desta mentira no Capítulo 6, Es- copo flexível. Finalmente, a última mentira desse primeiro andar. O processo atual de grandes empresas para aprovação ou reprovação de projetos, criou um modelo de filas, onde os clientes internos ficam esperando a sua vez. Isso leva a um entendimento de que quando finalmente o seu projeto está em discussão, há a tal janela de oportunidade. Se perder essa janela, nem sabemos mais quando haverá ou- tra. Ou seja, é o momento para se pedir tudo, até mesmo aquilo que não sabemos se será necessário. 11 Nesse ponto entra a princesa Jaquê (Figura 1.4). “Já que estamos fazendo isso, vamos aproveitar e fazer mais aquilo e aquilo outro”. Quando alguém pergunta se a lista de requisitos está completa, antes mesmo que o Rei Jassei responda a princesa entra: “Papai, já que estamos pedindo essas coisas, que tal mais esses penduricalhos”. Com isso, vamos aumentando a quantidade de itens inú- teis dentro do projeto. Conversaremos sobre possíveis soluções para esse problema no Capítulo ??, ??. A base mentirosa desse primeiro andar já deveria ser o suficiente para interromper qualquer etapa posterior. Mas a enganação continua com novos andares mentirosos que veremos a seguir. 12 Figura 1.4: A Princesa Jaquê aproveita uma janela de oportunidade. Uma vez que ela ganhou a chance do projeto ser executado, ela pede um monte de coisas antes que a janela se feche. Muitas das coisas são irrelevantes, mas já que ganhei a oportunidade, é melhor pedir. 13 Capítulo 2 2o andar de mentiras: Estimativas de prazo e custo Uma vez que já listamos “todo” escopo (mentiras do 1o andar), agora é a hora de estimar o prazo e custo do projeto. Esse andar de mentira é muito doloroso por envolver várias horas do time técnico. Para fazer uma estimativa de prazo, temos que saber o esforço de cada etapa técnica. O esforço envolve o detalhamento técnico, especificações e a interpretação do que foi definido no levantamento de requisitos, a base do castelo de mentiras descrita no Capítulo 1. A pressão pela estimativa muitas vezes vem do ne- gócio. Afinal, precisamos da estimativa para saber se o custo caberá no orçamento da nossa carteira do ano que vem. Porém o primeiro personagem mentiroso deste andar está do lado técnico: o Mago Analista. Para sermos capazes de estimar, primeiro precisamos ter uma noção exata do que deve ser feito. A partir do es- copo (com todas as mentiras do 1o andar) podemos fazer uma análise técnica da execução. Surgem então artefa- tos mentirosos: projeto lógico, Work Breakdown Struc- ture (WBS), mapa de entidades e relacionamentos etc. Há linguagens e símbolos desenvolvidos para que seja- mos capazes de fazer toda essa especificação em forma de texto e diagramas. Figura 2.1: No segundo andar de mentira, o momento das estimativas de prazo e custo, moram três personagens: Arquiteto Medetudo, Mago Analista e o Prometeus. 15 Figura 2.2: O Mago Analista garante que é capaz de fazer uma profunda análise em todo o trabalho antes de consultar as pessoas que desenvolverão o projeto. Através de uma série de modelos ele desenha um mundo perfeito, porém irreal. O Mago Analista (Figura 2.2) representa múltiplos papéis da vida real: analista de sistemas, analista de requisitos, analista de processos, analista de estratégia, analista de negócios, etc. Quando posteriormente o de- senvolvimento do projeto começa, essas diversas docu- mentações produzidas se demonstram erradas, incomple- tas ou irreais. É muito comum também uma total se- gregação entre quem faz a análise e quem executa, nor- 16 malmente acentuada por um distanciamento no tempo. O time acaba por ter um enorme esforço de interpreta- ção desses artefatos sem a ajuda de quem os criou. No Capítulo ??, ??, abordaremos algumas soluções para evi- tarmos esse problema. É errado utilizar ferramentas como WBS, BPMN, UML, etc.? Na verdade, o problema está na forma como as utilizamos. O mundo real é complexo e até mesmo caótico, por isso que não conseguimos “encaixotá-lo” em documentos e diagramas. Essas ferramentas são úteis quando usadas de apoio ao diálogo e à troca de conheci- mento para que a compreensão seja muito mais eficaz. As ferramentas são boas, mas não podemos ser subordinados a elas. O ser humano tem que ser soberano às ferramentas. Rodrigo de Toledo Uma vez que se tem o detalhamento do trabalho, fi- nalmente pode-se estimar. Entra então outro persona- gem: o Arquiteto Medetudo (Figura 2.3)! Munido de fer- ramentas inapropriadas (pontos de função, homem-hora, homem-dia, etc.) o arquiteto então irá medir o custo e prazo do projeto. Mas estamos falando de um trabalho criativo. Trabalho criativo é não linear, não pode ser 17 medido em horas. Figura 2.3: Arquiteto Medetudo, acha que é capaz de medir uma obra de arte com centímetros e um trabalho intelectual criativo com homem-horas. O trabalhador do conhecimento é diferente do tra- balhador repetitivo ou braçal [TOLEDO, 2018]. É fácil estimar o tempo que levará um pintor de parede para executar o seu trabalho pela própria linearidade da sua execução. Se em duas horas ele pintou metade da parede, em quatro horas se espera que o trabalho esteja inteira- mente realizado. Já um pintor de um quadro artístico se torna muito mais imprevisível. O mesmo acontece com o trabalhador do conhecimento: programadores, designers, 18 redatores etc. Uma previsão nesses casos só é honesta se for uma faixa no tempo com distribuição de proba- bilidade. Ex.: 20% de chance de estar pronto em 100 dias, 60% em 115 dias, 95% em 130 dias, etc. No Capí- tulo 11, Produtos mais que projetos, trataremos sobre a nova visão que temos que ter sobre o resultado do nosso trabalho. O arquiteto Medetudo finalmente pode ter a estima- tiva de prazo e, portanto, custo. Sustentado por mais um outro conjunto de artefatos enganadores: Gantt charts, gráficos de dependências, etc. Quando finalmente estamos prontos para reportar ao negócio as nossas estimativas, entra o último personagem deste andar: o Prometeus. Prometeus é um personagem já experiente, que so- freu diversas vezes a pressão por ter estimado e não con- seguido cumprir. Ele tem medo de estar numa situação dessas novamente. Digamos que depois de todo esse deta- lhamento e estimativas, chegamos a um prazo de 8 meses para o desenvolvimento. Prometeus irá então dizer 12 meses. Tal como na Figura 2.4 que, com o receiode ser in- suficiente, inclui uma espadinha a mais além da espada principal, O Prometeus precisa incluir uma gordurinha. 19 Figura 2.4: Já o Prometeus não é pego de surpresa. Se o time ou o analista disse que o projeto será entregue em 8 meses, ele insere uma “gordurinha” no prazo e promete para 12 meses. Vai que algo dá errado? O conceito de gordurinha, é para que haja espaço para queimar mais tarde. Esse termo “gordurinha” é tipica- mente brasileiro, em português lusitano, o termo é mais honesto: “fator de cagaço”. O 2o andar é muito desgastante. O time é obrigado a parar sua atividade produtiva para fazer estimativa, muitas vezes por semanas. A moral do time é abalada! Alguns se sentem enganados por antecipação porque sa- 20 bem que o escopo irá mudar. Outros sabem que estão enganando, pois terão que dar prazos sobre um trabalho criativo, como se ele fosse linear, igual ao de um trabalho braçal. Há ainda aqueles que propositadamente incluem uma “gordurinha” para não serem cobrados com muito aperto. Muitas vezes o time que executará nem é o time que faz a previsão. Como eles podem se comprometer com um prazo que não foi dado por eles? Transparência (Capítulo 5) é fundamental. Resultado deste andar: improdutividade; cálculo de prazo (e custo) irreal; produção de artefatos inúteis; e mais um time desmoralizado que já antevê as consequên- cias ruins. Mas ainda não acabou, pois restam mais dois andares de mentiras. 21 Capítulo 3 3o andar de mentiras: Estimativa de valor Este andar de mentiras é inerente ao modelo de gestão tradicional de portfólio. Como veremos, a mentira que mora aqui é fácil de ser criada, seu resultado é extrema- mente danoso. A gestão tradicional de portfólio, normalmente segue um rito de escolha sazonal dos projetos para o próximo período fiscal. Dependendo da organização a sazonali- dade pode ser diferente (ex.: trimestral, anual ou até tri- enal). Para a tomada de decisão, cada projeto tem que ter seu escopo fechado (1o andar de mentira, Capítulo 1) e sua estimativa de prazo/custo (2o andar de mentira, Capítulo 2). Mas isso não basta, pois para a decisão se um projeto entra ou não vai depender do ROI desse pro- jeto. O ROI (Return On Investiment, Retorno sobre o Investimento) estimado para um projeto é uma equação simples: ROIestimado = R I = Retornoestimado Custoestimado (3.1) A Equação 3.1 é uma aproximação do cálculo de ROI, pois o dividendo deveria ser lucro, mas isso é irrelevante para o contexto aqui [PHILLIPS, 2012]. Como mostraremos na segunda parte do livro, o cál- culo de ROI nem é a ferramenta adequada para essa to- mada de decisão. Preferimos usar o CoD (Cost of Delay - Custo de Retardo), que calcula o custo ao retardar uma entrega (veja Capítulo ??). Decidir retardar o início de um projeto é particularmente importante porque come- çar todos ao mesmo tempo é ineficiente (veja Lei de Little no Capítulo 9). Numa discussão de portfólio, há uma grande quanti- dade de projetos de diversas áreas que disputam entre si para serem os escolhidos. É natural que haja muita po- lítica envolvida e, nessa briga, muitas vezes o vencedor é “quem grita mais alto”. Para evitar decisões subjetivas, 23 Figura 3.1: No terceiro andar de mentira, há apenas um morador: o Masvalia. Ele fará de tudo para que o pro- jeto entre no portfólio do próximo ano. Para isso, se necessário, ele “estimará” um retorno absurdo do pro- jeto dele, mesmo que seja algo totalmente irreal. É uma mentira fácil de fazer, porém com um impacto terrível. o ROI (Equação 3.1) deveria ser uma ferramenta de de- cisão racional. Porém, é claro que um bom Retorno (R) favorece a decisão a favor de um projeto e por isso vemos uma inflação dessa variável. Colocar um zero a mais nela não é tão custoso, e aumenta dez vezes a chance de ser um projeto escolhido para entrar na próxima carteira de projetos em andamento. 24 Demos o nome de Masvalia (Figura 3.1) para o único morador deste andar. Muitas vezes ele é o cara de negócio que estava esperando na fila de projetos há um tempo. Ele não quer perder essa oportunidade, nem que para isso tenha que colocar alguns zeros a mais. “Retorno de 10 milhões não é suficiente para entrar no portfólio? Então vamos dizer que o Retorno esperado é de 10 bilhões!” Como há pouco embasamento de dados para a es- timativa de valor, essa mentira é de baixo custo, pois não requer muito esforço. Porém, ela pode se tornar a maior das mentiras. Nas empresas que prestamos con- sultoria, ouvimos relatos de projetos cujo valor esperado era da ordem de muitos milhões. Todavia, quando dis- ponibilizados, não houve nenhum interesse por parte do consumidor final. Há ainda outro fator importante dessa mentira: O Masvalia normalmente não é cobrado por esse resultado negativo, muitas vezes as pessoas nem lembram mais quem era ele. Comentaremos sobre soluções para o Mas- valia no Capítulo 13, Redistribuição orçamentária. 25 Capítulo 4 4o andar de mentiras: Acompanhamento de projetos Numa sequência de mentiras sobrepostas, a última é a que será menos crível. Tal como num prédio feito de gelatina, o último andar é completamente instável. No modelo projetizado das empresas, a cobrança de acompanhamento do estado do projeto é a ferramenta usada para medição de avanço. Mais do que isso, o alto nível hierárquico usa essa métrica como instrumento de pressão e de cobrança. Soma-se a isso o fato de que o número total de projetos é muito maior do que deveria Figura 4.1: No último andar, o ápice da enganação, mo- ram duas mentiras: o Equilibrista (com seu comitê real) e o Verde Melancia. ser (vide Little’s Law na Seção 9.2). Com o intuito de acelerar o julgamento dos diversos projetos (há empresas com centenas de iniciativas sendo executadas em para- lelo) um mecanismo de sinalização baseado em cores é usado. Verde significa que o projeto está dentro do prazo, Amarelo ligeiramente fora do prazo, e Vermelho bem fora do prazo. A primeira mentira a ser mencionada deste andar é justamente o fato de acompanharmos prazo ao invés de resultado. Como veremos na Seção 10.2, Está na hora de acompanhar a eficácia, ter os resultados alcançados (eficácia) é muito mais relevante que terminar no prazo (eficiência). A reunião de acompanhamento é muitas ve- zes onde estão os maiores salários de uma organização. 27 Figura 4.2: O Equilibrista com as cores verde, ama- relo e vermelho quer mostrar o andamento dos projetos para o Comitê real, discutindo a mentira da mentira da mentira. Já vimos reuniões semanais com quatro Vice-Presidentes de um grande banco de varejo - imaginando o custo do minuto deste “comitê real” (Figura 4.2). Eles deveriam usar esse momento para discutir assuntos extremamente mais relevantes como: aumento da carteira, diminuição de taxa de abandono, aumento da margem ou qualquer outro assunto ligado a resultados de negócio. Mas não é isso que acontece, as pessoas acabam por discutir o que está ou não dentro do cronograma esperado. O equili- 28 brista, também presente na Figura 4.2 (muitas vezes o Project Management Office - PMO da empresa) passa a fazer malabarismo para mostrar esses avanços de crono- grama. Como há uma alta cobrança para que os projetos es- tejam no prazo, os relatórios são orientados para que de fato eles fiquem verdes. Os responsáveis pelos projetos não querem que o seu fique vermelho ou amarelo, senão receberão cobrança diretamente do comitê real. Devida à pressão, as pessoas manipulam os números para que seus projetos pareçam verdes sob os olhos do alto esca- lão. Surge então o chamado verde melancia 4.3, projetos que parecem verdes por fora, mas estão vermelhos por dentro. Durante todo a vida útil do projeto, o percentual cresce proporcional ao tempo que se passou (ex.: me- tade do tempo, então 50% de andamento), mas quando se aproximam do prazo, ficam em 99% e se arrastam nesse estado, atrasando a entrega. Nessa etapa de acompanhamento da carteira de pro- jetos, o acúmulo de mentiras é tão grande e tóxico que o problema não é encarado frontalmente.Os personagens dessa história preferem omitir a realidade trágica e as- sumem que a única coisa a fazer é a pressão pelo prazo para que acabe de vez o sofrimento. 29 Figura 4.3: A mentiraVerde Melancia acontece porque mesmo que o projeto esteja no vermelho, ele é apresen- tado com uma casca de verde, afinal, todos querem fugir da pressão de estar fora do prazo. 30 Parte II Limpando o castelo Limpando o castelo Não existe uma alternativa única ao castelo. Existem diversos princípios e práticas recomendadas para fugir desse ciclo vicioso de mentiras. Nos próximos nove capí- tulos, apresentamos algumas dessas recomendações, numa possível ordem cronológica. Porém, não é uma receita de bolo. Vários desses itens podem ser aplicados isolada- mente ou mesmo em uma ordem que melhor resolva os problemas do seu time ou empresa. Nesta parte trataremos sobre as melhorias na gestão de projetos. Os três capítulos de Limpando o castelo abordam mudanças evolucionárias e podem ser adotadas pelos times sem grande necessidade de interferência de gestores ou diretores. Segue uma explicação breve sobre os três capítulos desta segunda parte: • Capítulo 5, Transparência e Agilidade: obvi- amente, para eliminar as mentiras, precisamos ter mais transparência. Para isso, usamos os princípios dos métodos ágeis para tornar visível a realidade. • Capítulo 6, Escopo flexível: para derrubar o castelo tem que se começar limpando a base, ou seja, se opondo ao escopo fixo. Nesse capítulo, des- crevemos diferentes níveis de flexibilização e dife- rentes formas de responder à pergunta: “Quando fica pronto?”. • Capítulo 7, Foco no problema e não na so- lução: uma das enganações que está por trás das mentiras no castelo é a crença em que a solução desenhada é o objetivo; até o ponto que as pessoas nem lembrarem mais qual era o problema a ser re- solvido. 33 Capítulo 5 Transparência e Agilidade Dizemos que os métodos ágeis não resolvem os proble- mas, mas os expõe. As pessoas é que resolvem os proble- mas! Essa é uma forte mudança de paradigma cultural em empresas tradicionais. Emmuitas empresas, é comum o comportamento de esconder o problema. O castelo de mentiras existe porque há uma “vista grossa” para não expor a realidade. Isso é uma consequência forte do mo- delo de hierarquias e promoções. Ninguém quer ser o por- tador da notícia ruim para não levar uma bronca do chefe que diminua a chance de uma promoção. Surge então o comportamento de camuflar ou minimizar os problemas, por exemplo, a mentira Verde Melancia do Capítulo 4 e o Prometeus no Capítulo 2. Cuidado para não culpar especificamente alguém por esse comportamento, pois o problema está muito mais no sistema do que nas pessoas envolvidas nas mentiras [MEADOWS; WRIGHT, 2008]. O Scrum não resolve seus problemas. O Scrum mostra seus problemas. Você é quem deve corrigi-los. Ron Jeffries Precisamos criar uma cultura onde a exposição de um problema não pode ser algo temido. Se há uma cultura de busca pelo culpado, a consequência é levar as pessoas a não experimentarem mais nada, inclusive nos seus pro- cessos de trabalho. Ou seja, zero inovação e zero melhoria contínua. Muitas vezes, a causa raiz está em uma men- talidade de desconfiança máxima: “sem chefe ninguém trabalha direito”. Como reverter esse cenário de descon- fiança? Transparência e ciclos curtos de aprendizado são a chave para reverter esse cenário. Como reconstruir confiança? Ciclos curtos e transparência. Rodrigo de Toledo 35 5.1 Ciclos curtos Quando o time inicia o projeto e só volta a apresentar os resultados após um ano de trabalho, é provável que esteja de frente para uma catástrofe. Primeiro porque o cliente acumulou um ano de expectativa sobre um produto ou serviço, segundo porque o esforço do time provavelmente foi direcionado em um sentido errado feito em uma visão que está desatualizada há um ano. Pouca iteração acaba tornando qualquer interpretação excessivamente ambígua [PUTNAM; SORENSON, 1981]. Ciclos curtos em que a evolução do trabalho seja apre- sentada no formato de resultados concretos são funda- mentais para evitar esse cenário. Imagine agora que ao invés de fazer uma entrega ao ano, o time passe a fazer uma entrega por mês. Em um ano esse time terá 12 chan- ces de apresentar resultados e corrigir rumos. Agora, se o time fizer entregas semanais, teremos 52 chances para tal. Temos que ter uma mentalidade onde o erro tem que ser visto como oportunidade de aprendizado. Temos que nos permitir pequenos erros e criar um ambiente de rá- pido aprendizado a partir do erro. Por isso usamos a frase: “falhar rápido e aprender mais rápido ainda!” (“Fail fast, learn faster !” [BURNISON, 2011]). Em um mundo de constantes mudanças, a capacidade de reação ao im- 36 previsto é muito mais importante que a soberba de querer acertar de primeira. Figura 5.1: Falhe rápido e aprenda mais rápido ainda. Além da mudança cultural, é importante trazer uma mudança organizacional, na forma como trabalhamos. Queremos ter entregas frequentes! Estamos falando de entregas ponta-a-ponta, não de entregas parciais, ou seja, entregas de valor para o cliente final. Tradicionalmente, só é possível ver valor sendo entregue quando termina o prazo de entrega (às vezes só depois devido aos atra- sos). Queremos ver os times entregando valor com alta frequência. Há uma analogia muito interessante descrita por OHNO [1988]. A frequência de entrega é equivalente à altura da 37 lâmina d’água em um lago. Os problemas são as imper- feições no fundo do lago. Quanto maior a lâmina d’água, menos vamos enxergar os problemas. Porém, quanto me- nor for a lâmina d’água, mais as pedras do fundo do lago vão aparecer. Assim acontece quando reduzimos o ciclo de entrega. Quanto menor o ciclo (ou maior frequência), mais os problemas irão aparecer. Essa transparência é o primeiro passo da melhoria contínua. Ou seja, temos que alterar os nossos processos para ter a maior frequência possível de entregas. Levar um ano para entregar algo de valor é muito para os dias de hoje. Queremos ciclos menores, três meses, um mês, a cada duas semanas, semanalmente... Quanto menor o ciclo, melhor. Até chegarmos num modelo de “Entrega Contí- nua (continuous delivery [HUMBLE; FARLEY, 2010])”. É claro que a redução do ciclo é mais fácil ou difícil de- pendendo do domínio de atuação da organização. No mundo digital, a continuidade é mais natural, mas tam- bém é possível no mundo físico. 5.2 Agilidade fora do digital? Se estivermos falando de uma obra civil, certamente é mais difícil ser ágil. Já em produtos digitais, a tendên- cia é ser muito mais fácil pela natureza do conteúdo. No primeiro caso, estamos falando de tijolos, no segundo es- 38 tamos tratando de bits, 0 ou 1. Mesmo em obra civil, há cenários onde pode haver entregas de valor durante a construção. Por exemplo, ao construir um condomí- nio, entregar casa a casa é melhor do que por etapas de construção (todo o terreno, todas as paredes, por último todos os telhados); ou entregar uma estrada quilômetro a quilômetro pronto, ao invés de toda a terraplanagem, depois toda a brita, depois asfalto e depois a tinta de tudo. A expansão da adoção de métodos ágeis em diferen- tes indústrias se dá por dois motivos, como dois vetores que se encontram. Cada vez mais nos desafiamos a ex- pandir a Agilidade. Numa primeira onda, nos anos 90, os métodos ágeis começaram apenas em TI. A segunda onda, veio como consequência do sucesso: a TI deixa de ser o patinho feio, aquela área que é cara, demorada e que quando entrega não era o que se esperava. Como a TI começa a entregar valor desde o início, corrigindo rumos etc., outras áreas dentro das empresas passam a querer fazer igual. Finalmente, numa terceira onda mais recente, as empresas passam a querer adotar métodos ágeis, independentemente da TI. Indústria de cosméti- cos, educação, fabricantes de hardware etc., querem que suas equipes trabalhem de forma ágil. Além disso, há uma outra mudança, a transforma- ção digital. Cada vez maisindústrias tão tradicionais no 39 mundo físico, começam a rever o entendimento do seu business. Muitas dessas indústrias entendem que ou elas se tornam digitais, ou elas tenderão a desaparecer. Esses dois vetores se encontrando fazem com que a demanda por agilidade cresça. Há, portanto, um ciclo de crescimento, dado a maior variedade de cases, mais nos desafiamos a expandir a agilidade e assim sucessivamente. Vamos tratar mais desse assunto no Capítulo ??, ??. Figura 5.2: A fronteira até onde vai a agilidade conti- nua se expandindo por causa desses dois vetores. Cada vez mais temos desafiado áreas longe do digital a usa- rem métodos ágeis (RH, Financeiro, Auditoria, Jurídico etc.). Ao mesmo tempo, cada vez mais há negócios mi- grando do mundo físico para o mundo digital, a chamada transformação digital. 40 5.3 Transparência para geração de melhoria Claro que a transparência inclui expor também outras coisas além dos problemas: propósito de negócio claro, acordos internos de times, métricas etc. Também es- tamos falando em parar de mentir, a final de contas, o propósito deste livro é derrubar o castelo de menti- ras. Porém, o que estamos reforçando é que a verdadeira transparência acontece quando colocamos o bode na sala (Figura 5.3). Por isso, que todos os métodos ágeis estão calcados na ideia de melhoria contínua. Os dois principais pontos dos métodos ágeis são: ciclos curtos e melhoria contínua. Rodrigo de Toledo (O terceiro ponto é foco no valor, mas se estivermos fazendo os dois primeiros, então o foco no valor virá na- turalmente.) A prática mais popular para realizarmos a melhoria contínua é a reunião de retrospectiva. Ela deve acontecer em ciclos curtos e regulares. Não deve ser muito longa e termina quando chegamos a uma ação concreta para 41 Figura 5.3: “Bote o bode na sala!” É uma expressão usada para dizer que não devemos esconder o problema, mas colocá-lo bem exposto, para que ao incomodar nos force a falar sobre ele. Tal como se colocássemos um bode na nossa sala de jantar, inevitavelmente o espaço, aparência e odor nos fariam ter que falar sobre o bode! a melhoria do trabalho do time. Essa ação deverá ser experimentada no próximo ciclo enquanto métricas são coletadas para validar a eficácia da ação. Se for aprovada, a ação passa a fazer parte do trabalho do time enquanto for necessária. 42 Como ser transparente? Uma vez expostos os problemas, quem irá resolvê-los? As pessoas! Somos nós que temos que resolver num modelo de experimentações curtas. Podemos aproveitar o mesmo ciclo curto de entrega para fazer a validação de melhorias. Isso é chamado de melhoria contínua! Quadros físicos na parede são uma boa forma de dar transparência aos problemas. Quando mapeamos nosso fluxo de valor e representamos os itens que proporcio- nam agregação de valor nele, temos uma visão real do estado em que cada coisa se encontra como apresentado na Figura 5.4. A característica fundamental da transparência é não ter medo de apresentar erros e problemas que o time ou empresa enfrenta. Essas coisas são normais e na maio- ria das vezes inevitáveis. Se os ciclos curtos estão sendo realizados e há consciência que a melhoria contínua deve ser aplicada, eles representarão grandes oportunidades de aprendizado. Esconder problemas hoje é criar uma briga futura. Avelino F. Gomes Filho 43 Figura 5.4: Quadro físico mapeando o fluxo de valor de um time. 44 Capítulo 6 Escopo flexível Para fugir das mentiras do Rei Jassei e do Astrônomo Nadamuda, temos que abraçar a incerteza. A verdade é que o cliente não sabe o que quer enquanto não começa a usar [HUMPHREY, 1995]. Então a única coisa honesta a fazer é não fechar o escopo completo no início. O uso define o produto! Rafael Sabbagh Flexibilizar o escopo não é trivial, afinal, como saber quando termina? Talvez até essa pergunta devesse ser reformulada, pois o que mais vemos hoje são produtos de sucesso que não terminam, são continuamente atua- Figura 6.1: O uso define o produto. lizados (vide Capítulo 11, Produtos mais que projetos). Normalmente se um produto digital não está sendo atu- alizado, provavelmente é porque não deu certo. Para poder falar de flexibilização, primeiro vamos en- tender as três variáveis pré-fixadas do mundo tradicional: escopo, prazo e custo. 6.1 O Triângulo de Ferro Em gerenciamento tradicional, a analogia do triângulo é usada para representar as três variáveis básicas de um projeto: escopo, prazo e custo. O ferro simboliza a ri- gidez, pois essas variáveis só podem ser modificadas du- rante a concepção inicial, pois uma vez estabelecidas elas 46 estão rigidamente fixadas. Na prática, esse triângulo está na base do castelo de mentiras, onde o primeiro passo é o escopo (1o andar), para depois estimarmos o prazo e o custo (2o andar), sabendo que muitas vezes o custo é um resultado quase direto do prazo. Ou seja, o escopo é dado e então o prazo e custo são estimados (vide triângulo na Figura 6.2). Figura 6.2: Triângulo de Ferro Tradicional: Escopo, prazo e custo fixados. A compreensão de que isso é uma mentira, dado tudo o que vimos nos primeiros capítulos, leva ao questiona- mento natural: – Se permitimos escopo flexível, como calcular o prazo e o custo? Na verdade, existe uma gradação de diferentes formas de flexibilizar o escopo. Vamos ver alguns desses passos, começando por um degrau intermediário entre o escopo 47 fixo e a flexibilidade máxima: a inversão do triângulo de ferro. A inversão do triângulo de ferro Existe um segredo por trás da fatídica pergunta: “Quando fica pronto?”. O segredo é que é muito comum prazo e verba já estarem pré-estabelecidos antes mesmo de esti- mar, porém, não de forma explícita no início. Muitas vezes o time técnico calcula um prazo (por exemplo, 8 meses) e quando o apresenta, ouve do lado do negócio que o prazo tem que ser menor (por exemplo, 6 meses). Ou seja, a restrição já estava lá, só não estava explícita! Isso acontece porque o cliente já tem uma ideia de prazo, provavelmente atrelada a alguma oportunidade de negócio. Mesma coisa acontece com o custo, pois diversas vezes há um orçamento definido para gastar. No governo, por exemplo, esse orçamento costuma ser aprovado no ano anterior, antes mesmo da definição exata do escopo. Neste ponto aqui, estamos propondo uma inversão do triângulo: dado um prazo e um custo, o escopo é estimado. Ao inverter o Triângulo de Ferro, fixamos as principais restrições no início, podendo até estimular o descarte de escopo desnecessário antes de começarmos a construir os primeiros andares do Castelo de Mentiras. 48 Figura 6.3: Triângulo de Ferro Invertido O triângulo invertido pode ser visto como uma opção para contratos (tanto entre empresas quanto acordos in- ternos). Ao invés de partir de um escopo para estimar prazo e custo, podemos fazer a lógica invertida. Dado um prazo e um custo já fixados, qual será o escopo? Mesmo que isso não nos leve a um escopo continuamente flexível, já é um excelente começo. Mas atenção, existem modelos de contrato mais inteligentes que esse, como venda por empreitada ou Money for Nothing and Your Change for Free (vamos ver mais a frente). 49 6.2 Planejamento contínuo O primeiro andar do castelo de mentiras só será desfeito se as empresas abraçarem a flexibilidade do escopo. A motivação primária está no fato de que não sabemos pre- ver todas as necessidades ao longo do caminho. Além disso, o mundo muda, os concorrentes se mexem, as leis se alteram, a tecnologia avança, etc. Queremos evitar a mentira do Astrônomo Nadamuda. Especificar tudo no início é um contrassenso, num mundo onde a complexi- dade e a volatilidade são cada vez mais latentes. Isso é o chamado mundo VUCA: Volatility, Uncertainty, Com- plexity, and Ambiguity (volátil, incerto, complexo e am- bíguo) [BENNETT; LEMOINE, 2014]. Analogia do horizonte Vamos explicar aqui a analogia do horizonte criada por Rafael Sabbagh [SABBAGH, 2014]. Observe a Figura 6.4, imagine que você é aquele gestor que está olhando para arua na cidade de São Francisco. Se alguém pedir para você descrever tudo o que você está vendo no pri- meiro quarteirão, é possível dar bastante detalhes. Por exemplo: quantos andares em cada prédio; quantas ja- nelas por andar; se há uma escada na frente; quantos degraus; se houver um carro, pode-se descrever cor, mo- delo e até placa. Mas se te pedirem para descrever do 2o ao 4o quarteirão sem sair daquela posição? Ainda é pos- 50 Figura 6.4: Analogia do horizonte. Nível de detalha- mento é menor quanto mais longe no tempo. sível dar detalhes: total de andares dos prédios, mas não quantas janelas por andar; se há uma escada na frente, mas não o total de degraus; cor e modelo de carros, mas talvez não suas placas. Um pouco mais distante, do 5o ao 10o quarteirão? Talvez ainda você ainda possa dizer altura dos prédios, mas não será mais possível dizer se há escadas na frente; talvez possamos dizer cor de carro, mas não modelo ou placa. Finalmente, se te pedirem para descrever o que está lá no final da rua? A resposta será algo como: “mais prédio pra cá e mais carro pra lá” e nada mais além disso. 51 Mas se você insistir em dar todos os detalhes da rua do início ao fim (sem sair daquela posição), das três, pelo menos uma: • ou você está se enganando; • ou você está sendo enganado; • ou você está enganando alguém; porque não dá para descrever a rua inteira no mesmo nível de detalhe do primeiro quarteirão! Qual é a analogia aqui? A rua representa a linha do tempo do seu projeto, não dá para planejar tudo no mesmo nível de detalhe. Se você tentar descrever o es- copo e o plano de trabalho no mesmo nível de detalhe do início ao fim, das três, pelo menos uma: • ou você está se enganando; • ou você está sendo enganado; • ou você está enganando alguém. Ou seja, aquilo que vamos fazer no nosso projeto ou iniciativa daqui a mais de 6 meses, descrevemos apenas superficialmente; o que faremos daqui a 3 meses, um pouco mais detalhe; o que vamos fazer daqui a um mês, mais detalhe ainda; e o que vamos fazer nos próximos dias, aí vamos até o detalhe técnico. À medida que o tempo vai passando, é como se na Figura 6.4 tirásse- mos a mão do bolso e começássemos a andar pela rua 52 de São Francisco. Em algum momento, aquilo que es- tava descrito superficialmente poderá ter mais detalhes; aquilo que estava com detalhamento intermediário, po- derá ser melhor descrito; até finalmente selecionarmos as próximas coisas a serem feitas para então detalharmos tecnicamente. O detalhamento de um planejamento deve ser inversamente proporcional à distância no tempo. Rodrigo de Toledo Ao fazer um planejamento minucioso de todos os itens no início do projeto criamos um grande problema ligado à complexidade do excesso de detalhamento. As mudan- ças são difíceis e dolorosas, pois uma alteração mínima de uma tarefa técnica produzirá impacto exponencial no detalhe de diversos outros itens. Mesmo quando esses estão planejados para começar a construção para daqui há um ano. Entretanto, tente lembrar-se de quantas vezes você executou um planejamento de ponta a ponta sem fazer nenhuma alteração no escopo. Provavelmente a sua res- posta foi: zero! A natureza do escopo de um projeto é mutante, pois a cada passo que damos na construção, 53 aprendemos um pouco mais sobre ele. 6.3 Valor Contínuo Ao permitir a flexibilidade do escopo, combatemos direta- mente as mentiras do primeiro andar. Porém, nos livrar desses personagens mentirosos para sermos mais since- ros uns com os outros é apenas uma das vantagens. Há uma motivação enorme relativa ao valor do que estamos entregando. Seguem três impactos de valor: 1. A antecipação do valor a ser entregue. 2. É possível adaptar o escopo às mudanças externas, tais como mercado, concorrentes, alteração do per- fil do consumidor, etc; 3. Os aprendizados no caminho permitem descobrir mais sobre onde está o maior valor; A flexibilidade do que será feito, aliada aos ciclos cur- tos (Seção 5.1) permite entregas de valor desde o início. Se ainda combinarmos com uma boa priorização, pode- mos ter um impacto exponencial na curva de valor, vide Figura 6.5. Há outro fato importantíssimo quando assumimos que o escopo é mutável: os itens mais valiosos são os que emergem no meio do caminho. Observamos isso toda vez 54 Figura 6.5: Curva de entrega de valor. Quando há ciclos curtos, escopo flexível e priorização, a curva de valor é muito acentuada no início. que permitimos alterações na demanda. Com as entre- gas recebemos feedback, seja ele qualitativo ou quanti- tativo, conhecemos melhor os nossos clientes, necessida- des, expectativas, mercado e daí surgem itens capazes de produzir um resultado muito superior ao que havía- mos imaginado no início do projeto. Como na analogia do horizonte (Seção 6.2), há coisas que só conseguiremos ver quando caminhamos um pouco mais. Ao desconsi- derar os itens emergentes ou criar uma alta burocracia para incorporá-los, reduzimos significativamente o valor daquilo que poderíamos entregar. Muitas das vezes cum- 55 prindo um escopo falido e insignificante para nossos cli- entes. Podemos fazer uma analogia com o minerador de ouro, o qual está a procura de uma veia da pedra para que então explore essa veia. Isso é consequência do fato que a cada passo dado na construção de um produto, aprendemos mais sobre ele e podemos explorar onde há verdadeiro valor. Antigamente, pensávamos: Se o escopo está mudando, é sinal que temos problemas. Hoje, temos que pensar o oposto disso: Se o escopo está imutável, esse sim é um sinal de que há um grande problema. Em geral, isso é resultado de um desses problemas: ou não estarmos conseguindo entregar algo de fato ponta-a-ponta; ou não estamos coletando feedback com as pessoas corretas; ou o que fazemos se tornou irrelevante. Pois o esperado é que a demanda mude o tempo todo. Se o escopo não está mudando, disparem os alarmes! Tem alguma coisa errada! Rodrigo de Toledo Por esse motivo que o Manifesto Ágil [BECK et al., 2001] fala que as mudanças são bem-vindas. Não estão afirmando que as mudanças no escopo são aceitas. É 56 muito mais que isso, elas são bem-vindas, desejadas! Mas se o escopo é flexível, como podemos alinhar ex- pectativas das áreas demandantes? Existe mais de uma maneira de lidar com isso, a mais simples é a inversão do triângulo de ferro (Seção 6.1). Mas atenção, flexibilizar o escopo não significa especificar tudo detalhado e depois alterar, mas ao mesmo tempo, também não é para não especificar nada. É exatamente entre esses dois pontos, tal como na analogia do horizonte. A seguir, veremos que podem existir diferentes níveis de flexibilização. 57 6.4 Níveis de Flexibilização Diferentes modelos de contrato na definição do escopo. Estamos falando de contrato não apenas entre duas em- presas, mas pode ser entre área de negócio e a de execu- ção. Vimos um desses modelos na Seção 6.1. Existem diferentes níveis de flexibilização do escopo. Os níveis dependem do contexto, veja a tabela a seguir: Flexibilização Contexto ∅ só uma entrega de tudo no final escopo priorizável escopo/prazo/custo fixos, mas múltiplas entregas escopo negociável prazo/custo fixos, escopo alterável prazo antecipável prazo/custo dentro de um limite máximo por sprint (empreitada) prazo/custo controlados continuamente flexível negócio abraçando a incerteza Tabela 6.1: Níveis de flexibilização do escopo. 58 Figura 6.6: Níveis de Flexibilização 59 Parte III Derrubando o Castelo Derrubando o castelo Na parte anterior, Limpando o castelo, apresentamos so- luções mais diretas de serem adotadas pelos times e or- ganizações. As mudanças que colocamos ali podem ser praticadas imediatamente nos times sem a necessidade de participação da alta gestão. Agora, nesta parte do livro, vamos começar a derru- bar o castelo de mentiras. As soluções daqui envolvem vários níveis da hierarquia institucional e provavelmente exigem participação das lideranças da organização. São mudanças que iniciam a real transformaçãocultural tão desejada pelas empresas. Segue uma explicação breve sobre os três capítulos: • Capítulo 8, Lean startup e eliminação de ideias: como foi exposto na Introdução do livro, há uma infinidade de projetos e iniciativas que não deveriam nem existir, pois estão fadados a nunca serem úteis. Nesse capítulo trazemos técnicas de como se livrar de tais iniciativas. • Capítulo 9, Triplo L: Limitando o Trabalho Paralelo: os três conceitos desse capítulo (Lead Time, Lei de Little e Limitação de WIP) estão li- gados ao fluxo de trabalho e à teoria das filas. Criar um fluxo estável também faz parte da derrubada do castelo. • Capítulo 10, Acompanhamento por Resul- tado: esse capítulo, em especial, traz uma forma inovadora de acompanhamento dos projetos ou ini- ciativas. Ele faz parte da derrubada do quarto an- dar. É aqui que apresentamos uma forma de fazer acompanhamento baseado em resultados de eficá- cia. 75 Parte IV Evoluindo para Valor Contínuo Evoluindo para Valor Contínuo Segue uma explicação breve sobre alguns dos capítulos da última parte do nosso livro: • Capítulo 11, Produtos mais que projetos: em especial, consideramos este capítulo um divisor de águas nas empresas e passo importante para os ca- pítulos seguintes. A partir da década de 2020, cada vez menos falaremos de projetos e cada vez mais fa- laremos de produtos (e serviços). • Capítulo 12, Alocação de pessoas: Para au- mentar a colaboração, nesse capítulo trazemos for- mas alternativas de alocação de pessoas, bem di- ferentes do modelo projetizado tradicional, o qual induz a uma constante realocação, sem jamais for- mar times de alta performance. • Capítulo 13, Redistribuição orçamentária: tal- vez um dos capítulos mais ousados, nele propomos uma forma diferente de se fazer orçamento nas em- presas. Esse é o golpe final no castelo. 119 Bibliografia ALENCAR, D. Tanque de Decantação: um canvas como solução. 2018. Disponível em: https://knowledge21.com.br/blog/ canvas-tanque-de-decantacao. ANDERSON, D. Kanban: successful evolutionary change for your technology business. [S.l.]: Blue Hole Press, 2010. BECK, K. et al. Agile Manifesto. 2001. Disponível em: http://agilemanifesto.org. Acesso em: 13 fev. 2019. BENNETT, N.; LEMOINE, J. 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