Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
Cartografias dos estudos culturais uma versão latino-americana Ana Carolina D. Escosteguy O cenário contemporâneo, identificado como globalização, vem repor questões já clássicas nos estudos sociais, como a identi- dade cultural, ao mesmo tempo em que desafia os particularis- mos, a diversidade e a possibili- dade de convivência num mundo cada vezmais entrelaçado e, para- doxalmente, mais desigual. A am- bivalência que emerge dessa reali- dade exige dos estudiosos e pes- quisadores tanto a crítica dos tra- dicionais procedimentos de análi- se como a criação de novos instru- mentos de compreensão. É dentro desse pano de fundo que primei- ramente deve ser visto este livro de Ana Carolina D. Escosteguy. Dizendo de outro modo, ele é na- turalmente contemporâneo. Produto de uma tese de dou- torado realizada sobre fontes ori- ginais, esta obra traz uma discus- são teórica densa e esclarecedora sobre o encontro de duas tradi- ções intelectuais – a dos estudos culturais britânicos e a dos estu- dos culturais latino-americanos. A autora não só percorre a história dessas duas perspectivas, o que a faz deter nas suas especificidades e identidades, bem como se detém em seus vasos comunicantes. Mas, creio que a sua grande con- tribuição está no verdadeiro tra- balho de garimpagem bibliográfi- ca que possibilita uma síntese ex- plicativa raramente oferecida an- tes ao público brasileiro e que vai da origem do projeto dos estudos culturais britânicos ao seu proces- so de internacionalização. Essa é a cartografia que dá título ao livro www.autenticaeditora.com.br 0800 2831322 Estudos Culturais Este livro traça cartografias intelectu- ais significativas no desenvolvimento dos estudos culturais. Na Inglaterra, pólo de origem dessa perspectiva, a trajetória de Stuart Hall é explorada. Na América Lati- na, os itinerários de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini evidenciam a configuração dessa abordagem no espaço latino-americano. Esta leitura dos estudos culturais diz respeito a nós, latino-americanos, e a eterna discussão de nossas particularida- des em relação aos Outros. e por meio da qual são revelados traços inéditos da contribuição la- tino-americana aos estudos cultu- rais e de comunicação. Esta é a maneira encontrada pela autora para demonstrar que a atividade da ciência não é imune ao trabalho da história e, de forma original, nos traz o confronto entre o nós e o eles, o local e o internacional, marcas do cenário contemporâ- neo, para dentro dos atuais estu- dos da cultura e da comunicação. Maria Immacolata Vassallo de Lopes Ana Carolina D. Escosteguy é doutora em Ciências da Comunica- ção (USP, 2000), professora do Pro- grama de Pós-Graduação em Co- municação Social da Faculdade de Comunicação Social (FAMECOS) da Pontifícia Universidade Católi- ca do Rio Grande do Sul (PUCRS), além de pesquisadora do CNPq nas áreas de Estudos Culturais & Comunicação, Estudos de recepção e relações de gênero e Teorias da Comunicação. Cartografiasdosestudosculturais– u m a v e r s ª o latino-americana - A na C arolina D .Escosteguy Cartografias dos estudos culturais Uma versão latino-americana Ana Carolina D. Escosteguy Cartografias dos estudos culturais Uma versão latino-americana Edição on-line, ampliada Copyright © 2001 Ana Carolina D. Escosteguy COORDENADOR DA COLEÇÃO “ESTUDOS CULTURAIS” Tomaz Tadeu da Silva CAPA Jairo Alvarenga Fonseca (Mandala – Massa corrida sobre madeira) EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Waldênia Alvarenga Santos Ataíde REVISÃO Erick Ramalho AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA. Rua Aimorés, 981, 8º andar. Funcionários 30140-071. Belo Horizonte. MG Tel.: (55 31) 3222 6819 TELEVENDAS: 0800 283 13 22 www.autenticaeditora.com.br Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. Escosteguy, Ana Carolina D. Cartografias dos estudos culturais – Uma versão latino- americana/ Ana Carolina D. Escosteguy – ed. on-line – Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 240p. (Coleção Estudos Culturais, 8) ISBN 85-86583-97-9 1. Estudos Culturais. 2. Antropologia. 3. Cultura-América Latina. I. Título. II Série. CDU 316.75 008(8=6) D256e À Elisa, minha filha, que aos três meses iniciou esta jornada comigo. Agradeço à Maria Immacolata Vassalo Lopes, Francisco R. Rüdiger, Nilda Jacks, Eliana Pibernat Antonini, Dóris Fagundes Haussen, Maria Amélia Mascena, Cláudia Peixoto de Moura e José Eduardo Utzig, pelas variadas formas de colaboração, estímulo e afeto. Gostaria ainda de mencionar as observações de Silvia Helena Simões Borelli, Mauro Wilton de Sousa, Antônio Flávio Pierucci e Octavio Ianni que constituíram a banca que aprovou esta pesquisa como tese de doutoramento na Universidade de São Paulo, uma fonte valiosa de incentivo para revisar o texto original e publicar este livro. A pesquisa que deu origem a este livro recebeu apoio da CAPES (Bolsa de Doutoramento e Doutorado-sanduíche) e PUCRS (horas-pesquisa e auxílio às viagens). Sumário Prefácio à edição on-line................................................ Introdução......................................................................................... Estudos culturais: uma perspectiva histórica........................ Uma narrativa possível ou a versão britânica...................................... A construção de uma narrativa ou uma versão latino-americana...... De ideologia para hegemonia...................................................... Ideologia como dominação................................................................ O aporte gramsciano............................................................................ O popular como opção política................................................... Formas de engajamento intelectual..................................................... Identidades culturais: uma discussão em andamento Identidade como diáspora................................................................... Identidade como descentramento....................................................... Identidade como hibridismo............................................................... A título de conclusão..................................................................... Notas.................................................................................................... Bibliografia........................................................................................ Apêndice Depoimento de David Morley.......................................................... Depoimento de James Curran.......................................................... Depoimento de Nick Couldry............................................. 17 27 27 45 65 65 97 113 130 145 148 160 177 193 211 229 11 249 269 283 10 11 Cartografias dos estudos culturais – uma versão latino-america- na, em edição esgotada já há algum tempo, passa a estar disponí- vel, em acesso aberto, no formato eletrônico. Embora não fosse o foco central da obra, ela revela, através da explanação dos seus eixos teóricos – a questão da ideologia, da hegemonia, da proble- mática do popular e das identidades, que o corpo teórico-meto- dológico associado aos estudos culturais1, configurado a partir do final dos anos 50, na Inglaterra, passou por alguns desdobra- mentos. Portanto, das reflexões embrionárias de sua formação, em especial sustentadas por Richard Hoggart, Raymond Willia- ms e E. P. Thompson, à prática contemporânea dos estudos cul- turais da virada do século XX para XXI, época do lançamento do livro, observam-se alterações em relação a posições teóricas, me- todológicas e até mesmo políticas. Passados 10 anos do primeiro lançamento dessa obra, pode-se dizer que tais transformações se exacerbaram. É claro que esta não é uma característica exclusiva dos estudos culturais, ao contrário, estes sofrem o que Ianni2 (2003, p.331) já problematizou, identi- ficando que “o processo de globalização envolve uma ruptura de amplas proporções, abalando mais ou menos profundamente os quadros sociais e mentais de referência (...) trata[ndo-se] de uma ruptura simultaneamente histórica e epistemológica”. No que diz respeito aos estudos culturais, apenas algumas dessas mudanças foram mapeadas e circulam no meio acadêmico através de textos que tomam a própria tradição como objeto de análise3. Logo, hoje, para fazer juz ao título de Cartografias dos estu- dos culturais, os capítulos deveriam ser reformulados, acrescen- tando-se informações novas e atualizando aquelas defasadas. A produção intelectual e as discussões sobre os estudos culturais, no meio acadêmico nacional, latino-americano e anglo-america- no, cresceram num ritmo galopante no último decênio4. Fenôme- no reconhecido, por exemplo, por Roberto Follari5 (2003, p. 4): PREFÁCIO À EDIÇÃO ON-LINE 12 “o peso dos estudos culturais é tal na América Latina que se faz indispensável tomar seu desenvolvimento como objeto. Isto é, chegou o momento da consciência teórica sobre o fenônemo dos estudos culturais, fruto precisamente de seu forte desenvolvimen- to”. Nas nossas fronteiras, isso foi reforçado sobretudo pela cir- culação mais ágil de bibliografia em língua inglesa, mas também pela tradução de obras importantes6 e, claro, pela formação de pesquisadores que se vincularam a esse programa de pesquisa. De imediato, essa expansão exponencial de produção intelec- tual demandaria o acréscimo de capítulos, a reestruturação e ampli- ação do livro. Por um lado, os eixos-teóricos se desdobrariam em objetos de estudo, tais como a problemática da recepção, das cultu- ras juvenis, da cibercultura via contribuições do ciberfeminismo, da crítica feminista aos estudos de mídia, entre os mais prementes. De outro, as próprias trajetórias intelectuais exploradas – Stuart Hall, Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini – deveriam ser continuadas, dado que esses autores permanecem atuantes na cena intelectual. Também outros itinerários mereceriam ser incor- porados para dar conta de uma prática em circunstâncias distintas, como já mencionei, tanto no cenário latino-americano quanto an- glo-americano. Como resultado final teríamos uma nova obra. O que se pretende com esta edição não é isso. Creio que apesar do que foi dito, o conteúdo original do texto ainda tem uma função ao recapitular a matéria e preparar o leitor para acompanhar com alguma propriedade essa produção mais recente. Persistindo a finalidade didática de apresentar uma abordagem introdutória, publica-se novamente o texto sem mexer no seu conteúdo, alertando que este obrigatoriamente precisa ser lido no seu respectivo contexto, a entrada no século XXI. Nesse sentido, faz-se imprescindível um registro. Este diz respeito ao recorte temporal da produção bibliográfica que comparece nesse estudo. A tese que dá origem à Cartografias dos estudos culturais, foi concluída no segundo semestre de 1999, tendo sua defesa ocor- rido em março de 2000, portanto, o texto original alcança, por exemplo, apenas a publicação das reflexões de Hall até 1998. Contudo, com o objetivo de suprir essa lacuna em termos de atualização, à moda das suítes na música, o texto original é suce- 13 dido pelos depoimentos de três intelectuais – David Morley, Nick Couldry e James Curran – com expressiva importância no debate internacional sobre os estudos culturais. Tratando-se de um pro- grama de pesquisa, diverso e heterogêneo como inúmeras vezes já foi qualificado, é indispensável analisá-lo mediante a elucidação de trajetórias intelectuais e suas respectivas reflexões e pesquisas como sustentado na presente obra. Destaco que as características do atual contexto histórico, bem como da presente institucionali- zação dos estudos culturais – aqui refiro-me especialmente ao contexto anglo-americano – têm diferenças do período de sua for- mação e mesmo do que foi apresentado em 2000, momento de defesa da tese. Dado que essas transformações estão em anda- mento e, portanto, ainda não estão disponíveis em relatos mais sistemáticos ou mesmo em reflexões que tenham tal propósito, a exposição de testemunhos orais de atores envolvidos nesse pro- cesso contribui para dar visibilidade a distintas experiências, ofe- recendo uma oportunidade para refletir sobre a contribuição contemporânea dos estudos culturais. Com esse objetivo, as en- trevistas, realizadas por mim, em fevereiro de 2007, com o apoio do CNPq, versam sobre a história dos estudos culturais e o res- pectivo lugar ocupado nela pelo entrevistado, bem como de que forma sua produção intelectual contribui para a reconfiguração e atualização dos mesmos. Assim, abre-se uma possibilidade para que o leitor pense como um programa de pesquisa pode ser re- construído7, a fim de melhor atingir a meta que a própria teoria se fixou no momento de sua origem. Ressalto que David Morley e Nick Couldry se destacam na constituição atual desta área de estudos, atuando no Goldsmiths College da Universidade de Londres, tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação. No entanto, podem ser identificados como de gerações distintas na configuração dos estudos culturais. David Morley faz parte do que se convencionou chamar de segunda gera- ção de estudos culturais8. Participou do coletivo de pesquisadores do Centro, no início dos anos 70, momento em que a Escola de Birmingham se consolida. O encontro de Nick Couldry com os estudos culturais somente ocorreu no limiar dos 90 quando estes já tinham se internacionalizado e estavam institucionalizados, na 14 Grã-Bretanha. Esta diferença geracional abarca singularidades de- correntes das respectivas formações. O primeiro, no próprio CCCS e o outro, fora daí, no Goldsmiths College. Isto é, ambos vivenciam situações históricas bastante distintas – o momento de efervescên- cia do CCCS e a consolidação dos estudos culturais na academia. Decorre, também, daí a possibilidade de observar um forte reco- nhecimento, em nível internacional, do primeiro com os estudos culturais e um vínculo mais fraco, no caso do segundo. Em relação ao terceiro pesquisador que também está vinculado ao Goldsmiths College, trata-se de um dos porta-vozes, no contexto britânico, das críticas aos estudos culturais. Situando-se mais próximo dos estu- dos de economia política da comunicação, tradição extremamente forte naquele ambiente acadêmico, o propósito é que ele reavalie os embates gerados entre essas duas forças teórico-metodológicas, confronto que teve escasso realce entre nós. De resto, considero oportuno trazer à baila pelo menos duas das críticas que, embora não tenham sido lançadas em referência direta ao trabalho em questão, circulam no nosso contexto acadê- mico. Uma delas diz respeito às resistências vigentes em aderir ao uso do termo estudos culturais latino-americanos e a sua associação à intelectuais como Martín-Barbero e García Canclini. De um lado, nega-se a utilização da terminologia, dando-se preferência, por exem- plo, a estudos de cultura na América Latina ou estudos sobre co- municação e cultura9 ou ainda estudos de cultura e poder10. O que parece estar implicado é que tal enquadramento teó- rico não sofre influências de repertórios teóricos surgidos em outras latitudes. E que, no caso específico, não têm afinidades com a proposta dos estudos culturais. É claro que os estudos sobre cultu- ra são bem anteriores a essa proposição, mas também é verdadei- ro que os estudos culturais imprimiram uma determinada forma de estudá-la e construíram uma diferenciação11. De outro lado, evoca-se a própria resistência, por exemplo, dos autores citados, na sua auto-identificação com esse campo, omitindo-se que em determinados momentos tal associação é aceita, reconhecida e até mesmo bem-acolhida12. Tendo assumido como ponto de vista o que chamo de narra- tiva dominante sobre os estudos culturais, a partir desse marco, 15 considerei que era possível esboçar um mapa mínimo sobre os estudos culturais onde se destacava, além do que já foi menciona- do, uma possível vinculação entre a vertente britânica de estudos culturais e a emergência de uma perspectiva latino-americana de análise cultural, associada fundamentalmente aos itinerários inte- lectuais de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini. Foi, sumária e pretenciosamente, isso que tentei cartografar, dado que uma cartografia dos estudos culturais era impossível, devido à amplitude do tema, e que meu interesse também era pensar: como algo denominado como um “marco teórico latino-americano” ti- nha sido configurado? Isso existia? Em que condições ele tinha sido constituído? Quem eram seus formuladores? O ponto de convergência entre esses autores e os estudos cultu- rais britânicos se deu através da discussão sobre o uso do aporte gramsciano em torno da hegemonia o que significa dizer que a cul- tura devia ser estudada mediante as relações de poder que constituía e expressava. E que, na comunicação, implicava em pensar, como diz Martín-Barbero13 (2002, p. 224), que “a inscrição da comunica- ção na cultura deixou de ser mero assunto cultural, pois é tanto a economia como a política as que estão comprometidas com o que aí se produz”. A partir dessa posição é que foram se alinhavando outros pontos de encontro que tanto podiam ser recuperados retrospectiva- mente como para além dessa convergência teórica. Essa aproximação revela a existência de uma espécie de vasos comunicantes entre uma produção latino-americana e outra, em especial a britânica. Contudo, a escolha da trajetória de Stuart Hall se deve não a interlocução propri- amente dita entre os autores em foco na pesquisa, mas pela expressão de Hall no direcionamento do Centro de Estudos Culturais Contem- porâneos para especificamente a centralidade do tema da mídia, objeto central na proposta de Cartografias dos estudos culturais. Uma outra crítica que circula, sobretudo, entre simpatizan- tes dos estudos culturais, trata do “eterno retorno” às contribui- ções de intelectuais que configuraram a formação dos estudos culturais como se somente esses fossem as vozes autorizadas a falar em nome dos estudos culturais. Em outros termos, é a acusa- ção da volta “patriarcal” à herança da Escola de Birmingham como se estivesse aí a essência dos estudos culturais14. 16 Como parto do pressuposto que, no nosso meio, muito se fala em estudos culturais, mas pouco se conhece sobre eles - não só sobre sua história, mas também sobre a reflexão que constituiu essa área de estudos, assim como ainda se confunde os estudos culturais britâni- cos com os norte-americanos, desconsiderando suas diferenças, con- sidero fundamental um retorno aos “clássicos” simplesmente para armar um ponto de vista mais historicizado. Isto não concede auto- ridade apenas aos autores consagrados ou à uma determinada narra- tiva sobre os estudos culturais, nem muito menos desmerece o trabalho de autores contemporâneos e de outras versões de estudos culturais. Reivindica, apenas, a formação de um ponto de vista histórico, vin- culada sim a uma determinada versão de estudos culturais. Esta contempla o entendimento de uma prática em estudos culturais que foca na tensão entre a capacidade criativa e produtiva do sujeito e o peso das determinações estruturais como dimensão substantiva na limitação de tal capacidade. Em outros termos, a questão é como falar das estruturas constituindo os sujeitos, sem perder de vista a experiência desses mesmos sujeitos; manter na análise tanto o peso objetivo das instituições, revelado nos seus produtos, quanto a capacidade subjetiva dos atores sociais. Dentro desse marco, tor- nam-se visíveis intersecções entre três temas-chave: o sujeito e sua ação num determinado marco histórico; o reconhecimento de pro- cessos de exclusão, diferenciação e dominação como historicamente construídos e não, naturais e/ou tanshistóricos; e a compreensão da esfera cultural e dentro dessa, a comunicação, através da relação entre produtores, produtos e receptores. modo, o objeto de análise dos estudos culturais, como nos diz Santiago Castro-Gómez15, é com- posto pelos “dispositivos a partir dos quais se produz, distribui e consome toda uma série de imaginários que motivam a ação (políti- ca, econômica, científica, social) do homem em tempos de globali- zação. Ao mesmo tempo, os estudos culturais privilegiam o modo em que os próprios atores sociais se apropriam desses imaginários e os integram a formas locais de conhecimento”. Enfim, cabe ao leitor julgar o mérito tanto das críticas quan- to da apresentação da matéria. Ana Carolina D. Escosteguy Verão de 2010 17 Não creio que seja possível elaborar, neste momento, um mapa exaustivo e detalhado do que poderia ser chamado aproxi- mativamente de uma cartografia dos estudos culturais.1 Vários motivos poderiam ser arrolados para mostrar as dificuldades de cobrir tal objeto. Porém, o primeiro obstáculo esbarra na própria amplitude teórica do fenômeno. Além disso, existem diversos mo- vimentos de apropriação da perspectiva dos estudos culturais, para não mencionar a anfibiedade das definições que circulam sobre os mesmos e, também, a existência de uma extensa bibliografia, sobretudo em língua inglesa, sobre o tema. Em contraposição, não se dispõe de trabalhos preliminares que recolham e organizem informações sobre a emergência dos estudos culturais no território latino-americano. Uma das exce- ções é o artigo de Fabio López de la Roche (1998) que analisa algumas contribuições, produzidas a partir do campo de estudo das relações entre comunicação e cultura, de autores latino-ameri- canos, sinalizando a existência de uma investigação cultural inter- disciplinar que poderia ser identificada com uma tradição latino-americana de estudos culturais. Acrescenta-se, ainda, outro problema: a pouca difusão na América Latina de bibliografia que trate dos estudos culturais, independentemente do contexto geográfico onde sejam pratica- dos. São escassas, para não dizer quase inexistentes, as traduções – tanto em português quanto em espanhol – de textos importantes sobre a configuração dos estudos culturais, seja do ponto de vista histórico, seja de sua composição contemporânea. Daí a opção de traçar cartografias intelectuais que possam ser vistas como significativas no desenvolvimento dos estudos culturais. Na Inglaterra, pólo de origem dessa perspectiva, a trajetória de Stuart Hall é explorada. Na América Latina, os itinerários de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini INTRODUÇÃO 18 servem para evidenciar a configuração dessa abordagem no es- paço latino-americano. Dessa forma, a leitura proposta sobre os estudos culturais e sua apropriação na América Latina é uma construção nossa, sen- do que o grifo no pronome implica um duplo registro. Em pri- meiro lugar, é uma arquitetura decorrente de um percurso e um posicionamento particular desta autora e, por isso, incompleto e parcial, como será adiante justificado. A outra via diz respeito a nós, latino-americanos, e a eterna discussão de nossas particulari- dades em relação aos Outros. Em relação ao último aspecto, parece oportuno formular algumas perguntas, mesmo sabendo de antemão que não serão totalmente respondidas: o que têm os nossos estudos culturais de singular em relação ao mais amplo movimento desse corpo teórico-político-acadêmico? Que desconstruções e reconstruções efetuamos sobre o empreendimento intelectual dos estudos cul- turais para iluminar nossa própria realidade? No presente traba- lho, essas questões sinalizam uma problemática, e não a exigência de uma solução. Neste momento, vale recordar, apenas, que a América Lati- na abarca heterogeneidades culturais, pluralidades étnicas, diver- sidades econômicas, experiências diferentes e desigualdades estruturais. Logo, falar de América Latina representa uma cons- trução incompleta que é um projeto a realizar, pois é uma tentati- va de uniformizar essas diversidades (ARICÓ, 1988). Portanto, a referência à América Latina e ao latino-americano, neste livro, não desconhece essa dimensão do problema e que “enquanto pro- jeto incompleto, ele está sempre na linha de nosso horizonte e nos incita a indagar sobre o nosso destino, sobre o que somos ou que queremos ser”(ARICÓ, 1988, p. 29). Mesmo assim, presume-se que se existe algo denominado estudos culturais latino-americanos, estes, ou melhor, seus prati- cantes, não parecem dispostos a submergir sua identidade nesse amplo movimento, essencialmente, anglo-americano. Daí a neces- sidade de compreender essa relação entre uns e outros como “de tradução”: ou seja, a análise latino-americana pode ser lida tanto como um exemplo da perspectiva dos estudos culturais quanto como 19 uma exemplificação que retém tudo que é distintivo a seu respeito. Adotando essa posição, ambas as perspectivas – o programa dos estudos culturais e a investigação cultural latino-americana –, em- bora partilhem um mesmo objeto, isto é, a relação comunicação e cultura, e uma certa afinidade teórica, preservam suas diferenças e originalidades.2 Portanto, a idéia de tradução, utilizada aqui, não endossa o princípio de existência de um original – no caso, a pro- posta dos estudos culturais britânicos – e sua tradução, entendida como mera aplicação de tal proposta em outros territórios. Os estudos culturais compõem, hoje, uma tendência impor- tante da crítica cultural que questiona o estabelecimento de hie- rarquias entre formas e práticas culturais, estabelecidas a partir de oposições como cultura “alta” ou “superior” e “baixa” ou “inferior”. Adotada essa premissa, a investigação da “cultura popular” que assu- me uma postura crítica em relação àquela definição hierárquica de cultura, na contemporaneidade, suscita o remapeamento glo- bal do campo cultural, das práticas da vida cotidiana aos produtos culturais, incluindo, é claro, os processos sociais de toda produ- ção cultural. Na América Latina, uma reflexão crítica começou a emer- gir, principalmente, na década de 80, tendo como eixo central as novas configurações da cultura popular a partir da emergência das indústrias culturais. Dentre as contribuições mais importantes e originais no repensar dessa problemática, revelando a existência de empréstimos e negociações entre a cultura considerada “legíti- ma” e aquelas formas culturais cotidianas tidas como “insignifican- tes”, dentro do âmbito latino-americano, estão as reflexões de Jesús Martín-Barbero e de Néstor García Canclini. Por essa razão, este trabalho se detém na análise da contribuição desses autores. Porém, tais formulações latino-americanas não podem ser encaradas como um movimento isolado do restante do pensamen- to social, ilhadas das idéias em circulação e dos debates atuais. Daí uma das razões para abordá-las em relação com aquela refle- xão que legitimou a “outra” cultura – a comum e ordinária, pois ambas as vertentes coincidem nesse pressuposto. Convergem, também, na afirmação de relações entre cultura e poder e seu caráter essencialmente conflitivo, assim como na atenção sobre 20 a cultura mediática e seu envolvimento em processos de resis- tência e reprodução social. De forma mais genérica, reconhe- cem o papel constitutivo da cultura e das representações nas relações sociais. A presença dessas articulações na análise cultural proposta pelos autores latino-americanos citados e pelos estudos culturais, e suas implicações em ver a esfera cultural como um terreno onde política, poder e dominação são mediados, propicia a este estudo estabelecer e explorar intersecções, assim como diversidades en- tre os estudos culturais e a reflexão latino-americana em foco. Entretanto, como os estudos culturais compõem um vasto, fragmentado e inter/trans ou antidisciplinar – conforme o ponto de vista que seja assumido – campo de estudo, o recorte, aborda- do pelo meu trabalho, trata especialmente das análises que abor- dam as relações entre comunicação e cultura. Na tentativa de construir uma abordagem que extrapolasse a reconstituição histórico-descritiva das trajetórias britânica e latino- americana, escolhi determinadas temáticas teóricas – eixos-nodais – que fazem a conexão entre os estudos culturais e o pensamento latino-americano em foco e que marcam o percurso teórico de ambas perspectivas. Ao mesmo tempo, constituem-se em ques- tões centrais que vão sinalizando rupturas e desdobrando-se em rotas abertas para a continuidade da reflexão. Esses eixos teóricos são: as relações entre cultura e ideolo- gia; a opção pela análise da cultura popular; e a construção de identidades culturais contemporâneas mediadas, intensamente, pelos meios de comunicação. Como eixos-nodais, permitem que outras questões a eles relacionados sejam também abordadas. Entre elas: o conceito de hegemonia, o papel do intelectual na esfera da cultura e a problemática da recepção. Reconheço, contudo, que ao destacar e recuperar apenas esses questionamentos, estou omi- tindo ou subvalorizando outros. Apesar de adotar esse procedi- mento de seleção de aspectos de uma obra, espero não trair o pensamento dos autores aqui em destaque. Seguindo as orientações recém delineadas, este trabalho consis- te, em primeiro lugar, em propor uma articulação entre os autores 21 latino-americanos citados e os estudos culturais, sobretudo na sua vertente britânica. Do ponto de vista dos estudos culturais britâ- nicos, o trabalho de Stuart Hall vai servir como fonte maior desta exploração na medida em que é, indubitavelmente, uma figura central no desenvolvimento da versão dominante dos mesmos. Isso não quer dizer que outros autores e trabalhos não sejam in- corporados nessa articulação entre os latino-americanos e o cam- po dos estudos culturais. Ao contrário, a tentativa é compor uma narrativa, na medida do possível – diante da vasta bibliografia existente em língua inglesa – mais plural, diversa e polifônica, não centrada exclusivamente na versão britânica.3 Ao construir o trajeto sobre o tratamento das temáticas ante- riormente citadas, observa-se como alguns dos praticantes, tanto da perspectiva latino-americana quanto da anglo-saxônica, com- preendem-nas e desenvolvem-nas. Porém, nunca com o propósi- to de aplicar os termos próprios, sobretudo da vertente britânica enquanto pólo gerador desse projeto, ao contexto latino-ameri- cano. Mesmo porque a prática dos estudos culturais alcança sua propriedade dentro de condições históricas específicas – entre elas a localização nacional e geográfica (GROSSBERG, NELSON E TREICHLER, 1992; MORRIS, 1992). Contudo, não conta apenas a diferença de contextos dentro dos quais os argumentos se engen- dram, mas existe, também, um grau de especificidade cultural na própria teoria (TURNER, 1993b). Outra consideração decorrente da escolha dos autores em foco neste livro diz respeito ao reconhecimento de que são vozes posicionadas geograficamente em lugares distintos. Ou seja, em termos talvez não muito apropriados para a época vigente, mas que ainda guardam uma certa potencialidade, são posições situa- das no “centro” e na “periferia”. Mesmo que esteja em curso o debilitamento de uma noção de centro que tem sua capacidade explicativa fragilizada e a concentração de poder um pouco mais dispersa, percebe-se ainda a exclusão de experiências e saberes “periféricos” daquele identificado como “centro”. De qualquer modo, o propósito não é reavivar esse confron- to esquemático, mas localizar-se num outro ponto fora dessa opo- sição binária. Nessa direção, os três autores estudados como eixo 22 central deste livro experimentam todos um deslocamento seme- lhante. Partindo cada um de posições particulares, encontram- se, como disse Martín-Barbero (1987a, p. 229) a respeito de sua busca pessoal por um novo mapa para explorar o campo cultural contemporâneo, assumindo “as margens não como tema, mas como enzima”. Apesar da discussão proposta concentrar-se nesta tríade de autores – Stuart Hall, Jesús Martín-Barbero e Néstor García Can- clini –, não é de forma alguma minha intenção localizar os estu- dos culturais em “textos canônicos” ou elevar a obra de cada um desses autores a um estatuto canônico. Sobretudo porque é justa- mente contra a oposição entre o cânone e seu outro, a cultura popular, que os estudos culturais vicejaram. Nesse contexto geral, embora reconheça uma singularidade na reflexão latino-americana, representada, aqui, por Martín-Bar- bero e García Canclini,4 isso não pode ser motivo para assumi-la sem questionamento, deixando de ser objeto de crítica. Logo, pretende-se tanto recuperar e reconstituir alguns procedimentos ao longo dessa trajetória quanto, também, discuti-los sistematica- mente, mediante uma leitura crítica e reflexiva, no sentido de ver para onde apontam, que via descortinam para prosseguir o estudo em torno das vinculações entre cultura e comunicação. Esse é, também, o norte da crítica ao atual desenvolvimento dos estudos culturais como um todo. Delimitados os contornos da temática deste trabalho, é im- perativo esclarecer a partir de que lugar esta análise de um deter- minado aporte teórico-metodológico se realiza, ou seja, explicitar o lugar de enunciação que o analista privilegia para operacionali- zar essa leitura. Proponho, então, situar-me genericamente den- tro dos estudos de comunicação e cultura, denominação corrente na América Latina. Porém, é mais preciso dizer que o ponto de partida se esta- belece mediante a vinculação dos estudos culturais e a comunica- ção5. Isso significa que a investigação da cultura mediática, incluindo tanto os meios, os produtos e as práticas culturais – ou seja, refere-se tanto à natureza e à forma dos produtos simbólicos quanto ao circuito de produção, distribuição e consumo – está 23 inserida numa concepção mais abrangente de sociedade vista como o terreno contraditório de dominação e resistência onde a cultura tanto se engaja na reprodução das relações sociais quanto na aber- tura de possíveis espaços para a mudança. Sinteticamente, pode-se dizer, ainda, que essa investigação está integrada a um contexto maior demarcado por uma teoria social crítica que insere essas análises da cultura e comunicação no âmbito do estudo da sociedade capitalista. Conseqüentemente, tenta analisar tanto as formas pelas quais cultura e comunicação são produzidas dentro desse ordenamento quanto os papéis e fun- ções que exercem na sociedade, entendida enquanto um conjunto de relações sociais hierarquizadas e antagônicas. Vale a pena citar que, por exemplo, Douglas Kellner (1995a, 1995b, 1997a, 1997b) reivindica superar a bifurcação entre estu- dos culturais versus estudos de comunicação, propondo a denomi- nação “estudos culturais dos meios de comunicação”. Sua proposta implica uma prática crítica, multicultural e que abranja múltiplas perspectivas ou dimensões: a produção e a economia-política da cultura, análise textual e crítica e, por fim, o estudo de recepção de audiência e usos dos produtos dos meios de comunicação. Em contraste, o argumento de Grossberg (1994) trata esse tipo de perspectiva ou, segundo seus termos, os “estudos cultu- rais comunicacionais” como uma redução do projeto dos estudos culturais. Isso porque os “estudos culturais comunicacionais” en- campam uma aproximação tripartite – produção, texto e consumo – da comunicação, transformando-a num modelo geral de análise que reproduz o modelo linear de comunicação: emissor, mensa- gem, receptor. Na verdade, tais estudos não conseguem situar prá- ticas culturais específicas dentro de seus contextos, complexamente determinados e determinantes (GROSSBERG, 1994, p. 335). Daí minha preferência pelo termo estudos culturais ao invés de estudos de comunicação e cultura. Pois os últimos necessitam da moldura teórica recém descrita de inserção numa teoria social crítica. E os primeiros, no caso particular deste estudo, apenas uma ênfase num determinado objeto de estudo – a comunicação. Quando observado esse último aspecto, os estudos culturais podem ser incluídos nos estudos críticos de comunicação, inaugurados nos 24 anos 30 pela Escola de Frankfurt, embora entre ambas as aproxi- mações haja, também, profundas diferenças. Finalmente, gostaria de ressaltar que este livro, pauta-se por, mediante escrutínio de determinadas posições, apontar algumas críticas e pistas, contribuindo para o debate sobre os estudos cul- turais contemporâneos e sua divulgação no nosso meio acadêmi- co. O texto publicado, aqui, toma como ponto de partida a tese de doutoramento apresentada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em março de 2000, mas é uma versão modificada e resumida daquela pesquisa. Assim, apresenta-se no primeiro capítulo um ponto de vista histórico sobre as origens e constituição dos estudos culturais, de- marcando o contexto britânico como a base dessa experiência. A reconstituição dessas origens é tratada como pano de fundo para situar a discussão central do livro. Diante das múltiplas versões hoje disponíveis sobre o início do projeto dos estudos culturais, que dão relevância ora para a constituição de um objeto de estudo próprio (JOHNSON, 1996), ora para uma situação histórica específica (SCHWARZ, 1994), aqui resgato aquela que trata da história das idéi- as, indicando o trio fundador – Hoggart, Williams e Thompson – e suas obras. Isso não significa desconsiderar nem desconhecer o aspecto problemático da indicação das origens dos estudos cultu- rais, mas reconhecer que o debate em torno de suas origens é de importância periférica no contexto maior da minha pesquisa. A partir deste momento é obrigatório um esclarecimento em relação ao próprio termo “estudos culturais”. Os textos anglo-ame- ricanos na sua grande maioria utilizam cultural studies, com minús- culas e sem nenhum grifo em especial, para referir-se a tal campo de estudos. Por essa razão, também conservo as minúsculas. No caso latino-americano, dada a ausência de relatos conso- lidados sobre a formação dos estudos culturais, opto por construir uma narrativa que privilegia a constituição dessa perspectiva nas intersecções com o campo da comunicação. Portanto, registro um cenário panorâmico e parcial, sobretudo pela seleção de um enfo- que específico e a brevidade de sua história. Contudo, esse mapa provisório foi construído com o objeti- vo de localizar a contribuição teórico-metodológica e, assim, ser 25 analisada num determinado ambiente. Deste modo, a obra indivi- dual estabelece vínculos com um contexto sócio-histórico e teóri- co-acadêmico, mas o autor e seu texto não são explicados pelos contextos que o envolvem. A partir do segundo capítulo é desenvolvida a análise dos eixos temáticos, considerados marcos centrais no debate teórico dos estudos culturais. Assim, demarca-se a discussão sobre ideo- logia e hegemonia, sobre cultura popular numa época em que os meios de comunicação impregnam o meio social e, finalmente, sobre a problemática da construção das diversas identidades cul- turais que caracterizam os grupos sociais contemporâneos. Cada uma das seções concentra-se na recuperação de tais temáticas nas formulações dos três autores selecionados como fundamentais na constituição da perspectiva dos estudos culturais, seja no conti- nente europeu, seja na América Latina. Reitero que todas essas questões são construídas de acordo com o posicionamento deste pesquisador, que se localiza no cam- po de investigação da comunicação, ou melhor, no espaço de co- nexão que se estabelece entre os estudos culturais e a comunicação.6 A estratégia adotada é aproximar-se do objeto de estudo já deline- ado a partir de um ponto de vista que pretende compreender as relações entre cultura e sociedade, reivindicando uma abordagem crítica como indispensável para uma visão mais compreensiva da experiência cultural contemporânea. Na obrigatoriedade de consultar e trabalhar com bibliografia em inglês e espanhol, gostaria de registrar que tive grande cuida- do com as traduções, mantendo-me sempre alerta e receosa de não ser suficientemente rigorosa nessas transposições. Mesmo tendo sempre como meta ser fiel ao texto e, por sua vez, ao autor, proponho em inúmeros casos traduções aproximadas para termos que não têm equivalentes em português.7 26 27 UMA NARRATIVA POSSÍVEL OU A VERSÃO BRITÂNICA As primeiras manifestações dos estudos culturais têm ori- gem na Inglaterra, no final dos anos 50, especialmente em torno do trabalho de Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Palmer Thompson. Esta afirmação é lugar-comum em muitas das reconstituições das origens deste campo de estudo. De outro lado, tem-se tornado também motivo gerador de debates, discussões e contendas, sobretudo, nos últimos tempos. O campo dos estudos culturais surge, de forma organizada, através do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), di- ante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da In- glaterra do pós-guerra. Inspirado na sua pesquisa, The Uses of Literacy (1957), Richard Hoggart funda em 1964 o Centro. Este surge ligado ao English Department da Universidade de Birmingham, constituindo-se num centro de pesquisa de pós-graduação desta mesma instituição. As relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas cul- turais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais, vão compor o eixo principal de observação do CCCS. Três textos que surgiram nos final dos anos 50 são identifica- dos como a base dos estudos culturais:1 Richard Hoggart com The Uses of Literacy (1957), Raymond Williams com Culture and Society (1958) e E. P. Thompson com The Making of the English Working-class (1963). O primeiro é em parte autobiográfico e em parte história cultural do meio do século XX. O segundo constrói um histórico do conceito de cultura, culminando com a idéia de que a “cultura comum ou ordinária” pode ser vista como um modo de vida em condições de igualdade de existência com o mundo das Artes, Literatura e Música. E o terceiro reconstrói ESTUDOS CULTURAIS: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 28 uma parte da história da sociedade inglesa de um ponto de vista particular – a história “dos de baixo”. Na pesquisa realizada por Hoggart,2 o foco de atenção recai sobre materiais culturais, antes desprezados, da cultura popular e dos meios de comunicação de massa, através de metodologia qua- litativa. Este trabalho inaugura o olhar de que no âmbito popular não existe apenas submissão mas, também, resistência, o que, bem mais tarde, será recuperado pelos estudos de audiência dos meios massivos. Tratando da vida cultural da classe trabalhadora, transparece nesse texto um tom nostálgico em relação a uma cul- tura orgânica dessa classe. A contribuição teórica de Williams3 é fundamental para os estudos culturais a partir de Culture and Society [Cultura e socieda- de, 1780-1950. São Paulo: Nacional, 1969]. Através de um olhar diferenciado sobre a história literária, ele mostra que a cultura é uma categoria-chave que conecta a análise literária com a investiga- ção social. Seu livro The Long Revolution (1961) avança na demons- tração da intensidade do debate contemporâneo sobre o impacto cultural dos meios massivos, mostrando um certo pessimismo em relação à cultura popular e aos próprios meios de comunicação. É o próprio Stuart Hall que avalia a importância desse últi- mo livro: “ele [The Long Revolution] transformou toda a base do debate, de uma definição moral-literária de cultura, para uma de- finição antropológica. Porém, definiu esta [a cultura] como o ‘pro- cesso integral’ pelo qual significados e definições são socialmente construídos e historicamente transformados, sendo, neste contex- to, a literatura e a arte uma única forma especialmente privilegia- da de comunicação social” (Hall apud Turner, 1990, p. 55). Essa mudança no entendimento de cultura fez possível o desenvolvi- mento dos estudos culturais. Em relação à contribuição de Thompson,4 pode-se dizer que influencia o desenvolvimento da história social britânica de den- tro da tradição marxista. Para ambos, Williams e Thompson, cul- tura era uma rede vivida de práticas e relações que constituíam a vida cotidiana, dentro da qual o papel do indivíduo estava em pri- meiro plano. Mas, de certa forma, Thompson resistia ao entendi- mento de cultura enquanto uma forma de vida global. Em vez 29 disso, preferia entendê-la enquanto um enfrentamento entre mo- dos de vida diferentes.5 Esses quatro textos recém mencionados foram seminais para a configuração dos estudos culturais. Entretanto, Hall (1996b, p. 32) ressalta que eles não foram, de forma alguma, ‘livros didáticos’ para a fundação de uma nova subdisciplina acadêmica: nada poderia estar mais distante de seu impulso intrínseco. Quer fossem históricos ou contemporâneos em seu foco, tais textos eram, eles próprios, foca- lizados pelas pressões imediatas do tempo e da sociedade na qual foram escritos, organizados através delas, além de serem elementos constituintes de respostas a essas pressões. Embora não seja citado como membro do trio fundador, a importante participação de Stuart Hall6 na formação dos estudos culturais britânicos é unanimemente reconhecida. Avalia-se que, ao substituir Hoggart na direção do Centro, de 1968 a 1979, incentivou o desenvolvimento da investigação de práticas de re- sistência de subculturas e de análises dos meios massivos, identi- ficando seu papel central na direção da sociedade; exerceu uma função de “aglutinador” em momentos de intensas distensões teó- ricas e, sobretudo, destravou debates teórico-políticos, tornando- se um “catalizador” de inúmeros projetos coletivos.7 Tem uma abundante produção de artigos, sendo que sua reflexão faz parte da maioria das coletâneas mais importantes sobre estudos cultu- rais, sejam eles publicados pelo próprio Centro ou não. Enfim, esses são os principais atores e uma parte da história do início da configuração deste campo de estudos. Em outras palavras, essa mesma narrativa poderia ser assim contada: Desde o final da década de 1950, tem existido, dentro da vida cultural e intelectual de língua inglesa, um projeto que causou impacto significativo no trabalho acadêmico no campo das Ar- tes, das Humanidades e das Ciências Sociais. Nos anos 50, tal projeto não tinha um nome. Não tinha nem sequer uma única fonte. Surgiu dentro de um contexto histórico e social especí- fico, a partir do trabalho de três indivíduos. Raymond Willia- ms, Richard Hoggart e E. P. Thompson estavam preocupados, 30 de forma diferente, com a questão da cultura na sociedade es- tratificada em classes da Inglaterra. Os autores estavam tentan- do, cada um a seu modo, entender o papel e o efeito da cultura em um momento crítico da própria história da Inglaterra: um momento marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, a herança, em um ambiente já mudado e em constante mudança, de uma política de classe de limitada resistência, e, finalmente, a importação ou invasão, através dos meios de comunicação de massa, da cultura americana, o que tornou público e ressaltou a todos o dominador caráter de classe da vida cultural inglesa. (BLUNDELL ET AL., 1993, p. 1) O trecho em questão replicaria a versão recém apresentada, não fosse esta escrita por autores canadenses que, embora relatem esse ponto de vista de sua fundação, questionam, logo a seguir, a existência de uma narrativa única sobre sua constituição como um projeto maior que transcendeu as fronteiras da Grã-Bretanha. O propósito dessa publicação – Relocating Cultural Studies – Deve- lopments in Theory and Research (1993) – é mostrar justamente a versão britânica sobre as origens dessa trajetória em contraste com a particularidade do caso canadense, revelando, simultanea- mente, o descentramento contemporâneo dos estudos culturais. Através desse tipo de posicionamento, em que a coletânea citada é apenas um exemplo,8 problematiza-se o ‘“cânone” – a versão dominante – sobre as origens dos estudos culturais. Em contraposição a essa versão dominante, afirma-se que em outras localidades e em outros momentos podem ser identificadas “ou- tras” origens para esse campo de estudos. Enfim, a existência de diferenças nacionais e a confluência de um conjunto particular de propostas de cunho teórico-político geraram outros exemplos de estudos culturais que desestabilizam a narrativa sobre uma ori- gem centrada, sobretudo, em Birmingham, na Inglaterra. Ainda, em outra versão que discute a emergência histórica dos estudos culturais enquanto desenvolvimento organicamente britânico, desenvolvimento determinado por forças nacionais in- ternas, é obrigatório identificar as condições históricas existentes naquele momento. Pelo menos duas características são marcantes: o impacto da organização capitalista das formas culturais no campo 31 das relações sócio-culturais e o colapso do império britânico. No primeiro espaço, observa-se a ruptura das culturas tradicio- nais de classe em conseqüência do alastramento dos meios de comunicação de massa; no segundo, percebe-se que a suposta integridade da nação britânica começa a implodir. Dessa forma, a ascensão dos estudos culturais britânicos coincide com uma crise de identidade nacional. Porém, não existem motivos para descartar seus princípios fundadores: “a identificação explícita das culturas vividas como um objeto distinto de estudo, o reconhecimento da autonomia e complexidade das formas simbólicas em si mesmas; a crença de que as classes populares possuíam suas próprias formas culturais, dignas do nome, recusando todas as denúncias, por parte da cha- mada alta cultura, do barbarismo das camadas sociais mais bai- xas; e a insistência em que o estudo da cultura não poderia ser confinado a uma disciplina única, mas era necessariamente inter, ou mesmo anti, disciplinar”, tão bem sumarizados por Schwarz (1994, p. 380) –, pois estes princípios revelaram-se instigantes nestes últimos trinta anos. A rápida expansão dos estudos cultu- rais em parte é atribuída aos mesmos. Entretanto, seria demasiado ingênuo explicar sua emergên- cia somente em termos do trio fundador e de seus textos-chave, tendo em vista os questionamentos existentes a esse respeito. Con- tudo, faz-se necessário reconhecer que existem desacordos entre os considerados “pais fundadores” dos estudos culturais: Willia- ms, Thompson e Hoggart. Porém, para a constituição dos estu- dos culturais é mais significativo destacar os pontos de vista compartilhados entre eles. É importante ressaltar, então, que os três autores citados como os fundadores deste campo de estudos, embora não te- nham uma intervenção coordenada entre si, revelam um leque comum de preocupações que abrangem as relações entre cultu- ra, história e sociedade. O que os une é uma abordagem que insiste em afirmar que através da análise da cultura de uma sociedade – as formas textuais e as 32 práticas documentadas de uma cultura – é possível reconstituir o comportamento padronizado e as constelações de idéias com- partilhadas pelos homens e mulheres que produzem e conso- mem os textos e as práticas culturais daquela sociedade. É uma perspectiva que enfatiza a “atividade humana”, a produção ativa da cultura, ao invés de seu consumo passivo”. (STOREY, 1997, p. 46, grifo meu) É possível apontar, a partir daí, duas grandes reorientações na análise cultural proposta pelos estudos culturais: o padrão esté- tico-literário de cultura, ou seja, aquilo que era considerado “sé- rio” no âmbito da literatura, das artes e da música passa a ser visto apenas como uma expressão da cultura. Esta refere-se, en- tão, a um amplo espectro de significados e práticas que move e constitui a vida social. O fato de se alargar o conceito de cultura, incluindo práticas e sentidos do cotidiano, propiciou, por sua vez, uma segunda mudança importante: todas as expressões culturais devem ser vistas em relação ao contexto social das instituições, das relações de poder e da história. Tendo como ponto de partida um conjunto de proposições que à primeira vista mostra-se tão amplo quanto aberto a entendi- mentos diversos, Hall (1996a, p. 263) reivindica manter sua plu- ralidade, mas simultaneamente estabelece um fio condutor: Ainda que os estudos culturais, como um projeto, estejam em aberto, não podem ser simplesmente pluralistas desta maneira. Recusam-se, sim, a ser um discurso dominante ou um metadiscurso (grifo meu) de qualquer espécie. Constituem, sim, um projeto sempre aberto àquilo que ainda não conhece, àquilo que ainda não pode identificar. Porém, tal projeto possui, também, um certo desejo de conectar-se, um balizamento nas escolhas que faz. Por- tanto, realmente fará diferença interpretarem-se os estudos cultu- rais como sendo uma coisa ou outra. Conclui-se que, se a versão britânica sobre as origens e cons- tituição deste projeto não apresenta implicitamente uma posição teórica unificada, também, não está composta por um conjunto tão díspar que não apresente uma unidade. Indagar-se sobre “a unidade na diferença” (GROSSBERG, 1993) é reconhecer que esta 33 responde, em parte, a condições particulares – a um contexto intelectual, político, social e histórico específico. As peculiaridades do contexto histórico britânico, abran- gendo da área política ao meio acadêmico, marcaram indelevel- mente o surgimento deste movimento teórico-político. Os estudos culturais ressaltaram os nexos existentes entre investigação e for- mações sociais onde se desenrola a própria pesquisa. “Os estu- dos culturais não dizem respeito apenas ao estudo da cultura. Nunca pretenderam dizer que a cultura poderia ser identificada e analisada de forma independente das realidades sociais concre- tas dentro das quais existem e a partir das quais se manifestam” (BLUNDELL ET AL., 1993, p. 2). Em primeiro lugar, deve-se acentuar o fato de que os estudos culturais britânicos devem ser vistos tanto do ponto de vista polí- tico, na tentativa de constituição de um projeto político, quanto do ponto de vista teórico, isto é, com a intenção de construir um novo campo de estudos. “[...] Não se pode entender um projeto artístico e intelectual sem entender, também, sua formação; sem entender que a relação entre um projeto e uma formação é sempre decisiva; e que [...] a ênfase dos estudos culturais está precisa- mente no fato de que eles se ocupam de ambas as concepções” (WILLIAMS, 1996, p. 168). A partir desta dupla agenda é que os estudos culturais britânicos devem ser pensados. Do ponto vista político, são sinônimos de “correção políti- ca” (JAMESON, 1994), podendo ser identificados com a política cultural dos vários movimentos sociais da época de seu surgimen- to. Por essa razão, sua proposta original é considerada por alguns como mais política do que analítica. Autores como Michael Green (1995) apontam como motivo primordial para o surgimento dos estudos culturais britânicos uma condensação política em torno de um conjunto de novos e com- partilhados temas de interesse que convergiram com o momento de emergência da New Left. “[...] os estudos culturais oferecem um espaço no qual se pode explorar – e refletir sobre – uma vari- edade de questões políticas, e jamais negaram que sua agenda tem dimensões políticas e não pode ser ‘objetiva’”, afirma Green. (1995, p. 229). 34 A titulo de ilustração, os estudos culturais australianos, como os britânicos, também, são vistos como decorrentes de uma con- juntura política. A questão aqui, contudo, é simplesmente o fato de que os estudos culturais australianos não apenas foram uma resposta aos movi- mentos políticos e sociais das últimas três décadas (o que pode ser dito em relação aos estudos culturais como projeto geral), mas também produziram muitos de seus temas, suas prioridades de pesquisa, suas polêmicas e, de certa forma, sua ênfase teórica e seus principais métodos de trabalho, a partir de um engajamento com estes movimentos. (Frow e Morris, 1996, p. 351) Pela perspectiva teórica, resultam da insatisfação com os li- mites de algumas disciplinas, propondo, então, a inter/trans ou, ainda para alguns, a antidisciplinaridade.9 Isto não impediu, en- tretanto, que em alguns lugares tenham se institucionalizado.10 Os estudos culturais não configuram uma “disciplina” mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao estu- do de aspectos culturais da sociedade. A área, então, segundo um coletivo de pesquisadores do Centro de Birmingham que atuou, principalmente, nos anos 70, não se constitui numa nova discipli- na, mas resulta da insatisfação com algumas disciplinas e seus próprios limites (HALL ET AL, 1980, p. 7). É um campo de estu- dos em que diversas disciplinas se interseccionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea, constituindo um trabalho historicamente determinado. Em análises que tentam mapear o centro de atenção deste campo, enfatiza-se seu diálogo entre disciplinas: “Os estudos cul- turais são um campo interdisciplinar onde certas preocupações e métodos convergem; a utilidade dessa convergência é que ela nos propicia entender fenômenos e relações que não são acessíveis através das disciplinas existentes. Não é, contudo, um campo uni- ficado” (TURNER, 1990, p. 11). Em termos de disciplinas, no seu primeiro momento de for- mação, o encontro entre Literatura Inglesa, Sociologia e História propiciou pensar uma conexão entre três níveis distintos. A pri- meira contribuiu com a preocupação com as formas culturais 35 populares, assim como com textos e textualidades, estes últimos podendo estar situados além da linguagem e literatura;11 à socio- logia atribui-se o exame da reprodução estrutural e da subordina- ção e da história vem o interesse da “história de baixo” e, também, o reconhecimento da história oral e da memória popular. Entretanto, é preciso ressaltar que, na sua fase inicial, os fun- dadores desta área de pesquisa tentaram não propagar uma defini- ção absoluta e rígida de sua proposta. Nas palavras de Stuart Hall, o órgão de divulgação do Centro – Working Papers in Cultural Stu- dies12 – não deveria preocupar-se em “[...] ser um veículo que defi- na o alcance e extensão dos estudos culturais de uma forma definitiva ou absoluta. Nós rejeitamos, em resumo, uma definição descritiva ou prescritiva do campo” (HALL, 1980a, p. 15). Na realidade, os estudos culturais britânicos se constituem na tensão entre demandas teóricas e políticas. Embora sustentem um marco teórico específico (não obstante, heterogêneo), am- parado principalmente no marxismo, a história deste campo de estudos está entrelaçada com a trajetória da New Left, de alguns movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Cam- paign for Nuclear Disarmament, etc.) e de publicações – entre elas, a New Left Review – que surgiram em torno de respostas políticas à esquerda. Ressalta-se seu forte laço com o movimen- to de educação de adultos. A multiplicidade de objetos de investigação também caracteri- za os estudos culturais. Resulta da convicção de que é impossível abstrair a análise da cultura das relações de poder e das estratégias de mudança social. A ausência de uma síntese completa sobre os períodos, enfrentamentos políticos e deslocamentos teóricos contí- nuos de método e objeto faz com que, de forma geral e abrangente, o terreno de sua investigação circunscreva-se aos temas vinculados às culturas populares e aos meios de comunicação de massa e, pos- teriormente, a temáticas relacionadas com as identidades, sejam elas sexuais, de classe, étnicas, geracionais etc. Mas é necessário esperar até os anos 70, principalmente, com a implantação da pu- blicação periódica dos Working Papers, para que a produção cientí- fica do Centro passe a ter visibilidade e repercussão. 36 Numa tentativa de reconstituir uma narrativa histórica sobre os interesses e temáticas que predominaram neste campo de estu- dos, podem-se identificar alguns momentos bem diferenciados. No início dos anos 70, o desenvolvimento mais importante con- centrou-se em torno da emergência de várias subculturas que pa- reciam resistir a alguns aspectos da estrutura dominante de poder. E, a partir da segunda metade dessa mesma década, percebe-se a importância crescente dos meios de comunicação de massa, vis- tos não somente como entretenimento mas como aparelhos ideo- lógicos do Estado. Nessa época, os estudos das culturas populares pretendiam responder a indagações sobre a constituição de um sistema de valo- res e de um universo de sentido, sobre o problema de sua autono- mia e, também, como esses mesmos sistemas contribuem para a constituição de uma identidade coletiva e como se articulam as dimensões de resistência e subordinação das classes populares.13 Já o estudo dos meios de comunicação caracterizava-se pelo foco na análise da estrutura ideológica, principalmente, da cober- tura jornalística. Esta etapa foi denominada por Hall (1982) de “redescoberta da ideologia”, sendo que uma das premissas bási- cas desta fase pressupunha que os efeitos dos meios de comunica- ção podiam ser deduzidos da análise textual das mensagens emitidas pelos próprios meios. Ainda nessa década, a temática da recepção e a densidade dos consumos mediáticos começam a chamar a atenção dos pes- quisadores de Birmingham, ou melhor, do CCCS. Este tipo de reflexão acentua-se a partir da divulgação do texto “Encoding and decoding in the television discourse”,14 de Stuart Hall, publicado pela primeira vez em 1973. Desencadeado um processo de deslo- camento do olhar, dentro do espectro dos estudos culturais, co- meçam a aparecer outras produções: David Morley publica “Texts, readers, subjects” (1977-1978) e, logo em seguida, algumas pes- quisas empíricas começam a tomar corpo. Depois de um período de preocupação com análises textuais dos meios massivos, tais estudos de audiências começam a ser desenvolvidos como uma tentativa de verificar empiricamente tanto as diversas leituras ideológicas construídas pelos próprios pesqui- 37 sadores quanto as posições assumidas pelo receptor.15 Porém, é na segunda metade dos anos 80 e já não mais circunscrito às investi- gações do CCCS, que se nota uma clara mudança de interesse do que está acontecendo na tela para o que está na frente dela, ou seja, do texto para a audiência. Entretanto, ainda nos anos 70, o trabalho em torno das dife- renças de gênero através do feminismo que irrompe em cena, e os desenvolvimentos em torno da idéia de “resistência”, também marcam o período. Hall (1992, 1996a) aponta o feminismo como uma das rupturas teóricas decisivas que alterou uma prática acu- mulada em estudos culturais, reorganizando sua agenda em ter- mos bem concretos. Desta forma, destaca sua influência nos seguintes aspectos: a abertura para o entendimento do âmbito pessoal como político e suas conseqüências na construção do ob- jeto de estudo dos estudos culturais; a expansão da noção de po- der, que, embora bastante desenvolvida, tinha sido apenas trabalhada no espaço da esfera pública; a centralidade das ques- tões de gênero e sexualidade para a compreensão da própria cate- goria “poder”; a inclusão de questões em torno do subjetivo e do sujeito e, por último, a “reabertura” da fronteira entre teoria social e teoria do inconsciente – psicanálise. De forma assumidamente deliberada, Hall (1996a, p. 269) utiliza a seguinte metáfora sobre a “irrupção” do feminismo nos estudos culturais e, em especial, na vida intelectual do CCCS: “Não se sabe, de uma maneira geral, onde e como o feminismo arrombou a casa. [...] Como um ladrão no meio da noite, ele entrou, perturbou, fez um ruído inconveniente, tomou a vez, es- tourou na mesa dos estudos culturais”. E, em outro lugar, conta como ele e Michael Green, perce- bendo a importância das questões em torno do feminismo, “con- vidaram” algumas feministas para destravar essa discussão dentro do Centro e como esta tomou forma por si própria. Em um dado momento, Michael Green e eu decidimos experi- mentar e convidar algumas feministas, que não estavam trabalhan- do conosco, para vir para o Centro, visando a projetar a questão do feminismo no interior dele. Assim sendo, a tradicional história 38 de que o feminismo surgiu de dentro dos estudos culturais não é bem verdadeira. Estávamos muito ansiosos para estabelecer aquele vínculo, em parte porque nós dois, à época, vivíamos com feminis- tas. Trabalhávamos com estudos culturais, mas mantínhamos uma conversação com o feminismo. As pessoas pertencentes aos estudos culturais estavam se tornando sensíveis à política feminista. Sendo clássicos ‘novos homens’, a verdade é que, quando o feminismo realmente emergiu de forma autônoma, fomos pegos de surpresa pela própria coisa que havíamos tentado, de forma patriarcal, iniciar. Aquelas coisas eram simplesmente muito imprevisíveis. O feminis- mo, então, realmente irrompeu no Centro, em seus próprios ter- mos, de sua própria e explosiva maneira. Mas não era a primeira vez que os estudos culturais pensavam sobre política feminista ou se tornavam cientes dela. (HALL, 1996d, p. 499)16 Embora esta versão não seja bem vista pelas feministas, tanto as do CCCS quanto as que trabalham com estudos culturais, vale a pena resgatá-la. Representando as feministas e em oposição ao relato de Hall, Brunsdon (1996) nomeia como importantes na reconstituição desta trajetória trabalhos produzidos a partir de 1974, demonstrando assim a existência deste nicho de interesses dentro do Centro. O artigo mimeografado de 1974, ‘Images of women’, de Helen Butcher, Rosalin Coward, Marcella Evaristi, Jenny Garber, Rachel Harrison, Janice Winship; o artigo de Jenny Garber e Angela McRobbie sobre ‘Girls and subcultures’, nos Working Papers in Cultural Studies de 1975 – Resistance through Rituals e a publica- ção de 1978 Women Take Issue, todos marcam diferentes disputas neste campo. [...] Assim, se há uma primeira fase no encontro entre as feministas e o CCCS, começando, talvez, em 1973-4, eu sugeriria que seu texto final é a coletânea de 1981, de McRobbie e McCabe, Feminism for Girls, a qual, em seu uso de ‘feminismo’ e ‘meninas’, sugere uma distância dos anos 70. Este livro marca, também, o fim da primeira fase com uma percepção muito forte dos problemas com a categoria ‘mulher’, bem como com a diferen- ça entre (grifo meu) as mulheres. (BRUNSDON, 1996, p. 278)17 É necessário notar que estas primeiras produções aparecem de forma ainda esparsa. Em 1976, influenciadas pelo Women’s Liberation Movement, as mulheres do CCCS questionaram sua 39 própria posição dentro do centro de pesquisa e propuseram a criação de um grupo de estudo somente composto por mulhe- res. Embora fortemente contestada, essa proposição foi refe- rendada. Reconstituindo, então, de uma outra forma a história do fe- minismo no CCCS, Brunsdon (1996, p. 280) nega veementemen- te a versão paternalista de Hall. Na primeira vez em que li esta avaliação, eu queria esquecê-la ime- diatamente. Negá-la, ignorá-la, desconhecê-la – não reconhecer a agressão ali contida. Não tanto para negar que as feministas do CCCS, durante os anos 70, haviam feito um poderoso desafio aos estudos culturais, na forma como estavam constituídos na- quele momento e naquele lugar, mas para negar que tivessem acon- tecido da forma aqui descrita [por Hall]. Nota-se, entretanto, no relato de Brunsdon, a problematiza- ção da existência de duas esferas nos estudos culturais: a comum e ordinária e a feminina/feminista. Mas há um tom de questiona- mento sobre a propriedade de existir “em separado” uma versão feminista deste campo de estudos. Apesar das divergências na reconstituição dessa experiência, o volume Women Take Issue (1978) é considerado o primeiro re- sultado prático de maior envergadura na divulgação dos trabalhos do Women’s Studies Group do CCCS. Na realidade, este seria originalmente o 110 Working Papers in Cultural Studies, sendo que nas suas edições anteriores somente pouquíssimos artigos preo- cupavam-se com questões em torno da mulher.18 Embora somen- te algumas pesquisadoras estivessem em contato mais intenso com o Women’s Liberation Movement, que tinha surgido no final dos 60, revelava-se aí uma primeira tentativa de realizar um trabalho intelectual feminista. A preocupação original deste coletivo era ver como a catego- ria “gênero” estrutura e é ela própria estruturada nas formações sociais. “Argumentávamos que a sociedade deveria ser compreen- dida, em sua constituição, através da articulação sexo/gênero e antagonismos de classe, embora algumas feministas priorizassem a divisão sexual em suas análises” (1978, p. 10). 40 Num primeiro momento, o desafio foi examinar as imagens das mulheres nos meios massivos (1974) e, a seguir, o debate travou-se em torno da temática do trabalho doméstico. Mais especificamente, tal mudança foi vista como uma tentati- va de considerar a relação entre classe e subordinação da mulher em um nível teórico. Porém, de certa forma, tal mudança foi um passo seguinte ao artigo ‘Images’. Junto à mulher como objeto sexual, estava a mulher como mãe e dona-de-casa, que nós entendíamos ser a imagem básica e determinante nos meios de comunicação. De forma mais geral, este trabalho representava um engajamento educativo com as difíceis categorias econômicas do marxismo. (1978, p. 13, grifo meu) Grande parte da contribuição deste coletivo reside neste últi- mo aspecto. Embora esse livro tenha dado visibilidade a uma produção intelectual em torno de um projeto feminista, mostrou também as diferenças e fragilidades existentes no grupo. Mesmo assim, de- marcou uma área de atuação com especificidade dentro do cam- po acadêmico, servindo para delinear novos objetos de estudo. Somos um grupo de mulheres e homens que produziram, juntos, este livro com idéias diferentes do que é e deveria ser o trabalho intelectual feminista. Isso depende parcialmente da maneira pela qual entendemos ‘feminismo’ e ‘trabalho intelectual’ como práti- cas políticas (e de suas relações).Todos consideramos que o traba- lho intelectual feminista é um engajamento, tanto intelectual quanto político, no âmbito do próprio trabalho intelectual. Possu- ímos opiniões diferentes, porém, em relação a se isso é, em si, uma prática política adequada, e se a adequação política é um critério relevante e direto para o trabalho intelectual. Quanto ao relaciona- mento entre marxismo e feminismo, temos abordagens diferentes em termos de prática política. Divergimos sobre o que o feminis- mo é, no que concerne aos homens poderem ou não ser feminis- tas. Além disso, nossas opiniões também são diferentes quanto à idéia de devermos estar nos dirigindo primordialmente a homens ou mulheres, e se é possível nos dirigirmos a ambos simultanea- mente, nos mesmos termos. (1978, p. 13) 41 É dessa forma que se estabelece o encontro com a produção feminista. Apesar da polêmica em torno da forma como tal se efetuou, este foco de atenção propiciou novos questionamentos em redor de questões referentes à identidade, pois introduziu novas variáveis na sua constituição, deixando-se de ver os processos de construção da identidade unicamente através da cultura de classe e sua transmissão geracional. Na avaliação da Michael Green, “se há um tema que possa ser identificado na primeira fase dos estudos culturais, é o da cultura como espaço de negociação, conflito, inovação e resistên- cia dentro das relações sociais das sociedades dominadas pelo poder e fraturadas por divisões de gênero, classe e raça” (GREEN, 1996b, p. 125). Em suma, no período de maior evidência do CCCS acres- centa-se ao seu interesse pelas subculturas às questões de gênero e, logo em seguida, as que envolvem raça e etnia.19 Além, é claro, como já foi anotado, a atenção sobre os meios de comunicação. A partir dos anos 80, há indícios de que a importância do CCCS como pólo de difusão da proposta dos estudos culturais começa a arrefecer, isto é, começa a ser observada uma força de descentralização. Durante esse processo, nota-se a expansão do projeto dos estudos culturais para outros territórios, para além da Grã-Bretanha, ocorrendo mutações importantes, decorrentes, prin- cipalmente, de uma observação sobre a desestabilização das iden- tidades sociais, ocasionada, sobretudo, pela aceleração do processo de globalização. O foco central passa a ser a reflexão sobre as novas condições de constituição das identidades sociais e sua re- composição numa época em que as solidariedades tradicionais estão debilitadas. Enfim, trata-se de uma ênfase à dimensão subje- tiva e à pluralidade dos modos de vida vigentes em novos tempos – ‘New Times’ (HALL, 1996g). Armand Mattelart e Eric Neveu (1997, p. 131) sugerem que um dos fatores- chave nesta orientação se refere a uma redefini- ção das modalidades de análise dos meios de comunicação social. “Se existiu uma ‘virada’ no início da década dos anos 80, consis- tiu em prestar uma atenção crescente à recepção dos meios de comunicação social, tratando de operacionalizar modelos como o da codificação-decodificação”. 42 Vale lembrar, no entanto, que a incorporação do modelo de Hall, num primeiro momento, desembocou em estudos do âmbi- to do ideológico e do formato da mensagem, sobretudo, da televi- siva. Ainda o poder do texto sobre o leitor/espectador domina esta etapa de análise dos meios, embora desafie a noção de textos mediáticos enquanto portadores “transparentes” de significados, rompendo, também, com a concepção passiva de audiência. É exemplar a esse respeito o trabalho de Morley e Brundson (1978) sobre o programa Nationwide que a seguir é levado em frente num estudo específico de audiência (MORLEY, 1980b). No contexto britânico, a trajetória de pesquisa de David Morley exemplifica o deslocamento da análise da estrutura ideoló- gica de programas factuais de televisão em direção aos processos multifacetados de consumo e codificação nos quais as audiências estão envolvidas. A primeira pesquisa envolveu uma análise deta- lhada da estrutura interna de uma edição deste programa televisi- vo de sucesso na época junto à sociedade britânica. Já The Nationwide Audience (1980b) é um estudo de audiência considerado o marco inicial de uma área de investigação que se consolida como pró- pria dos estudos culturais. Assim, aos poucos, nos anos 80 vão definindo-se novas mo- dalidades de análise dos meios de comunicação. Passou-se, então, à realização de investigações que combinam análise de texto com pesquisa de audiência. São implementados estudos de recepção dos meios massivos, especialmente, no que diz respeito aos pro- gramas televisivos. Também são alvo de atenção a literatura popu- lar, séries televisivas e filmes de grande bilheteria.20 Todos estes tratam de dar visibilidade à audiência, isto é, aos sujeitos engaja- dos na produção de sentidos. Também há um redirecionamento no que diz respeito aos protocolos de investigação. Estes passam a dar uma atenção crescente ao trabalho etnográfico. A importância que a etnografia assumiu nas análises da re- cepção, funcionando como uma forma de relativizar os achados da tendência anterior marcada pela crítica ideológica, precisa ser sumariamente avaliada. Ao operar no ponto de encontro onde determinadas condições sociais transformam-se em con- dições especificamente vividas, trabalha-se por dentro de frontei- 43 ras. Nesse estreito espaço, de difícil acesso, corre-se o risco per- manente de celebrar as resistências ao reconhecer que as audiên- cias respondem ativamente às formas culturais massivas, principalmente, se for levado em consideração o trabalho anteri- ormente executado de “desmistificar, denunciar e condenar” o poder dos meios sobre a audiência. Embora seja plausível a consideração de que a audiência estabelece uma ativa negociação com os textos mediáticos e com as tecnologias no contexto da vida cotidiana, esse posiciona- mento pode tornar-se tão otimista que perde de vista a margina- lidade do poder dos receptores diante dos meios. A euforia com a vitalidade da audiência e por sua vez com a cultura popular fez com que esta fosse entendida como um espaço autônomo e re- sistente ao campo hegemônico. Algo que aconteceu com várias das pesquisas dessa época. No contexto dos estudos de audiência, uma avaliação crítica dos resultados obtidos nesse tipo de investigação reivindica: “O que uma etnografia crítica das audiências dos meios de comuni- cação precisa esmiuçar, então, é a não reconhecida, inconsciente e contraditória efetividade do hegemônico dentro do popular, as rela- ções de poder que estão inscritas no interior da textura das práticas de recepção” (ANG, 1996, p. 245). Para tanto, o entendimento da concepção de hegemonia não pode permanecer no nível teórico- abstrato. É necessário dar conta de alcançar um sentido concreto das forças hegemônicas que regem o mundo atual. A mesma au- tora conclui: “Precisamos ir além dessas conceitualizações para- digmáticas de hegemonia e desenvolver um sentido de hegemonia mais específico, concreto, contextual, em resumo, mais etnográfi- co” (grifo meu). Posição semelhante é reivindicada por McRob- bie (1992, 1994). Nos anos 90, este leque de investigações sobre a audiência procura ainda mais enfaticamente capturar a experiência, a capa- cidade de ação dos mais diversos grupos sociais vistos, principal- mente, à luz das relações da identidade com o âmbito global, nacional, local e individual. Questões como raça e etnia, o uso e a integração de novas tecnologias como o vídeo e a TV, assim como seus produtos na constituição de identidades de gênero, de classe, 44 bem como as geracionais e culturais, e as relações de poder nos contextos domésticos de recepção, continuam na agenda, princi- palmente, das análises de recepção.21 Destacam-se, como ênfases mais recentes neste tipo de estudo, os recortes étnicos e a incor- poração de novas tecnologias. Em relação às estratégias metodo- lógicas, estas redundam na etnografia e na observação participante embora possam parecer mais diversificadas – (auto)biografias, depoimentos, histórias de vida. De maneiras variadas, esses estudos de audiências estão preocupa- dos em situar as leituras e práticas dos meios de comunicação den- tro de redes complexas de determinações, não apenas dos textos, mas também daqueles determinantes estruturais mais profundos, como classe, gênero e, ainda, em menor grau, raça e etnia. Estes estudos também iluminam os caminhos em que se intersectam e são vividos os discursos públicos e privados, nas práticas rotinei- ras e íntimas da vida cotidiana. Além disso, a maioria reflete sobre os métodos de pesquisa e, especialmente, sobre a localização do pesquisador ou pesquisadora em seu estudo [...]. Desta forma, apesar de sua pequena escala, cada um deles, de maneiras diferen- tes, coloca questões mais amplas de estrutura e atuação dentro do mundo socialmente estruturado das práticas e da subjetivida- de, e muitos refletem sobre o contexto institucional da própria pesquisa. (GRAY, 1999) Enfim, estes estudos dos anos 90 revelam alguns dos objeti- vos que, com diferentes ênfases, continuarão sendo perseguidos pela linha de investigação de audiências. Ainda é cedo para elabo- rar um balanço deste último período, é possível apenas identificar as tendências recém citadas. Aqui se enfatizou esta orientação na análise dos meios de comunicação de massa – a recepção – porque a finalidade é refle- tir sobre a comunicação mediática como clivagem dentro do am- plo espectro proposto pelos estudos culturais. Tal fato, de forma alguma, implica restringir o objeto de estudo deste campo em torno desta temática. Ao contrário, cada vez mais o objeto de investigação se diversifica e se fragmenta. Contudo, no ponto de encontro destas duas frentes, comunicação e estudos culturais, 45 identifica-se uma forte inclinação em refletir sobre o papel dos meios de comunicação na constituição de identidades, sendo esta última a principal questão deste campo de estudos na atualidade. Resta dizer que, se originalmente os estudos culturais po- dem ser considerados uma invenção britânica, hoje, na sua forma contemporânea, tornaram-se uma problemática teórica de reper- cussão internacional. Não se confinam mais à Inglaterra e Europa nem aos Estados Unidos, tendo se alastrado para a Austrália, Ca- nadá, Nova Zelândia, América Latina e também para a Ásia e África22. E é especialmente significativo afirmar que o eixo anglo- saxão já não exerce mais uma incontestável liderança desta pers- pectiva. A observação contemporânea de um processo de estilhaçamento do indivíduo em múltiplas posições e/ou identida- des transforma-se tanto em tema de estudo quanto em reflexo do próprio processo vivido atualmente por este campo: descentrado geograficamente e múltiplo teoricamente. A CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA OU UMA VERSÃO LATINO-AMERICANA No han sido sólo los paradigmas, sino los tercos hechos, los procesos sociales de América Latina, los que nos están cambiando el ‘objeto’ de estudio a los investigadores de comunicación. Jesús Martín-Barbero A partir do panorama histórico, esboçado anteriormente, sobre o surgimento dos estudos culturais na Inglaterra, aponta-se como entendimento-síntese para o termo sua ênfase à ação social. Relacionada com essa marca, identifica-se, também, como carac- terística fundamental dessa perspectiva, a importância dada ao contexto, o foco localizado e historicamente específico, a atenção às especificidades e particularidades articuladas a uma conjuntura histórica determinada, produzindo, então, uma teoria engajada nas diferenças culturais. Tudo isso relacionado à pertinência da investigação de práticas e formas simbólicas que tinham sido, até aquele momento – virada dos anos 50 para os 60, excluídas da 46 esfera cultural ou que não eram vistas com suficiente legitimidade cultural para tornarem-se objeto de estudo. Dessa forma, os estudos culturais na América Latina, assim como os da Austrália, Canadá e Estados Unidos, entre outros, também têm um desenvolvimento singular. Destaco, pois, essas peculiaridades tendo como ponto de partida a tradição britânica, mas sem excluir outras versões de estudos culturais. Delineio, também, o contexto em que emergem os estudos culturais latino- americanos a fim de oferecer um mapa provisório onde se locali- za, insere-se e tem suas raízes uma determinada proposta de análise cultural da comunicação.23 Destacam-se, assim, tendências gerais de tal proposta, sendo que algumas, embora não tenham relação direta com os dois autores latino-americanos estudados neste li- vro, Néstor García Canclini e Jesús Martín-Barbero, estendem sua abrangência à perspectiva como um todo. Apesar de suas singularidades, existem afinidades entre um corpo teórico-metodológico de análise cultural que emerge nos anos 80 neste contexto particular e um movimento que germina na Inglaterra, no final dos anos 50, e vai se espraiando. Isso ajuda a esclarecer posicionamentos assumidos por intelectuais latino-americanos num conjunto de trabalhos em relação a um debate internacional efervescente que vem ocorrendo no último período, bem como permite mostrar sua contribuição particular aos impasses, questionamentos e críticas ao desenvolvimento dos estudos culturais. Diante de uma certa resistência em definirem-se como prati- cantes de estudos culturais, é somente nos anos 90, e de forma ainda bastante tímida, que alguns poucos pesquisadores latino- americanos começam a identificar-se – ou ser identificados por investigadores estrangeiros que tomam a América Latina como objeto de estudo – com esta perspectiva.24 Se o receio é de que essas afinidades descaracterizem a independência e autonomia da perspectiva latino-americana, afirma-se que, ao contrário, reve- lam integração e sintonia com um movimento teórico maior e um diálogo frutífero com o que ocorre além das fronteiras do territó- rio latino-americano. Sem que isso indique vassalagem ou xeno- fobia da América Latina a modas teóricas das metrópoles. 47 As indicações de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Can- clini como figuras-chave na constituição da perspectiva dos estu- dos culturais em solo latino-americano são unânimes nos relatos encontrados (Davies, 1995; Golding e Ferguson, 1997; Fox, 1997; O’Connor, 1991; Yúdice, 1993b; Lull, 1998; López de la Roche, 1998). Outros nomes vão somando-se: Carlos Monsiváis, Jorge González, Guillermo Gómez Orozco, Rossana Reguillo (Méxi- co); Guillermo Sunkel, José Joaquín Bruner (Chile); Renato Or- tiz (Brasil); Beatriz Sarlo, Aníbal Ford (Argentina); Rosa Maria Alfaro (Peru), entre outros. De forma ainda genérica, toma-se, como ponto de partida, a análise de formas culturais contemporâneas num determinado es- tágio do capitalismo, formulando respostas particulares à inser- ção das indústrias culturais na vida cotidiana. O que a Inglaterra experiencia, no final dos anos 50, a América Latina passa a viven- ciar acentuadamente nos anos 70.25 Em meados da década de 80, a configuração da pesquisa em comunicação revela nítidos sinais de mudança, que têm origem não somente em deslocamentos internos ao próprio campo, mas, também, num movimento mais abrangente das ciências sociais como um todo. O debate sobre a modernida- de, o horizonte marxista vigente na época e a questão da glo- balização obrigaram a repensar a trama teórica vigente. “Os deslocamentos com os quais se buscará refazer conceitual e metodologicamente o campo da comunicação virão do âmbito dos movimentos sociais e das novas dinâmicas culturais, abrin- do, dessa forma, a investigação para as transformações da ex- periência social” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 29). Levando em consideração esse pano de fundo, os estudos culturais questionam a produção de hierarquias sociais e políticas a partir de oposições entre tradição e inovação, entre a grande arte e as culturas populares, ou, então, entre níveis de cultura – por exemplo, alta e baixa, cultura de elite e cultura de massa. A conseqüência natural desse debate é a revisão dos cânones estéti- cos ou mesmo de identidades regionais e nacionais que se apre- sentam como universais ao negarem ou encobrirem determinações de raça, gênero e classe. 48 Tal tipo de análise, a exemplo da tradição britânica dos estu- dos culturais, traz a marca da multidisciplinaridade ou o senti- mento de que o suporte de uma única disciplina não dá conta da complexidade do momento em foco. “Mais decisiva, sem dúvida, que a tematização explícita de processos ou aspectos da comuni- cação nas disciplinas sociais é a superação da tendência a destinar os estudos de comunicação a uma disciplina e a consciência cres- cente de seu estatuto transdisciplinar” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 29), o que pode ser ilustrado, ainda que distante da representati- vidade de uma hegemonia teórico-metodológica, com a obra de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini. O primeiro inicia sua trajetória na filosofia. Passa um perío- do trabalhando com semiótica e, posteriormente, chega às rela- ções entre comunicação e cultura. A partir de um curso de semiótica, ministrado na Universidad del Valle (Cali-Colômbia), no início da década de 70, com o propósito de propiciar ferra- mentas que permitissem aos estudantes entender os processos de comunicação cotidiana, foi aproximando-se e formulando uma metodologia que permitia relacionar o estudo da significação, ou melhor, “a produção do sentido com os próprios sentidos” (grifo meu). Dessa forma, passou a repensar a comunicação a partir das práticas sociais. Dei-me conta da necessidade que existia de uma teoria que não se restringisse ao problema da informação. Não obstante, percebia a importância capital que havia adquirido a informação na socieda- de; via, também, que para a imensa maioria das pessoas a comuni- cação não se esgotava nos meios. […] O problema não era de falta de lógica ou coerência a uma teoria pensada em termos de emissor, mensagem, receptor, código, fonte… O problema era que tipos de processos comunicativos podiam ser pensados a partir daí. Onde estava o emissor numa festa, num baile, num sacramento religio- so?, questionava-me. Onde estavam a mensagem e o receptor? O que existia de comunicação numa prática religiosa não tinha mais a ver com outros modos, com outras dimensões da vida, com outras experiências que desbordam por completo as explicações da teoria da informação? Foi aí que percebi com clareza que falar de comunicação era falar de práticas sociais e que, se queríamos 49 responder a todas essas perguntas, tínhamos que repensar a comu- nicação a partir dessas práticas. (MARTÍN-BARBERO, 1995a, p. 14) O percurso acadêmico de Néstor García Canclini também tem sua base fundamental na filosofia. Entretanto, na sua trajetó- ria, este campo de conhecimento aparece sempre tecendo rela- ções com outros territórios disciplinares, principalmente, das ciências sociais. “Na Argentina, trabalhei com questões relacio- nadas à sociologia da arte, e, mais tarde, minha atenção voltou-se à antropologia e à literatura, até minha chegada ao México. En- tão, como se pode ver, minha atenção voltava-se principalmente aos textos (grifo meu). Contudo, desde minha chegada ao México, comecei a me envolver muito mais com o trabalho de campo (grifo meu), primeiro em Michoacán, depois na Cidade do México, Tijuana e em outros lugares. Para mim, deveria haver um diálogo constante entre as duas dimensões [teoria e pesquisa empírica]” (GARCIA CANCLINI citado por MURPHY, 1997, p. 81). Embora possa ser dito que desde seu início os estudos dos meios massivos tenham tido uma inflexão multi ou interdiscipli- nar26, a combinação construída pelos estudos culturais é particu- lar. Os estudos culturais propõem um olhar interdisciplinar que entende os processos culturais como interdependentes e não como fenômeno isolado, como é a prática usual da maioria das disci- plinas. Essa interdependência caracteriza uma relação dinâmica com outras esferas, principalmente com a estrutura ou os pro- cessos produtivos. O interesse central dos estudos culturais é perceber as inter- secções entre as estruturas sociais e as formas e práticas culturais. Assim, a análise dos meios de comunicação pelo prisma dessa perspectiva, na América Latina, é vista como comunicação, mas em relação à cultura e aos processos políticos, isto é, como parte da problemática do poder e hegemonia. Daí a razão de observar os processos de comunicação com uma forte referência nas ciên- cias sociais, constituindo uma vertente singular de estudos cultu- rais com forte atenção na base social dos processos culturais27 . Foi se constituindo, então, uma preocupação fundamentalmente sociológico-cultural. 50 Esse traço não impediu, no entanto, que o locus de surgimen- to dos estudos culturais latino-americanos seja o ambiente acadê- mico. Mas mesmo aí seu espaço é relativamente precário em comparação com o rápido processo de institucionalização que ocorreu na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá e na Aus- trália, para citar os casos mais conhecidos. Na América Latina, eles sobrevivem como uma tendência dentro de um departamento acadêmico através de posicionamentos isolados ou de um coletivo de pesquisadores, outras vezes como linha de pesquisa de progra- mas de pós-graduação ou mesmo como projetos de investigação interdisciplinar.28 Embora a vertente latino-americana tenha emergido e se lo- calizado preferencialmente no âmbito acadêmico, surge entrela- çada com um momento conjuntural de redemocratização da sociedade e de observação intensa da ação dos movimentos sociais da época. As profundas alterações que vêm ocorrendo na vida social dirigem o olhar dos intelectuais que individualmente têm elaborado análises críticas sobre a vida social e cultural contempo- rânea. É esse tipo de engajamento político que se dá nos estudos culturais latino-americanos e os diferencia tanto do momento ini- cial da vertente britânica quanto do seu desenvolvimento em solo norte-americano.29 Além disso, conta também para sua emergência a estrutura- ção de um nexo entre um contexto histórico e as teorias circulan- tes no campo intelectual, reveladas pelo universo conceitual utilizado nas pesquisas desse momento. De modo especial, inte- ressa destacar a passagem de um marxismo determinista para um marxismo de corte gramsciano. No primeiro, era imperativo explicar e analisar os conflitos através de uma única contradição: a diferença de classe. Isso impe- dia de pensar a pluralidade de matrizes culturais, a diversidade cul- tural. A flexibilização dessa lógica permitiu o redesenho das relações entre cultura e classe social. O redefinido é tanto o sentido de cultu- ra quanto o de política, permitindo (re)descobrir as culturas popu- lares e a constituição de identidades.30 Isso em grande medida se deve à incorporação de parte do pensamento gramsciano. 51 Enfim, para abordar a constituição do objeto de estudo desta perspectiva, é válido resgatar as principais marcas da pesquisa em comunicação, registradas num passado bem próximo. Inúmeros autores trabalham na sistematização das tendências da pesquisa neste campo. Aqui, apenas recupero marcas que trazem uma for- te conexão e desembocam na constituição da perspectiva dos es- tudos culturais.31 Num sintético balanço da pesquisa em comunicação na Améri- ca Latina, quatro grandes áreas de análise surgem como marcantes: Influência da política econômica internacional no desenvolvimento cultural dependente; Políticas dos meios de comunicação e, sobretu- do, a democratização da comunicação; Comunicação popular/alter- nativa como base da democratização da comunicação; Papel dos meios massivos na transformação das culturas nacionais. As três primeiras são marcantes de um período mais ou menos definido entre 1970 e início dos 80.32 A quarta problemática passa a ser mais desenvolvida a partir de meados dos 80. Alterações do contexto sócio-político-econômico que tomam forma ainda na década de 70 contribuem para que surja essa última tendência na pesquisa em comunicação. No nível regional, a re- pressão desencadeada pelos governos militares, que proliferaram nessa época na América Latina, e a posterior articulação da socie- dade civil em combate ao autoritarismo e, no nível internacional, o próprio momento histórico e a movimentação do campo intelectu- al, no que se refere às formas de pensar a cultura, desestabilizaram as teorias dominantes na pesquisa em comunicação. Um fator que contribuiu de forma imperativa para a reavalia- ção dos modelos de análise foi a atenção que mereceu a efervescên- cia do meio social latino-americano. Expandiram-se movimentos sociais que levaram adiante lutas contra a repressão e a discrimina- ção e, também, mobilizações dos setores populares da sociedade que lutavam pela apropriação de bens e serviços e pressionavam o sistema político a atender suas demandas sociais. Essas mobilizações e tais movimentos sociais politizaram questões antes consideradas privadas, introduzindo uma série de mudanças na vida cotidiana das pessoas (cf. CARDOSO, 1985; 52 GARCÍA CANCLINI, 1985). A novidade dessas lutas populares reve- lou-se no âmbito do sociopolítico ao compor um quadro de lutas pelo direito de organização e de participação, fissurando o po- der autoritário. Associações comunitárias, clubes de mães e de jovens, co- munidades eclesiais de base, movimentos em defesa da moradia, do meio ambiente, dos direitos humanos, o movimento feminis- ta, o negro e outros de existência bem localizada fizeram com que o campo das reivindicações se ampliasse. Passaram a entrar em cena interesses que extrapolavam o mundo estrito do trabalho, despertando outras dimensões da cultura. O surgimento desses novos atores sociais colocou em xeque a cultura política tradicional. O reconhecimento dessas experiências coletivas, que incluíam práticas do viver cotidiano e interesses situa- dos num campo mais vasto do que o da produção, renovaram o âmbito do político. Diante dessa conjuntura política e cultural, fez-se necessário abandonar uma concepção de transnacionalização como mera es- tratégia de imposição cultural que desconhecia os modos de apro- priação e ressignificação das mensagens hegemônicas, isto é, os usos que os diversos grupos sociais fazem dos meios e dos produ- tos massivos. Assim, a investigação exemplificada pela teoria da dependência cultural e leitura ideológica das mensagens dos mei- os de comunicação passou a ser questionada na passagem dos anos 70 para os 80. Nos anos oitenta, no plano econômico-social, nota-se uma alteração no desenvolvimento do capitalismo em que se ressalta a globalização econômica. O plano político sente os efeitos desse fenômeno, mas, também, emergem aí novas experiências que sur- gem dos processos de redemocratização da América Latina, isto é, há um reconhecimento de experiências coletivas não enquadra- das em formas partidárias.33 No plano cultural, verifica-se a con- solidação de um mercado de bens simbólicos tanto nas fronteiras nacionais quanto nas relações que se estabelecem com as demais indústrias culturais, da América Latina e fora dela, ou seja, mani- festa-se a globalização cultural. 53 Na convergência do processo de globalização com o movi- mento de profunda transformação do político, uma valorização diferente do que pode ser considerado cultural germina. Tal pano- rama problematiza a idéia de dominação, vigente até o momento, e traz conseqüências para a discussão da questão da identidade da América Latina. E mais: “é a própria categoria de fronteira a que perdeu suas referências e com ela a idéia de nação que inspirou toda uma configuração do cultural” (MARTÍN-BARBERO, 1995b, p. 173). É nesse contexto de crise do âmbito da Nação, da identidade e de paradigmas, em especial aqueles fundamentados em “grandes nar- rativas”, que emerge uma nova valorização do cultural. Esse des- locamento abrange toda a América Latina, resguardadas as particularidades de cada nação. De toda forma, é dentro desse espectro que se inicia a configuração de um olhar que vê a comu- nicação na cultura e se associa aos estudos culturais. Na avaliação de Martín-Barbero (1989a, p. 22), essa propos- ta, ainda que não assuma propriamente a denominação de estu- dos culturais, tem como eixo: a apropriação, isto é, a ativação da competência cultural das pesso- as, a socialização da experiência criativa e o reconhecimento das diferenças, isto é, a afirmação da identidade que se fortalece na comunicação – feita de encontro e conflito – com o outro. A comunicação na cultura deixa, então, de ter a figura do interme- diário entre criadores e consumidores, para assumir a tarefa de dissolver essa barreira social e simbólica, descentrando e desterri- torializando as próprias possibilidades da produção cultural e seus dispositivos. Em outras palavras, isso significa deslocar a idéia de cultura do âmbito estrito da reprodução para o campo dos processos cons- titutivos e transformadores do social. O desafio para os investiga- dores da comunicação é, portanto, construir um discurso – a partir da comunicação – sobre os sujeitos sociais e suas práticas. Embo- ra isso não signifique defender uma posição disciplinar (ou seja, da comunicação enquanto disciplina) nem desconhecer a tendên- cia crescente de multidisciplinaridade. 54 No final da década de 80, Martín-Barbero (1989b) reavalia a movimentação das problemáticas de pesquisa no campo da comu- nicação, salientando a configuração de três grandes áreas: políticas, tecnologias e democracia; indústrias culturais, transnacionalização e culturas populares; e meios, públicos e usos. Nesse momento, um olhar transversal já aponta para pontos de contato entre os possíveis limites destas linhas de investigação, desmoronando as fronteiras antes construídas. De outro lado, estas tendências, também, mos- tram sinais do deslocamento da comunicação para o âmbito da cultura, rompendo barreiras disciplinares. Martín-Barbero percebe esse movimento de espraiamento nas fronteiras do campo da comunicação: Quando, em 1980, tracei um mapa da investigação latino-ameri- cana em comunicação os limites que demarcavam o campo conser- vavam bastante nitidez. Hoje, quase dez anos depois, as fronteiras, as contigüidades e as topografias desse campo não são as mesmas nem estão tão claras. A idéia de informação – associada à inovação tecnológica – ganha legitimidade teórica e operacionalidade, en- quanto a de comunicação faz-se em pedaços ou se desloca e se aloja em campos vizinhos. (MARTÍN-BARBERO, 1989b, p. 140) De forma ainda mais enfática, em 1992, concluía: “[…] a problemática da comunicação desborda hoje as divisas e os esque- mas de nossos planos de estudo e de nossas investigações. O cam- po que, até bem pouco, tinha demarcações acadêmicas nítidas já não é mais o campo da comunicação. Gostemos ou não, outros a partir de outras disciplinas e outras preocupações fazem já parte dele” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 31). Em síntese, uma nova conjuntura sócio-político-econômica e cultural, configurada pela globalização do capital e da política, pela consolidação de indústrias culturais latino-americanas que expandi- ram, inclusive, sua atuação para além das fronteiras nacionais e pelo reconhecimento de sujeitos sociais, que compondo formas di- ferenciadas de mobilização, revelavam plena atividade – embora essas manifestações não atuassem de modo constante e a diversida- de de movimentos indicasse relevâncias distintas (CARDOSO, 1985, p. 121) –, contribuiu para mostrar que o arsenal teórico dominante 55 no campo da comunicação, na América Latina, não estava afina- do para compreender essa realidade. Desse modo, a experiência do popular vinculada ao espaço da comunicação foi a protagonista da emergência dos estudos culturais no contexto latino-americano. Por essa razão, o objeto preferencial de estudo desta perspectiva se concentra no espaço do popular, das práticas da vida cotidiana, fortemente relacionado com as relações de poder e conotação política.34 Esta é uma das singularidades do processo latino-americano que se revela no acen- to do viés sócio-cultural. Disciplinarmente evidenciado no triân- gulo comunicação, sociologia e antropologia. Toda análise deste gênero corre o risco de tornar-se simpló- ria e reducionista, pois, ao tratar de generalizar, perde de vista as particularidades. Digo isso com o intuito de, por um lado, acres- centar que esta perspectiva teórica também estabelece relações com outras disciplinas (por exemplo, história, crítica literária e política35) e, por outro, com o objetivo de demarcar diferenciais em relação à formação de outras trajetórias regionais (por exem- plo, a britânica, que estabelece no período inicial fortes laços com a crítica literária). Ao contrário das trajetórias de estudos culturais que estabe- leceram uma forte relação com análises de textos (a britânica, de certa forma, durante um período, e a norte-americana desde sua origem) e, portanto, uma relação mais intensa com outro grupo disciplinar, os latino-americanos tentam, num primeiro momen- to, gerar competências pertinentes à mudança social. Ou seja, observa-se uma forte tendência social nos estudos culturais lati- no-americanos, percebida não só no momento inicial, mas ain- da com repercussões na atualidade, embora os laços políticos venham atenuando-se. A opção pela análise das práticas sociais do âmbito popular depois de uma fase de concentração nas leituras ideológicas das mensagens dos meios de comunicação é um indicativo de com- promisso social. Metodologicamente, as estratégias qualitativas de pesquisa e, fundamentalmente, a etnografia transformaram-se num instrumento apropriado para levar em frente esta prática de investi- gação. A partir dos anos 80, nota-se tal ênfase metodológica. 56 Justifica-se essa escolha porque a “etnografia reposiciona a teoria de acordo com as condições concretas de existência cultural; [e] processos e negociações modulados através da vida cultural po- dem ser usados para confrontar e redirecionar a teoria”, diz Gar- cía Canclini (citado por MURPHY, 1997). É, ainda, importante salientar, a mudança de enfoque que ocorreu no início dos anos 80, dentro do campo estratégico de investigação da comunicação participativa, alternativa ou popu- lar. Esse eixo de pesquisa – a investigação da comunicação popular – passou a indicar que o alternativo poderia ser alguma coisa produzida no próprio âmbito dos meios massivos embora, de for- ma bem ampla, devesse propiciar que os grupos dominados to- massem a palavra. Martín-Barbero (1984) indica que no espaço do popular po- deriam ser identificados: o popular-memória, isto é, a memória de outra matriz cultural; o popular-massivo, em que o massivo não é exterior ao popular, remetendo-se a dispositivos de enunciação popular; e os usos populares do massivo, quando junto com a lingua- gem do meio se pesquisam os códigos de percepção e reconheci- mento, os dispositivos de enunciação popular em que se expressam confundidos a memória popular e o imaginário de massa.36 É interessante destacar que, do ponto de vista de uma das referências internacionais da economia-política da comunicação, os estudos culturais latino-americanos representam “um acrésci- mo” em relação à prática britânica ou norte-americana, exata- mente por perceberem alterações nas relações entre Estados nacionais, mercados e meios de comunicação. Na América Latina, os especialistas têm traçado, baseados na adap- tação e transformação de uma mistura de produtos culturais po- pulares locais e importados (em grande parte norte-americanos), a imagem característica da prática cultural popular de seus países. Muito da pesquisa e da literatura teórica desenvolveu-se como reação à procura de respostas para questões a respeito dos meios de comunicação e da democracia, bem como da criação de uma esfera pública aberta a mais vozes. [...] Evitando velhos dualismos teóri- cos, no que tange àqueles que detêm o poder e àqueles que não têm poder nenhum, os estudiosos latino-americanos, tais como 57 García Canclini e Martín-Barbero, propõem categorias analíticas como o sincretismo, a hibridação e a mestiçagem [...] para clarificar processos de apropriação, adaptação e vocalização culturais na me- diação entre prática cultural, cultura popular, meios de comunica- ção democráticos e política. (GOLDING E FERGUSON, 1997, p. xvii) Lembre-se que a proposta teórica latino-americana, que entende a comunicação como uma questão de cultura, surge como tentativa de resposta à crise dos paradigmas existentes e, essencialmente, contra o olhar que reduz a comunicação a ex- plicações causais e funcionais. O clima propício para esta mu- dança se dá na passagem dos anos 70 para os 80. Na década de 80, tais posicionamentos disputam espaços e vão se afirmando como uma proposta viável para compreender o papel dos meios, do Estado, e da cultura popular na sociedade; a relação de to- dos esses elementos e o processo de constituição da identida- de, assim como sua articulação com as forças de globalização e desterritorialização. Durante esse período, existe, ainda, um clima bastante poli- tizado em que intelectuais manifestam suas preocupações e ten- tam exercer um papel político em relação ao debate da identidade latino-americana e das culturas nacionais. O desafio é produzir um conhecimento sobre o social que não se traduza somente em renovação de temas, objetos e métodos, mas, sobretudo, em pro- jetos capazes de relacionar o desenvolvimento da comunicação com o fortalecimento a solidariedades e ampliação de formas de convivência cidadã. Aos poucos, um certo desencanto com a atuação dos gover- nos democráticos, o enfraquecimento do papel do Estado diante do avanço acelerado do neoliberalismo, a perda de poder do Esta- do-nação e sua incapacidade de administrar a desigualdade social crescente, assim como de tratar a heterogeneidade cultural e, de outro lado, a diluição da polêmica em torno da identidade nacio- nal, vão esmaecendo os laços políticos. Em termos propriamente de objeto de estudo, é dentro da temática das culturas populares que começam a ser desenvolvidas diferentes abordagens da recepção mediática nos anos 80. Estas configuram o principal ponto de convergência da perspectiva dos 58 estudos culturais, juntamente com o trabalho desenvolvido sobre o consumo cultural, seja ele observado tanto através de uma visão mais abrangente de cultura quanto aquela relacionada com os pro- cessos de constituição e hibridação das identidades.37 São estas as tendências preferenciais de investigação dos estudos culturais lati- no-americanos do final dos anos 80. Convém, aqui, ressaltar algumas semelhanças e diferenciações teórico-metodológicas deste desenvolvimento dos de outras trajetó- rias regionais. Dentro do âmbito dos estudos de recepção, a passa- gem das análises concentradas ainda no texto para a descoberta do sujeito-receptor desembocou numa certa obsessão com as “leituras negociadas”, ocasionando no limite a celebração da resistência do receptor, antes visto como mero ente passivo. Esta crítica é extensi- va tanto as análises latino-americanas quanto às anglo-americanas, tendo vigência contemporânea também para ambas. Nos estudos de audiência anglo-americanos, observa-se uma forte influência do instrumental semiológico que contribui para a análise da mensagem que está sendo consumida pelos receptores em foco. Já na América Latina, não há evidências que sinalizem essa incorporação. Ao contrário, os estudos de recepção, de certa forma, manifestavam, fundamentalmente, nos anos 80 e início dos 90, uma crítica contundente a esse instrumental, criando um ambiente propício para a concentração das análises nos relatos dos próprios receptores. A adoção da etnografia como principal estratégia metodoló- gica nos estudos de recepção, tanto no contexto latino-americano quanto no anglo-americano, transformou-se num ritual implemen- tado na grande maioria das investigações incluídas na perspectiva dos estudos culturais, o que provoca certas deformações nessa proposta metodológica.38 A tradição etnográfica tem ligado os estudos culturais a uma ênfase descritiva e a um certo empirismo. Mesmo assim, a op- ção etnográfica vem cada vez mais ganhando popularidade mas, oportunamente, vem se realizando, também, algumas reflexões metodológicas sobre suas implicações, nas análises de audiên- cia.39 O desafio reside, a despeito desse tipo de posicionamento, 59 em extrapolar e transcender o pensamento que se esgota no dado empírico (REGUILLO, 1997). Para os estudos culturais como um todo, interessa, em pri- meiro lugar, especificar o que caracteriza seu objeto de estudo, considerado de forma genérica dentro da idéia de “atividade da audiência”. Esta deve ser vista em relação aos processos e estrutu- ras sócio-políticos, isto é, em relação aos processos estrutural e cultural através dos quais a audiência é constituída. Desta forma, a aproximação à “atividade da audiência” está sempre relacionada com operações do poder social, isto é, como as relações de poder estão organizadas dentro de práticas diversas e heterogêneas de consumo dos meios. Uma outra consideração importante no “fazer” investigação dentro dos estudos culturais, no âmbito da audiência, é o prevale- cimento da idéia de que pesquisar significa construir “interpreta- ções”, certos modos de compreender o mundo, sempre historicamente localizados, subjetivos e relativos. Levando em consideração essa premissa, o material obtido diante de práticas metodológicas etnográficas não pode ser entendido, à moda posi- tivista, como um dado natural. Ressalta-se que muitas vezes tal princípio não é observado. Por outro lado, isso tem implicações na posição que o pes- quisador assume diante de seu objeto. Nessa situação, o pesquisa- dor já não é mais um observador neutro, mas alguém cujo trabalho é produzir conhecimentos tanto his- toricamente quanto culturalmente específicos, que são resulta- dos de um igualmente específico encontro entre o pesquisador e os informantes, encontro em que a subjetividade do pesquisa- dor não está separada do objeto que estuda. As interpretações produzidas nesse processo nunca podem ser consideradas defini- tivas: pelo contrário, são necessariamente incompletas (pois sem- pre envolvem simplificação, seleção, e exclusão) e temporárias. (ANG, 1989, p. 105)40 Enfim, o pesquisador é, ele próprio, um sujeito político e moral, responsável socialmente pelo mundo onde vive. Esta con- dição coloca-o em interfaces diversas, redirecionando-o a tomar a 60 cultura “como um domínio essencialmente hermenêutico – um dos ‘discursos’, ‘sentidos’, ‘narrativas’, e assim sucessivamente – que o crítico não somente ‘estuda’, mas interpreta e até ‘ressig- nifica’” (LARSEN, 1996, p. 137). É uma decorrência que as rela- ções entre pesquisador-pesquisado tornem-se elas próprias temáticas de atenção. A reflexividade, entendida como “pensar o pensamento com o qual pensamos” (IBÁÑEZ apud REGUILLO, 1997, p. 136), é condi- ção para dotar de potência explicativa a investigação em comuni- cação. Que ela exista, no contexto latino-americano, por exemplo através de reflexões de Martín-Barbero,41 García Canclini, Lopes, Reguillo, entre outros, não quer dizer que não necessite ser im- plementada ainda mais. Se, por um lado, a questão da reflexividade necessita ocupar um espaço importante na pauta das discussões deste campo de estudos, de outro, é tarefa urgente adensar a investigação empíri- ca. Especificamente no que diz respeito à pesquisa da recepção, à primeira vista podem ser identificados dois grandes eixos: um relacionado as negociações que se estabelecem entre textos medi- áticos e espectadores/audiência e outro referente às multi-varia- das formas pelas quais nós, espectadores, nos constituímos através do consumo mediático. E é exatamente nessa constituição dos sujeitos através dos processos de recepção e consumo que se nota uma diferenciação importante entre as investigações latino-americanas e as anglo- americanas. Nestas últimas, adquire especial importância o en- contro entre estudos culturais e feminismo, o que não se observa na América Latina, embora exista uma preocupação em focalizar questões em torno da mulher. É possível identificar contribuições originais a partir do de- senvolvimento da perspectiva feminista, num primeiro momento, nos estudos culturais britânicos. O olhar feminista desafiou os estudos dos meios que até então vinham sendo feitos, nos quais apenas valorizavam-se programas noticiosos e de caráter político e público, incluindo, então, análises sobre telenovelas e outros gêne- ros considerados mais “femininos”. A família foi identificada como um importante espaço de apropriação de produtos culturais, abrindo 61 caminho para investigações inovadoras sobre as conexões entre vida privada e pública. Enfim, essa perspectiva desafiou a centralidade da categoria “classe social” na interpretação dos processos de dominação, in- serindo a questão do gênero. Em termos de método, a preocupa- ção com a perda da experiência ou agência no discurso analítico, fez com que as feministas utilizassem cada vez mais metodologias que resgatam esse âmbito – a (auto)biografia, o depoimento, a história de vida, entre outras.42 De um modo geral, a atenção no momento da recepção con- tinua sendo fundamental em relação a duas problemáticas mais amplas. Uma delas abrange a temática do sujeito, da subjetivida- de e da intersubjetividade, enquanto a outra se interessa pela inte- gração de novas modalidades de relações de poder na problemática da dominação. É dessa forma que se estabelece o encontro com a produção feminista. Esta propiciou novos questionamentos em torno de questões referentes à identidade, pois introduziu novas variáveis na sua constituição, deixando de ver os processos de construção da identidade unicamente através da cultura de classe e sua trans- missão geracional. Mais tarde, acrescentam-se às questões de gê- nero, as que envolvem raça e etnia. Estas últimas vem sendo desenvolvidas nos estudos de recepção a partir dos 90. Com essa digressão pode-se avaliar essa mesma conexão en- tre feminismo e estudos culturais no território latino-americano. Na América Latina, os estudos de recepção dão especial atenção à espectadora feminina, principalmente, de televisão. Alguns, de for- ma proposital; outros, nem tanto. De todo modo, muitas investiga- ções tomam a mulher como informante primordial: seja mulher de classe média ou popular; seja no papel de doméstica, de operária, de dona de casa; seja na função de mãe como agente social de peso na interação com os filhos e, por sua vez, na recepção da televisão. Discute-se se as mulheres controlam ou não a programação televi- siva no ambiente familiar e doméstico, discutem-se suas preferên- cias em termos de gêneros, entre outras questões.43 Existiria uma razão especial para tal concentração? A audiên- cia não é composta apenas por mulheres, inclusive, aquela que 62 assiste programas tidos como “femininos”, sobretudo, as teleno- velas. Seria a mulher uma informante mais competente diante das narrativas masculinas de “falta de tempo” para conversar sobre a televisão ou de “aparente descaso” quando o tema é novela? Estas e outras questões em torno desta preferência “casual” ou “delibe- rada” ainda não foram fruto de atenção, bem como não foram investigadas as razões para tal composição de amostragens. À primeira vista, os estudos de recepção latino-americanos tomam a mulher como variável de gênero, mas apenas como mais um indicador entre os índices socioeconômico, geracional e etnia (quando este último é incorporado). A condição feminina não tem sentido estrutural na articulação da sociedade, não tem um significado social concreto no nível da estruturação social, por isso não merece nenhum destaque no âmbito teórico, não é pro- blematizada e nem tem densidade teórica.44 Embora esses mes- mos estudos tenham permitido conhecer o universo cultural das mulheres, revelando o contexto no qual recebem as mensagens mediáticas e quais os usos que fazem dessas narrativas dentro de sua vida cotidiana. O fato é que parece não existir uma inflexão feminista nos estudos culturais latino-americanos que, aqui, estão em questão (cf. YÚDICE, 1993b; García Canclini na sua entrevista a Murphy, 1997). Geralmente, no caso dos estudos de recepção, as preocu- pações em torno da condição da mulher se dão em referência a um contorno mais amplo, sobretudo, o de classe social. Assim, também, no contexto latino-americano pode-se ob- servar uma atenção crescente à temática das identidades num pano de fundo de intensa fragmentação do sujeito. Quase no final dos anos 90, a tendência geral que se esboça, aborda a constituição de identidades e representações, na qual o poder é entendido quase que exclusivamente como uma função de manipulação simbólica. Por sua vez, os diferentes grupos sociais e suas identidades pas- sam a ser vistos mais como resultado do consumo simbólico, es- maecendo-se os laços com os processos produtivos. A tradição ensaística também caracteriza os estudos cultu- rais latino-americanos de hoje. A meu ver, o aspecto negativo deste tipo de narrativa é o uso recorrente a metáforas que obscu- 63 recem as particularidades do processo. O risco é compor posicio- namentos e análises eminentemente retóricos. Por exemplo, pensar a cultura, hoje, pressupõe vê-la como uma realidade que transcende os limites do Estado-nação e que se insere no processo de globalização. No entanto, tal premissa tem validade se permitir compreender o vínculo entre produção sim- bólica e base econômica. Caso contrário, pode transformar-se em mera mistificação. No plano específico da pesquisa em comunicação na Amé- rica Latina, Martín-Barbero (1996a) desenha o que pode confi- gurar o horizonte próximo desse campo. Quatro grandes questi- onamentos afloram: indagações em torno do desordenamento do cultural; questionamentos sobre os processos de mediação de massa da política; problemas em torno da cidade enquanto espa- ço de comunicação; e o âmbito da recepção/uso dos meios e do consumo cultural. Aparentemente todas temáticas de forte cono- tação política. Na realidade, o que esses eixos de investigação estão sinali- zando é que a comunicação como objeto de estudo pode ser defi- nida, em seus termos mais gerais, como as relações, através de suas múltiplas mediações, entre produção de sentido e identidade dos sujeitos nas mais diversas práticas sócio-culturais (FUENTES, 1996). No entanto, a afirmação de identidades diversas e plurais tende a constituir o mundo em termos de identidades tão particu- lares que facilita desaguar num nível muito localizado e domésti- co. E novamente desentrelaçado da trama social, da estruturação geral da sociedade. A questão da relação, em formações sociais específicas, en- tre práticas culturais e outras práticas, isto é, a relação entre o cultural e o econômico, o político e as instâncias ideológicas que caracterizou um deslocamento teórico fundamental na constitui- ção da tradição dos estudos culturais, torna-se assim problemática no atual desenvolvimento dos estudos culturais latino-americanos. Aliado a isso, observa-se o avanço da idéia de descrença no papel propositivo do intelectual. Alguns intelectuais latino-ameri- canos revelam sinais nessa direção. Porém, algumas vozes que 64 crêem nessa missão ainda subsistem em convívio com um destrava- do processo de despolitização dos estudos culturais latino-america- nos. O que se pode perder através desse processo é aquela marca inicial da reflexão latino-americana de pensar a mudança social. E mais um pressuposto essencial para os estudos culturais parece estar em xeque na reflexão de alguns analistas culturais, na atualidade: a crença na ação social. Se os estudos culturais caracterizaram-se por constituir uma perspectiva que enfatiza a atividade humana, a produção ativa da cultura, ao invés de seu consumo passivo e, hoje, tal capacidade começa a ser posta em dúvida, as análises contemporâneas podem estar indicando, de fato, um processo de despolitização dos estudos culturais no contexto latino-americano. Caso essa tendência se concretize, mais uma vez poderá ser identificada a articulação da proposta latino-americana com o movimento mais geral dos estudos cul- turais, pois esse debate já constitui a agenda de discussões inter- nacionais desse campo de estudos. 65 DE IDEOLOGIA PARA HEGEMONIA IDEOLOGIA COMO DOMINAÇÃO Embora se reconheça que o debate teórico dentro da forma- ção da trajetória britânica dos estudos culturais não se deu de forma linear, eliminando passo a passo determinadas concepções, podem ser identificados diferentes enfrentamentos na sua consti- tuição. Convém, agora, recuperar especificamente a constituição de uma abordagem dos meios de comunicação que se dá entre duas aproximações distintas: a culturalista e a estruturalista. Essa construção está, sobretudo, proposta na reflexão de Stuart Hall.1 Do outro lado, observa-se, na América Latina, representada aqui através de Néstor García Canclini e Jesús Martín-Barbero, como a mesma discussão tomou forma. Não obstante, nesta região o tratamento de tal problemática não assumiu tais termos – ou seja, um confronto entre culturalismo versus estruturalismo –, logo, não desencadeou uma proposta de articulação dessas duas perspectivas. Mesmo assim, as questões que tentam ser resolvidas através desse cotejo teórico, situadas, principalmente, em torno da relação entre meios de produção e ideologia, são vivamente tratadas, também, pelos autores latino-americanos, permitindo assim a construção de paralelismos entre as posições de Hall, Martín-Barbero e García Canclini. Os autores citados coincidem na escolha de uma contri- buição teórica singular na tentativa de construir uma resposta mais complexa a tais questionamentos. O ponto de convergência, ou uma possível superação dos problemas postos pelo confronto entre estruturalismo e culturalismo, dá-se, sobretudo, através da incorpo- ração do conceito de hegemonia, de Antonio Gramsci. No centro desta discussão está o que Hall (1982, p. 88) de- nominou de identificação da ideologia aliada ao reconhecimento da importância da significação social e política da linguagem, assim como do signo e do discurso. Nas palavras do autor, esta 66 mudança de posicionamento equivaleria “a re-descoberta da ideo- logia”, no entanto, “seria mais apropriado referir-se ao retorno do reprimido”. Este posicionamento revela a construção de uma abordagem alternativa à teoria dominante, na época, no que diz respeito à comunicação de massa.2 O contorno mais geral em que se dá a construção da proble- mática em torno da ideologia diz respeito às relações entre estu- dos culturais e marxismo. Duas questões são aí primordiais: entender a cultura em relação a estrutura social e sua contingência histórica; assumir que a sociedade capitalista é uma sociedade dividida desigualmente e que a cultura é um dos principais níveis em que esta divisão é estabelecida e, também, contestada. Avançando um pouco mais nesta relação, pode-se afirmar que o campo dos estudos culturais sofre a influência marxista em três vetores. O primeiro é que os processos culturais estão intimamente conec- tados com as relações sociais, especialmente com formações e rela- ções de classe, com divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de geração como uma forma de dependência. O segundo é que cultura envolve poder e ajuda a produzir assimetrias nas habilidades dos indivíduos e grupos soci- ais para definir e perceber suas necessidades.O terceiro, que segue os outros dois, é que cultura não é um campo nem autônomo nem externamente determinado, mas um espaço de diferenças e lutas sociais. (Johnson, 1996, p. 76) A relação com o marxismo se inicia e se desenvolve através da crítica de um certo reducionismo e economicismo dessa pers- pectiva, resultando na contestação do modelo base-superestrutu- ra. Os estudos culturais atribuem à cultura um papel que não é totalmente explicado pelas determinações da esfera econômica. Entretanto, a perspectiva marxista, nesse estágio do desen- volvimento dos estudos culturais, contribuiu no sentido de com- preender a cultura na sua “autonomia relativa”, isto é, ela não é dependente das relações econômicas, nem reflexo, mas tem influên- cia e sofre conseqüências das relações político-econômicas. Como Althusser argumentava, existem várias forças determinantes – 67 econômica, política e cultural –, competindo e em conflito entre si, compondo uma complexa unidade – a sociedade. Embora se afirme a influência desse ponto de vista na cons- tituição do corpo teórico de um determinado período da verten- te britânica dos estudos culturais, deve-se ter presente que essa articulação mutuamente determinante entre forças distintas é pro- blemática, ambígua e contraditória. Sobretudo porque pretender a “autonomia relativa” da esfera cultural, não elimina a possibili- dade de compreendê-la determinada “em última instância” pela esfera econômica. A questão da relação entre práticas culturais e outras práticas em formações sociais definidas, isto é, a relação do cultural com o econômico, o político e as instâncias ideológicas, pode ser considerada enquanto um questionamento-chave na construção da tradição dos estudos culturais. Reafirma-se que a contribuição de Althusser nesse sentido é marcante. “Grosso modo, a inovação importante foi a tentativa de pensar a ‘unidade’ de uma formação social em termos de uma articulação. Isto estabeleceu os temas da ‘autonomia relativa’ do nível ideológico-cultural e um novo con- ceito de totalidade social: totalidades como estruturas complexas”, reconhece Hall (1980a, p. 32, grifo meu). Hall destaca que não se pode eliminar a distinção entre ins- tâncias e elementos diferentes nem se aderir à tese de determina- ção do econômico, existindo, então, uma articulação entre níveis distintos. E que o entendimento da totalidade social, ao contrário de ser mera expressão do vivido, funda-se em estruturas. Inserida em tais contornos, a transição do paradigma domi- nante ao crítico no campo da comunicação, segundo Hall, pode ser sintetizada na idéia de reconhecimento que os media funcio- nam dentro e através do domínio do discursivo. Por sua vez, os media não podem ser vistos fora do campo das relações de poder. Mais ainda, Hall resume esta mudança na afirmação: “os meios de comunicação são ideológicos”. Isso implica compreender que os media operam dentro do campo da construção social do sentido, isto é, os significados não estão inscritos nas suas próprias ori- gens mas nas relações e nas estruturas sociais. 68 Profundas diferenças teóricas e políticas estão em questão nes- ta mudança. A ruptura mais dramática ocorre precisamente em termos do movimento de passagem de uma ótica essencialmente comportamental, característica do paradigma dominante, para uma perspectiva ideológica. Em termos bem gerais, o que está posto em questão é o papel “reflexivo” dos meios de comunicação e a concepção da linguagem como algo “transparente”. Na perspectiva de Hall, os meios de comunicação definem, não simplesmente repro- duzem, a “realidade”. Como o próprio Hall (1982, p. 64) explica, definições de realidade são sustentadas e produzidas através de todas aquelas práticas lingüísticas – entendidas num sentido amplo – por meio das quais definições seletivas do ‘real’ são representadas. Mas representação é uma noção muito diferente daquela de reflexão. Implica o trabalho ativo de selecionar e apresentar, de estruturar e dar forma: não simplesmente de transmitir um significado já exis- tente, mas o trabalho mais ativo de fazer as coisas significarem. Na realidade, a representação implica uma prática, uma pro- dução de sentido – “o que, subseqüentemente, veio a ser definido como uma ‘prática significante’. Os meios de comunicação são agentes significantes” . Duas preocupações são centrais nessa mudança de enfoque. De um lado, como a ideologia funciona e quais são seus mecanis- mos e, de outro, como o ideológico é concebido em relação às outras práticas dentro de uma formação social. Insatisfeito com os contornos tanto do culturalismo quanto do marxismo estrutu- ralista, proposto por Althusser, Hall confrontou-os, tensionando seus princípios ao limite. Surge daí uma outra armação teórica. Na perspectiva esboçada por Hall, a produção e transforma- ção do discurso ideológico está formatada por teorias preocupadas com o caráter simbólico e lingüístico desse discurso. Por essa ra- zão, as ideologias funcionam mediante a linguagem. No estrutura- lismo, essa questão remete ao problema da significação. “Linguagem e simbolização são o meio pelo qual o significado é produzido. Esta aproximação destituiu a noção referencial de linguagem […] onde o significado de um termo particular ou sentença podia ser validado simplesmente vendo ao que ela referia-se no mundo real. 69 Ao invés, linguagem tinha de ser vista como o meio no qual signi- ficados específicos são produzidos” (HALL, 1982, p. 67). Os significados são, então, uma produção social; resultam de uma prática social. Considerando o pressuposto que o senti- do é produzido e não dado, diferentes significados podem ser creditados para os mesmos eventos. Diante disso, Hall (1982) problematiza a questão de como o discurso dominante se garan- te ele próprio como a versão diante dos outros sentidos alterna- tivos ou competitivos. Problematiza, também, como as instituições que são responsáveis pela explicação desses eventos – nas sociedades modernas, os media, por excelência – têm su- cesso na manutenção dos sentidos preferenciais (ou dominan- tes) dentro do sistema de comunicação. Nesse espectro teórico, os media são responsáveis por prover a base pela qual grupos e classes sociais constroem uma imagem das vidas, práticas e valores de outros grupos e classes. Essas ima- gens, representações esparsas e fragmentadas da totalidade social, acabam construindo um todo coerente, o imaginário social “[…] através do qual nós percebemos os ‘mundos’, as ‘realidades vivi- das’ dos outros e, imaginariamente, reconstruímos suas vidas e as nossas em algum ‘mundo por todos’ inteligível, numa ‘totalidade vivida’” (HALL, 1977, p. 341). É, também, função dos media refletir e expressar uma pluralida- de – mesmo que aparente – de representações ao invés de um univer- so ideológico unitário. Esse conhecimento social que os media seletivamente fazem circular é organizado através de sentidos prefe- renciais. E, por último, esse conjunto de representações, imagens e sentidos, seletivamente representado e classificado, é organizado e articulado num todo coerente, numa ordem reconhecida, ou melhor, na produção do consenso, na construção da legitimidade. São determinados mecanismos que permitem aos media ter tal papel ideológico. Os media produzem mercadorias simbólicas e sua produção não pode ser alcançada sem passar pelo crivo da lin- guagem, pois é necessário traduzir o evento real numa forma sim- bólica. Esse é o processo de codificação em que a seleção de códigos preferenciais parece corporificar uma explicação “natural”, mos- trando-se como a única forma inteligível e disponível do evento. 70 No entanto, Hall (1977, p. 343) alerta que “nós devemos lembrar que ele [significado dominante] não é único, unitário, mas uma pluralidade de discursos dominantes: [e] que estes não são deliberadamente selecionados pelos codificadores para ‘repro- duzir eventos dentro do horizonte da ideologia dominante’, mas constituem o campo dos significados dentro do qual eles [codifica- dores] devem escolher”. Essa dinâmica é invisível e inconsciente mesmo para os codificadores, sendo mascarada muitas vezes pela intervenção de ideologias profissionais. Do ponto de vista das abordagens convencionais dos meios de comunicação, esse problema da seleção e exclusão de sentidos se resume a problemas técnicos. Entretanto, para uma teoria da signi- ficação, todos esses são elementos derivados de práticas sociais. Significação [é] uma prática social porque, dentro das instituições dos meios de comunicação, uma forma particular de organização social desenvolveu-se que capacitou os produtores (radiodifuso- res) a empregar os meios de produção de significados à sua dispo- sição (o equipamento técnico) através de um certo uso prático deles (a combinação de elementos de significação identificados acima) com o objetivo de produzir um produto (um significado específico). (HALL, 1982, p. 68) Contudo, o processo de significação dos media difere de ou- tros processos precisamente porque o que esta prática social pro- duz é um objeto discursivo, logo, o que o diferencia enquanto prática é a articulação de elementos sociais e simbólicos. Porém, o problema reside, ainda, no processo de tornar “um” sentido predominante sobre os demais. Deduz-se daí que o poder exercido nesse processo não é uma força neutra. O processo de significação é o meio pelo qual os entendimentos coletivos são criados e, então, o consenso pode ser efetivado. Ideologia, de acordo com essa perspectiva, não somente se torna uma ‘força material’ – para usar uma expressão antiga – real porque é ‘real’ nos seus efeitos. Ela se torna, também, um espaço de luta (entre definições concorrentes) e uma aposta – um prêmio a ser ganho – na condução de enfrentamentos particulares. Isso signi- fica que ideologia não pode mais ser vista como uma variável 71 dependente, uma mera reflexão de uma realidade preexistente na mente. Nem são seus resultados previsíveis por derivação a partir de alguma lógica determinista simples. Eles dependem de um ba- lanço de forças numa conjuntura histórica particular: de uma ‘po- lítica de significação’.(HALL, 1982, p. 70) Esse posicionamento revela uma mudança de enfoque na noção de ideologia e como ela atua. Na perspectiva proposta pe- los estudos culturais, sobretudo dos anos 70, ideologias são estru- turas, logo, não são imagens, conceitos ou mero conteúdo. Em síntese, é um sistema de codificação. Assim, os meios de comunicação atuam incessantemente na construção e desconstrução ideológica. Esse é um trabalho que reproduz contradições e no qual, por definição, tendências contrárias estão constantemente manifestas, mas a inclinação dos media é reproduzir o campo ideológico da sociedade em tal for- ma que reproduz, também, sua estrutura de dominação. Hall reconhece que essa teoria tende a apresentar o processo excessi- vamente acentuado numa única direção, funcionalmente adapta- do à reprodução da ideologia dominante. Até agora apenas a questão da codificação das mensagens esteve, aqui, em evidência. O ponto de vista da decodificação vai ser abordado, sobretudo, no ensaio “Encoding and decoding in television discourse” onde Hall3 (1980b) abre a discussão sobre a temática da recepção e dos consumos mediáticos. O ponto de partida de Hall é compreender o processo de comunicação em termos de uma estrutura produzida e sustentada através da articulação de momentos vinculados, porém distintos – produ- ção, circulação, distribuição/consumo, reprodução. Isso seria pensar o processo como uma ‘estrutura complexa com dominante’, sus- tentada através da articulação de práticas conectadas, onde cada qual, contudo, retém sua distinção e tem suas próprias modalida- des específicas, suas próprias formas e condições de existência. (HALL, 1980b, p. 128). Esse ponto de vista apresenta-se como uma homologia ao desenho do esquema de produção de mercadorias proposto por 72 Marx. A idéia é ver o processo de comunicação como um circuito contínuo – produção-circulação-produção. Dessa forma, Hall reve- la uma postura crítica em relação à linearidade implícita no modelo emissor-mensagem-receptor – concepção dominante do processo de comunicação – assim como à sua concentração na mensagem e à ausência de uma concepção estruturada dos diferentes momentos deste processo enquanto uma complexa estrutura de relações. Mais tarde, refletindo sobre o “modelo de codificação/deco- dificação”, o autor insiste em que o mesmo deve ser compreendi- do tendo em vista o contexto teórico-metodológico vigente na época. “[…] o modelo está posicionado, portanto, contra uma noção particular de conteúdo pré-formado e de significado fixo ou de mensagem que pode ser analisada em termos de transmis- são do emissor para o receptor. Está posicionado contra uma cer- ta unilinearidade daquele modelo de fluxo unidirecional: o emissor cria a mensagem, a mensagem é ela mesma unidimensional e o receptor a recebe” (HALL, 1994, p. 253). Em decorrência, acaba posicionando-se contra a pesquisa que utiliza métodos empíricos tradicionais e positivistas de análi- se de conteúdo, assim como contra o survey de audiência que detecta os “efeitos” dos media. Na verdade, desafiando o modelo dominante de comunicação o objetivo é desestabilizar a noção transparente de comunicação implícita no paradigma dominante. Na apresentação do modelo, Hall enfatiza que a singularidade do processo de comunicação se dá através da forma discursiva, da veiculação de símbolos constituídos dentro das regras da linguagem. é na sua forma discursiva que acontecem tanto a circulação do produto quanto sua distribuição para diferentes audiências. Uma vez levado a cabo, o discurso deve ser, então, traduzido – transfor- mado, de novo – em práticas sociais, se o circuito tem de ser, igualmente, completo e efetivo. Se não há ‘significado’, não pode existir consumo. Se o significado não está articulado na prática, não tem efeito. O valor dessa abordagem é que, enquanto cada um dos momentos, em articulação, é necessário para o circuito como um todo, nenhum deles pode garantir completamente o próximo com o qual está articulado. Já que cada um tem sua modalidade específica e condição de existência, cada um pode 73 constituir sua própria pausa ou interrupção do ‘desenvolvimento das formas’, cuja continuidade do fluxo de uma produção efetiva (isto é, ‘reprodução’) depende. (HALL, 1980b, p. 128) Utilizando o discurso televisivo como exemplo, Hall exem- plifica que é no espaço da produção que se constrói a mensagem. Mas o momento da produção não se constitui num sistema isola- do dos outros momentos; ele recupera agendas, tópicos, eventos, enfim, temas da própria audiência e de outras fontes da estrutura sócio-político-cultural. Num sentido, o circuito inicia aqui [na produção]. É claro, que o processo de produção não é desprovido de seu aspecto ‘discursi- vo’; ele, também, é estruturado por significados e idéias – conhe- cimento em uso a respeito das rotinas de produção, habilidades técnicas definidas historicamente, ideologias profissionais, conhe- cimento institucional, definições e suposições, conjeturas sobre a audiência, etc armam a constituição do programa através dessa estrutura de produção. (HALL, 1980b, p. 129) Outra das preocupações de Hall, na apresentação do mode- lo, é mostrar as conexões, as relações de interdependência entre produção-circulação-recepção, pois na concepção dominante, até então, de comunicação estas eram etapas distintas e separadas. circulação e recepção são, realmente, ‘momentos’ do processo de produção na televisão e são reincorporados via um número de imprecisos e estruturados ‘feedbacks’ no mesmo processo de pro- dução. O consumo ou recepção da mensagem de televisão é, desta maneira, também um ‘momento’ em si mesmo, no seu mais amplo sentido, do processo de produção, embora este último seja ‘pre- dominante’ porque é o ‘ponto de partida para a realização’ da mensagem. Produção e recepção da mensagem televisiva não são, contudo, idênticos mas são relacionados: eles são momentos dife- renciados dentro da totalidade formada pelas relações sociais do processo comunicativo como um todo. (HALL, 1980b, p. 130) Nesse modelo existe uma relação entre a codificação da men- sagem, no âmbito da produção, e sua decodificação, no nível da recepção. No entanto, esses dois momentos não constituem uma identidade imediata, ou seja, os códigos utilizados pela codificação 74 e pela decodificação podem não ser perfeitamente simétricos. “As assim chamadas ‘distorções’ ou ‘mal-entendidos’ [sobretudo, na concepção dominante de comunicação] decorrem precisamente da falta de equivalência entre os dois lados na troca comunicativa. Isso, uma vez mais, define a ‘autonomia relativa’ – mas com ‘de- terminação’ – da entrada e saída da mensagem nos seus momen- tos discursivos” (HALL, 1980b, p. 131). Como implicação direta disso, vê-se que o sentido da mensa- gem não é fixo, ao contrário, é polissêmico. Hall é enfático a esse respeito tanto no texto em que esboça o modelo quanto em entre- vista posterior em que comenta a respeito. “Se você lê o jornal, existe uma noção presente que trabalha contra o veio de um mo- delo superdeterminista de comunicação. Daí a noção de que o significado não está fixo, de que não existe uma lógica determi- nante global que pode permitir a você alguma grade [de leitura]. Essa é a noção de que o significado é mais multifacetado, é sem- pre multirreferencial” (HALL, 1994, p. 254). Esse posicionamen- to mostra a entrada do estruturalismo e da semiótica e seu impacto nos estudos culturais de um determinado período. Hall considera também fundamental, para a compreensão de sua proposta, identificar o contexto político do debate do próprio marxismo onde o “modelo de codificação/decodifica- ção” foi formulado. Existe um argumento a respeito do modelo base-superestrutura, a respeito da noção de ideologia, linguagem e cultura como secundá- rio, como não constitutivo, mas somente como constituído pelos processos socioeconômicos. Existe [também] a introdução de uma noção de política na cultura. As questões políticas, também, têm de ocupar-se com a construção e reconstrução do significado, a forma pela qual o significado é disputado e estabelecido. Esses processos não são secundários […] mas uma autonomia relativa de eficiência, que lhes é específica, tem de ser dada a eles. Essa questão não é, no sentido estrito, política; não é um projeto político que pode ser claramente extraído do texto. Ela dá suporte para que pensemos sobre as questões políticas. (HALL, 1994, p. 254) O modelo desenhado por Hall sinaliza – mesmo que frou- xamente – uma futura mudança de uma posição caracterizada 75 pela sobredeterminação implícita na tese da ideologia dominan- te para um posicionamento mais complexo, associado à noção de hegemonia de Gramsci, pois Hall reivindica estar tratando de “[...] um modelo do que chamo de ‘articulação’, um entendimen- to dos circuitos do capital como uma articulação dos momentos da produção com os momentos do consumo, com os momentos da realização, com os momentos da reprodução” (Idem, p. 255). Através de categorias da semiologia articuladas a uma noção de ideologia, Hall insiste na pluralidade, determinada socialmen- te, das modalidades de recepção dos programas televisivos. Argu- menta, também, que podem ser identificadas três posições hipotéticas de interpretação da mensagem televisiva: uma posição “dominante” (chamada, também, de “preferida” ou “preferenci- al”), quando o sentido da mensagem é decodificado segundo as referências da sua construção;4 uma posição “negociada”, quando o sentido da mensagem entra “em negociação” com as condições particulares dos receptores;5 e uma posição de “oposição”, quando o receptor entende a proposta dominante da mensagem mas a in- terpreta segundo uma estrutura de referência alternativa.6 Em avaliação posterior, Hall (1994, p. 265) reconhece que esse aspecto do modelo – a recepção – não está suficientemente desenvolvido, pois “o problema, se se transferir essas duas posi- ções para a política, é que se retorna a uma posição muito deter- minista. Tem-se a falsa consciência de uma leitura perfeitamente transparente ou a matéria revolucionária perfeita do sujeito inva- riavelmente oposicionista. Por isso, eu quero alguma coisa no meio. Portanto, eu simplesmente falo sobre o código negociado”. Além disso, na sua opinião, esse modelo homogeneíza de- mais o nível de codificação, não dando abertura para o espaço contraditório dentro dos meios de comunicação enquanto insti- tuições. “[O modelo] Trata a institucionalização da comunicação como excessivamente unidimensional, como demasiadamente ar- ticulada à ideologia dominante, de uma maneira direta” (HALL, 1994, p. 263). Hall reconhece, ainda, que essas posições devem ser testadas empiricamente e refinadas. Na mesma entrevista, já citada, proble- matiza a transformação de seus comentários sobre a codificação e a 76 recepção num “modelo”: “Eu não penso [que o modelo] tenha o rigor teórico, a consistência interna lógica e conceitual para tal. Se ele tem algum valor, agora e mais tarde, é por aquilo que sugere. Ele sugere uma aproximação; revela novas questões. Ele mapeia o terre- no. Mas é um modelo que tem de ser manipulado, desenvolvido e alterado” (HALL apud CRUZ E LEWIS, 1994, p. 255). Contudo, no texto em questão, surgem dubiedades, pois Hall ora refere-se a “sentidos” ou “significados” preferidos ora a “leitu- ras” preferidas, ou seja, tanto mensagens (codificadas no momen- to da produção) quanto leituras (localizadas no momento da recepção) podem ser construídas no âmbito do “hegemônico do- minante”. Por essa razão, Hall é questionado. As questões sur- gem em torno de onde se localiza preferencialmente esse processo: é no texto ou, entendida em um sentido político e social amplo, na cultura? E mais, do ponto de vista da decodificação, quais são as conseqüências, tanto teóricas como políticas, de situar essa modalidade num determinado momento ou noutro do circuito (cf. CRUZ E LEWIS, 1994, p. 261)? Hall tenta explicar essa situação quase vinte anos depois de publicar o “modelo de codificação/decodificação”: leituras preferidas dão a impressão de assumir o lado decodifican- te, ao passo que sentido preferido está no âmbito codificante, não no decodificante. Por que ele está lá? Bem, está lá porque não quero um modelo de um circuito que não tenha poder dentro dele. Não quero um modelo que seja determinista, mas não quero um modelo sem determinação (grifo meu). E, por conseguinte, não penso que as audiências estão na mesma posição de poder daqueles que significam o mundo para elas. E leitura preferida é simplesmente um modo de dizer que se escreve os textos a partir do controle dos aparatos de significação do mundo, do controle dos meios de comunicação, e – em alguma extensão, [a leitura preferida] tem um formato determinante. Suas decodificações vão ter lugar em alguma parte dentro do universo da codificação. Um está tentan- do englobar o outro.Transparência entre o momento da codifica- ção e decodificação é o que chamaria do momento da hegemonia. Para ser perfeitamente hegemônico é ter cada sentido que você quer comunicar entendido pela audiência somente daquela ma- neira. Um tipo de sonho do poder – nenhum chuvisco na tela, 77 apenas audiência totalmente passiva. Agora, meu problema é que não creio que a mensagem tenha somente um significado. Então, eu quero apostar numa noção de um poder e estruturação no momento de codificação que, não obstante, não apague todos os outros possíveis sentidos. (HALL, 1994, p. 261) Numa avaliação geral sobre os paradigmas dos estudos de audiência, Morley (1989a, p. 17) situa o modelo de Hall contra a perspectiva dos efeitos, assim como a dos usos e gratificações, mas ressalta que ele [Hall] toma dos teóricos dos efeitos a noção que a comunica- ção de massa é uma atividade estruturada na qual as instituições que produzem as mensagens têm poder para fixar agendas e definir te- mas. Isto é mover-se da idéia de poder do meio para construir o comportamento da pessoa num certo modo (como efeito direto que é causado pelos estímulos do meio) mas é, também, manter uma noção do papel dos meios de comunicação em estabelecer agendas e prover categorias e estruturas culturais dentro das quais membros da cultura tenderão a operar. (grifo meu) Apesar do texto em tela explicitar uma posição de abertura em relação ao âmbito da recepção, reconhecendo a existência, principalmente, de leituras negociadas,7 fica claro o papel central exercido pelo “analista” ou pelo “crítico”, assim como da ferra- menta da análise textual, o que, por sua vez, é uma “decodifica- ção” do mesmo pesquisador. Embora uma certa noção de texto seja posta em questão nesse estudo, é ainda em torno de uma outra noção de “texto” que esse modelo está construído: seja ele um programa de TV, a fala de um sujeito/receptor ou a “leitura” de um “analista”. De outro lado, o modelo de Hall, também, propõe um circui- to: primeiro, a análise da mensagem para observar um sentido do- minante; depois, a audiência, para ver as variações de “leituras”; e por último, a checagem destas com o texto original. Assim, é o texto que permanece o locus privilegiado. O debate situa-se em tor- no do papel do texto, seja na sua relação com o processo de produ- ção ou com o consumo, e, por fim, na articulação entre os três. Na avaliação de Colin Sparks (1996), esse modelo é quase inteiramente semiótico, sobretudo porque localiza a questão das 78 diferentes decodificações decorrentes principalmente da natureza polissêmica do âmbito conotativo. Além disso, considera que não existe aí nenhum esforço para demonstrar como a codificação do discurso televisivo pode estar relacionada à estrutura da sociedade. Isso revela a influência do estruturalismo na construção des- se modelo de análise, pois se o que está em foco é a produção de sentido, por sua vez, esta se estabelece através da linguagem. Daí o interesse numa teoria da linguagem que, de certa forma, divor- cia-se da experiência social. A ênfase num todo estruturado ou numa totalidade social às custas da experiência ou da ação huma- na, acaba endossando uma perspectiva de reprodução social. De outro lado, deve-se apontar o fato que, para Hall, as di- versas decodificações possíveis de um determinado texto estão sempre relacionadas à experiência das audiências. Logo, o desejo de reter essa noção (de experiência, ação humana) demonstra que o modelo de codificação/decodificação proposto não se encontra inteiramente dentro do campo estruturalista. É de especial importância ressaltar que o elemento estruturalis- ta aponta para a natureza relativamente determinada da vida cultural e das formas culturais sob o capitalismo, já o elemento culturalista valoriza a experiência e acentua a autonomia relativa da cultura. O ponto crítico, então, situa-se na discussão do grau dessa autonomia relativa. Ao não resolverem essa tensão entre determinação e capaci- dade de ação dos sujeitos, assim como entre níveis de estruturação social e discursiva (neste aspecto, tem sido reiterada sua inter-rela- ção), os estudos culturais se fragilizam teoricamente. Se adotada a definição de ideologia de Althusser, que a com- preende como um marco onde os homens interpretam, dão senti- do, experienciam e vivem as condições materiais nas quais se encontram, a mudança cultural é quase impossível. Vai ser justa- mente na passagem para a influência gramsciana que se assume uma noção de determinação menos mecanicista e se consegue perceber como a mudança é construída dentro do sistema. No entanto, o acento no debate teórico da época nessa noção de ideologia que enfatiza o discurso dominante problematiza a idéia que vinha sendo trabalhada pelos pesquisadores do CCCS, no mesmo período, sobre a ação e papel das subculturas. 79 Num trabalho coletivo de 1975 sobre a cultura da juventu- de da classe trabalhadora nos anos 50, tem-se como definição de cultura: A ‘cultura’ de um grupo ou classe é o ‘modo de vida’ caracterís- tico e distintivo do grupo ou classe, os sentidos, valores e idéias corporificados nas instituições, nas relações sociais, em sistemas de crenças, valores e costumes, nos usos de objetos e da vida material. […] A cultura inclui os ‘mapas de sentido’ que fazem as coisas intelegíveis para seus membros. Esses […] [mapas de sen- tido] são objetivados nos padrões da organização e das relações sociais através dos quais o indivíduo torna-se um ‘indivíduo social’. […] Cultura é a forma que as relações sociais de um grupo são estruturadas e modeladas, mas é, também, o modo que essas formas são experienciadas, entendidas e interpretadas. (CLARKE, HALL ET AL., 1975, p. 10) É clara a associação dessa definição com as formulações de Williams, com a definição expressiva de cultura. Está aí manifes- to, também, o princípio de que a classe social é um elemento definitivo na experiência cultural. E embora não esteja denomina- do é, também, visível a relação com o conceito de estrutura do sentimento. Entretanto, na seqüência do trabalho os autores modificam suas posições originais. Na tentativa de integrar as contribuições de Gramsci e Althusser, eles vão sugerir que as subculturas devem ser vistas enquanto formas “[…] dentro das quais modos ‘imagi- nários’ de resolver as contradições reais que os diferentes grupos enfrentam, mas que são incapazes de solucionar praticamente, são apresentadas, vividas e exercitadas” (BENNETT, MARTIN, MER- CER e WOOLACOTT, 1989, p. 41). Nesse momento se mostra, também, a incorporação da idéia de hegemonia: Gramsci usou o termo ‘hegemonia’ para referir-se ao momento em que uma classe dominante é capaz não somente de coagir uma classe subordinada a sujeitar-se aos seus interesses, mas de exercer uma ‘hegemonia’ ou ‘autoridade social total’ sobre as classes su- bordinadas. Isso envolve o exercício de um tipo especial de poder 80 – o poder de conceber alternativas e incluir oportunidades para ganhar e forjar o consentimento, de tal forma que a outorga de legitimidade às classes dominantes aparece não somente como ‘es- pontânea’ mas, também, como natural e normal. (CLARKE, HALL et al., 1975, p. 38) O terreno onde a hegemonia é ganha ou perdida é o terreno das superestruturas, ou seja, as instituições da sociedade civil e o estado. A hegemonia trabalha através da ideologia, mas não con- siste em falsas idéias, percepções e definições. Além disso, nunca é sustentada por uma única classe. Sustentando a tese de que “seu caráter e conteúdo [da hegemonia] podem somente ser estabele- cidos observando situações concretas em momentos históricos concretos” (CLARKE, HALL ET AL., 1975, p. 40), o trabalho apre- senta uma análise conjuntural de um momento histórico onde se vê funcionando ou aplicado o conceito de hegemonia numa deter- minada formação social. Porém, a partir de um certo momento da pesquisa, o foco passa a ser a relação entre estilo (uma forma particular de fazer algo) e juventude, isto é, como classe social e geração interatuam na produção de um grupo distinto de estilos; como os materiais disponíveis ao grupo são construídos e apropriados numa forma de resposta visivelmente organizada. Dessa forma, as várias subculturas jovens passam a ser iden- tificadas pelas diversas maneiras de incorporar objetos/símbolos no seu cotidiano. Os objetos estavam disponíveis lá, mas eram usados (grifo meu) pelos grupos na construção de estilos. Mas isso significa não simplesmente apanhá-los, mas construir ativamente (grifo meu) uma seleção específica de coisas e bens num estilo. E isso fre- qüentemente envolve […] subverter e transformar essas coisas em seu significado e uso conhecido para outros sentidos e usos. Todas as mercadorias têm um uso social e, portanto, um signifi- cado cultural. (CLARKE, HALL ET AL., 1975, p. 54) Nas leituras realizadas desse “estilo” da subcultura aparece um tratamento particular. É a semiótica que inspira essa análise. Assim, os objetos e práticas que marcam essa subcultura são 81 identificados como um estilo coerente e internamente articulado (SPARKS, 1996, p. 85). Esse trabalho de Clarke, Hall e outros evidencia uma tensão entre o entendimento da cultura enquanto expressiva, ou seja, uma marca da aproximação teórica oriunda nas formulações dos “fun- dadores” dos estudos culturais, e a abordagem estruturalista com sua ênfase nas estruturas de significação. Em outros termos, trans- parece um confronto entre a ação do sujeito e a determinação do sujeito pela linguagem. Ainda no mesmo período, um coletivo do CCCS, composto por Stuart Hall, Chas Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e Brian Roberts8 (1978), examina porque e como os temas da raça, crime e juventude, condensados na imagem do “assalto de rua”, serve como articulador de uma crise e seu condutor ideo- lógico. O cenário maior é a crise de hegemonia que a sociedade britânica vive nos anos 70. Aí são analisados os espaços onde a hegemonia é construída. A ênfase incide nos níveis civil, político, jurídico e ideológico de uma formação social, ou seja, na superestrutura. Por essa razão, a análise dá mais atenção às mudanças nas relações de força, na luta política, na alteração das configurações ideológicas, do que aos movimentos econômicos. No entanto, os autores reconhecem que “hegemonia, no sentido de Gramsci, envolve a ‘passagem’ de uma crise da base material da vida produtiva para as ‘complexas esferas das superestruturas’. Apesar disso, o que a hegemonia assegura, em última análise, são as contradições sociais de longo curso para a continuidade da reprodução do capital” (HALL ET AL., 1978, p. 218). A tese sustentada é de que o “assalto de rua” estava relaciona- do com uma mudança na administração da luta de classes do esta- do capitalista de uma forma consensual para uma mais coercitiva. Nessa direção, a crise foi ideologicamente construída pelas ideo- logias dominantes para ganhar o consenso nos meios de comuni- cação e, então, construir a base na “realidade”, isto é, na opinião pública. Desse modo, “concordando” com a visão de crise que ganhou credibilidade nos escalões do poder (os meios de comuni- cação), a consciência popular também foi ganha para dar suporte as medidas de controle que esta versão da realidade social exigia. 82 Com o objetivo de demonstrar essa tese, o trabalho reconstitui a história da Grã-Bretanha a partir do pós-guerra, mostrando a cons- trução do consenso e o seu colapso. Outro exemplo de análise conjuntural através do uso do con- ceito de hegemonia se mostra na explicação, considerada polêmi- ca pela esquerda britânica, da ascensão do thatcherismo (HALL, 1983) não como reflexo da crise vivida pela sociedade britânica nos 70, mas como resposta à crise. Novamente, o olhar recai particularmente nas dimensões políticas e ideológicas, negligen- ciadas em outras análises. A adesão popular ao repertório do tha- tcherismo, calcado basicamente no rejuvenescimento dos temas do anticoletivismo e do antiestatismo, transformou essa doutrina em senso comum. Mas foi o discurso do thatcherismo que conse- guiu, com sucesso, neutralizar as contradições entre povo e Esta- do (bloco de poder) e ganhar a adesão popular, mostrando sua faceta populista. Esses três trabalhos – Clarke, Hall et al. (1975), Hall et al. (1978) e Hall (1983) – compõem uma resposta a uma situação particular, vivida pela sociedade britânica num período histórico determinado. São trabalhos de intervenção, desenhados para ter um efeito na política social do momento. Apesar de serem análi- ses conjunturais, exemplificam uma concepção teórica que articu- la cultura e poder, cultura e hegemonia, mostrando uma densidade tanto teórico-analítica quanto descritiva.9 Diante dessa produção, surge um certo mal-estar na incor- poração de teses althusserianas que contradizem a história dos es- tudos culturais, à luz da contribuição gramsciana. É manifesta a tensão entre essas contribuições: Gramsci abrindo o corpo teórico para refletir sobre a “agência humana” e Althusser impondo limita- ções estruturais, ou seja, na ênfase no todo estruturado ou na tota- lidade social às custas do processo, da experiência, da “agência”. Nada melhor do que reproduzir as palavras do autor que pensou sobre a mediação entre esses dois corpos teóricos – cultu- ralismo e estruturalismo – para explicar tal enfrentamento, sobre- tudo, no que diz respeito à compreensão da concepção de experiência: “Enquanto que, no culturalismo, experiência era a base – o terreno ‘do vivido’ – onde consciência e condições se 83 cruzam, o estruturalismo insistia que a ‘experiência’ não podia, por definição, ser a base de nada, visto que alguém somente podia ‘viver’ e experienciar suas próprias condições dentro e através das categorias, classificações e estruturas da cultura. Essas categorias, contudo, não surgiam da ou na experiência; antes, a experiência era seu efeito” (HALL, 1996b, p. 41). Na tentativa de construir um posicionamento que dê conta dessa oposição, Hall critica ambos os paradigmas e vai gradativa- mente incorporando cada vez mais as formulações gramscianas. Assim, a influência de Althusser vai ficando secundarizada, em- bora Hall sempre reconheça sua importância, principalmente, concentrada nos primeiros escritos daquele autor (1965/1969), para pensar a superestrutura. Enfim, é necessário ver, em resumo, como Hall articulou sua noção de ideologia, afastando-se do marxismo estruturalista. “Por ideologia, refiro-me às estruturas mentais – as linguagens, os conceitos, as categorias, imagens do pensamento e os sistemas de representação que diferentes classes e grupos sociais desenvol- vem com o propósito de dar sentido, definir, simbolizar e impri- mir inteligibilidade ao modo como a sociedade funciona” (HALL, 1996h, p. 26). Essa definição permite ver que interesses de dife- rentes grupos sociais são representados e articulados em diferen- tes ideologias. Permanecendo, ainda, dentro da tradição marxista, essa defi- nição, de corte gramsciano, procura dar conta de como certos discursos políticos na luta pela hegemonia são construídos e re- construídos, expandem-se ou se restringem, ganham ascendência ou a perdem. Entretanto, o desprendimento da noção althusseriana de ide- ologia não faz com que Hall perca a referência na linguagem. Ao contrário, ele insiste na função “multirreferencial” da linguagem, permitindo, assim, que a mesma relação social, ou fenômeno, possa ser diferentemente representada e construída. “É precisa- mente porque a linguagem, o meio de pensamento e cálculo ide- ológico, é ‘multiacentuada’ como Volosinov colocou, que o campo do ideológico é sempre um campo de ‘cruzamento de ênfases’ e de ‘cruzamento de interesses sociais diferentemente orientados’” 84 (HALL, 1996h, p. 40). A partir daqui, a incorporação do aporte gramsciano na vertente britânica dos estudos culturais passa a ser fundamental, acarretando uma série de conseqüências teóri- co-metodológicas. Todavia, antes de recuperar essa discussão sobre a contribui- ção gramsciana para os estudos culturais, é preciso reconstituir o debate sobre ideologia, do ponto de vista latino-americano – nos autores em foco neste trabalho. O território latino-americano viveu um período sob o domí- nio de uma postura estruturalista, nos seus próprios termos. É bastante conhecida a influência da teoria da dependência cultural e a proposta de desmascaramento ideológico das mensagens dos media. Esta última principalmente viabilizada através da moda althusseriana vigente, sobretudo nos anos 70, na pesquisa em co- municação. Aí prevaleceu de forma incontestável e sem media- ções a tese de determinação das estruturas macrossociais. Martín-Barbero (1995a, p. 148) avalia que os estudos de co- municação propriamente latino-americanos fundam-se exatamente na teoria da dependência. “A teoria da dependência vai ser a gran- de inspiradora, primeiro, da articulação dos estudos dos meios ao estudo das estruturas econômicas e das condições de propriedade dos meios. E, segundo, do estudo do processo ideológico, das análises dos conteúdos ideológicos dos meios”. Enquanto fundamentada nessa base teórica, a pesquisa em comunicação difundiu uma concepção reprodutivista de cultura. A cultura era basicamente ideologia. Nesse caso, não existia ne- nhuma especificidade no âmbito da comunicação. Estudar os pro- cessos de comunicação era estudar processos de reprodução. Não existia nenhuma especificidade conceitual nem histórica nos pro- cessos de comunicação. De tal forma que as ciências sociais, nesse momento a economia e a sociologia, dissolveram o que podería- mos chamar de novo objeto. Dissolveram-no nas suas próprias perguntas sobre a luta de classes e os aparelhos de Estado. (MAR- TÍN-BARBERO, 1995a, p. 149) O poder comunicacional foi concebido como um atributo de um sistema monopólico que administrado por uma minoria de 85 especialistas, podia impor valores e opiniões da burguesia às demais classes. A eficiência desse sistema residia não somente na ampla difu- são que os meios massivos proporcionavam às mensagens dominan- tes, mas, também, na manipulação inconsciente dos receptores. Não interessa, aqui, recuperar as características teórico-me- todológicas, limitações, nem críticas dessa fase, que já conta com uma bibliografia específica. O objetivo é ler em chave lati- no-americana, isto é, nos trabalhos de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini, a incorporação do debate sobre ideolo- gia, cultura e poder. A exemplo da reflexão britânica, recém apresentada, os posicionamentos desses autores latino-america- nos foram sendo construídos num terreno de rejeição e confron- to às teses do reducionismo e determinismo econômico implícitas num certo marxismo, logo, também, a uma determinada con- cepção marxista de ideologia. Para iluminar as relações entre cultura, ideologia e poder, especialmente, na “escritura massiva”, o trajeto percorrido por Jesús Martín-Barbero em Comunicación masiva: Discurso e poder (1978) é significativo a esse respeito.Um esclarecimento antes de iniciar propriamente a exposição do assunto em questão é obriga- tório. Convém destacar esse texto, pois ele é tributário do mo- mento no qual foi escrito, ou seja, a década de 70 na América Latina e a equivalente caracterização da pesquisa em comunica- ção. Porém, ele propõe deslocamentos em relação às teorias do- minantes no período e, de modo incipiente, já se delineiam nele algumas sugestivas pistas que alcançarão densidade teórica e difu- são mais plena em De los medios a las mediaciones – Comunicación, cultura y hegemonía (1987). Distanciando-se do modelo funcionalista, em Comunicación masiva: Discurso e poder (1978), Martín-Barbero localiza-se na fron- teira do campo do estruturalismo e da análise semiológica para pensar a prática comunicativa, na América Latina, como marca da malha global de dominação. Contudo, os questionamentos propos- tos ancoram-se em teorias da linguagem. Por essa razão, no final desse trabalho, o autor liga a primeira reflexão teórica com a práti- ca discursiva da informação jornalística e do espetáculo televisivo. Aí, o objeto, ou seja, a análise do próprio texto, se impõe. 86 Acredito que o gérmen dessa proposta está contido na sua tese de doutoramento La palabra y la acción – Por una dialéctica de la libera- ción (1972) como a própria combinação das palavras do seu título sugere. Estando na França no final dos anos 60 e início dos 70, vivencia o intenso debate condensado entre posições estruturalistas e pós-estruturalistas. E o resultado é essa investigação, que partindo da filosofia da linguagem tem o duplo propósito de questionar a lingüís- tica a partir das ciências sociais, mas somente depois de ter desmon- tado uma concepção tradicional da sociologia com instrumental lingüístico e semiótico (HERLINGHAUS, 1998, p. 15). Também aparece nessa tese o esforço de articular a análise teórica ao imperativo das condições históricas, isto é, o esforço teórico tem de ser realizado à luz de uma realidade mais próxima, no caso, a latino-americana (quando em 1997 sua obra foi discuti- da na Universidade Central de Bogotá em comemoração aos dez anos de publicação de De los medios a las mediaciones, Martín-Barbe- ro reconhece que esse viés de sua reflexão se revela desde sua tese de doutoramento). Esse mesmo aspecto repete-se no trabalho de 1978. Enfaticamente condena a omissão das condições de produ- ção nas teorias dominantes, isto é, das condições históricas de do- minação, na tentativa de explicar os processos de comunicação. A teoria crítica que se foi esboçando não busca competir com o mercado das originalidades senão com algo bem distinto: denun- ciar e dar armas, despertar e traçar estratégias – que o importante é não perder de vista o caráter histórico e estrutural dos processos, que a dimensão ideológica das mensagens é unicamente legível a partir destes e que tanto essa dimensão como a trama mercantil dos ‘meios’ têm que ser vistas sempre articuladas às condições de produção de uma existência dominada. (MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 14, grifo meu) Metido profundamente na realidade latino-americana, admi- te a expansão da ideologia, inclusive, no campo da teoria e da ciência. “Os críticos latino-americanos não rejeitam a ciência, en- tendem de outra maneira sua objetividade. Não é que […] tenham oposto a ciência à ideologia e fiquem com esta última. É que expe- rimentam a cada dia como a ideologia trabalha e controla qualquer prática, qualquer discurso, incluído o científico” (1978, p. 21). 87 O desafio temático, exposto nesse texto, diz respeito à enun- ciação, explicitando a importância da linguagem. Linguagem que permeia e se prolonga através do processo comunicativo, dissi- mulando os rastros da dominação. No entanto, essa afirmação é, também, ruptura com uma outra noção de linguagem que desco- necta o signo dos lugares de sua produção, que dificulta restabele- cer as relações do “texto” com seu contexto histórico. Avaliando a contribuição do projeto intelectual de Martín- Barbero para o pensamento latino-americano da comunicação, Javier Protzel (1998, p. 39) detecta com precisão o deslocamento proposto por Martín-Barbero no final dos anos 70. Reposicionamento que implica simultaneamente aproximação e distância: empatia para interpretar o vivido mas, também, ruptura para decompor o signo e reconstruí-lo com atitude semiótica, rela- cionando lugares de produção de sentido antes inconexos. Não mais a fria autópsia do enunciado, mas a calidez da enunciação, de um sentido registrado na medida em que é produzido, fechando assim a fenda sujeito-objeto num ato de recuperação mútua. Dessa forma, a proposta básica de Martín-Barbero (1978, p. 46) é deslocar o estudo da comunicação do espaço organizado pelo conceito de estrutura para o espaço que abre o conceito de práti- ca. “O que intencionamos pautar é que, enquanto a comunicação continue sendo pensada como alguma coisa superestrutural, não existirá forma de romper com o espaço da estrutura e o sistema e, portanto, não será possível conceber sua inserção multidimensio- nal e plurideterminada no modo de produção, nem muito menos numa formação social concreta.” Através do conceito de prática, é possível pensar a ação dos media como discurso mas sem confundi-lo com exclusivamente mensagem, estruturas de significação ou problemas de conteúdo. Essa perspectiva reduz o discurso a problemas e relações de signi- ficação, descartando sua inserção no processo histórico e desarti- culando-se dos sujeitos. Discurso como prática discursiva não se trata de alguma coisa que está aí e que depois tem que ver como se relaciona com o modo de 88 produção, mas é parte integrante, constitutiva dele. […] Nome- aremos, então, discurso dos meios o dispositivo da mediação de massa enquanto ritual operativo de produção e consumo, arti- culação de matérias e sentidos, aparatos de base e disposição em cena de códigos de montagem, de percepção e reconhecimento. (MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 46) Entretanto, para alcançar essa nova formulação do proble- ma, Martín-Barbero (1978, p. 41) realiza uma crítica densa tanto às limitações do modelo informacional-lingüístico quanto às aná- lises políticas, vigentes na época. Na primeira, o aspecto destaca- do é sua concepção mecânica do social, o ocultamento da história, da dominação, do conflito, das contradições. A formalização que a lingüística leva a cabo opera, de fato, como um descarte radical de sua densidade histórico-social, colocando a descoberto uma concepção neutralizante e redutora da complexi- dade e a opacidade da linguagem, expulsando tudo aquilo que excede e subverte o tranqüilo ir e vir da informação, tudo aquilo que é rastro do sujeito histórico e pulsional, isto é, tudo aquilo que não é mero intercâmbio senão produção do que se intercam- bia, dos intercambiantes e do próprio intercâmbio. A segunda ruptura identificada nessa trajetória diz respeito à redução dos processos comunicativos à sua dimensão “ideológico- negativa”, ou seja, a instrumento de reprodução ideológica da classe dominante e, portanto, reflexo do econômico. Dessa for- ma, a metáfora base-superestrutura é questionada: “[…] o que se torna impensável [a partir dessa metáfora] é a produção (grifo meu) que habita e atravessa a ‘reprodução’. O ideológico como produ- ção (grifo meu) e não mera manifestação instrumental de interes- ses específicos” (MARTÍN-BARBERO,1978, p. 43). Durante todo o itinerário teórico proposto, Martín-Barbero persegue este questionamento: quais são as condições de produ- ção, de existência e de operação do discursivo? Ao passar por Saus- sure, Barthes, Greimas, Chomsky, Austin, entre outros, é essa a questão que norteia o trajeto. Ao mesmo tempo em que revela as- pectos dessas proposições que contribuem para a elaboração de uma teoria crítica do discurso, ilumina seus limites, criticando-os. 89 Martín-Barbero assume, então, que recolocar de um modo novo a problemática da comunicação requer um posicionamento político que tem como eixo o questionamento do social, isto é, o reconhecimento de uma sociabilidade constituída pelo conflito e, por essa razão, tramada com as relações de dominação. “[...] di- gamos de imediato que esse discurso não revela seu sentido a não ser lido a partir das relações de poder e dos conflitos que esse poder gera” (1978, p. 118). Embora Martín-Barbero afirme que o espaço dessa reflexão que persegue compreender “como na produção dos discursos se inscreve o conflito” seja o materialismo histórico, seu posiciona- mento implica rupturas com o economicismo e com o entendi- mento da produção de discursos enquanto um fenômeno superestrutural. Contudo, analisar politicamente a problemática dos discur- sos sociais é adentrar no problema do ideológico. “O ideológico se constitui no processo de produção dos discursos sociais, na materialização de um sentido que é inabordável por fora deles. O ideológico não é um produto a consumir mas a própria forma do consumo” (1978, p. 116, grifo meu). Através da própria análise da “escritura massiva”, esse au- tor conclui: “O trabalho ideológico […] se situa na própria es- critura, visto que é nela, e não em nenhum tipo de conteúdos, que se configura e plasma a organização desse espaço cujas ‘fi- guras’ podem variar ao infinito, a começar pelas figuras simpló- rias das fotonovelas as muito mais complexas de certas novelas policiais ou de algumas séries de televisão norte-americanas” (MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 224). Além de rastrear essas marcas da dominação, Martín-Barbero propõe outra articulação: a do desejo, a do sujeito pulsional. Jus- tifica a inclusão desse aspecto na medida em que implica a possi- bilidade de entender a extensão do econômico, isto é, como a economia libidinal trabalha e é trabalhada pela ordem da domina- ção, como o dispositivo da sexualidade se inscreve no discurso, integrando-o. A contribuição fundamental desse aporte psicanalí- tico reside na eliminação da pretendida exterioridade do imaginá- rio em relação ao real.10 90 Martín-Barbero vai propor, então, uma concepção de discur- so-prática. Se pensado como prática, o discurso carrega-se de um volume histórico. Ao mesmo tempo que implica a relação do discur- so com a língua, o discurso-prática transborda esse limite e se cons- titui na trama da intertextualidade. “[…] um discurso não é jamais uma mônada, mas o lugar de inscrição de uma prática cuja materia- lidade está sempre atravessada pela de outros discursos e outras prá- ticas. Intertextualidade diz, nesse caso, não só das diferentes dimensões que num discurso fazem visível e analisável a presença e o trabalho de outros textos, [...] mas diz, também, da materialização no discurso de uma sociedade e de uma história” (1978, p. 137). Resta, enfim, enfatizar a crítica desse autor à homologia do conceito de cultura ao de ideologia, assim como a impossibilidade de continuar pensando o sistema ideológico como uma unidade de sentido. Ao contrário, propõe vê-lo como “algo fragmentário e ins- tável”, contudo, incrustado numa estrutura, onde a especificidade da análise ideológica reside no estudo das relações do discurso e suas condições de produção. Entretanto, analisar o processo de produção e consumo dos discursos implica, também, o estudo dos sujeitos produtores. “Sujeitos que […] não se definem por algum tipo de intencionalidade, mas pelo ‘lugar’ que ocupam no espaço social e pela forma como inscrevem sua presença no discurso” (MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 121). Aqui se manifesta essa tensão entre o peso da estrutura e a emergência da ação dos sujeitos. O que vem a seguir, depois dessas proposições, encontra-se na seqüência do trabalho desse autor, que culmina com a publica- ção de De los medios a las mediaciones (1987). Aí é, fundamental- mente, a contribuição gramsciana que vai permitir abordar a comunicação como dimensão constitutiva da cultura e, portanto, de produção da sociedade. Trato novamente das relações entre cultura, ideologia e po- der, agora em García Canclini, para depois desenhar o mapa do ingresso de Gramsci nos estudos culturais, embora este já tenha sido esboçado. Através de uma série de conferências realizadas no início dos anos 80, intituladas “Pode ser hoje marxista a teoria da cultura?”, “Reprodução social e subordinação ideológica dos sujei- tos” e “Como se configuram as culturas populares: a desigualdade 91 na produção e no consumo”, García Canclini11 trata diretamente de tal assunto, condensando suas observações a esse respeito. Mas é claro que essas posições se manifestam e têm ressonância em sua produção intelectual compreendida como um todo. Vale acen- tuar que a intenção é discutir uma teoria da cultura na contempo- raneidade e não, uma teoria dos meios de comunicação de massa. Seguindo a trilha proposta por esse autor, falar de uma possí- vel teoria marxista da cultura implica recorrer ao tratamento dado a temática da ideologia e as questões que permaneceram em aberto a partir desse olhar. Quatro limitações básicas, recuperadas aqui sin- teticamente, no pensamento marxista sobre ideologia são aponta- das por García Canclini. E são justamente nesses espaços que contribuições de outros campos disciplinares, assim como refor- mulações sobre a teoria marxista da ideologia, devem ser incorpo- radas para refletir sobre a complexidade dos processos ideológicos. Em primeiro lugar, García Canclini aponta que a grande mai- oria dos textos marxistas refere-se à ideologia das classes dominan- tes. Contudo, reconhece que alguns autores marxistas se detiveram no aspecto oposto. Mas, de uma forma geral, o conhecimento da cultura e da ideologia dos setores populares têm sido foco de aten- ção de antropólogos não-marxistas. Ao incorporar à problemática das culturas populares, certos desdobramentos teórico-metodológi- cos (por exemplo, os de Bourdieu, Williams, Cirese e Lombardi Satriani) passam a reposicionar a problemática ideológica no espa- ço da interação entre classes e grupos sociais e como parte da dis- puta pela hegemonia. Assim, a ideologia aparece como um efeito da desigualdade entre classes e das suas relações conflitivas. Além disso, os fenômenos ideológicos passam a ser entendi- dos não somente como derivados das classes, mas, também, como resultantes de outras diferenciações sociais (etnias, grupos profis- sionais, frações de classe). E assim “[…] as ideologias ou as dife- renças culturais entre esses grupos se constituiram não somente na produção – como na teoria marxista clássica sobre as classes – mas, também, no consumo” (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 20). Ques- tão que será tratada mais adiante. Em segundo lugar, a metáfora marxista de ideologia como reflexo contribuiu para que se atribuisse à representação, e não à 92 estrutura econômica, a responsabilidade deformadora. Assim, as teorias do conhecimento e da cultura que aderem a essa idéia tendem a pensar a determinação da estrutura sobre a superesturu- tura como causal, mecânica e unidirecional. Na realidade, rebate García Canclini (1995a, p. 18), a determinação é estrutural, re- versível e multi-direcional: “a base material determina por múlti- plos condutos a consciência (se podemos seguir falando essa linguagem) e esta sobredetermina dialeticamente, também, de forma plural, a estrutura”. Recuperando a reflexão de outro autor marxista, associado a posturas althusserianas – Maurice Godelier – García Canclini en- dossa o princípio de que qualquer prática é simultaneamente eco- nômica e simbólica. Ela existe nas relações sociais que são, por sua vez, relações de significação. “O pensamento não é um mero reflexo das forças produtivas; tem nelas, desde o começo, uma condição material de seu aparecimento. […] Essa parte ideal, pre- sente em todo desenvolvimento material, não é, desse modo, ape- nas um conteúdo da consciência; existe ao mesmo tempo nas relações sociais que são, portanto, também, relações de significa- ção” (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 21). Esse tipo de análise que identifica ideologia como “reflexo”, diz García Canclini, fez com que ela tenha sido estudada funda- mentalmente como sistema de representações conceituais e reper- tório de imagens, em detrimento de sua organização material, sendo esta a terceira limitação desse corpo teórico. Gramsci é quem renova a perspectiva marxista, incluindo como parte do processo ideológico, instituições que fazem possível a produção e circulação da ideologia, isto é, um nível de materialidade. De outro lado, através da contribuição dos estudos semióti- cos, a ideologia passou a ser vista, sobretudo, como um sistema de regras semânticas, isto é, como um nível de significação pre- sente em qualquer discurso. As reflexões de Martín-Barbero e Hall revelam esse tipo de abordagem. E, por último, segundo García Canclini, a ênfase no estudo da ideologia em contraposição à ciência funcionou como obstá- culo à formação de uma teoria marxista da cultura. Através dessa 93 estratégia, a ideologia é vista como distorção e encobrimento das relações sociais. Alguns autores que se ocuparam das outras funções da ideologia (por exemplo, assegurar a coesão entre os membros de cada classe ou uma nação; garantir a reprodução de suas condições de repro- dução) não desenvolveram adequadamente esses aspectos ‘positi- vos’ da ideologia, como ocorreu com Althusser, porque a oposição [da ideologia] à ciência os induziu a destacar a função negativa, seu papel osbtaculizador para o conhecimento correto da estrutu- ra social. (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 19) Entretanto, a inserção da problemática da ideologia nas teo- rias da reprodução social e da hegemonia, permite que esta seja encarada como um componente indispensável para a reprodução material e simbólica da sociedade, para construir o consenso e a coesão social. Do ponto de vista de García Canclini, é necessário afirmar a indissolubilidade do econômico e do simbólico, do material e do cultural. Questão colocada, em outros termos, expostos anterior- mente, por Stuart Hall e Martín-Barbero. Incrustam-se exatamen- te nesse ponto, dois questionamentos clássicos, ou seja, como se efetua a mediação entre estrutura e superestrutura e como se dá a relação entre indivíduo e sociedade, melhor ainda, como se inte- riorizam as estruturas sociais nos sujeitos individuais e coletivos. A proposta esboçada por García Canclini ampara-se, princi- palmente, nas formulações de Pierre Bourdieu. Quando Bour- dieu estuda os públicos dos museus, os perfis do gosto, a estrutura da escola e da educação na sociedade francesa, está tratando de explicar como se reproduz uma sociedade e como se organizam as diferenças entre as classes sociais, enfim, como se estrutura a cultura e a sociedade. Assim, ele trata de desvendar o processo através do qual as classes hegemônicas, utilizando as estruturas simbólicas – estruturas ideológico-culturais – constroem sua legi- timidade. A teoria dos campos, do habitus e do poder simbólico são construídas e articuladas com esse propósito. Não cabe, aqui, recuperar essas proposições por si mesmas, apenas os momentos onde se dá a convergência entre as idéias de 94 Bourdieu, incorporadas por García Canclini, e as dos estudos culturais britânicos, através dos posicionamentos de Hall. E, também, aqueles pontos onde o próprio García Canclini se afas- ta da teoria bourdiana, unificando sua posição com a dos estu- dos culturais. O esquema estruturador da sociedade é a teoria dos campos que vem substituir a divisão clássica entre estrutura e superestru- tura. A localização de cada campo na totalidade da estrutura soci- al remete ao princípio das diferenças entre classes sociais. Aqui, as classes sociais não se diferenciam apenas pela sua participação na produção, mas, também, pela diferenciação pelo consumo. “[…] as diferenças e desigualdades se duplicam sempre por distinções simbólicas. E essas distinções simbólicas têm por função eufemi- zar e ‘legitimar’ a desigualdade econômica”(BOURDIEU apud GAR- CÍA CANCLINI, 1995a, p. 37). As formas através das quais os membros de cada classe ou grupo reproduzem a estrutura social mediante seu comportamen- to cotidiano conduz ao problema da interiorização das estruturas sociais nos sujeitos. É, aqui, que a teoria do habitus se insere. Estruturas estruturadas: porque o habitus que cada um leva den- tro, foi estruturado a partir da sociedade, não é engendrado por nós mesmos. Quando adquirimos a linguagem, a língua a nós preexiste, estrutura-nos de uma certa forma para pensar e perceber a realidade nos moldes que essa linguagem permite. Mas, por sua vez, essas estruturas estruturadas estão predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, no sentido de que são estruturas que vão organizar nossas práticas, a maneira pela qual vamos atuar na sociedade. (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 40) Então, sua relação com a existência de estruturas “estrutura- das” – uma determinação social – e “estruturantes” – que organi- zam novas práticas sociais –, aproxima essa teoria do estruturalismo marxista. E tal laço torna-se mais estreito quando se insere a me- diação da linguagem e, conseqüentemente, a reprodução social. Embora García Canclini alerte para o fato de que nem sem- pre as práticas correspondem ao habitus na teoria de Bourdieu, impõe-se nessa teoria uma visão reprodutivista da sociedade. 95 Seu trabalho [o trabalho de Bourdieu] nos ajuda a perceber o pouco que podemos escolher, [pois] estamos condicionados por uma estrutura social, pelo pertencimento a grupos, a campos, a classes que nos fazem atuar de uma certa forma. No entanto, parece- me que uma certa estabilidade e falta de mobilidade social na socie- dade francesa, o caráter fortemente reprodutor, por exemplo, do sistema escolar, que é onde ele analisa mais rígida e estaticamente o fenômeno, tem dado pouco lugar na teoria bourdiana às práticas transformadoras. Poderíamos dizer que falta distinguir entre as prá- ticas como execução ou reinterpretação do habitus, e a praxis como transformação da conduta para a transformação das estruturas obje- tivas. Bourdieu não examina como o habitus pode variar segundo o projeto reprodutor ou transformador de distintas classes e grupos sociais. (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 43) Aí se inicia o distanciamento de García Canclini da teoria bourdiana. De um lado, existe um movimento que reconhece que as estruturas sócio-culturais condicionam as mudanças políticas, ou dito de outra forma, a potencialidade transformadora das dis- tintas classes sociais está limitada pela lógica do habitus de classe. Há um reconhecimento da força da reprodução social pela inser- ção dessa lógica no cotidiano dos sujeitos. De outro, existe uma problematização de como inserir a ruptura nesse espectro, isto é, um movimento que força em direção contrária. Para mostrar conceitualmente como esses dois movimentos podem em determinadas situações coexistir, é preciso retomar o conceito de cultura em García Canclini. Sua noção de cultura se situa entre a antropologia, um certo modo de tratamento da rela- ção entre o econômico e o simbólico trabalhado pelo marxismo, e desenvolvimentos contemporâneos da sociologia da cultura. Em síntese, cultura é um processo de produção de fenômenos que contribui através da representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais para compreender, reproduzir ou trans- formar o sistema social. De acordo com García Canclini, estamos considerando [a cultura] como um lugar onde se repre- senta nos sujeitos o que sucede na sociedade; e, também, como instrumento para a reprodução do sistema social. […] se os sujeitos não interiorizam, através de um sistema de hábitos, de disposições, de S 96 esquemas de percepção, compreensão e ação a ordem social, esta não pode produzir-se somente através da mera objetividade. Ne- cessita reproduzir-se, também, na interioridade dos sujeitos. Essa dimensão simbólica, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva, é nu- clear dentro da cultura. (1995a, p. 60) A cultura tem, portanto, uma função de conhecimento do sistema social. No entanto, os sujeitos não somente conhecem esse sistema social através da cultura como buscam sua transfor- mação, procuram elaborar alternativas. E é exatamente nesse ponto que se pode distinguir a diferença entre ideologia e cultura. No entendimento de García Canclini, nem tudo é ideológico nos fenômenos culturais, se ideologia for entendida como deforma- ção do real em função dos interesses de classe, sendo esta a visão de ideologia da maioria dos autores marxistas. Por essa razão, ele con- servaria o termo cultura precisamente por ter uma abrangência maior. Na verdade, cultura não pode ser intercambiável com ideo- logia porque a primeira implica que toda produção social de sentido é suscetível de ser explicada em relação às suas determi- nações sociais. Esse tipo de explicação, todavia, não esgota o fenômeno. Cultura tem uma abrangência mais vasta, pois não só representa a sociedade, também, cumpre a função de reelabo- rar as estruturas sociais e imaginar novas. “Além de representar as relações de produção, contribui para reproduzi-las, transfor- má-las e inventar outras”, diz o próprio García Canclini (1995a, p. 23). E o conceito de ideologia, seja ela vista como deforma- ção, reflexo ou representações das condições reais de existência, não admite esse entendimento. Além disso, não dá para esque- cer que ideologia, na visão marxista, é reduzida a interesses de classe, a formas de dominação relacionadas à classe dominante. Residiriam aí os motivos pelos quais os estudos culturais vão dar preferência ao termo cultura. Através da reconstituição dos três itinerários – Hall, Mar- tín-Barbero e García Canclini – conclui-se que esses autores percorreram percursos diferenciados, porém coincidentes, nos pressupostos de que a cultura não é determinada pela estrutura e que a ideologia não é mero reflexo das condições de produ- ção e que ambas são constituídas e constituem a estruturação 97 da sociedade. É para esse ponto que converge a reflexão dos três autores em pauta: a cultura/comunicação como constitutiva da trama social, portanto contribuindo tanto para a reprodução quanto para a transformação e renovação do tecido social vigente. E, em certo sentido, Gramsci será o ponto de confluência teórica, mas seu aporte deixará marcas de intensidade distinta nas trajetórias individuais estudadas e nos estudos culturais como um todo. O APORTE GRAMSCIANO Uma análise dos meios de comunicação de massa centrada na ideologia, nos moldes propostos por Louis Althusser, não per- mitia abertura suficiente para abarcar aqueles espaços que esca- pam das malhas da dominação. Diante de uma perspectiva que desembocava invariavelmente em reprodução social, a incorpora- ção, sobretudo, do conceito de hegemonia de Antonio Gramsci permitiu vislumbrar um movimento mais dinâmico e complexo na sociedade, admitindo tanto a reprodução do sistema de domi- nação quanto a resistência a esse mesmo sistema. Em termos ge- néricos, esse argumento é válido para a vertente britânica, assim como para a perspectiva latino-americana. Do ponto de vista britânico, Hall (1996a, p. 267) aponta a reflexão de Antonio Gramsci como instigadora e fundamental na constituição dos estudos culturais, se considerados os “silêncios” do marxismo sobre uma questão muito cara aos estudos culturais, isto é, o âmbito do simbólico. pessoalmente penso que os estudos culturais no contexto britânico, num determinado período, aprenderam a partir de Gramsci: formi- dáveis porções sobre a própria natureza da cultura, sobre a disciplina do conjuntural, sobre a importância da especificidade histórica, sobre a imensamente produtiva metáfora da hegemonia, sobre a forma pela qual alguém pode pensar as questões de relações de classe somente usando a noção substituta de conjuntos e blocos. Tendo em vista não só essa avaliação, mas, também, várias investigações realizadas dentro desta tradição, pode-se dizer que os estudos culturais britânicos, durante o período em que Hall 98 presidiu o CCCS – 1968/1979, discutiram e trabalharam de forma mais extensa a contribuição gramsciana. Nos próprios trabalhos de Stuart Hall observa-se uma preocupação em recu- perar noções como “formação social” que propicia uma análise da articulação entre os níveis político, econômico e ideológi- co, sem determinação de um sobre o outro, assim como a pers- pectiva “relacional”, necessária para implementar análises nesses moldes. Porém, várias dessas investigações caracterizaram-se fundamentalmente como análises políticas conjunturais, utili- zando os meios de comunicação de massa apenas como um dos seus suportes. Em relação à perspectiva latino-americana estudada, o aporte gramsciano parece circunscrever-se a análises propriamente cultu- rais, embora essas tenham uma forte conotação política na medida em que vão dar vazão a demandas populares antes desconsideradas. É, principalmente, o conceito de hegemonia e as possibilidades aber- tas por ele para a compreensão do âmbito do popular que repercu- tem nessa vertente de análise cultural da comunicação e, especialmente, nas formulações de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini. De forma enfática, Martín-Barbero reconhece a importância do pensamento de Gramsci na análise cultural, desbloqueando o debate sobre a cultura dentro do marxismo e contribuindo de forma fundamental à construção de sua própria proposta investi- gativa da comunicação. fazendo possível pensar o processo de dominação social já não como imposição a partir de um exterior e sem sujeitos, mas como um processo no qual uma classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que também reconhecem de alguma maneira como seus, as classes subalternas. E ‘na medida’ significa aqui que não há hegemonia, mas sim que ela se faz e desfaz, refaz-se perma- nentemente num ‘processo vivido’, feito não só de força mas tam- bém de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de sedução e de cumplicidade. O que implica uma desfuncionalização da ide- ologia – nem tudo o que pensam e fazem os sujeitos da hegemonia serve à reprodução do sistema – e uma reavaliação da espessura do cultural: campo estratégico na luta por ser espaço articulador dos conflitos. (1987a, p. 84) 99 O aporte gramsciano tornou possível inverter o sentido da idéia – a comunicação como processo de dominação – até então hege- mônico na visão “crítica” dos pesquisadores da comunicação, na América Latina dos anos 70. Assim, Martín-Barbero passa a pro- por, no final dessa mesma década, a investigação da dominação como processo de comunicação, pois a dominação é, também, ativi- dade e não pura passividade da parte do “dominado”. Essa mu- dança de enfoque foi possível graças à incorporação do conceito gramsciano de hegemonia entendida como um processo vivido pelos sujeitos sociais. Em Comunicación masiva – Discurso y poder (1978), essa idéia germina, ganhando densidade em De los medios a las comunicacio- nes (1987). E no aniversário de dez anos de publicação desse último texto, ao realizar um balanço de seu programa de investi- gação, Martín-Barbero reconhece que tudo iniciou juntando Pau- lo Freire com Gramsci. “Compreender a comunicação implicava, portanto, investigar não só as artimanhas do dominador, mas tam- bém aquilo que no dominado trabalha a favor do dominador, isto é, a cumplicidade de sua parte e a sedução que se produz entre ambos. Junto com Gramsci foi Paulo Freire quem me ensinou a pensar a comunicação, ao mesmo tempo, como um processo so- cial e como um campo de batalha cultural” (1998a, p. 202). A opção de incorporar parte da reflexão de Gramsci pelos estudos culturais, incentivada, principalmente, através da lideran- ça de Stuart Hall, deve-se em grande medida ao seu ataque ao economicismo e reducionismo dentro do marxismo clássico. O economicismo e o reducionismo devem ser entendidos como uma aproximação teórica que tenta ler/interpretar as fundações econô- micas da sociedade como a única estrutura determinante. “Essa abordagem tende a ver todas as outras dimensões da formação como simples espelho do ‘econômico’ em outro nível de articula- ção e não tendo nenhuma outra força determinante ou estrutura- dora no seu próprio direito. A abordagem, de forma simples, reduz tudo numa formação social ao nível econômico e conceitua todos os outros tipos de relações sociais como direta e imediata- mente correspondentes ao econômico” (HALL, 1996c, p. 417). 100 Essa, também, pode ser considerada como uma das vias de entrada de Gramsci no arcabouço teórico de García Canclini. Em As culturas populares no capitalismo (1983), García Canclini manifesta a intenção de superar as premissas que o idealismo deixou sem expli- cação, assim como o reducionismo do materialismo mecanicista. O termo cultura significará, então, “a produção de fenômenos que con- tribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transfor- mação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e re- estruturação do sentido” (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 29). Entretanto, García Canclini ressalta que sua definição não pro- põe uma identificação do cultural com o ideal e do social com o material, como também não supõe que esses níveis possam ser es- tudados de forma separada. “Ao contrário, os processos ideais (de representação ou reelaboração simbólica) remetem a estruturas mentais, a operações de reprodução ou transformação social, a prá- ticas e instituições que, por mais que se ocupem da cultura, impli- cam uma certa materialidade. E não é só isso: não existe produção de sentido que não esteja inserida em estruturas materiais”(Idem). Embora se apresente de um modo peculiar, esse tipo de vin- culação já estava expresso nas formulações de Williams sobre a “estrutura de sentimento”, ou seja, a forma pela qual sentidos e valores são vividos na vida real. A noção de “estrutura de sentimen- to” teve seu esboço num livro publicado em 1954, onde se lia: Todos os produtos de uma comunidade são, num dado período, […] essencialmente relacionados, embora na prática e no detalhe isso não seja simples de se observar. No estudo de um período, podemos ser capazes de reconstruir com mais ou menos exatidão a vida material, a organização social geral e, numa abrangência maior, as idéias dominantes. Não é necessário discutir aqui qual desses aspectos, se algum, no conjunto global, é determinante […] Mas apesar de ser possível, no estudo de um período do passado, separar aspectos particulares da vida e tratá-los como se fossem independentes, é óbvio que tais aspectos somente poderão ser estudados dessa forma, jamais experienciados. (WILLIAMS apud HALL, 1993b, p. 352) 101 Reitera-se aí que somente para efeitos de análise podemos separar diferentes aspectos da vida, pois na realidade tais níveis não são experienciados dessa forma. Também na proposta de Williams que foi fundamental na constituição do projeto dos estudos culturais, a introdução do conceito de hegemonia foi essencial para deslocar a idéia de cultura do âmbito da ideologia, isto é, da reprodução social. O fato de Williams, Hall, Martín-Barbero e García Canclini coincidirem na tematização da cultura como um espaço de pro- dução social e não só de reprodução, assim como o fato de credi- tarem a Gramsci um papel importante no repensar desse papel no espectro da perspectiva marxista, não podem ser associados dire- tamente à idéia de que a construção desses posicionamentos se deu mediante essa única via. Influências diversas atuaram nas tra- jetórias individuais desses intelectuais na problematização das questões mencionadas. Por exemplo, no trabalho de García Canclini percebe-se tanto a influência teórica de Pierre Bourdieu quanto de Anto- nio Gramsci. O enfoque mais fecundo é aquele que entende a cultura como um instrumento voltado para a compreensão, reprodução e transfor- mação do sistema social, através do qual é elaborada e construída a hegemonia de cada classe. De acordo com essa perspectiva, tratare- mos de ver as culturas das classes populares como resultado de uma apropriação desigual do capital cultural, a elaboração específica das suas condições de vida e a interação conflituosa com os setores hegemônicos. (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 12, grifo meu). A articulação entre esses dois autores parece possível na me- dida em que García Canclini historiciza o modelo de Bourdieu, ou seja, um desenvolvimento específico das forças produtivas e das relações sociais construiu em nosso continente um capital cultural heterogêneo em que confluem a herança das culturas pré- colombinas, a cultura européia, especialmente a espanhola e por- tuguesa e, por fim, a presença negra. No entanto, em Culturas Híbridas (1989), o autor reconhece que a articulação entre hegemonia e reprodução ainda não está 102 resolvida na teoria social. Embora o conceito de hegemonia per- maneça ainda manifesto nas suas formulações, García Canclini vai assumindo um posicionamento crítico no que diz respeito à incorporação propriamente dita de tal conceito nas análises cultu- rais. Aliado a isso, a discussão sobre a modernidade e pós-moder- nidade na América Latina e suas conseqüências, que se revelarão de forma ainda mais contundente nos próximos trabalhos (1995b), vai contribuir para redirecionar sua armação teórica. Como se vê, os percursos individuais dos autores estudados são diferentes. Contudo, existe uma preocupação semelhante: me- diante influências diversas, tanto teóricas quanto contextuais, dis- cute-se o reducionismo e economicismo do marxismo ortodoxo. Todos rejeitam a lógica de uma determinação direta do âmbito da economia sobre a cultura e a função desta como reprodutora da estrutura social. Ao tematizarem essa questão, Martín-Barbero, García Can- clini e Hall, mesmo que em momentos históricos específicos, re- conhecem o papel fundamental exercido pela obra de Gramsci no repensar o espaço do simbólico. No entanto, concretizam-se la- ços distintos: seja Gramsci com Freire, Gramsci com Bourdieu ou ainda Gramsci com posições identificadas como estruturalis- tas, principalmente, com uma parte da reflexão de Althusser. Se, por um lado, isso impede de falar em plena identidade teórica entre essas reflexões, por outro, é possível notar afinidades teóri- cas entre elas. A exemplo do que ocorreu na formação do projeto dos estudos culturais britânicos, nota-se novamente uma “unida- de na diferença” entre os três autores aqui estudados. Como foi mencionado anteriormente, a tradição britânica sofre uma influência mais abrangente da contribuição gramscia- na. Por exemplo, a utilização do conceito de formação social vai ajudar a pensar que as sociedades são necessariamente totalidades complexas estruturadas em diferentes níveis (econômico, político e ideológico) e em distintas combinações; cada combinação dá vazão a uma configuração diferente das forças sociais e, assim, a um desenvolvimento social característico. Nas ‘formações sociais’, está se tratando com sociedades comple- xamente estruturadas, compostas de relações econômicas, políticas 103 e ideológicas em que os diferentes níveis de articulação, de qual- quer maneira, simplesmente não correspondem ou ‘espelham’ uns aos outros, mas são […] ‘determinantes’ uns nos outros. É essa complexa estruturação dos diferentes níveis de articulação, não simplesmente a existência de mais de um modo de produção, que constitui a diferença entre o conceito de ‘modo de produção’ e a necessariamente mais concreta e historicamente específica noção de ‘formação social’. (HALL, 1996c, p. 420) O conceito de “formação social” propicia compreender as relações entre estrutura e superestrutura através de um entendi- mento mais complexo e dinâmico. O pressuposto, aqui, é que se estabelece uma articulação entre essas forças em qualquer forma- ção social, suspendendo-se a idéia de determinação. Logo, Gra- msci também vai contribuir de forma substancial para esse debate. Outra idéia fundamental para estabelecer as bases de uma análise histórica e dinâmica das “relações de força” que constitu- em o terreno da luta política e social é o parâmetro “relacional”, também, proposto por Gramsci. Aqui ele [Gramsci] introduz a noção crítica que nós estamos pro- curando, que não é a vitória absoluta de um lado sobre outro, nem a total incorporação de um conjunto de forças em outro. Antes, a análise é um problema relacional – isto é, uma questão a ser resolvida relacionalmente, usando a idéia de ‘balanço instável’ ou ‘o processo contínuo de formação e substituição do equilíbrio instável’. A questão crítica é ‘as relações de forças favoráveis ou desfavoráveis a esta ou aquela tendência’. Esta ênfase às ‘relações’ e ao ‘balanço instável’ lembra-nos que forças sociais que deixam de existir num período histórico particular não desaparecem do terre- no do conflito, nem o conflito, em tais circunstâncias, é suspenso. (HALL, 1996c, p. 422) Ou seja, ao aderir a uma noção de formação social que in- trinsecamente implica o estabelecimento de “relações” entre ins- tâncias diferentes – econômica, política e cultural –, que não se caracterizam por assumir um caráter de determinação, a análise passa a privilegiar o aspecto “relacional”, configurando-se uma perspectiva teórica que exige, para sua unidade conceitual, ser complementada pela concepção de hegemonia. 104 O que se observa, também, é que certos conceitos gramscia- nos vão permitindo uma formação teórica mais flexível do que aquela fundamentada no estruturalismo marxista. Embora mes- mo Williams já tivesse recuperado a contribuição de Gramsci, o arcabouço conceitual dos estudos culturais britânicos, sob influên- cia de Hall, manifesta com muito mais força essa incorporação na medida em que a trama teórica passa a ter como pilar a noção de hegemonia. Ao contrário do que possa parecer devido à abertura que propiciou, a incorporação do trabalho de Gramsci pela trajetó- ria britânica de estudos culturais tem motivado algumas críticas. Ao examinar, principalmente, textos publicados pelo CCCS e pela Open University associados à cultura popular, Harris (1992) avalia que Gramsci pareceu oferecer um marxismo “simpático”, pois era teoricamente respeitado, não-reducionista e ativista nas suas implicações. De outro lado, a utilização do conceito de hegemonia ofereceu a vantagem de dignificar uma série de ati- vidades como “políticas”. Todavia, Harris reconhece que a perspectiva influenciada por Gramsci dentro dos estudos culturais abriu um número de áreas à inspeção crítica, resultando numa nova abordagem; foi responsá- vel, também, pela emergência de uma sociologia crítica da cultu- ra e pela “politização” dessa temática. No entanto, o mesmo autor conclui: “Muito sinteticamente, o gramscismo, para mim, está demasiadamente pronto […] a fazer seus conceitos prematura- mente idênticos com os elementos dessa realidade de variadas formas. Os escritos de Gramsci, para mim, estão sujeitos a um fechamento prematuro por serem demasiado ‘estratégicos’ tam- bém – por permitirem o privilegiamento da análise política […]. Tais fechamentos têm benefícios, mas, também, consideráveis perdas” (HARRIS, 1992, p. 195). Entre as desvantagens usualmente creditadas às análises dos estudos culturais como um todo e que podem estar associadas à influência da perspectiva gramsciana, especialmente à incorpora- ção do conceito de hegemonia, estariam a excessiva atenção à superestrutura, à capacidade de ação dos sujeitos e a essa “outra” expressão cultural identificada como comum e ordinária. 105 Entretanto, no território latino-americano, Martín-Barbero (1995a, p. 52) reafirma a importância da incorporação do con- ceito de hegemonia na análise da dimensão cultural, destacando-a como um avanço teórico. A hegemonia nos permite pensar a dominação como um processo entre sujeitos onde o dominador intenta não esmagar, mas seduzir o dominado, e o dominado entra no jogo porque parte dos seus próprios interesses está dita pelo discurso do dominador. E, segun- do elemento que nos traz Gramsci com o conceito de hegemonia, é que essa dominação tem que ser refeita continuamente, tanto pelo lado do dominador como pelo do dominado. (grifo meu) A adoção dessa categoria na perspectiva proposta por Mar- tín-Barbero revela-se, em primeira mão, no questionamento das teorias dominantes na investigação da comunicação, na medida em que primordialmente não contemplam o modo como as pes- soas se comunicam e usam os meios de comunicação. Nas teorias dominantes, a comunicação assume um sentido genérico de cir- culação de informações. Antes de ir adiante no delineamento das conseqüências da incorporação da categoria de hegemonia na análise da comunica- ção, vale anotar que a crítica às teorias dominantes na pesquisa em comunicação já era o mote da obra de Martín-Barbero, Comu- nicación masiva – Discurso y poder (1978). O diferencial é que nesse texto a crítica se faz a partir da perspectiva semiológica, permane- cendo, então, o foco na “escritura massiva”. A necessidade de estu- dar os sujeitos sociais encontra-se esboçada, mas não é o eixo central da discussão. No contexto do livro De los medios a las mediaciones (DMM12), a primeira implicação da adoção de hegemonia é o (re)direcionamento da problemática da comunicação para a cultura, modificando sua compreensão. O sentido agora é de processo produtor de significa- ções e, portanto, o receptor não é apenas decodificador do que existe na mensagem, imposto pelo emissor, mas também produ- tor de novos significados. Logo, aqui, a ênfase do autor é outra. Sendo assim, comunicação assume o sentido de práticas sociais.13 Elas podem ser entendidas enquanto práticas coletivas quando se 106 fala do sentido que a comunicação assume para os sujeitos. As- sim, trata-se da comunicação nas ruas, nas casas, nas praças, nas festas, nos bairros, nas escolas, nas famílias; entre mulheres, jo- vens, indígenas, trabalhadores rurais, domésticas, etc. Mas, tam- bém, as práticas podem assumir o sentido de produção cultural. Práticas culturais que expressam valores e significados promovi- dos por instituições, corporações, intelectuais, a publicidade e os meios de comunicação em geral. Pensar a comunicação a partir da cultura, programa de inves- tigação elaborado por Martín-Barbero, pressupõe não centralizar a observação nos meios em si, ou seja, concentrar-se nos artefatos, mas abrir a análise para as mediações. De forma genérica, significa deslocar os processos comunicativos para o denso e ambíguo espa- ço da experiência dos sujeitos. Isso parece coincidir com a recém citada análise de Williams e mais ainda com seu posicionamento de associar cultura à própria noção de experiência. Em outras análises da rota aberta por Martín-Barbero para pensar a modernidade latino-americana, através da categoria me- diações, reafirma-se como fundamental o eixo da experiência, po- rém a partir das sugestões de Walter Benjamin. Eliseo Colón, um dos pesquisadores que se aprofunda nesta relação, pondera que embora fique sugerido um diálogo com a obra de Raymond Willi- ams e Antonio Gramsci, o amparo fundamental está na “experiên- cia urbana”, proposta por Benjamin. “É a possibilidade do fragmento, a ruína, da estética que se rebela contra a Aesthetica, da resistência diante do poder sedutor da totalidade; é a estética que propõe Benjamin”(Colón, 1998, p. 32). O acento recai no pensar a experiência à moda de Benjamin, isto é, na região huma- na da percepção: da recepção múltipla e dispersa da experiência urbana. Para Colón, do ponto de vista da perspectiva benjaminiana, a noção que esbo- ça Martín-Barbero da mediação, com sua superposição de pedaços dispersos e fragmentos, é coerente com a experiência urbana [de Benjamin]. Em Martín-Barbero, esses fragmentos que, para os humanos, ocupam o lugar do autêntico, são a arquitetura da coti- dianidade do bairro, da rua. São os grafites, a música, a festa, o chiste, as feiras, o mercado. (1998, p. 33) 107 Não há como negar esta imbricação entre o pensamento de Martín-Barbero e Benjamin, especialmente se tomado como pon- to de encontro a insistência do primeiro nas transformações dos modos de percepção (novo sensorium) e da experiência social, pro- porcionados pelas alterações que ocorrem no espaço da cultura. O que não invalida, de outro lado, a vinculação de Martín-Barbe- ro a Williams, pois este, em outros termos, também, tratou dessa temática – a experiência. Para Williams, o objetivo da análise cultural é reconstituir a “estrutura de sentimento” ou o que a cultura está expressando, isto é, a experiência através da qual a cultura é vivida. Em Martín- Barbero a comunicação se dá, a exemplo de Williams, na cultura, sendo a categoria de mediação que faz essa ponte. A apresentação da categoria mediações, em DMM, dá-se medi- ante dois procedimentos: um de caráter conceitual e outro, ilustra- tivo. Através das observações conceituais, as mediações são concebidas como conexões, amálgamas que misturam elementos, formando um todo novo. São pontes que permitem alcançar um segundo estágio, sem sair totalmente do primeiro. Dessa forma, as mediações constituem-se em articulações entre matrizes culturais distintas, por exemplo, entre tradições e modernidade, entre rural e urbano, entre popular e massivo, também, em articulações entre temporalidades sociais diversas, isto é, entre o tempo do cotidiano e o tempo do capital, entre o tempo da vida e o tempo do relato. Através das mediações é possível entender, fundamentalmen- te, a interação entre produção e recepção ou entre as lógicas do sistema produtivo e dos usos, ou seja, o que se produz nos meios não responde unicamente ao sistema industrial e à lógica comer- cial mas, também, a demandas dos receptores, ressemantizadas pelo discurso hegemônico. Enfim, são instituições, organizações sociais, sujeitos e matrizes culturais distintas. Nos exemplos apresentados nesse livro (DMM), as mediações tanto podem ser meios – a literatura de cordel espanhola, a litera- tura de colportage francesa,14 o cinema mexicano ; sujeitos – indi- víduos que trabalham com a literatura de colportage; gêneros – radioteatro, folhetim, melodrama, as séries e os gêneros televisi- vos; e espaços – o cotidiano familiar, o bairro. 108 Além disso, no estudo da telenovela colombiana, coordenado por Martín-Barbero, pode-se entender a própria como mediação no entendimento do processo de constituição do massivo, assim como a classe social, o gênero, a geração, a etnia, a família, o bairro e a cidade como mediações para as diversas possibilidades de leituras da telenovela. E, assim, novamente, ao juntar todas essas pistas, espalhadas tanto no seu texto seminal (DMM) quanto na sua ampla produção de artigos, conferências e entrevistas, o sulco que vai se formando contorna insistemente o enfoque do cultural no espaço do cotidi- ano. A tentativa é aproximar-se da “experiência que as pessoas têm e ao sentido que nela adquirem os processos de comunicação” (MARTÍN-BARBERO citado HERLINGHAUS, 1998, p. 17). Ainda em DMM, o autor propõe “como hipótese” três lu- gares de mediação preferenciais: a cotidianidade familiar, a tem- poralidade social e a competência cultural. A primeira trata da família como unidade básica de audiência ou recepção, por isso, seria um dos espaços-chave de recepção e decodificação. A se- gunda diz respeito à relação entre o tempo produtivo do sistema social e o tempo repetitivo do cotidiano. A última relaciona-se à presença de uma matriz cultural e um modo de perceber/ler/usar os produtos culturais. Em outro lugar, Martín-Barbero (1990b) propõe a transfor- mação das hipóteses citadas em três dimensões: a sociabilidade, a ritualidade e a tecnicidade. A primeira diz respeito às negocia- ções cotidianas do sujeito com o poder e às diversas instituições, isto é, de forma mais ampla, a interação social; a segunda trata das rotinas e das regras construídas a partir da combinação dos ritmos do tempo e dos eixos do espaço, isto é, da profunda imbri- cação entre as rotinas do trabalho e as ações de transformação; a última identifica-se com as características do próprio meio. Se adotada a premissa de que os conceitos podem operar em diferentes níveis de abstração e são com freqüência consciente- mente planejados para atuar dessa forma, o importante é não jul- gar indevidamente um nível de abstração pelo outro. Seguindo essa lógica, o conceito de mediação, no projeto de Martín-Barbero, poderia equivaler-se ao de cultura, operando num nível mais geral 109 de abstração. Nesse mesmo nível, os conceitos de hegemonia e história completariam sua reflexão. E em torno da idéia de cotidi- anidade, desdobrada nas dimensões de sociabilidade, ritualidade e tecnicidade, residiria um nível de mais concretude. Movendo-se, então, para o nível mais concreto, que exige a aplicação de novos conceitos, é que aflora a ambigüidade das pro- posições do autor. Num primeiro momento, é o próprio conceito de mediação que assume essa função através de sua transformação em meios, sujeitos, gêneros e espaços (exemplificados em DMM). Numa segunda (cotidianidade familiar, temporalidade social e competência cultural) e terceira etapa (sociabilidade, ritualidade e tecnicidade) é que a concepção de mediação passa a comportar aproximações analíticas mais concretas. O problema é que não fica claro se a última etapa pressupõe o esgotamento ou o refina- mento da anterior, acrescentando sucessivas aproximações. É claro que, na ordem mais geral de sua proposta, pode-se dizer que pensar os processos de comunicação a partir da cultura pressupõe deixar de pensá-los a partir da fixidez das disciplinas e dos meios de comunicação em si mesmos. Os espaços de interse- ção de conhecimentos provenientes de áreas diversas são salienta- dos, pois não é possível compreender o que ocorre no campo da comunicação apoiando-se somente no que produzem os especia- listas da área. Tal implicação teórico-metodológica já estava expressa em Comunicación masiva – discurso e poder (1978). Lá o autor insistia na impossibilidade de manter as fronteiras disciplinares diante de um objeto que reivindica a ampliação de seus contornos. “Essas fronteiras respondem a uma divisão do trabalho teórico, da pro- dução social do conhecimento que, neste momento, torna-se obs- táculo para o desenvolvimento da investigação. Trata-se da rearticulação das ciências humanas e sociais em função das trans- formações que as novas problemáticas trazem aos ‘objetos’ tradi- cionais dessas ciências” (1978, p. 119). Enfim, entre os deslocamentos expressos no programa de investigação, elaborado por Martín-Barbero, destaco duas dimen- sões fundamentais: hegemonia e história. De um lado, a incorpo- ração do conceito gramsciano de hegemonia permite pensar a 110 dominação não como imposição, desconhecendo a existência de sujeitos, mas, sim, como construção de um consentimento/de um pacto que está permanentemente sendo refeito num processo vi- vido entre sujeitos. De outro, a análise da hegemonia acaba deslocando a idéia de cultura do âmbito puramente ideológico. A conseqüência é o abandono de uma concepção meramente su- perestrutural de cultura. Nessa direção, significa dizer que a cul- tura não é algo exterior às relações de produção, e não pode excluir as relações sociais e de poder. A dimensão histórica referenda essa posição, proporcionan- do materialidade às práticas culturais. No campo da comunicação, falar de história tem sido reduzido à história ‘dos meios’ que os autonomiza ‘mcluhianamente’, dotan- do-os de sentidos por si próprios ou faz depender esse sentido de sua relação, quase sempre exterior e mecânica, com as forças pro- dutivas e os interesses de classe. Agora tratar-se-ia de outra coisa: de uma história dos processos culturais como articuladores das práticas comunicativas com os movimentos sociais. O que implica localizar a comunicação no espaço das mediações onde os processos econô- micos deixam de ser um exterior dos processos simbólicos e estes, por sua vez, aparecem como constitutivos e não somente expressi- vos do sentido social. Porque não existe infra-estrutura ou econo- mia que escape da dinâmica significante, não é possível continuar pensando por separado e de maneira fetichista o plano dos proces- sos tecnológicos, industriais, e o da produção e reprodução do sentido. (MARTÍN-BARBERO, 1983, p. 10). Dessa forma, a proposta de Martín-Barbero organizada em torno da categoria central de mediações, no plano da análise, segun- do Reguillo (1998, p. 86), passa a ser transposta para o espaço, o tempo, a memória, as identidades que “deixam de ser concebidas como ‘determinações’, constituindo-se nas próprias mediações que, através de seu caráter histórico, permitem explicar tanto a mudança como a continuidade cultural, isto é, a cultura como uma arena de disputas simbólicas pela transformação e inovação”. Assim, o conceito de cultura se funde no de hegemonia, é a arena do consenso e da resistência, e esse é o mesmo espaço onde se funda a hegemonia. Essa premissa tem validade, especialmente 111 para Hall e Martín-Barbero. O primeiro ao aplicar o conceito de hegemonia ao contexto britânico em diferentes momentos históri- cos, iluminando diferentes temáticas, dá uma certa materialidade ao mesmo, articulando a noção de cultura com a estrutura produti- va. O segundo formula sua proposta investigativa do espaço da comunicação fundamentado nessa categoria. Do ponto de vista de García Canclini, a perspectiva aberta pelo conceito de hegemonia, embora incorporada em sua reflexão, parece reter em si mesma limitações, sobretudo iluminadas em uma possível contraposição entre subalterno e hegemônico que adiante será discutida. Contudo, a conseqüência natural da incorporação do concei- to de hegemonia pelos estudos culturais desemboca na aborda- gem de questões em torno da cultura popular e o reconhecimento da atividade ou “agência humana”. Através dos trabalhos pionei- ros de Williams, Hoggart e Thompson, a cultura e as práticas populares tornam-se objeto de investigação. Especificamente em relação ao popular, o resultado mais direto é que a teoria da hegemonia nos permite pensar a cultura popular como uma mistura ‘negociada’ de intenções e contra-intenções; tanto a partir de ‘cima’ como a partir de ‘baixo’, tanto ‘comercial’ quanto ‘autêntica’; um balanço inconstante de forças entre resistência e incorporação. Isso pode ser analisado em diferentes configura- ções: gênero, geração, raça, região, etc. A partir dessa perspectiva, cultura popular é uma mistura contraditória de interesses e valores concorrentes: nem classe média nem trabalhadora, racista ou não- racista, sexista ou não-sexista, […] mas sempre um balanço incons- tante [...]. A cultura comercialmente fornecida pelas indústrias culturais é redefinida, reconfigurada e redirigida em atos estratégicos do consumo seletivo e atos produtivos de leituras e articulação, com freqüência, em formas não pretendidas ou mesmo não calculadas por seus produtores. (STOREY, 1997, p. 127). O aporte gramsciano vai permitir, então, o entendimento de contextos históricos específicos e formações sociais em que a histó- ria é ativamente produzida pelos indivíduos e grupos sociais, man- tendo-se, ainda que de forma não acentuada, uma tensão entre as estruturas e os sujeitos. Muitas vezes, a ação dos sujeitos é valoriza- da. No entanto, reside naquele tensionamento entre estruturação e 112 “agência” o ponto de motivação para uma constante redefinição de posições teóricas dentro do leque aberto de preocupações dos estudos culturais. A reconstrução de parte da trajetória teórico-metodológica dos estudos culturais não pode ignorar esse contínuo debate entre posições diversas, o trabalho de transformação dessas posições, o rearranjo e a redefinição das diferenças teóricas do próprio cam- po em resposta a questões pertinentes a um contexto histórico específico. Esses movimentos revelaram rupturas e incorporações teóricas importantes que contribuíram para a construção da pers- pectiva teórica e das principais problemáticas da tradição dos es- tudos culturais. 113 Embora os estudos culturais não possam ser reduzidos ao estudo da cultura popular, esta temática é central no seu projeto. Mas para falar sobre tal tema, é conveniente recuperar uma breve afirmação de Williams (1983, p. 237): “cultura popular não foi identificada pelo povo, mas por outros”. Nesse sentido, é uma cri- ação intelectual. Se essa premissa for adotada, pode-se concordar com Bennet (1986b) quando observa que a questão relativa a quem é o “povo” não pode ser resolvida de forma abstrata, somente pode ser respondida politicamente. Sendo assim, a tematização da cul- tura popular em si mesma já é uma opção de cunho político. Parto, então, para rastrear como se configura conceitualmente o popular dentro dos estudos culturais e suas implicações teóricas, políticas e intelectuais. Novamente, a reconstituição do debate so- bre o popular sustenta-se nas reflexões de Stuart Hall, Néstor Gar- cía Canclini e Jesús Martín-Barbero, mas também contemplando outras trajetórias e críticas. Em linhas gerais, os estudos culturais estão, sobretudo, pre- ocupados com as inter-relações entre domínios culturais suposta- mente separados, interrogam-se sobre as mútuas determinações entre culturas populares e outras formações discursivas e estão atentos para o terreno do cotidiano da vida popular e suas mais diversas práticas culturais. Durante um longo período a cultura popular foi despreza- da e relegada como objeto de estudo. Entretanto, nos últimos tempos, avanços foram conquistados na compreensão dessa es- fera cultural. Na Grã-Bretanha, o termo foi utilizado, em um primeiro momento, para identificar uma coleção ou miscelâ- nea de formas e práticas culturais, tendo em comum o fato de estarem excluídas do cânone aceito da “alta cultura”. O desejo de conhecer empiricamente as formas culturais populares fez O POPULAR COMO OPÇÃO POLÍTICA 114 com que fosse fundada na Inglaterra, em 1878, a primeira So- ciedade do Folclore. Ao longo do percurso que foi sendo construído em torno de tal temática, observa-se que a descoberta da cultura popular, tam- bém, se associou às idéias de nacionalidade, modernidade, for- mação da identidade nacional em um contexto de industrialização e democratização. Em contraste, no debate contemporâneo, inte- ressa destacar que os estudos dedicados às culturas populares es- tão estreitamente articulados à política, à direção política e cultural das sociedades. Numa tentativa de reconstituição extremamente sintética dos debates sobre o tema do “popular” em um passado recente, no meio britânico, pode-se dizer que, no final dos anos setenta, tais discussões concentravam-se em duas oposições, representadas pelo estruturalismo e culturalismo. Na perspectiva do estruturalismo, a cultura popular foi com fre- qüência considerada como uma ‘máquina ideológica’ a qual dita- va o pensamento do povo de uma forma tão rígida e com a mesma regularidade de lei como na síntese de Saussure – a qual forneceu o paradigma original para o estruturalismo – o sistema da língua dita os eventos da fala [...]. Contrariamente, o culturalismo foi com freqüência acriticamente romântico em sua celebração da cul- tura popular como expressão dos autênticos valores e interesses das classes e grupos sociais subordinados. Essa concepção, além disso, resultou em uma visão essencialista de cultura, ou seja, em uma personificação de essências de classe ou gênero específico. (BENNETT, 1986a, p. XII) O elemento novo que deslocou essas polaridades, foi a incor- poração das reflexões de Antonio Gramsci sobre o tema da hege- monia. A contribuição gramsciana configurou um novo tipo de ênfase na análise da cultura popular. Em uma síntese da reflexão gramsciana, a cultura popular não é vista nem como o local da deformação cultural do povo nem como a sua auto-afirmação cultural [...]; ao contrário, ela é vista como um campo de força de relações moldadas precisamente por essas tendências e pressões contraditórias – uma perspectiva que 115 permite uma reformulação significativa das questões teóricas e políticas as quais estão em jogo no estudo da cultura popular. (BENNETT, 1986a, p. XIII) A idéia central, exposta aqui de forma sumária, é de que as esferas da cultura e da ideologia não podem ser concebidas como sendo divididas em duas hermeticamente separadas e inteiramen- te opostas culturas e ideologias de classe. O efeito é desqualificar as opções bipolares das perspectivas estru- turalista e culturalista da cultura popular, vista tanto como a con- dutora de uma ideologia burguesa indissolúvel ou como o local da autêntica cultura do povo […]. Pelo contrário, a cultura popu- lar está em parte envolvida na luta pela hegemonia – e para Grams- ci, os papéis desempenhados pela maioria dos aspectos culturais sedimentados da vida cotidiana estão crucialmente implicados nos processos por onde a hegemonia é disputada, vencida, perdida, resistida – e o campo dessa cultura está estruturado tanto pela tentativa da classe dominante em obter a hegemonia quanto pelas formas de oposição a esse empreendimento. Como tal, ela não está constituída simplesmente por uma cultura de massa imposta que coincide com a ideologia dominante, nem simplesmente por cul- turas espontaneamente de oposição, mas, ao invés, é uma área de negociação entre as duas dentro das quais […] ‘estão’ misturados valores e elementos ideológicos e culturais dominantes, subordi- nados e de oposição, em diferentes permutações. (BENNETT, 1986a, p. XV) Enfim, essa reorientação dos estudos no âmbito da cultura popular acarretou duas mudanças nos mesmos. A teoria da hege- monia permitiu a construção de um olhar, de dentro do marxis- mo, que evita ver o popular como um bloco homogêneo de oposição, decorrente somente de uma posição de pertencimento fixo a uma classe. Propiciou, também, pensar na possibilidade de existência da separação relativa de diferentes regiões de enfrenta- mento cultural como classe, gênero e raça, assim como sobreposi- ções entre essas categorias em diferentes circunstâncias históricas. Em resumo, ao sugerir que as articulações políticas e ideológicas das práticas culturais são dinâmicas – que uma prática que está articulada a determinados valores hoje pode estar desvinculada 116 deles e associada a outros valores amanhã – a teoria da hegemonia torna o campo da cultura popular uma área de enormes possibili- dades políticas (BENNETT, 1986a, p. XVI). Já na América Latina, a discussão do popular toma o seguin- te rumo. De forma resumida, pode ser dito que existem três con- tornos onde a questão da cultura popular torna-se objeto de discussão e reflexão: o primeiro está associado à idéia de folclore, o segundo à cultura massiva e o terceiro associa-se ao populismo. Cada um desses contornos identifica-se com tradições intelectuais específicas e com diferentes propostas políticas. No entanto, ne- nhum deles é satisfatório na contemporaneidade. A característica do olhar do folclore é a nostalgia. É um olhar que vê a pureza da cultura popular ameaçada pela industrializa- ção, fundamentalmente, pelos meios de comunicação. O popular associado à cultura “moderna” ou à cultura mediática é produção comercial e industrializada, associando-se muito mais à idéia de popularidade. E o ponto de vista expresso pelo populismo políti- co, característica da história latino-americana, tem finalidade prag- mática – usa o popular para referendar e sustentar uma determinada aliança política. Não há como não mencionar, também, que cul- tura popular na América Latina assume com freqüência conota- ções de expressa oposição, visão que foi predominante, sobretudo, em um momento no qual experiências de “contra-hegemonia” foram o foco de atenção. Na perspectiva do populismo, os valores “tradicionais” do povo, assumidos e representados pelo Estado ou por um líder carismático, legitimam uma ordem, transmitindo aos setores populares a idéia de que participam de um sistema que os reconhece e valoriza. Na reali- dade, simula-se que o “povo” é ator e protagonista. Comentando esses posicionamentos, Martín-Barbero (1978, p. 224) afirma: É esse círculo vicioso, de acordo com o qual o sucesso de público comprova a validez popular da fórmula, que é necessário fazer rebentar, sem cair nem no pessimismo dos que pensam que o popular ou não existe ou foi completamente digerido, apodrecido pelo massivo, nem no otimismo populista para o qual, após a 117 conquista do poder, as massas não terão mais que resgatar sua ‘verdadeira’ cultura, até então soterrada, e torná-la ‘oficial’. Sem negar as diferenças entre o “culto” e o “massivo”, é necessário romper com a idéia de que o âmbito do massivo seja somente lugar de reprodução ideológica. Nesse sentido, Martín- Barbero (1978, p. 221) pondera que “a escritura massiva é tão escritura como a culta, que na primeira também se faz e desfaz a língua, também nela trabalham a história e a pulsão, da mesma forma que na escritura culta, desejando-se ou não, se reproduz o sistema e o sujo comércio incuba sua demanda”. E assim, a partir dos anos 70, a idéia de popular como entida- de subordinada e passiva passa a ser questionada teórica e empiri- camente, através da incorporação de uma noção de poder que se expande além das estruturas institucionais convencionais – Estado, meios de comunicação, etc (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 243). Mas é somente na década de 80 que o interesse pela cultura popular suscita estudos que a tomam como um dos elementos de articulação do consenso social. Duas vertentes se destacam nesse período: uma baseada na teoria da reprodução social e a outra que se apóia na teoria gramsciana de hegemonia. “Ao situar as ações populares no conjunto da formação social, os reprodutivis- tas entendem a cultura subalterna como resultado da distribuição desigual dos bens econômicos e culturais. Os gramscianos, me- nos ‘fatalistas’, relativizam esta dependência porque reconhecem às classes populares certa iniciativa e poder de resistência, mas sempre dentro da interação contraditória com os grupos hegemô- nicos” (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 233). Martín-Barbero (1995a, p. 51) traduz essa mudança de rota no entendimento do popular, através da difusão do pensamento de Gramsci, na reformulação das questões pertinentes a serem pesquisadas. “[…] eu sintetizaria o avanço numa mudança de per- guntas. Creio que a pergunta de um animador cultural, de um trabalhador social, de um educador, de um comunicador, não pode ser o que é que na vida das pessoas fica de autêntico, o que é que na vida das pessoas permanece de parecido a como era antes? Mas sim, o que é que na vida das pessoas está vivo, as motiva, as dinamiza, as apaixona?” 118 Uma das implicações desse tipo de abordagem, segundo Martín-Barbero, desemboca na incorporação da dimensão histó- rica. Porém, ele ressalva qual o sentido que essa perspectiva histórica adquire na sua reflexão: sem confundir história com nostalgia que é a tentação historicista: no passado está a razão do que somos e o passado sempre foi melhor do que o presente. […] Agora, como transladar isto para a complexidade da vida cultural de um país? Eu creio que a chave continua sendo o não confundir memória com a fidelidade ao passado. Trata-se de uma tentação muito forte, explicável porque a crise que estamos vivendo é a crise de um modelo de sociedade; é a ligeireza de pensar que o que fracassou veio de fora, pensar que o que fracassou é o modelo que não tem relação conosco, que tem somente relação com o que existe de imposição, e não com o que existe de cumplicidade, não com o que existe de sedução. (MAR- TÍN-BARBERO, 1995a, p. 52) O popular como campo de abordagem é uma idéia que se encontra tanto nas reflexões de Martín-Barbero e García Canclini quanto nas de Stuart Hall, assim como do espectro mais geral dos estudos culturais. Em todo esse conjunto repercute a influência gramsciana. Essa aproximação revela a existência de uma espécie de vasos comunicantes entre uma produção latino-americana e outra, originalmente, britânica. De uma forma geral, ou seja, com validade para ambos itine- rários, a noção de popular a partir do olhar dos estudos culturais não se refere diretamente às mercadorias produzidas pelas indús- trias culturais, muito menos refere-se às tradições folclóricas. Ao invés, o popular refere-se a uma visão específica da relação entre povo e poder, a uma visão de onde e como o poder está localizado na vida das pessoas. “O popular é de fato um ‘campo de questões’ que exige que examinemos como o poder funciona onde o povo experi- encia sua vida” (GROSSBERG apud MORRIS,1997, p. 43, grifo meu). Esta idéia de que o popular é mais uma problemática do que um objeto empírico delimitado que pode ser recortado da realidade social com precisão, repete-se nas observações de García Canclini (1987, p. 6): “O popular não corresponde com precisão a um referente empírico, a sujeitos ou situações sociais nitidamente 119 identificáveis na realidade. Ele é uma construção ideológica cuja consistência teórica está ainda por ser alcançada. É mais um cam- po de trabalho do que um objeto de estudo cientificamente deli- mitado”. Assim paralelismos e coincidências vão se apresentando na discussão sobre a cultura popular. Stuart Hall,1 em “Notes on deconstructing ‘the popular’” (1981), afirma que o termo “cultura popular” pode ter vários e diferentes sentidos. Entre os três descritos, o primeiro, senso co- mum numa sociedade capitalista, associa popular com mercado, ou seja, algo é popular porque é muito consumido. No entanto, o autor mostra suas reservas em relação a esta definição, pois ela, de um lado, pode identificar-se com uma noção de passividade e manipulação e, de outro lado, pode contrapor-se à idéia de exis- tência de uma cultura genuinamente popular. Na realidade, ambos sentidos implícitos nessa primeira apro- ximação mostram-se como um todo demasiado coerente e rígido: um conjunto de formas/práticas populares que está “corrompido” ou é “autêntico”. Basicamente o que há de errado [nesta primeira definição] é que ela negligencia as relações absolutamente essenciais do poder cul- tural – de dominação e de subordinação – que é uma característica intrínseca das relações culturais. Ao contrário, eu quero afirmar que não existe nenhuma ‘cultura popular’ completamente autên- tica e autônoma, que esteja fora do campo de força das relações de poder e dominação cultural. Em segundo lugar, essa definição subestima em demasia o poder de inculcação cultural. [...] [Dessa forma,] o estudo da cultura popular continua sendo visto entre dois pólos bastante inaceitáveis: pura autonomia ou total incor- poração. (HALL, 1981, p. 232) A segunda definição é puramente descritiva: é o que o povo faz ou tem feito, isto é, um modo distinto de vida. Esse sentido iguala-se a um inventário com uma infinita listagem, problemáti- ca no momento de eliminar o que não é popular. Por outro lado, sua oposição taxativa entre o popular e o não-popular não leva em consideração, principalmente, o processo histórico, a movimen- tação das formas culturais. 120 De um período para outro os conteúdos de cada categoria mudam. As formas populares enriquecem seu valor cultural, sobem na es- cala cultural e acabam por descobrirem-se no lado oposto. Outras coisas deixam de ter alto valor cultural e são incorporadas pelo âmbito do popular, transformando-se nesse processo. O princípio estrutural não consiste, então, nos conteúdos de cada categoria – os quais, eu insisto, se modificam de um período para o outro. (HALL, 1981, p. 234) E a terceira definição é aquela onde se insiste que o essencial são as relações que definem a cultura popular numa contínua “ten- são” – esta tanto pode implicar vinculação, influência e antagonis- mo – com a cultura dominante (HALL, 1981, p. 235). Nessa concepção, as relações de poder se manifestam e ocupam o lugar central a partir do qual pensar o popular. Essa última definição trata o domínio das formas culturais populares como um campo em permanente mudança. Ela [essa definição de cultura popular] olha o processo pelo qual as relações de dominação e subordinação são articuladas. Ela as trata como processo: o processo através do qual algumas coisas são ativamente preferidas enquanto outras podem ser menosprezadas. Ela tem no seu centro as relações de força desiguais e variáveis que definem o campo da cultura – isto é, a questão da luta cultural e suas muitas formas. Seu principal foco de atenção concentra-se nas relações entre cultura e questões de hegemonia. (Hall, 1981, p. 235) Nesta direção, Hall apresenta sua definição de cultura popu- lar estreitamente ligada ao campo da política. Visões críticas des- sa posição identificam que, aí, a idéia de cultura popular fica reduzida à de política, o que passa a ser problemático para um ponto de vista de análise cultural (MCGUIGAN,1992). A questão fulcral, no entanto, não se situa apenas na relação que se estabele- ce entre esses planos ou campos, cultura e política, mas destes dois com os processos produtivos, com a estrutura da sociedade. A incorporação da teoria da hegemonia na construção de um protocolo teórico-metodológico de cultura popular resulta em duas conseqüências: as formas culturais não têm em si um valor ou 121 sentido inerente e não existe uma relação direta entre classe e uma prática cultural. Esse fato tem repercussão na discussão sobre o valor cultural das práticas, sobre seu julgamento e, também, sobre a posição que o analista assume diante dessa situação. Em outro lugar, Hall (1986) apresenta uma revisão histórica e teórica das relações entre essa última definição de cultura popular e o Estado através de três estudos de caso: o processo de construção de leis no século XVIII; o papel exercido pelo Estado na formação da imprensa no século XIX e a constituição da BBC no início do século XX. Todos esses períodos são considerados de transição his- tórica na Inglaterra. Mediante a análise dessas circunstâncias, ele demonstra que não existe uma relação estável, permanente e contí- nua entre o “povo” – ou o público – a cultura e o Estado. Essas relações são propriamente um espaço de contínua intervenção polí- tica nas quais as posições são reformuladas a cada tanto. Em 19922, Hall novamente ampara-se nessa análise teórica do popular para refletir sobre a cultura popular negra. A cultura popular negra é vista como um espaço contraditório, em alguns momentos é um espaço estratégico de contestação, mas, em outros, é também incorporação de valores dominantes (v. Hall et al. 1978). Por essa razão, tais práticas não podem ser vistas através de um olhar de oposições binárias tais como: resistência versus incorporação, autên- tico versus inautêntico, oposição versus homogeneização. Hall conclui que cultura popular: “é uma arena que é profun- damente mítica. É um teatro de desejos populares, um teatro de fantasias populares. É onde nós descobrimos e brincamos com nos- sas próprias identificações, onde somos imaginados, representa- dos, não somente para as platéias lá fora que não captam a mensagem, mas, pela primeira vez, para nós mesmos” (Hall, 1996i, p. 474). Além disso, é um espaço dialógico mais do que oposicional, é fusão conflitiva, um espaço tanto de rejeição como de inclusão. Na mesma direção, Bennett propõe um protocolo de aproxi- mação à cultura popular que seja uma abordagem que mantenha esses termos [cultura popular, popular e povo] vazios em suas definições, – ou, pelo menos, rela- tivamente vazios – com o interesse de preenchê-los politicamente de 122 diversas maneiras conforme a dinâmica das circunstâncias de- mandarem. (…) O significado desses termos, por assim dizer, nunca pode ser apreendido de forma fixa ou separadamente, visto que seus usos estão sempre atrelados a uma luta para deter- minar precisamente quais os sentidos de ‘povo’ e ‘popular’ que terão politicamente peso em relação as suas habilidades de orga- nizar diferentes forças sociais em uma aliança política ativa. (BEN- NETT, 1986b, p. 8) Desse modo, a definição de Hall para cultura popular deriva sua força da categoria hegemonia a qual implica pensar o popular em termos de relações entre classes. “A cultura popular é um dos espaços onde ocorre a luta a favor e contra uma cultura dos pode- rosos: é também um jogo a ser ganho ou perdido nesta luta. É a arena de consentimento e de resistência. É parcialmente onde a hegemonia surge e onde é assegurada” (HALL, 1981, p. 239). Essa posição corre o risco de reduzir a cultura popular ao âmbito do político. Mas o que interessa destacar, neste momento, é a relação de tal posicionamento com a análise cultural propriamente dita. Ao recuperar tal definição de cultura popular, observa-se uma estreita afinidade entre essa preocupação da vertente britânica e a proposta pelos autores latino-americanos em foco. A discussão sobre o que é o popular, num tempo onde tudo ou quase tudo se massifica, ocupa um espaço fundamental na construção do refe- rencial de García Canclini. Mais tarde, em 1995 quando publica Consumidores e Cidadãos, motivado pelas mudanças sócio-cultu- rais decorrentes da globalização, modifica seus posicionamentos – mais adiante comentarei a esse respeito. Isso, no entanto, não invalida resgatar o movimento de suas formulações e reformula- ções porque o objetivo, aqui, é demarcar um momento caracterís- tico no estudo e reconhecimento cultural de modalidades diversas de análise da comunicação. Na pesquisa sobre artesanato e festas populares, realizada entre 1977 e 1980, numa zona central do México, García Canclini (1983) aponta como eixo fundamental para compreender as ma- nifestações da cultura popular, no interior do sistema capitalista, o desenvolvimento de uma estratégia de investigação que abran- gesse tanto a produção quanto a circulação e o consumo. 123 De Gramsci, além da conexão cultura e hegemonia, é incor- porada a própria noção de popular. o popular não deve por nós ser apontado como um conjunto de objetos (peças de artesanato ou danças indígenas), mas sim como uma posição e uma prática. Ele não pode ser fixado num tipo particular de produtos e mensagens, porque o sentido de ambos é constantemente alterado pelos conflitos sociais. Nenhum objeto tem o seu caráter popular garantido para sempre porque foi pro- duzido pelo povo ou porque este o consome com avidez; o sen- tido e o valor populares vão sendo conquistados nas relações sociais. É o uso e não a origem, a posição e a capacidade de suscitar práticas ou representações populares, que confere essa identidade. (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 135) Ao assumir tal definição, Canclini questiona o modo pelo qual as culturas populares foram abordadas tanto pelo folclore quanto pela comunicação, sugerindo que o popular é um espaço a partir do qual é possível repensar a complexa estrutura dos processos cul- turais e, simultaneamente, implodir os redutivismos disciplinares. Dessa forma, o popular se reformula como uma posição múltipla, representativa de correntes culturais diversas que reivin- dicam uma inter-comunicação massiva permanente. O popular não aparece, diz García Canclini (1987, p. 10), como o oposto ao massivo, mas como um modo de atuar nele. E o massivo não é, nesse caso, somente um sistema vertical de difusão e informação; também é, como disse uma antropóloga italiana, a expressão e amplificação dos vários poderes locais que vão se difundindo no corpo social. Tal noção de popular relaciona-se diretamente com os usos, as apropriações, a recepção, enfim, com o consumo. Aí, já está expresso o embrião para a seqüência de suas investigações, apro- ximando-se cada vez mais do consumo como objeto de estudo. Em Culturas híbridas (1989), García Canclini busca repen- sar a heterogeneidade da América Latina como uma articulação complexa de tradições e modernidades (diversas e desiguais), como um continente formado por países onde coexistem múltiplas lógi- cas de desenvolvimento. Sem nostalgia, propõe, então, a análise 124 do hibridismo intercultural, apontando processos-chave para ex- plicá-lo: a ruptura das coleções que organizavam os sistemas cul- turais e a desterritorialização dos processos simbólicos. Hoje, as coleções se desestruturam e o xerox e o videocasse- te, entre outros, podem ser citados como dispositivos de reprodu- ção que contribuem para esta desestruturação. Os videoclips e os videogames podem ser apontados como exemplos dos novos recur- sos tecnológicos que surgem fundindo e decompondo as rígidas separações entre o culto, o popular e o massivo. E, como gêneros impuros, pode-se incluir os grafites e as histórias em quadrinhos. Essas referências têm curso num trânsito permanente do autor pelo engajamento empírico e interpretação teórica. Por outro lado, o processo de desterritorialização é concomi- tante ao de reterritorialização na medida em que os indivíduos se desenraízam de um território nacional que definia sua identidade, e se enraízam no espaço local onde se dão suas práticas cotidia- nas. Do ponto de vista teórico, a contribuição original de García Canclini encontra-se na idéia de hibridez das culturas contempo- râneas. Esta idéia é uma proposta conceitual feita para estudar uma série de fenômenos e de processos contemporâneos que não são identificados, exclusivamente, no espaço do culto/erudito, popular ou massivo. A hibridez trata de designar, precisamente, esse caráter misto, esses cruzamentos interculturais nos quais, no meu modo de ver, deve situar-se a investigação. […] A proposta de Culturas híbridas é a de elaborar uma noção de hibridação que permita abarcar, de um modo dinâmico, os diferentes processos em que o culto, o popu- lar e o massivo se inter-relacionam, se misturam; o tradicional se intercepta com o moderno; distintas culturas de países e regiões diferentes também entram em relação. Interessa-me analisar como esses intercâmbios dos processos culturais se produzem, para não dar visiões fragmentadas, excessivamente analíticas. (GARCÍA CAN- CLINI apud MONTOYA, 1992, p. 11) As duas principais conseqüências dessa postura teórico-me- todológica, mencionadas em outros termos por Hall (1981), são: não se pode vincular rigidamente as classes sociais com estratos culturais fixos, nem esses estratos culturais comportam um elenco 125 de bens simbólicos e valores nitidamente definidos e fixos – por exemplo, a elite não domina um repertório cultural, exclusiva- mente, erudito, pois existem obras, nesse espaço, que estabele- cem relações com outras esferas; não se pode vincular rigidamente repertórios culturais a territórios, isto é, delimitar a definição de identidades culturais às fronteiras nacionais de um território geográfico. A perda da relação natural da cultura com um território geo- gráfico ou o processo de desterritorialização, assim como a queda das fronteiras entre estratos culturais (erudito, popular e massivo) e culturas diversas (locais, regionais, nacionais e global) ou o pro- cesso de hibridação cultural é o foco central da reflexão proposta em Culturas híbridas (1989). Mas, enfim, ainda nesse texto Gar- cía Canclini (1989a, p. 260) reconhece que: as investigações mais complexas dizem, perfeitamente, que o popu- lar se dispõe em cena não com uma unidirecionalidade épica, mas com o sentido contraditório e ambíguo de quem padece a história e, ao mesmo tempo, luta com ela; referem-se, também, àqueles que vão elaborando, como em toda tragicomédia, os passos interme- diários, as astúcias dramáticas, os jogos paródicos que permitem a quem não tem possibilidade de mudar radicalmente o curso da obra, administrar os interstícios com parcial criatividade e benefí- cio próprio. (grifo meu) Em outras palavras, García Canclini critica tanto a teoria fundamentada na reprodução social quanto aquela que se ampara na hegemonia, embora reconheça em ambas teorias pistas suges- tivas para compor uma análise do âmbito do popular. Contudo, ambas contém limitações próprias à sua tecitura. A primeira, re- servando toda iniciativa aos grupos dominantes; a segunda, desta- cando a autonomia dos grupos populares. Na tentativa de compor uma definição que escape das armadi- lhas propostas pelas teorias citadas, García Canclini (1989a, p. 259) atribui ao popular o valor ambíguo de uma noção teatral. Assim, afirma: “as interações entre hegemônicos e subalternos são cená- rios de luta, mas também espaços onde uns e outros dramatizam (grifo meu) as experiências da alteridade e do reconhecimento. 126 A confrontação é um modo de encenar a desigualdade (enfrenta- mento para defender o próprio) e a diferença (pensar-se através do que desafia)”.Vai enfatizar, ainda, que nas manifestações po- pulares existe “ação e atuação”, “expressão do próprio e reconstitui- ção incessante do que se entende por próprio em relação às leis mais amplas da dramaturgia social como, também, em relação à reprodução da ordem dominante”(1989a, p. 260, grifo meu). Na trama conceitual, proposta por Martín-Barbero, o popu- lar também assume uma importância decisiva: não se pode pensar o popular à margem do processo histórico de constituição do massivo, da ascensão “das massas” e da sua presença no cenário social. O popular é um lugar a partir do qual pode-se pensar o processo comunicativo, é uma matriz cultural vista como media- ção para estudar a comunicação, localizada entre os meios e as práticas cotidianas. Martín-Barbero efetiva esse procedimento de aproximação teórica ao popular com elementos da filosofia, da história, da so- ciologia, da política e da antropologia, construindo uma proposta para investigar o processo de constituição do massivo a partir das mediações e dos sujeitos. Para alcançar tal objetivo, Martín-Barbero desvela, em De los medios a las mediaciones (1987), o movimento de gestação de al- guns conceitos, refazendo sua história. Faz, então, uma revisão crítica da idéia de povo para românticos e ilustrados; da idéia de povo, agora, diluída na de classe social, debate que contrapõe anarquistas e marxistas;3 e, ainda, da idéia de povo dissolvida na de massa, proposta por teóricos liberais, principalmente, de for- ma mais recente através de intelectuais norte-americanos; de con- ceitos da Escola de Frankfurt sobre os processos de massificação; dos desenvolvimentos que essa escola desencadeou através das formulações de Edgar Morin, Jean Baudrillard e Jürgen Habermas; da contribuição dos estudos históricos que redescobriram o po- pular, restituindo-lhe um papel de memória constitutiva do pro- cesso histórico; dos estudos culturais, via os trabalhos de Richard Hoggart e Raymond Williams; da vertente sociológica francesa que trabalha a temática da cultura, destacando-se Pierre Bourdieu e, ainda, do trabalho singular de Michel de Certeau. 127 É através dessa retrospectiva que Martín-Barbero constrói sua posição, sintetizada na idéia de que o popular somente tem sentido, hoje, se for pensado na sua “imbricação conflitiva no massivo” (MARTÍN-BARBERO, 1987a, p. 248). A referência ao “mas- sivo”, segundo Martín-Barbero, diz respeito a condição estrutural da sociedade moderna, a uma nova forma de sociabilidade, a no- vas condições de existência e, por sua vez, a um novo modo de funcionamento da hegemonia. Daí sua insistência em tentar en- tender como a massificação funciona, hoje, seus traços históricos e desenvolvimento na América Latina. Nessa direção, Martín-Barbero procura restabelecer o en- contro entre “modernidade” e “cultura popular”. Assim, na avali- ação de Herlinghaus (1998, p. 18), a noção do ‘popular’ é submetida a uma reformulação pouco usual já que é ligada aos processos concretos de modernização. O popular aparece agora localizável numa relação dinâmica com o massivo – de acordo com a hipótese de que a modernidade latino- americana, revisada dessa forma, se caracteriza por uma ‘não-con- temporaneidade’ constitutiva, isto é, por descontinuidades culturais cujo signo histórico é a ‘não-exterioridade’ do massivo no popu- lar –, constitui-se em um de seus modos de existência. Aí, não se confundem memória popular e imaginário de massa, mas se aban- dona a conhecida ilusão essencialista de um estrato popular incon- taminado e autêntico. Ao reformular a noção de popular, Martín-Barbero creditou especial papel à ação dos setores populares no fortalecimento da sociedade civil. Esse otimismo se lastra, essencialmente, na sua incorporação da capacidade “tática” atribuída às classes popula- res por Michel De Certeau. Grosso modo, as táticas da vida coti- diana são o locus da resistência e subversão. Nas palavras de Martín-Barbero (1987a, p. 94): Popular é o nome para uma gama de práticas inseridas na modali- dade industrial, ou melhor, o ‘lugar’ a partir do qual devem ser vistas para se desentranharem suas táticas. Cultura popular fala, então, não de algo estranho, mas de um resto e um estilo. Um resto: memória da experiência sem discurso, que resiste ao discurso e 128 se deixa dizer só no relato. Resto feito de saberes inúteis à coloniza- ção tecnológica, que assim marginalizados, carregam simbolicamen- te a cotidianidade e a convertem em espaço de uma criação muda e coletiva. E um estilo, esquema de operações, modo de caminhar pela cidade, habitar a casa, de ver televisão, um estilo de intercâmbio social, de inventividade técnica e resistência moral. Esse posicionamento gerou uma certa desconfiança no pro- jeto barberiano. Todavia, Martín-Barbero, mais tarde, vai mati- zar a valorização da capacidade criativa coletiva, expressa nesse momento, ao alertar contra a tendência de pensar que existe ape- nas uma única forma “autêntica” de alternativo. É muito o esfor- ço de dar voz e imagem aos excluídos e de abrir espaço à expressão popular que tem detrás da chamada ‘comunicação alternativa’. Mas, também, é muito o que, aí, tem sido ocultado de visão ma- niqueísta e marginal, carregada de resíduos puristas e populistas: isto é, o alternativo, identificado com o popular e, por sua vez, com o autêntico, seria o mundo da horizontalidade e da participa- ção em si mesma” (MARTÍN-BARBERO, 1995a, p. 200). Esses três posicionamentos – de Hall, García Canclini e Mar- tín-Barbero – falam por si mesmos nas suas afinidades e discor- dâncias. Até aqui não existem, ainda, divergências profundas, mas há indícios que tais itinerários individuais mostrarão suas singu- laridades quando a temática da globalização e sua incidência no campo cultural e, por sua vez, na arena popular, for pontuada mais enfática e detalhadamente. Esse recorte será tratado em ou- tro lugar deste trabalho. Desse modo, o reconhecimento do âmbito popular como um espaço de protagonização da hegemonia revela uma opção política. Não há como evitar reconhecer que existe uma política assumida na posição teórica dos estudos culturais, assim como uma causa subjacente a essa posição. A relação entre popular, hegemonia e política está expressa- mente articulada com a influência do pensamento de Antonio Gra- msci nas formulações dos autores em foco. Contudo, é preciso mencionar a interpretação deste conceito-chave de hegemonia. Se- guindo uma via analítica do pensamento gramsciano, proposta por Norberto Bobbio, hegemonia significa direção política, mas 129 também e, predominantemente, direção cultural. “Com relação à função, a hegemonia não visa apenas à formação de uma vontade coletiva capaz de criar um novo aparelho estatal e de transformar a sociedade, mas também à elaboração e, portanto, à difusão e à reali- zação de uma nova concepção de mundo” (BOBBIO, 1987, p. 48). Através de outra análise da reflexão de Gramsci, realizada por Carlos Nelson Coutinho, reitera-se que os “[…] conceitos gramscianos, sublinham fortemente o momento superestrutural, sobre- tudo o momento político, superando assim as tendências economicistas” (COUTINHO citado por ARICÓ, 1998, p. 19, grifo meu). Ao recuperar esses comentários, assinalo a possibilidade de que a própria categoria hegemonia possa ser considerada funda- mentalmente como superestrutural. A armadilha que o conceito hegemonia traz à tona para um pesquisador do campo cultural, é de perder de vista as complexas relações entre superestrutura e estrutura. Como o objeto de estudo primordial do analista cultural encontra-se no primeiro nível (somente para efeitos de exposição podemos classificá-lo dessa forma), o risco de superestimá-lo é grande. Um especial interesse na especificidade do cultural tende a subvalorizar as determinações econômicas e, em alguns casos, as políticas que, na realidade, configuram as condições de produ- ção e circulação das mercadorias culturais. Desenvolvendo um raciocínio que guarda algumas aproxi- mações com essas últimas considerações, mas também estenden- do sua análise a outros pontos, McGuigan (1992) observa o aparecimento de uma força “acrítica” no estudo da cultura popu- lar no âmbito dos estudos culturais, estimulada pelo fracasso de articular consumo e produção cultural. Essa força “acrítica” é atri- buída à teoria da hegemonia. “Uma crise de paradigma nos estu- dos culturais contemporâneos do qual uma tendência populista é um sintoma, é identificada e relacionada às contradições internas da teoria da hegemonia neo-gramsciana que uma vez coesionou o campo de estudo em oposição à perspectiva da economia-políti- ca” (MCGUIGAN, 1992, p. 5). Ao avançar nas suas críticas, o autor insiste: “A teoria da hegemonia colocou ‘entre parênteses’ (grifo meu) o econômico 130 da produção cultural, de tal forma, que uma perspectiva ex- clusivamente focada no consumo pode emergir de suas contradi- ções internas: essa é uma das razões pelas quais deixou de ser a moldura ordenadora que uma vez foi” (MCGUIGAN, 1992, p. 76). Essa situação criou um fosso entre os estudos culturais e a econo- mia-política da comunicação e da cultura. A partir do momento que é identificada essa vertente “acríti- ca” nos estudos culturais contemporâneos, delineia-se um dos di- lemas que a armação teórico-metodológica dos estudos culturais coloca para o estudo da cultura popular: “a dissidência entre os micro-processos do sentido e os macro-processos da economia- política é uma das principais razões da limitação do populismo cultural no plano explicativo” (MCGUIGAN, 1992, p. 171). Até o momento analisado neste capítulo, não se pode atri- buir diretamente essas críticas às reflexões dos autores em foco – Néstor García Canclini, Jesús Martín-Barbero e Stuart Hall. Bem diferente é observar a incorporação dessas idéias e seu uso no de- senvolvimento tanto da vertente britânica ou da latino-americana, principalmente, no que diz respeito a pesquisa da atividade da au- diência e dos diversos sentidos que os meios de comunicação, so- bretudo, a TV, assumem no cotidiano. Aí, traços dessa crítica podem ser vivamente evidenciados. Porém, a centralidade que a esfera cul- tural assume no programa de investigação proposto por esses auto- res, mesmo que resguardados matizes distintos, permite interpretações de que é através dela que o econômico e o político se realizam. Teríamos, assim, um determinismo às avessas. FORMAS DE ENGAJAMENTO INTELECTUAL El oficio del intelectual en esto consiste, en hacer aparente todo aquello frente a lo que muchos son ciegos por ser demasiado obvio. Sabe escuchar dentro de los silencios de una época, pega el oído a la tierra para escuchar las corrientes subterráneas, el rumor insignificante confundido con el ruido para comprender su sentido: he ahí su sensibilidad para captar lo esencial. Javier Protzel 131 A prática dos estudos culturais envolve produção de teorias, de conhecimento. Porém, não se trata apenas de aplicar teorias existentes a um recorte empírico determinado. Na obra de Hall, García Canclini e Martín-Barbero o elemento teórico é visto como uma resposta à práticas específicas em contextos particulares. Reafirma-se que essa é uma das características proeminentes da proposta teórico-política dos estudos culturais. Falando sobre a constituição e a prática dos estudos culturais britânicos, Hall (1996a, p. 264) diz que uma atitude de pesquisa que almeja demarcar uma “diferença no mundo” deve ter algumas marcas de distinção. As marcas distintivas compõem o que ele denomina de uma questão de posicionamento [positionalities]. “Porém, também é verdade que esses posicionamentos [positiona- lities] jamais são definitivos, nunca são absolutos; não podem ser traduzidos de forma intacta de uma conjuntura para outra, não podem estar subordinados a permanecer no mesmo lugar”. Condições históricas bem gerais como industrialização, mo- dernização, urbanização, massificação, mercantilização da vida cultural, desenvolvimento de novas formas de capitalismo, globa- lização da economia, migrações, emergência de novos nacionalis- mos e fundamentalismos, entre outras, manifestam-se de forma diferenciada em diversos contextos nacionais. Em cada contexto, essas forças têm produzido com freqüência significativos desloca- mentos sociais, políticos e culturais. São essas mesmas condições gerais históricas, que se mostram específicas em contextos parti- culares, que deságuam diferentes tradições – que comportam na sua unidade o seu oposto, a não-coesão; que reivindicam a provi- soriedade de suas interpretações, ao contrário, da certeza absolu- ta do conhecimento – de estudos culturais. Essas contingências são centrais no desenvolvimento e na vitalidade dos estudos culturais contemporâneos. No entanto, isso não quer dizer que toda posição teórica, dentro do campo dos estudos culturais, tenha de ser separada de seus usos anteriores para ser utilizada em contextos culturais distintos. Existem con- ceitos suficientemente abstratos e gerais que podem ser translada- dos a novos contextos toda vez que seja necessário. De outro lado, existem também conceitos que, profundamente enraizados numa 132 determinada conjuntura, não podem simplesmente ser transplan- tados para outra situação, sem serem repensados. A expansão do projeto dos estudos culturais para outros terri- tórios é um processo de negociação cultural. Hall (1996f, p. 393) insiste em que as novas inserções dos estudos culturais se dão através de processos de “re-tradução”. [Os estudos culturais estão] passando por um processo de re- tradução por onde quer que estejam sendo compreendidos, espe- cialmente nos Estados Unidos, Austrália e Canadá. Cada um desses lugares está envolvido com sua própria re-tradução. Além disso, também há uma tradução entre gerações, mesmo dentro dos estu- dos culturais britânicos. Os estudos culturais estão agora em uma posição diferente de quando o Centro de Birmingham estava atu- ando. Mesmo após a primeira década do trabalho inicial do Cen- tro, nos anos oitenta, era bem diferente. Por isso, estou chocado com o fato de que, de um certo modo, a internacionalização coloca problemas em uma escala maior, mas não de diferente tipo, porque a tradução tem que continuar, onde quer que praticantes se apropri- em de um paradigma e suas próprias preocupações. Afirma, ainda, que é um processo contínuo de re-articulação e re-contextualização, sem nenhuma noção de origem primária.4 Dessa forma, onde os estudos culturais ganham espaço, os termos vão mudando, existindo uma apropriação particular. Em qual- quer processo de rearticulação e desarticulação, há elementos que permanecem, conceitos comuns, mas também há novos elemen- tos que mudam sua face. Se não fosse assim, o processo estaria incompleto, pois não daria conta das particularidades da sociedade em análise. Os estudos culturais são transformados uma vez que se começa a pensar o que é [por exemplo] a situação de Taiwan, o que ‘nação’ significa lá e como a internacionalização e a nova economia global estão transformando aquela sociedade. Até que se penetre nos estudos culturais a partir dessas estruturas – não a partir de dentro mesmo dos estudos culturais, mas através dessas externalidades –, não se traduz realmente os estudos culturais, simplesmente os toma emprestado, renova-os, brinca de revestí-los. (HALL, 1996f, p. 397, grifo meu). 133 Essa relação entre teoria e situações concretas particulares e a constatação de que problemáticas teóricas para serem utilizadas em realidades diferenciadas necessitam “traduções”, revela estrei- ta proximidade com o pensamento gramsciano. Gramsci em inú- meras partes dos seus Cadernos refere-se ao problema da “tradutibilidade”. No sentido gramsciano, essa problemática re- fere-se à possibilidade de algumas experiências históricas, políti- cas e sociais encontrarem uma equivalência em outras realidades (cf. ARICÓ, 1998). “Se a tradutibilidade supõe que uma fase determinada da civilização tenha uma expressão cultural ‘fundamentalmente’ idên- tica, ainda que a linguagem seja historicamente distinta na medi- da em que está determinada por tradições específicas de cada cultura nacional e tudo o que dela se depreende” (ARICÓ, 1998, p. 6), a prática dos estudos culturais pode ser traduzida para outros contextos e territórios toda vez que seja possível estabele- cer algum tipo de sintonia histórico-cultural entre seu mundo e aquele para o qual está sendo apropriado.5 Também em suas notas, “Gramsci se pergunta pelas condi- ções de ‘universalidade’ de um princípio teórico. Sua resposta insiste na necessidade de que ele apareça como uma expressão originária de uma realidade concreta a qual ele se incorpora”(ARICÓ, 1998, p. 17). Sobre esse aspecto é o próprio Hall que faz questão de salientar tal caráter peculiar da produção intelectual gramsciana. Ele [Gramsci] estava usando constantemente ‘teoria’ para ilumi- nar casos históricos concretos ou questões políticas; ou para pen- sar em conceitos amplos em termos de suas aplicações a situações específicas e concretas. Conseqüentemente, o trabalho de Gramsci normalmente aparece como muito concreto: demasiado historica- mente específico, muito delimitado em suas referências, muito ‘descritivamente’ analítico, muito preso ao tempo e contexto. Suas idéias e formulações mais brilhantes são tipicamente do tipo con- juntural. Para se fazer um uso mais geral de suas idéias, elas têm que ser delicadamente desenterradas de seus enraizamentos intrinsica- mente concretos e históricos e serem transplantadas para um novo solo com considerável cuidado e paciência. (HALL, 1996c, p. 413) 134 Duplicando essas considerações de Hall, pode-se aplicá-las às características dos trabalhos – pelo menos àqueles que têm qua- lidade teórico-descritiva – do próprio projeto geral dos estudos culturais. É claro que não esquecendo as devidas diferenças entre a produção original de um pensador marxista e um projeto que mais articulou diferentes tradições teóricas na composição de uma perspectiva metodológica com tal particularidade. O que se observa na América Latina através das formulações de Martín-Barbero e García Canclini, é uma criatividade teórico- metodológica profundamente enlaçada com a conjuntura latino- americana mas, ao mesmo tempo, em sintonia com um movimento intelectual maior, passível de ser associada aos estudos culturais. Uma afinidade teórica perpassa as observações de Hall, García Canclini e Martín-Barbero, embora cada uma delas esteja enraiza- da e levando em consideração condições históricas determinadas e percursos próprios.6 O caminho de Stuart Hall, entranhado numa situação histó- rica particular, e a construção de um conjunto de questões em torno de seu trajeto individual estão expressos nas suas análises do thatcherismo, da reação da sociedade britânica à ascensão do cri- me, assim como nas observações sobre as subculturas juvenis e sobre a identidade negra e sua inserção na cultura britânica. Sua preocupação incessante com problemáticas da atualida- de quer sejam de maior densidade como o debate da pós-moder- nidade, globalização, constituição de identidades, entre outras, quer sejam de recorte mais empírico como a inserção de uma tecnologia como o walkman no cotidiano social, mostram seu permanente engajamento com a fluída movimentação da socieda- de contemporânea. Imersos no mundo híbrido da América Latina, Martín-Barbe- ro e García Canclini compõem, também, reflexões comprometidas e situadas historicamente. O primeiro expõe explicitamente esse tipo de posicionamento ao propor incorporar a dimensão histórica na pesquisa em comunicação. Segundo Martín-Barbero, isso signi- fica assumir um determinado lugar – posição do investigador – para recuperar a história dos processos culturais como articulado- res das práticas comunicativas com os movimentos sociais. 135 Na realidade, Martín-Barbero procura construir uma história da constituição do cultural. A história do melodrama na América Latina, projeto levado adiante por ele, exemplifica tal procedimen- to. O melodrama é, ao mesmo tempo, forma de recuperação da memória popular pelo imaginário, fabricado pela indústria cultu- ral, e indicador da presença do popular na constituição do massivo. Outras frentes de trabalho, – estudos dos processos de co- municação cotidiana, observação de práticas populares e seu vín- culo com a mudança social (religiosidade popular), formação profissional – todas interpretadas à luz da inter-relação entre comunicação, cultura e sociedade na América Latina, reiteram essa mesma posição. Já García Canclini parte do pressuposto de que para compre- ender a conjuntura latino-americana deste final de século, é preci- so uma perspectiva pluralista que admita a fragmentação e as combinações múltiplas entre tradição, modernidade e pós-moder- nidade. Na América Latina, de acordo com García Canclini, a modernidade não está superada, mas vive-se um estilhaçamento do moderno, uma interação crescente entre culto, massivo e po- pular, diluindo fronteiras entre seus praticantes e os distintos esti- los. Uma das principais conseqüências é a reformulação do capital simbólico mediante cruzamentos e intercâmbios. A sociabilidade híbrida que sugerem as cidades contemporâneas nos leva a participar, em forma intermitente, de grupos cultos e populares, tradicionais e modernos. A afirmação do regional ou nacional não tem sentido nem eficácia como condenação geral do exógeno. Devem ser concebidos, hoje, como a capacidade de inte- ragir com as múltiplas ofertas simbólicas internacionais a partir de posições próprias. (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 332) Em termos de temáticas pesquisadas, García Canclini desen- volve estudos sobre os desafios enfrentados pelas identidades na- cionais na medida em que se aceleram os acordos de livre comércio e integração global das economias. No caso específico do Méxi- co, com o Tratado de Livre Comércio da América do Norte. Ele realiza, também, estudos de consumo cultural e pesqui- sas sobre políticas culturais e consumo popular na Cidade do 136 México. Num período anterior, investigou culturas tradicionais como artesanato e festas populares, sob o efeito da massificação, do turismo e da modernização. Enfim, o autor transitou no traba- lho de campo tanto em zonas rurais e indígenas quanto na cidade contemporânea. Se o trabalho teórico-intelectual se dá numa relação com as circunstâncias históricas vividas, a prática intelectual acaba tendo ressonâncias políticas. Do ponto de vista dos estudos culturais bri- tânicos, da sua origem até a contemporaneidade, a relação teórico/ político sempre foi uma premissa fundamental. Hall ressalta que mesmo quando o debate sobre assuntos específicos estavam ocor- rendo dentro do Centro de Birmingham, todo mundo sabia que a relação entre política e cultura era central em nossas preocupa- ções e prática. Não uma posição política particular e sectária – isso nós sempre evitamos- mas a relação entre cultura (entendida como práticas significantes) e poder. De um certo modo, se há alguma coisa para ser aprendida dos estudos culturais britânicos é a insis- tência na articulação entre cultura e poder – em diferentes contex- tos, obviamente. (HALL, 1996f, p. 395) No debate contemporâneo ainda essa questão da politização da prática dos estudos culturais é objeto de preocupação. Os estudos culturais são, com certeza, ou, pelo menos, aspiram ser um modo de politizar práticas intelectuais. Porém, a prática de estudos culturais não impõe aos seus praticantes uma agenda po- lítica específica, e não acarreta quaisquer posições fixas ou soluções prontas para conflitos. Examinar a ‘relação entre’ povo e poder, e perguntar ‘quando e como’ o poder está localizado em suas vidas, é adotar uma abordagem contextual ou uma aproximação prag- mática à política. (MORRIS, 1997, p. 43) Entre outros intelectuais que se destacam nesse campo, Tony Bennet (1992,1993) e McGuigan têm enfatizado esse aspecto, ou melhor, têm insistido na recuperação e na necessidade de discutir “política” ou “políticas” nos estudos culturais. Essa idéia se cruza com as propostas de Martín-Barbero que entende a atividade de investigação como atividade crítica, acompa- nhada de um compromisso com um projeto político de participação 137 popular. Tal posicionamento se manifesta, por exemplo, na sua preo- cupação com a educação, especialmente, com a escola e com o papel do professor enquanto “provocador de interrogantes”. Mas, também, Martín-Barbero enfatiza em sua extensa pro- dução de textos que os avanços teóricos, obtidos na reflexão sobre a cultura ou sobre a comunicação na cultura, devem tornar-se operativos, traduzíveis. Isto é, não deve existir um confronto en- tre teoria-prática, mas constribuições teóricas destinadas a fecun- dar a ação em si mesma. Aí, tem origem sua preocupação com a constituição de um comunicador como intelectual. Pensar na possibilidade que o espaço da comunicação seja um lugar estratégico para pensar a sociedade, significa refletir sobre o peso social dos estudos da comunicação e a exigência de repensar as relações comunicação e sociedade. Por essa razão, Martín-Barbero reivindica a conversão do comunicador em inte- lectual, de intermediário entre produtores e consumidores para mediador na cultura. E o mediador deve tornar explícita a relação entre diferença cultural e desigualdade social. Em contraste com o intermediário, o mediador se reconhece soci- almente necessário mas, culturalmente, problemático, num ofício ambíguo e até contraditório: trabalhar pela abolição das fronteiras e das exclusões é despojar de chão seu próprio ofício; buscar a participação das maiorias na cultura é elevar o número dos produ- tores mais do que dos consumidores[…]. (MARTÍN-BARBERO, 1990, p. 14). O que o autor parece querer argumentar é que a investiga- ção em comunicação não está eximida de elaborar uma teoria com vínculo social e, por sua vez, este investigador e/ou comuni- cador não está isento de exercer o papel de intelectual. No entan- to, mais recentemente, reconhece que o papel do intelectual está em xeque a partir da crise do Estado-nação, das utopias e da esfera pública política7. Além disso, os seus últimos textos (1997/ 98) exalam um certo ceticismo a projetos mais ambiciosos de emancipação e transformação social. A repercussão desse tipo de atitude de engajamento intelectual tem, também, seus desdobramentos na obra de García Canclini 138 que procura com freqüência relacionar sua produção teórico-em- pírica com o ato de trazer para o campo cultural uma perspectiva de ação. Não basta abordar as representações simbólicas e os as- pectos reprodutivos do campo simbólico, mas propor uma estra- tégia de ação, uma proposição política. Daí resulta a impressão de que o autor realiza uma análise do presente articulada à vonta- de de transformação. Esse é um ato político que articula a análise científica com a ação política. Tal tipo de engajamento pode ser observado, em primeiro lugar, no texto As culturas populares no capitalismo (1983). Nas con- clusões desse trabalho, encontram-se delineadas políticas culturais que tratam das relações dos artesãos com o Estado e o papel deste último em relação às culturas populares. A ênfase dessas políticas culturais populares encontra-se no papel de protagonista que os próprios produtores devem exercer, mas isto somente se realizará como conseqüência de uma democratização radical da sociedade civil. Em Culturas híbridas (1989), García Canclini avalia os efei- tos do discurso e da prática liberal ou neo-conservadora. O papel do poder público se reduz como garantia da democratização cul- tural. Isso significa concentrar o poder em empresas privadas, transformando em mercadoria os anteriormente serviços públicos de informação, artes, comunicação e outros. Dessa forma, o aces- so a esses bens torna-se possível somente a setores privilegiados. Em tal panorama, a fragmentação dos públicos, produzida pela diversificação das ofertas, reduz a expansão dos bens simbólicos. E o efeito é uma segmentação desigual dos consumos. Ainda no mesmo livro, o autor evita explicitar generalizações “fortes”, pois reconhece a crise da noção de totalidade, num tempo onde a história se movimenta em muitas direções e toda conclusão é provisória e incerta. Diante da diversidade e desigualdade de condições vividas pelos países latino-americanos o que enlaça todos e tudo é uma reformulação do capital simbólico mediante cruza- mentos do culto, popular, massivo, tradicional, moderno, ou me- lhor, através da reconversão ou hibridismo cultural. Assim, este livro não termina com uma conclusão senão com uma conjetura. Suspeito que o pensamento sobre a democratização e a 139 inovação se movimentará nos anos noventa nesses dois trilhos que acabamos de atravessar: a reconstrução não substancialista de uma crítica social e o questionamento às pretensões do neoliberalismo tecnocrático de converter-se em dogma da modernidade. Trata-se de averiguar, nessas duas vertentes, como ser radical sem ser funda- mentalista. (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 348) Em Consumidores e cidadãos (1995b), apesar de considerar a irreversibilidade do processo de globalização, García Canclini não acredita que o global esteja substituindo o local, assim como não vê o atual modo neoliberal de nos globalizarmos como o único possível. É nesse sentido que ele propõe uma luta pela reforma do Estado, traçando políticas culturais que assegurem iguais possibi- lidades de acesso aos bens da globalização. Como o título desse livro sugere, o autor procura indagar como podemos entender as tensões identitárias entre o sujeito-consumi- dor e o sujeito-cidadão em um contexto de mercado econômico e cultural glogalizado. No final, ele reivindica uma articulação entre mercado e propostas políticas com o intuito de resguardar a produ- ção cultural latino-americana e preservar o papel do Estado como um agente importante da identidade cultural coletiva. Ao recuperar as contribuições mais significativas do pensa- mento de García Canclini para os estudos culturais latino-ameri- canos e, especialmente, mexicanos, Lull (1998, p. 412) conclui que, em Culturas híbridas (1989), “García Canclini imagina um tipo de utopia da comunicação – uma esfera pública mediada que lembra o que John Thompson propõe por ‘reinvenção do espaço público’. García Canclini acredita que o mercado pode reascen- der a ‘imaginação de uma esfera pública’ e que um vasto e variado universo de produtos e mensagens deveria estar igual e facilmente acessível para a maioria do povo”. Do meu ponto de vista, no mínimo três alternativas se abrem para definir o posicionamento de García Canclini: utópico, ingê- nuo ou apenas favorável a um multiculturalismo democrático. Isso somente poderá ser avaliado com o cuidado que merece, após resgatar as considerações de García Canclini sobre a con- temporânea organização das identidades, próxima temática deste livro. De toda forma, fica explícita a posição de intervenção social 140 assumida por ele. Essa marca de intervenção estende-se, também, à prática de estudos culturais em outros contextos geográficos. Novamente, o exemplo pode ser o caso australiano. Na apresenta- ção de uma coletânea de textos sobre os estudos culturais naquele território, Frow e Morris (1996, p. 354) salientam que, embora não exista um consenso sobre “uma política do trabalho intelectu- al”, o projeto dos estudos culturais está, em certa medida, sempre marcado pelo discurso do envolvimento social. Na trajetória da vertente britânica de estudos culturais fica clara a preocupação em produzir um interesse simultâneo por formas de conhecimento e formas de política. Referindo-se ao trabalho do CCCS, Green (1996c, p. 97) afirma: “Eles [os estudos culturais] tornaram-se amplamente conhecidos por sua combinação de crítica política engajada, trabalho com textos, mas também através de estu- dos etnográficos, inseridos num contexto de mudança política e soci- al, e uma incansável exploração de marcos teóricos”. Na proposta original do CCCS e do seu coletivo de pesquisa- dores, não havia dúvidas a respeito da intenção de constituir “in- telectuais orgânicos”. A necessidade de refletir sobre a posição institucional e sobre a prática intelectual, novamente, estabeleceu um vínculo entre Gramsci e os estudos culturais britânicos. Hall reconhece que: Devo confessar que, embora tenha lido muitas abordagens mais elaboradas e sofisticadas, a de Gramsci ainda me parece a que mais se aproxima daquilo que eu acho que estávamos tentando fazer. Admito que há um problema com sua expressão ‘a produção de intelectuais orgânicos’. Porém não tenho a menor dúvida de que estávamos tentando encontrar uma prática institucional nos estu- dos culturais capaz de produzir um intelectual orgânico. Antes, no contexto britânico dos anos 70, não sabíamos o que isso signi- ficaria, e não tínhamos certeza se seríamos capazes de reconhecer ele ou ela se conseguíssemos produzi-lo(a). O problema com o conceito de intelectual orgânico é que ele parece alinhar os intelec- tuais com um movimento histórico emergente, e não podíamos dizer naquela época, e dificilmente podemos agora, onde tal mo- vimento histórico devia ser encontrado. Éramos intelectuais orgâ- nicos sem qualquer ponto de referência orgânica; intelectuais 141 orgânicos com uma nostalgia ou vontade ou esperança (lançando mão da expressão gramsciana retirada de outro contexto) de que, em algum momento, estaríamos preparados intelectualmente para aquele tipo de relação, caso semelhante conjuntura aparecesse. A bem da verdade, estávamos preparados para imaginar ou modelar ou simular essa relação em sua ausência: ‘pessimismo da razão, otimismo da vontade’. (1996a, p. 267) A proposta gramsciana implica em pensar o papel do intelec- tual orgânico em duas frentes: estar à frente teoricamente e não se omitir da responsabilidade de transmitir conhecimentos, através da função intelectual, para aqueles que não pertencem a categoria dos intelectuais. Essa ambição fazia parte do projeto dos estudos culturais, embora Hall insista: “Nós nunca produzimos intelectu- ais orgânicos no Centro (gostaria que tivéssemos). […] foi um exercício metafórico. No entanto, metáforas são coisas sérias. Elas afetam a prática das pessoas. Eu estou tentando descrever os estu- dos culturais como um trabalho teórico que deve continuar a exis- tir com essa tensão [contribuição teórica e prática política]” (HALL, 1996a, p. 268). Isso mostra a preocupação da vertente britânica com a rela- ção cultura e política, simbólico e social. A questão política foi central na sua constituição, vide sua ligação com a educação de adultos, com a New Left, com o feminismo, enfim, com os movi- mentos sociais pelo menos da época de sua emergência. Já do ponto de vista latino-americano, observa-se uma estreita relação entre cultura e atitude política que se manifesta na construção da perspectiva dos estudos culturais, na escolha de seu objeto de es- tudo e nas preocupações de seus praticantes. Entretanto, desdobramentos histórico-políticos estão obrigan- do a repensar a própria idéia de “intelectual orgânico”, assim como esta vinculação entre produção de conhecimento e o âmbi- to do social. Ilustra essa problematização o questionamento pro- posto por McRobbie (1992, p. 720): “Na era do pós- marxismo quem estará liderando quem? Se a noção de uma classe unificada cujo papel histórico de agência e emancipação desaparece, então, que papel será atribuído ao intelectual orgânico? Em nome de quem ele ou ela está agindo?” 142 Apesar da aparente não-efetividade da idéia de “intelectual orgânico” na atual conjuntura, Hall considera que essa noção deve ser retida como guia da prática dos estudos culturais. No contex- to atual, não há obrigatoriedade de “copiar” esse tipo de posicio- namento, mas de repensá-lo, observando como essa articulação entre produção do conhecimento e o social pode ser assegurada, em diferentes contextos e em um momento histórico distinto. Contudo, sempre houve no pensamento de Hall um cuidado especial em observar criticamente nuances entre a ação política do intelectual e o trabalho acadêmico: Eu volto às distinções críticas entre o trabalho intelectual e o aca- dêmico: eles se sobrepõem, eles se aproximam, um alimenta o outro, um proporciona os meios para realizar o outro. Mas não são a mesma coisa. [...] Eu volto à teoria e à política, a política da teoria. Não a teoria como o legado da verdade, mas como uma série de conhecimentos contestados, localizados e conjunturais, que devem ser debatidos de forma dialógica. Mas também como uma prática que sempre pensa sobre suas intervenções em um mundo onde ela faria alguma diferença e possa ter algum efei- to.[...] Eu realmente penso que há toda a diferença do mundo entre entender a política do trabalho intelectual e substituir o trabalho intelectual por política. (HALL, 1996a, p. 274) Também, a reflexão de Martín-Barbero mostra sinais eviden- tes de uma preocupação semelhante. Em Comunicación masiva – Discurso y poder (1978), declarando princípios para uma prática investigativa, Martín-Barbero reafirma a importância da história e assume a existência de um posicionamento político na pesquisa, mas que não se confunda com “ativismo”. Porém, as exigências concretas de posições relacionadas com um projeto político não devem inibir a prática da crítica. não é sobre os objetos e os métodos que se opta direta e imediata- mente, mas sobre o projeto histórico que os mediatiza e dota de sentido e eficácia. Sem cair na armadilha contrária, a de um politi- cismo redutor que intenta suplantar o trabalho teórico com agi- tação política. A proposta crítica consiste em assumir que ‘somente é científico, elaborador de uma verdade, um método que surja de uma situação histórico-política determinada e que verifique 143 suas conclusões em uma prática social de acordo com as proposi- ções histórico-políticas nas quais se pretende inscrevê-las’. (SCH- MUCLER apud MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 24) Para finalizar, vale retornar a conexão que se estabelece entre intelectuais e o interesse pela cultura popular. Essa ênfase no po- pular expressa uma determinada opção política e teórica que, na crítica de McGuigan, foi denominada de “populismo cultural”. Ele é entendido como “a suposição intelectual […] que as expe- riências e práticas simbólicas das pessoas comuns são mais impor- tantes analítica e politicamente do que Cultura com a letra maiúscula C” (1992, p. 4, grifo meu). Segundo o mesmo autor, esse tipo de posicionamento implica em um julgamento de valor decorrente de “sentimentos populistas”. Não há como negar que o popular, entendido à luz gramsci- ana não mais como uma essência, mas como uma matriz cultural, transformou-se num objeto privilegiado de análise dos estudos culturais. Do ponto de vista dos autores em tela neste trabalho, aproximar-se desse modo ao âmbito do popular significou exata- mente desafiar certas noções associadas a sentimentalismos, resti- tuindo a capacidade de agência aos sujeitos que, de formas diversas e diferenciadas, compõem o espaço do popular. 144 145 O nosso tempo, então, é o tempo da diferença fazendo o seu jogo, o tempo da diferença proliferante. Antônio Flávio Pierucci Pensar em como se constituem as identidades culturais no contexto do final deste milênio é o eixo deste capítulo, pois esta é a temática central dos estudos culturais de hoje. Essa perspectiva passa a ser evidente, sobretudo, como resultado da influência de reflexões em torno de temas como identidade e cultura nacional, raça, etnia, gênero, modernidade/pós-modernidade, globalização, pós-colonialismo, entre os mais importantes, dentro do espectro do campo dos estudos culturais. De forma mais geral, esse debate torna-se um problema teó- rico a partir da modernidade quando a identidade passa a ser encarada como algo sujeito a mudanças e inovações. Esse tema está relacionado com a discussão sobre o sujeito e sua inserção no mundo; sobre os indivíduos e suas identidades pessoais – como nos constituímos, percebemo-nos, interpretamos e nos apresenta- mos para nós mesmos e para os outros; sobre o deslocamento do indivíduo do seu lugar na vida social e de si mesmo. Esses movi- mentos e questionamentos acabam gerando tensões, instabilidade e ameaça aos modos de vida estabelecidos, conseqüentemente, a identidade cultural torna-se foco de questionamento. Essas breves referências revelam a amplitude de tal proble- mática. Devido à sua extensão, esta reflexão circunscreve-se à abor- dagem do papel dos meios de comunicação, seja na constituição de identidades nacionais, seja na proliferação de novas identida- des culturais. Porém, o ponto de partida não é apenas a comuni- cação e seus efeitos na cultura e identidade nacional, mas, também, a própria problemática da identidade nacional e de outras identidades culturais, e qual a importância que as práticas rela- cionadas à comunicação têm na sua constituição. IDENTIDADES CULTURAIS: UMA DISCUSSÃO EM ANDAMENTO 146 De uma maneira geral, o debate sobre as identidades oscila basicamente entre duas grandes matrizes: “essencialismo” e “cons- trução social”. A primeira posição é caracterizada por compreen- der a existência de grupos e/ou comunidades através de uma categoria inerente e inata aos mesmos, e a segunda posição, por atribuir a sua presença como um produto social. Para Larrain (1996, p. 13), esses dois posicionamentos assu- mem a denominação de teorias racionalistas ou universalistas e, em oposição às primeiras, estão as historicistas. As primeiras sublinham a identidade de metas e semelhança de meios no curso da história, as segundas acentuam as diferenças culturais e descontinuidades históricas. As primeiras não enten- dem as diferenças e julgam o ‘outro’ a partir de uma perspectiva totalizante e universalista; olham a história como uma série de etapas que todos têm que percorrer. As segundas destacam as dife- renças e descontinuidades e olham o ‘outro’ a partir da perspectiva da sua especificidade cultural única; não entendem a base comum de humanidade entre culturas. Porém, ambas as posições correm o risco de tornarem-se preconceituosas. A universalista ao enfatizar a verdade absoluta e continuidade histórica, descuida da especificidade do “outro” e tende a julgar as outras culturas sob princípios da sua própria; e a historicista, ao reiterar a especificidade, pode desenvolver uma construção do “outro” como inferior. “Duas formas de racismo resultam desses extremos: enquanto as teorias universalistas po- dem não aceitar o ‘outro’ porque não sabem reconhecer e aceitar sua diferença, as teorias historicistas podem recusar o ‘outro’ por- que este é construído como um ser tão diferente que chega a aparecer como inferior” (LARRAIN, 1996, p. 57). Enfim, as teorias que enfatizam as especificidades históricas desenvolvem uma concepção de identidade cultural associada à noção de existência de uma essência que marca diferenças irre- conciliáveis entre povos e nações. Dessa forma, concebem a iden- tidade cultural de maneira a-histórica. Já aquelas que acentuam a história como progresso universal tendem a reduzir as identida- des culturais a manifestações de um processo histórico universal. 147 Se as teorias racionalistas contêm o perigo do etnocentrismo (falta de respeito ao outro), totalitarismo (falta de respeito à diferença), universalismo (falta de respeito às especificidades lo- cais e espaciais) e a-historicidade (falta de respeito à especificida- des históricas e temporais), o historicismo contém o perigo do particularismo racista (acentuação da diferença), essencialismo (identidade cultural como um espírito imutável), relativismo (a verdade é impossível) e irracionalismo (ataque à razão). (LAR- RAIN, 1996, p. 85) A problematização das identidades culturais estará evi- denciada, aqui, através da incursão no pensamento da tríade de autores, eixo central deste livro: Stuart Hall, Jesús Mar- tín-Barbero e Néstor García Canclini. Embora essas trajetó- rias intelectuais mostrem coincidências, opto por realizar uma ramificação da temática, construindo três narrativas in- dividualizadas. Antes de adentrar no debate da constituição das identida- des, é preciso fazer apenas referência ao contexto mais geral onde essa temática assume importância. Assim, a primeira con- dição é reconhecer a desestabilização gerada pela modernida- de nessa discussão, assim como as implicações da problemática da pós-modernidade e seu interesse na (re)construção das iden- tidades.1 A segunda condição para compreender a preocupa- ção contemporânea em torno das identidades é apontar, como pano de fundo, a existência da globalização.2 Contudo, a defi- nição e o endosso a um posicionamento a esse respeito fazem parte dos caminhos que cada autor percorre, assim, esses te- mas serão abordados, pelo menos indiretamente, em cada uma das narrativas. Mesmo assim, vale dizer que a vinculação entre essas duas problemáticas, recém citadas, tem ressonâncias políticas, econô- micas e culturais. Dentro do âmbito cultural, a configuração das identidades sofre profundas alterações. Em um mundo que pare- ce dominado por um repertório cultural global, novas comunida- des e identidades estão sendo constantemente construídas e reconstruídas. É justamente uma reflexão sobre esse processo que se apresenta a seguir. 148 IDENTIDADE COMO DIÁSPORA A experiência da diáspora que se desconecta do sentido estri- to da dispersão dos judeus ou de outros povos por motivos políti- cos ou religiosos, em virtude da perseguição de grupos intolerantes, sintetiza, segundo Stuart Hall, a nova configuração que as identi- dades culturais assumem hoje. “Visto que a migração3 resultou ser o evento histórico-mundial da modernidade tardia, a clássica experiência pós-moderna revela-se ser a experiência diaspórica” (1996d, p. 490). Essa idéia passa a enfatizar tanto o deslocamento espacial quanto o temporal. Este último sentido refere-se à permanência de uma ligação com o passado – mesmo que possa estar associado à imagem de um passado em ruínas. Por essa razão, Hall vai discutir a formação de novas formas de identidade ligadas ao re- contar o passado através da memória e à afirmação da diferença. Outra imagem que pode simbolizar o arquétipo da condição atual e reforça a anterior é a do “forasteiro familiar”. Ele expressa uma tensão entre elementos pessoais e estruturais, residindo aí seu poder enquanto imagem criativa, mas que não perde suas especifi- cidades. A trajetória pessoal de Hall é ilustrativa nesse sentido. Tendo sido preparado pela educação colonial, eu conhecia a Ingla- terra a partir de dentro. Mas eu não sou e nunca serei ‘inglês’. Eu conheço ambos os lugares [Jamaica e Inglaterra] intimamente, mas eu não sou completamente de nenhum desses lugares. E isso é exa- tamente a experiência diaspórica, distante o suficiente para experien- ciar o sentimento do exílio e perda, próximo o suficiente para entender o enigma de uma ‘chegada’ sempre adiada (Idem). Partindo ou não de seu caso pessoal, a identidade é uma busca permanente, está em constante construção, trava relações com o presente e com o passado, tem história e, por isso mes- mo, não pode ser fixa, determinada num ponto para sempre, implica movimento. Eu penso [diz Hall] que a identidade cultural não está fixa, é sempre híbrida. Mas é precisamente porque surge de formações históricas muito específicas, de histórias específicas, de repertórios culturais de 149 enunciação, que pode constituir-se em um ‘posicionamento’ [‘po- sicionality’] que nós chamamos, provisoriamente, identidade. […] Então, cada um desses relatos de identidade está inscrito nas posi- ções que assumimos e com que nos identificamos, e temos de viver esse conjunto de posições de identidade em toda sua especificida- de” (1996d, p. 502). Na tentativa de apresentar o desenrolar do debate que trata de como estão sendo transformadas e produzidas diferentes e novas posições de sujeitos no curso e desdobramento de uma cultura global, de uma maneira mais ou menos cronológica, acre- dito que é importante recuperar, ainda que de forma breve, a reflexão de Stuart Hall sobre a natureza da identidade cultural que pertence àquele momento histórico particular, marcado por uma posição de liderança das nações no mercado mundial. Vale lembrar que Hall vai pensar essa problemática a partir de um lugar determinado, a partir do Reino Unido e, particularmente, da Inglaterra, ou seja, um lugar que exerceu forte liderança mun- dial mas, hoje, de certa forma tem menos realce devido ao seu declínio econômico e político. Circunscrita a um momento determinado, a identidade cul- tural era, então, definida como fortemente centrada, um ponto estável de referência, um tipo particular de “etnicidade”, localiza- da num lugar, numa história específica. No entanto, Hall reco- nhece que não era polido referir-se dessa forma à identidade britânica até recentemente. “Uma das coisas que está acontecen- do na Inglaterra é a longa discussão, recém iniciada, que tenta convencer os ingleses que eles são, afinal de contas, somente ou- tro grupo étnico” (HALL, 1991b, p. 21). Com o processo de globalização, essa relação estável entre identidade cultural nacional e Estado-nação começa a mudar, isto é, a idéia de que uma formação nacional possa ser representada por uma identidade nacional passa a estar tensionada. No caso britânico, Hall identifica esse processo de mudança através de um conjunto de fatores: declínio econômico da nação britânica; acele- rado processo de abertura de mercados globais a partir dos anos 70; movimentos de migração, sobretudo no período pós-Segunda Guerra; aumento da interdependência internacional; surgimento 150 de acordos monetários e regionais através de organizações supra- nacionais e suas implicações na concepção de soberania e do Es- tado-nação; e, também, o impacto do “progresso” no meio ambiente mundial. Mesmo que a análise de Hall sublinhe aspectos que dizem respeito ao caso específico britânico, pode-se, de outro lado, es- tender suas observações em um contexto bem mais vasto. Assim, com essa movimentação geral, sumariamente descrita, vem a ero- são do Estado-nação e das identidades nacionais associadas a ele. Dessa forma, o autor pondera que “quando a era dos estados nacionais, na globalização, começa a declinar, pode-se ver uma regressão a uma forma de identidade nacional muito defensiva e altamente perigosa, que está dirigida por uma forma muito agres- siva de racismo” (HALL, 1991b, p. 26). Em outro lugar, Stuart Hall (1994) avalia que as “grandes narrativas” da modernidade criaram uma expectativa de gradual desaparecimento de posições nacionalistas ao invés do imprevisí- vel retorno aos nacionalismos que estamos presenciando. Diante da globalização, aspectos locais e nacionais são cada vez mais me- recedores de atenção. E, embora os estados nacionais sejam possi- velmente menos importantes hoje do que em épocas anteriores, vínculos com a nação, assim como com a região, isto é, com lugares propriamente ditos, que foram uma vez pensados como particularismos arcaicos que a modernidade capitalista dissolve- ria ou ultrapassaria, estão renascendo. A última fase da globalização capitalista com suas impetuosas compressões e reordenamentos sobre o tempo e o espaço não resultou necessariamente na destruição daquelas estruturas espe- cíficas, conexões e identificações particularistas que estão ligadas às comunidades mais localizadas cuja modernidade homogenei- zante supôs substituir. […] Mas, a assim chamada ‘lógica do capital’ tem operado muito mais através da diferença – preser- vando e transformando a diferença […] – do que a minando. (HALL, 1993b, p. 353) A partir do momento em que foram criados estados nacio- nais com suas fronteiras geográficas bem definidas, sua economia 151 e cultura nacionais, se estabelece uma tensão entre esse primei- ro desenvolvimento e os imperativos transnacionais da lógica capitalista. A atual e intensa fase de globalização tem favorecido tendências que pressionam os estados nacionais em direção à integração supranacional – econômica e, mais hesitantemente, política e cul- tural – enfraquecendo sem destruir o Estado-nação e, desse modo, abrindo ambas as economias, locais e regionais, para novos des- locamentos e novas relações. Paradoxalmente, a globalização pa- rece, também, ter conduzido a um fortalecimento de fidelidades e identidades ‘locais’ dentro dos estados nacionais. Embora isso possa ser enganador, o fortalecimento do ‘local’ é provavelmente menos o revival de identidades estáveis de ‘comunidades estabe- lecidas localmente’ do passado e mais aquela ardilosa versão ‘do local’ que opera dentro e tem sido completamente remodelada pelo ‘global’, funcionando amplamente dentro de sua lógica. (HALL, 1993b, p. 354) O que na verdade pode ser observado, segundo Hall, é uma gradual, embora irregular, erosão dos nacionalismos dos princi- pais estados da Europa Ocidental e o fortalecimento tanto de rela- ções transnacionais quanto de identidades locais. Dois traços marcam o desenrolar desse processo: por um lado, a revaloriza- ção de movimentos por autonomia regional e nacional, precisa- mente encampados por grupos que tiveram suas identidades amordaçadas por estados nacionais fortes e, de outro lado, o cres- cimento concomitante de uma reação defensiva daquelas culturas nacionais que se viram ameaçadas por movimentações de suas próprias periferias. Entre os exemplos citados pelo autor, vale recuperar sua refe- rência a Raymond Williams, pois este reflete a ambivalente iden- tificação produzida por essas duas tendências quando se autodenomina um “galês-europeu”, isto é, oriundo do País de Gales mas sob a égide da Grã-Bretanha que, por sua vez, integra enquanto uma unidade a Europa Ocidental. Também, não pode ser negligenciado o que ocorreu e está em curso na Europa Oriental: o esfacelamento da União Soviética e o renascimento de nacionalismos étnicos submersos por décadas sob 152 o poder da influência soviética e outros acontecimentos atuais como a guerra entre sérvios e bósnios. De forma muito cuidado- sa, Hall avalia que, do ponto de vista político, o nacionalismo não é necessariamente nem uma força reacionária nem progressiva. “Ele é suscetível de ser modulado a posições políticas muito dife- rentes, em momentos históricos diferentes e seu caráter depende muito de outras tradições, discursos e forças com as quais está articulado” (1993b, p. 355). Por exemplo, movimentos de países do Terceiro Mundo que foram produzidos como contra-discursos à exploração e colonização cultural têm trajetórias bem distintas daqueles que foram gerados em reação ao sistema socialista. Sendo assim, Hall endossa a posição de que o Estado-nação não é apenas uma entidade política, mas, também, uma formação simbólica que produz uma “idéia” de nação enquanto uma “co- munidade imaginada”. Porém, o percurso desses movimentos pró- nacionalismo têm revelado com freqüência a tentativa de construção de formações etnicamente “fechadas”, isto é, “puras”, alinhando-se a uma concepção essencialista de identidade nacional. Mas a história dos estados nacionais do Ocidente nunca foi desse tipo etnicamente puro. […] eles são, sem exceção, etnicamente híbridos – o produto de conquistas, absorções de um povo por outro. A principal função das culturas nacionais, que […] são sistemas de representação, tem sido representar o que é, de fato, uma amálgama étnica da nacionalidade moderna como a unidade primordial de ‘um povo’ […] Além do mais, esse hibridismo do Estado-nação moderno está hoje, na presente fase de globalização, sendo composto por uma das maiores, compulsórias e voluntári- as, migrações de massa dos últimos tempos. Portanto, um após o outro, os estados nacionais ocidentais, já incontestavelmente dias- porizados [diaspora-ized], estão tornando-se inextricavelmente ‘multiculturais’ – étnica, religiosa, cultural, lingüisticamente, etc misturados. (HALL, 1993b, p. 356) Por esse trajeto, Hall recupera a reflexão de Williams sobre o “modo de vida global”, problematizando-a.4 Em outras palavras, refere-se a quem esse modo de vida; a qual vida; existiria um único modo de vida ou vários; não seria o caso de que, no mundo moderno, quanto mais se examina esse “modo de vida global” 153 mais internamente diversificado, mais atravessado por complexos padrões de similaridades e diferenças, ele parece ser. “As pessoas modernas, de todos os tipos e condições, cada vez mais como uma condição de sobrevivência, parecem ser membros, simulta- neamente, de muitas e sobrepostas ‘comunidades imaginadas’; e as negociações entre e através dessas complexas ‘fronteiras’ são características da própria modernidade” (HALL,1993b, p. 359). Embora já se tenha mencionado que o global e o local são duas rotas simultâneas, características de uma época de globaliza- ção – da passagem daquela onde o Estado-nação, as economias nacionais e as identidades culturais nacionais eram dominantes para a presente, em que esses mesmos laços se afrouxam –, é importante recuperar esse aspecto de forma mais sistemática. Hall questiona-se, então, O que é esse novo tipo de globalização? O novo tipo de globali- zação não é inglês, mas americano [norte-americano]. Em termos culturais, o novo tipo de globalização tem a ver com uma nova forma de cultura de massa global, muito diferente daquela associ- ada com a identidade inglesa e as identidades culturais associadas ao Estado-nação numa fase anterior. A cultura de massa global é dominada pelos meios modernos de produção cultural, domina- da pela imagem que atravessa e reatravessa fronteiras lingüísticas muito mais rápida e facilmente, e fala através de linguagens de um modo muito mais imediato. (1991b, p. 27) Sintetiza-se que essa “cultura de massa global” permanece centrada no Ocidente ou melhor nas narrativas ocidentais; “fala inglês” enquanto língua internacional; é dominada por imagens da publicidade, da televisão e do cinema; é uma forma peculiar de homogeneização, ou seja, é uma forma de representação cultural (fundamentalmente, visual) homogeneizadora mas nunca absolu- tamente completa. Essa forma de homogeneização é muito particular, explica Hall (1991b, p. 28): [Ela] está querendo reconhecer e absorver as diferenças dentro de uma extensa estrutura do que é essencialmente uma concepção 154 americana do mundo. Isso é dizer que ela está muito fortemente localizada na concentração crescente e em andamento da cultura e de outras formas de capital. Mas é hoje uma forma de capital que reco- nhece que – usando uma metáfora – somente pode governar através de outros capitais locais, ao lado de e em parceria com outras elites políticas e econômicas. Essa forma de homogeneização não tenta apagar as diferenças, ela funciona através delas (grifo meu). E mais adiante, Hall cita um exemplo que nos interessa reter aqui: Você tem que pensar sobre a relação entre Estados Unidos e Amé- rica Latina para descobrir sobre o que estou falando, como aque- las formas que são diferentes, que tem sua própria especificidade podem ser, contudo, repenetradas, absorvidas, remodeladas, ne- gociadas, sem absolutamente destruir o que é específico e particu- lar a elas. (Idem) Essa menção ao processo cultural vigente na América Latina relaciona-se precisamente ao que Martín-Barbero e García Can- clini estão tentando chamar a atenção, isto é, para os movimentos particulares de negociação de sentidos que incorporam “imagens” dessa “cultura de massa global” mas com rastros de uma outra identidade, lastrada numa outra história. Esse novo regime cultu- ral vive através da diferença. Assumindo que o reconhecimento da diversidade cultural é imperativo na contemporaneidade, Hall sinaliza que o grande ris- co surge de formas de identidade cultural e nacional que tentam firmar-se adotando versões “fechadas” de cultura e pela recusa a engajar-se na problemática de viver com a diferença. Por essa razão, enfaticamente propõe posicionar-se “nas margens” para a partir desse lugar reconhecer um modo de existência que não se deixa classificar como simplesmente de assimilação cultural. É a partir desse espaço, que pode também ser identificado como o âmbito do local, que passam a aparecer novas representa- ções, novos sujeitos que mediante diferentes embates, alcançam meios de falarem por si mesmos. Assim, ao mesmo tempo que se sente a força da homogeneização e absorção, sente-se a pluralida- de e a diversidade, formas locais de oposição e resistência. 155 Nesse sentido, Hall identifica em curso uma “política de re- presentação” – um envolvimento dos sujeitos que até então pode- riam estar localizados “nas margens”, em reclamar alguma forma de representação por si mesmos. Duas questões passam a ser cru- ciais nesse contexto: a disposição de viver com a diferença e, de outro lado, a etnicidade. Ambos os termos são passíveis de mal-entendidos, por isso o autor indica o sentido que lhes dá. O primeiro evoca a multiplicida- de de diferenças que operam na constituição e representação da identidade. O termo etnicidade admite o entendimento do espaço da história, da linguagem e da cultura na construção da subjetivida- de e da identidade, isto é, um reconhecimento em que todos nós falamos a partir de um lugar, de uma história, de uma experiência, de uma cultura particular. “Nesse sentido, nós somos todos etnica- mente situados e nossas identidades étnicas são cruciais para nosso senso subjetivo de quem somos” (HALL, 1996j, p. 447). Contudo, esses movimentos que vêm do local, podem de- sembocar em duas vertentes bem distintas. Uma implica o retor- no aos fundamentalismos: “Quando os movimentos das margens estão tão profundamente ameaçados pelas forças globais da pós- modernidade, eles mesmos podem retroceder aos seus próprios enclaves exclusivistas e defensivos. E, nesse ponto, as etnicidades locais tornam-se tão perigosas quanto as nacionais. Nós vimos isso acontecer: a recusa da modernidade toma a forma de um retorno, redescoberta da identidade que constitui uma forma de fundamentalismo” (HALL, 1991b, p. 36). E a outra vertente diz respeito ao reconhecimento de que se fala a partir de um determinado lugar, que seria a descoberta de um “passado”, de um “chão”. Essas origens, no entanto, não estão imersas num lugar mítico e idealizado que não estabelece relações com o presente, mas, ao contrário, é aquele espaço de fronteira, de cruzamento, apontado como híbrido. Do lugar de milhões de pessoas deslocadas, de culturas deslocadas, de comunidades fragmentadas do ‘Sul’, que foram retiradas de suas ‘comunidades já estabelecidas’, de seus ‘sentimentos já aloca- dos’, de suas ‘verdadeiras relações vividas’, de seu ‘modo de vida’. Essas pessoas tiveram de aprender a desenvolver outras habilida- 156 des, aprender outras lições. São produtos de novas diásporas que estão se delineando no mundo. São obrigadas a viver pelo menos duas identidades, a falar pelo menos duas linguagens culturais, negociando-as e traduzindo-as mutuamente. [...] Essas pessoas são o produto das culturas da hibridação. [...] Os híbridos guar- dam fortes ligações e se identificam com as tradições e com os locais de sua ‘origem’. Mas não têm nenhuma ilusão em relação a um verdadeiro ‘retorno’ ao passado. Ou nunca retornarão (seja qual for o sentido literal) ou os lugares a que retornarem terão se transformado em algo irreconhecível devido aos processos des- providos de qualquer remorso que caracterizam a transformação moderna. Nesse sentido, não há hipótese de se voltar para ‘casa’ novamente. [...] Estão também obrigados a chegar a um acordo com as novas culturas em que vivem, bem como fazer algo novo delas, sem simplesmente deixarem-se assimilar por tais culturas. Não são e nunca serão, em um sentido antigo, unificados cultural- mente, porque são inevitavelmente os produtos do encadeamen- to de várias histórias e culturas, pertencendo, ao mesmo tempo, a várias ‘casas’ – e assim a nenhuma casa em particular. (HALL, 1993b, p. 361) Nessa longa citação, encontram-se, de forma explícita ou implícita, diversas idéias-chave que marcam a contribuição de Stuart Hall sobre a identidade no mundo contemporâneo. Em primeiro lugar, identidade é um espaço onde um conjunto de no- vos discursos teóricos se interseccionam e onde um novo grupo de práticas culturais emerge. Trata-se de uma categoria política e culturalmente construída em que a diferença e a etnicidade são seus elementos constituintes; a experiência da diáspora se trans- forma em emblema do presente; a hibridação deixa sua marca e a fluidez da identidade torna-se ainda mais complexa pelo entrela- çamento de outras categorias socialmente construídas, além das de classe, raça, nação e gênero. Essas últimas categorias somadas à narrativa do Ocidente, se- gundo Hall, são “as grandes identidades coletivas sociais” que não desapareceram, mas não têm mais a força de antes. Como pensar, então, a problemática da identidade na esteira do esmaecimento dessas “grandes identidades”, sendo que estas já não têm mais o poder explicativo e compreensivo que tiveram? Esse questionamento 157 é ainda mais crucial em relação à classe, pois esta era o principal referente de posição social. Se um sentido de identidade se perdeu, precisamos de outro. Isso faz com que tornemo-nos cientes de que identidades não são nunca completas, finalizadas. Ao contrário, estão em permanente processo de constituição. São narrativas, discursos contados a partir do ponto de vista do Outro. “[…] identidade é sempre em parte uma narrativa, sempre em parte um tipo de representação. Está sempre dentro da representação.5 Identidade não é algo que é formado fora e, no final, nós narramos histórias sobre ela. É o que está narrado na nossa própria pessoa (Hall, 1991a, p. 49, grifo meu). Por essa razão, Hall concebe a identidade articulada ao pas- sado e presente, em permanente construção, atravessada tanto pelos discursos públicos quanto pelas práticas e experiências dos sujeitos, entranhados numa determinada conjuntura histórica. A identidade, então, é um assunto de ‘chegar a ser’ como também de ‘ser’. Pertence ao futuro tanto quanto ao passado. Não é algo que já existe, trans- cendendo lugar, tempo, história e cultura. As identidades culturais vêm de algum lugar, têm histórias. Mas, como tudo o que é histó- rico, elas sofrem uma transformação constante. Longe de estarem eternamente fixas num passado essencializado, estão sujeitas ao contínuo ‘jogo’ da história, da cultura e do poder. Longe de esta- rem fundadas numa mera ‘reprodução’ do passado que está espe- rando ser encontrado e que, quando encontrado, assegurará nosso sentido de nós mesmos até a eternidade, as identidades são os nomes que damos às diferentes maneiras como estamos situados pelas narrativas do passado e como nós mesmos nos situamos dentro delas. (HALL, 1990, p. 225) Dentro desse contexto, Hall presta acurada atenção às iden- tidades diaspóricas, isto é, o que a experiência da “migração” afeta a identidade, pois ninguém se translada de um lugar a outro ou herda e se apropria de culturas diversas sem ser afetado por essa experiência. E, aqui, as características da hibridez – expressa na idéia de cut and mix – e do movimento integram-se às caracte- rísticas, anteriormente descritas, na constituição da identidade. 158 Ao pensar o sentido de identidade no seu caso em particular, isto é, sua autonarrativa, Hall reconhece sua posição de migrante e negro como marcantes, posição que vai ter implicações no seu viver com e através da diferença, compondo, também, a experiên- cia diaspórica. Lembro a ocasião em que retornei, a título de visita, à Jamaica, no início do anos 60, depois da primeira onda de migração para a Inglaterra. Minha mãe falou: “Espero que lá não pensem que você é um desses imigrantes!”. Assim, naquele momento, soube clara- mente e pela primeira vez que eu era um imigrante. Repentina- mente, relacionada a essa narrativa da migração, uma versão do meu “eu real” desvelou-se. Eu disse: ‘É claro que sou um imigran- te. O que você acha que eu sou?’ [...] o problema é que no mo- mento em que se compreende que se é um imigrante, reconhece-se que não se pode mais sê-lo: não é uma posição que se ocupe por muito tempo. Passei, então, pela longa e importante educação política de descobrir que sou ‘negro’. Constituir-se como ‘negro’ é um outro reconhecimento de ser através da diferença. (HALL, 1993a, p. 135) Ainda sobre a questão da diferença, Hall se apropria do ter- mo derridiano différance para evocar o jogo de significantes e a multiplicação de diferenças que operam no caleidoscópio da iden- tidade e sua representação. Segundo Hall, essa noção instaura uma certa perturbação no estabelecido entendimento de diferen- ça, mas alerta para o risco de escorregar para o desconstrucionis- mo e seu infinito jogo de significantes. Pensar a identidade através da diferença é voltar-se, também, para a politização do local e dessa nova noção de identidade. No caso britânico, vai ser a formação da diáspora negra que vai trans- formar a vida inglesa. A própria narrativa de Hall sobre sua traje- tória pessoal revela a passagem do âmbito do nacional, enquanto eixo central da constituição da identidade, para a etnicidade, ao “descobrir-se” migrante e negro. E esse mesmo movimento está expresso na sua reflexão em “Minimal selves” (1987) e “New ethnicities” (1989) quando, no primeiro artigo, concluía que “o vagaroso e contraditório movi- mento do ‘nacionalismo’ para a ‘etnicidade’ como uma fonte de 159 identidades é uma parte de uma nova política” (1993a, p. 138) e, no segundo, detendo-se na descrição propriamente dita desse ou- tro momento: “o que está em questão aqui é o reconhecimento da extraordinária diversidade de posições subjetivas, experiências sociais e identidades culturais que compõem a categoria ‘negra’, isto é, o reconhecimento que ‘negro’ é, essencialmente, uma cate- goria construída política e culturalmente, que não pode ser funda- da em um conjunto de categorias raciais transculturais fixas ou transcendentais e que, por essa razão, não tem garantias na natu- reza” (HALL, 1996j, p. 443) Nessa perspectiva, resta anotar que a forma de Hall pensar a identidade é diferente da perspectiva pós-moderna. Embora ad- mita um certo descentramento do sujeito na atual conjuntura, nega a existência de algo tão novo e completamente diferente e de certa maneira unificado como a condição pós-moderna. Reconhece a vigência de experiências que podem ser vistas como uma tendên- cia emergente ou uma entre outras tantas, mas essa não tem uma forma cristalizada. Admite que se vive num turbilhão de sentidos onde vige uma multiplicidade infinita de códigos, discursos e leituras que produz novas formas de autoconsciência e reflexividade. Isso, de forma alguma, significa que a representação se exauriu, mas que se tor- nou um processo bem mais problemático. Uma variedade de termos existe e está sendo utilizada na tentativa de descrever essas diversas e diferentes dimensões da experiência contemporânea: pós-fordismo, pós-industrial, pós-mo- dernidade, entre outros. “Nenhum desses é completamente satisfa- tório. Cada um expressa um sentido mais perspicaz do que nós estamos deixando para trás […] do que para onde nós estamos nos dirigindo. Cada um, contudo, representa alguma coisa importante sobre o debate dos ‘Novos Tempos’” (HALL, 1996g, p. 224). Em suma, Hall não aceita a idéia de que se vive uma nova era, uma outra época. Porém, utiliza inúmeras vezes o termo pós- moderno para referir-se à condição atual. Suas observações mos- tram-se abertas a algumas manifestações desta lógica e são relativamente otimistas em relação ao seu desenlace. 160 IDENTIDADE COMO DESCENTRAMENTO Uma atmosfera específica permeia o debate contemporâneo sobre a particularidade do latino-americano. A descrição do cená- rio onde se gesta esse pensamento é fundamental, sobretudo se a reconstituição das cenas se faz a partir da própria caracterização do autor em foco neste momento: Jesús Martín-Barbero. Ao percorrer a obra desse pesquisador, percebe-se que o seu primeiro livro Comunicación masiva: Discurso y poder (1978) deixa as pistas para a continuidade de uma trajetória que tem em De los medios as las mediaciones – DMM – (1987) sua seqüência. Porém, se existem linhas que indicarão continuidade entre um trabalho e outro, também existem nítidos sinais de ruptura, pois é neste últi- mo lugar – em DMM – onde se expõe a originalidade de suas formulações, propondo o estudo da comunicação a partir da cul- tura ou, mais exatamente, a partir das experiências dos sujeitos sociais. Em DMM também aparecem marcas que serão explora- das a partir dos anos 90, sinalizando flertes teóricos e possivel- mente um outro rumo para uma reflexão que promete imprimir sua marca neste novo milênio. Em outras palavras, ao ler e reler a produção de Martín- Barbero identificam-se momentos de ruptura e momentos de con- tinuidade. Assim, em 1978, o eixo da reflexão centrava-se nos discursos, mas a importância do sujeito-receptor estava mencio- nada, embora permanecesse como pano de fundo. Em 1987, a experiência desse sujeito assume o papel de protagonista, preen- chendo todo o espaço. Contudo, a questão transnacional, aborda- da na última parte do seu livro, serve como elo para repensar as mediações em tempos de globalização e descentramento cultural, tema central em 1997. Na sua produção, especialmente a da segunda metade dos anos 90, dois lugares são decisivos para a análise cultural da co- municação: a televisão (sobretudo a publicidade, os videoclipes e a dramaturgia) e a cidade e suas implicações na construção das identidades, deslocando interesses anteriores, centrados, por exemplo, na telenovela. E, nos últimos textos de 97/98, talvez já esteja em estado embrionário uma rota diferente. No entanto 161 nesse último estágio somente podem ser vislumbradas as conti- nuidades e rupturas, tendo como contraponto DMM (1987). O propósito, aqui, é reconstituir alguns momentos dessa tri- lha, sem perder de vista o eixo do tema da identidade. Como muitas das sugestões teóricas de DMM já foram devidamente re- cuperadas em outras partes deste trabalho, parte-se de breves ob- servações encontradas ainda naquele livro para tentar elucidar possíveis rupturas que despontam nos textos seguintes. Os processos políticos e sociais vividos na América Latina nos anos 70 e 80 mexeram profundamente com algumas certezas teóricas, com a “razão dualista” e com esquematismos correntes na época que confrontavam rural/urbano, popular/erudito, Euro- pa-Estados Unidos/América Latina, universal/local, etc. Ao colo- car as fronteiras desses termos em xeque, foi possível confrontar-se com outra “verdade cultural desses países: a mestiçagem, que não é somente fenômeno racial do qual viemos, mas trama contempo- rânea de modernidade e descontinuidades culturais, de formações sociais e estruturas de sentimento, de memórias e imaginários que remexem o indígena com o rural, o rural com o urbano, o folclore com o popular e o popular com o massivo” (MARTÍN-BAR- BERO, 1987a, p. 10). É nesse contexto e a partir desse ponto de vista que é possível identificar um sentido contraditório, heterogêneo e descontínuo para a modernidade latino-americana. Martín-Barbero indica três planos primordiais para a visualização desse modo dependente de acesso à modernidade: da assincronia entre formação do Estado e da nação; do modo “desviado” como as classes populares se in- corporam ao sistema político e à formação dos estados nacionais; e, por último, do papel político que os meios de comunicação desempenham na nacionalização das massas populares. Assim, o primeiro esforço de construir a modernidade na América Latina esteve ligado com a idéia de Nação, e os meios de comunicação foram decisivos na formação e difusão da identidade nacional. Nesse momento, articulava-se um movimento econômi- co de entrada das economias nacionais no mercado internacional e um projeto político de constituição da nação mediante a criação de 162 uma cultura, de uma identidade nacional ou, nos termos da época, de um “sentimento nacional”. Dessa forma, os meios vão proporci- onar às populações afastadas do “centro” uma experiência de inte- gração, de tradução da idéia de nação em vivência cotidiana. Na perspectiva de Martín-Barbero, a modernidade latino- americana enquanto experiência coletiva, está estreitamente vin- culada a expansão das indústrias culturais. Ao contrário da modernidade ilustrada, em que a cultura do livro era o eixo, aqui, é, principalmente o rádio, o cinema, a televisão, seu suporte. “A modernidade fala na América Latina, de uma maneira peculiar, da compenetração e da cumplicidade entre a oralidade – como experiência cultural primária da maioria das pessoas – e a visualida- de eletrônica. […] As maiorias em nossos países aceitam e se apro- priam da modernidade sem deixar sua cultura oral, sem passar pelo livro, com tudo o que isso implica de escândalo e desafio para nossos modelos de cultura” (MARTÍN-BARBERO,1995b, p. 169). De outro lado, vale recuperar a insistência de Martín-Barbero na “não-exterioridade do massivo no popular” na constituição da modernidade latino-americana. A noção de popular é revista, pas- sando a estabelecer-se uma relação dinâmica entre o popular e o massivo. Porém, na modernidade latino-americana, “não se con- fundem memória popular e imaginário de massa, mas se abando- na a conhecida ilusão essencialista de um estrato popular incontaminado e autêntico” (HERLINGHAUS, 1998, p. 18). Todavia, Martín-Barbero insiste no registro em que a “mo- dernidade não-contemporânea” da América Latina deve ser lida para evitar mal-entendidos. Essa não-contemporaneidade é dis- tinta da idéia de “atraso constitutivo”, isto é, o atraso não é o traço explicativo da diferença cultural. [A modernidade não-contemporânea] é uma idéia que se mani- festa em duas versões. Uma, pensando que a originalidade dos países latino-americanos, e da América Latina como um todo, foi constituída por fatores que escapam à lógica do desenvolvimento capitalista. Outra, pensando a modernização como recuperação do tempo perdido, e portanto identificando o desenvolvimento com o definitivo deixar de ser o que fomos para afinal sermos modernos. A descontinuidade que tentamos pensar aqui está 163 situada em outra chave […]. Para poder compreender tanto o que o atraso representou em termos de diferença histórica, mas não num tempo detido, e sim relativamente a um atraso que foi historicamente produzido […], quanto o que apesar do atraso existe em termos de diferença, de heterogeneidade cultural, na multiplicidade de tempo- ralidades do índio, do negro, do branco e do tempo decorrente de sua mestiçagem. Só a partir dessa tensão é pensável uma modernida- de que não se reduza a imitação e uma diferença que não se esgote no atraso. (MARTÍN-BARBERO, 1987a, p. 165) Não há imitação de outras trajetórias de modernidade – eu- ropéia e/ou norte-americana, mas a tessitura da nossa própria modernidade. A diferença, então, não é apenas aquela associada com nosso subdesenvolvimento, mas que retém nesse processo de “constituir-se e desconstituir-se essa contraditória mas ainda po- derosa identidade” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 32, grifo meu). Assim como, num primeiro momento, as indústrias culturais desempenharam um papel integrador e organizador, hoje, embora elas continuem interpelando os sujeitos, atuam mais como desorga- nizadoras e reorganizadoras da experiência social. “O processo que vivemos hoje é não só distinto como, em boa medida, inverso: os meios de comunicação são uns dos mais poderosos agentes da des- valorização do nacional” (MARTÍN-BARBERO,1995b, p. 172). Hoje, os meios de comunicação agem como o dispositivo mais poderoso na dissolução de um horizonte cultural comum no âmbito da nação. Encarnam, assim, uma posição mediadora na construção de outras identidades: das cidades, das regiões, do espaço local, etc. “Atravessando o movimento de homogenei- zação que implica a globalização econômica e tecnológica, os meios massivos e as redes eletrônicas veiculam um multicultura- lismo que faz rebentar os referentes tradicionais de identidade” (MARTÍN-BARBERO, 1997c, p. 20). Diante dessa situação, o modelo de sociedade implícito à idéia de modernidade anteriormente descrita entra em crise e, com ele, duas das suas categorias-chave: Estado nacional e espa- ço público. A esfera pública vai corresponder fundamentalmente ao espaço controlado pelos meios de comunicação de massa. Essa concepção, por sua vez, traz profundas conseqüências para a 164 compreensão do que é política. “Esta veria esvaziar seus conteú- dos substantivos para tornar-se refém da forma de comunicação dos meios nos quais não cabem formas de verdade matizadas: os próprios personagens políticos não buscam distinguir-se por sua experiência ou capacidade de liderança, mas pela simpatia que seus publicistas são capazes de suscitar entre os grandes auditórios” (COSTA, 1999, p. 97). Nas palavras de Martín-Barbero, esse pro- cesso revela a crise do político como dimensão fundamental da vida social. A espetacularização da política retira-lhe substância, transformando-a em “gesto dramático”.6 Nesse novo contexto, duas características primordiais confi- guram a contemporaneidade latino-americana: as contradições pro- venientes dos acordos de integração regional nesse continente e a paulatina desestruturação do espaço nacional. Diante da globaliza- ção em curso, “a integração dos países latino-americanos implica a sua inevitável integração a pura e dura lógica de uma economia- mundo na qual toda aliança é para competir e fragmentar” (MARTÍN- BARBERO, 1996a, p. 58). Exigências de competitividade prevalecem sobre laços de cooperação e complementaridade regional. Sendo assim, a solidariedade regional se fragiliza. De outro lado, a desintegração social e política do espaço nacional é cada vez mais evidente. Indicativos como a crescente desigualdade social, a inserção de instituições financeiras transna- cionais que vão substituindo o Estado no planejamento do desen- volvimento, a deterioração da esfera pública e de mecanismos de coesão política cultural, entre outros aspectos, levam o autor a duvidar da pertinência de categorias como nação e Estado para compreender as experiências culturais contemporâneas. Entrelaçado com esse cenário, Martín-Barbero reitera o “mal- estar latino-americano na modernidade”: Aí se enraízam algumas das nossas mais secretas e entranhadas vio- lências. Pois as pessoas podem com certa facilidade assimilar os instru- mentos tecnológicos e as imagens de modernização, mas só muito lenta e dolorosamente podem recompor seu sistema de valores, de normas éticas e virtudes cívicas. […] Não dispomos de categorias de interpretação capazes de captar o rumo das vertiginosas transformações que vive- mos. Somente alcançamos vislumbrar que na crise dos modelos de 165 desenvolvimento e dos estilos de modernização existe um forte questionamento das hierarquias centradas na razão universal, que ao perturbar a ordem seqüencial libera nossa relação com o passado, com nossos diferentes passados, permitindo-nos recombinar as memórias e reapropriar-nos criativamente de uma descentrada modernidade. (MARTÍN-BARBERO, 1996a, p. 59, grifo meu) A partir de De los medios a las mediaciones (1987) está sugerida a importância das práticas populares e sua natureza “sincrética” (nos termos de Martín-Barbero, a mestiçagem). São essas “esque- cidas” formas de participação na vida cotidiana que contribuem tanto para preservar as identidades culturais como para adaptá-las às demandas modernas. Daí a ênfase do autor em insistir que, em última instância, o próprio objeto dos estudos de comunicação “são as mudanças nos modos das pessoas juntarem-se, as mudanças nos modos de estarem juntas”, admitindo, então, que isso têm uma estreita vinculação com o encarar os meios de comunicação como espaços de constituição de identidades e como espaços de confor- mação de comunidades. Em suma, os processos de comunicação são “fenômenos de produção de identidade, de reconstituição de sujeitos, de atores sociais” e os meios de comunicação “não são um puro fenômeno comercial, não são um puro fenômeno de manipu- lação ideológica, são um fenônemo cultural através do qual a pes- soa, ou muitas pessoas, cada vez mais pessoas vivem a constituição do sentido de sua vida” (MARTÍN-BARBERO, 1995d, p. 71, grifo meu). Embora já estivesse explícita em 1987, essa proposta tem ainda repercussões na reflexão mais recente de Martín-Barbero. A posição desse autor, em DMM, é especialmente crítica em relação àquelas teorias que procuram associar o sentido das identidades culturais a uma essência ou em termos de uma “pu- reza” do ser latino-americano. A idéia de identidade cultural deve servir para discutir a progressiva transformação dos valores sociais e para explorar os diversos tecidos culturais que a com- põem. Desprende-se, de tal reflexão, uma proposta que destaca a natureza negociadora da formação histórica da identidade cultu- ral latino-americana.7 Para ele, a identidade cultural latino-americana é uma mistu- ra, uma “mestiçagem”. Esta, no entanto, não se refere estritamente 166 ao caldeirão racial que caracteriza nosso território, mas a trama entre modernidades e descontinuidades, de memórias e imaginá- rios que misturam o rural com o urbano, o popular com o massi- vo. Na mestiçagem, as culturas rurais, urbanas, raciais, locais, regionais, nacionais e transnacional interagem. E o fato de que a cultura massiva, seja aquela originária da América Latina como a de outros continentes, faça parte desse conjunto não contribui para que essa mestiçagem se descaracterize ou seja “menos latino- americana”, pois é o próprio mix que é único. Em DMM (1987) e em Televisión y melodrama (1992), entre outros momentos, o interesse de Martín-Barbero pela telenovela como o gênero massivo latino-americano mais importante, deve- se ao fato de que, embora revele traços do folhetim francês e convenções do massivo, evoca profundamente o imaginário me- lodramático dos latino-americanos. Segundo White (1995), Mar- tín-Barbero sugere que em muitos aspectos a telenovela, com toda a sua impureza, pode estar mais próxima de articular identidades políticas do que a tradição maniqueísta das elites políticas que têm reivindicado representar as classes populares. Ainda na avaliação de White (1995, p. 484), “para entender o papel dos meios no processo de articulação de identidades, Mar- tín-Barbero introduz o conceito de mediações. […] Para Martín- Barbero, o sentido dos meios não está no texto ou mesmo na ‘leitura’ do texto, mas aloja a fonte de criação do sentido nas inte- rações sociais e movimentos de grupos que buscam por identida- des. O sentido do texto dos meios depende muito das identidades que os diferentes grupos estão tentando definir”. Martín-Barbero tem argumentado sobre a relação entre iden- tidade cultural latino-americana e cultura popular, acreditando que esta última tem modificado as formas de expressão da cultura de massa. Sugere que “a compreensão do processo de comunicação de massa implica reconhecer a rearticulação das fronteiras simbóli- cas e como estas novas fronteiras simbólicas confirmam o valor e poder das identidades coletivas” (MARTÍN-BARBERO citado por SCHLESINGER E MORRIS, 1997, p. 63). Nesse sentido, tem insistido em que os processos de comunicação devem ser abordados a partir da base dos movimentos sociais, em vez de partir de pressupostos 167 sobre o próprio poder dos meios, isto é, sua proposta largamente conhecida de deslocamento dos meios em direção às mediações. Antes de continuar na análise dos processos de constituição contemporânea da identidade cultural em que a indústria cultural exerce um papel destacado – reorganizando as identidades coleti- vas e as formas de diferenciação simbólica –, aproveito esta men- ção à DMM para ressaltar que, nesse texto, Martín-Barbero alinhava uma posição crítica ao discurso pós-moderno, não acei- tando os termos nos quais é posto o debate a partir do ponto de vista pós-moderno. Na sua recuperação de posições em torno da indústria cultu- ral, passando por Horkheimer, Adorno, Benjamin, Morin, Fou- cault, chega a Baudrillard. Nesse ponto, avalia que a reflexão deste último é uma “boa expressão da armadilha política” que está im- plícita na “dialética negativa” destravada pela Escola de Frank- furt. Diante do pessimismo e irreversibilidade de posturas desse mesmo corte, Martín-Barbero ilumina o que elas deixam de pen- sar: as contradições inerentes às tendências da crise cultural con- temporânea. “A nova valorização da cotidianidade, o moderno hedonismo ou o novo sentido da intimidade não são unicamente operações do sistema, mas novos espaços de conflito e expressões de nova subjetividade em gestação”. E, de forma ainda mais con- tundente, conclui a seção, afirmando: “Quando a crítica da crise ‘convoca’ à crise da crítica é o momento de redefinir o campo mesmo de debate” (1987a, p. 70). No entanto, percebe-se em alguns textos posteriores à DMM a matização dessa crítica8. Javier Protzel, no aniversário de dez anos de De los medios a las mediaciones, lançava essa pista: “Precisa- mente o descompasso do processo da modernidade latino-america- na e a desierarquização dos relatos e das artes [...] dão continuidade a uma reflexão que passa a ocupar-se da condição pós-moderna. Mais ainda, a dupla evidência da formação de uma cultura latino- americana moderna articulada pela mediação de massa, por um lado, e a da cidade como teatro de operações de hibridação, por outro, passam a ser os referentes para abordar a desterritoriali- zação das culturas e uma nova relação entre o público e o priva- do” (PROTZEL, 1998, p. 43). 168 Ao recuperar novamente alguns teóricos alinhados com o que se denomina pós-modernidade, Martín-Barbero vai começar a observar que se delineia a emergência de um novo paradigma, caracterizado pelo fluído e circular em oposição ao mecânico e linear. A superação desse pensamento linear está fazendo possível reconhecer novos espaços e modos de relação, assim como uma nova sensibilidade. “Essa nova sensibilidade se traduz numa nova percepção do poder que não aparece localizado num único pon- to desde o qual irradia, mas disperso e transversal; nova valori- zação do local enquanto espaço da proximidade, isto é, onde se faz efetiva a diferença; e, no cotidiano como ‘lugar’ onde se luta e se negocia permanentemente a relação com o poder” (MARTÍN- BARBERO, 1988, p. 13). Embora mostre ainda reticências e críticas em relação a esse paradigma, vai propor como programa, citando García Canclini, que se assuma “sem nostalgias nem estremecimentos” que é na “América Latina onde se realiza com ênfase um dos traços desta- cados pelo pós-modernismo na cultura atual: ser a pátria do pasti- che e da bricolagem, onde se citam ironicamente todas as épocas e estéticas” (MARTÍN-BARBERO, 1988, p. 15). É importante situar esse movimento no pensamento de Mar- tín-Barbero em sintonia com a descrição das novas dinâmicas culturais, identificadas por ele próprio e que estariam caracteri- zando as sociedades latino-americanas atuais. Aqui, podem ser apontadas as situações correntes mais determinantes. A primeira delas diz respeito ao modo como as indústrias culturais estão re- organizando as identidades coletivas e as formas de diferenciação simbólica, esmaecendo cada vez mais as demarcações entre culto e popular, tradicional e moderno, o próprio e o alheio. Na verda- de, essa situação somente veio a se intensificar na última década. Uma segunda dinâmica trata da ação simultânea dos meios massivos que hibridizam mas, também, separam, “aprofundam e reforçam as divisões sociais, refazem as exclusões que vêm da estrutura social e política, legitimando-as culturalmente” (MAR- TÍN-BARBERO, 1990a, p. 9). Martín-Barbero, ainda, reitera esse aspecto: “[…] falar em identidade regional ou local implica falar não só de costumes e tradições orais, de cerâmicas e ritmos musi- 169 cais, mas, também, de marginalização social, de expoliação eco- nômica e de exclusão nas decisões políticas, isto é, do ‘desenvolvi- mento desigual’ de que estão feitos esses países” (1990a, p. 13). É importante ressaltar esse lado da questão para que, mais tarde, tal posicionamento não se confunda com uma postura multicultura- lista que reconhece como politicamente correto as diferenças cul- turais, sem destacar as desigualdades sociais implicadas. E, por último, é identificado o surgimento de culturas ou subculturas não-ligadas à memória territorial. Mais recentemen- te, esse autor tem se preocupado cada vez mais com as “memó- rias desterritorializadas”, isto é, com aquelas relacionadas com uma cultura de massa global (da TV, do vídeo, da música e do cinema) que dificilmente podem ser vistas em relação a um ter- ritório definido, pois estão ligadas ao mercado transnacional. Nessa direção, têm-se tornado tema constante de suas reflexões certas culturas juvenis “tachadas com freqüência de antinacio- nais porque não têm raízes num território determinado. No entanto, elas não são tanto antinacionais, mas uma nova forma de perceber a identidade. São identidades com temporalidades mais curtas e precárias, que tem uma flexibilidade que lhes permite aglutinar ingredientes de diferentes mundos culturais” (SCHLESINGER E MORRIS, 1997, p. 63). Na emergência das culturas “sem memória territorial” é que se evidencia uma outra ordem ou forma de organização promovi- da pelos meios de comunicação, isto é, o movimento contraditó- rio de globalização e fragmentação da cultura. “Os meios de comunicação, tanto o rádio como a imprensa e, aceleradamente, a televisão, são hoje os mais interessados em diferenciar as cultu- ras, seja por regiões, por profissões, por sexos ou pela idade. […] De forma que a desvalorização do nacional não provém unica- mente da desterritorialização que os circuitos de interconexão global da economia e da cultura-mundo efetuam, mas da erosão interna produzida pela liberação das diferenças, especialmente das regio- nais e geracionais” (MARTÍN-BARBERO, 1995b, p. 172). Relacionada com essa dinâmica cultural, há uma revitalização do local, uma emergência de relatos e imagens que revelam a diver- sidade das culturas locais. E mesmo diante de uma impossibilidade 170 de definir fronteiras precisas de uma cultura nacional, mantida pela soberania do Estado, a noção de nacional ainda tem vigên- cia, convertendo-se num “espaço estratégico de resistência à do- minação e uma mediação histórica da memória longínqua dos povos, essa que faz possível o diálogo entre gerações” (MARTÍN- BARBERO, 1995b, p. 173). É evidente [reflexão de Martín-Barbero] a ruptura com a proble- mática de uma hegemonia cultural imposta de fora. A transnacio- nalização é considerada como um fator de deslocamento, não de homogeneização de culturas e, nesse contexto, é difícil ver como se pode impor uma identidade coletiva dominante, no âmbito nacional, por meio de medidas políticas públicas, adotadas pelo Estado. (SCHLESINGER E MORRIS, 1997, p. 63) Enfim, Martín-Barbero acaba pondo em questão a capacidade de ação do Estado no que diz respeito ao campo da comunicação. Embora, ao mesmo tempo, sustente que o espaço da nação e da cidade constituem um espaço estratégico de resistência à domina- ção global e, assim, lugares para se pensar sobre a identidade. Ao revisar a abundante produção de textos de Martín-Barbero, ficam evidentes repetições e reiterações de posicionamentos. De outro lado, é impossível evitá-las, pois são elas que vão sinalizando as continuidades na reflexão desse autor. Contudo, vão sendo reve- ladas, também, observações pertinentes a mudanças ou intensifica- ções de certas experiências sociais, priorizando-se, então, outros espaços ou outros ângulos para sua abordagem analítica. Nesse sentido, destaco agora o movimento que pode ser observa- do nos textos posteriores à DMM, de aproximação com o pensamento pós-moderno ou pelo menos com alguns de seus princípios. A partir da dúvida sobre se pensamos a crise da modernidade e o que ela possa ter de superável, isto é, sua reformulação, ou o que esse debate pressu- põe de anúncio da pós-modernidade, Martín-Barbero (1992) recupera ambas as direções dessa discussão. Em ambos os contextos, enfatiza que o lugar estratétigo para pensá-los é a comunicação. Na seqüência desse raciocínio vai observar que a crítica das dinâmicas culturais vigentes não cabe mais nos termos da modernidade. 171 Um dos efeitos mais evidentes da crise que mina aquela [moder- na] organização do mundo é a nova percepção do ‘campo das tensões’ entre tradição e inovação, entre a grande arte e as culturas do povo e das massas. Campo que já não pode ser captado nem analisado nas ‘categorias centrais’ da modernidade: progresso/rea- ção, presente/passado, vanguarda/kitsch. Porque se tratam de cate- gorias despotencializadas em e por uma sensibilidade que no lugar de completar a modernidade a problematiza, ao abrir a questão do outro, a questão das tradições culturais como questão estética e política. (1992, p. 31) A exaustão dos termos da crítica moderna estaria relaciona- da, então, à idéia de que o próprio princípio de separação entre culto, popular e massivo não tem mais validade? Ou os princípios da crítica moderna se exaurem porque o discurso moderno pres- supõe saber, decidir e legitimar uma determinada cultura? Em outros termos, pensar essa nova experiência – caracteri- zada por Vattimo (citado por Martín-Barbero, 1992, p. 31), pelo debilitamento do real na experiência cotidiana de desenraizamen- to do homem urbano, pela constante mediação e simulação que exercem as tecnologias, pela dispersão estética e pelo simulacro político – a partir do horizonte da crítica moderna, torna impos- sível escapar de julgamentos que implicam degradação cultural. Somente outra estética, ética, e outros princípios que caracteri- zem uma outra sensibilidade, “poderão ter algum papel num pro- jeto de emancipação para a gente de hoje. Uma emancipação que começa por sentir o mundo menos seguro, mas, também, menos totalitário” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 31). É nítida, nesse posicionamento de Martín-Barbero, a aceita- ção de certos traços que marcam nossa inserção no mundo de hoje à luz de teorias pós-modernas, mas, também, sua vinculação com ideais essencialmente modernos: pensar na tradução da aná- lise cultural num projeto político, acreditando ainda na capacida- de de ação dos sujeitos. A partir daqui passa a ser essencial verificar como esse ten- sionamento que confronta o permanecer no campo da moderni- dade com o aliar-se a posições pós-modernas se manifesta nos seus textos de 1997/98.9 172 Num texto em que refaz o percurso da sua formação teórica, revelando, no passado, seu encontro com o campo da comunica- ção e, no presente, seu reencontro com a filosofia, seu ponto de partida, assume especial importância o questionamento sobre o papel do “pensamento crítico” num momento marcado pela “des- localização do intelectual, o apagamento das utopias e a crise da representação política”. Reivindica, então, passar de uma forma explicativa de pensar para outro regime, o da racionalidade com- preensiva. Assim, ao mesmo tempo que reconhece a existência de um novo terreno, elucida sua proposta: Não é verdade que com o apagamento das ideologias e utopias da esquerda, o pensamento crítico perdeu seu território próprio e se encontra hoje lutando a partir do campo que o adversário cons- truiu e domina? Um adversário que, ao diluir-se o território da esquerda, também se apaga, tornando-se embaciados os traços que o identificavam, tornando-o vulnerável. Exilado de seu espa- ço e, em certa medida, do seu tempo, de seu passado, o pensamento crítico somente pode vislumbrar o futuro, tornando-se nômade, aceitando o caminho da diáspora. (1998a, p. 205) Esse pensamento nômade para Martín-Barbero está caracteri- zado pelo “descentramento”, desordem que afeta tanto a noção de espaço como de tempo, “exigindo-nos pensar os descompassos que subvertem uma contemporaneidade esmagada sobre a simultanei- dade do atual, sobre um presente autista” (1998a, p. 206). O que era antes apenas um delineamento de um “novo paradigma” que aparecia mais como resultado da recuperação de outras posições, aqui, plasma seu próprio (re)conhecimento da situação. a partir da perspectiva do des-centramento e da diáspora, a comuni- cação deixa de ser confundida com o movimento de uma mensa- gem que circula entre um emissor e um receptor. E encontra a idéia e a imagem de rede – ou melhor, em seu plural: redes – a possibilidade de pensar a multiplicidade de sentidos que sustenta a comunicação humana e a diversidade de sentidos em que se move a informação ao dispersar-se no entrelaçamento dos circuitos. (Idem) Embora reiterada a idéia de que a modernidade latino-ame- ricana está fundada na conexão entre cultura oral e visualidade 173 eletrônica, agora, Martín-Barbero nomeia o hipertexto, ou seja, aqueles “textos sem centro e direção fixa”, como sua narrativa central. Isso se coaduna com alterações na sua análise da experiên- cia contemporânea e, nesse sentido, da constituição das identida- des, assim como com essa nova forma de pensar. No esboço de mais um dos seus “mapas noturnos” – que ilu- minam certas rotas, mas onde muitas outras ficam encobertas –, Martín-Barbero vai identificar o mundo e a técnica como categori- as imprescindíveis de serem (re)pensadas, pois os saberes que as rodeiam são precários e as resistências em admitir que estamos diante de um “novo objeto” são ainda muito fortes. É essencial, principalmente para quem se insere no campo da comunicação observar o que esses dois âmbitos estão sinalizando. A primeira categoria deverá indicar a passagem de um pro- cesso de internacionalização para o de mundialização, reclama assim um novo paradigma, pois o mundo de hoje não pode estar ancorado no tempo das relações internacionais. Interligada com a idéia de mundo está a recorrente temática que se encontra na ordem do dia: a globalização. Esta, por sua vez, está sempre a exigir explicação, pois transforma-se tanto em metáfora vazia quanto pode ficar reduzida à concentração e ao poder alcançado pelo mercado. Por essa razão, Martín-Barbero ex- plicita que o global não se deixa captar pela categoria do Estado nacional e que é justamente o espaço nacional que sofre, hoje, o processo mais profundo de reconfiguração. “[…] preso entre as lógicas desnacionalizadoras do global e as dinâmicas de restau- ração do local, vê-se superado economicamente (demasiado gran- de e pesado para gestionar o local e demasiado pequeno para competir com as forças do global) e deslocado culturalmente. O que não significa seu desaparecimento […] (MARTÍN-BARBERO, 1998a, p. 212). Duas imagens sintetizariam nosso ingresso e imersão nesse mundo. A primeira delas é que nos ofereceu o primeiro satélite, proporcionando “ver o mundo a partir do espaço”. Isso colocou em andamento a globalização do imaginário humano. A segunda imagem é a da queda do Muro de Berlim, que serviria como metáfora do fim das barreiras entre Leste e Oeste. Nesse cenário, 174 Martín-Barbero retorna a constituição do imaginário coletivo e volta seu olhar para a vida cotidiana e ordinária, com seu ritmo muito mais lento e as suas amarras numa outra história que não é a da fluidez, circularidade, velocidade. “Mais lentos, no entanto, que a economia e a tecnologia, os imaginários coletivos do global conservam e arrastam vestígios do lugar, vestígios do local, que intensificam as contradições entre velhos hábitos perspectivos e novas habilidades técnicas, entre ritmos locais e velocidades glo- bais” (1998a, p. 213). O outro eixo proposto para se (re)pensar é a técnica. Nesse âmbito, o autor sinaliza três possibilidades de abordagem. A pri- meira propõe refletir em conjunto o “hipertexto e o palimpsesto”, isto é, “essa nova enciclopédia na qual as palavras já não remetem mais a outras palavras, mas a imagens e sons mobilizadores de novos modos de escritura e leitura, que são os hipertextos. E essa escritura difusa que confusamente emerge nas entrelinhas com as quais escrevemos o presente é o palimpsesto” (1998a, p. 213). A segunda direciona-se às novas narrativas que a tecnologia faz possível, principalmente aquelas tramadas pela sensibilidade dos jovens. E, por último, a terceira implica deixar de ver a técni- ca como mera transmissora e abordá-la como parte constitutiva dos novos modos de produzir conhecimento. Articuladas essas três aproximações, um novo sensorium emer- ge. Este não é mais caracterizado pela “dispersão” e pela “ima- gem múltipla” que representava a experiência moderna, mas pela “fragmentação” e pelo “fluxo”. Estes últimos dois – fragmentação e fluxo – são os novos dispositivos que conectam a estrutura co- municativa da televisão com os ordenamentos da nova cidade. A primeira característica – fragmentação – associa-se com desagregação social, isto é, relaciona-se com a atomização que a privatização da experiência televisiva proporciona. E a televisão, hoje, associa-se a uma experiência doméstica e privada, circuns- crita a casa. É a partir desse ambiente que cada dia um maior número de pessoas realiza sua inserção na cidade. “Do povo que tomava a rua ao público que ia ao teatro ou ao cinema, a transição era transitiva e conservava o caráter coletivo da 175 experiência. Dos públicos do cinema às audiências de televisão, o deslocamento sinaliza uma profunda transformação: a pluralida- de social, submetida a lógica da desagregação, faz da diferença uma mera estratégia de rating. E não representada na política, a frag- mentação da cidadania é tomada a cargo do mercado: é dessa mudança que a televisão é a principal mediação! (MARTÍN- BARBERO,1997a, p. 36) O outro dispositivo que complementa a fragmentação é o fluxo. Ele diz respeito a profusão de imagens que retêm a atenção do espectador, sinalizando que este ininterrupto fluxo de imagens é mais importante que o próprio conteúdo da programação televi- siva. “É com pedaços, restos e resíduos de objetos e saberes que boa parte da população arma os abrigos onde habita, tece o rebus- que10 com que sobrevive e enfrenta a opacidade da cidade. E existe, também, uma eficiente travessia que liga os modos de ver a partir dos quais o televidente explora e atravessa o palimpsesto dos gêneros e os relatos com os modos nômades de habitar a cidade” (1997a, p. 37) Em última instância, o autor nos adverte que o fluxo televisivo remete às formas da vida na cidade, especi- almente dos jovens, impondo a dissolução dos gêneros e a exalta- ção do efêmero. Como vivemos, então, a contemporaneidade? Habitamos um mundo onde se cultua o presente, fomentado pelo conjunto de meios de comunicação, com especial destaque para a televisão, e onde a percepção do tempo e do espaço se transforma. A mutação que experimentamos produz “um novo tipo de espaço reticulado que debilita as fronteiras do nacional e do local, ao mesmo tempo que converte esses territórios em pontos de aces- so e transmissão, de ativação e transformação do sentido de co- municar”. Mas como se conectam o atual desenvolvimento tecnológico com as transformações na nossa experiência sensível, e como interatuam? Citando Manzini, Martín-Barbero nos diz: “o espaço que nossos itinerários perceptivos atravessam se encon- tra estratificado segundo a velocidade do meio tecnológico que usamos […], mas a multiplicidade de temporalidades que vive- mos, não se encontra regulada pela lógica interna do sistema téc- nico” (1998a, p. 30). O que significa, então, que a inserção dos 176 sujeitos nesse contexto não é automática, mas atravessada de con- tradições e ambigüidades, de ritmos diferenciados. Porém, em outro lugar (1998b, p. 55), Martín-Barbero co- menta que, ao comparar-se práticas de comunicação nos super- mercados com as práticas que ocorriam nos mercados e feiras populares, constata-se uma substituição da interação comunicati- va pela textualidade informativa: “É o que vive o comprador no supermercado ou o passageiro no aeroporto, onde o texto infor- mativo ou publicitário guia-o de uma ponta a outra sem necessi- dade de intercambiar uma palavra durante horas”. Em relação ao tempo, sua marca hoje é o instântaneo, a “simul- taneidade do atual”, remetendo, por um lado, ao “debilitamento do passado”, que fica reduzido à citação em expressões de qualquer natureza (tais como na arquitetura, literatura, etc) e, de outro, à “ausência de futuro”, instalando-se um “presente contínuo”. Associada às reestruturações do espaço e do tempo, a cons- tituição das diversas identidades locais converte-se em “represen- tação da diferença”, mas uma diferença comercializável, isto é, “submetida ao turbilhão de colagens e hibridações que o mercado impõe” (1997a, p. 32). Embora se reconheça que o processo de globalização valorize, de forma paradoxal, o âmbito do local, mostrando-o como a ancoragem primordial do sujeito, seu senti- do não é unívoco. É nesse cenário que a reflexão de Martín-Barbero se insere. Diante de um mundo paradoxal é uma reflexão prenhe de dúvidas e incertezas, que dilacera-se entre o “lúcido pessimismo” dos rela- tos desencantados, a idéia de que “uma crítica pessimista da cultura é uma tarefa positiva” (MARTÍN-BARBERO citando STEINER, 1997a, p. 40) e a tentativa de compreender o desencantado mundo social com o intuito de transformá-lo. Lidando com uma situação na qual vivemos “o desencantamento do mundo sem que isto nos converta automaticamente em seres desencantados”, Martín-Barbero deba- te-se para inverter a avaliação de Benjamin – “todo documento de cultura é também um documento de barbárie”, desejando que “nes- tes escuros tempos existissem documentos de barbárie que fossem documentos de cultura” (1997a, p. 40). 177 IDENTIDADE COMO HIBRIDISMO Ao revisar as teorias sobre a modernidade tendo como foco as transformações ocorridas a partir dos oitenta na parte latina do con- tinente americano, García Canclini (1989a) vai conceber a América Latina como uma articulação complexa entre tradições e modernida- des, diversas e desiguais, coexistindo em múltiplas formas de desen- volvimento. A partir dessa constatação, o autor converte o termo “hibridismo cultural” em modelo explicativo de identidade. Como o sentido que esse termo adquire na reflexão de Gar- cía Canclini já foi explicado, o ponto de partida será recuperar algumas das suas idéias, resultantes de uma série de investigações e análises da cultura visual (por exemplo, monumentos, grafites, artes plásticas, entre outros), e sua relação com os processos de constituição da identidade cultural. Seguindo esse roteiro, serão ampliadas e aprofundadas algumas das suas considerações a esse respeito. O contexto geral dessas observações pressupõe que, a partir da consolidação da urbanização na América Latina, são os meios de comunicação de massa que vão estabelecer uma nova diagramação dos espaços e intercâmbios urbanos. Nessa perspectiva, García Canclini (1988b, p. 49) observa que a constituição da figura do latino-americano, isto é, sua iden- tidade, pode apresentar sua cara na cultura visual. O termo cultu- ra visual, segundo o mesmo autor, abrange os diversos sistemas de imagens e desenhos presentes na organização simbólica de cada sociedade (arte, artesanato, meios massivos, arquitetura, desenho gráfico e industrial) e, também, os processos mistos onde esses sistemas se cruzam e interpenetram. Uma das principais marcas desse conjunto de formas simbó- licas, hoje, é a impossibilidade de distinguir nele a existência de diferentes universos, tais como culto, popular e massivo. Na ver- dade, diz García Canclini, a América Latina não teve uma histó- ria cultural semelhante à da Europa, onde existiu uma distinção culto/popular durante séculos. Tal oposição na Europa contribui para organizar simbolicamente as diferenças entre as clas- ses durante todo o processo de modernização. Antes que o reorde- namento massivo das sociedades contemporâneas perfurasse o muro 178 que dividia o culto do popular, dois tipos bem diferenciados de cultura visual tinham delineado identidades separadas, formas diversas de reconhecimento e valorização. Enquanto o campo artístico conquistava sua autonomia e se dedicava a produzir obras cotadas pela sua originalidade, a arte popular ia sendo valorizada pela sua autenticidade e tradicionalidade. (GARCÍA CANCLINI, 1988b, p. 49) Associado a esse posicionamento sustenta-se que não existe somente um tipo de identidade, ao contrário, existiriam dois uni- versos de imagens: o culto e o popular. A América Latina não compartilha dessa narrativa cultural européia. No nosso caso, durante a época das colônias, as artes estavam sob a tutela religiosa ou sob um poder político que não concedia espaços autônomos. A partir de meados do século XIX, as artes começam a desprender-se desse jugo, no entanto, esse pro- cesso não foi acompanhado pela estruturação de um forte mercado cultural. “Longe de poder constituírem projetos criativos indivi- duais, os artistas foram empregados para construir a iconografia das gestões de liberação e organização nacional” (1988b, p. 50). Dessa forma, é somente a partir da primeira metade do século XX, com o desenvolvimento industrial, urbanização e crescente poder econômico das classes médias e altas, que se constitui um público comprador de arte, sendo somente nos anos 50/60 que o processo de autonomização da arte culta começa a deslanchar. A particularidade do caso latino-americano sobressai quando se observa que as condições socioeconômicas e culturais que per- mitiriam a autonomização dos campos culturais coincide com o desenvolvimento do processo de massificação que remodela os países dessa parte do continente. “Em parte pelos movimentos políticos [sobretudo os populismos], em parte pela modernização comunicacional [instalação da lógica das indústrias culturais], a autonomia de uma estética culta e o desenvolvimento autônomo de tradições populares tornam-se empresas falidas” (Idem). Na América Latina, os sistemas simbólicos e cenários cultu- rais sofrem mudanças constantes e radicais e, por essa razão, as regularidades e distinções que poderiam facilitar sua análise são insustentáveis. Dessa maneira, uma das primeiras conclusões é de 179 que o universo culto e popular se desenvolvem, transformando-se mutuamente; não se configuram em blocos homogêneos e com- pactos com contornos definitivos. Outro ponto relacionado à precária construção da moderni- dade na América Latina e, por sua vez, à identidade latino-ameri- cana, concentra-se nos esforços políticos em construir patrimônios culturais comuns como base simbólica das nações modernas. Nas suas versões mais modernas, a ideia de patrimônio se constitui em expressão da aliança entre classes e abrange a herança cultural co- mum de cada povo. Em tais modalidades são incluídas práticas dos membros dessas sociedades que vão permitir uma identificação conjunta. Em outras palavras, tentam abarcar tanto os bens produ- zidos pelas classes hegemônicas quanto os das classes populares. Esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabe discuti-lo. […] A perenidade desses bens faz imaginar que seu valor é inquestionável e os torna fonte do consenso coletivo, des- considerando divisões entre classes, etnias e grupos que fraturam a sociedade e diferenciam os modos de apropriar-se do patrimônio. (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 150) Tal tipo de posicionamento desemboca numa noção essencia- lista de identidade,11 desse modo, “o que se define como patrimô- nio e identidade pretende ser o reflexo fiel de uma essência” (1989a, p. 152, grifo meu). Segundo García Canclini, essa postura expressa pelo patri- monialismo essencialista não proporciona condições para com- preender a crise generalizada da cultura visual ou, em outros termos, o significado do pós-moderno na história da cultura visual. Nesse sentido, o pós-moderno é uma situação complexa de desenvolvi- mento cultural em que o ponto central se situa no reordenamento dos princípios que regiam o culto, o popular e a oposição entre eles, quando funcionavam como estruturas separadas. Embora essa cultura visual tenha truncado as explicações de encontrar uma identidade constituída na raça, num território ou num patrimônio, não eliminou o questionamento em torno da 180 identidade. Ao contrário, em tempos de contradições e instabili- dades essa questão se torna ainda mais premente. É exatamente neste ponto que o termo “hibridação” se transfor- ma no eixo do conceito de modernidade latino-americana, para Gar- cía Canclini. Cruza-se, aqui, reflexão teórica com trajetória pessoal. Indagado, em certa ocasião, sobre se tal conceito tem seu lastro na sua origem argentina ou na sua vivência no México, respondeu: Eu diria que das duas origens. A Argentina é um país constitutiva- mente multiétnico, embora às vezes esqueça esse fato; foi formado modernamente por muitas migrações européias e, também, medi- ante um processo de arrasamento e encurralamento da sua popula- ção indígena originária. Grande parte das manifestações culturais que habitualmente se consideram distintivas da Argentina, como o tango ou o sainete, são interculturais, são muito híbridas. Não é possível falar da Argentina como uma sociedade homogênea, senão como uma sociedade de alta heterogeneidade regional, de classe, de grupos étnicos, etc [...] O México, que também é um país constitu- tivamente multiétnico, tem um perfil distinto. Em primeiro lugar, pela importante presença indígena e por todos os processos de hi- bridação que ocorreram durante a colônia, que teve uma presença muito mais vigorosa no que se chamou a Nova Espanha do que nesse distante Vice-Reinado do Sul ao qual pertenceu a Argentina. Minhas experiências no México, através do trabalho de campo em zonas rurais e indígenas e nos fenômenos urbanos, mostraram-me uma constante confrontação com processos de hibridação de um tipo diferente do argentino.Além disso, sem dúvida, está o fato de eu mesmo ser um imigrante e, portanto, um participante fraturado por estas duas experiências. A expressão argenmex, com a qual designam os argentinos que vivem há muito tempo no México, é claramente representativa desta mescla. (CANCLINI entrevistado por MONTOYA, 1992, p. 12) Exatamente por vivenciar na própria pele a separação da ter- ra natal e inserção num outro contexto, apropriando-se de outro mix de culturas, García Canclini constitui-se num híbrido. “Ar- gentino de nascimento, García Canclini está bem qualificado para escrever sobre híbridos culturais, dado que seu próprio corpo é um híbrido cultural. […] García Canclini escreve como um argentino 181 sobre o México e como um mexicano sobre o México. Ele retrata a Argentina como um exílio e como um mexicano. Sua reflexivi- dade é multiplicada pela mesma trajetória da sua própria história de vida” (LULL, 1998, p. 408). Nos termos de Stuart Hall, isso significa construir uma espécie de ponte entre posições diferen- tes, ter um investimento em mundos distintos, o que compõe a experiência da diáspora através da qual a identidade cultural con- temporânea está articulada. Na avaliação de Herlinghaus (1997, p. 47), a concepção de hibridização cultural12 de García Canclini é pós-moderna “na medida em que relativiza aquelas metas que impediram de pensar o descontínuo e o multitemporal”. Nos cruzamentos e nas nego- ciações entre o culto, o popular e o massivo suspendem-se as lógi- cas modernas de divisão, separação e pureza destes níveis. García Canclini reconhece a utilidade da reflexão sobre a pós- modernidade para compreender essa heterogeneidade cultural lati- no-americana. Contudo, ele tem o cuidado de sublinhar que não concebe a pós-modernidade como uma etapa que substituiria o mundo moderno, mas como “uma forma de problematizar os vín- culos equivocados que este [o mundo moderno] armou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se” (1989a, p. 23). A relativização proposta pelas teorias pós-modernas facilita revisar a separação entre culto, popular e massivo, proporcionando meios para elaborar um pensamento mais aberto em relação a in- tercâmbios, integrações e interações entre esses níveis. Em outras palavras, ele percebe, na corrente de pensamento da pós-modernidade sugestões para repensar algumas questões colocadas pela modernidade.13 O aporte pós-moderno é útil para escapar desse impasse, pois revela o caráter construído e teatralizado de toda tradição, incluída a da modernidade: refuta a origem das tradições e a originalidade das inovações. Ao mesmo tempo, oferece a ocasião de repensar o mo- derno como um projeto relativo, vacilante, não antagônico às tradi- ções, nem destinado a superá-las por alguma lei evolucionista inverificável. Serve, em suma, para fazer-nos cargo, ao mesmo tem- po, do itinerário impuro das tradições e da realização desencaixada, heterodoxa, de nossa modernidade. (1989a, p. 190) 182 García Canclini procura construir uma posição intermediá- ria que nega tanto a postura que absolutiza uma pureza ilusória quanto o relativismo acachapante pós-moderno, em que qualquer sentido se desfaz. Há uma explícita tentativa de considerar tanto as questões modernas quanto as pós-modernas, negociando um espaço interpretativo entre esses dois discursos. Nessa direção, sua análise de algumas práticas culturais aponta para o surgimento de novas formas de subjetividade que, embora desprovidas de qualquer noção totalizante, mantêm uma tensa relação interrogativa com as sociedades, ou fragmentos delas, e onde os novos atores sociais acreditam ver movimentos sócio- culturais vivos e utopias praticáveis. Isso sinaliza a crença do autor na temática das utopias e dos projetos históricos e que estes ainda têm validade. “Alguns de nós entendem que a queda dos grandes relatos totalizadores não eli- mina a busca crítica do sentido – ou melhor, dos sentidos – na articulação das tradições e da modernidade. E que a renovação do tratamento desta questão deve partir do reconhecimento da plura- lidade semântica que se dá não somente na arte culta e no popular, mas nos seus entrecruzamentos inevitáveis e na sua interação com a simbólica massiva” (1988b, p. 56). Paulatinamente, a reflexão de García Canclini passou a inte- ressar-se cada vez mais pelos processos de consumo cultural que já eram assinalados na década de 80 como relevantes para reavaliar as políticas culturais e desenhar novas políticas verdadeiramente de- mocráticas, isto é, que construíssem espaços para o reconhecimen- to e o desenvolvimento coletivo, mas, também, proporcionassem condições reflexivas para que fosse avaliado o que obstrui esse reco- nhecimento (1989b, p. 148). O que se observa nesse movimento é um deslocamento em direção à importância do mercado e seu poder na estruturação e constituição das identidades, desbancan- do a influência do Estado, destacada em outros períodos, no pro- cesso do consumo. É difícil rastrear os conceitos e idéias fundamentais dos se- cundários no livro de García Canclini – Consumidores e cidadãos (1995b). Ele expõe uma diversidade de questões para pensar e, além disso, a sua forma de apresentação não é linear, articulando 183 numa série de ensaios um leque de problemáticas em torno do consumo, identidade cultural e cidadania. Vemos aí a retomada e atualização de uma série de questões que foram sendo expostas em textos anteriores. Metodologica- mente, García Canclini continua insistindo no trabalho de com- plementação entre antropologia, sociologia, comunicação e outras áreas do campo das ciências humanas. Uma das idéias-chave é de que os problemas do consumo não podem ser vistos apenas como relacionados à eficiência comercial, aos negócios, à publicidade, ou ainda, como uma questão de gos- tos pessoais. Entender como as mudanças na maneira de consumir foram alterando as formas de exercer a cidadania e a construção da identidade é a provocação que García Canclini propõe. Para alcançar tal objetivo, traça o novo cenário sócio-cultural contemporâneo e repassa algumas questões como: o esfacelamen- to da oposição entre o próprio e o alheio; a assunção do global, mediado pela cultura local; a necessidade de definir novas políti- cas culturais em tempos de integração cultural e globalização; a crença numa sociedade civil rearticulada de forma diferente da- quela dos anos 70/80, entre outras. Dois âmbitos são, então, cruciais na análise de García Can- clini: na cultura destaca-se o consumo e na política é a própria noção de cidadania que necessita ser revista. No início do livro a posição do autor fica claramente expressa: “Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses – recebem sua resposta mais atra- vés do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que das regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos” (1995b, p. 13, grifo meu). A própria política tornou-se errática e submetida às regras do espetáculo onde as decisões são tomadas em função das sedu- ções do consumo. Por essa razão, García Canclini dirige-se à cida- dania, entendida como “o núcleo daquilo que na política é relação social”, sem desvinculá-la do consumo. Ao repensar a cidadania em conexão com o consumo e como estratégia política, procura-se uma 184 forma de articular o poder de organização do Estado com o do mercado. “Precisamos de uma concepção estratégica de Estado e do mercado que articule as diferentes modalidades de cidadania nos velhos e nos novos cenários, mas estruturados de maneira complementar” (1995b, p. 24). Segundo a ótica de García Canclini, os próprios meios de comunicação de massa que foram responsáveis pelo aparecimento das massas na esfera pública foram mudando e deslocando o exercí- cio da cidadania e o desenvolvimento do espaço público em dire- ção às práticas de consumo. “Devemos nos perguntar se ao consumir não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadãos. Se a resposta for po- sitiva, será preciso aceitar que o espaço público transborda a esfe- ra das interações políticas clássicas” (1995b, p. 31). E o autor não se furta de elaborar uma proposta onde o con- sumo não seja comandado pelas forças do mercado, mas faça par- te de interações sócio-culturais complexas. “Vincular o consumo com a cidadania requer ensaiar um reposicionamento do merca- do na sociedade, tentar a reconquista imaginativa dos espaços públicos, do interesse do público. Assim o consumo se mostrará como um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e atuar signi- ficativa e renovadoramente, na vida social” (1995b, p. 68). Do ponto de vista da análise, as alterações que vão ocorren- do no plano histórico têm suas equivalências em termos de concei- tos. Numa determinada situação, conceitos específicos são produtivos e em outra, são descartáveis. Esse processo está expres- so no abandono da noção de popular que se tornou inadequada para abarcar os múltiplos cruzamentos culturais contemporâneos. As- sim, o popular foi substituído pela idéia de sociedade civil. Porém, esta também foi tornando-se inapreensível, pois passou a indicar as mais díspares manifestações de grupos, organizações não-governa- mentais, empresas privadas e mesmo indivíduos. Na opinião de García Canclini, o termo sociedade civil passou a ser “outro con- ceito totalizador a negar o heterogêneo e desintegrado conjunto de vozes que circulam pelas nações” (1995b, p. 34). Por essa razão, agora o ponto de vista centra-se na idéia de consumidor-cidadão. 185 A definição sobre quem somos nós, os latino-americanos, continua demarcando um espaço importante na reflexão de García Canclini. Se antes as identidades se definiam pelas relações com o território, tentando expressar a construção de um projeto nacio- nal, atualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo que se possui ou daquilo que se pode chegar a possuir. O rádio e o cinema e, particularmente no caso brasileiro, a televisão, contribuíram, na primeira metade deste século, para a organização da identidade e do sentido de cidadania nas socie- dades nacionais, na América Latina. Os meios massivos acaba- ram unificando os padrões de consumo e proporcionando uma visão nacional. Essa identidade foi construída através de relatos fundadores, apropriação de um território e defesa desse mesmo território das invasões estrangeiras. Tudo isso com o fim de nos diferenciarmos dos outros. No final do século XX, isto se transformou. Esse tipo de construção identitária começou a se esboroar nos anos 80. “Os referentes de identidade se formam, agora, mais do que nas artes, na literatura e no folclore – que durante séculos produziram os signos de distinção das nações –, em relação com os repertórios textuais e iconográficos gerados pelos meios eletrônicos de comu- nicação e com a globalização da vida urbana” (GARCÍA CANCLINI, 1995b, p. 124). De forma sintética, pode-se dizer que a globaliza- ção da economia e a integração regional foram reduzindo o papel das culturas nacionais e dos referentes tradicionais de identidade. Apesar da mescla de elementos de várias culturas, das diversas situações de interculturalidade, das formas desiguais de apropria- ção, combinação e transformação de elementos simbólicos, ainda subsistem as culturas nacionais, as culturas regionais e os movi- mentos de afirmação do local. Hoje não existem somente culturas diferentes, mas, também, maneiras desiguais com que os grupos se apropriam de elementos de várias sociedades, combinando-os e transformando-os. Logo, a questão colocada hoje é como se re- constroem as identidades em processos de hibridismo cultural. A identidade, para García Canclini, é entendida enquanto uma narrativa que se constrói; um relato reconstruído incessante- mente e não uma essência dada por uma vez e em forma definitiva. 186 Uma narrativa construída pelos e entre diversos atores sociais, mas que se realiza em condições desiguais devido às relações de poder que intervêm. Dessa maneira, a identidade torna-se uma co-pro- dução que inclui a presença de conflitos pela coexistência de naci- onalidades, etnias, gêneros, gerações etc, constituindo-se simultaneamente em representação e ação. Embora García Canclini afirme que as categorias de hege- monia e resistência continuem válidas para compreender os pro- cessos de configuração das identidades, a complexidade das interações que se estabelecem, demanda, sobretudo a necessidade de analisá-las como processos de negociação, na medida em que são “híbridas, dúcteis e multiculturais” (1995b, p. 151). Isso tem, pelo menos, duas implicações: o objeto empírico deve abarcar os espaços de negociação de sentidos14 e, conceitualmente, a negocia- ção é importante. Mais uma vez García Canclini reafirma a validade conceitual de hegemonia, contudo, critica o estilo de investigação que a con- cepção gramsciana propiciou, pois, na realidade, as complexas relações entre hegemonia e subalternidade foram reduzidas a um confronto rígido e bipolar. Nessas condições se confere pouco ou nenhum peso aos espaços de negociação. A negociação é um componente-chave no funcionamento das instituições e dos campos socioculturais. A negociação, hoje, é uma modalidade de existência, “está instalada na subjetividade coletiva, na cultura cotidiana e política mais inconsciente. Seu caráter híbrido, que na América Latina vem da história de mesti- çagens e sincretismos, acentua-se nas sociedades contemporâneas pelas complexas interações entre o tradicional e o moderno, o popular e o culto, o subalterno e o hegemônico” (1995b, p. 238). É importante retornar, neste momento, à visão de cidadania que Canclini expressa, rearticulando os planos da cultura e da política. O exercício da cidadania expressa aquilo que na política é relação social, mas não mostra somente a racionalidade dos prin- cípios ideológicos. Isso seria uma redução: identificar pura e sim- plesmente cidadania e política. “Ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que 187 nasceram em um território, mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas seme- lhantes de organização e de satisfação das necessidades” (CANCLINI, 1995b, p. 22, grifo meu). Um significado mais amplo de cidadania, segundo García Canclini, implica abranger as práticas emergentes não consagra- das pela ordem jurídica, em rever o papel das subjetividades na renovação da sociedade e entender seu lugar na ordem democrá- tica. Se ampliarmos seu sentido, poderemos conectar cidadania e consumo, considerando as atividades do consumo cultural como uma dimensão da cidadania. Para tal, García Canclini elabora uma proposição de políticas culturais concretas, assinalando requisitos indispensáveis: a) uma oferta vasta e diversificada de bens, representativos da variedade existente nos mercados, de fácil acesso para as maiorias, isto é, uma oferta multicultural equilibrada; b) informação multidirecio- nal e confiável sobre os produtos, cujo controle seja exercido pelos próprios consumidores, possibilitando refutar as seduções da pro- paganda; c) participação democrática dos principais setores da sociedade civil nas decisões de ordem material, simbólica, jurídi- ca e política em que se organizam os consumos. Entretanto, García Canclini reconhece que nos anos noventa vivencia-se a dissolução dos espaços públicos de negociação ou da esfera pública como âmbito de participação popular. Esse proces- so vai cada vez mais se intensificando e agravando na medida em que as indústrias culturais substituem as interações diretas pelas mediatizações eletrônicas. Uma série de exemplos de situações nacionais latino-ameri- canas (campanhas eleitorais de Fujimori, Carlos Menem, Fernan- do Collor) e de contexto internacional (a Guerra do Golfo) demonstram para García Canclini a substituição dos conflitos em espetáculos. Agora, tudo se fotografa, filma, televisiona e conso- me em imagens. Mesmo assim o autor reluta em aderir às teses de “tudo é simulacro”, advertindo que essa não se converteu na úni- ca saída. Ainda há um espaço aberto para negociar. 188 Os conflitos, hoje, não se dão apenas entre classes ou grupos, mas também entre duas tendências culturais: a negociação racional e crítica, de um lado, e o simulacro de um consenso induzido pela mera devoção aos simulacros, do outro. Não é uma opção absoluta, já que sabemos que os simulacros fazem parte das relações de signi- ficação em toda cultura. Porém, estabelecer de que maneira iremos negociar o compromisso entre ambas as tendências é decisivo para que na sociedade futura predomine ou a participação democrática ou a mediatização autoritária. (1995b, p. 243) A alternativa esboçada por García Canclini trata de repensar conjuntamente o papel do Estado, da sociedade civil e do merca- do. Implícito nessa revisão, encontra-se a tentativa de reconceber o espaço público: “Nem subordinada ao Estado, nem dissolvida na sociedade civil, a esfera pública reconstitui-se simultaneamen- te na tensão entre ambos” (1995b, p. 253). A proposta resultante para delinear uma nova concepção estra- tégica do Estado deve implicar que o Estado reassuma o interesse público. “O desafio é, principalmente, revitalizar o Estado como representante do interesse público, como árbitro ou assegurador das necessidades coletivas de informação, recreação e inovação, garantindo que estas não sejam sempre subordinadas à rentabilida- de comercial” (1995b, p. 254). Essa combinação entre Estado e mercado necessita do reconhecimento do mercado enquanto espa- ço onde ocorrem interações socioculturais complexas. Tudo isto tem conseqüências para o entendimento da socieda- de civil. Para García Canclini (1995b, p. 261), redefini-la implica ver que, na atualidade,“as sociedades civis aparecem cada vez me- nos como comunidades nacionais, entendidas como unidades terri- toriais, lingüísticas e políticas; manifestam-se principalmente como comunidades hermenêuticas de consumidores, ou melhor, como conjuntos de pessoas que compartilham gostos e pactos de leitura em relação a certos bens (gastronômicos, desportivos, musicais), os quais lhes fornecem identidades comuns”. A nova característi- ca dessas comunidades é sua organização em torno de consumos simbólicos e não mais em relação a processos