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Cartografias dos estudos culturais - Uma versão latino-americana

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Cartografias dos estudos culturais
uma versão latino-americana
Ana Carolina D. Escosteguy
O cenário contemporâneo,
identificado como globalização,
vem repor questões já clássicas
nos estudos sociais, como a identi-
dade cultural, ao mesmo tempo
em que desafia os particularis-
mos, a diversidade e a possibili-
dade de convivência num mundo
cada vezmais entrelaçado e, para-
doxalmente, mais desigual. A am-
bivalência que emerge dessa reali-
dade exige dos estudiosos e pes-
quisadores tanto a crítica dos tra-
dicionais procedimentos de análi-
se como a criação de novos instru-
mentos de compreensão. É dentro
desse pano de fundo que primei-
ramente deve ser visto este livro
de Ana Carolina D. Escosteguy.
Dizendo de outro modo, ele é na-
turalmente contemporâneo.
Produto de uma tese de dou-
torado realizada sobre fontes ori-
ginais, esta obra traz uma discus-
são teórica densa e esclarecedora
sobre o encontro de duas tradi-
ções intelectuais – a dos estudos
culturais britânicos e a dos estu-
dos culturais latino-americanos. A
autora não só percorre a história
dessas duas perspectivas, o que a
faz deter nas suas especificidades
e identidades, bem como se detém
em seus vasos comunicantes.
Mas, creio que a sua grande con-
tribuição está no verdadeiro tra-
balho de garimpagem bibliográfi-
ca que possibilita uma síntese ex-
plicativa raramente oferecida an-
tes ao público brasileiro e que vai
da origem do projeto dos estudos
culturais britânicos ao seu proces-
so de internacionalização. Essa é
a cartografia que dá título ao livro
www.autenticaeditora.com.br
0800 2831322
Estudos
Culturais
Este livro traça cartografias intelectu-
ais significativas no desenvolvimento dos
estudos culturais. Na Inglaterra, pólo de
origem dessa perspectiva, a trajetória de
Stuart Hall é explorada. Na América Lati-
na, os itinerários de Jesús Martín-Barbero
e Néstor García Canclini evidenciam a
configuração dessa abordagem no espaço
latino-americano.
Esta leitura dos estudos culturais diz
respeito a nós, latino-americanos, e a
eterna discussão de nossas particularida-
des em relação aos Outros.
e por meio da qual são revelados
traços inéditos da contribuição la-
tino-americana aos estudos cultu-
rais e de comunicação. Esta é a
maneira encontrada pela autora
para demonstrar que a atividade
da ciência não é imune ao trabalho
da história e, de forma original,
nos traz o confronto entre o nós e
o eles, o local e o internacional,
marcas do cenário contemporâ-
neo, para dentro dos atuais estu-
dos da cultura e da comunicação.
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Ana Carolina D. Escosteguy é
doutora em Ciências da Comunica-
ção (USP, 2000), professora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Co-
municação Social da Faculdade de
Comunicação Social (FAMECOS)
da Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio Grande do Sul (PUCRS),
além de pesquisadora do CNPq
nas áreas de Estudos Culturais &
Comunicação, Estudos de recepção
e relações de gênero e Teorias da
Comunicação.
Cartografiasdosestudosculturais–
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Cartografias dos estudos culturais
Uma versão latino-americana
Ana Carolina D. Escosteguy
Cartografias dos estudos culturais
Uma versão latino-americana
Edição on-line, ampliada
Copyright © 2001 Ana Carolina D. Escosteguy
COORDENADOR DA COLEÇÃO “ESTUDOS CULTURAIS”
Tomaz Tadeu da Silva
CAPA
Jairo Alvarenga Fonseca
(Mandala – Massa corrida sobre madeira)
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Waldênia Alvarenga Santos Ataíde
REVISÃO
Erick Ramalho
AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.AUTÊNTICA EDITORA LTDA.
Rua Aimorés, 981, 8º andar. Funcionários
30140-071. Belo Horizonte. MG
Tel.: (55 31) 3222 6819
TELEVENDAS: 0800 283 13 22
www.autenticaeditora.com.br
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma
parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios
mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a
autorização prévia da Editora.
Escosteguy, Ana Carolina D.
Cartografias dos estudos culturais – Uma versão latino-
americana/ Ana Carolina D. Escosteguy – ed. on-line – Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
240p. (Coleção Estudos Culturais, 8)
ISBN 85-86583-97-9
1. Estudos Culturais. 2. Antropologia.
3. Cultura-América Latina. I. Título. II Série.
CDU 316.75
008(8=6)
D256e
À Elisa, minha filha,
que aos três meses iniciou esta jornada comigo.
Agradeço à Maria Immacolata Vassalo Lopes,
Francisco R. Rüdiger, Nilda Jacks, Eliana Pibernat
Antonini, Dóris Fagundes Haussen, Maria Amélia
Mascena, Cláudia Peixoto de Moura e José Eduardo Utzig,
pelas variadas formas de colaboração, estímulo e afeto.
Gostaria ainda de mencionar as observações de Silvia
Helena Simões Borelli, Mauro Wilton de Sousa, Antônio
Flávio Pierucci e Octavio Ianni que constituíram a banca
que aprovou esta pesquisa como tese de doutoramento
na Universidade de São Paulo, uma fonte valiosa de
incentivo para revisar o texto original e publicar este livro.
A pesquisa que deu origem a este livro recebeu apoio da
CAPES (Bolsa de Doutoramento e Doutorado-sanduíche)
e PUCRS (horas-pesquisa e auxílio às viagens).
Sumário
Prefácio à edição on-line................................................
Introdução.........................................................................................
Estudos culturais: uma perspectiva histórica........................
Uma narrativa possível ou a versão britânica......................................
A construção de uma narrativa ou uma versão latino-americana......
De ideologia para hegemonia......................................................
Ideologia como dominação................................................................
O aporte gramsciano............................................................................
O popular como opção política...................................................
Formas de engajamento intelectual.....................................................
Identidades culturais: uma discussão em andamento
Identidade como diáspora...................................................................
Identidade como descentramento.......................................................
Identidade como hibridismo...............................................................
A título de conclusão.....................................................................
Notas....................................................................................................
Bibliografia........................................................................................
Apêndice
Depoimento de David Morley..........................................................
Depoimento de James Curran..........................................................
Depoimento de Nick Couldry.............................................
17
27
27
45
65
65
97
113
130
145
148
160
177
193
211
229
11
249
269
283
10
11
Cartografias dos estudos culturais – uma versão latino-america-
na, em edição esgotada já há algum tempo, passa a estar disponí-
vel, em acesso aberto, no formato eletrônico. Embora não fosse o
foco central da obra, ela revela, através da explanação dos seus
eixos teóricos – a questão da ideologia, da hegemonia, da proble-
mática do popular e das identidades, que o corpo teórico-meto-
dológico associado aos estudos culturais1, configurado a partir
do final dos anos 50, na Inglaterra, passou por alguns desdobra-
mentos. Portanto, das reflexões embrionárias de sua formação,
em especial sustentadas por Richard Hoggart, Raymond Willia-
ms e E. P. Thompson, à prática contemporânea dos estudos cul-
turais da virada do século XX para XXI,
época do lançamento do
livro, observam-se alterações em relação a posições teóricas, me-
todológicas e até mesmo políticas.
Passados 10 anos do primeiro lançamento dessa obra, pode-se
dizer que tais transformações se exacerbaram. É claro que esta não
é uma característica exclusiva dos estudos culturais, ao contrário,
estes sofrem o que Ianni2 (2003, p.331) já problematizou, identi-
ficando que “o processo de globalização envolve uma ruptura de
amplas proporções, abalando mais ou menos profundamente os
quadros sociais e mentais de referência (...) trata[ndo-se] de uma
ruptura simultaneamente histórica e epistemológica”. No que diz
respeito aos estudos culturais, apenas algumas dessas mudanças
foram mapeadas e circulam no meio acadêmico através de textos
que tomam a própria tradição como objeto de análise3.
 Logo, hoje, para fazer juz ao título de Cartografias dos estu-
dos culturais, os capítulos deveriam ser reformulados, acrescen-
tando-se informações novas e atualizando aquelas defasadas. A
produção intelectual e as discussões sobre os estudos culturais,
no meio acadêmico nacional, latino-americano e anglo-america-
no, cresceram num ritmo galopante no último decênio4. Fenôme-
no reconhecido, por exemplo, por Roberto Follari5 (2003, p. 4):
PREFÁCIO À EDIÇÃO ON-LINE
12
“o peso dos estudos culturais é tal na América Latina que se faz
indispensável tomar seu desenvolvimento como objeto. Isto é,
chegou o momento da consciência teórica sobre o fenônemo dos
estudos culturais, fruto precisamente de seu forte desenvolvimen-
to”. Nas nossas fronteiras, isso foi reforçado sobretudo pela cir-
culação mais ágil de bibliografia em língua inglesa, mas também
pela tradução de obras importantes6 e, claro, pela formação de
pesquisadores que se vincularam a esse programa de pesquisa.
De imediato, essa expansão exponencial de produção intelec-
tual demandaria o acréscimo de capítulos, a reestruturação e ampli-
ação do livro. Por um lado, os eixos-teóricos se desdobrariam em
objetos de estudo, tais como a problemática da recepção, das cultu-
ras juvenis, da cibercultura via contribuições do ciberfeminismo,
da crítica feminista aos estudos de mídia, entre os mais prementes.
De outro, as próprias trajetórias intelectuais exploradas – Stuart
Hall, Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini – deveriam
ser continuadas, dado que esses autores permanecem atuantes na
cena intelectual. Também outros itinerários mereceriam ser incor-
porados para dar conta de uma prática em circunstâncias distintas,
como já mencionei, tanto no cenário latino-americano quanto an-
glo-americano. Como resultado final teríamos uma nova obra. O
que se pretende com esta edição não é isso.
Creio que apesar do que foi dito, o conteúdo original do
texto ainda tem uma função ao recapitular a matéria e preparar o
leitor para acompanhar com alguma propriedade essa produção
mais recente. Persistindo a finalidade didática de apresentar uma
abordagem introdutória, publica-se novamente o texto sem mexer
no seu conteúdo, alertando que este obrigatoriamente precisa ser
lido no seu respectivo contexto, a entrada no século XXI. Nesse
sentido, faz-se imprescindível um registro. Este diz respeito ao
recorte temporal da produção bibliográfica que comparece nesse
estudo. A tese que dá origem à Cartografias dos estudos culturais,
foi concluída no segundo semestre de 1999, tendo sua defesa ocor-
rido em março de 2000, portanto, o texto original alcança, por
exemplo, apenas a publicação das reflexões de Hall até 1998.
Contudo, com o objetivo de suprir essa lacuna em termos de
atualização, à moda das suítes na música, o texto original é suce-
13
dido pelos depoimentos de três intelectuais – David Morley, Nick
Couldry e James Curran – com expressiva importância no debate
internacional sobre os estudos culturais. Tratando-se de um pro-
grama de pesquisa, diverso e heterogêneo como inúmeras vezes
já foi qualificado, é indispensável analisá-lo mediante a elucidação
de trajetórias intelectuais e suas respectivas reflexões e pesquisas
como sustentado na presente obra. Destaco que as características
do atual contexto histórico, bem como da presente institucionali-
zação dos estudos culturais – aqui refiro-me especialmente ao
contexto anglo-americano – têm diferenças do período de sua for-
mação e mesmo do que foi apresentado em 2000, momento de
defesa da tese. Dado que essas transformações estão em anda-
mento e, portanto, ainda não estão disponíveis em relatos mais
sistemáticos ou mesmo em reflexões que tenham tal propósito, a
exposição de testemunhos orais de atores envolvidos nesse pro-
cesso contribui para dar visibilidade a distintas experiências, ofe-
recendo uma oportunidade para refletir sobre a contribuição
contemporânea dos estudos culturais. Com esse objetivo, as en-
trevistas, realizadas por mim, em fevereiro de 2007, com o apoio
do CNPq, versam sobre a história dos estudos culturais e o res-
pectivo lugar ocupado nela pelo entrevistado, bem como de que
forma sua produção intelectual contribui para a reconfiguração e
atualização dos mesmos. Assim, abre-se uma possibilidade para
que o leitor pense como um programa de pesquisa pode ser re-
construído7, a fim de melhor atingir a meta que a própria teoria se
fixou no momento de sua origem.
Ressalto que David Morley e Nick Couldry se destacam na
constituição atual desta área de estudos, atuando no Goldsmiths
College da Universidade de Londres, tanto em nível de graduação
quanto de pós-graduação. No entanto, podem ser identificados como
de gerações distintas na configuração dos estudos culturais. David
Morley faz parte do que se convencionou chamar de segunda gera-
ção de estudos culturais8. Participou do coletivo de pesquisadores
do Centro, no início dos anos 70, momento em que a Escola de
Birmingham se consolida. O encontro de Nick Couldry com os
estudos culturais somente ocorreu no limiar dos 90 quando estes já
tinham se internacionalizado e estavam institucionalizados, na
14
Grã-Bretanha. Esta diferença geracional abarca singularidades de-
correntes das respectivas formações. O primeiro, no próprio CCCS
e o outro, fora daí, no Goldsmiths College. Isto é, ambos vivenciam
situações históricas bastante distintas – o momento de efervescên-
cia do CCCS e a consolidação dos estudos culturais na academia.
Decorre, também, daí a possibilidade de observar um forte reco-
nhecimento, em nível internacional, do primeiro com os estudos
culturais e um vínculo mais fraco, no caso do segundo. Em relação
ao terceiro pesquisador que também está vinculado ao Goldsmiths
College, trata-se de um dos porta-vozes, no contexto britânico, das
críticas aos estudos culturais. Situando-se mais próximo dos estu-
dos de economia política da comunicação, tradição extremamente
forte naquele ambiente acadêmico, o propósito é que ele reavalie os
embates gerados entre essas duas forças teórico-metodológicas,
confronto que teve escasso realce entre nós.
 De resto, considero oportuno trazer à baila pelo menos duas
das críticas que, embora não tenham sido lançadas em referência
direta ao trabalho em questão, circulam no nosso contexto acadê-
mico. Uma delas diz respeito às resistências vigentes em aderir ao
uso do termo estudos culturais latino-americanos e a sua associação
à intelectuais como Martín-Barbero e García Canclini. De um lado,
nega-se a utilização da terminologia, dando-se preferência, por exem-
plo, a estudos de cultura na América Latina ou estudos sobre co-
municação e cultura9 ou ainda estudos de cultura e poder10.
 O que parece estar implicado é que tal enquadramento teó-
rico não sofre influências de repertórios teóricos surgidos em outras
latitudes. E que, no caso específico, não têm afinidades com a
proposta dos estudos culturais. É claro que os estudos sobre cultu-
ra são bem anteriores a essa proposição, mas também é verdadei-
ro que os estudos culturais imprimiram
uma determinada forma
de estudá-la e construíram uma diferenciação11. De outro lado,
evoca-se a própria resistência, por exemplo, dos autores citados,
na sua auto-identificação com esse campo, omitindo-se que em
determinados momentos tal associação é aceita, reconhecida e até
mesmo bem-acolhida12.
Tendo assumido como ponto de vista o que chamo de narra-
tiva dominante sobre os estudos culturais, a partir desse marco,
15
considerei que era possível esboçar um mapa mínimo sobre os
estudos culturais onde se destacava, além do que já foi menciona-
do, uma possível vinculação entre a vertente britânica de estudos
culturais e a emergência de uma perspectiva latino-americana de
análise cultural, associada fundamentalmente aos itinerários inte-
lectuais de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini. Foi,
sumária e pretenciosamente, isso que tentei cartografar, dado que
uma cartografia dos estudos culturais era impossível, devido à
amplitude do tema, e que meu interesse também era pensar: como
algo denominado como um “marco teórico latino-americano” ti-
nha sido configurado? Isso existia? Em que condições ele tinha
sido constituído? Quem eram seus formuladores?
 O ponto de convergência entre esses autores e os estudos cultu-
rais britânicos se deu através da discussão sobre o uso do aporte
gramsciano em torno da hegemonia o que significa dizer que a cul-
tura devia ser estudada mediante as relações de poder que constituía
e expressava. E que, na comunicação, implicava em pensar, como
diz Martín-Barbero13 (2002, p. 224), que “a inscrição da comunica-
ção na cultura deixou de ser mero assunto cultural, pois é tanto a
economia como a política as que estão comprometidas com o que aí
se produz”. A partir dessa posição é que foram se alinhavando outros
pontos de encontro que tanto podiam ser recuperados retrospectiva-
mente como para além dessa convergência teórica. Essa aproximação
revela a existência de uma espécie de vasos comunicantes entre uma
produção latino-americana e outra, em especial a britânica. Contudo,
a escolha da trajetória de Stuart Hall se deve não a interlocução propri-
amente dita entre os autores em foco na pesquisa, mas pela expressão
de Hall no direcionamento do Centro de Estudos Culturais Contem-
porâneos para especificamente a centralidade do tema da mídia, objeto
central na proposta de Cartografias dos estudos culturais.
Uma outra crítica que circula, sobretudo, entre simpatizan-
tes dos estudos culturais, trata do “eterno retorno” às contribui-
ções de intelectuais que configuraram a formação dos estudos
culturais como se somente esses fossem as vozes autorizadas a
falar em nome dos estudos culturais. Em outros termos, é a acusa-
ção da volta “patriarcal” à herança da Escola de Birmingham como
se estivesse aí a essência dos estudos culturais14.
16
Como parto do pressuposto que, no nosso meio, muito se fala
em estudos culturais, mas pouco se conhece sobre eles - não só sobre
sua história, mas também sobre a reflexão que constituiu essa área de
estudos, assim como ainda se confunde os estudos culturais britâni-
cos com os norte-americanos, desconsiderando suas diferenças, con-
sidero fundamental um retorno aos “clássicos” simplesmente para
armar um ponto de vista mais historicizado. Isto não concede auto-
ridade apenas aos autores consagrados ou à uma determinada narra-
tiva sobre os estudos culturais, nem muito menos desmerece o trabalho
de autores contemporâneos e de outras versões de estudos culturais.
Reivindica, apenas, a formação de um ponto de vista histórico, vin-
culada sim a uma determinada versão de estudos culturais.
Esta contempla o entendimento de uma prática em estudos
culturais que foca na tensão entre a capacidade criativa e produtiva
do sujeito e o peso das determinações estruturais como dimensão
substantiva na limitação de tal capacidade. Em outros termos, a questão
é como falar das estruturas constituindo os sujeitos, sem perder de
vista a experiência desses mesmos sujeitos; manter na análise tanto o
peso objetivo das instituições, revelado nos seus produtos, quanto a
capacidade subjetiva dos atores sociais. Dentro desse marco, tor-
nam-se visíveis intersecções entre três temas-chave: o sujeito e sua
ação num determinado marco histórico; o reconhecimento de pro-
cessos de exclusão, diferenciação e dominação como historicamente
construídos e não, naturais e/ou tanshistóricos; e a compreensão da
esfera cultural e dentro dessa, a comunicação, através da relação
entre produtores, produtos e receptores. modo, o objeto de análise
dos estudos culturais, como nos diz Santiago Castro-Gómez15, é com-
posto pelos “dispositivos a partir dos quais se produz, distribui e
consome toda uma série de imaginários que motivam a ação (políti-
ca, econômica, científica, social) do homem em tempos de globali-
zação. Ao mesmo tempo, os estudos culturais privilegiam o modo
em que os próprios atores sociais se apropriam desses imaginários e
os integram a formas locais de conhecimento”.
Enfim, cabe ao leitor julgar o mérito tanto das críticas quan-
to da apresentação da matéria.
Ana Carolina D. Escosteguy
Verão de 2010
17
Não creio que seja possível elaborar, neste momento, um
mapa exaustivo e detalhado do que poderia ser chamado aproxi-
mativamente de uma cartografia dos estudos culturais.1 Vários
motivos poderiam ser arrolados para mostrar as dificuldades de
cobrir tal objeto. Porém, o primeiro obstáculo esbarra na própria
amplitude teórica do fenômeno. Além disso, existem diversos mo-
vimentos de apropriação da perspectiva dos estudos culturais, para
não mencionar a anfibiedade das definições que circulam sobre
os mesmos e, também, a existência de uma extensa bibliografia,
sobretudo em língua inglesa, sobre o tema.
Em contraposição, não se dispõe de trabalhos preliminares
que recolham e organizem informações sobre a emergência dos
estudos culturais no território latino-americano. Uma das exce-
ções é o artigo de Fabio López de la Roche (1998) que analisa
algumas contribuições, produzidas a partir do campo de estudo
das relações entre comunicação e cultura, de autores latino-ameri-
canos, sinalizando a existência de uma investigação cultural inter-
disciplinar que poderia ser identificada com uma tradição
latino-americana de estudos culturais.
Acrescenta-se, ainda, outro problema: a pouca difusão na
América Latina de bibliografia que trate dos estudos culturais,
independentemente do contexto geográfico onde sejam pratica-
dos. São escassas, para não dizer quase inexistentes, as traduções
– tanto em português quanto em espanhol – de textos importantes
sobre a configuração dos estudos culturais, seja do ponto de vista
histórico, seja de sua composição contemporânea.
Daí a opção de traçar cartografias intelectuais que possam
ser vistas como significativas no desenvolvimento dos estudos
culturais. Na Inglaterra, pólo de origem dessa perspectiva, a
trajetória de Stuart Hall é explorada. Na América Latina, os
itinerários de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini
INTRODUÇÃO
18
servem para evidenciar a configuração dessa abordagem no es-
paço latino-americano.
Dessa forma, a leitura proposta sobre os estudos culturais e
sua apropriação na América Latina é uma construção nossa, sen-
do que o grifo no pronome implica um duplo registro. Em pri-
meiro lugar, é uma arquitetura decorrente de um percurso e um
posicionamento particular desta autora e, por isso, incompleto e
parcial, como será adiante justificado. A outra via diz respeito a
nós, latino-americanos, e a eterna discussão de nossas particulari-
dades em relação aos Outros.
Em relação ao último aspecto, parece oportuno formular
algumas perguntas, mesmo sabendo de antemão que não serão
totalmente respondidas: o que têm os nossos estudos culturais de
singular em relação ao mais amplo movimento desse corpo
teórico-político-acadêmico? Que desconstruções
e reconstruções
efetuamos sobre o empreendimento intelectual dos estudos cul-
turais para iluminar nossa própria realidade? No presente traba-
lho, essas questões sinalizam uma problemática, e não a exigência
de uma solução.
Neste momento, vale recordar, apenas, que a América Lati-
na abarca heterogeneidades culturais, pluralidades étnicas, diver-
sidades econômicas, experiências diferentes e desigualdades
estruturais. Logo, falar de América Latina representa uma cons-
trução incompleta que é um projeto a realizar, pois é uma tentati-
va de uniformizar essas diversidades (ARICÓ, 1988). Portanto, a
referência à América Latina e ao latino-americano, neste livro,
não desconhece essa dimensão do problema e que “enquanto pro-
jeto incompleto, ele está sempre na linha de nosso horizonte e nos
incita a indagar sobre o nosso destino, sobre o que somos ou que
queremos ser”(ARICÓ, 1988, p. 29).
Mesmo assim, presume-se que se existe algo denominado
estudos culturais latino-americanos, estes, ou melhor, seus prati-
cantes, não parecem dispostos a submergir sua identidade nesse
amplo movimento, essencialmente, anglo-americano. Daí a neces-
sidade de compreender essa relação entre uns e outros como “de
tradução”: ou seja, a análise latino-americana pode ser lida tanto
como um exemplo da perspectiva dos estudos culturais quanto como
19
uma exemplificação que retém tudo que é distintivo a seu respeito.
Adotando essa posição, ambas as perspectivas – o programa dos
estudos culturais e a investigação cultural latino-americana –, em-
bora partilhem um mesmo objeto, isto é, a relação comunicação e
cultura, e uma certa afinidade teórica, preservam suas diferenças e
originalidades.2 Portanto, a idéia de tradução, utilizada aqui, não
endossa o princípio de existência de um original – no caso, a pro-
posta dos estudos culturais britânicos – e sua tradução, entendida
como mera aplicação de tal proposta em outros territórios.
Os estudos culturais compõem, hoje, uma tendência impor-
tante da crítica cultural que questiona o estabelecimento de hie-
rarquias entre formas e práticas culturais, estabelecidas a partir de
oposições como cultura “alta” ou “superior” e “baixa” ou “inferior”.
Adotada essa premissa, a investigação da “cultura popular” que assu-
me uma postura crítica em relação àquela definição hierárquica
de cultura, na contemporaneidade, suscita o remapeamento glo-
bal do campo cultural, das práticas da vida cotidiana aos produtos
culturais, incluindo, é claro, os processos sociais de toda produ-
ção cultural.
Na América Latina, uma reflexão crítica começou a emer-
gir, principalmente, na década de 80, tendo como eixo central as
novas configurações da cultura popular a partir da emergência
das indústrias culturais. Dentre as contribuições mais importantes
e originais no repensar dessa problemática, revelando a existência
de empréstimos e negociações entre a cultura considerada “legíti-
ma” e aquelas formas culturais cotidianas tidas como “insignifican-
tes”, dentro do âmbito latino-americano, estão as reflexões de Jesús
Martín-Barbero e de Néstor García Canclini. Por essa razão, este
trabalho se detém na análise da contribuição desses autores.
Porém, tais formulações latino-americanas não podem ser
encaradas como um movimento isolado do restante do pensamen-
to social, ilhadas das idéias em circulação e dos debates atuais.
Daí uma das razões para abordá-las em relação com aquela refle-
xão que legitimou a “outra” cultura – a comum e ordinária, pois
ambas as vertentes coincidem nesse pressuposto. Convergem,
também, na afirmação de relações entre cultura e poder e seu
caráter essencialmente conflitivo, assim como na atenção sobre
20
a cultura mediática e seu envolvimento em processos de resis-
tência e reprodução social. De forma mais genérica, reconhe-
cem o papel constitutivo da cultura e das representações nas
relações sociais.
A presença dessas articulações na análise cultural proposta
pelos autores latino-americanos citados e pelos estudos culturais,
e suas implicações em ver a esfera cultural como um terreno onde
política, poder e dominação são mediados, propicia a este estudo
estabelecer e explorar intersecções, assim como diversidades en-
tre os estudos culturais e a reflexão latino-americana em foco.
Entretanto, como os estudos culturais compõem um vasto,
fragmentado e inter/trans ou antidisciplinar – conforme o ponto
de vista que seja assumido – campo de estudo, o recorte, aborda-
do pelo meu trabalho, trata especialmente das análises que abor-
dam as relações entre comunicação e cultura.
Na tentativa de construir uma abordagem que extrapolasse a
reconstituição histórico-descritiva das trajetórias britânica e latino-
americana, escolhi determinadas temáticas teóricas – eixos-nodais
– que fazem a conexão entre os estudos culturais e o pensamento
latino-americano em foco e que marcam o percurso teórico de
ambas perspectivas. Ao mesmo tempo, constituem-se em ques-
tões centrais que vão sinalizando rupturas e desdobrando-se em
rotas abertas para a continuidade da reflexão.
Esses eixos teóricos são: as relações entre cultura e ideolo-
gia; a opção pela análise da cultura popular; e a construção de
identidades culturais contemporâneas mediadas, intensamente,
pelos meios de comunicação. Como eixos-nodais, permitem que
outras questões a eles relacionados sejam também abordadas. Entre
elas: o conceito de hegemonia, o papel do intelectual na esfera da
cultura e a problemática da recepção. Reconheço, contudo, que
ao destacar e recuperar apenas esses questionamentos, estou omi-
tindo ou subvalorizando outros. Apesar de adotar esse procedi-
mento de seleção de aspectos de uma obra, espero não trair o
pensamento dos autores aqui em destaque.
Seguindo as orientações recém delineadas, este trabalho consis-
te, em primeiro lugar, em propor uma articulação entre os autores
21
latino-americanos citados e os estudos culturais, sobretudo na sua
vertente britânica. Do ponto de vista dos estudos culturais britâ-
nicos, o trabalho de Stuart Hall vai servir como fonte maior desta
exploração na medida em que é, indubitavelmente, uma figura
central no desenvolvimento da versão dominante dos mesmos.
Isso não quer dizer que outros autores e trabalhos não sejam in-
corporados nessa articulação entre os latino-americanos e o cam-
po dos estudos culturais. Ao contrário, a tentativa é compor uma
narrativa, na medida do possível – diante da vasta bibliografia
existente em língua inglesa – mais plural, diversa e polifônica, não
centrada exclusivamente na versão britânica.3
Ao construir o trajeto sobre o tratamento das temáticas ante-
riormente citadas, observa-se como alguns dos praticantes, tanto
da perspectiva latino-americana quanto da anglo-saxônica, com-
preendem-nas e desenvolvem-nas. Porém, nunca com o propósi-
to de aplicar os termos próprios, sobretudo da vertente britânica
enquanto pólo gerador desse projeto, ao contexto latino-ameri-
cano. Mesmo porque a prática dos estudos culturais alcança sua
propriedade dentro de condições históricas específicas – entre
elas a localização nacional e geográfica (GROSSBERG, NELSON E
TREICHLER, 1992; MORRIS, 1992). Contudo, não conta apenas a
diferença de contextos dentro dos quais os argumentos se engen-
dram, mas existe, também, um grau de especificidade cultural na
própria teoria (TURNER, 1993b).
Outra consideração decorrente da escolha dos autores em
foco neste livro diz respeito ao reconhecimento de que são vozes
posicionadas geograficamente em lugares distintos. Ou seja, em
termos talvez não muito apropriados para a época vigente, mas
que ainda guardam uma certa potencialidade, são posições situa-
das no “centro” e na “periferia”. Mesmo que esteja em curso o
debilitamento de uma noção de centro que tem sua capacidade
explicativa fragilizada e a concentração de poder um pouco mais
dispersa, percebe-se ainda a exclusão
de experiências e saberes
“periféricos” daquele identificado como “centro”.
De qualquer modo, o propósito não é reavivar esse confron-
to esquemático, mas localizar-se num outro ponto fora dessa opo-
sição binária. Nessa direção, os três autores estudados como eixo
22
central deste livro experimentam todos um deslocamento seme-
lhante. Partindo cada um de posições particulares, encontram-
se, como disse Martín-Barbero (1987a, p. 229) a respeito de sua
busca pessoal por um novo mapa para explorar o campo cultural
contemporâneo, assumindo “as margens não como tema, mas
como enzima”.
Apesar da discussão proposta concentrar-se nesta tríade de
autores – Stuart Hall, Jesús Martín-Barbero e Néstor García Can-
clini –, não é de forma alguma minha intenção localizar os estu-
dos culturais em “textos canônicos” ou elevar a obra de cada um
desses autores a um estatuto canônico. Sobretudo porque é justa-
mente contra a oposição entre o cânone e seu outro, a cultura
popular, que os estudos culturais vicejaram.
Nesse contexto geral, embora reconheça uma singularidade
na reflexão latino-americana, representada, aqui, por Martín-Bar-
bero e García Canclini,4 isso não pode ser motivo para assumi-la
sem questionamento, deixando de ser objeto de crítica. Logo,
pretende-se tanto recuperar e reconstituir alguns procedimentos
ao longo dessa trajetória quanto, também, discuti-los sistematica-
mente, mediante uma leitura crítica e reflexiva, no sentido de ver
para onde apontam, que via descortinam para prosseguir o estudo
em torno das vinculações entre cultura e comunicação. Esse é,
também, o norte da crítica ao atual desenvolvimento dos estudos
culturais como um todo.
Delimitados os contornos da temática deste trabalho, é im-
perativo esclarecer a partir de que lugar esta análise de um deter-
minado aporte teórico-metodológico se realiza, ou seja, explicitar
o lugar de enunciação que o analista privilegia para operacionali-
zar essa leitura. Proponho, então, situar-me genericamente den-
tro dos estudos de comunicação e cultura, denominação corrente
na América Latina.
Porém, é mais preciso dizer que o ponto de partida se esta-
belece mediante a vinculação dos estudos culturais e a comunica-
ção5. Isso significa que a investigação da cultura mediática,
incluindo tanto os meios, os produtos e as práticas culturais – ou
seja, refere-se tanto à natureza e à forma dos produtos simbólicos
quanto ao circuito de produção, distribuição e consumo – está
23
inserida numa concepção mais abrangente de sociedade vista como
o terreno contraditório de dominação e resistência onde a cultura
tanto se engaja na reprodução das relações sociais quanto na aber-
tura de possíveis espaços para a mudança.
Sinteticamente, pode-se dizer, ainda, que essa investigação
está integrada a um contexto maior demarcado por uma teoria
social crítica que insere essas análises da cultura e comunicação
no âmbito do estudo da sociedade capitalista. Conseqüentemente,
tenta analisar tanto as formas pelas quais cultura e comunicação
são produzidas dentro desse ordenamento quanto os papéis e fun-
ções que exercem na sociedade, entendida enquanto um conjunto
de relações sociais hierarquizadas e antagônicas.
Vale a pena citar que, por exemplo, Douglas Kellner (1995a,
1995b, 1997a, 1997b) reivindica superar a bifurcação entre estu-
dos culturais versus estudos de comunicação, propondo a denomi-
nação “estudos culturais dos meios de comunicação”. Sua proposta
implica uma prática crítica, multicultural e que abranja múltiplas
perspectivas ou dimensões: a produção e a economia-política da
cultura, análise textual e crítica e, por fim, o estudo de recepção de
audiência e usos dos produtos dos meios de comunicação.
Em contraste, o argumento de Grossberg (1994) trata esse
tipo de perspectiva ou, segundo seus termos, os “estudos cultu-
rais comunicacionais” como uma redução do projeto dos estudos
culturais. Isso porque os “estudos culturais comunicacionais” en-
campam uma aproximação tripartite – produção, texto e consumo
– da comunicação, transformando-a num modelo geral de análise
que reproduz o modelo linear de comunicação: emissor, mensa-
gem, receptor. Na verdade, tais estudos não conseguem situar prá-
ticas culturais específicas dentro de seus contextos, complexamente
determinados e determinantes (GROSSBERG, 1994, p. 335).
Daí minha preferência pelo termo estudos culturais ao invés
de estudos de comunicação e cultura. Pois os últimos necessitam
da moldura teórica recém descrita de inserção numa teoria social
crítica. E os primeiros, no caso particular deste estudo, apenas
uma ênfase num determinado objeto de estudo – a comunicação.
Quando observado esse último aspecto, os estudos culturais podem
ser incluídos nos estudos críticos de comunicação, inaugurados nos
24
anos 30 pela Escola de Frankfurt, embora entre ambas as aproxi-
mações haja, também, profundas diferenças.
Finalmente, gostaria de ressaltar que este livro, pauta-se por,
mediante escrutínio de determinadas posições, apontar algumas
críticas e pistas, contribuindo para o debate sobre os estudos cul-
turais contemporâneos e sua divulgação no nosso meio acadêmi-
co. O texto publicado, aqui, toma como ponto de partida a tese
de doutoramento apresentada na Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo, em março de 2000, mas é uma
versão modificada e resumida daquela pesquisa.
Assim, apresenta-se no primeiro capítulo um ponto de vista
histórico sobre as origens e constituição dos estudos culturais, de-
marcando o contexto britânico como a base dessa experiência. A
reconstituição dessas origens é tratada como pano de fundo para
situar a discussão central do livro. Diante das múltiplas versões hoje
disponíveis sobre o início do projeto dos estudos culturais, que dão
relevância ora para a constituição de um objeto de estudo próprio
(JOHNSON, 1996), ora para uma situação histórica específica
(SCHWARZ, 1994), aqui resgato aquela que trata da história das idéi-
as, indicando o trio fundador – Hoggart, Williams e Thompson –
e suas obras. Isso não significa desconsiderar nem desconhecer o
aspecto problemático da indicação das origens dos estudos cultu-
rais, mas reconhecer que o debate em torno de suas origens é de
importância periférica no contexto maior da minha pesquisa.
A partir deste momento é obrigatório um esclarecimento em
relação ao próprio termo “estudos culturais”. Os textos anglo-ame-
ricanos na sua grande maioria utilizam cultural studies, com minús-
culas e sem nenhum grifo em especial, para referir-se a tal campo
de estudos. Por essa razão, também conservo as minúsculas.
No caso latino-americano, dada a ausência de relatos conso-
lidados sobre a formação dos estudos culturais, opto por construir
uma narrativa que privilegia a constituição dessa perspectiva nas
intersecções com o campo da comunicação. Portanto, registro um
cenário panorâmico e parcial, sobretudo pela seleção de um enfo-
que específico e a brevidade de sua história.
Contudo, esse mapa provisório foi construído com o objeti-
vo de localizar a contribuição teórico-metodológica e, assim, ser
25
analisada num determinado ambiente. Deste modo, a obra indivi-
dual estabelece vínculos com um contexto sócio-histórico e teóri-
co-acadêmico, mas o autor e seu texto não são explicados pelos
contextos que o envolvem.
A partir do segundo capítulo é desenvolvida a análise dos
eixos temáticos, considerados marcos centrais no debate teórico
dos estudos culturais. Assim, demarca-se a discussão sobre ideo-
logia e hegemonia, sobre cultura popular numa época em que os
meios de comunicação impregnam o meio social e, finalmente,
sobre a problemática da construção das diversas identidades cul-
turais que caracterizam os grupos sociais contemporâneos. Cada
uma das seções concentra-se na recuperação de tais temáticas nas
formulações dos três autores selecionados
como fundamentais na
constituição da perspectiva dos estudos culturais, seja no conti-
nente europeu, seja na América Latina.
Reitero que todas essas questões são construídas de acordo
com o posicionamento deste pesquisador, que se localiza no cam-
po de investigação da comunicação, ou melhor, no espaço de co-
nexão que se estabelece entre os estudos culturais e a comunicação.6
A estratégia adotada é aproximar-se do objeto de estudo já deline-
ado a partir de um ponto de vista que pretende compreender as
relações entre cultura e sociedade, reivindicando uma abordagem
crítica como indispensável para uma visão mais compreensiva da
experiência cultural contemporânea.
Na obrigatoriedade de consultar e trabalhar com bibliografia
em inglês e espanhol, gostaria de registrar que tive grande cuida-
do com as traduções, mantendo-me sempre alerta e receosa de
não ser suficientemente rigorosa nessas transposições. Mesmo
tendo sempre como meta ser fiel ao texto e, por sua vez, ao autor,
proponho em inúmeros casos traduções aproximadas para termos
que não têm equivalentes em português.7
26
27
UMA NARRATIVA POSSÍVEL OU A VERSÃO BRITÂNICA
As primeiras manifestações dos estudos culturais têm ori-
gem na Inglaterra, no final dos anos 50, especialmente em torno
do trabalho de Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward
Palmer Thompson. Esta afirmação é lugar-comum em muitas das
reconstituições das origens deste campo de estudo. De outro lado,
tem-se tornado também motivo gerador de debates, discussões e
contendas, sobretudo, nos últimos tempos.
O campo dos estudos culturais surge, de forma organizada,
através do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), di-
ante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da In-
glaterra do pós-guerra. Inspirado na sua pesquisa, The Uses of Literacy
(1957), Richard Hoggart funda em 1964 o Centro. Este surge
ligado ao English Department da Universidade de Birmingham,
constituindo-se num centro de pesquisa de pós-graduação desta
mesma instituição. As relações entre a cultura contemporânea e a
sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas cul-
turais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças
sociais, vão compor o eixo principal de observação do CCCS.
Três textos que surgiram nos final dos anos 50 são identifica-
dos como a base dos estudos culturais:1 Richard Hoggart com
The Uses of Literacy (1957), Raymond Williams com Culture and
Society (1958) e E. P. Thompson com The Making of the English
Working-class (1963). O primeiro é em parte autobiográfico e em
parte história cultural do meio do século XX. O segundo constrói
um histórico do conceito de cultura, culminando com a idéia de
que a “cultura comum ou ordinária” pode ser vista como um
modo de vida em condições de igualdade de existência com o
mundo das Artes, Literatura e Música. E o terceiro reconstrói
ESTUDOS CULTURAIS:
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
28
uma parte da história da sociedade inglesa de um ponto de vista
particular – a história “dos de baixo”.
Na pesquisa realizada por Hoggart,2 o foco de atenção recai
sobre materiais culturais, antes desprezados, da cultura popular e
dos meios de comunicação de massa, através de metodologia qua-
litativa. Este trabalho inaugura o olhar de que no âmbito popular
não existe apenas submissão mas, também, resistência, o que,
bem mais tarde, será recuperado pelos estudos de audiência dos
meios massivos. Tratando da vida cultural da classe trabalhadora,
transparece nesse texto um tom nostálgico em relação a uma cul-
tura orgânica dessa classe.
A contribuição teórica de Williams3 é fundamental para os
estudos culturais a partir de Culture and Society [Cultura e socieda-
de, 1780-1950. São Paulo: Nacional, 1969]. Através de um olhar
diferenciado sobre a história literária, ele mostra que a cultura é
uma categoria-chave que conecta a análise literária com a investiga-
ção social. Seu livro The Long Revolution (1961) avança na demons-
tração da intensidade do debate contemporâneo sobre o impacto
cultural dos meios massivos, mostrando um certo pessimismo em
relação à cultura popular e aos próprios meios de comunicação.
É o próprio Stuart Hall que avalia a importância desse últi-
mo livro: “ele [The Long Revolution] transformou toda a base do
debate, de uma definição moral-literária de cultura, para uma de-
finição antropológica. Porém, definiu esta [a cultura] como o ‘pro-
cesso integral’ pelo qual significados e definições são socialmente
construídos e historicamente transformados, sendo, neste contex-
to, a literatura e a arte uma única forma especialmente privilegia-
da de comunicação social” (Hall apud Turner, 1990, p. 55). Essa
mudança no entendimento de cultura fez possível o desenvolvi-
mento dos estudos culturais.
Em relação à contribuição de Thompson,4 pode-se dizer que
influencia o desenvolvimento da história social britânica de den-
tro da tradição marxista. Para ambos, Williams e Thompson, cul-
tura era uma rede vivida de práticas e relações que constituíam a
vida cotidiana, dentro da qual o papel do indivíduo estava em pri-
meiro plano. Mas, de certa forma, Thompson resistia ao entendi-
mento de cultura enquanto uma forma de vida global. Em vez
29
disso, preferia entendê-la enquanto um enfrentamento entre mo-
dos de vida diferentes.5
Esses quatro textos recém mencionados foram seminais para
a configuração dos estudos culturais. Entretanto, Hall (1996b,
p. 32) ressalta que
eles não foram, de forma alguma, ‘livros didáticos’ para a fundação
de uma nova subdisciplina acadêmica: nada poderia estar mais
distante de seu impulso intrínseco. Quer fossem históricos ou
contemporâneos em seu foco, tais textos eram, eles próprios, foca-
lizados pelas pressões imediatas do tempo e da sociedade na qual
foram escritos, organizados através delas, além de serem elementos
constituintes de respostas a essas pressões.
Embora não seja citado como membro do trio fundador, a
importante participação de Stuart Hall6 na formação dos estudos
culturais britânicos é unanimemente reconhecida. Avalia-se que,
ao substituir Hoggart na direção do Centro, de 1968 a 1979,
incentivou o desenvolvimento da investigação de práticas de re-
sistência de subculturas e de análises dos meios massivos, identi-
ficando seu papel central na direção da sociedade; exerceu uma
função de “aglutinador” em momentos de intensas distensões teó-
ricas e, sobretudo, destravou debates teórico-políticos, tornando-
se um “catalizador” de inúmeros projetos coletivos.7 Tem uma
abundante produção de artigos, sendo que sua reflexão faz parte
da maioria das coletâneas mais importantes sobre estudos cultu-
rais, sejam eles publicados pelo próprio Centro ou não.
Enfim, esses são os principais atores e uma parte da história
do início da configuração deste campo de estudos. Em outras
palavras, essa mesma narrativa poderia ser assim contada:
Desde o final da década de 1950, tem existido, dentro da vida
cultural e intelectual de língua inglesa, um projeto que causou
impacto significativo no trabalho acadêmico no campo das Ar-
tes, das Humanidades e das Ciências Sociais. Nos anos 50, tal
projeto não tinha um nome. Não tinha nem sequer uma única
fonte. Surgiu dentro de um contexto histórico e social especí-
fico, a partir do trabalho de três indivíduos. Raymond Willia-
ms, Richard Hoggart e E. P. Thompson estavam preocupados,
30
de forma diferente, com a questão da cultura na sociedade es-
tratificada em classes da Inglaterra. Os autores estavam tentan-
do, cada um a seu modo, entender o papel e o efeito da cultura
em um momento crítico da própria história da Inglaterra: um
momento marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, a
herança, em um ambiente já mudado e em constante mudança,
de uma política de classe de limitada resistência, e, finalmente, a
importação ou invasão, através dos meios de comunicação de
massa, da cultura americana, o que tornou público e ressaltou a
todos o dominador caráter de classe da vida cultural inglesa.
(BLUNDELL ET AL., 1993, p. 1)
O trecho em questão replicaria a versão recém apresentada,
não fosse esta escrita por autores canadenses que, embora relatem
esse ponto de vista de sua fundação, questionam, logo a seguir, a
existência de uma narrativa única sobre sua constituição como
um projeto maior que transcendeu as fronteiras da Grã-Bretanha.
O propósito dessa publicação – Relocating Cultural Studies – Deve-
lopments in Theory and Research (1993) – é mostrar justamente a
versão britânica sobre as origens dessa trajetória em contraste
com a particularidade do caso canadense, revelando, simultanea-
mente, o descentramento contemporâneo dos estudos culturais.
Através desse tipo de posicionamento, em que a coletânea
citada é apenas um exemplo,8 problematiza-se o ‘“cânone” – a
versão dominante – sobre as origens dos estudos culturais. Em
contraposição a essa versão dominante, afirma-se que em outras
localidades e em outros momentos podem ser identificadas “ou-
tras” origens para esse campo de estudos. Enfim, a existência de
diferenças nacionais e a confluência de um conjunto particular de
propostas de cunho teórico-político geraram outros exemplos de
estudos culturais que desestabilizam a narrativa sobre uma ori-
gem centrada, sobretudo, em Birmingham, na Inglaterra.
Ainda, em outra versão que discute a emergência histórica
dos estudos culturais enquanto desenvolvimento organicamente
britânico, desenvolvimento determinado por forças nacionais in-
ternas, é obrigatório identificar as condições históricas existentes
naquele momento. Pelo menos duas características são marcantes:
o impacto da organização capitalista das formas culturais no campo
31
das relações sócio-culturais e o colapso do império britânico.
No primeiro espaço, observa-se a ruptura das culturas tradicio-
nais de classe em conseqüência do alastramento dos meios de
comunicação de massa; no segundo, percebe-se que a suposta
integridade da nação britânica começa a implodir. Dessa forma, a
ascensão dos estudos culturais britânicos coincide com uma crise
de identidade nacional.
Porém, não existem motivos para descartar seus princípios
fundadores: “a identificação explícita das culturas vividas como
um objeto distinto de estudo, o reconhecimento da autonomia e
complexidade das formas simbólicas em si mesmas; a crença de
que as classes populares possuíam suas próprias formas culturais,
dignas do nome, recusando todas as denúncias, por parte da cha-
mada alta cultura, do barbarismo das camadas sociais mais bai-
xas; e a insistência em que o estudo da cultura não poderia ser
confinado a uma disciplina única, mas era necessariamente inter,
ou mesmo anti, disciplinar”, tão bem sumarizados por Schwarz
(1994, p. 380) –, pois estes princípios revelaram-se instigantes
nestes últimos trinta anos. A rápida expansão dos estudos cultu-
rais em parte é atribuída aos mesmos.
Entretanto, seria demasiado ingênuo explicar sua emergên-
cia somente em termos do trio fundador e de seus textos-chave,
tendo em vista os questionamentos existentes a esse respeito. Con-
tudo, faz-se necessário reconhecer que existem desacordos entre
os considerados “pais fundadores” dos estudos culturais: Willia-
ms, Thompson e Hoggart. Porém, para a constituição dos estu-
dos culturais é mais significativo destacar os pontos de vista
compartilhados entre eles.
É importante ressaltar, então, que os três autores citados
como os fundadores deste campo de estudos, embora não te-
nham uma intervenção coordenada entre si, revelam um leque
comum de preocupações que abrangem as relações entre cultu-
ra, história e sociedade.
O que os une é uma abordagem que insiste em afirmar que através
da análise da cultura de uma sociedade – as formas textuais e as
32
práticas documentadas de uma cultura – é possível reconstituir o
comportamento padronizado e as constelações de idéias com-
partilhadas pelos homens e mulheres que produzem e conso-
mem os textos e as práticas culturais daquela sociedade. É uma
perspectiva que enfatiza a “atividade humana”, a produção ativa
da cultura, ao invés de seu consumo passivo”. (STOREY, 1997, p. 46,
grifo meu)
É possível apontar, a partir daí, duas grandes reorientações
na análise cultural proposta pelos estudos culturais: o padrão esté-
tico-literário de cultura, ou seja, aquilo que era considerado “sé-
rio” no âmbito da literatura, das artes e da música passa a ser
visto apenas como uma expressão da cultura. Esta refere-se, en-
tão, a um amplo espectro de significados e práticas que move e
constitui a vida social. O fato de se alargar o conceito de cultura,
incluindo práticas e sentidos do cotidiano, propiciou, por sua vez,
uma segunda mudança importante: todas as expressões culturais
devem ser vistas em relação ao contexto social das instituições,
das relações de poder e da história.
Tendo como ponto de partida um conjunto de proposições
que à primeira vista mostra-se tão amplo quanto aberto a entendi-
mentos diversos, Hall (1996a, p. 263) reivindica manter sua plu-
ralidade, mas simultaneamente estabelece um fio condutor:
Ainda que os estudos culturais, como um projeto, estejam em
aberto, não podem ser simplesmente pluralistas desta maneira.
Recusam-se, sim, a ser um discurso dominante ou um metadiscurso
(grifo meu) de qualquer espécie. Constituem, sim, um projeto
sempre aberto àquilo que ainda não conhece, àquilo que ainda
não pode identificar. Porém, tal projeto possui, também, um certo
desejo de conectar-se, um balizamento nas escolhas que faz. Por-
tanto, realmente fará diferença interpretarem-se os estudos cultu-
rais como sendo uma coisa ou outra.
Conclui-se que, se a versão britânica sobre as origens e cons-
tituição deste projeto não apresenta implicitamente uma posição
teórica unificada, também, não está composta por um conjunto
tão díspar que não apresente uma unidade. Indagar-se sobre “a
unidade na diferença” (GROSSBERG, 1993) é reconhecer que esta
33
responde, em parte, a condições particulares – a um contexto
intelectual, político, social e histórico específico.
As peculiaridades do contexto histórico britânico, abran-
gendo da área política ao meio acadêmico, marcaram indelevel-
mente o surgimento deste movimento teórico-político. Os estudos
culturais ressaltaram os nexos existentes entre investigação e for-
mações sociais onde se desenrola a própria pesquisa. “Os estu-
dos culturais não dizem respeito apenas ao estudo da cultura.
Nunca pretenderam dizer que a cultura poderia ser identificada
e analisada de forma independente das realidades sociais concre-
tas dentro das quais existem e a partir das quais se manifestam”
(BLUNDELL ET AL., 1993, p. 2).
Em primeiro lugar, deve-se acentuar o fato de que os estudos
culturais britânicos devem ser vistos tanto do ponto de vista polí-
tico, na tentativa de constituição de um projeto político, quanto
do ponto de vista teórico, isto é, com a intenção de construir um
novo campo de estudos. “[...] Não se pode entender um projeto
artístico e intelectual sem entender, também, sua formação; sem
entender que a relação entre um projeto e uma formação é sempre
decisiva; e que [...] a ênfase dos estudos culturais está precisa-
mente no fato de que eles se ocupam de ambas as concepções”
(WILLIAMS, 1996, p. 168). A partir desta dupla agenda é que os
estudos culturais britânicos devem ser pensados.
Do ponto vista político, são sinônimos de “correção políti-
ca” (JAMESON, 1994), podendo ser identificados com a política
cultural dos vários movimentos sociais da época de seu surgimen-
to. Por essa razão, sua proposta original é considerada por alguns
como mais política do que analítica.
Autores como Michael Green (1995) apontam como motivo
primordial para o surgimento dos estudos culturais britânicos uma
condensação
política em torno de um conjunto de novos e com-
partilhados temas de interesse que convergiram com o momento
de emergência da New Left. “[...] os estudos culturais oferecem
um espaço no qual se pode explorar – e refletir sobre – uma vari-
edade de questões políticas, e jamais negaram que sua agenda tem
dimensões políticas e não pode ser ‘objetiva’”, afirma Green. (1995,
p. 229).
34
A titulo de ilustração, os estudos culturais australianos, como
os britânicos, também, são vistos como decorrentes de uma con-
juntura política.
A questão aqui, contudo, é simplesmente o fato de que os estudos
culturais australianos não apenas foram uma resposta aos movi-
mentos políticos e sociais das últimas três décadas (o que pode ser
dito em relação aos estudos culturais como projeto geral), mas
também produziram muitos de seus temas, suas prioridades de
pesquisa, suas polêmicas e, de certa forma, sua ênfase teórica e seus
principais métodos de trabalho, a partir de um engajamento com
estes movimentos. (Frow e Morris, 1996, p. 351)
Pela perspectiva teórica, resultam da insatisfação com os li-
mites de algumas disciplinas, propondo, então, a inter/trans ou,
ainda para alguns, a antidisciplinaridade.9 Isto não impediu, en-
tretanto, que em alguns lugares tenham se institucionalizado.10
Os estudos culturais não configuram uma “disciplina” mas
uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao estu-
do de aspectos culturais da sociedade. A área, então, segundo um
coletivo de pesquisadores do Centro de Birmingham que atuou,
principalmente, nos anos 70, não se constitui numa nova discipli-
na, mas resulta da insatisfação com algumas disciplinas e seus
próprios limites (HALL ET AL, 1980, p. 7). É um campo de estu-
dos em que diversas disciplinas se interseccionam no estudo de
aspectos culturais da sociedade contemporânea, constituindo um
trabalho historicamente determinado.
Em análises que tentam mapear o centro de atenção deste
campo, enfatiza-se seu diálogo entre disciplinas: “Os estudos cul-
turais são um campo interdisciplinar onde certas preocupações e
métodos convergem; a utilidade dessa convergência é que ela nos
propicia entender fenômenos e relações que não são acessíveis
através das disciplinas existentes. Não é, contudo, um campo uni-
ficado” (TURNER, 1990, p. 11).
Em termos de disciplinas, no seu primeiro momento de for-
mação, o encontro entre Literatura Inglesa, Sociologia e História
propiciou pensar uma conexão entre três níveis distintos. A pri-
meira contribuiu com a preocupação com as formas culturais
35
populares, assim como com textos e textualidades, estes últimos
podendo estar situados além da linguagem e literatura;11 à socio-
logia atribui-se o exame da reprodução estrutural e da subordina-
ção e da história vem o interesse da “história de baixo” e, também,
o reconhecimento da história oral e da memória popular.
Entretanto, é preciso ressaltar que, na sua fase inicial, os fun-
dadores desta área de pesquisa tentaram não propagar uma defini-
ção absoluta e rígida de sua proposta. Nas palavras de Stuart Hall,
o órgão de divulgação do Centro – Working Papers in Cultural Stu-
dies12 – não deveria preocupar-se em “[...] ser um veículo que defi-
na o alcance e extensão dos estudos culturais de uma forma definitiva
ou absoluta. Nós rejeitamos, em resumo, uma definição descritiva
ou prescritiva do campo” (HALL, 1980a, p. 15).
Na realidade, os estudos culturais britânicos se constituem
na tensão entre demandas teóricas e políticas. Embora sustentem
um marco teórico específico (não obstante, heterogêneo), am-
parado principalmente no marxismo, a história deste campo de
estudos está entrelaçada com a trajetória da New Left, de alguns
movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Cam-
paign for Nuclear Disarmament, etc.) e de publicações – entre
elas, a New Left Review – que surgiram em torno de respostas
políticas à esquerda. Ressalta-se seu forte laço com o movimen-
to de educação de adultos.
A multiplicidade de objetos de investigação também caracteri-
za os estudos culturais. Resulta da convicção de que é impossível
abstrair a análise da cultura das relações de poder e das estratégias
de mudança social. A ausência de uma síntese completa sobre os
períodos, enfrentamentos políticos e deslocamentos teóricos contí-
nuos de método e objeto faz com que, de forma geral e abrangente,
o terreno de sua investigação circunscreva-se aos temas vinculados
às culturas populares e aos meios de comunicação de massa e, pos-
teriormente, a temáticas relacionadas com as identidades, sejam
elas sexuais, de classe, étnicas, geracionais etc. Mas é necessário
esperar até os anos 70, principalmente, com a implantação da pu-
blicação periódica dos Working Papers, para que a produção cientí-
fica do Centro passe a ter visibilidade e repercussão.
36
Numa tentativa de reconstituir uma narrativa histórica sobre
os interesses e temáticas que predominaram neste campo de estu-
dos, podem-se identificar alguns momentos bem diferenciados.
No início dos anos 70, o desenvolvimento mais importante con-
centrou-se em torno da emergência de várias subculturas que pa-
reciam resistir a alguns aspectos da estrutura dominante de poder.
E, a partir da segunda metade dessa mesma década, percebe-se a
importância crescente dos meios de comunicação de massa, vis-
tos não somente como entretenimento mas como aparelhos ideo-
lógicos do Estado.
Nessa época, os estudos das culturas populares pretendiam
responder a indagações sobre a constituição de um sistema de valo-
res e de um universo de sentido, sobre o problema de sua autono-
mia e, também, como esses mesmos sistemas contribuem para a
constituição de uma identidade coletiva e como se articulam as
dimensões de resistência e subordinação das classes populares.13
Já o estudo dos meios de comunicação caracterizava-se pelo
foco na análise da estrutura ideológica, principalmente, da cober-
tura jornalística. Esta etapa foi denominada por Hall (1982) de
“redescoberta da ideologia”, sendo que uma das premissas bási-
cas desta fase pressupunha que os efeitos dos meios de comunica-
ção podiam ser deduzidos da análise textual das mensagens emitidas
pelos próprios meios.
Ainda nessa década, a temática da recepção e a densidade
dos consumos mediáticos começam a chamar a atenção dos pes-
quisadores de Birmingham, ou melhor, do CCCS. Este tipo de
reflexão acentua-se a partir da divulgação do texto “Encoding and
decoding in the television discourse”,14 de Stuart Hall, publicado
pela primeira vez em 1973. Desencadeado um processo de deslo-
camento do olhar, dentro do espectro dos estudos culturais, co-
meçam a aparecer outras produções: David Morley publica “Texts,
readers, subjects” (1977-1978) e, logo em seguida, algumas pes-
quisas empíricas começam a tomar corpo.
Depois de um período de preocupação com análises textuais
dos meios massivos, tais estudos de audiências começam a ser
desenvolvidos como uma tentativa de verificar empiricamente tanto
as diversas leituras ideológicas construídas pelos próprios pesqui-
37
sadores quanto as posições assumidas pelo receptor.15 Porém, é na
segunda metade dos anos 80 e já não mais circunscrito às investi-
gações do CCCS, que se nota uma clara mudança de interesse do
que está acontecendo na tela para o que está na frente dela, ou
seja, do texto para a audiência.
Entretanto, ainda nos anos 70, o trabalho em torno das dife-
renças de gênero através do feminismo que irrompe em cena, e os
desenvolvimentos em torno da idéia de “resistência”, também
marcam o período. Hall (1992, 1996a) aponta o feminismo como
uma das rupturas teóricas decisivas que alterou uma prática acu-
mulada em estudos culturais, reorganizando sua agenda em ter-
mos bem concretos. Desta forma, destaca sua influência nos
seguintes aspectos: a abertura para o entendimento do âmbito
pessoal como político
e suas conseqüências na construção do ob-
jeto de estudo dos estudos culturais; a expansão da noção de po-
der, que, embora bastante desenvolvida, tinha sido apenas
trabalhada no espaço da esfera pública; a centralidade das ques-
tões de gênero e sexualidade para a compreensão da própria cate-
goria “poder”; a inclusão de questões em torno do subjetivo e do
sujeito e, por último, a “reabertura” da fronteira entre teoria social
e teoria do inconsciente – psicanálise.
De forma assumidamente deliberada, Hall (1996a, p. 269)
utiliza a seguinte metáfora sobre a “irrupção” do feminismo nos
estudos culturais e, em especial, na vida intelectual do CCCS:
“Não se sabe, de uma maneira geral, onde e como o feminismo
arrombou a casa. [...] Como um ladrão no meio da noite, ele
entrou, perturbou, fez um ruído inconveniente, tomou a vez, es-
tourou na mesa dos estudos culturais”.
E, em outro lugar, conta como ele e Michael Green, perce-
bendo a importância das questões em torno do feminismo, “con-
vidaram” algumas feministas para destravar essa discussão dentro
do Centro e como esta tomou forma por si própria.
Em um dado momento, Michael Green e eu decidimos experi-
mentar e convidar algumas feministas, que não estavam trabalhan-
do conosco, para vir para o Centro, visando a projetar a questão
do feminismo no interior dele. Assim sendo, a tradicional história
38
de que o feminismo surgiu de dentro dos estudos culturais não é
bem verdadeira. Estávamos muito ansiosos para estabelecer aquele
vínculo, em parte porque nós dois, à época, vivíamos com feminis-
tas. Trabalhávamos com estudos culturais, mas mantínhamos uma
conversação com o feminismo. As pessoas pertencentes aos estudos
culturais estavam se tornando sensíveis à política feminista. Sendo
clássicos ‘novos homens’, a verdade é que, quando o feminismo
realmente emergiu de forma autônoma, fomos pegos de surpresa
pela própria coisa que havíamos tentado, de forma patriarcal, iniciar.
Aquelas coisas eram simplesmente muito imprevisíveis. O feminis-
mo, então, realmente irrompeu no Centro, em seus próprios ter-
mos, de sua própria e explosiva maneira. Mas não era a primeira vez
que os estudos culturais pensavam sobre política feminista ou se
tornavam cientes dela. (HALL, 1996d, p. 499)16
Embora esta versão não seja bem vista pelas feministas, tanto
as do CCCS quanto as que trabalham com estudos culturais, vale
a pena resgatá-la. Representando as feministas e em oposição ao
relato de Hall, Brunsdon (1996) nomeia como importantes na
reconstituição desta trajetória trabalhos produzidos a partir de
1974, demonstrando assim a existência deste nicho de interesses
dentro do Centro.
O artigo mimeografado de 1974, ‘Images of women’, de Helen
Butcher, Rosalin Coward, Marcella Evaristi, Jenny Garber, Rachel
Harrison, Janice Winship; o artigo de Jenny Garber e Angela
McRobbie sobre ‘Girls and subcultures’, nos Working Papers in
Cultural Studies de 1975 – Resistance through Rituals e a publica-
ção de 1978 Women Take Issue, todos marcam diferentes disputas
neste campo. [...] Assim, se há uma primeira fase no encontro
entre as feministas e o CCCS, começando, talvez, em 1973-4, eu
sugeriria que seu texto final é a coletânea de 1981, de McRobbie
e McCabe, Feminism for Girls, a qual, em seu uso de ‘feminismo’ e
‘meninas’, sugere uma distância dos anos 70. Este livro marca,
também, o fim da primeira fase com uma percepção muito forte
dos problemas com a categoria ‘mulher’, bem como com a diferen-
ça entre (grifo meu) as mulheres. (BRUNSDON, 1996, p. 278)17
É necessário notar que estas primeiras produções aparecem
de forma ainda esparsa. Em 1976, influenciadas pelo Women’s
Liberation Movement, as mulheres do CCCS questionaram sua
39
própria posição dentro do centro de pesquisa e propuseram a
criação de um grupo de estudo somente composto por mulhe-
res. Embora fortemente contestada, essa proposição foi refe-
rendada.
Reconstituindo, então, de uma outra forma a história do fe-
minismo no CCCS, Brunsdon (1996, p. 280) nega veementemen-
te a versão paternalista de Hall.
Na primeira vez em que li esta avaliação, eu queria esquecê-la ime-
diatamente. Negá-la, ignorá-la, desconhecê-la – não reconhecer a
agressão ali contida. Não tanto para negar que as feministas do
CCCS, durante os anos 70, haviam feito um poderoso desafio
aos estudos culturais, na forma como estavam constituídos na-
quele momento e naquele lugar, mas para negar que tivessem acon-
tecido da forma aqui descrita [por Hall].
Nota-se, entretanto, no relato de Brunsdon, a problematiza-
ção da existência de duas esferas nos estudos culturais: a comum
e ordinária e a feminina/feminista. Mas há um tom de questiona-
mento sobre a propriedade de existir “em separado” uma versão
feminista deste campo de estudos.
Apesar das divergências na reconstituição dessa experiência,
o volume Women Take Issue (1978) é considerado o primeiro re-
sultado prático de maior envergadura na divulgação dos trabalhos
do Women’s Studies Group do CCCS. Na realidade, este seria
originalmente o 110 Working Papers in Cultural Studies, sendo que
nas suas edições anteriores somente pouquíssimos artigos preo-
cupavam-se com questões em torno da mulher.18 Embora somen-
te algumas pesquisadoras estivessem em contato mais intenso com
o Women’s Liberation Movement, que tinha surgido no final dos
60, revelava-se aí uma primeira tentativa de realizar um trabalho
intelectual feminista.
A preocupação original deste coletivo era ver como a catego-
ria “gênero” estrutura e é ela própria estruturada nas formações
sociais. “Argumentávamos que a sociedade deveria ser compreen-
dida, em sua constituição, através da articulação sexo/gênero e
antagonismos de classe, embora algumas feministas priorizassem
a divisão sexual em suas análises” (1978, p. 10).
40
Num primeiro momento, o desafio foi examinar as imagens
das mulheres nos meios massivos (1974) e, a seguir, o debate
travou-se em torno da temática do trabalho doméstico.
Mais especificamente, tal mudança foi vista como uma tentati-
va de considerar a relação entre classe e subordinação da mulher
em um nível teórico. Porém, de certa forma, tal mudança foi
um passo seguinte ao artigo ‘Images’. Junto à mulher como
objeto sexual, estava a mulher como mãe e dona-de-casa, que
nós entendíamos ser a imagem básica e determinante nos meios
de comunicação. De forma mais geral, este trabalho representava
um engajamento educativo com as difíceis categorias econômicas do
marxismo. (1978, p. 13, grifo meu)
Grande parte da contribuição deste coletivo reside neste últi-
mo aspecto.
Embora esse livro tenha dado visibilidade a uma produção
intelectual em torno de um projeto feminista, mostrou também as
diferenças e fragilidades existentes no grupo. Mesmo assim, de-
marcou uma área de atuação com especificidade dentro do cam-
po acadêmico, servindo para delinear novos objetos de estudo.
Somos um grupo de mulheres e homens que produziram, juntos,
este livro com idéias diferentes do que é e deveria ser o trabalho
intelectual feminista. Isso depende parcialmente da maneira pela
qual entendemos ‘feminismo’ e ‘trabalho intelectual’ como práti-
cas políticas (e de suas relações).Todos consideramos que o traba-
lho intelectual feminista é um engajamento, tanto intelectual
quanto político, no âmbito do próprio trabalho intelectual. Possu-
ímos opiniões diferentes, porém, em relação a se isso é, em si, uma
prática política adequada, e se a adequação política é um critério
relevante e direto para o trabalho intelectual. Quanto ao relaciona-
mento entre marxismo e feminismo, temos abordagens diferentes
em termos de prática política. Divergimos sobre o que o feminis-
mo é, no que concerne aos homens poderem ou não ser feminis-
tas. Além disso, nossas opiniões também são diferentes quanto à
idéia de devermos estar nos dirigindo primordialmente a homens
ou mulheres, e
se é possível nos dirigirmos a ambos simultanea-
mente, nos mesmos termos. (1978, p. 13)
41
É dessa forma que se estabelece o encontro com a produção
feminista. Apesar da polêmica em torno da forma como tal se
efetuou, este foco de atenção propiciou novos questionamentos
em redor de questões referentes à identidade, pois introduziu novas
variáveis na sua constituição, deixando-se de ver os processos de
construção da identidade unicamente através da cultura de classe
e sua transmissão geracional.
Na avaliação da Michael Green, “se há um tema que possa
ser identificado na primeira fase dos estudos culturais, é o da
cultura como espaço de negociação, conflito, inovação e resistên-
cia dentro das relações sociais das sociedades dominadas pelo poder
e fraturadas por divisões de gênero, classe e raça” (GREEN, 1996b,
p. 125). Em suma, no período de maior evidência do CCCS acres-
centa-se ao seu interesse pelas subculturas às questões de gênero
e, logo em seguida, as que envolvem raça e etnia.19 Além, é claro,
como já foi anotado, a atenção sobre os meios de comunicação.
A partir dos anos 80, há indícios de que a importância do
CCCS como pólo de difusão da proposta dos estudos culturais
começa a arrefecer, isto é, começa a ser observada uma força de
descentralização. Durante esse processo, nota-se a expansão do
projeto dos estudos culturais para outros territórios, para além da
Grã-Bretanha, ocorrendo mutações importantes, decorrentes, prin-
cipalmente, de uma observação sobre a desestabilização das iden-
tidades sociais, ocasionada, sobretudo, pela aceleração do processo
de globalização. O foco central passa a ser a reflexão sobre as
novas condições de constituição das identidades sociais e sua re-
composição numa época em que as solidariedades tradicionais
estão debilitadas. Enfim, trata-se de uma ênfase à dimensão subje-
tiva e à pluralidade dos modos de vida vigentes em novos tempos
– ‘New Times’ (HALL, 1996g).
Armand Mattelart e Eric Neveu (1997, p. 131) sugerem que
um dos fatores- chave nesta orientação se refere a uma redefini-
ção das modalidades de análise dos meios de comunicação social.
“Se existiu uma ‘virada’ no início da década dos anos 80, consis-
tiu em prestar uma atenção crescente à recepção dos meios de
comunicação social, tratando de operacionalizar modelos como o
da codificação-decodificação”.
42
Vale lembrar, no entanto, que a incorporação do modelo de
Hall, num primeiro momento, desembocou em estudos do âmbi-
to do ideológico e do formato da mensagem, sobretudo, da televi-
siva. Ainda o poder do texto sobre o leitor/espectador domina
esta etapa de análise dos meios, embora desafie a noção de textos
mediáticos enquanto portadores “transparentes” de significados,
rompendo, também, com a concepção passiva de audiência. É
exemplar a esse respeito o trabalho de Morley e Brundson (1978)
sobre o programa Nationwide que a seguir é levado em frente
num estudo específico de audiência (MORLEY, 1980b).
No contexto britânico, a trajetória de pesquisa de David
Morley exemplifica o deslocamento da análise da estrutura ideoló-
gica de programas factuais de televisão em direção aos processos
multifacetados de consumo e codificação nos quais as audiências
estão envolvidas. A primeira pesquisa envolveu uma análise deta-
lhada da estrutura interna de uma edição deste programa televisi-
vo de sucesso na época junto à sociedade britânica. Já The Nationwide
Audience (1980b) é um estudo de audiência considerado o marco
inicial de uma área de investigação que se consolida como pró-
pria dos estudos culturais.
Assim, aos poucos, nos anos 80 vão definindo-se novas mo-
dalidades de análise dos meios de comunicação. Passou-se, então,
à realização de investigações que combinam análise de texto com
pesquisa de audiência. São implementados estudos de recepção
dos meios massivos, especialmente, no que diz respeito aos pro-
gramas televisivos. Também são alvo de atenção a literatura popu-
lar, séries televisivas e filmes de grande bilheteria.20 Todos estes
tratam de dar visibilidade à audiência, isto é, aos sujeitos engaja-
dos na produção de sentidos. Também há um redirecionamento
no que diz respeito aos protocolos de investigação. Estes passam
a dar uma atenção crescente ao trabalho etnográfico.
A importância que a etnografia assumiu nas análises da re-
cepção, funcionando como uma forma de relativizar os achados
da tendência anterior marcada pela crítica ideológica, precisa
ser sumariamente avaliada. Ao operar no ponto de encontro
onde determinadas condições sociais transformam-se em con-
dições especificamente vividas, trabalha-se por dentro de frontei-
43
ras. Nesse estreito espaço, de difícil acesso, corre-se o risco per-
manente de celebrar as resistências ao reconhecer que as audiên-
cias respondem ativamente às formas culturais massivas,
principalmente, se for levado em consideração o trabalho anteri-
ormente executado de “desmistificar, denunciar e condenar” o
poder dos meios sobre a audiência.
Embora seja plausível a consideração de que a audiência
estabelece uma ativa negociação com os textos mediáticos e com
as tecnologias no contexto da vida cotidiana, esse posiciona-
mento pode tornar-se tão otimista que perde de vista a margina-
lidade do poder dos receptores diante dos meios. A euforia com
a vitalidade da audiência e por sua vez com a cultura popular fez
com que esta fosse entendida como um espaço autônomo e re-
sistente ao campo hegemônico. Algo que aconteceu com várias
das pesquisas dessa época.
No contexto dos estudos de audiência, uma avaliação crítica
dos resultados obtidos nesse tipo de investigação reivindica: “O
que uma etnografia crítica das audiências dos meios de comuni-
cação precisa esmiuçar, então, é a não reconhecida, inconsciente
e contraditória efetividade do hegemônico dentro do popular, as rela-
ções de poder que estão inscritas no interior da textura das práticas de
recepção” (ANG, 1996, p. 245). Para tanto, o entendimento da
concepção de hegemonia não pode permanecer no nível teórico-
abstrato. É necessário dar conta de alcançar um sentido concreto
das forças hegemônicas que regem o mundo atual. A mesma au-
tora conclui: “Precisamos ir além dessas conceitualizações para-
digmáticas de hegemonia e desenvolver um sentido de hegemonia
mais específico, concreto, contextual, em resumo, mais etnográfi-
co” (grifo meu). Posição semelhante é reivindicada por McRob-
bie (1992, 1994).
Nos anos 90, este leque de investigações sobre a audiência
procura ainda mais enfaticamente capturar a experiência, a capa-
cidade de ação dos mais diversos grupos sociais vistos, principal-
mente, à luz das relações da identidade com o âmbito global,
nacional, local e individual. Questões como raça e etnia, o uso e a
integração de novas tecnologias como o vídeo e a TV, assim como
seus produtos na constituição de identidades de gênero, de classe,
44
bem como as geracionais e culturais, e as relações de poder nos
contextos domésticos de recepção, continuam na agenda, princi-
palmente, das análises de recepção.21 Destacam-se, como ênfases
mais recentes neste tipo de estudo, os recortes étnicos e a incor-
poração de novas tecnologias. Em relação às estratégias metodo-
lógicas, estas redundam na etnografia e na observação participante
embora possam parecer mais diversificadas – (auto)biografias,
depoimentos, histórias de vida.
De maneiras variadas, esses estudos de audiências estão preocupa-
dos em situar as leituras e práticas dos meios de comunicação den-
tro de redes complexas de determinações, não apenas dos textos,
mas também daqueles determinantes estruturais mais profundos,
como classe, gênero e, ainda, em menor grau, raça e etnia. Estes
estudos também iluminam os caminhos em que se intersectam e
são vividos os discursos públicos e privados, nas práticas rotinei-
ras e íntimas da vida cotidiana. Além disso, a maioria reflete
sobre
os métodos de pesquisa e, especialmente, sobre a localização do
pesquisador ou pesquisadora em seu estudo [...]. Desta forma,
apesar de sua pequena escala, cada um deles, de maneiras diferen-
tes, coloca questões mais amplas de estrutura e atuação dentro
do mundo socialmente estruturado das práticas e da subjetivida-
de, e muitos refletem sobre o contexto institucional da própria
pesquisa. (GRAY, 1999)
Enfim, estes estudos dos anos 90 revelam alguns dos objeti-
vos que, com diferentes ênfases, continuarão sendo perseguidos
pela linha de investigação de audiências. Ainda é cedo para elabo-
rar um balanço deste último período, é possível apenas identificar
as tendências recém citadas.
Aqui se enfatizou esta orientação na análise dos meios de
comunicação de massa – a recepção – porque a finalidade é refle-
tir sobre a comunicação mediática como clivagem dentro do am-
plo espectro proposto pelos estudos culturais. Tal fato, de forma
alguma, implica restringir o objeto de estudo deste campo em
torno desta temática. Ao contrário, cada vez mais o objeto de
investigação se diversifica e se fragmenta. Contudo, no ponto de
encontro destas duas frentes, comunicação e estudos culturais,
45
identifica-se uma forte inclinação em refletir sobre o papel dos
meios de comunicação na constituição de identidades, sendo esta
última a principal questão deste campo de estudos na atualidade.
Resta dizer que, se originalmente os estudos culturais po-
dem ser considerados uma invenção britânica, hoje, na sua forma
contemporânea, tornaram-se uma problemática teórica de reper-
cussão internacional. Não se confinam mais à Inglaterra e Europa
nem aos Estados Unidos, tendo se alastrado para a Austrália, Ca-
nadá, Nova Zelândia, América Latina e também para a Ásia e
África22. E é especialmente significativo afirmar que o eixo anglo-
saxão já não exerce mais uma incontestável liderança desta pers-
pectiva. A observação contemporânea de um processo de
estilhaçamento do indivíduo em múltiplas posições e/ou identida-
des transforma-se tanto em tema de estudo quanto em reflexo do
próprio processo vivido atualmente por este campo: descentrado
geograficamente e múltiplo teoricamente.
A CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA
 OU UMA VERSÃO LATINO-AMERICANA
No han sido sólo los paradigmas, sino los
tercos hechos, los procesos sociales de América Latina,
los que nos están cambiando el ‘objeto’ de
estudio a los investigadores de comunicación.
Jesús Martín-Barbero
A partir do panorama histórico, esboçado anteriormente,
sobre o surgimento dos estudos culturais na Inglaterra, aponta-se
como entendimento-síntese para o termo sua ênfase à ação social.
Relacionada com essa marca, identifica-se, também, como carac-
terística fundamental dessa perspectiva, a importância dada ao
contexto, o foco localizado e historicamente específico, a atenção
às especificidades e particularidades articuladas a uma conjuntura
histórica determinada, produzindo, então, uma teoria engajada
nas diferenças culturais. Tudo isso relacionado à pertinência da
investigação de práticas e formas simbólicas que tinham sido, até
aquele momento – virada dos anos 50 para os 60, excluídas da
46
esfera cultural ou que não eram vistas com suficiente legitimidade
cultural para tornarem-se objeto de estudo.
Dessa forma, os estudos culturais na América Latina, assim
como os da Austrália, Canadá e Estados Unidos, entre outros,
também têm um desenvolvimento singular. Destaco, pois, essas
peculiaridades tendo como ponto de partida a tradição britânica,
mas sem excluir outras versões de estudos culturais. Delineio,
também, o contexto em que emergem os estudos culturais latino-
americanos a fim de oferecer um mapa provisório onde se locali-
za, insere-se e tem suas raízes uma determinada proposta de análise
cultural da comunicação.23 Destacam-se, assim, tendências gerais
de tal proposta, sendo que algumas, embora não tenham relação
direta com os dois autores latino-americanos estudados neste li-
vro, Néstor García Canclini e Jesús Martín-Barbero, estendem
sua abrangência à perspectiva como um todo.
Apesar de suas singularidades, existem afinidades entre um
corpo teórico-metodológico de análise cultural que emerge nos
anos 80 neste contexto particular e um movimento que germina
na Inglaterra, no final dos anos 50, e vai se espraiando. Isso
ajuda a esclarecer posicionamentos assumidos por intelectuais
latino-americanos num conjunto de trabalhos em relação a um
debate internacional efervescente que vem ocorrendo no último
período, bem como permite mostrar sua contribuição particular
aos impasses, questionamentos e críticas ao desenvolvimento dos
estudos culturais.
Diante de uma certa resistência em definirem-se como prati-
cantes de estudos culturais, é somente nos anos 90, e de forma
ainda bastante tímida, que alguns poucos pesquisadores latino-
americanos começam a identificar-se – ou ser identificados por
investigadores estrangeiros que tomam a América Latina como
objeto de estudo – com esta perspectiva.24 Se o receio é de que
essas afinidades descaracterizem a independência e autonomia da
perspectiva latino-americana, afirma-se que, ao contrário, reve-
lam integração e sintonia com um movimento teórico maior e um
diálogo frutífero com o que ocorre além das fronteiras do territó-
rio latino-americano. Sem que isso indique vassalagem ou xeno-
fobia da América Latina a modas teóricas das metrópoles.
47
As indicações de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Can-
clini como figuras-chave na constituição da perspectiva dos estu-
dos culturais em solo latino-americano são unânimes nos relatos
encontrados (Davies, 1995; Golding e Ferguson, 1997; Fox, 1997;
O’Connor, 1991; Yúdice, 1993b; Lull, 1998; López de la Roche,
1998). Outros nomes vão somando-se: Carlos Monsiváis, Jorge
González, Guillermo Gómez Orozco, Rossana Reguillo (Méxi-
co); Guillermo Sunkel, José Joaquín Bruner (Chile); Renato Or-
tiz (Brasil); Beatriz Sarlo, Aníbal Ford (Argentina); Rosa Maria
Alfaro (Peru), entre outros.
De forma ainda genérica, toma-se, como ponto de partida, a
análise de formas culturais contemporâneas num determinado es-
tágio do capitalismo, formulando respostas particulares à inser-
ção das indústrias culturais na vida cotidiana. O que a Inglaterra
experiencia, no final dos anos 50, a América Latina passa a viven-
ciar acentuadamente nos anos 70.25
Em meados da década de 80, a configuração da pesquisa
em comunicação revela nítidos sinais de mudança, que têm
origem não somente em deslocamentos internos ao próprio
campo, mas, também, num movimento mais abrangente das
ciências sociais como um todo. O debate sobre a modernida-
de, o horizonte marxista vigente na época e a questão da glo-
balização obrigaram a repensar a trama teórica vigente. “Os
deslocamentos com os quais se buscará refazer conceitual e
metodologicamente o campo da comunicação virão do âmbito
dos movimentos sociais e das novas dinâmicas culturais, abrin-
do, dessa forma, a investigação para as transformações da ex-
periência social” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 29).
Levando em consideração esse pano de fundo, os estudos
culturais questionam a produção de hierarquias sociais e políticas
a partir de oposições entre tradição e inovação, entre a grande
arte e as culturas populares, ou, então, entre níveis de cultura –
por exemplo, alta e baixa, cultura de elite e cultura de massa. A
conseqüência natural desse debate é a revisão dos cânones estéti-
cos ou mesmo de identidades regionais e nacionais que se apre-
sentam como universais ao negarem ou encobrirem determinações
de raça, gênero e classe.
48
Tal tipo de análise, a exemplo da tradição britânica dos estu-
dos culturais, traz a marca da multidisciplinaridade ou o senti-
mento de que o suporte de uma única disciplina não dá conta da
complexidade do momento em foco. “Mais decisiva, sem dúvida,
que a tematização
explícita de processos ou aspectos da comuni-
cação nas disciplinas sociais é a superação da tendência a destinar
os estudos de comunicação a uma disciplina e a consciência cres-
cente de seu estatuto transdisciplinar” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p.
29), o que pode ser ilustrado, ainda que distante da representati-
vidade de uma hegemonia teórico-metodológica, com a obra de
Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini.
O primeiro inicia sua trajetória na filosofia. Passa um perío-
do trabalhando com semiótica e, posteriormente, chega às rela-
ções entre comunicação e cultura. A partir de um curso de
semiótica, ministrado na Universidad del Valle (Cali-Colômbia),
no início da década de 70, com o propósito de propiciar ferra-
mentas que permitissem aos estudantes entender os processos de
comunicação cotidiana, foi aproximando-se e formulando uma
metodologia que permitia relacionar o estudo da significação, ou
melhor, “a produção do sentido com os próprios sentidos” (grifo
meu). Dessa forma, passou a repensar a comunicação a partir das
práticas sociais.
Dei-me conta da necessidade que existia de uma teoria que não se
restringisse ao problema da informação. Não obstante, percebia a
importância capital que havia adquirido a informação na socieda-
de; via, também, que para a imensa maioria das pessoas a comuni-
cação não se esgotava nos meios. […] O problema não era de falta
de lógica ou coerência a uma teoria pensada em termos de emissor,
mensagem, receptor, código, fonte… O problema era que tipos de
processos comunicativos podiam ser pensados a partir daí. Onde
estava o emissor numa festa, num baile, num sacramento religio-
so?, questionava-me. Onde estavam a mensagem e o receptor? O
que existia de comunicação numa prática religiosa não tinha mais
a ver com outros modos, com outras dimensões da vida, com
outras experiências que desbordam por completo as explicações
da teoria da informação? Foi aí que percebi com clareza que falar
de comunicação era falar de práticas sociais e que, se queríamos
49
responder a todas essas perguntas, tínhamos que repensar a comu-
nicação a partir dessas práticas. (MARTÍN-BARBERO, 1995a, p. 14)
O percurso acadêmico de Néstor García Canclini também
tem sua base fundamental na filosofia. Entretanto, na sua trajetó-
ria, este campo de conhecimento aparece sempre tecendo rela-
ções com outros territórios disciplinares, principalmente, das
ciências sociais. “Na Argentina, trabalhei com questões relacio-
nadas à sociologia da arte, e, mais tarde, minha atenção voltou-se
à antropologia e à literatura, até minha chegada ao México. En-
tão, como se pode ver, minha atenção voltava-se principalmente
aos textos (grifo meu). Contudo, desde minha chegada ao México,
comecei a me envolver muito mais com o trabalho de campo (grifo
meu), primeiro em Michoacán, depois na Cidade do México,
Tijuana e em outros lugares. Para mim, deveria haver um diálogo
constante entre as duas dimensões [teoria e pesquisa empírica]”
(GARCIA CANCLINI citado por MURPHY, 1997, p. 81).
Embora possa ser dito que desde seu início os estudos dos
meios massivos tenham tido uma inflexão multi ou interdiscipli-
nar26, a combinação construída pelos estudos culturais é particu-
lar. Os estudos culturais propõem um olhar interdisciplinar que
entende os processos culturais como interdependentes e não como
fenômeno isolado, como é a prática usual da maioria das disci-
plinas. Essa interdependência caracteriza uma relação dinâmica
com outras esferas, principalmente com a estrutura ou os pro-
cessos produtivos.
O interesse central dos estudos culturais é perceber as inter-
secções entre as estruturas sociais e as formas e práticas culturais.
Assim, a análise dos meios de comunicação pelo prisma dessa
perspectiva, na América Latina, é vista como comunicação, mas
em relação à cultura e aos processos políticos, isto é, como parte
da problemática do poder e hegemonia. Daí a razão de observar
os processos de comunicação com uma forte referência nas ciên-
cias sociais, constituindo uma vertente singular de estudos cultu-
rais com forte atenção na base social dos processos culturais27 .
Foi se constituindo, então, uma preocupação fundamentalmente
sociológico-cultural.
50
Esse traço não impediu, no entanto, que o locus de surgimen-
to dos estudos culturais latino-americanos seja o ambiente acadê-
mico. Mas mesmo aí seu espaço é relativamente precário em
comparação com o rápido processo de institucionalização que
ocorreu na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá e na Aus-
trália, para citar os casos mais conhecidos. Na América Latina,
eles sobrevivem como uma tendência dentro de um departamento
acadêmico através de posicionamentos isolados ou de um coletivo
de pesquisadores, outras vezes como linha de pesquisa de progra-
mas de pós-graduação ou mesmo como projetos de investigação
interdisciplinar.28
Embora a vertente latino-americana tenha emergido e se lo-
calizado preferencialmente no âmbito acadêmico, surge entrela-
çada com um momento conjuntural de redemocratização da
sociedade e de observação intensa da ação dos movimentos sociais
da época. As profundas alterações que vêm ocorrendo na vida
social dirigem o olhar dos intelectuais que individualmente têm
elaborado análises críticas sobre a vida social e cultural contempo-
rânea. É esse tipo de engajamento político que se dá nos estudos
culturais latino-americanos e os diferencia tanto do momento ini-
cial da vertente britânica quanto do seu desenvolvimento em solo
norte-americano.29
Além disso, conta também para sua emergência a estrutura-
ção de um nexo entre um contexto histórico e as teorias circulan-
tes no campo intelectual, reveladas pelo universo conceitual
utilizado nas pesquisas desse momento. De modo especial, inte-
ressa destacar a passagem de um marxismo determinista para um
marxismo de corte gramsciano.
No primeiro, era imperativo explicar e analisar os conflitos
através de uma única contradição: a diferença de classe. Isso impe-
dia de pensar a pluralidade de matrizes culturais, a diversidade cul-
tural. A flexibilização dessa lógica permitiu o redesenho das relações
entre cultura e classe social. O redefinido é tanto o sentido de cultu-
ra quanto o de política, permitindo (re)descobrir as culturas popu-
lares e a constituição de identidades.30 Isso em grande medida se
deve à incorporação de parte do pensamento gramsciano.
51
Enfim, para abordar a constituição do objeto de estudo desta
perspectiva, é válido resgatar as principais marcas da pesquisa em
comunicação, registradas num passado bem próximo. Inúmeros
autores trabalham na sistematização das tendências da pesquisa
neste campo. Aqui, apenas recupero marcas que trazem uma for-
te conexão e desembocam na constituição da perspectiva dos es-
tudos culturais.31
Num sintético balanço da pesquisa em comunicação na Améri-
ca Latina, quatro grandes áreas de análise surgem como marcantes:
Influência da política econômica internacional no desenvolvimento
cultural dependente; Políticas dos meios de comunicação e, sobretu-
do, a democratização da comunicação; Comunicação popular/alter-
nativa como base da democratização da comunicação; Papel dos meios
massivos na transformação das culturas nacionais. As três primeiras
são marcantes de um período mais ou menos definido entre 1970 e
início dos 80.32 A quarta problemática passa a ser mais desenvolvida
a partir de meados dos 80.
Alterações do contexto sócio-político-econômico que tomam
forma ainda na década de 70 contribuem para que surja essa última
tendência na pesquisa em comunicação. No nível regional, a re-
pressão desencadeada pelos governos militares, que proliferaram
nessa época na América Latina, e a posterior articulação da socie-
dade civil em combate ao autoritarismo e, no nível internacional, o
próprio momento histórico e a movimentação do campo intelectu-
al, no que se refere às formas de
pensar a cultura, desestabilizaram
as teorias dominantes na pesquisa em comunicação.
Um fator que contribuiu de forma imperativa para a reavalia-
ção dos modelos de análise foi a atenção que mereceu a efervescên-
cia do meio social latino-americano. Expandiram-se movimentos
sociais que levaram adiante lutas contra a repressão e a discrimina-
ção e, também, mobilizações dos setores populares da sociedade
que lutavam pela apropriação de bens e serviços e pressionavam o
sistema político a atender suas demandas sociais.
Essas mobilizações e tais movimentos sociais politizaram
questões antes consideradas privadas, introduzindo uma série
de mudanças na vida cotidiana das pessoas (cf. CARDOSO, 1985;
52
GARCÍA CANCLINI, 1985). A novidade dessas lutas populares reve-
lou-se no âmbito do sociopolítico ao compor um quadro de lutas
pelo direito de organização e de participação, fissurando o po-
der autoritário.
Associações comunitárias, clubes de mães e de jovens, co-
munidades eclesiais de base, movimentos em defesa da moradia,
do meio ambiente, dos direitos humanos, o movimento feminis-
ta, o negro e outros de existência bem localizada fizeram com que
o campo das reivindicações se ampliasse. Passaram a entrar em
cena interesses que extrapolavam o mundo estrito do trabalho,
despertando outras dimensões da cultura.
O surgimento desses novos atores sociais colocou em xeque a
cultura política tradicional. O reconhecimento dessas experiências
coletivas, que incluíam práticas do viver cotidiano e interesses situa-
dos num campo mais vasto do que o da produção, renovaram o
âmbito do político.
Diante dessa conjuntura política e cultural, fez-se necessário
abandonar uma concepção de transnacionalização como mera es-
tratégia de imposição cultural que desconhecia os modos de apro-
priação e ressignificação das mensagens hegemônicas, isto é, os
usos que os diversos grupos sociais fazem dos meios e dos produ-
tos massivos. Assim, a investigação exemplificada pela teoria da
dependência cultural e leitura ideológica das mensagens dos mei-
os de comunicação passou a ser questionada na passagem dos
anos 70 para os 80.
Nos anos oitenta, no plano econômico-social, nota-se uma
alteração no desenvolvimento do capitalismo em que se ressalta a
globalização econômica. O plano político sente os efeitos desse
fenômeno, mas, também, emergem aí novas experiências que sur-
gem dos processos de redemocratização da América Latina, isto
é, há um reconhecimento de experiências coletivas não enquadra-
das em formas partidárias.33 No plano cultural, verifica-se a con-
solidação de um mercado de bens simbólicos tanto nas fronteiras
nacionais quanto nas relações que se estabelecem com as demais
indústrias culturais, da América Latina e fora dela, ou seja, mani-
festa-se a globalização cultural.
53
Na convergência do processo de globalização com o movi-
mento de profunda transformação do político, uma valorização
diferente do que pode ser considerado cultural germina. Tal pano-
rama problematiza a idéia de dominação, vigente até o momento,
e traz conseqüências para a discussão da questão da identidade da
América Latina.
E mais: “é a própria categoria de fronteira a que perdeu suas
referências e com ela a idéia de nação que inspirou toda uma
configuração do cultural” (MARTÍN-BARBERO, 1995b, p. 173). É
nesse contexto de crise do âmbito da Nação, da identidade e de
paradigmas, em especial aqueles fundamentados em “grandes nar-
rativas”, que emerge uma nova valorização do cultural. Esse des-
locamento abrange toda a América Latina, resguardadas as
particularidades de cada nação. De toda forma, é dentro desse
espectro que se inicia a configuração de um olhar que vê a comu-
nicação na cultura e se associa aos estudos culturais.
Na avaliação de Martín-Barbero (1989a, p. 22), essa propos-
ta, ainda que não assuma propriamente a denominação de estu-
dos culturais, tem como eixo:
a apropriação, isto é, a ativação da competência cultural das pesso-
as, a socialização da experiência criativa e o reconhecimento das
diferenças, isto é, a afirmação da identidade que se fortalece na
comunicação – feita de encontro e conflito – com o outro. A
comunicação na cultura deixa, então, de ter a figura do interme-
diário entre criadores e consumidores, para assumir a tarefa de
dissolver essa barreira social e simbólica, descentrando e desterri-
torializando as próprias possibilidades da produção cultural e
seus dispositivos.
Em outras palavras, isso significa deslocar a idéia de cultura
do âmbito estrito da reprodução para o campo dos processos cons-
titutivos e transformadores do social. O desafio para os investiga-
dores da comunicação é, portanto, construir um discurso – a partir
da comunicação – sobre os sujeitos sociais e suas práticas. Embo-
ra isso não signifique defender uma posição disciplinar (ou seja,
da comunicação enquanto disciplina) nem desconhecer a tendên-
cia crescente de multidisciplinaridade.
54
No final da década de 80, Martín-Barbero (1989b) reavalia a
movimentação das problemáticas de pesquisa no campo da comu-
nicação, salientando a configuração de três grandes áreas: políticas,
tecnologias e democracia; indústrias culturais, transnacionalização
e culturas populares; e meios, públicos e usos. Nesse momento, um
olhar transversal já aponta para pontos de contato entre os possíveis
limites destas linhas de investigação, desmoronando as fronteiras
antes construídas. De outro lado, estas tendências, também, mos-
tram sinais do deslocamento da comunicação para o âmbito da
cultura, rompendo barreiras disciplinares.
Martín-Barbero percebe esse movimento de espraiamento nas
fronteiras do campo da comunicação:
Quando, em 1980, tracei um mapa da investigação latino-ameri-
cana em comunicação os limites que demarcavam o campo conser-
vavam bastante nitidez. Hoje, quase dez anos depois, as fronteiras,
as contigüidades e as topografias desse campo não são as mesmas
nem estão tão claras. A idéia de informação – associada à inovação
tecnológica – ganha legitimidade teórica e operacionalidade, en-
quanto a de comunicação faz-se em pedaços ou se desloca e se
aloja em campos vizinhos. (MARTÍN-BARBERO, 1989b, p. 140)
De forma ainda mais enfática, em 1992, concluía: “[…] a
problemática da comunicação desborda hoje as divisas e os esque-
mas de nossos planos de estudo e de nossas investigações. O cam-
po que, até bem pouco, tinha demarcações acadêmicas nítidas já
não é mais o campo da comunicação. Gostemos ou não, outros a
partir de outras disciplinas e outras preocupações fazem já parte
dele” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 31).
Em síntese, uma nova conjuntura sócio-político-econômica e
cultural, configurada pela globalização do capital e da política, pela
consolidação de indústrias culturais latino-americanas que expandi-
ram, inclusive, sua atuação para além das fronteiras nacionais e
pelo reconhecimento de sujeitos sociais, que compondo formas di-
ferenciadas de mobilização, revelavam plena atividade – embora
essas manifestações não atuassem de modo constante e a diversida-
de de movimentos indicasse relevâncias distintas (CARDOSO, 1985,
p. 121) –, contribuiu para mostrar que o arsenal teórico dominante
55
no campo da comunicação, na América Latina, não estava afina-
do para compreender essa realidade.
Desse modo, a experiência do popular vinculada ao espaço
da comunicação foi a protagonista da emergência dos estudos
culturais no contexto latino-americano. Por essa razão, o objeto
preferencial de estudo desta perspectiva se concentra no espaço
do popular, das práticas da vida cotidiana, fortemente relacionado
com as relações de poder e conotação política.34 Esta é uma das
singularidades do processo latino-americano que se revela no acen-
to do viés sócio-cultural. Disciplinarmente evidenciado no triân-
gulo comunicação, sociologia e antropologia.
Toda análise deste gênero
corre o risco de tornar-se simpló-
ria e reducionista, pois, ao tratar de generalizar, perde de vista as
particularidades. Digo isso com o intuito de, por um lado, acres-
centar que esta perspectiva teórica também estabelece relações
com outras disciplinas (por exemplo, história, crítica literária e
política35) e, por outro, com o objetivo de demarcar diferenciais
em relação à formação de outras trajetórias regionais (por exem-
plo, a britânica, que estabelece no período inicial fortes laços com
a crítica literária).
Ao contrário das trajetórias de estudos culturais que estabe-
leceram uma forte relação com análises de textos (a britânica, de
certa forma, durante um período, e a norte-americana desde sua
origem) e, portanto, uma relação mais intensa com outro grupo
disciplinar, os latino-americanos tentam, num primeiro momen-
to, gerar competências pertinentes à mudança social. Ou seja,
observa-se uma forte tendência social nos estudos culturais lati-
no-americanos, percebida não só no momento inicial, mas ain-
da com repercussões na atualidade, embora os laços políticos
venham atenuando-se.
A opção pela análise das práticas sociais do âmbito popular
depois de uma fase de concentração nas leituras ideológicas das
mensagens dos meios de comunicação é um indicativo de com-
promisso social. Metodologicamente, as estratégias qualitativas de
pesquisa e, fundamentalmente, a etnografia transformaram-se num
instrumento apropriado para levar em frente esta prática de investi-
gação. A partir dos anos 80, nota-se tal ênfase metodológica.
56
Justifica-se essa escolha porque a “etnografia reposiciona a teoria
de acordo com as condições concretas de existência cultural; [e]
processos e negociações modulados através da vida cultural po-
dem ser usados para confrontar e redirecionar a teoria”, diz Gar-
cía Canclini (citado por MURPHY, 1997).
É, ainda, importante salientar, a mudança de enfoque que
ocorreu no início dos anos 80, dentro do campo estratégico de
investigação da comunicação participativa, alternativa ou popu-
lar. Esse eixo de pesquisa – a investigação da comunicação popular
– passou a indicar que o alternativo poderia ser alguma coisa
produzida no próprio âmbito dos meios massivos embora, de for-
ma bem ampla, devesse propiciar que os grupos dominados to-
massem a palavra.
Martín-Barbero (1984) indica que no espaço do popular po-
deriam ser identificados: o popular-memória, isto é, a memória de
outra matriz cultural; o popular-massivo, em que o massivo não é
exterior ao popular, remetendo-se a dispositivos de enunciação
popular; e os usos populares do massivo, quando junto com a lingua-
gem do meio se pesquisam os códigos de percepção e reconheci-
mento, os dispositivos de enunciação popular em que se expressam
confundidos a memória popular e o imaginário de massa.36
É interessante destacar que, do ponto de vista de uma das
referências internacionais da economia-política da comunicação,
os estudos culturais latino-americanos representam “um acrésci-
mo” em relação à prática britânica ou norte-americana, exata-
mente por perceberem alterações nas relações entre Estados
nacionais, mercados e meios de comunicação.
Na América Latina, os especialistas têm traçado, baseados na adap-
tação e transformação de uma mistura de produtos culturais po-
pulares locais e importados (em grande parte norte-americanos), a
imagem característica da prática cultural popular de seus países.
Muito da pesquisa e da literatura teórica desenvolveu-se como
reação à procura de respostas para questões a respeito dos meios de
comunicação e da democracia, bem como da criação de uma esfera
pública aberta a mais vozes. [...] Evitando velhos dualismos teóri-
cos, no que tange àqueles que detêm o poder e àqueles que não
têm poder nenhum, os estudiosos latino-americanos, tais como
57
García Canclini e Martín-Barbero, propõem categorias analíticas
como o sincretismo, a hibridação e a mestiçagem [...] para clarificar
processos de apropriação, adaptação e vocalização culturais na me-
diação entre prática cultural, cultura popular, meios de comunica-
ção democráticos e política. (GOLDING E FERGUSON, 1997, p. xvii)
Lembre-se que a proposta teórica latino-americana, que
entende a comunicação como uma questão de cultura, surge
como tentativa de resposta à crise dos paradigmas existentes e,
essencialmente, contra o olhar que reduz a comunicação a ex-
plicações causais e funcionais. O clima propício para esta mu-
dança se dá na passagem dos anos 70 para os 80. Na década de
80, tais posicionamentos disputam espaços e vão se afirmando
como uma proposta viável para compreender o papel dos meios,
do Estado, e da cultura popular na sociedade; a relação de to-
dos esses elementos e o processo de constituição da identida-
de, assim como sua articulação com as forças de globalização e
desterritorialização.
Durante esse período, existe, ainda, um clima bastante poli-
tizado em que intelectuais manifestam suas preocupações e ten-
tam exercer um papel político em relação ao debate da identidade
latino-americana e das culturas nacionais. O desafio é produzir
um conhecimento sobre o social que não se traduza somente em
renovação de temas, objetos e métodos, mas, sobretudo, em pro-
jetos capazes de relacionar o desenvolvimento da comunicação
com o fortalecimento a solidariedades e ampliação de formas de
convivência cidadã.
Aos poucos, um certo desencanto com a atuação dos gover-
nos democráticos, o enfraquecimento do papel do Estado diante
do avanço acelerado do neoliberalismo, a perda de poder do Esta-
do-nação e sua incapacidade de administrar a desigualdade social
crescente, assim como de tratar a heterogeneidade cultural e, de
outro lado, a diluição da polêmica em torno da identidade nacio-
nal, vão esmaecendo os laços políticos.
Em termos propriamente de objeto de estudo, é dentro da
temática das culturas populares que começam a ser desenvolvidas
diferentes abordagens da recepção mediática nos anos 80. Estas
configuram o principal ponto de convergência da perspectiva dos
58
estudos culturais, juntamente com o trabalho desenvolvido sobre
o consumo cultural, seja ele observado tanto através de uma visão
mais abrangente de cultura quanto aquela relacionada com os pro-
cessos de constituição e hibridação das identidades.37 São estas as
tendências preferenciais de investigação dos estudos culturais lati-
no-americanos do final dos anos 80.
Convém, aqui, ressaltar algumas semelhanças e diferenciações
teórico-metodológicas deste desenvolvimento dos de outras trajetó-
rias regionais. Dentro do âmbito dos estudos de recepção, a passa-
gem das análises concentradas ainda no texto para a descoberta do
sujeito-receptor desembocou numa certa obsessão com as “leituras
negociadas”, ocasionando no limite a celebração da resistência do
receptor, antes visto como mero ente passivo. Esta crítica é extensi-
va tanto as análises latino-americanas quanto às anglo-americanas,
tendo vigência contemporânea também para ambas.
Nos estudos de audiência anglo-americanos, observa-se uma
forte influência do instrumental semiológico que contribui para a
análise da mensagem que está sendo consumida pelos receptores
em foco. Já na América Latina, não há evidências que sinalizem
essa incorporação. Ao contrário, os estudos de recepção, de certa
forma, manifestavam, fundamentalmente, nos anos 80 e início
dos 90, uma crítica contundente a esse instrumental, criando um
ambiente propício para a concentração das análises nos relatos
dos próprios receptores.
A adoção da etnografia como principal estratégia metodoló-
gica nos estudos de recepção, tanto no contexto latino-americano
quanto no anglo-americano, transformou-se num ritual implemen-
tado na grande maioria das investigações incluídas na perspectiva
dos estudos culturais, o que provoca certas deformações nessa
proposta metodológica.38
A tradição etnográfica
tem ligado os estudos culturais a uma
ênfase descritiva e a um certo empirismo. Mesmo assim, a op-
ção etnográfica vem cada vez mais ganhando popularidade mas,
oportunamente, vem se realizando, também, algumas reflexões
metodológicas sobre suas implicações, nas análises de audiên-
cia.39 O desafio reside, a despeito desse tipo de posicionamento,
59
em extrapolar e transcender o pensamento que se esgota no dado
empírico (REGUILLO, 1997).
Para os estudos culturais como um todo, interessa, em pri-
meiro lugar, especificar o que caracteriza seu objeto de estudo,
considerado de forma genérica dentro da idéia de “atividade da
audiência”. Esta deve ser vista em relação aos processos e estrutu-
ras sócio-políticos, isto é, em relação aos processos estrutural e
cultural através dos quais a audiência é constituída. Desta forma,
a aproximação à “atividade da audiência” está sempre relacionada
com operações do poder social, isto é, como as relações de poder
estão organizadas dentro de práticas diversas e heterogêneas de
consumo dos meios.
Uma outra consideração importante no “fazer” investigação
dentro dos estudos culturais, no âmbito da audiência, é o prevale-
cimento da idéia de que pesquisar significa construir “interpreta-
ções”, certos modos de compreender o mundo, sempre
historicamente localizados, subjetivos e relativos. Levando em
consideração essa premissa, o material obtido diante de práticas
metodológicas etnográficas não pode ser entendido, à moda posi-
tivista, como um dado natural. Ressalta-se que muitas vezes tal
princípio não é observado.
Por outro lado, isso tem implicações na posição que o pes-
quisador assume diante de seu objeto. Nessa situação, o pesquisa-
dor já não é mais um observador neutro,
mas alguém cujo trabalho é produzir conhecimentos tanto his-
toricamente quanto culturalmente específicos, que são resulta-
dos de um igualmente específico encontro entre o pesquisador e
os informantes, encontro em que a subjetividade do pesquisa-
dor não está separada do objeto que estuda. As interpretações
produzidas nesse processo nunca podem ser consideradas defini-
tivas: pelo contrário, são necessariamente incompletas (pois sem-
pre envolvem simplificação, seleção, e exclusão) e temporárias.
(ANG, 1989, p. 105)40
Enfim, o pesquisador é, ele próprio, um sujeito político e
moral, responsável socialmente pelo mundo onde vive. Esta con-
dição coloca-o em interfaces diversas, redirecionando-o a tomar a
60
cultura “como um domínio essencialmente hermenêutico – um
dos ‘discursos’, ‘sentidos’, ‘narrativas’, e assim sucessivamente –
que o crítico não somente ‘estuda’, mas interpreta e até ‘ressig-
nifica’” (LARSEN, 1996, p. 137). É uma decorrência que as rela-
ções entre pesquisador-pesquisado tornem-se elas próprias
temáticas de atenção.
A reflexividade, entendida como “pensar o pensamento com
o qual pensamos” (IBÁÑEZ apud REGUILLO, 1997, p. 136), é condi-
ção para dotar de potência explicativa a investigação em comuni-
cação. Que ela exista, no contexto latino-americano, por exemplo
através de reflexões de Martín-Barbero,41 García Canclini, Lopes,
Reguillo, entre outros, não quer dizer que não necessite ser im-
plementada ainda mais.
Se, por um lado, a questão da reflexividade necessita ocupar
um espaço importante na pauta das discussões deste campo de
estudos, de outro, é tarefa urgente adensar a investigação empíri-
ca. Especificamente no que diz respeito à pesquisa da recepção, à
primeira vista podem ser identificados dois grandes eixos: um
relacionado as negociações que se estabelecem entre textos medi-
áticos e espectadores/audiência e outro referente às multi-varia-
das formas pelas quais nós, espectadores, nos constituímos através
do consumo mediático.
E é exatamente nessa constituição dos sujeitos através dos
processos de recepção e consumo que se nota uma diferenciação
importante entre as investigações latino-americanas e as anglo-
americanas. Nestas últimas, adquire especial importância o en-
contro entre estudos culturais e feminismo, o que não se observa
na América Latina, embora exista uma preocupação em focalizar
questões em torno da mulher.
É possível identificar contribuições originais a partir do de-
senvolvimento da perspectiva feminista, num primeiro momento,
nos estudos culturais britânicos. O olhar feminista desafiou os
estudos dos meios que até então vinham sendo feitos, nos quais
apenas valorizavam-se programas noticiosos e de caráter político e
público, incluindo, então, análises sobre telenovelas e outros gêne-
ros considerados mais “femininos”. A família foi identificada como
um importante espaço de apropriação de produtos culturais, abrindo
61
caminho para investigações inovadoras sobre as conexões entre
vida privada e pública.
Enfim, essa perspectiva desafiou a centralidade da categoria
“classe social” na interpretação dos processos de dominação, in-
serindo a questão do gênero. Em termos de método, a preocupa-
ção com a perda da experiência ou agência no discurso analítico,
fez com que as feministas utilizassem cada vez mais metodologias
que resgatam esse âmbito – a (auto)biografia, o depoimento, a
história de vida, entre outras.42
De um modo geral, a atenção no momento da recepção con-
tinua sendo fundamental em relação a duas problemáticas mais
amplas. Uma delas abrange a temática do sujeito, da subjetivida-
de e da intersubjetividade, enquanto a outra se interessa pela inte-
gração de novas modalidades de relações de poder na problemática
da dominação.
É dessa forma que se estabelece o encontro com a produção
feminista. Esta propiciou novos questionamentos em torno de
questões referentes à identidade, pois introduziu novas variáveis
na sua constituição, deixando de ver os processos de construção
da identidade unicamente através da cultura de classe e sua trans-
missão geracional. Mais tarde, acrescentam-se às questões de gê-
nero, as que envolvem raça e etnia. Estas últimas vem sendo
desenvolvidas nos estudos de recepção a partir dos 90.
Com essa digressão pode-se avaliar essa mesma conexão en-
tre feminismo e estudos culturais no território latino-americano.
Na América Latina, os estudos de recepção dão especial atenção à
espectadora feminina, principalmente, de televisão. Alguns, de for-
ma proposital; outros, nem tanto. De todo modo, muitas investiga-
ções tomam a mulher como informante primordial: seja mulher de
classe média ou popular; seja no papel de doméstica, de operária,
de dona de casa; seja na função de mãe como agente social de peso
na interação com os filhos e, por sua vez, na recepção da televisão.
Discute-se se as mulheres controlam ou não a programação televi-
siva no ambiente familiar e doméstico, discutem-se suas preferên-
cias em termos de gêneros, entre outras questões.43
Existiria uma razão especial para tal concentração? A audiên-
cia não é composta apenas por mulheres, inclusive, aquela que
62
assiste programas tidos como “femininos”, sobretudo, as teleno-
velas. Seria a mulher uma informante mais competente diante das
narrativas masculinas de “falta de tempo” para conversar sobre a
televisão ou de “aparente descaso” quando o tema é novela? Estas
e outras questões em torno desta preferência “casual” ou “delibe-
rada” ainda não foram fruto de atenção, bem como não foram
investigadas as razões para tal composição de amostragens.
À primeira vista, os estudos de recepção latino-americanos
tomam a mulher como variável de gênero, mas apenas como mais
um indicador entre os índices socioeconômico, geracional e etnia
(quando este último é incorporado). A condição feminina não
tem sentido estrutural na articulação da sociedade, não tem um
significado social concreto no nível da estruturação social, por
isso não merece nenhum destaque no âmbito teórico, não é pro-
blematizada e nem tem densidade teórica.44 Embora esses mes-
mos estudos tenham permitido conhecer
o universo cultural das
mulheres, revelando o contexto no qual recebem as mensagens
mediáticas e quais os usos que fazem dessas narrativas dentro de
sua vida cotidiana.
O fato é que parece não existir uma inflexão feminista nos
estudos culturais latino-americanos que, aqui, estão em questão
(cf. YÚDICE, 1993b; García Canclini na sua entrevista a Murphy,
1997). Geralmente, no caso dos estudos de recepção, as preocu-
pações em torno da condição da mulher se dão em referência a
um contorno mais amplo, sobretudo, o de classe social.
Assim, também, no contexto latino-americano pode-se ob-
servar uma atenção crescente à temática das identidades num pano
de fundo de intensa fragmentação do sujeito. Quase no final dos
anos 90, a tendência geral que se esboça, aborda a constituição de
identidades e representações, na qual o poder é entendido quase
que exclusivamente como uma função de manipulação simbólica.
Por sua vez, os diferentes grupos sociais e suas identidades pas-
sam a ser vistos mais como resultado do consumo simbólico, es-
maecendo-se os laços com os processos produtivos.
A tradição ensaística também caracteriza os estudos cultu-
rais latino-americanos de hoje. A meu ver, o aspecto negativo
deste tipo de narrativa é o uso recorrente a metáforas que obscu-
63
recem as particularidades do processo. O risco é compor posicio-
namentos e análises eminentemente retóricos.
Por exemplo, pensar a cultura, hoje, pressupõe vê-la como
uma realidade que transcende os limites do Estado-nação e que se
insere no processo de globalização. No entanto, tal premissa tem
validade se permitir compreender o vínculo entre produção sim-
bólica e base econômica. Caso contrário, pode transformar-se em
mera mistificação.
No plano específico da pesquisa em comunicação na Amé-
rica Latina, Martín-Barbero (1996a) desenha o que pode confi-
gurar o horizonte próximo desse campo. Quatro grandes questi-
onamentos afloram: indagações em torno do desordenamento
do cultural; questionamentos sobre os processos de mediação de
massa da política; problemas em torno da cidade enquanto espa-
ço de comunicação; e o âmbito da recepção/uso dos meios e do
consumo cultural. Aparentemente todas temáticas de forte cono-
tação política.
Na realidade, o que esses eixos de investigação estão sinali-
zando é que a comunicação como objeto de estudo pode ser defi-
nida, em seus termos mais gerais, como as relações, através de
suas múltiplas mediações, entre produção de sentido e identidade
dos sujeitos nas mais diversas práticas sócio-culturais (FUENTES,
1996). No entanto, a afirmação de identidades diversas e plurais
tende a constituir o mundo em termos de identidades tão particu-
lares que facilita desaguar num nível muito localizado e domésti-
co. E novamente desentrelaçado da trama social, da estruturação
geral da sociedade.
A questão da relação, em formações sociais específicas, en-
tre práticas culturais e outras práticas, isto é, a relação entre o
cultural e o econômico, o político e as instâncias ideológicas que
caracterizou um deslocamento teórico fundamental na constitui-
ção da tradição dos estudos culturais, torna-se assim problemática
no atual desenvolvimento dos estudos culturais latino-americanos.
Aliado a isso, observa-se o avanço da idéia de descrença no
papel propositivo do intelectual. Alguns intelectuais latino-ameri-
canos revelam sinais nessa direção. Porém, algumas vozes que
64
crêem nessa missão ainda subsistem em convívio com um destrava-
do processo de despolitização dos estudos culturais latino-america-
nos. O que se pode perder através desse processo é aquela marca
inicial da reflexão latino-americana de pensar a mudança social.
E mais um pressuposto essencial para os estudos culturais
parece estar em xeque na reflexão de alguns analistas culturais,
na atualidade: a crença na ação social. Se os estudos culturais
caracterizaram-se por constituir uma perspectiva que enfatiza a
atividade humana, a produção ativa da cultura, ao invés de seu
consumo passivo e, hoje, tal capacidade começa a ser posta em
dúvida, as análises contemporâneas podem estar indicando, de
fato, um processo de despolitização dos estudos culturais no
contexto latino-americano. Caso essa tendência se concretize,
mais uma vez poderá ser identificada a articulação da proposta
latino-americana com o movimento mais geral dos estudos cul-
turais, pois esse debate já constitui a agenda de discussões inter-
nacionais desse campo de estudos.
65
DE IDEOLOGIA PARA HEGEMONIA
IDEOLOGIA COMO DOMINAÇÃO
Embora se reconheça que o debate teórico dentro da forma-
ção da trajetória britânica dos estudos culturais não se deu de
forma linear, eliminando passo a passo determinadas concepções,
podem ser identificados diferentes enfrentamentos na sua consti-
tuição. Convém, agora, recuperar especificamente a constituição
de uma abordagem dos meios de comunicação que se dá entre
duas aproximações distintas: a culturalista e a estruturalista. Essa
construção está, sobretudo, proposta na reflexão de Stuart Hall.1
Do outro lado, observa-se, na América Latina, representada
aqui através de Néstor García Canclini e Jesús Martín-Barbero,
como a mesma discussão tomou forma. Não obstante, nesta região
o tratamento de tal problemática não assumiu tais termos – ou seja,
um confronto entre culturalismo versus estruturalismo –, logo, não
desencadeou uma proposta de articulação dessas duas perspectivas.
Mesmo assim, as questões que tentam ser resolvidas através desse
cotejo teórico, situadas, principalmente, em torno da relação entre
meios de produção e ideologia, são vivamente tratadas, também,
pelos autores latino-americanos, permitindo assim a construção de
paralelismos entre as posições de Hall, Martín-Barbero e García
Canclini. Os autores citados coincidem na escolha de uma contri-
buição teórica singular na tentativa de construir uma resposta mais
complexa a tais questionamentos. O ponto de convergência, ou
uma possível superação dos problemas postos pelo confronto entre
estruturalismo e culturalismo, dá-se, sobretudo, através da incorpo-
ração do conceito de hegemonia, de Antonio Gramsci.
No centro desta discussão está o que Hall (1982, p. 88) de-
nominou de identificação da ideologia aliada ao reconhecimento
da importância da significação social e política da linguagem,
assim como do signo e do discurso. Nas palavras do autor, esta
66
mudança de posicionamento equivaleria “a re-descoberta da ideo-
logia”, no entanto, “seria mais apropriado referir-se ao retorno
do reprimido”. Este posicionamento revela a construção de uma
abordagem alternativa à teoria dominante, na época, no que diz
respeito à comunicação de massa.2
O contorno mais geral em que se dá a construção da proble-
mática em torno da ideologia diz respeito às relações entre estu-
dos culturais e marxismo. Duas questões são aí primordiais:
entender a cultura em relação a estrutura social e sua contingência
histórica; assumir que a sociedade capitalista é uma sociedade
dividida desigualmente e que a cultura é um dos principais níveis
em que esta divisão é estabelecida e, também, contestada.
Avançando um pouco mais nesta relação, pode-se afirmar
que o campo dos estudos culturais sofre a influência marxista em
três vetores.
O primeiro é que os processos culturais estão intimamente conec-
tados com as relações sociais, especialmente com formações e rela-
ções de classe, com divisões sexuais, com a estruturação racial das
relações sociais e com as opressões de geração como uma forma de
dependência. O segundo é que cultura envolve poder e ajuda a
produzir assimetrias nas habilidades dos indivíduos e grupos soci-
ais para definir e perceber suas necessidades.O terceiro, que segue
os outros dois, é que cultura não é um campo nem autônomo
nem externamente determinado, mas um espaço de diferenças e
lutas sociais. (Johnson, 1996, p. 76)
A relação
com o marxismo se inicia e se desenvolve através
da crítica de um certo reducionismo e economicismo dessa pers-
pectiva, resultando na contestação do modelo base-superestrutu-
ra. Os estudos culturais atribuem à cultura um papel que não é
totalmente explicado pelas determinações da esfera econômica.
Entretanto, a perspectiva marxista, nesse estágio do desen-
volvimento dos estudos culturais, contribuiu no sentido de com-
preender a cultura na sua “autonomia relativa”, isto é, ela não é
dependente das relações econômicas, nem reflexo, mas tem influên-
cia e sofre conseqüências das relações político-econômicas. Como
Althusser argumentava, existem várias forças determinantes –
67
econômica, política e cultural –, competindo e em conflito entre
si, compondo uma complexa unidade – a sociedade.
Embora se afirme a influência desse ponto de vista na cons-
tituição do corpo teórico de um determinado período da verten-
te britânica dos estudos culturais, deve-se ter presente que essa
articulação mutuamente determinante entre forças distintas é pro-
blemática, ambígua e contraditória. Sobretudo porque pretender
a “autonomia relativa” da esfera cultural, não elimina a possibili-
dade de compreendê-la determinada “em última instância” pela
esfera econômica.
A questão da relação entre práticas culturais e outras práticas
em formações sociais definidas, isto é, a relação do cultural com
o econômico, o político e as instâncias ideológicas, pode ser
considerada enquanto um questionamento-chave na construção
da tradição dos estudos culturais. Reafirma-se que a contribuição
de Althusser nesse sentido é marcante. “Grosso modo, a inovação
importante foi a tentativa de pensar a ‘unidade’ de uma formação
social em termos de uma articulação. Isto estabeleceu os temas da
‘autonomia relativa’ do nível ideológico-cultural e um novo con-
ceito de totalidade social: totalidades como estruturas complexas”,
reconhece Hall (1980a, p. 32, grifo meu).
Hall destaca que não se pode eliminar a distinção entre ins-
tâncias e elementos diferentes nem se aderir à tese de determina-
ção do econômico, existindo, então, uma articulação entre níveis
distintos. E que o entendimento da totalidade social, ao contrário
de ser mera expressão do vivido, funda-se em estruturas.
Inserida em tais contornos, a transição do paradigma domi-
nante ao crítico no campo da comunicação, segundo Hall, pode
ser sintetizada na idéia de reconhecimento que os media funcio-
nam dentro e através do domínio do discursivo. Por sua vez, os
media não podem ser vistos fora do campo das relações de poder.
Mais ainda, Hall resume esta mudança na afirmação: “os meios
de comunicação são ideológicos”. Isso implica compreender que
os media operam dentro do campo da construção social do sentido,
isto é, os significados não estão inscritos nas suas próprias ori-
gens mas nas relações e nas estruturas sociais.
68
Profundas diferenças teóricas e políticas estão em questão nes-
ta mudança. A ruptura mais dramática ocorre precisamente em
termos do movimento de passagem de uma ótica essencialmente
comportamental, característica do paradigma dominante, para uma
perspectiva ideológica. Em termos bem gerais, o que está posto
em questão é o papel “reflexivo” dos meios de comunicação e a
concepção da linguagem como algo “transparente”. Na perspectiva
de Hall, os meios de comunicação definem, não simplesmente repro-
duzem, a “realidade”. Como o próprio Hall (1982, p. 64) explica,
definições de realidade são sustentadas e produzidas através de todas
aquelas práticas lingüísticas – entendidas num sentido amplo – por
meio das quais definições seletivas do ‘real’ são representadas. Mas
representação é uma noção muito diferente daquela de reflexão.
Implica o trabalho ativo de selecionar e apresentar, de estruturar e
dar forma: não simplesmente de transmitir um significado já exis-
tente, mas o trabalho mais ativo de fazer as coisas significarem.
Na realidade, a representação implica uma prática, uma pro-
dução de sentido – “o que, subseqüentemente, veio a ser definido
como uma ‘prática significante’. Os meios de comunicação são
agentes significantes” .
Duas preocupações são centrais nessa mudança de enfoque.
De um lado, como a ideologia funciona e quais são seus mecanis-
mos e, de outro, como o ideológico é concebido em relação às
outras práticas dentro de uma formação social. Insatisfeito com
os contornos tanto do culturalismo quanto do marxismo estrutu-
ralista, proposto por Althusser, Hall confrontou-os, tensionando
seus princípios ao limite. Surge daí uma outra armação teórica.
Na perspectiva esboçada por Hall, a produção e transforma-
ção do discurso ideológico está formatada por teorias preocupadas
com o caráter simbólico e lingüístico desse discurso. Por essa ra-
zão, as ideologias funcionam mediante a linguagem. No estrutura-
lismo, essa questão remete ao problema da significação. “Linguagem
e simbolização são o meio pelo qual o significado é produzido.
Esta aproximação destituiu a noção referencial de linguagem […]
onde o significado de um termo particular ou sentença podia ser
validado simplesmente vendo ao que ela referia-se no mundo real.
69
Ao invés, linguagem tinha de ser vista como o meio no qual signi-
ficados específicos são produzidos” (HALL, 1982, p. 67).
Os significados são, então, uma produção social; resultam
de uma prática social. Considerando o pressuposto que o senti-
do é produzido e não dado, diferentes significados podem ser
creditados para os mesmos eventos. Diante disso, Hall (1982)
problematiza a questão de como o discurso dominante se garan-
te ele próprio como a versão diante dos outros sentidos alterna-
tivos ou competitivos. Problematiza, também, como as
instituições que são responsáveis pela explicação desses eventos
– nas sociedades modernas, os media, por excelência – têm su-
cesso na manutenção dos sentidos preferenciais (ou dominan-
tes) dentro do sistema de comunicação.
Nesse espectro teórico, os media são responsáveis por prover
a base pela qual grupos e classes sociais constroem uma imagem
das vidas, práticas e valores de outros grupos e classes. Essas ima-
gens, representações esparsas e fragmentadas da totalidade social,
acabam construindo um todo coerente, o imaginário social “[…]
através do qual nós percebemos os ‘mundos’, as ‘realidades vivi-
das’ dos outros e, imaginariamente, reconstruímos suas vidas e as
nossas em algum ‘mundo por todos’ inteligível, numa ‘totalidade
vivida’” (HALL, 1977, p. 341).
É, também, função dos media refletir e expressar uma pluralida-
de – mesmo que aparente – de representações ao invés de um univer-
so ideológico unitário. Esse conhecimento social que os media
seletivamente fazem circular é organizado através de sentidos prefe-
renciais. E, por último, esse conjunto de representações, imagens e
sentidos, seletivamente representado e classificado, é organizado e
articulado num todo coerente, numa ordem reconhecida, ou melhor,
na produção do consenso, na construção da legitimidade.
São determinados mecanismos que permitem aos media ter
tal papel ideológico. Os media produzem mercadorias simbólicas e
sua produção não pode ser alcançada sem passar pelo crivo da lin-
guagem, pois é necessário traduzir o evento real numa forma sim-
bólica. Esse é o processo de codificação em que a seleção de códigos
preferenciais parece corporificar uma explicação “natural”, mos-
trando-se como a única forma inteligível e disponível do evento.
70
No entanto, Hall (1977, p. 343) alerta que “nós devemos
lembrar que ele [significado dominante] não é único, unitário,
mas uma pluralidade de discursos dominantes: [e] que estes não
são deliberadamente selecionados pelos codificadores para ‘repro-
duzir eventos dentro do horizonte da ideologia dominante’, mas
constituem o campo dos significados dentro do qual eles [codifica-
dores] devem escolher”. Essa dinâmica
é invisível e inconsciente
mesmo para os codificadores, sendo mascarada muitas vezes pela
intervenção de ideologias profissionais.
Do ponto de vista das abordagens convencionais dos meios de
comunicação, esse problema da seleção e exclusão de sentidos se
resume a problemas técnicos. Entretanto, para uma teoria da signi-
ficação, todos esses são elementos derivados de práticas sociais.
Significação [é] uma prática social porque, dentro das instituições
dos meios de comunicação, uma forma particular de organização
social desenvolveu-se que capacitou os produtores (radiodifuso-
res) a empregar os meios de produção de significados à sua dispo-
sição (o equipamento técnico) através de um certo uso prático
deles (a combinação de elementos de significação identificados
acima) com o objetivo de produzir um produto (um significado
específico). (HALL, 1982, p. 68)
Contudo, o processo de significação dos media difere de ou-
tros processos precisamente porque o que esta prática social pro-
duz é um objeto discursivo, logo, o que o diferencia enquanto
prática é a articulação de elementos sociais e simbólicos.
Porém, o problema reside, ainda, no processo de tornar “um”
sentido predominante sobre os demais. Deduz-se daí que o poder
exercido nesse processo não é uma força neutra. O processo de
significação é o meio pelo qual os entendimentos coletivos são
criados e, então, o consenso pode ser efetivado.
Ideologia, de acordo com essa perspectiva, não somente se torna
uma ‘força material’ – para usar uma expressão antiga – real porque
é ‘real’ nos seus efeitos. Ela se torna, também, um espaço de luta
(entre definições concorrentes) e uma aposta – um prêmio a ser
ganho – na condução de enfrentamentos particulares. Isso signi-
fica que ideologia não pode mais ser vista como uma variável
71
dependente, uma mera reflexão de uma realidade preexistente na
mente. Nem são seus resultados previsíveis por derivação a partir
de alguma lógica determinista simples. Eles dependem de um ba-
lanço de forças numa conjuntura histórica particular: de uma ‘po-
lítica de significação’.(HALL, 1982, p. 70)
Esse posicionamento revela uma mudança de enfoque na
noção de ideologia e como ela atua. Na perspectiva proposta pe-
los estudos culturais, sobretudo dos anos 70, ideologias são estru-
turas, logo, não são imagens, conceitos ou mero conteúdo. Em
síntese, é um sistema de codificação.
Assim, os meios de comunicação atuam incessantemente
na construção e desconstrução ideológica. Esse é um trabalho
que reproduz contradições e no qual, por definição, tendências
contrárias estão constantemente manifestas, mas a inclinação dos
media é reproduzir o campo ideológico da sociedade em tal for-
ma que reproduz, também, sua estrutura de dominação. Hall
reconhece que essa teoria tende a apresentar o processo excessi-
vamente acentuado numa única direção, funcionalmente adapta-
do à reprodução da ideologia dominante.
Até agora apenas a questão da codificação das mensagens
esteve, aqui, em evidência. O ponto de vista da decodificação vai
ser abordado, sobretudo, no ensaio “Encoding and decoding in
television discourse” onde Hall3 (1980b) abre a discussão sobre a
temática da recepção e dos consumos mediáticos.
O ponto de partida de Hall é compreender o processo de
comunicação
em termos de uma estrutura produzida e sustentada através da
articulação de momentos vinculados, porém distintos – produ-
ção, circulação, distribuição/consumo, reprodução. Isso seria pensar
o processo como uma ‘estrutura complexa com dominante’, sus-
tentada através da articulação de práticas conectadas, onde cada
qual, contudo, retém sua distinção e tem suas próprias modalida-
des específicas, suas próprias formas e condições de existência.
(HALL, 1980b, p. 128).
Esse ponto de vista apresenta-se como uma homologia ao
desenho do esquema de produção de mercadorias proposto por
72
Marx. A idéia é ver o processo de comunicação como um circuito
contínuo – produção-circulação-produção. Dessa forma, Hall reve-
la uma postura crítica em relação à linearidade implícita no modelo
emissor-mensagem-receptor – concepção dominante do processo
de comunicação – assim como à sua concentração na mensagem e
à ausência de uma concepção estruturada dos diferentes momentos
deste processo enquanto uma complexa estrutura de relações.
Mais tarde, refletindo sobre o “modelo de codificação/deco-
dificação”, o autor insiste em que o mesmo deve ser compreendi-
do tendo em vista o contexto teórico-metodológico vigente na
época. “[…] o modelo está posicionado, portanto, contra uma
noção particular de conteúdo pré-formado e de significado fixo
ou de mensagem que pode ser analisada em termos de transmis-
são do emissor para o receptor. Está posicionado contra uma cer-
ta unilinearidade daquele modelo de fluxo unidirecional: o emissor
cria a mensagem, a mensagem é ela mesma unidimensional e o
receptor a recebe” (HALL, 1994, p. 253).
Em decorrência, acaba posicionando-se contra a pesquisa
que utiliza métodos empíricos tradicionais e positivistas de análi-
se de conteúdo, assim como contra o survey de audiência que
detecta os “efeitos” dos media. Na verdade, desafiando o modelo
dominante de comunicação o objetivo é desestabilizar a noção
transparente de comunicação implícita no paradigma dominante.
Na apresentação do modelo, Hall enfatiza que a singularidade
do processo de comunicação se dá através da forma discursiva, da
veiculação de símbolos constituídos dentro das regras da linguagem.
é na sua forma discursiva que acontecem tanto a circulação do
produto quanto sua distribuição para diferentes audiências. Uma
vez levado a cabo, o discurso deve ser, então, traduzido – transfor-
mado, de novo – em práticas sociais, se o circuito tem de ser,
igualmente, completo e efetivo. Se não há ‘significado’, não pode
existir consumo. Se o significado não está articulado na prática,
não tem efeito. O valor dessa abordagem é que, enquanto cada
um dos momentos, em articulação, é necessário para o circuito
como um todo, nenhum deles pode garantir completamente o
próximo com o qual está articulado. Já que cada um tem sua
modalidade específica e condição de existência, cada um pode
73
constituir sua própria pausa ou interrupção do ‘desenvolvimento
das formas’, cuja continuidade do fluxo de uma produção efetiva
(isto é, ‘reprodução’) depende. (HALL, 1980b, p. 128)
Utilizando o discurso televisivo como exemplo, Hall exem-
plifica que é no espaço da produção que se constrói a mensagem.
Mas o momento da produção não se constitui num sistema isola-
do dos outros momentos; ele recupera agendas, tópicos, eventos,
enfim, temas da própria audiência e de outras fontes da estrutura
sócio-político-cultural.
Num sentido, o circuito inicia aqui [na produção]. É claro, que o
processo de produção não é desprovido de seu aspecto ‘discursi-
vo’; ele, também, é estruturado por significados e idéias – conhe-
cimento em uso a respeito das rotinas de produção, habilidades
técnicas definidas historicamente, ideologias profissionais, conhe-
cimento institucional, definições e suposições, conjeturas sobre a
audiência, etc armam a constituição do programa através dessa
estrutura de produção. (HALL, 1980b, p. 129)
Outra das preocupações de Hall, na apresentação do mode-
lo, é mostrar as conexões, as relações de interdependência entre
produção-circulação-recepção, pois na concepção dominante, até
então, de comunicação estas eram etapas distintas e separadas.
circulação e recepção são, realmente, ‘momentos’ do processo de
produção na televisão e são reincorporados via um número de
imprecisos e estruturados ‘feedbacks’ no mesmo processo de pro-
dução. O consumo ou recepção da mensagem de televisão é, desta
maneira, também um ‘momento’ em si mesmo, no seu mais amplo
sentido, do processo de produção, embora este último seja ‘pre-
dominante’ porque é o ‘ponto de partida
para a realização’ da
mensagem. Produção e recepção da mensagem televisiva não são,
contudo, idênticos mas são relacionados: eles são momentos dife-
renciados dentro da totalidade formada pelas relações sociais do
processo comunicativo como um todo. (HALL, 1980b, p. 130)
Nesse modelo existe uma relação entre a codificação da men-
sagem, no âmbito da produção, e sua decodificação, no nível da
recepção. No entanto, esses dois momentos não constituem uma
identidade imediata, ou seja, os códigos utilizados pela codificação
74
e pela decodificação podem não ser perfeitamente simétricos. “As
assim chamadas ‘distorções’ ou ‘mal-entendidos’ [sobretudo, na
concepção dominante de comunicação] decorrem precisamente
da falta de equivalência entre os dois lados na troca comunicativa.
Isso, uma vez mais, define a ‘autonomia relativa’ – mas com ‘de-
terminação’ – da entrada e saída da mensagem nos seus momen-
tos discursivos” (HALL, 1980b, p. 131).
Como implicação direta disso, vê-se que o sentido da mensa-
gem não é fixo, ao contrário, é polissêmico. Hall é enfático a esse
respeito tanto no texto em que esboça o modelo quanto em entre-
vista posterior em que comenta a respeito. “Se você lê o jornal,
existe uma noção presente que trabalha contra o veio de um mo-
delo superdeterminista de comunicação. Daí a noção de que o
significado não está fixo, de que não existe uma lógica determi-
nante global que pode permitir a você alguma grade [de leitura].
Essa é a noção de que o significado é mais multifacetado, é sem-
pre multirreferencial” (HALL, 1994, p. 254). Esse posicionamen-
to mostra a entrada do estruturalismo e da semiótica e seu impacto
nos estudos culturais de um determinado período.
Hall considera também fundamental, para a compreensão
de sua proposta, identificar o contexto político do debate do
próprio marxismo onde o “modelo de codificação/decodifica-
ção” foi formulado.
Existe um argumento a respeito do modelo base-superestrutura, a
respeito da noção de ideologia, linguagem e cultura como secundá-
rio, como não constitutivo, mas somente como constituído pelos
processos socioeconômicos. Existe [também] a introdução de uma
noção de política na cultura. As questões políticas, também, têm de
ocupar-se com a construção e reconstrução do significado, a forma
pela qual o significado é disputado e estabelecido. Esses processos
não são secundários […] mas uma autonomia relativa de eficiência,
que lhes é específica, tem de ser dada a eles. Essa questão não é, no
sentido estrito, política; não é um projeto político que pode ser
claramente extraído do texto. Ela dá suporte para que pensemos
sobre as questões políticas. (HALL, 1994, p. 254)
O modelo desenhado por Hall sinaliza – mesmo que frou-
xamente – uma futura mudança de uma posição caracterizada
75
pela sobredeterminação implícita na tese da ideologia dominan-
te para um posicionamento mais complexo, associado à noção
de hegemonia de Gramsci, pois Hall reivindica estar tratando de
“[...] um modelo do que chamo de ‘articulação’, um entendimen-
to dos circuitos do capital como uma articulação dos momentos
da produção com os momentos do consumo, com os momentos
da realização, com os momentos da reprodução” (Idem, p. 255).
Através de categorias da semiologia articuladas a uma noção
de ideologia, Hall insiste na pluralidade, determinada socialmen-
te, das modalidades de recepção dos programas televisivos. Argu-
menta, também, que podem ser identificadas três posições
hipotéticas de interpretação da mensagem televisiva: uma posição
“dominante” (chamada, também, de “preferida” ou “preferenci-
al”), quando o sentido da mensagem é decodificado segundo as
referências da sua construção;4 uma posição “negociada”, quando
o sentido da mensagem entra “em negociação” com as condições
particulares dos receptores;5 e uma posição de “oposição”, quando
o receptor entende a proposta dominante da mensagem mas a in-
terpreta segundo uma estrutura de referência alternativa.6
Em avaliação posterior, Hall (1994, p. 265) reconhece que
esse aspecto do modelo – a recepção – não está suficientemente
desenvolvido, pois “o problema, se se transferir essas duas posi-
ções para a política, é que se retorna a uma posição muito deter-
minista. Tem-se a falsa consciência de uma leitura perfeitamente
transparente ou a matéria revolucionária perfeita do sujeito inva-
riavelmente oposicionista. Por isso, eu quero alguma coisa no
meio. Portanto, eu simplesmente falo sobre o código negociado”.
Além disso, na sua opinião, esse modelo homogeneíza de-
mais o nível de codificação, não dando abertura para o espaço
contraditório dentro dos meios de comunicação enquanto insti-
tuições. “[O modelo] Trata a institucionalização da comunicação
como excessivamente unidimensional, como demasiadamente ar-
ticulada à ideologia dominante, de uma maneira direta” (HALL,
1994, p. 263).
Hall reconhece, ainda, que essas posições devem ser testadas
empiricamente e refinadas. Na mesma entrevista, já citada, proble-
matiza a transformação de seus comentários sobre a codificação e a
76
recepção num “modelo”: “Eu não penso [que o modelo] tenha o
rigor teórico, a consistência interna lógica e conceitual para tal. Se
ele tem algum valor, agora e mais tarde, é por aquilo que sugere. Ele
sugere uma aproximação; revela novas questões. Ele mapeia o terre-
no. Mas é um modelo que tem de ser manipulado, desenvolvido e
alterado” (HALL apud CRUZ E LEWIS, 1994, p. 255).
Contudo, no texto em questão, surgem dubiedades, pois Hall
ora refere-se a “sentidos” ou “significados” preferidos ora a “leitu-
ras” preferidas, ou seja, tanto mensagens (codificadas no momen-
to da produção) quanto leituras (localizadas no momento da
recepção) podem ser construídas no âmbito do “hegemônico do-
minante”. Por essa razão, Hall é questionado. As questões sur-
gem em torno de onde se localiza preferencialmente esse processo:
é no texto ou, entendida em um sentido político e social amplo,
na cultura? E mais, do ponto de vista da decodificação, quais são
as conseqüências, tanto teóricas como políticas, de situar essa
modalidade num determinado momento ou noutro do circuito
(cf. CRUZ E LEWIS, 1994, p. 261)?
Hall tenta explicar essa situação quase vinte anos depois de
publicar o “modelo de codificação/decodificação”:
leituras preferidas dão a impressão de assumir o lado decodifican-
te, ao passo que sentido preferido está no âmbito codificante, não
no decodificante. Por que ele está lá? Bem, está lá porque não
quero um modelo de um circuito que não tenha poder dentro
dele. Não quero um modelo que seja determinista, mas não quero um
modelo sem determinação (grifo meu). E, por conseguinte, não penso
que as audiências estão na mesma posição de poder daqueles que
significam o mundo para elas. E leitura preferida é simplesmente
um modo de dizer que se escreve os textos a partir do controle dos
aparatos de significação do mundo, do controle dos meios de
comunicação, e – em alguma extensão, [a leitura preferida] tem
um formato determinante. Suas decodificações vão ter lugar em
alguma parte dentro do universo da codificação. Um está tentan-
do englobar o outro.Transparência entre o momento da codifica-
ção e decodificação é o que chamaria do momento da hegemonia.
Para ser perfeitamente hegemônico é ter cada sentido que você
quer comunicar entendido pela audiência somente daquela ma-
neira. Um tipo de sonho do poder – nenhum chuvisco na tela,
77
apenas audiência totalmente passiva. Agora, meu problema é que
não creio que a mensagem tenha somente um significado. Então,
eu quero apostar numa noção de um poder e estruturação no
momento de codificação que, não obstante, não apague todos os
outros possíveis sentidos. (HALL, 1994, p. 261)
Numa avaliação geral sobre os paradigmas dos estudos de
audiência, Morley (1989a, p. 17) situa o modelo de Hall contra a
perspectiva dos efeitos, assim
como a dos usos e gratificações,
mas ressalta que
ele [Hall] toma dos teóricos dos efeitos a noção que a comunica-
ção de massa é uma atividade estruturada na qual as instituições que
produzem as mensagens têm poder para fixar agendas e definir te-
mas. Isto é mover-se da idéia de poder do meio para construir o
comportamento da pessoa num certo modo (como efeito direto
que é causado pelos estímulos do meio) mas é, também, manter
uma noção do papel dos meios de comunicação em estabelecer
agendas e prover categorias e estruturas culturais dentro das quais
membros da cultura tenderão a operar. (grifo meu)
Apesar do texto em tela explicitar uma posição de abertura
em relação ao âmbito da recepção, reconhecendo a existência,
principalmente, de leituras negociadas,7 fica claro o papel central
exercido pelo “analista” ou pelo “crítico”, assim como da ferra-
menta da análise textual, o que, por sua vez, é uma “decodifica-
ção” do mesmo pesquisador. Embora uma certa noção de texto
seja posta em questão nesse estudo, é ainda em torno de uma
outra noção de “texto” que esse modelo está construído: seja ele
um programa de TV, a fala de um sujeito/receptor ou a “leitura”
de um “analista”.
De outro lado, o modelo de Hall, também, propõe um circui-
to: primeiro, a análise da mensagem para observar um sentido do-
minante; depois, a audiência, para ver as variações de “leituras”; e
por último, a checagem destas com o texto original. Assim, é o
texto que permanece o locus privilegiado. O debate situa-se em tor-
no do papel do texto, seja na sua relação com o processo de produ-
ção ou com o consumo, e, por fim, na articulação entre os três.
Na avaliação de Colin Sparks (1996), esse modelo é quase
inteiramente semiótico, sobretudo porque localiza a questão das
78
diferentes decodificações decorrentes principalmente da natureza
polissêmica do âmbito conotativo. Além disso, considera que não
existe aí nenhum esforço para demonstrar como a codificação do
discurso televisivo pode estar relacionada à estrutura da sociedade.
Isso revela a influência do estruturalismo na construção des-
se modelo de análise, pois se o que está em foco é a produção de
sentido, por sua vez, esta se estabelece através da linguagem. Daí
o interesse numa teoria da linguagem que, de certa forma, divor-
cia-se da experiência social. A ênfase num todo estruturado ou
numa totalidade social às custas da experiência ou da ação huma-
na, acaba endossando uma perspectiva de reprodução social.
De outro lado, deve-se apontar o fato que, para Hall, as di-
versas decodificações possíveis de um determinado texto estão
sempre relacionadas à experiência das audiências. Logo, o desejo
de reter essa noção (de experiência, ação humana) demonstra que
o modelo de codificação/decodificação proposto não se encontra
inteiramente dentro do campo estruturalista.
É de especial importância ressaltar que o elemento estruturalis-
ta aponta para a natureza relativamente determinada da vida cultural
e das formas culturais sob o capitalismo, já o elemento culturalista
valoriza a experiência e acentua a autonomia relativa da cultura. O
ponto crítico, então, situa-se na discussão do grau dessa autonomia
relativa. Ao não resolverem essa tensão entre determinação e capaci-
dade de ação dos sujeitos, assim como entre níveis de estruturação
social e discursiva (neste aspecto, tem sido reiterada sua inter-rela-
ção), os estudos culturais se fragilizam teoricamente.
Se adotada a definição de ideologia de Althusser, que a com-
preende como um marco onde os homens interpretam, dão senti-
do, experienciam e vivem as condições materiais nas quais se
encontram, a mudança cultural é quase impossível. Vai ser justa-
mente na passagem para a influência gramsciana que se assume
uma noção de determinação menos mecanicista e se consegue
perceber como a mudança é construída dentro do sistema.
No entanto, o acento no debate teórico da época nessa noção
de ideologia que enfatiza o discurso dominante problematiza a
idéia que vinha sendo trabalhada pelos pesquisadores do CCCS,
no mesmo período, sobre a ação e papel das subculturas.
79
Num trabalho coletivo de 1975 sobre a cultura da juventu-
de da classe trabalhadora nos anos 50, tem-se como definição
de cultura:
A ‘cultura’ de um grupo ou classe é o ‘modo de vida’ caracterís-
tico e distintivo do grupo ou classe, os sentidos, valores e idéias
corporificados nas instituições, nas relações sociais, em sistemas
de crenças, valores e costumes, nos usos de objetos e da vida
material. […] A cultura inclui os ‘mapas de sentido’ que fazem as
coisas intelegíveis para seus membros. Esses […] [mapas de sen-
tido] são objetivados nos padrões da organização e das relações
sociais através dos quais o indivíduo torna-se um ‘indivíduo
social’. […] Cultura é a forma que as relações sociais de um
grupo são estruturadas e modeladas, mas é, também, o modo
que essas formas são experienciadas, entendidas e interpretadas.
(CLARKE, HALL ET AL., 1975, p. 10)
 É clara a associação dessa definição com as formulações de
Williams, com a definição expressiva de cultura. Está aí manifes-
to, também, o princípio de que a classe social é um elemento
definitivo na experiência cultural. E embora não esteja denomina-
do é, também, visível a relação com o conceito de estrutura do
sentimento.
Entretanto, na seqüência do trabalho os autores modificam
suas posições originais. Na tentativa de integrar as contribuições
de Gramsci e Althusser, eles vão sugerir que as subculturas devem
ser vistas enquanto formas “[…] dentro das quais modos ‘imagi-
nários’ de resolver as contradições reais que os diferentes grupos
enfrentam, mas que são incapazes de solucionar praticamente,
são apresentadas, vividas e exercitadas” (BENNETT, MARTIN, MER-
CER e WOOLACOTT, 1989, p. 41).
Nesse momento se mostra, também, a incorporação da idéia
de hegemonia:
Gramsci usou o termo ‘hegemonia’ para referir-se ao momento em
que uma classe dominante é capaz não somente de coagir uma
classe subordinada a sujeitar-se aos seus interesses, mas de exercer
uma ‘hegemonia’ ou ‘autoridade social total’ sobre as classes su-
bordinadas. Isso envolve o exercício de um tipo especial de poder
80
– o poder de conceber alternativas e incluir oportunidades para
ganhar e forjar o consentimento, de tal forma que a outorga de
legitimidade às classes dominantes aparece não somente como ‘es-
pontânea’ mas, também, como natural e normal. (CLARKE, HALL
et al., 1975, p. 38)
 O terreno onde a hegemonia é ganha ou perdida é o terreno
das superestruturas, ou seja, as instituições da sociedade civil e o
estado. A hegemonia trabalha através da ideologia, mas não con-
siste em falsas idéias, percepções e definições. Além disso, nunca
é sustentada por uma única classe. Sustentando a tese de que “seu
caráter e conteúdo [da hegemonia] podem somente ser estabele-
cidos observando situações concretas em momentos históricos
concretos” (CLARKE, HALL ET AL., 1975, p. 40), o trabalho apre-
senta uma análise conjuntural de um momento histórico onde se
vê funcionando ou aplicado o conceito de hegemonia numa deter-
minada formação social.
Porém, a partir de um certo momento da pesquisa, o foco
passa a ser a relação entre estilo (uma forma particular de fazer
algo) e juventude, isto é, como classe social e geração interatuam
na produção de um grupo distinto de estilos; como os materiais
disponíveis ao grupo são construídos e apropriados numa forma
de resposta visivelmente organizada.
Dessa forma, as várias subculturas jovens passam a ser iden-
tificadas pelas diversas maneiras de incorporar objetos/símbolos
no seu cotidiano.
Os objetos estavam disponíveis lá, mas eram usados (grifo meu)
pelos grupos na construção de estilos. Mas isso significa não
simplesmente apanhá-los, mas construir ativamente (grifo meu)
uma seleção específica de coisas e bens num estilo. E isso fre-
qüentemente envolve […] subverter e transformar essas coisas
em seu significado e uso conhecido para outros sentidos e usos.
Todas as mercadorias têm um uso social e, portanto, um signifi-
cado cultural. (CLARKE, HALL ET AL., 1975, p. 54)
Nas leituras realizadas desse “estilo” da subcultura aparece
um tratamento particular. É a semiótica que inspira essa análise.
Assim, os objetos e práticas que marcam essa subcultura são
81
identificados como um estilo coerente e internamente articulado
(SPARKS, 1996, p. 85).
Esse trabalho de Clarke, Hall e outros evidencia uma tensão
entre o entendimento da cultura enquanto expressiva, ou seja, uma
marca da aproximação teórica oriunda nas formulações dos “fun-
dadores” dos estudos culturais, e a abordagem estruturalista com
sua ênfase nas estruturas de significação. Em outros termos, trans-
parece um confronto entre a ação do sujeito e a determinação do
sujeito pela linguagem.
Ainda no mesmo período, um coletivo do CCCS, composto
por Stuart Hall, Chas Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e
Brian Roberts8 (1978), examina porque e como os temas da
raça, crime e juventude, condensados na imagem do “assalto de
rua”, serve como articulador de uma crise e seu condutor ideo-
lógico. O cenário maior é a crise de hegemonia que a sociedade
britânica vive nos anos 70.
Aí são analisados os espaços onde a hegemonia é construída.
A ênfase incide nos níveis civil, político, jurídico e ideológico de
uma formação social, ou seja, na superestrutura. Por essa razão, a
análise dá mais atenção às mudanças nas relações de força, na luta
política, na alteração das configurações ideológicas, do que aos
movimentos econômicos. No entanto, os autores reconhecem que
“hegemonia, no sentido de Gramsci, envolve a ‘passagem’ de uma
crise da base material da vida produtiva para as ‘complexas esferas
das superestruturas’. Apesar disso, o que a hegemonia assegura,
em última análise, são as contradições sociais de longo curso para a
continuidade da reprodução do capital” (HALL ET AL., 1978, p. 218).
A tese sustentada é de que o “assalto de rua” estava relaciona-
do com uma mudança na administração da luta de classes do esta-
do capitalista de uma forma consensual para uma mais coercitiva.
Nessa direção, a crise foi ideologicamente construída pelas ideo-
logias dominantes para ganhar o consenso nos meios de comuni-
cação e, então, construir a base na “realidade”, isto é, na opinião
pública. Desse modo, “concordando” com a visão de crise que
ganhou credibilidade nos escalões do poder (os meios de comuni-
cação), a consciência popular também foi ganha para dar suporte
as medidas de controle que esta versão da realidade social exigia.
82
Com o objetivo de demonstrar essa tese, o trabalho reconstitui a
história da Grã-Bretanha a partir do pós-guerra, mostrando a cons-
trução do consenso e o seu colapso.
Outro exemplo de análise conjuntural através do uso do con-
ceito de hegemonia se mostra na explicação, considerada polêmi-
ca pela esquerda britânica, da ascensão do thatcherismo (HALL,
1983) não como reflexo da crise vivida pela sociedade britânica
nos 70, mas como resposta à crise. Novamente, o olhar recai
particularmente nas dimensões políticas e ideológicas, negligen-
ciadas em outras análises. A adesão popular ao repertório do tha-
tcherismo, calcado basicamente no rejuvenescimento dos temas
do anticoletivismo e do antiestatismo, transformou essa doutrina
em senso comum. Mas foi o discurso do thatcherismo que conse-
guiu, com sucesso, neutralizar as contradições entre povo e Esta-
do (bloco de poder) e ganhar a adesão popular, mostrando sua
faceta populista.
Esses três trabalhos – Clarke, Hall et al. (1975), Hall et al.
(1978) e Hall (1983) – compõem uma resposta a uma situação
particular, vivida pela sociedade britânica num período histórico
determinado. São trabalhos de intervenção, desenhados para ter
um efeito na política social do momento. Apesar de serem análi-
ses conjunturais, exemplificam uma concepção teórica que articu-
la cultura e poder, cultura e hegemonia, mostrando uma densidade
tanto teórico-analítica quanto descritiva.9
Diante dessa produção, surge um certo mal-estar na incor-
poração de teses althusserianas que contradizem a história dos es-
tudos culturais, à luz da contribuição gramsciana. É manifesta a
tensão entre essas contribuições: Gramsci abrindo o corpo teórico
para refletir sobre a “agência humana” e Althusser impondo limita-
ções estruturais, ou seja, na ênfase no todo estruturado ou na tota-
lidade social às custas do processo, da experiência, da “agência”.
Nada melhor do que reproduzir as palavras do autor que
pensou sobre a mediação entre esses dois corpos teóricos – cultu-
ralismo e estruturalismo – para explicar tal enfrentamento, sobre-
tudo, no que diz respeito à compreensão da concepção de
experiência: “Enquanto que, no culturalismo, experiência era a
base – o terreno ‘do vivido’ – onde consciência e condições se
83
cruzam, o estruturalismo insistia que a ‘experiência’ não podia,
por definição, ser a base de nada, visto que alguém somente podia
‘viver’ e experienciar suas próprias condições dentro e através das
categorias, classificações e estruturas da cultura. Essas categorias,
contudo, não surgiam da ou na experiência; antes, a experiência
era seu efeito” (HALL, 1996b, p. 41).
Na tentativa de construir um posicionamento que dê conta
dessa oposição, Hall critica ambos os paradigmas e vai gradativa-
mente incorporando cada vez mais as formulações gramscianas.
Assim, a influência de Althusser vai ficando secundarizada, em-
bora Hall sempre reconheça sua importância, principalmente,
concentrada nos primeiros escritos daquele autor (1965/1969),
para pensar a superestrutura.
Enfim, é necessário ver, em resumo, como Hall articulou
sua noção de ideologia, afastando-se do marxismo estruturalista.
“Por ideologia, refiro-me às estruturas mentais – as linguagens,
os conceitos, as categorias, imagens do pensamento e os sistemas
de representação que diferentes classes e grupos sociais desenvol-
vem com o propósito de dar sentido, definir, simbolizar e impri-
mir inteligibilidade ao modo como a sociedade funciona” (HALL,
1996h, p. 26). Essa definição permite ver que interesses de dife-
rentes grupos sociais são representados e articulados em diferen-
tes ideologias.
Permanecendo, ainda, dentro da tradição marxista, essa defi-
nição, de corte gramsciano, procura dar conta de como certos
discursos políticos na luta pela hegemonia são construídos e re-
construídos, expandem-se ou se restringem, ganham ascendência
ou a perdem.
Entretanto, o desprendimento da noção althusseriana de ide-
ologia não faz com que Hall perca a referência na linguagem. Ao
contrário, ele insiste na função “multirreferencial” da linguagem,
permitindo, assim, que a mesma relação social, ou fenômeno,
possa ser diferentemente representada e construída. “É precisa-
mente porque a linguagem, o meio de pensamento e cálculo ide-
ológico, é ‘multiacentuada’ como Volosinov colocou, que o campo
do ideológico é sempre um campo de ‘cruzamento de ênfases’ e
de ‘cruzamento de interesses sociais diferentemente orientados’”
84
(HALL, 1996h, p. 40). A partir daqui, a incorporação do aporte
gramsciano na vertente britânica dos estudos culturais passa a
ser fundamental, acarretando uma série de conseqüências teóri-
co-metodológicas.
Todavia, antes de recuperar essa discussão sobre a contribui-
ção gramsciana para os estudos culturais, é preciso reconstituir o
debate sobre ideologia, do ponto de vista latino-americano – nos
autores em foco neste trabalho.
O território latino-americano viveu um período sob o domí-
nio de uma postura estruturalista, nos seus próprios termos. É
bastante conhecida a influência da teoria da dependência cultural
e a proposta de desmascaramento ideológico das mensagens dos
media. Esta última principalmente
viabilizada através da moda
althusseriana vigente, sobretudo nos anos 70, na pesquisa em co-
municação. Aí prevaleceu de forma incontestável e sem media-
ções a tese de determinação das estruturas macrossociais.
Martín-Barbero (1995a, p. 148) avalia que os estudos de co-
municação propriamente latino-americanos fundam-se exatamente
na teoria da dependência. “A teoria da dependência vai ser a gran-
de inspiradora, primeiro, da articulação dos estudos dos meios ao
estudo das estruturas econômicas e das condições de propriedade
dos meios. E, segundo, do estudo do processo ideológico, das
análises dos conteúdos ideológicos dos meios”.
Enquanto fundamentada nessa base teórica, a pesquisa em
comunicação difundiu uma concepção reprodutivista de cultura.
A cultura era basicamente ideologia. Nesse caso, não existia ne-
nhuma especificidade no âmbito da comunicação. Estudar os pro-
cessos de comunicação era estudar processos de reprodução. Não
existia nenhuma especificidade conceitual nem histórica nos pro-
cessos de comunicação. De tal forma que as ciências sociais, nesse
momento a economia e a sociologia, dissolveram o que podería-
mos chamar de novo objeto. Dissolveram-no nas suas próprias
perguntas sobre a luta de classes e os aparelhos de Estado. (MAR-
TÍN-BARBERO, 1995a, p. 149)
O poder comunicacional foi concebido como um atributo de
um sistema monopólico que administrado por uma minoria de
85
especialistas, podia impor valores e opiniões da burguesia às demais
classes. A eficiência desse sistema residia não somente na ampla difu-
são que os meios massivos proporcionavam às mensagens dominan-
tes, mas, também, na manipulação inconsciente dos receptores.
Não interessa, aqui, recuperar as características teórico-me-
todológicas, limitações, nem críticas dessa fase, que já conta
com uma bibliografia específica. O objetivo é ler em chave lati-
no-americana, isto é, nos trabalhos de Jesús Martín-Barbero e
Néstor García Canclini, a incorporação do debate sobre ideolo-
gia, cultura e poder. A exemplo da reflexão britânica, recém
apresentada, os posicionamentos desses autores latino-america-
nos foram sendo construídos num terreno de rejeição e confron-
to às teses do reducionismo e determinismo econômico implícitas
num certo marxismo, logo, também, a uma determinada con-
cepção marxista de ideologia.
Para iluminar as relações entre cultura, ideologia e poder,
especialmente, na “escritura massiva”, o trajeto percorrido por
Jesús Martín-Barbero em Comunicación masiva: Discurso e poder
(1978) é significativo a esse respeito.Um esclarecimento antes de
iniciar propriamente a exposição do assunto em questão é obriga-
tório. Convém destacar esse texto, pois ele é tributário do mo-
mento no qual foi escrito, ou seja, a década de 70 na América
Latina e a equivalente caracterização da pesquisa em comunica-
ção. Porém, ele propõe deslocamentos em relação às teorias do-
minantes no período e, de modo incipiente, já se delineiam nele
algumas sugestivas pistas que alcançarão densidade teórica e difu-
são mais plena em De los medios a las mediaciones – Comunicación,
cultura y hegemonía (1987).
Distanciando-se do modelo funcionalista, em Comunicación
masiva: Discurso e poder (1978), Martín-Barbero localiza-se na fron-
teira do campo do estruturalismo e da análise semiológica para
pensar a prática comunicativa, na América Latina, como marca da
malha global de dominação. Contudo, os questionamentos propos-
tos ancoram-se em teorias da linguagem. Por essa razão, no final
desse trabalho, o autor liga a primeira reflexão teórica com a práti-
ca discursiva da informação jornalística e do espetáculo televisivo.
Aí, o objeto, ou seja, a análise do próprio texto, se impõe.
86
Acredito que o gérmen dessa proposta está contido na sua tese
de doutoramento La palabra y la acción – Por una dialéctica de la libera-
ción (1972) como a própria combinação das palavras do seu título
sugere. Estando na França no final dos anos 60 e início dos 70,
vivencia o intenso debate condensado entre posições estruturalistas e
pós-estruturalistas. E o resultado é essa investigação, que partindo da
filosofia da linguagem tem o duplo propósito de questionar a lingüís-
tica a partir das ciências sociais, mas somente depois de ter desmon-
tado uma concepção tradicional da sociologia com instrumental
lingüístico e semiótico (HERLINGHAUS, 1998, p. 15).
Também aparece nessa tese o esforço de articular a análise
teórica ao imperativo das condições históricas, isto é, o esforço
teórico tem de ser realizado à luz de uma realidade mais próxima,
no caso, a latino-americana (quando em 1997 sua obra foi discuti-
da na Universidade Central de Bogotá em comemoração aos dez
anos de publicação de De los medios a las mediaciones, Martín-Barbe-
ro reconhece que esse viés de sua reflexão se revela desde sua tese
de doutoramento). Esse mesmo aspecto repete-se no trabalho de
1978. Enfaticamente condena a omissão das condições de produ-
ção nas teorias dominantes, isto é, das condições históricas de do-
minação, na tentativa de explicar os processos de comunicação.
A teoria crítica que se foi esboçando não busca competir com o
mercado das originalidades senão com algo bem distinto: denun-
ciar e dar armas, despertar e traçar estratégias – que o importante é
não perder de vista o caráter histórico e estrutural dos processos, que a
dimensão ideológica das mensagens é unicamente legível a partir destes
e que tanto essa dimensão como a trama mercantil dos ‘meios’ têm que
ser vistas sempre articuladas às condições de produção de uma existência
dominada. (MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 14, grifo meu)
Metido profundamente na realidade latino-americana, admi-
te a expansão da ideologia, inclusive, no campo da teoria e da
ciência. “Os críticos latino-americanos não rejeitam a ciência, en-
tendem de outra maneira sua objetividade. Não é que […] tenham
oposto a ciência à ideologia e fiquem com esta última. É que expe-
rimentam a cada dia como a ideologia trabalha e controla qualquer
prática, qualquer discurso, incluído o científico” (1978, p. 21).
87
O desafio temático, exposto nesse texto, diz respeito à enun-
ciação, explicitando a importância da linguagem. Linguagem que
permeia e se prolonga através do processo comunicativo, dissi-
mulando os rastros da dominação. No entanto, essa afirmação é,
também, ruptura com uma outra noção de linguagem que desco-
necta o signo dos lugares de sua produção, que dificulta restabele-
cer as relações do “texto” com seu contexto histórico.
Avaliando a contribuição do projeto intelectual de Martín-
Barbero para o pensamento latino-americano da comunicação,
Javier Protzel (1998, p. 39) detecta com precisão o deslocamento
proposto por Martín-Barbero no final dos anos 70.
Reposicionamento que implica simultaneamente aproximação e
distância: empatia para interpretar o vivido mas, também, ruptura
para decompor o signo e reconstruí-lo com atitude semiótica, rela-
cionando lugares de produção de sentido antes inconexos. Não
mais a fria autópsia do enunciado, mas a calidez da enunciação, de
um sentido registrado na medida em que é produzido, fechando
assim a fenda sujeito-objeto num ato de recuperação mútua.
Dessa forma, a proposta básica de Martín-Barbero (1978, p. 46)
é deslocar o estudo da comunicação do espaço organizado pelo
conceito de estrutura para o espaço que abre o conceito de práti-
ca. “O que intencionamos pautar é que, enquanto a comunicação
continue sendo pensada como alguma coisa superestrutural, não
existirá forma de romper com o espaço da estrutura e o sistema e,
portanto, não será possível conceber sua inserção multidimensio-
nal e plurideterminada no modo de produção, nem muito menos
numa formação social concreta.”
Através do conceito de prática, é possível pensar a ação dos
media como discurso mas sem confundi-lo com exclusivamente
mensagem, estruturas de significação
ou problemas de conteúdo.
Essa perspectiva reduz o discurso a problemas e relações de signi-
ficação, descartando sua inserção no processo histórico e desarti-
culando-se dos sujeitos.
Discurso como prática discursiva não se trata de alguma coisa que
está aí e que depois tem que ver como se relaciona com o modo de
88
produção, mas é parte integrante, constitutiva dele. […] Nome-
aremos, então, discurso dos meios o dispositivo da mediação de
massa enquanto ritual operativo de produção e consumo, arti-
culação de matérias e sentidos, aparatos de base e disposição em
cena de códigos de montagem, de percepção e reconhecimento.
(MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 46)
Entretanto, para alcançar essa nova formulação do proble-
ma, Martín-Barbero (1978, p. 41) realiza uma crítica densa tanto
às limitações do modelo informacional-lingüístico quanto às aná-
lises políticas, vigentes na época. Na primeira, o aspecto destaca-
do é sua concepção mecânica do social, o ocultamento da história,
da dominação, do conflito, das contradições.
A formalização que a lingüística leva a cabo opera, de fato, como
um descarte radical de sua densidade histórico-social, colocando a
descoberto uma concepção neutralizante e redutora da complexi-
dade e a opacidade da linguagem, expulsando tudo aquilo que
excede e subverte o tranqüilo ir e vir da informação, tudo aquilo
que é rastro do sujeito histórico e pulsional, isto é, tudo aquilo
que não é mero intercâmbio senão produção do que se intercam-
bia, dos intercambiantes e do próprio intercâmbio.
A segunda ruptura identificada nessa trajetória diz respeito à
redução dos processos comunicativos à sua dimensão “ideológico-
negativa”, ou seja, a instrumento de reprodução ideológica da
classe dominante e, portanto, reflexo do econômico. Dessa for-
ma, a metáfora base-superestrutura é questionada: “[…] o que se
torna impensável [a partir dessa metáfora] é a produção (grifo meu)
que habita e atravessa a ‘reprodução’. O ideológico como produ-
ção (grifo meu) e não mera manifestação instrumental de interes-
ses específicos” (MARTÍN-BARBERO,1978, p. 43).
Durante todo o itinerário teórico proposto, Martín-Barbero
persegue este questionamento: quais são as condições de produ-
ção, de existência e de operação do discursivo? Ao passar por Saus-
sure, Barthes, Greimas, Chomsky, Austin, entre outros, é essa a
questão que norteia o trajeto. Ao mesmo tempo em que revela as-
pectos dessas proposições que contribuem para a elaboração de
uma teoria crítica do discurso, ilumina seus limites, criticando-os.
89
Martín-Barbero assume, então, que recolocar de um modo
novo a problemática da comunicação requer um posicionamento
político que tem como eixo o questionamento do social, isto é, o
reconhecimento de uma sociabilidade constituída pelo conflito e,
por essa razão, tramada com as relações de dominação. “[...] di-
gamos de imediato que esse discurso não revela seu sentido a não
ser lido a partir das relações de poder e dos conflitos que esse
poder gera” (1978, p. 118).
Embora Martín-Barbero afirme que o espaço dessa reflexão
que persegue compreender “como na produção dos discursos se
inscreve o conflito” seja o materialismo histórico, seu posiciona-
mento implica rupturas com o economicismo e com o entendi-
mento da produção de discursos enquanto um fenômeno
superestrutural.
Contudo, analisar politicamente a problemática dos discur-
sos sociais é adentrar no problema do ideológico. “O ideológico
se constitui no processo de produção dos discursos sociais, na
materialização de um sentido que é inabordável por fora deles.
O ideológico não é um produto a consumir mas a própria forma do
consumo” (1978, p. 116, grifo meu).
Através da própria análise da “escritura massiva”, esse au-
tor conclui: “O trabalho ideológico […] se situa na própria es-
critura, visto que é nela, e não em nenhum tipo de conteúdos,
que se configura e plasma a organização desse espaço cujas ‘fi-
guras’ podem variar ao infinito, a começar pelas figuras simpló-
rias das fotonovelas as muito mais complexas de certas novelas
policiais ou de algumas séries de televisão norte-americanas”
(MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 224).
Além de rastrear essas marcas da dominação, Martín-Barbero
propõe outra articulação: a do desejo, a do sujeito pulsional. Jus-
tifica a inclusão desse aspecto na medida em que implica a possi-
bilidade de entender a extensão do econômico, isto é, como a
economia libidinal trabalha e é trabalhada pela ordem da domina-
ção, como o dispositivo da sexualidade se inscreve no discurso,
integrando-o. A contribuição fundamental desse aporte psicanalí-
tico reside na eliminação da pretendida exterioridade do imaginá-
rio em relação ao real.10
90
 Martín-Barbero vai propor, então, uma concepção de discur-
so-prática. Se pensado como prática, o discurso carrega-se de um
volume histórico. Ao mesmo tempo que implica a relação do discur-
so com a língua, o discurso-prática transborda esse limite e se cons-
titui na trama da intertextualidade. “[…] um discurso não é jamais
uma mônada, mas o lugar de inscrição de uma prática cuja materia-
lidade está sempre atravessada pela de outros discursos e outras prá-
ticas. Intertextualidade diz, nesse caso, não só das diferentes dimensões
que num discurso fazem visível e analisável a presença e o trabalho de
outros textos, [...] mas diz, também, da materialização no discurso
de uma sociedade e de uma história” (1978, p. 137).
Resta, enfim, enfatizar a crítica desse autor à homologia do
conceito de cultura ao de ideologia, assim como a impossibilidade
de continuar pensando o sistema ideológico como uma unidade de
sentido. Ao contrário, propõe vê-lo como “algo fragmentário e ins-
tável”, contudo, incrustado numa estrutura, onde a especificidade
da análise ideológica reside no estudo das relações do discurso e
suas condições de produção. Entretanto, analisar o processo de
produção e consumo dos discursos implica, também, o estudo dos
sujeitos produtores. “Sujeitos que […] não se definem por algum
tipo de intencionalidade, mas pelo ‘lugar’ que ocupam no espaço
social e pela forma como inscrevem sua presença no discurso”
(MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 121). Aqui se manifesta essa tensão
entre o peso da estrutura e a emergência da ação dos sujeitos.
O que vem a seguir, depois dessas proposições, encontra-se
na seqüência do trabalho desse autor, que culmina com a publica-
ção de De los medios a las mediaciones (1987). Aí é, fundamental-
mente, a contribuição gramsciana que vai permitir abordar a
comunicação como dimensão constitutiva da cultura e, portanto,
de produção da sociedade.
Trato novamente das relações entre cultura, ideologia e po-
der, agora em García Canclini, para depois desenhar o mapa do
ingresso de Gramsci nos estudos culturais, embora este já tenha
sido esboçado. Através de uma série de conferências realizadas no
início dos anos 80, intituladas “Pode ser hoje marxista a teoria da
cultura?”, “Reprodução social e subordinação ideológica dos sujei-
tos” e “Como se configuram as culturas populares: a desigualdade
91
na produção e no consumo”, García Canclini11 trata diretamente
de tal assunto, condensando suas observações a esse respeito. Mas
é claro que essas posições se manifestam e têm ressonância em
sua produção intelectual compreendida como um todo. Vale acen-
tuar que a intenção é discutir uma teoria da cultura na contempo-
raneidade e não, uma teoria dos meios de comunicação de massa.
Seguindo a trilha proposta por esse autor, falar de uma possí-
vel teoria marxista da cultura implica recorrer ao tratamento dado a
temática da ideologia e as questões que permaneceram em aberto a
partir desse olhar. Quatro limitações básicas, recuperadas aqui sin-
teticamente, no pensamento marxista sobre ideologia são aponta-
das por García Canclini. E são justamente nesses espaços que
contribuições de outros campos disciplinares,
assim como refor-
mulações sobre a teoria marxista da ideologia, devem ser incorpo-
radas para refletir sobre a complexidade dos processos ideológicos.
Em primeiro lugar, García Canclini aponta que a grande mai-
oria dos textos marxistas refere-se à ideologia das classes dominan-
tes. Contudo, reconhece que alguns autores marxistas se detiveram
no aspecto oposto. Mas, de uma forma geral, o conhecimento da
cultura e da ideologia dos setores populares têm sido foco de aten-
ção de antropólogos não-marxistas. Ao incorporar à problemática
das culturas populares, certos desdobramentos teórico-metodológi-
cos (por exemplo, os de Bourdieu, Williams, Cirese e Lombardi
Satriani) passam a reposicionar a problemática ideológica no espa-
ço da interação entre classes e grupos sociais e como parte da dis-
puta pela hegemonia. Assim, a ideologia aparece como um efeito
da desigualdade entre classes e das suas relações conflitivas.
Além disso, os fenômenos ideológicos passam a ser entendi-
dos não somente como derivados das classes, mas, também, como
resultantes de outras diferenciações sociais (etnias, grupos profis-
sionais, frações de classe). E assim “[…] as ideologias ou as dife-
renças culturais entre esses grupos se constituiram não somente
na produção – como na teoria marxista clássica sobre as classes –
mas, também, no consumo” (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 20). Ques-
tão que será tratada mais adiante.
Em segundo lugar, a metáfora marxista de ideologia como
reflexo contribuiu para que se atribuisse à representação, e não à
92
estrutura econômica, a responsabilidade deformadora. Assim, as
teorias do conhecimento e da cultura que aderem a essa idéia
tendem a pensar a determinação da estrutura sobre a superesturu-
tura como causal, mecânica e unidirecional. Na realidade, rebate
García Canclini (1995a, p. 18), a determinação é estrutural, re-
versível e multi-direcional: “a base material determina por múlti-
plos condutos a consciência (se podemos seguir falando essa
linguagem) e esta sobredetermina dialeticamente, também, de
forma plural, a estrutura”.
Recuperando a reflexão de outro autor marxista, associado a
posturas althusserianas – Maurice Godelier – García Canclini en-
dossa o princípio de que qualquer prática é simultaneamente eco-
nômica e simbólica. Ela existe nas relações sociais que são, por
sua vez, relações de significação. “O pensamento não é um mero
reflexo das forças produtivas; tem nelas, desde o começo, uma
condição material de seu aparecimento. […] Essa parte ideal, pre-
sente em todo desenvolvimento material, não é, desse modo, ape-
nas um conteúdo da consciência; existe ao mesmo tempo nas
relações sociais que são, portanto, também, relações de significa-
ção” (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 21).
Esse tipo de análise que identifica ideologia como “reflexo”,
diz García Canclini, fez com que ela tenha sido estudada funda-
mentalmente como sistema de representações conceituais e reper-
tório de imagens, em detrimento de sua organização material,
sendo esta a terceira limitação desse corpo teórico. Gramsci é
quem renova a perspectiva marxista, incluindo como parte do
processo ideológico, instituições que fazem possível a produção e
circulação da ideologia, isto é, um nível de materialidade.
De outro lado, através da contribuição dos estudos semióti-
cos, a ideologia passou a ser vista, sobretudo, como um sistema
de regras semânticas, isto é, como um nível de significação pre-
sente em qualquer discurso. As reflexões de Martín-Barbero e Hall
revelam esse tipo de abordagem.
E, por último, segundo García Canclini, a ênfase no estudo
da ideologia em contraposição à ciência funcionou como obstá-
culo à formação de uma teoria marxista da cultura. Através dessa
93
estratégia, a ideologia é vista como distorção e encobrimento das
relações sociais.
Alguns autores que se ocuparam das outras funções da ideologia
(por exemplo, assegurar a coesão entre os membros de cada classe
ou uma nação; garantir a reprodução de suas condições de repro-
dução) não desenvolveram adequadamente esses aspectos ‘positi-
vos’ da ideologia, como ocorreu com Althusser, porque a oposição
[da ideologia] à ciência os induziu a destacar a função negativa,
seu papel osbtaculizador para o conhecimento correto da estrutu-
ra social. (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 19)
Entretanto, a inserção da problemática da ideologia nas teo-
rias da reprodução social e da hegemonia, permite que esta seja
encarada como um componente indispensável para a reprodução
material e simbólica da sociedade, para construir o consenso e a
coesão social.
Do ponto de vista de García Canclini, é necessário afirmar a
indissolubilidade do econômico e do simbólico, do material e do
cultural. Questão colocada, em outros termos, expostos anterior-
mente, por Stuart Hall e Martín-Barbero. Incrustam-se exatamen-
te nesse ponto, dois questionamentos clássicos, ou seja, como se
efetua a mediação entre estrutura e superestrutura e como se dá a
relação entre indivíduo e sociedade, melhor ainda, como se inte-
riorizam as estruturas sociais nos sujeitos individuais e coletivos.
A proposta esboçada por García Canclini ampara-se, princi-
palmente, nas formulações de Pierre Bourdieu. Quando Bour-
dieu estuda os públicos dos museus, os perfis do gosto, a estrutura
da escola e da educação na sociedade francesa, está tratando de
explicar como se reproduz uma sociedade e como se organizam
as diferenças entre as classes sociais, enfim, como se estrutura a
cultura e a sociedade. Assim, ele trata de desvendar o processo
através do qual as classes hegemônicas, utilizando as estruturas
simbólicas – estruturas ideológico-culturais – constroem sua legi-
timidade. A teoria dos campos, do habitus e do poder simbólico
são construídas e articuladas com esse propósito.
Não cabe, aqui, recuperar essas proposições por si mesmas,
apenas os momentos onde se dá a convergência entre as idéias de
94
Bourdieu, incorporadas por García Canclini, e as dos estudos
culturais britânicos, através dos posicionamentos de Hall. E,
também, aqueles pontos onde o próprio García Canclini se afas-
ta da teoria bourdiana, unificando sua posição com a dos estu-
dos culturais.
O esquema estruturador da sociedade é a teoria dos campos
que vem substituir a divisão clássica entre estrutura e superestru-
tura. A localização de cada campo na totalidade da estrutura soci-
al remete ao princípio das diferenças entre classes sociais. Aqui,
as classes sociais não se diferenciam apenas pela sua participação
na produção, mas, também, pela diferenciação pelo consumo. “[…]
as diferenças e desigualdades se duplicam sempre por distinções
simbólicas. E essas distinções simbólicas têm por função eufemi-
zar e ‘legitimar’ a desigualdade econômica”(BOURDIEU apud GAR-
CÍA CANCLINI, 1995a, p. 37).
As formas através das quais os membros de cada classe ou
grupo reproduzem a estrutura social mediante seu comportamen-
to cotidiano conduz ao problema da interiorização das estruturas
sociais nos sujeitos. É, aqui, que a teoria do habitus se insere.
Estruturas estruturadas: porque o habitus que cada um leva den-
tro, foi estruturado a partir da sociedade, não é engendrado por
nós mesmos. Quando adquirimos a linguagem, a língua a nós
preexiste, estrutura-nos de uma certa forma para pensar e perceber
a realidade nos moldes que essa linguagem permite. Mas, por sua
vez, essas estruturas estruturadas estão predispostas a funcionar
como estruturas estruturantes, no sentido de que são estruturas
que vão organizar nossas práticas, a maneira pela qual vamos atuar
na sociedade. (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 40)
Então, sua relação com a existência de estruturas “estrutura-
das” – uma determinação social – e “estruturantes” – que organi-
zam novas práticas sociais –, aproxima essa teoria do estruturalismo
marxista. E tal laço torna-se mais estreito quando se insere a me-
diação da
linguagem e, conseqüentemente, a reprodução social.
Embora García Canclini alerte para o fato de que nem sem-
pre as práticas correspondem ao habitus na teoria de Bourdieu,
impõe-se nessa teoria uma visão reprodutivista da sociedade.
95
Seu trabalho [o trabalho de Bourdieu] nos ajuda a perceber o
pouco que podemos escolher, [pois] estamos condicionados por
uma estrutura social, pelo pertencimento a grupos, a campos, a
classes que nos fazem atuar de uma certa forma. No entanto, parece-
me que uma certa estabilidade e falta de mobilidade social na socie-
dade francesa, o caráter fortemente reprodutor, por exemplo, do
sistema escolar, que é onde ele analisa mais rígida e estaticamente o
fenômeno, tem dado pouco lugar na teoria bourdiana às práticas
transformadoras. Poderíamos dizer que falta distinguir entre as prá-
ticas como execução ou reinterpretação do habitus, e a praxis como
transformação da conduta para a transformação das estruturas obje-
tivas. Bourdieu não examina como o habitus pode variar segundo o
projeto reprodutor ou transformador de distintas classes e grupos
sociais. (GARCÍA CANCLINI, 1995a, p. 43)
Aí se inicia o distanciamento de García Canclini da teoria
bourdiana. De um lado, existe um movimento que reconhece que
as estruturas sócio-culturais condicionam as mudanças políticas,
ou dito de outra forma, a potencialidade transformadora das dis-
tintas classes sociais está limitada pela lógica do habitus de classe.
Há um reconhecimento da força da reprodução social pela inser-
ção dessa lógica no cotidiano dos sujeitos. De outro, existe uma
problematização de como inserir a ruptura nesse espectro, isto é,
um movimento que força em direção contrária.
Para mostrar conceitualmente como esses dois movimentos
podem em determinadas situações coexistir, é preciso retomar o
conceito de cultura em García Canclini. Sua noção de cultura se
situa entre a antropologia, um certo modo de tratamento da rela-
ção entre o econômico e o simbólico trabalhado pelo marxismo, e
desenvolvimentos contemporâneos da sociologia da cultura.
Em síntese, cultura é um processo de produção de fenômenos
que contribui através da representação ou reelaboração simbólica
das estruturas materiais para compreender, reproduzir ou trans-
formar o sistema social. De acordo com García Canclini,
estamos considerando [a cultura] como um lugar onde se repre-
senta nos sujeitos o que sucede na sociedade; e, também, como
instrumento para a reprodução do sistema social. […] se os sujeitos
não interiorizam, através de um sistema de hábitos, de disposições, de
S
96
esquemas de percepção, compreensão e ação a ordem social, esta
não pode produzir-se somente através da mera objetividade. Ne-
cessita reproduzir-se, também, na interioridade dos sujeitos. Essa
dimensão simbólica, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva, é nu-
clear dentro da cultura. (1995a, p. 60)
A cultura tem, portanto, uma função de conhecimento do
sistema social. No entanto, os sujeitos não somente conhecem
esse sistema social através da cultura como buscam sua transfor-
mação, procuram elaborar alternativas. E é exatamente nesse ponto
que se pode distinguir a diferença entre ideologia e cultura.
No entendimento de García Canclini, nem tudo é ideológico
nos fenômenos culturais, se ideologia for entendida como deforma-
ção do real em função dos interesses de classe, sendo esta a visão de
ideologia da maioria dos autores marxistas. Por essa razão, ele con-
servaria o termo cultura precisamente por ter uma abrangência maior.
Na verdade, cultura não pode ser intercambiável com ideo-
logia porque a primeira implica que toda produção social de
sentido é suscetível de ser explicada em relação às suas determi-
nações sociais. Esse tipo de explicação, todavia, não esgota o
fenômeno. Cultura tem uma abrangência mais vasta, pois não
só representa a sociedade, também, cumpre a função de reelabo-
rar as estruturas sociais e imaginar novas. “Além de representar
as relações de produção, contribui para reproduzi-las, transfor-
má-las e inventar outras”, diz o próprio García Canclini (1995a,
p. 23). E o conceito de ideologia, seja ela vista como deforma-
ção, reflexo ou representações das condições reais de existência,
não admite esse entendimento. Além disso, não dá para esque-
cer que ideologia, na visão marxista, é reduzida a interesses de
classe, a formas de dominação relacionadas à classe dominante.
Residiriam aí os motivos pelos quais os estudos culturais vão
dar preferência ao termo cultura.
Através da reconstituição dos três itinerários – Hall, Mar-
tín-Barbero e García Canclini – conclui-se que esses autores
percorreram percursos diferenciados, porém coincidentes, nos
pressupostos de que a cultura não é determinada pela estrutura
e que a ideologia não é mero reflexo das condições de produ-
ção e que ambas são constituídas e constituem a estruturação
97
da sociedade. É para esse ponto que converge a reflexão dos três
autores em pauta: a cultura/comunicação como constitutiva da
trama social, portanto contribuindo tanto para a reprodução quanto
para a transformação e renovação do tecido social vigente. E, em
certo sentido, Gramsci será o ponto de confluência teórica, mas
seu aporte deixará marcas de intensidade distinta nas trajetórias
individuais estudadas e nos estudos culturais como um todo.
O APORTE GRAMSCIANO
Uma análise dos meios de comunicação de massa centrada
na ideologia, nos moldes propostos por Louis Althusser, não per-
mitia abertura suficiente para abarcar aqueles espaços que esca-
pam das malhas da dominação. Diante de uma perspectiva que
desembocava invariavelmente em reprodução social, a incorpora-
ção, sobretudo, do conceito de hegemonia de Antonio Gramsci
permitiu vislumbrar um movimento mais dinâmico e complexo
na sociedade, admitindo tanto a reprodução do sistema de domi-
nação quanto a resistência a esse mesmo sistema. Em termos ge-
néricos, esse argumento é válido para a vertente britânica, assim
como para a perspectiva latino-americana.
Do ponto de vista britânico, Hall (1996a, p. 267) aponta a
reflexão de Antonio Gramsci como instigadora e fundamental na
constituição dos estudos culturais, se considerados os “silêncios”
do marxismo sobre uma questão muito cara aos estudos culturais,
isto é, o âmbito do simbólico.
pessoalmente penso que os estudos culturais no contexto britânico,
num determinado período, aprenderam a partir de Gramsci: formi-
dáveis porções sobre a própria natureza da cultura, sobre a disciplina
do conjuntural, sobre a importância da especificidade histórica, sobre
a imensamente produtiva metáfora da hegemonia, sobre a forma pela
qual alguém pode pensar as questões de relações de classe somente
usando a noção substituta de conjuntos e blocos.
Tendo em vista não só essa avaliação, mas, também, várias
investigações realizadas dentro desta tradição, pode-se dizer que
os estudos culturais britânicos, durante o período em que Hall
98
presidiu o CCCS – 1968/1979, discutiram e trabalharam de
forma mais extensa a contribuição gramsciana. Nos próprios
trabalhos de Stuart Hall observa-se uma preocupação em recu-
perar noções como “formação social” que propicia uma análise
da articulação entre os níveis político, econômico e ideológi-
co, sem determinação de um sobre o outro, assim como a pers-
pectiva “relacional”, necessária para implementar análises nesses
moldes. Porém, várias dessas investigações caracterizaram-se
fundamentalmente como análises políticas conjunturais, utili-
zando os meios de comunicação de massa apenas como um
dos seus suportes.
Em relação à perspectiva latino-americana estudada, o aporte
gramsciano parece circunscrever-se a análises propriamente cultu-
rais, embora essas tenham uma forte conotação política na medida
em que vão dar vazão a demandas populares antes desconsideradas.
É, principalmente, o conceito de hegemonia e as possibilidades
aber-
tas por ele para a compreensão do âmbito do popular que repercu-
tem nessa vertente de análise cultural da comunicação e, especialmente,
nas formulações de Jesús Martín-Barbero e Néstor García Canclini.
De forma enfática, Martín-Barbero reconhece a importância
do pensamento de Gramsci na análise cultural, desbloqueando o
debate sobre a cultura dentro do marxismo e contribuindo de
forma fundamental à construção de sua própria proposta investi-
gativa da comunicação.
fazendo possível pensar o processo de dominação social já não
como imposição a partir de um exterior e sem sujeitos, mas como
um processo no qual uma classe hegemoniza, na medida em que
representa interesses que também reconhecem de alguma maneira
como seus, as classes subalternas. E ‘na medida’ significa aqui que
não há hegemonia, mas sim que ela se faz e desfaz, refaz-se perma-
nentemente num ‘processo vivido’, feito não só de força mas tam-
bém de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de sedução
e de cumplicidade. O que implica uma desfuncionalização da ide-
ologia – nem tudo o que pensam e fazem os sujeitos da hegemonia
serve à reprodução do sistema – e uma reavaliação da espessura do
cultural: campo estratégico na luta por ser espaço articulador dos
conflitos. (1987a, p. 84)
99
O aporte gramsciano tornou possível inverter o sentido da
idéia – a comunicação como processo de dominação – até então hege-
mônico na visão “crítica” dos pesquisadores da comunicação, na
América Latina dos anos 70. Assim, Martín-Barbero passa a pro-
por, no final dessa mesma década, a investigação da dominação
como processo de comunicação, pois a dominação é, também, ativi-
dade e não pura passividade da parte do “dominado”. Essa mu-
dança de enfoque foi possível graças à incorporação do conceito
gramsciano de hegemonia entendida como um processo vivido
pelos sujeitos sociais.
Em Comunicación masiva – Discurso y poder (1978), essa idéia
germina, ganhando densidade em De los medios a las comunicacio-
nes (1987). E no aniversário de dez anos de publicação desse
último texto, ao realizar um balanço de seu programa de investi-
gação, Martín-Barbero reconhece que tudo iniciou juntando Pau-
lo Freire com Gramsci. “Compreender a comunicação implicava,
portanto, investigar não só as artimanhas do dominador, mas tam-
bém aquilo que no dominado trabalha a favor do dominador, isto
é, a cumplicidade de sua parte e a sedução que se produz entre
ambos. Junto com Gramsci foi Paulo Freire quem me ensinou a
pensar a comunicação, ao mesmo tempo, como um processo so-
cial e como um campo de batalha cultural” (1998a, p. 202).
A opção de incorporar parte da reflexão de Gramsci pelos
estudos culturais, incentivada, principalmente, através da lideran-
ça de Stuart Hall, deve-se em grande medida ao seu ataque ao
economicismo e reducionismo dentro do marxismo clássico. O
economicismo e o reducionismo devem ser entendidos como uma
aproximação teórica que tenta ler/interpretar as fundações econô-
micas da sociedade como a única estrutura determinante. “Essa
abordagem tende a ver todas as outras dimensões da formação
como simples espelho do ‘econômico’ em outro nível de articula-
ção e não tendo nenhuma outra força determinante ou estrutura-
dora no seu próprio direito. A abordagem, de forma simples,
reduz tudo numa formação social ao nível econômico e conceitua
todos os outros tipos de relações sociais como direta e imediata-
mente correspondentes ao econômico” (HALL, 1996c, p. 417).
100
Essa, também, pode ser considerada como uma das vias de
entrada de Gramsci no arcabouço teórico de García Canclini. Em
As culturas populares no capitalismo (1983), García Canclini manifesta
a intenção de superar as premissas que o idealismo deixou sem expli-
cação, assim como o reducionismo do materialismo mecanicista. O
termo cultura significará, então, “a produção de fenômenos que con-
tribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das
estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transfor-
mação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as
práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e re-
estruturação do sentido” (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 29).
Entretanto, García Canclini ressalta que sua definição não pro-
põe uma identificação do cultural com o ideal e do social com o
material, como também não supõe que esses níveis possam ser es-
tudados de forma separada. “Ao contrário, os processos ideais (de
representação ou reelaboração simbólica) remetem a estruturas
mentais, a operações de reprodução ou transformação social, a prá-
ticas e instituições que, por mais que se ocupem da cultura, impli-
cam uma certa materialidade. E não é só isso: não existe produção
de sentido que não esteja inserida em estruturas materiais”(Idem).
Embora se apresente de um modo peculiar, esse tipo de vin-
culação já estava expresso nas formulações de Williams sobre a
“estrutura de sentimento”, ou seja, a forma pela qual sentidos e
valores são vividos na vida real. A noção de “estrutura de sentimen-
to” teve seu esboço num livro publicado em 1954, onde se lia:
Todos os produtos de uma comunidade são, num dado período,
[…] essencialmente relacionados, embora na prática e no detalhe
isso não seja simples de se observar. No estudo de um período,
podemos ser capazes de reconstruir com mais ou menos exatidão
a vida material, a organização social geral e, numa abrangência
maior, as idéias dominantes. Não é necessário discutir aqui qual
desses aspectos, se algum, no conjunto global, é determinante
[…] Mas apesar de ser possível, no estudo de um período do
passado, separar aspectos particulares da vida e tratá-los como se
fossem independentes, é óbvio que tais aspectos somente poderão
ser estudados dessa forma, jamais experienciados. (WILLIAMS apud
HALL, 1993b, p. 352)
101
Reitera-se aí que somente para efeitos de análise podemos
separar diferentes aspectos da vida, pois na realidade tais níveis
não são experienciados dessa forma. Também na proposta de
Williams que foi fundamental na constituição do projeto dos
estudos culturais, a introdução do conceito de hegemonia foi
essencial para deslocar a idéia de cultura do âmbito da ideologia,
isto é, da reprodução social.
O fato de Williams, Hall, Martín-Barbero e García Canclini
coincidirem na tematização da cultura como um espaço de pro-
dução social e não só de reprodução, assim como o fato de credi-
tarem a Gramsci um papel importante no repensar desse papel no
espectro da perspectiva marxista, não podem ser associados dire-
tamente à idéia de que a construção desses posicionamentos se
deu mediante essa única via. Influências diversas atuaram nas tra-
jetórias individuais desses intelectuais na problematização das
questões mencionadas.
Por exemplo, no trabalho de García Canclini percebe-se
tanto a influência teórica de Pierre Bourdieu quanto de Anto-
nio Gramsci.
O enfoque mais fecundo é aquele que entende a cultura como um
instrumento voltado para a compreensão, reprodução e transfor-
mação do sistema social, através do qual é elaborada e construída a
hegemonia de cada classe. De acordo com essa perspectiva, tratare-
mos de ver as culturas das classes populares como resultado de
uma apropriação desigual do capital cultural, a elaboração específica
das suas condições de vida e a interação conflituosa com os setores
hegemônicos. (GARCÍA CANCLINI, 1983, p. 12, grifo meu).
A articulação entre esses dois autores parece possível na me-
dida em que García Canclini historiciza o modelo de Bourdieu,
ou seja, um desenvolvimento específico das forças produtivas e
das relações sociais construiu em nosso continente um capital
cultural heterogêneo em que confluem a herança das culturas pré-
colombinas, a cultura européia, especialmente a espanhola e por-
tuguesa e, por fim, a presença negra.
No entanto, em Culturas Híbridas (1989), o autor reconhece
que a articulação entre hegemonia e reprodução ainda não está
102
resolvida na teoria social. Embora o conceito de hegemonia per-
maneça ainda manifesto nas suas formulações, García Canclini
vai assumindo um posicionamento crítico no que diz respeito à
incorporação propriamente dita de tal conceito nas análises cultu-
rais. Aliado a isso, a discussão sobre a modernidade e pós-moder-
nidade na América Latina e suas conseqüências, que se revelarão
de forma ainda mais contundente nos próximos trabalhos (1995b),
vai contribuir para redirecionar sua armação teórica.
Como se vê, os percursos individuais dos autores estudados
são diferentes. Contudo, existe uma preocupação semelhante: me-
diante influências diversas, tanto teóricas quanto contextuais, dis-
cute-se o reducionismo e economicismo do marxismo ortodoxo.
Todos rejeitam a lógica de uma determinação direta do âmbito da
economia sobre a cultura e a função desta como reprodutora da
estrutura social.
Ao tematizarem essa questão, Martín-Barbero, García Can-
clini e Hall, mesmo que em momentos históricos específicos, re-
conhecem o papel fundamental exercido pela obra de Gramsci no
repensar o espaço do simbólico. No entanto, concretizam-se la-
ços distintos: seja Gramsci com Freire, Gramsci com Bourdieu
ou ainda Gramsci com posições identificadas como estruturalis-
tas, principalmente, com uma parte da reflexão de Althusser. Se,
por um lado, isso impede de falar em plena identidade teórica
entre essas reflexões, por outro, é possível notar afinidades teóri-
cas entre elas. A exemplo do que ocorreu na formação do projeto
dos estudos culturais britânicos, nota-se novamente uma “unida-
de na diferença” entre os três autores aqui estudados.
Como foi mencionado anteriormente, a tradição britânica
sofre uma influência mais abrangente da contribuição gramscia-
na. Por exemplo, a utilização do conceito de formação social vai
ajudar a pensar que as sociedades são necessariamente totalidades
complexas estruturadas em diferentes níveis (econômico, político
e ideológico) e em distintas combinações; cada combinação dá
vazão a uma configuração diferente das forças sociais e, assim, a
um desenvolvimento social característico.
Nas ‘formações sociais’, está se tratando com sociedades comple-
xamente estruturadas, compostas de relações econômicas, políticas
103
e ideológicas em que os diferentes níveis de articulação, de qual-
quer maneira, simplesmente não correspondem ou ‘espelham’ uns
aos outros, mas são […] ‘determinantes’ uns nos outros. É essa
complexa estruturação dos diferentes níveis de articulação, não
simplesmente a existência de mais de um modo de produção, que
constitui a diferença entre o conceito de ‘modo de produção’ e a
necessariamente mais concreta e historicamente específica noção
de ‘formação social’. (HALL, 1996c, p. 420)
O conceito de “formação social” propicia compreender as
relações entre estrutura e superestrutura através de um entendi-
mento mais complexo e dinâmico. O pressuposto, aqui, é que se
estabelece uma articulação entre essas forças em qualquer forma-
ção social, suspendendo-se a idéia de determinação. Logo, Gra-
msci também vai contribuir de forma substancial para esse debate.
Outra idéia fundamental para estabelecer as bases de uma
análise histórica e dinâmica das “relações de força” que constitu-
em o terreno da luta política e social é o parâmetro “relacional”,
também, proposto por Gramsci.
Aqui ele [Gramsci] introduz a noção crítica que nós estamos pro-
curando, que não é a vitória absoluta de um lado sobre outro,
nem a total incorporação de um conjunto de forças em outro.
Antes, a análise é um problema relacional – isto é, uma questão a
ser resolvida relacionalmente, usando a idéia de ‘balanço instável’
ou ‘o processo contínuo de formação e substituição do equilíbrio
instável’. A questão crítica é ‘as relações de forças favoráveis ou
desfavoráveis a esta ou aquela tendência’. Esta ênfase às ‘relações’ e ao
‘balanço instável’ lembra-nos que forças sociais que deixam de
existir num período histórico particular não desaparecem do terre-
no do conflito, nem o conflito, em tais circunstâncias, é suspenso.
(HALL, 1996c, p. 422)
Ou seja, ao aderir a uma noção de formação social que in-
trinsecamente implica o estabelecimento de “relações” entre ins-
tâncias diferentes – econômica, política e cultural –, que não se
caracterizam por assumir um caráter de determinação, a análise
passa a privilegiar o aspecto “relacional”, configurando-se uma
perspectiva teórica que exige, para sua unidade conceitual, ser
complementada pela concepção de hegemonia.
104
O que se observa, também, é que certos conceitos gramscia-
nos vão permitindo uma formação teórica mais flexível do que
aquela fundamentada no estruturalismo marxista. Embora mes-
mo Williams já tivesse recuperado a contribuição de Gramsci, o
arcabouço conceitual dos estudos culturais britânicos, sob influên-
cia de Hall, manifesta com muito mais força essa incorporação na
medida em que a trama teórica passa a ter como pilar a noção de
hegemonia.
Ao contrário do que possa parecer devido à abertura que
propiciou, a incorporação do trabalho de Gramsci pela trajetó-
ria britânica de estudos culturais tem motivado algumas críticas.
Ao examinar, principalmente, textos publicados pelo CCCS e
pela Open University associados à cultura popular, Harris (1992)
avalia que Gramsci pareceu oferecer um marxismo “simpático”,
pois era teoricamente respeitado, não-reducionista e ativista nas
suas implicações. De outro lado, a utilização do conceito de
hegemonia ofereceu a vantagem de dignificar uma série de ati-
vidades como “políticas”.
Todavia, Harris reconhece que a perspectiva influenciada por
Gramsci dentro dos estudos culturais abriu um número de áreas à
inspeção crítica, resultando numa nova abordagem; foi responsá-
vel, também, pela emergência de uma sociologia crítica da cultu-
ra e pela “politização” dessa temática. No entanto, o mesmo autor
conclui: “Muito sinteticamente, o gramscismo, para mim, está
demasiadamente pronto […] a fazer seus conceitos prematura-
mente idênticos com os elementos dessa realidade de variadas
formas. Os escritos de Gramsci, para mim, estão sujeitos a um
fechamento prematuro por serem demasiado ‘estratégicos’ tam-
bém – por permitirem o privilegiamento da análise política […].
Tais fechamentos têm benefícios, mas, também, consideráveis
perdas” (HARRIS, 1992, p. 195).
Entre as desvantagens usualmente creditadas às análises dos
estudos culturais como um todo e que podem estar associadas à
influência da perspectiva gramsciana, especialmente à incorpora-
ção do conceito de hegemonia, estariam a excessiva atenção à
superestrutura, à capacidade de ação dos sujeitos e a essa “outra”
expressão cultural identificada como comum e ordinária.
105
Entretanto, no território latino-americano, Martín-Barbero
(1995a, p. 52) reafirma a importância da incorporação do con-
ceito de hegemonia na análise da dimensão cultural, destacando-a
como um avanço teórico.
A hegemonia nos permite pensar a dominação como um processo
entre sujeitos onde o dominador intenta não esmagar, mas seduzir o
dominado, e o dominado entra no jogo porque parte dos seus
próprios interesses está dita pelo discurso do dominador. E, segun-
do elemento que nos traz Gramsci com o conceito de hegemonia, é
que essa dominação tem que ser refeita continuamente, tanto pelo
lado do dominador como pelo do dominado. (grifo meu)
A adoção dessa categoria na perspectiva proposta por Mar-
tín-Barbero revela-se, em primeira mão, no questionamento das
teorias dominantes na investigação da comunicação, na medida
em que primordialmente não contemplam o modo como as pes-
soas se comunicam e usam os meios de comunicação. Nas teorias
dominantes, a comunicação assume um sentido genérico de cir-
culação de informações.
Antes de ir adiante no delineamento
das conseqüências da
incorporação da categoria de hegemonia na análise da comunica-
ção, vale anotar que a crítica às teorias dominantes na pesquisa
em comunicação já era o mote da obra de Martín-Barbero, Comu-
nicación masiva – Discurso y poder (1978). O diferencial é que nesse
texto a crítica se faz a partir da perspectiva semiológica, permane-
cendo, então, o foco na “escritura massiva”. A necessidade de estu-
dar os sujeitos sociais encontra-se esboçada, mas não é o eixo
central da discussão.
No contexto do livro De los medios a las mediaciones (DMM12), a
primeira implicação da adoção de hegemonia é o (re)direcionamento
da problemática da comunicação para a cultura, modificando sua
compreensão. O sentido agora é de processo produtor de significa-
ções e, portanto, o receptor não é apenas decodificador do que
existe na mensagem, imposto pelo emissor, mas também produ-
tor de novos significados. Logo, aqui, a ênfase do autor é outra.
Sendo assim, comunicação assume o sentido de práticas sociais.13
Elas podem ser entendidas enquanto práticas coletivas quando se
106
fala do sentido que a comunicação assume para os sujeitos. As-
sim, trata-se da comunicação nas ruas, nas casas, nas praças, nas
festas, nos bairros, nas escolas, nas famílias; entre mulheres, jo-
vens, indígenas, trabalhadores rurais, domésticas, etc. Mas, tam-
bém, as práticas podem assumir o sentido de produção cultural.
Práticas culturais que expressam valores e significados promovi-
dos por instituições, corporações, intelectuais, a publicidade e os
meios de comunicação em geral.
Pensar a comunicação a partir da cultura, programa de inves-
tigação elaborado por Martín-Barbero, pressupõe não centralizar a
observação nos meios em si, ou seja, concentrar-se nos artefatos,
mas abrir a análise para as mediações. De forma genérica, significa
deslocar os processos comunicativos para o denso e ambíguo espa-
ço da experiência dos sujeitos. Isso parece coincidir com a recém
citada análise de Williams e mais ainda com seu posicionamento
de associar cultura à própria noção de experiência.
Em outras análises da rota aberta por Martín-Barbero para
pensar a modernidade latino-americana, através da categoria me-
diações, reafirma-se como fundamental o eixo da experiência, po-
rém a partir das sugestões de Walter Benjamin. Eliseo Colón, um
dos pesquisadores que se aprofunda nesta relação, pondera que
embora fique sugerido um diálogo com a obra de Raymond Willi-
ams e Antonio Gramsci, o amparo fundamental está na “experiên-
cia urbana”, proposta por Benjamin. “É a possibilidade do
fragmento, a ruína, da estética que se rebela contra a Aesthetica,
da resistência diante do poder sedutor da totalidade; é a estética
que propõe Benjamin”(Colón, 1998, p. 32). O acento recai no
pensar a experiência à moda de Benjamin, isto é, na região huma-
na da percepção: da recepção múltipla e dispersa da experiência
urbana. Para Colón,
do ponto de vista da perspectiva benjaminiana, a noção que esbo-
ça Martín-Barbero da mediação, com sua superposição de pedaços
dispersos e fragmentos, é coerente com a experiência urbana [de
Benjamin]. Em Martín-Barbero, esses fragmentos que, para os
humanos, ocupam o lugar do autêntico, são a arquitetura da coti-
dianidade do bairro, da rua. São os grafites, a música, a festa, o
chiste, as feiras, o mercado. (1998, p. 33)
107
Não há como negar esta imbricação entre o pensamento de
Martín-Barbero e Benjamin, especialmente se tomado como pon-
to de encontro a insistência do primeiro nas transformações dos
modos de percepção (novo sensorium) e da experiência social, pro-
porcionados pelas alterações que ocorrem no espaço da cultura.
O que não invalida, de outro lado, a vinculação de Martín-Barbe-
ro a Williams, pois este, em outros termos, também, tratou dessa
temática – a experiência.
Para Williams, o objetivo da análise cultural é reconstituir a
“estrutura de sentimento” ou o que a cultura está expressando,
isto é, a experiência através da qual a cultura é vivida. Em Martín-
Barbero a comunicação se dá, a exemplo de Williams, na cultura,
sendo a categoria de mediação que faz essa ponte.
A apresentação da categoria mediações, em DMM, dá-se medi-
ante dois procedimentos: um de caráter conceitual e outro, ilustra-
tivo. Através das observações conceituais, as mediações são
concebidas como conexões, amálgamas que misturam elementos,
formando um todo novo. São pontes que permitem alcançar um
segundo estágio, sem sair totalmente do primeiro. Dessa forma, as
mediações constituem-se em articulações entre matrizes culturais
distintas, por exemplo, entre tradições e modernidade, entre rural e
urbano, entre popular e massivo, também, em articulações entre
temporalidades sociais diversas, isto é, entre o tempo do cotidiano
e o tempo do capital, entre o tempo da vida e o tempo do relato.
Através das mediações é possível entender, fundamentalmen-
te, a interação entre produção e recepção ou entre as lógicas do
sistema produtivo e dos usos, ou seja, o que se produz nos meios
não responde unicamente ao sistema industrial e à lógica comer-
cial mas, também, a demandas dos receptores, ressemantizadas
pelo discurso hegemônico. Enfim, são instituições, organizações
sociais, sujeitos e matrizes culturais distintas.
Nos exemplos apresentados nesse livro (DMM), as mediações
tanto podem ser meios – a literatura de cordel espanhola, a litera-
tura de colportage francesa,14 o cinema mexicano ; sujeitos – indi-
víduos que trabalham com a literatura de colportage; gêneros –
radioteatro, folhetim, melodrama, as séries e os gêneros televisi-
vos; e espaços – o cotidiano familiar, o bairro.
108
Além disso, no estudo da telenovela colombiana, coordenado
por Martín-Barbero, pode-se entender a própria como mediação
no entendimento do processo de constituição do massivo, assim
como a classe social, o gênero, a geração, a etnia, a família, o
bairro e a cidade como mediações para as diversas possibilidades
de leituras da telenovela.
E, assim, novamente, ao juntar todas essas pistas, espalhadas
tanto no seu texto seminal (DMM) quanto na sua ampla produção
de artigos, conferências e entrevistas, o sulco que vai se formando
contorna insistemente o enfoque do cultural no espaço do cotidi-
ano. A tentativa é aproximar-se da “experiência que as pessoas têm
e ao sentido que nela adquirem os processos de comunicação”
(MARTÍN-BARBERO citado HERLINGHAUS, 1998, p. 17).
Ainda em DMM, o autor propõe “como hipótese” três lu-
gares de mediação preferenciais: a cotidianidade familiar, a tem-
poralidade social e a competência cultural. A primeira trata da
família como unidade básica de audiência ou recepção, por isso,
seria um dos espaços-chave de recepção e decodificação. A se-
gunda diz respeito à relação entre o tempo produtivo do sistema
social e o tempo repetitivo do cotidiano. A última relaciona-se à
presença de uma matriz cultural e um modo de perceber/ler/usar
os produtos culturais.
Em outro lugar, Martín-Barbero (1990b) propõe a transfor-
mação das hipóteses citadas em três dimensões: a sociabilidade, a
ritualidade e a tecnicidade. A primeira diz respeito às negocia-
ções cotidianas do sujeito com o poder e às diversas instituições,
isto é, de forma mais ampla, a interação social; a segunda trata
das rotinas e das regras construídas a partir da combinação dos
ritmos do tempo e dos eixos do espaço, isto é, da profunda imbri-
cação entre as rotinas do trabalho e as ações de transformação; a
última identifica-se com as características do próprio meio.
Se adotada a premissa de que os conceitos podem operar em
diferentes níveis de abstração e são com freqüência consciente-
mente planejados para atuar dessa forma, o importante é não jul-
gar indevidamente um nível de abstração pelo outro. Seguindo
essa lógica, o conceito de mediação, no projeto de Martín-Barbero,
poderia equivaler-se ao de cultura, operando
num nível mais geral
109
de abstração. Nesse mesmo nível, os conceitos de hegemonia e
história completariam sua reflexão. E em torno da idéia de cotidi-
anidade, desdobrada nas dimensões de sociabilidade, ritualidade
e tecnicidade, residiria um nível de mais concretude.
Movendo-se, então, para o nível mais concreto, que exige a
aplicação de novos conceitos, é que aflora a ambigüidade das pro-
posições do autor. Num primeiro momento, é o próprio conceito
de mediação que assume essa função através de sua transformação
em meios, sujeitos, gêneros e espaços (exemplificados em DMM).
Numa segunda (cotidianidade familiar, temporalidade social e
competência cultural) e terceira etapa (sociabilidade, ritualidade
e tecnicidade) é que a concepção de mediação passa a comportar
aproximações analíticas mais concretas. O problema é que não
fica claro se a última etapa pressupõe o esgotamento ou o refina-
mento da anterior, acrescentando sucessivas aproximações.
É claro que, na ordem mais geral de sua proposta, pode-se
dizer que pensar os processos de comunicação a partir da cultura
pressupõe deixar de pensá-los a partir da fixidez das disciplinas e
dos meios de comunicação em si mesmos. Os espaços de interse-
ção de conhecimentos provenientes de áreas diversas são salienta-
dos, pois não é possível compreender o que ocorre no campo da
comunicação apoiando-se somente no que produzem os especia-
listas da área.
Tal implicação teórico-metodológica já estava expressa em
Comunicación masiva – discurso e poder (1978). Lá o autor insistia
na impossibilidade de manter as fronteiras disciplinares diante de
um objeto que reivindica a ampliação de seus contornos. “Essas
fronteiras respondem a uma divisão do trabalho teórico, da pro-
dução social do conhecimento que, neste momento, torna-se obs-
táculo para o desenvolvimento da investigação. Trata-se da
rearticulação das ciências humanas e sociais em função das trans-
formações que as novas problemáticas trazem aos ‘objetos’ tradi-
cionais dessas ciências” (1978, p. 119).
Enfim, entre os deslocamentos expressos no programa de
investigação, elaborado por Martín-Barbero, destaco duas dimen-
sões fundamentais: hegemonia e história. De um lado, a incorpo-
ração do conceito gramsciano de hegemonia permite pensar a
110
dominação não como imposição, desconhecendo a existência de
sujeitos, mas, sim, como construção de um consentimento/de um
pacto que está permanentemente sendo refeito num processo vi-
vido entre sujeitos. De outro, a análise da hegemonia acaba
deslocando a idéia de cultura do âmbito puramente ideológico.
A conseqüência é o abandono de uma concepção meramente su-
perestrutural de cultura. Nessa direção, significa dizer que a cul-
tura não é algo exterior às relações de produção, e não pode excluir
as relações sociais e de poder.
A dimensão histórica referenda essa posição, proporcionan-
do materialidade às práticas culturais.
No campo da comunicação, falar de história tem sido reduzido à
história ‘dos meios’ que os autonomiza ‘mcluhianamente’, dotan-
do-os de sentidos por si próprios ou faz depender esse sentido de
sua relação, quase sempre exterior e mecânica, com as forças pro-
dutivas e os interesses de classe. Agora tratar-se-ia de outra coisa: de
uma história dos processos culturais como articuladores das práticas
comunicativas com os movimentos sociais. O que implica localizar a
comunicação no espaço das mediações onde os processos econô-
micos deixam de ser um exterior dos processos simbólicos e estes,
por sua vez, aparecem como constitutivos e não somente expressi-
vos do sentido social. Porque não existe infra-estrutura ou econo-
mia que escape da dinâmica significante, não é possível continuar
pensando por separado e de maneira fetichista o plano dos proces-
sos tecnológicos, industriais, e o da produção e reprodução do
sentido. (MARTÍN-BARBERO, 1983, p. 10).
Dessa forma, a proposta de Martín-Barbero organizada em
torno da categoria central de mediações, no plano da análise, segun-
do Reguillo (1998, p. 86), passa a ser transposta para o espaço, o
tempo, a memória, as identidades que “deixam de ser concebidas
como ‘determinações’, constituindo-se nas próprias mediações que,
através de seu caráter histórico, permitem explicar tanto a mudança
como a continuidade cultural, isto é, a cultura como uma arena de
disputas simbólicas pela transformação e inovação”.
Assim, o conceito de cultura se funde no de hegemonia, é a
arena do consenso e da resistência, e esse é o mesmo espaço onde
se funda a hegemonia. Essa premissa tem validade, especialmente
111
para Hall e Martín-Barbero. O primeiro ao aplicar o conceito de
hegemonia ao contexto britânico em diferentes momentos históri-
cos, iluminando diferentes temáticas, dá uma certa materialidade
ao mesmo, articulando a noção de cultura com a estrutura produti-
va. O segundo formula sua proposta investigativa do espaço da
comunicação fundamentado nessa categoria. Do ponto de vista de
García Canclini, a perspectiva aberta pelo conceito de hegemonia,
embora incorporada em sua reflexão, parece reter em si mesma
limitações, sobretudo iluminadas em uma possível contraposição
entre subalterno e hegemônico que adiante será discutida.
Contudo, a conseqüência natural da incorporação do concei-
to de hegemonia pelos estudos culturais desemboca na aborda-
gem de questões em torno da cultura popular e o reconhecimento
da atividade ou “agência humana”. Através dos trabalhos pionei-
ros de Williams, Hoggart e Thompson, a cultura e as práticas
populares tornam-se objeto de investigação. Especificamente em
relação ao popular, o resultado mais direto é que
a teoria da hegemonia nos permite pensar a cultura popular como
uma mistura ‘negociada’ de intenções e contra-intenções; tanto a
partir de ‘cima’ como a partir de ‘baixo’, tanto ‘comercial’ quanto
‘autêntica’; um balanço inconstante de forças entre resistência e
incorporação. Isso pode ser analisado em diferentes configura-
ções: gênero, geração, raça, região, etc. A partir dessa perspectiva,
cultura popular é uma mistura contraditória de interesses e valores
concorrentes: nem classe média nem trabalhadora, racista ou não-
racista, sexista ou não-sexista, […] mas sempre um balanço incons-
tante [...]. A cultura comercialmente fornecida pelas indústrias
culturais é redefinida, reconfigurada e redirigida em atos estratégicos
do consumo seletivo e atos produtivos de leituras e articulação, com
freqüência, em formas não pretendidas ou mesmo não calculadas
por seus produtores. (STOREY, 1997, p. 127).
O aporte gramsciano vai permitir, então, o entendimento de
contextos históricos específicos e formações sociais em que a histó-
ria é ativamente produzida pelos indivíduos e grupos sociais, man-
tendo-se, ainda que de forma não acentuada, uma tensão entre as
estruturas e os sujeitos. Muitas vezes, a ação dos sujeitos é valoriza-
da. No entanto, reside naquele tensionamento entre estruturação e
112
“agência” o ponto de motivação para uma constante redefinição
de posições teóricas dentro do leque aberto de preocupações dos
estudos culturais.
A reconstrução de parte da trajetória teórico-metodológica
dos estudos culturais não pode ignorar esse contínuo debate entre
posições diversas, o trabalho de transformação dessas posições, o
rearranjo e a redefinição das diferenças teóricas do próprio cam-
po em resposta a questões pertinentes a um contexto histórico
específico. Esses movimentos revelaram rupturas e incorporações
teóricas importantes que contribuíram para a construção da pers-
pectiva teórica e das principais problemáticas da tradição dos es-
tudos culturais.
113
Embora os estudos culturais não possam ser reduzidos ao
estudo da cultura popular, esta temática é central no seu projeto.
Mas para falar sobre tal tema, é conveniente recuperar uma breve
afirmação de Williams (1983, p. 237): “cultura popular
não foi
identificada pelo povo, mas por outros”. Nesse sentido, é uma cri-
ação intelectual. Se essa premissa for adotada, pode-se concordar
com Bennet (1986b) quando observa que a questão relativa a quem
é o “povo” não pode ser resolvida de forma abstrata, somente pode
ser respondida politicamente. Sendo assim, a tematização da cul-
tura popular em si mesma já é uma opção de cunho político.
Parto, então, para rastrear como se configura conceitualmente
o popular dentro dos estudos culturais e suas implicações teóricas,
políticas e intelectuais. Novamente, a reconstituição do debate so-
bre o popular sustenta-se nas reflexões de Stuart Hall, Néstor Gar-
cía Canclini e Jesús Martín-Barbero, mas também contemplando
outras trajetórias e críticas.
Em linhas gerais, os estudos culturais estão, sobretudo, pre-
ocupados com as inter-relações entre domínios culturais suposta-
mente separados, interrogam-se sobre as mútuas determinações
entre culturas populares e outras formações discursivas e estão
atentos para o terreno do cotidiano da vida popular e suas mais
diversas práticas culturais.
Durante um longo período a cultura popular foi despreza-
da e relegada como objeto de estudo. Entretanto, nos últimos
tempos, avanços foram conquistados na compreensão dessa es-
fera cultural. Na Grã-Bretanha, o termo foi utilizado, em um
primeiro momento, para identificar uma coleção ou miscelâ-
nea de formas e práticas culturais, tendo em comum o fato de
estarem excluídas do cânone aceito da “alta cultura”. O desejo
de conhecer empiricamente as formas culturais populares fez
O POPULAR COMO OPÇÃO POLÍTICA
114
com que fosse fundada na Inglaterra, em 1878, a primeira So-
ciedade do Folclore.
Ao longo do percurso que foi sendo construído em torno de
tal temática, observa-se que a descoberta da cultura popular, tam-
bém, se associou às idéias de nacionalidade, modernidade, for-
mação da identidade nacional em um contexto de industrialização
e democratização. Em contraste, no debate contemporâneo, inte-
ressa destacar que os estudos dedicados às culturas populares es-
tão estreitamente articulados à política, à direção política e cultural
das sociedades.
Numa tentativa de reconstituição extremamente sintética dos
debates sobre o tema do “popular” em um passado recente, no
meio britânico, pode-se dizer que, no final dos anos setenta, tais
discussões concentravam-se em duas oposições, representadas pelo
estruturalismo e culturalismo.
Na perspectiva do estruturalismo, a cultura popular foi com fre-
qüência considerada como uma ‘máquina ideológica’ a qual dita-
va o pensamento do povo de uma forma tão rígida e com a mesma
regularidade de lei como na síntese de Saussure – a qual forneceu
o paradigma original para o estruturalismo – o sistema da língua
dita os eventos da fala [...]. Contrariamente, o culturalismo foi
com freqüência acriticamente romântico em sua celebração da cul-
tura popular como expressão dos autênticos valores e interesses
das classes e grupos sociais subordinados. Essa concepção, além
disso, resultou em uma visão essencialista de cultura, ou seja, em
uma personificação de essências de classe ou gênero específico.
(BENNETT, 1986a, p. XII)
O elemento novo que deslocou essas polaridades, foi a incor-
poração das reflexões de Antonio Gramsci sobre o tema da hege-
monia. A contribuição gramsciana configurou um novo tipo de
ênfase na análise da cultura popular.
Em uma síntese da reflexão gramsciana, a cultura popular não é
vista nem como o local da deformação cultural do povo nem
como a sua auto-afirmação cultural [...]; ao contrário, ela é vista
como um campo de força de relações moldadas precisamente por
essas tendências e pressões contraditórias – uma perspectiva que
115
permite uma reformulação significativa das questões teóricas e
políticas as quais estão em jogo no estudo da cultura popular.
(BENNETT, 1986a, p. XIII)
A idéia central, exposta aqui de forma sumária, é de que as
esferas da cultura e da ideologia não podem ser concebidas como
sendo divididas em duas hermeticamente separadas e inteiramen-
te opostas culturas e ideologias de classe.
O efeito é desqualificar as opções bipolares das perspectivas estru-
turalista e culturalista da cultura popular, vista tanto como a con-
dutora de uma ideologia burguesa indissolúvel ou como o local
da autêntica cultura do povo […]. Pelo contrário, a cultura popu-
lar está em parte envolvida na luta pela hegemonia – e para Grams-
ci, os papéis desempenhados pela maioria dos aspectos culturais
sedimentados da vida cotidiana estão crucialmente implicados nos
processos por onde a hegemonia é disputada, vencida, perdida,
resistida – e o campo dessa cultura está estruturado tanto pela
tentativa da classe dominante em obter a hegemonia quanto pelas
formas de oposição a esse empreendimento. Como tal, ela não está
constituída simplesmente por uma cultura de massa imposta que
coincide com a ideologia dominante, nem simplesmente por cul-
turas espontaneamente de oposição, mas, ao invés, é uma área de
negociação entre as duas dentro das quais […] ‘estão’ misturados
valores e elementos ideológicos e culturais dominantes, subordi-
nados e de oposição, em diferentes permutações. (BENNETT, 1986a,
p. XV)
Enfim, essa reorientação dos estudos no âmbito da cultura
popular acarretou duas mudanças nos mesmos. A teoria da hege-
monia permitiu a construção de um olhar, de dentro do marxis-
mo, que evita ver o popular como um bloco homogêneo de
oposição, decorrente somente de uma posição de pertencimento
fixo a uma classe. Propiciou, também, pensar na possibilidade de
existência da separação relativa de diferentes regiões de enfrenta-
mento cultural como classe, gênero e raça, assim como sobreposi-
ções entre essas categorias em diferentes circunstâncias históricas.
Em resumo, ao sugerir que as articulações políticas e ideológicas
das práticas culturais são dinâmicas – que uma prática que está
articulada a determinados valores hoje pode estar desvinculada
116
deles e associada a outros valores amanhã – a teoria da hegemonia
torna o campo da cultura popular uma área de enormes possibili-
dades políticas (BENNETT, 1986a, p. XVI).
Já na América Latina, a discussão do popular toma o seguin-
te rumo. De forma resumida, pode ser dito que existem três con-
tornos onde a questão da cultura popular torna-se objeto de
discussão e reflexão: o primeiro está associado à idéia de folclore,
o segundo à cultura massiva e o terceiro associa-se ao populismo.
Cada um desses contornos identifica-se com tradições intelectuais
específicas e com diferentes propostas políticas. No entanto, ne-
nhum deles é satisfatório na contemporaneidade.
A característica do olhar do folclore é a nostalgia. É um olhar
que vê a pureza da cultura popular ameaçada pela industrializa-
ção, fundamentalmente, pelos meios de comunicação. O popular
associado à cultura “moderna” ou à cultura mediática é produção
comercial e industrializada, associando-se muito mais à idéia de
popularidade. E o ponto de vista expresso pelo populismo políti-
co, característica da história latino-americana, tem finalidade prag-
mática – usa o popular para referendar e sustentar uma determinada
aliança política. Não há como não mencionar, também, que cul-
tura popular na América Latina assume com freqüência conota-
ções de expressa oposição, visão que foi predominante, sobretudo,
em um momento no qual experiências de “contra-hegemonia”
foram o foco de atenção.
Na perspectiva do populismo, os valores “tradicionais” do povo,
assumidos e representados pelo Estado ou por um líder carismático,
legitimam uma ordem, transmitindo aos setores populares a idéia de
que participam de um sistema que os reconhece e valoriza. Na reali-
dade, simula-se que o “povo” é ator e protagonista.
Comentando esses posicionamentos, Martín-Barbero (1978,
p. 224) afirma:
É esse círculo vicioso, de
acordo com o qual o sucesso de público
comprova a validez popular da fórmula, que é necessário fazer
rebentar, sem cair nem no pessimismo dos que pensam que o
popular ou não existe ou foi completamente digerido, apodrecido
pelo massivo, nem no otimismo populista para o qual, após a
117
conquista do poder, as massas não terão mais que resgatar sua
‘verdadeira’ cultura, até então soterrada, e torná-la ‘oficial’.
Sem negar as diferenças entre o “culto” e o “massivo”, é
necessário romper com a idéia de que o âmbito do massivo seja
somente lugar de reprodução ideológica. Nesse sentido, Martín-
Barbero (1978, p. 221) pondera que “a escritura massiva é tão
escritura como a culta, que na primeira também se faz e desfaz a
língua, também nela trabalham a história e a pulsão, da mesma
forma que na escritura culta, desejando-se ou não, se reproduz o
sistema e o sujo comércio incuba sua demanda”.
E assim, a partir dos anos 70, a idéia de popular como entida-
de subordinada e passiva passa a ser questionada teórica e empiri-
camente, através da incorporação de uma noção de poder que se
expande além das estruturas institucionais convencionais – Estado,
meios de comunicação, etc (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 243).
Mas é somente na década de 80 que o interesse pela cultura
popular suscita estudos que a tomam como um dos elementos de
articulação do consenso social. Duas vertentes se destacam nesse
período: uma baseada na teoria da reprodução social e a outra
que se apóia na teoria gramsciana de hegemonia. “Ao situar as
ações populares no conjunto da formação social, os reprodutivis-
tas entendem a cultura subalterna como resultado da distribuição
desigual dos bens econômicos e culturais. Os gramscianos, me-
nos ‘fatalistas’, relativizam esta dependência porque reconhecem
às classes populares certa iniciativa e poder de resistência, mas
sempre dentro da interação contraditória com os grupos hegemô-
nicos” (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 233).
Martín-Barbero (1995a, p. 51) traduz essa mudança de rota
no entendimento do popular, através da difusão do pensamento
de Gramsci, na reformulação das questões pertinentes a serem
pesquisadas. “[…] eu sintetizaria o avanço numa mudança de per-
guntas. Creio que a pergunta de um animador cultural, de um
trabalhador social, de um educador, de um comunicador, não pode
ser o que é que na vida das pessoas fica de autêntico, o que é que
na vida das pessoas permanece de parecido a como era antes? Mas
sim, o que é que na vida das pessoas está vivo, as motiva, as
dinamiza, as apaixona?”
118
Uma das implicações desse tipo de abordagem, segundo
Martín-Barbero, desemboca na incorporação da dimensão histó-
rica. Porém, ele ressalva qual o sentido que essa perspectiva histórica
adquire na sua reflexão:
sem confundir história com nostalgia que é a tentação historicista:
no passado está a razão do que somos e o passado sempre foi
melhor do que o presente. […] Agora, como transladar isto para
a complexidade da vida cultural de um país? Eu creio que a chave
continua sendo o não confundir memória com a fidelidade ao
passado. Trata-se de uma tentação muito forte, explicável porque
a crise que estamos vivendo é a crise de um modelo de sociedade;
é a ligeireza de pensar que o que fracassou veio de fora, pensar que
o que fracassou é o modelo que não tem relação conosco, que tem
somente relação com o que existe de imposição, e não com o que
existe de cumplicidade, não com o que existe de sedução. (MAR-
TÍN-BARBERO, 1995a, p. 52)
O popular como campo de abordagem é uma idéia que se
encontra tanto nas reflexões de Martín-Barbero e García Canclini
quanto nas de Stuart Hall, assim como do espectro mais geral dos
estudos culturais. Em todo esse conjunto repercute a influência
gramsciana. Essa aproximação revela a existência de uma espécie
de vasos comunicantes entre uma produção latino-americana e
outra, originalmente, britânica.
De uma forma geral, ou seja, com validade para ambos itine-
rários, a noção de popular a partir do olhar dos estudos culturais
não se refere diretamente às mercadorias produzidas pelas indús-
trias culturais, muito menos refere-se às tradições folclóricas. Ao
invés, o popular refere-se a uma visão específica da relação entre
povo e poder, a uma visão de onde e como o poder está localizado
na vida das pessoas. “O popular é de fato um ‘campo de questões’ que
exige que examinemos como o poder funciona onde o povo experi-
encia sua vida” (GROSSBERG apud MORRIS,1997, p. 43, grifo meu).
Esta idéia de que o popular é mais uma problemática do que
um objeto empírico delimitado que pode ser recortado da realidade
social com precisão, repete-se nas observações de García Canclini
(1987, p. 6): “O popular não corresponde com precisão a um
referente empírico, a sujeitos ou situações sociais nitidamente
119
identificáveis na realidade. Ele é uma construção ideológica cuja
consistência teórica está ainda por ser alcançada. É mais um cam-
po de trabalho do que um objeto de estudo cientificamente deli-
mitado”. Assim paralelismos e coincidências vão se apresentando
na discussão sobre a cultura popular.
Stuart Hall,1 em “Notes on deconstructing ‘the popular’”
(1981), afirma que o termo “cultura popular” pode ter vários e
diferentes sentidos. Entre os três descritos, o primeiro, senso co-
mum numa sociedade capitalista, associa popular com mercado,
ou seja, algo é popular porque é muito consumido. No entanto, o
autor mostra suas reservas em relação a esta definição, pois ela,
de um lado, pode identificar-se com uma noção de passividade e
manipulação e, de outro lado, pode contrapor-se à idéia de exis-
tência de uma cultura genuinamente popular.
Na realidade, ambos sentidos implícitos nessa primeira apro-
ximação mostram-se como um todo demasiado coerente e rígido:
um conjunto de formas/práticas populares que está “corrompido”
ou é “autêntico”.
Basicamente o que há de errado [nesta primeira definição] é que
ela negligencia as relações absolutamente essenciais do poder cul-
tural – de dominação e de subordinação – que é uma característica
intrínseca das relações culturais. Ao contrário, eu quero afirmar
que não existe nenhuma ‘cultura popular’ completamente autên-
tica e autônoma, que esteja fora do campo de força das relações de
poder e dominação cultural. Em segundo lugar, essa definição
subestima em demasia o poder de inculcação cultural. [...] [Dessa
forma,] o estudo da cultura popular continua sendo visto entre
dois pólos bastante inaceitáveis: pura autonomia ou total incor-
poração. (HALL, 1981, p. 232)
A segunda definição é puramente descritiva: é o que o povo
faz ou tem feito, isto é, um modo distinto de vida. Esse sentido
iguala-se a um inventário com uma infinita listagem, problemáti-
ca no momento de eliminar o que não é popular. Por outro lado,
sua oposição taxativa entre o popular e o não-popular não leva em
consideração, principalmente, o processo histórico, a movimen-
tação das formas culturais.
120
De um período para outro os conteúdos de cada categoria mudam.
As formas populares enriquecem seu valor cultural, sobem na es-
cala cultural e acabam por descobrirem-se no lado oposto. Outras
coisas deixam de ter alto valor cultural e são incorporadas pelo
âmbito do popular, transformando-se nesse processo. O princípio
estrutural não consiste, então, nos conteúdos de cada categoria –
os quais, eu insisto, se modificam de um período para o outro.
(HALL, 1981, p. 234)
E a terceira definição é aquela onde se insiste que o essencial
são as relações que definem a cultura popular numa contínua “ten-
são” – esta tanto pode implicar vinculação, influência e antagonis-
mo – com a cultura dominante (HALL, 1981, p. 235). Nessa
concepção, as relações de poder se manifestam e ocupam o lugar
central a partir do qual pensar o popular.
Essa última definição trata o domínio das formas culturais
populares como um campo em
permanente mudança.
Ela [essa definição de cultura popular] olha o processo pelo qual as
relações de dominação e subordinação são articuladas. Ela as trata
como processo: o processo através do qual algumas coisas são
ativamente preferidas enquanto outras podem ser menosprezadas.
Ela tem no seu centro as relações de força desiguais e variáveis que
definem o campo da cultura – isto é, a questão da luta cultural e
suas muitas formas. Seu principal foco de atenção concentra-se
nas relações entre cultura e questões de hegemonia. (Hall, 1981,
p. 235)
Nesta direção, Hall apresenta sua definição de cultura popu-
lar estreitamente ligada ao campo da política. Visões críticas des-
sa posição identificam que, aí, a idéia de cultura popular fica
reduzida à de política, o que passa a ser problemático para um
ponto de vista de análise cultural (MCGUIGAN,1992). A questão
fulcral, no entanto, não se situa apenas na relação que se estabele-
ce entre esses planos ou campos, cultura e política, mas destes
dois com os processos produtivos, com a estrutura da sociedade.
A incorporação da teoria da hegemonia na construção de um
protocolo teórico-metodológico de cultura popular resulta em duas
conseqüências: as formas culturais não têm em si um valor ou
121
sentido inerente e não existe uma relação direta entre classe e uma
prática cultural. Esse fato tem repercussão na discussão sobre o
valor cultural das práticas, sobre seu julgamento e, também, sobre a
posição que o analista assume diante dessa situação.
Em outro lugar, Hall (1986) apresenta uma revisão histórica e
teórica das relações entre essa última definição de cultura popular e
o Estado através de três estudos de caso: o processo de construção
de leis no século XVIII; o papel exercido pelo Estado na formação
da imprensa no século XIX e a constituição da BBC no início do
século XX. Todos esses períodos são considerados de transição his-
tórica na Inglaterra. Mediante a análise dessas circunstâncias, ele
demonstra que não existe uma relação estável, permanente e contí-
nua entre o “povo” – ou o público – a cultura e o Estado. Essas
relações são propriamente um espaço de contínua intervenção polí-
tica nas quais as posições são reformuladas a cada tanto.
Em 19922, Hall novamente ampara-se nessa análise teórica do
popular para refletir sobre a cultura popular negra. A cultura popular
negra é vista como um espaço contraditório, em alguns momentos é
um espaço estratégico de contestação, mas, em outros, é também
incorporação de valores dominantes (v. Hall et al. 1978). Por essa
razão, tais práticas não podem ser vistas através de um olhar de
oposições binárias tais como: resistência versus incorporação, autên-
tico versus inautêntico, oposição versus homogeneização.
Hall conclui que cultura popular: “é uma arena que é profun-
damente mítica. É um teatro de desejos populares, um teatro de
fantasias populares. É onde nós descobrimos e brincamos com nos-
sas próprias identificações, onde somos imaginados, representa-
dos, não somente para as platéias lá fora que não captam a mensagem,
mas, pela primeira vez, para nós mesmos” (Hall, 1996i, p. 474).
Além disso, é um espaço dialógico mais do que oposicional, é fusão
conflitiva, um espaço tanto de rejeição como de inclusão.
Na mesma direção, Bennett propõe um protocolo de aproxi-
mação à cultura popular que seja
uma abordagem que mantenha esses termos [cultura popular,
popular e povo] vazios em suas definições, – ou, pelo menos, rela-
tivamente vazios – com o interesse de preenchê-los politicamente de
122
diversas maneiras conforme a dinâmica das circunstâncias de-
mandarem. (…) O significado desses termos, por assim dizer,
nunca pode ser apreendido de forma fixa ou separadamente,
visto que seus usos estão sempre atrelados a uma luta para deter-
minar precisamente quais os sentidos de ‘povo’ e ‘popular’ que
terão politicamente peso em relação as suas habilidades de orga-
nizar diferentes forças sociais em uma aliança política ativa. (BEN-
NETT, 1986b, p. 8)
Desse modo, a definição de Hall para cultura popular deriva
sua força da categoria hegemonia a qual implica pensar o popular
em termos de relações entre classes. “A cultura popular é um dos
espaços onde ocorre a luta a favor e contra uma cultura dos pode-
rosos: é também um jogo a ser ganho ou perdido nesta luta. É a
arena de consentimento e de resistência. É parcialmente onde a
hegemonia surge e onde é assegurada” (HALL, 1981, p. 239). Essa
posição corre o risco de reduzir a cultura popular ao âmbito do
político. Mas o que interessa destacar, neste momento, é a relação
de tal posicionamento com a análise cultural propriamente dita.
Ao recuperar tal definição de cultura popular, observa-se uma
estreita afinidade entre essa preocupação da vertente britânica e a
proposta pelos autores latino-americanos em foco. A discussão
sobre o que é o popular, num tempo onde tudo ou quase tudo se
massifica, ocupa um espaço fundamental na construção do refe-
rencial de García Canclini. Mais tarde, em 1995 quando publica
Consumidores e Cidadãos, motivado pelas mudanças sócio-cultu-
rais decorrentes da globalização, modifica seus posicionamentos
– mais adiante comentarei a esse respeito. Isso, no entanto, não
invalida resgatar o movimento de suas formulações e reformula-
ções porque o objetivo, aqui, é demarcar um momento caracterís-
tico no estudo e reconhecimento cultural de modalidades diversas
de análise da comunicação.
Na pesquisa sobre artesanato e festas populares, realizada
entre 1977 e 1980, numa zona central do México, García Canclini
(1983) aponta como eixo fundamental para compreender as ma-
nifestações da cultura popular, no interior do sistema capitalista,
o desenvolvimento de uma estratégia de investigação que abran-
gesse tanto a produção quanto a circulação e o consumo.
123
De Gramsci, além da conexão cultura e hegemonia, é incor-
porada a própria noção de popular.
o popular não deve por nós ser apontado como um conjunto de
objetos (peças de artesanato ou danças indígenas), mas sim como
uma posição e uma prática. Ele não pode ser fixado num tipo
particular de produtos e mensagens, porque o sentido de ambos é
constantemente alterado pelos conflitos sociais. Nenhum objeto
tem o seu caráter popular garantido para sempre porque foi pro-
duzido pelo povo ou porque este o consome com avidez; o sen-
tido e o valor populares vão sendo conquistados nas relações sociais.
É o uso e não a origem, a posição e a capacidade de suscitar práticas
ou representações populares, que confere essa identidade. (GARCÍA
CANCLINI, 1983, p. 135)
Ao assumir tal definição, Canclini questiona o modo pelo qual
as culturas populares foram abordadas tanto pelo folclore quanto
pela comunicação, sugerindo que o popular é um espaço a partir
do qual é possível repensar a complexa estrutura dos processos cul-
turais e, simultaneamente, implodir os redutivismos disciplinares.
Dessa forma, o popular se reformula como uma posição
múltipla, representativa de correntes culturais diversas que reivin-
dicam uma inter-comunicação massiva permanente. O popular
não aparece, diz García Canclini (1987, p. 10), como o oposto ao
massivo, mas como um modo de atuar nele. E o massivo não é,
nesse caso, somente um sistema vertical de difusão e informação;
também é, como disse uma antropóloga italiana, a expressão e
amplificação dos vários poderes locais que vão se difundindo no
corpo social.
Tal noção de popular relaciona-se diretamente com os usos,
as apropriações, a recepção, enfim, com o consumo. Aí, já está
expresso o embrião para a seqüência de suas investigações, apro-
ximando-se cada vez mais do consumo como objeto de estudo.
Em Culturas híbridas (1989), García Canclini busca repen-
sar a heterogeneidade da América Latina como uma articulação
complexa de tradições e modernidades (diversas e desiguais), como
um continente formado por países
onde coexistem múltiplas lógi-
cas de desenvolvimento. Sem nostalgia, propõe, então, a análise
124
do hibridismo intercultural, apontando processos-chave para ex-
plicá-lo: a ruptura das coleções que organizavam os sistemas cul-
turais e a desterritorialização dos processos simbólicos.
Hoje, as coleções se desestruturam e o xerox e o videocasse-
te, entre outros, podem ser citados como dispositivos de reprodu-
ção que contribuem para esta desestruturação. Os videoclips e os
videogames podem ser apontados como exemplos dos novos recur-
sos tecnológicos que surgem fundindo e decompondo as rígidas
separações entre o culto, o popular e o massivo. E, como gêneros
impuros, pode-se incluir os grafites e as histórias em quadrinhos.
Essas referências têm curso num trânsito permanente do autor
pelo engajamento empírico e interpretação teórica.
Por outro lado, o processo de desterritorialização é concomi-
tante ao de reterritorialização na medida em que os indivíduos se
desenraízam de um território nacional que definia sua identidade,
e se enraízam no espaço local onde se dão suas práticas cotidia-
nas. Do ponto de vista teórico, a contribuição original de García
Canclini encontra-se na idéia de hibridez das culturas contempo-
râneas. Esta idéia é uma proposta conceitual feita para estudar
uma série de fenômenos e de processos contemporâneos que não
são identificados, exclusivamente, no espaço do culto/erudito,
popular ou massivo.
A hibridez trata de designar, precisamente, esse caráter misto, esses
cruzamentos interculturais nos quais, no meu modo de ver, deve
situar-se a investigação. […] A proposta de Culturas híbridas é a de
elaborar uma noção de hibridação que permita abarcar, de um
modo dinâmico, os diferentes processos em que o culto, o popu-
lar e o massivo se inter-relacionam, se misturam; o tradicional se
intercepta com o moderno; distintas culturas de países e regiões
diferentes também entram em relação. Interessa-me analisar como
esses intercâmbios dos processos culturais se produzem, para não
dar visiões fragmentadas, excessivamente analíticas. (GARCÍA CAN-
CLINI apud MONTOYA, 1992, p. 11)
As duas principais conseqüências dessa postura teórico-me-
todológica, mencionadas em outros termos por Hall (1981), são:
não se pode vincular rigidamente as classes sociais com estratos
culturais fixos, nem esses estratos culturais comportam um elenco
125
de bens simbólicos e valores nitidamente definidos e fixos – por
exemplo, a elite não domina um repertório cultural, exclusiva-
mente, erudito, pois existem obras, nesse espaço, que estabele-
cem relações com outras esferas; não se pode vincular rigidamente
repertórios culturais a territórios, isto é, delimitar a definição
de identidades culturais às fronteiras nacionais de um território
geográfico.
A perda da relação natural da cultura com um território geo-
gráfico ou o processo de desterritorialização, assim como a queda
das fronteiras entre estratos culturais (erudito, popular e massivo)
e culturas diversas (locais, regionais, nacionais e global) ou o pro-
cesso de hibridação cultural é o foco central da reflexão proposta
em Culturas híbridas (1989). Mas, enfim, ainda nesse texto Gar-
cía Canclini (1989a, p. 260) reconhece que:
as investigações mais complexas dizem, perfeitamente, que o popu-
lar se dispõe em cena não com uma unidirecionalidade épica, mas
com o sentido contraditório e ambíguo de quem padece a história e,
ao mesmo tempo, luta com ela; referem-se, também, àqueles que
vão elaborando, como em toda tragicomédia, os passos interme-
diários, as astúcias dramáticas, os jogos paródicos que permitem a
quem não tem possibilidade de mudar radicalmente o curso da
obra, administrar os interstícios com parcial criatividade e benefí-
cio próprio. (grifo meu)
Em outras palavras, García Canclini critica tanto a teoria
fundamentada na reprodução social quanto aquela que se ampara
na hegemonia, embora reconheça em ambas teorias pistas suges-
tivas para compor uma análise do âmbito do popular. Contudo,
ambas contém limitações próprias à sua tecitura. A primeira, re-
servando toda iniciativa aos grupos dominantes; a segunda, desta-
cando a autonomia dos grupos populares.
Na tentativa de compor uma definição que escape das armadi-
lhas propostas pelas teorias citadas, García Canclini (1989a, p. 259)
atribui ao popular o valor ambíguo de uma noção teatral. Assim,
afirma: “as interações entre hegemônicos e subalternos são cená-
rios de luta, mas também espaços onde uns e outros dramatizam
(grifo meu) as experiências da alteridade e do reconhecimento.
126
A confrontação é um modo de encenar a desigualdade (enfrenta-
mento para defender o próprio) e a diferença (pensar-se através
do que desafia)”.Vai enfatizar, ainda, que nas manifestações po-
pulares existe “ação e atuação”, “expressão do próprio e reconstitui-
ção incessante do que se entende por próprio em relação às leis
mais amplas da dramaturgia social como, também, em relação à
reprodução da ordem dominante”(1989a, p. 260, grifo meu).
Na trama conceitual, proposta por Martín-Barbero, o popu-
lar também assume uma importância decisiva: não se pode pensar
o popular à margem do processo histórico de constituição do
massivo, da ascensão “das massas” e da sua presença no cenário
social. O popular é um lugar a partir do qual pode-se pensar o
processo comunicativo, é uma matriz cultural vista como media-
ção para estudar a comunicação, localizada entre os meios e as
práticas cotidianas.
Martín-Barbero efetiva esse procedimento de aproximação
teórica ao popular com elementos da filosofia, da história, da so-
ciologia, da política e da antropologia, construindo uma proposta
para investigar o processo de constituição do massivo a partir das
mediações e dos sujeitos.
Para alcançar tal objetivo, Martín-Barbero desvela, em De los
medios a las mediaciones (1987), o movimento de gestação de al-
guns conceitos, refazendo sua história. Faz, então, uma revisão
crítica da idéia de povo para românticos e ilustrados; da idéia de
povo, agora, diluída na de classe social, debate que contrapõe
anarquistas e marxistas;3 e, ainda, da idéia de povo dissolvida na
de massa, proposta por teóricos liberais, principalmente, de for-
ma mais recente através de intelectuais norte-americanos; de con-
ceitos da Escola de Frankfurt sobre os processos de massificação;
dos desenvolvimentos que essa escola desencadeou através das
formulações de Edgar Morin, Jean Baudrillard e Jürgen Habermas;
da contribuição dos estudos históricos que redescobriram o po-
pular, restituindo-lhe um papel de memória constitutiva do pro-
cesso histórico; dos estudos culturais, via os trabalhos de Richard
Hoggart e Raymond Williams; da vertente sociológica francesa
que trabalha a temática da cultura, destacando-se Pierre Bourdieu
e, ainda, do trabalho singular de Michel de Certeau.
127
É através dessa retrospectiva que Martín-Barbero constrói
sua posição, sintetizada na idéia de que o popular somente tem
sentido, hoje, se for pensado na sua “imbricação conflitiva no
massivo” (MARTÍN-BARBERO, 1987a, p. 248). A referência ao “mas-
sivo”, segundo Martín-Barbero, diz respeito a condição estrutural
da sociedade moderna, a uma nova forma de sociabilidade, a no-
vas condições de existência e, por sua vez, a um novo modo de
funcionamento da hegemonia. Daí sua insistência em tentar en-
tender como a massificação funciona, hoje, seus traços históricos
e desenvolvimento na América Latina.
Nessa direção, Martín-Barbero procura restabelecer o en-
contro entre “modernidade” e “cultura popular”. Assim, na avali-
ação de Herlinghaus (1998, p. 18),
a noção do ‘popular’ é submetida a uma reformulação pouco
usual já que é ligada aos processos concretos de modernização. O
popular aparece agora localizável numa relação dinâmica com o
massivo – de acordo com a hipótese de que a modernidade latino-
americana,
revisada dessa forma, se caracteriza por uma ‘não-con-
temporaneidade’ constitutiva, isto é, por descontinuidades culturais
cujo signo histórico é a ‘não-exterioridade’ do massivo no popu-
lar –, constitui-se em um de seus modos de existência. Aí, não se
confundem memória popular e imaginário de massa, mas se aban-
dona a conhecida ilusão essencialista de um estrato popular incon-
taminado e autêntico.
Ao reformular a noção de popular, Martín-Barbero creditou
especial papel à ação dos setores populares no fortalecimento da
sociedade civil. Esse otimismo se lastra, essencialmente, na sua
incorporação da capacidade “tática” atribuída às classes popula-
res por Michel De Certeau. Grosso modo, as táticas da vida coti-
diana são o locus da resistência e subversão.
Nas palavras de Martín-Barbero (1987a, p. 94):
Popular é o nome para uma gama de práticas inseridas na modali-
dade industrial, ou melhor, o ‘lugar’ a partir do qual devem ser
vistas para se desentranharem suas táticas. Cultura popular fala,
então, não de algo estranho, mas de um resto e um estilo. Um
resto: memória da experiência sem discurso, que resiste ao discurso e
128
se deixa dizer só no relato. Resto feito de saberes inúteis à coloniza-
ção tecnológica, que assim marginalizados, carregam simbolicamen-
te a cotidianidade e a convertem em espaço de uma criação muda e
coletiva. E um estilo, esquema de operações, modo de caminhar pela
cidade, habitar a casa, de ver televisão, um estilo de intercâmbio
social, de inventividade técnica e resistência moral.
Esse posicionamento gerou uma certa desconfiança no pro-
jeto barberiano. Todavia, Martín-Barbero, mais tarde, vai mati-
zar a valorização da capacidade criativa coletiva, expressa nesse
momento, ao alertar contra a tendência de pensar que existe ape-
nas uma única forma “autêntica” de alternativo. É muito o esfor-
ço de dar voz e imagem aos excluídos e de abrir espaço à expressão
popular que tem detrás da chamada ‘comunicação alternativa’.
Mas, também, é muito o que, aí, tem sido ocultado de visão ma-
niqueísta e marginal, carregada de resíduos puristas e populistas:
isto é, o alternativo, identificado com o popular e, por sua vez,
com o autêntico, seria o mundo da horizontalidade e da participa-
ção em si mesma” (MARTÍN-BARBERO, 1995a, p. 200).
Esses três posicionamentos – de Hall, García Canclini e Mar-
tín-Barbero – falam por si mesmos nas suas afinidades e discor-
dâncias. Até aqui não existem, ainda, divergências profundas, mas
há indícios que tais itinerários individuais mostrarão suas singu-
laridades quando a temática da globalização e sua incidência no
campo cultural e, por sua vez, na arena popular, for pontuada
mais enfática e detalhadamente. Esse recorte será tratado em ou-
tro lugar deste trabalho.
Desse modo, o reconhecimento do âmbito popular como
um espaço de protagonização da hegemonia revela uma opção
política. Não há como evitar reconhecer que existe uma política
assumida na posição teórica dos estudos culturais, assim como
uma causa subjacente a essa posição.
A relação entre popular, hegemonia e política está expressa-
mente articulada com a influência do pensamento de Antonio Gra-
msci nas formulações dos autores em foco. Contudo, é preciso
mencionar a interpretação deste conceito-chave de hegemonia. Se-
guindo uma via analítica do pensamento gramsciano, proposta por
Norberto Bobbio, hegemonia significa direção política, mas
129
também e, predominantemente, direção cultural. “Com relação à
função, a hegemonia não visa apenas à formação de uma vontade
coletiva capaz de criar um novo aparelho estatal e de transformar a
sociedade, mas também à elaboração e, portanto, à difusão e à reali-
zação de uma nova concepção de mundo” (BOBBIO, 1987, p. 48).
Através de outra análise da reflexão de Gramsci, realizada
por Carlos Nelson Coutinho, reitera-se que os “[…] conceitos
gramscianos, sublinham fortemente o momento superestrutural, sobre-
tudo o momento político, superando assim as tendências economicistas”
(COUTINHO citado por ARICÓ, 1998, p. 19, grifo meu).
Ao recuperar esses comentários, assinalo a possibilidade de
que a própria categoria hegemonia possa ser considerada funda-
mentalmente como superestrutural. A armadilha que o conceito
hegemonia traz à tona para um pesquisador do campo cultural, é
de perder de vista as complexas relações entre superestrutura e
estrutura. Como o objeto de estudo primordial do analista cultural
encontra-se no primeiro nível (somente para efeitos de exposição
podemos classificá-lo dessa forma), o risco de superestimá-lo é
grande. Um especial interesse na especificidade do cultural tende
a subvalorizar as determinações econômicas e, em alguns casos,
as políticas que, na realidade, configuram as condições de produ-
ção e circulação das mercadorias culturais.
Desenvolvendo um raciocínio que guarda algumas aproxi-
mações com essas últimas considerações, mas também estenden-
do sua análise a outros pontos, McGuigan (1992) observa o
aparecimento de uma força “acrítica” no estudo da cultura popu-
lar no âmbito dos estudos culturais, estimulada pelo fracasso de
articular consumo e produção cultural. Essa força “acrítica” é atri-
buída à teoria da hegemonia. “Uma crise de paradigma nos estu-
dos culturais contemporâneos do qual uma tendência populista é
um sintoma, é identificada e relacionada às contradições internas
da teoria da hegemonia neo-gramsciana que uma vez coesionou o
campo de estudo em oposição à perspectiva da economia-políti-
ca” (MCGUIGAN, 1992, p. 5).
Ao avançar nas suas críticas, o autor insiste: “A teoria da
hegemonia colocou ‘entre parênteses’ (grifo meu) o econômico
130
da produção cultural, de tal forma, que uma perspectiva ex-
clusivamente focada no consumo pode emergir de suas contradi-
ções internas: essa é uma das razões pelas quais deixou de ser a
moldura ordenadora que uma vez foi” (MCGUIGAN, 1992, p. 76).
Essa situação criou um fosso entre os estudos culturais e a econo-
mia-política da comunicação e da cultura.
A partir do momento que é identificada essa vertente “acríti-
ca” nos estudos culturais contemporâneos, delineia-se um dos di-
lemas que a armação teórico-metodológica dos estudos culturais
coloca para o estudo da cultura popular: “a dissidência entre os
micro-processos do sentido e os macro-processos da economia-
política é uma das principais razões da limitação do populismo
cultural no plano explicativo” (MCGUIGAN, 1992, p. 171).
Até o momento analisado neste capítulo, não se pode atri-
buir diretamente essas críticas às reflexões dos autores em foco –
Néstor García Canclini, Jesús Martín-Barbero e Stuart Hall. Bem
diferente é observar a incorporação dessas idéias e seu uso no de-
senvolvimento tanto da vertente britânica ou da latino-americana,
principalmente, no que diz respeito a pesquisa da atividade da au-
diência e dos diversos sentidos que os meios de comunicação, so-
bretudo, a TV, assumem no cotidiano. Aí, traços dessa crítica podem
ser vivamente evidenciados. Porém, a centralidade que a esfera cul-
tural assume no programa de investigação proposto por esses auto-
res, mesmo que resguardados matizes distintos, permite
interpretações de que é através dela que o econômico e o político
se realizam. Teríamos, assim, um determinismo às avessas.
FORMAS DE ENGAJAMENTO INTELECTUAL
El oficio del intelectual en esto consiste, en hacer aparente
todo aquello frente a lo que muchos son ciegos por ser
demasiado obvio. Sabe escuchar dentro de los silencios de una
época, pega el oído a la tierra para escuchar las corrientes
subterráneas, el rumor insignificante confundido con el
ruido para comprender su sentido: he ahí su sensibilidad para
captar lo esencial.
Javier Protzel
131
A prática dos estudos culturais envolve produção de teorias,
de conhecimento. Porém, não se trata apenas de aplicar teorias
existentes a um recorte
empírico determinado. Na obra de Hall,
García Canclini e Martín-Barbero o elemento teórico é visto como
uma resposta à práticas específicas em contextos particulares.
Reafirma-se que essa é uma das características proeminentes da
proposta teórico-política dos estudos culturais.
Falando sobre a constituição e a prática dos estudos culturais
britânicos, Hall (1996a, p. 264) diz que uma atitude de pesquisa
que almeja demarcar uma “diferença no mundo” deve ter algumas
marcas de distinção. As marcas distintivas compõem o que ele
denomina de uma questão de posicionamento [positionalities].
“Porém, também é verdade que esses posicionamentos [positiona-
lities] jamais são definitivos, nunca são absolutos; não podem ser
traduzidos de forma intacta de uma conjuntura para outra, não
podem estar subordinados a permanecer no mesmo lugar”.
Condições históricas bem gerais como industrialização, mo-
dernização, urbanização, massificação, mercantilização da vida
cultural, desenvolvimento de novas formas de capitalismo, globa-
lização da economia, migrações, emergência de novos nacionalis-
mos e fundamentalismos, entre outras, manifestam-se de forma
diferenciada em diversos contextos nacionais. Em cada contexto,
essas forças têm produzido com freqüência significativos desloca-
mentos sociais, políticos e culturais. São essas mesmas condições
gerais históricas, que se mostram específicas em contextos parti-
culares, que deságuam diferentes tradições – que comportam na
sua unidade o seu oposto, a não-coesão; que reivindicam a provi-
soriedade de suas interpretações, ao contrário, da certeza absolu-
ta do conhecimento – de estudos culturais.
Essas contingências são centrais no desenvolvimento e na
vitalidade dos estudos culturais contemporâneos. No entanto, isso
não quer dizer que toda posição teórica, dentro do campo dos
estudos culturais, tenha de ser separada de seus usos anteriores
para ser utilizada em contextos culturais distintos. Existem con-
ceitos suficientemente abstratos e gerais que podem ser translada-
dos a novos contextos toda vez que seja necessário. De outro lado,
existem também conceitos que, profundamente enraizados numa
132
determinada conjuntura, não podem simplesmente ser transplan-
tados para outra situação, sem serem repensados.
A expansão do projeto dos estudos culturais para outros terri-
tórios é um processo de negociação cultural. Hall (1996f, p. 393)
insiste em que as novas inserções dos estudos culturais se dão
através de processos de “re-tradução”.
[Os estudos culturais estão] passando por um processo de re-
tradução por onde quer que estejam sendo compreendidos, espe-
cialmente nos Estados Unidos, Austrália e Canadá. Cada um desses
lugares está envolvido com sua própria re-tradução. Além disso,
também há uma tradução entre gerações, mesmo dentro dos estu-
dos culturais britânicos. Os estudos culturais estão agora em uma
posição diferente de quando o Centro de Birmingham estava atu-
ando. Mesmo após a primeira década do trabalho inicial do Cen-
tro, nos anos oitenta, era bem diferente. Por isso, estou chocado
com o fato de que, de um certo modo, a internacionalização coloca
problemas em uma escala maior, mas não de diferente tipo, porque
a tradução tem que continuar, onde quer que praticantes se apropri-
em de um paradigma e suas próprias preocupações.
Afirma, ainda, que é um processo contínuo de re-articulação
e re-contextualização, sem nenhuma noção de origem primária.4
Dessa forma, onde os estudos culturais ganham espaço, os termos
vão mudando, existindo uma apropriação particular. Em qual-
quer processo de rearticulação e desarticulação, há elementos que
permanecem, conceitos comuns, mas também há novos elemen-
tos que mudam sua face.
Se não fosse assim, o processo estaria incompleto, pois não
daria conta das particularidades da sociedade em análise.
Os estudos culturais são transformados uma vez que se começa a
pensar o que é [por exemplo] a situação de Taiwan, o que ‘nação’
significa lá e como a internacionalização e a nova economia global
estão transformando aquela sociedade. Até que se penetre nos
estudos culturais a partir dessas estruturas – não a partir de dentro
mesmo dos estudos culturais, mas através dessas externalidades –,
não se traduz realmente os estudos culturais, simplesmente os
toma emprestado, renova-os, brinca de revestí-los. (HALL, 1996f,
p. 397, grifo meu).
133
Essa relação entre teoria e situações concretas particulares e
a constatação de que problemáticas teóricas para serem utilizadas
em realidades diferenciadas necessitam “traduções”, revela estrei-
ta proximidade com o pensamento gramsciano. Gramsci em inú-
meras partes dos seus Cadernos refere-se ao problema da
“tradutibilidade”. No sentido gramsciano, essa problemática re-
fere-se à possibilidade de algumas experiências históricas, políti-
cas e sociais encontrarem uma equivalência em outras realidades
(cf. ARICÓ, 1998).
“Se a tradutibilidade supõe que uma fase determinada da
civilização tenha uma expressão cultural ‘fundamentalmente’ idên-
tica, ainda que a linguagem seja historicamente distinta na medi-
da em que está determinada por tradições específicas de cada
cultura nacional e tudo o que dela se depreende” (ARICÓ, 1998,
p. 6), a prática dos estudos culturais pode ser traduzida para
outros contextos e territórios toda vez que seja possível estabele-
cer algum tipo de sintonia histórico-cultural entre seu mundo e
aquele para o qual está sendo apropriado.5
Também em suas notas, “Gramsci se pergunta pelas condi-
ções de ‘universalidade’ de um princípio teórico. Sua resposta
insiste na necessidade de que ele apareça como uma expressão
originária de uma realidade concreta a qual ele se
incorpora”(ARICÓ, 1998, p. 17). Sobre esse aspecto é o próprio
Hall que faz questão de salientar tal caráter peculiar da produção
intelectual gramsciana.
Ele [Gramsci] estava usando constantemente ‘teoria’ para ilumi-
nar casos históricos concretos ou questões políticas; ou para pen-
sar em conceitos amplos em termos de suas aplicações a situações
específicas e concretas. Conseqüentemente, o trabalho de Gramsci
normalmente aparece como muito concreto: demasiado historica-
mente específico, muito delimitado em suas referências, muito
‘descritivamente’ analítico, muito preso ao tempo e contexto. Suas
idéias e formulações mais brilhantes são tipicamente do tipo con-
juntural. Para se fazer um uso mais geral de suas idéias, elas têm que
ser delicadamente desenterradas de seus enraizamentos intrinsica-
mente concretos e históricos e serem transplantadas para um novo
solo com considerável cuidado e paciência. (HALL, 1996c, p. 413)
134
Duplicando essas considerações de Hall, pode-se aplicá-las
às características dos trabalhos – pelo menos àqueles que têm qua-
lidade teórico-descritiva – do próprio projeto geral dos estudos
culturais. É claro que não esquecendo as devidas diferenças entre
a produção original de um pensador marxista e um projeto que
mais articulou diferentes tradições teóricas na composição de uma
perspectiva metodológica com tal particularidade.
O que se observa na América Latina através das formulações
de Martín-Barbero e García Canclini, é uma criatividade teórico-
metodológica profundamente enlaçada com a conjuntura latino-
americana mas, ao mesmo tempo, em sintonia com um movimento
intelectual maior, passível de ser associada aos estudos culturais.
Uma afinidade teórica perpassa as observações de Hall, García
Canclini e Martín-Barbero, embora cada uma delas esteja enraiza-
da e levando em consideração condições históricas determinadas
e percursos próprios.6
O caminho de Stuart Hall, entranhado numa situação histó-
rica particular, e a construção de um conjunto de questões em
torno de seu trajeto individual estão expressos nas suas análises do
thatcherismo, da reação da sociedade britânica à ascensão do cri-
me, assim como nas observações
sobre as subculturas juvenis e
sobre a identidade negra e sua inserção na cultura britânica.
Sua preocupação incessante com problemáticas da atualida-
de quer sejam de maior densidade como o debate da pós-moder-
nidade, globalização, constituição de identidades, entre outras,
quer sejam de recorte mais empírico como a inserção de uma
tecnologia como o walkman no cotidiano social, mostram seu
permanente engajamento com a fluída movimentação da socieda-
de contemporânea.
Imersos no mundo híbrido da América Latina, Martín-Barbe-
ro e García Canclini compõem, também, reflexões comprometidas
e situadas historicamente. O primeiro expõe explicitamente esse
tipo de posicionamento ao propor incorporar a dimensão histórica
na pesquisa em comunicação. Segundo Martín-Barbero, isso signi-
fica assumir um determinado lugar – posição do investigador –
para recuperar a história dos processos culturais como articulado-
res das práticas comunicativas com os movimentos sociais.
135
Na realidade, Martín-Barbero procura construir uma história
da constituição do cultural. A história do melodrama na América
Latina, projeto levado adiante por ele, exemplifica tal procedimen-
to. O melodrama é, ao mesmo tempo, forma de recuperação da
memória popular pelo imaginário, fabricado pela indústria cultu-
ral, e indicador da presença do popular na constituição do massivo.
Outras frentes de trabalho, – estudos dos processos de co-
municação cotidiana, observação de práticas populares e seu vín-
culo com a mudança social (religiosidade popular), formação
profissional – todas interpretadas à luz da inter-relação entre
comunicação, cultura e sociedade na América Latina, reiteram
essa mesma posição.
Já García Canclini parte do pressuposto de que para compre-
ender a conjuntura latino-americana deste final de século, é preci-
so uma perspectiva pluralista que admita a fragmentação e as
combinações múltiplas entre tradição, modernidade e pós-moder-
nidade. Na América Latina, de acordo com García Canclini, a
modernidade não está superada, mas vive-se um estilhaçamento
do moderno, uma interação crescente entre culto, massivo e po-
pular, diluindo fronteiras entre seus praticantes e os distintos esti-
los. Uma das principais conseqüências é a reformulação do capital
simbólico mediante cruzamentos e intercâmbios.
A sociabilidade híbrida que sugerem as cidades contemporâneas
nos leva a participar, em forma intermitente, de grupos cultos e
populares, tradicionais e modernos. A afirmação do regional ou
nacional não tem sentido nem eficácia como condenação geral do
exógeno. Devem ser concebidos, hoje, como a capacidade de inte-
ragir com as múltiplas ofertas simbólicas internacionais a partir de
posições próprias. (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 332)
Em termos de temáticas pesquisadas, García Canclini desen-
volve estudos sobre os desafios enfrentados pelas identidades na-
cionais na medida em que se aceleram os acordos de livre comércio
e integração global das economias. No caso específico do Méxi-
co, com o Tratado de Livre Comércio da América do Norte.
Ele realiza, também, estudos de consumo cultural e pesqui-
sas sobre políticas culturais e consumo popular na Cidade do
136
México. Num período anterior, investigou culturas tradicionais
como artesanato e festas populares, sob o efeito da massificação,
do turismo e da modernização. Enfim, o autor transitou no traba-
lho de campo tanto em zonas rurais e indígenas quanto na cidade
contemporânea.
Se o trabalho teórico-intelectual se dá numa relação com as
circunstâncias históricas vividas, a prática intelectual acaba tendo
ressonâncias políticas. Do ponto de vista dos estudos culturais bri-
tânicos, da sua origem até a contemporaneidade, a relação teórico/
político sempre foi uma premissa fundamental. Hall ressalta que
mesmo quando o debate sobre assuntos específicos estavam ocor-
rendo dentro do Centro de Birmingham, todo mundo sabia que
a relação entre política e cultura era central em nossas preocupa-
ções e prática. Não uma posição política particular e sectária – isso
nós sempre evitamos- mas a relação entre cultura (entendida como
práticas significantes) e poder. De um certo modo, se há alguma
coisa para ser aprendida dos estudos culturais britânicos é a insis-
tência na articulação entre cultura e poder – em diferentes contex-
tos, obviamente. (HALL, 1996f, p. 395)
No debate contemporâneo ainda essa questão da politização
da prática dos estudos culturais é objeto de preocupação.
Os estudos culturais são, com certeza, ou, pelo menos, aspiram ser
um modo de politizar práticas intelectuais. Porém, a prática de
estudos culturais não impõe aos seus praticantes uma agenda po-
lítica específica, e não acarreta quaisquer posições fixas ou soluções
prontas para conflitos. Examinar a ‘relação entre’ povo e poder, e
perguntar ‘quando e como’ o poder está localizado em suas vidas,
é adotar uma abordagem contextual ou uma aproximação prag-
mática à política. (MORRIS, 1997, p. 43)
 Entre outros intelectuais que se destacam nesse campo, Tony
Bennet (1992,1993) e McGuigan têm enfatizado esse aspecto, ou
melhor, têm insistido na recuperação e na necessidade de discutir
“política” ou “políticas” nos estudos culturais.
Essa idéia se cruza com as propostas de Martín-Barbero que
entende a atividade de investigação como atividade crítica, acompa-
nhada de um compromisso com um projeto político de participação
137
popular. Tal posicionamento se manifesta, por exemplo, na sua preo-
cupação com a educação, especialmente, com a escola e com o papel
do professor enquanto “provocador de interrogantes”.
Mas, também, Martín-Barbero enfatiza em sua extensa pro-
dução de textos que os avanços teóricos, obtidos na reflexão sobre
a cultura ou sobre a comunicação na cultura, devem tornar-se
operativos, traduzíveis. Isto é, não deve existir um confronto en-
tre teoria-prática, mas constribuições teóricas destinadas a fecun-
dar a ação em si mesma. Aí, tem origem sua preocupação com a
constituição de um comunicador como intelectual.
Pensar na possibilidade que o espaço da comunicação seja
um lugar estratégico para pensar a sociedade, significa refletir
sobre o peso social dos estudos da comunicação e a exigência de
repensar as relações comunicação e sociedade. Por essa razão,
Martín-Barbero reivindica a conversão do comunicador em inte-
lectual, de intermediário entre produtores e consumidores para
mediador na cultura. E o mediador deve tornar explícita a relação
entre diferença cultural e desigualdade social.
Em contraste com o intermediário, o mediador se reconhece soci-
almente necessário mas, culturalmente, problemático, num ofício
ambíguo e até contraditório: trabalhar pela abolição das fronteiras
e das exclusões é despojar de chão seu próprio ofício; buscar a
participação das maiorias na cultura é elevar o número dos produ-
tores mais do que dos consumidores[…]. (MARTÍN-BARBERO, 1990,
p. 14).
O que o autor parece querer argumentar é que a investiga-
ção em comunicação não está eximida de elaborar uma teoria
com vínculo social e, por sua vez, este investigador e/ou comuni-
cador não está isento de exercer o papel de intelectual. No entan-
to, mais recentemente, reconhece que o papel do intelectual está
em xeque a partir da crise do Estado-nação, das utopias e da
esfera pública política7. Além disso, os seus últimos textos (1997/
98) exalam um certo ceticismo a projetos mais ambiciosos de
emancipação e transformação social.
A repercussão desse tipo de atitude de engajamento intelectual
tem, também, seus desdobramentos na obra de García Canclini
138
que procura com freqüência relacionar sua produção teórico-em-
pírica com o ato de trazer para o campo cultural uma perspectiva
de ação. Não basta abordar as representações simbólicas e os as-
pectos reprodutivos do campo simbólico, mas propor uma estra-
tégia de ação, uma proposição
política. Daí resulta a impressão
de que o autor realiza uma análise do presente articulada à vonta-
de de transformação. Esse é um ato político que articula a análise
científica com a ação política.
Tal tipo de engajamento pode ser observado, em primeiro
lugar, no texto As culturas populares no capitalismo (1983). Nas con-
clusões desse trabalho, encontram-se delineadas políticas culturais
que tratam das relações dos artesãos com o Estado e o papel deste
último em relação às culturas populares. A ênfase dessas políticas
culturais populares encontra-se no papel de protagonista que os
próprios produtores devem exercer, mas isto somente se realizará
como conseqüência de uma democratização radical da sociedade
civil.
Em Culturas híbridas (1989), García Canclini avalia os efei-
tos do discurso e da prática liberal ou neo-conservadora. O papel
do poder público se reduz como garantia da democratização cul-
tural. Isso significa concentrar o poder em empresas privadas,
transformando em mercadoria os anteriormente serviços públicos
de informação, artes, comunicação e outros. Dessa forma, o aces-
so a esses bens torna-se possível somente a setores privilegiados.
Em tal panorama, a fragmentação dos públicos, produzida pela
diversificação das ofertas, reduz a expansão dos bens simbólicos.
E o efeito é uma segmentação desigual dos consumos.
Ainda no mesmo livro, o autor evita explicitar generalizações
“fortes”, pois reconhece a crise da noção de totalidade, num tempo
onde a história se movimenta em muitas direções e toda conclusão
é provisória e incerta. Diante da diversidade e desigualdade de
condições vividas pelos países latino-americanos o que enlaça todos
e tudo é uma reformulação do capital simbólico mediante cruza-
mentos do culto, popular, massivo, tradicional, moderno, ou me-
lhor, através da reconversão ou hibridismo cultural.
Assim, este livro não termina com uma conclusão senão com uma
conjetura. Suspeito que o pensamento sobre a democratização e a
139
inovação se movimentará nos anos noventa nesses dois trilhos que
acabamos de atravessar: a reconstrução não substancialista de uma
crítica social e o questionamento às pretensões do neoliberalismo
tecnocrático de converter-se em dogma da modernidade. Trata-se
de averiguar, nessas duas vertentes, como ser radical sem ser funda-
mentalista. (GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 348)
Em Consumidores e cidadãos (1995b), apesar de considerar a
irreversibilidade do processo de globalização, García Canclini não
acredita que o global esteja substituindo o local, assim como não
vê o atual modo neoliberal de nos globalizarmos como o único
possível. É nesse sentido que ele propõe uma luta pela reforma do
Estado, traçando políticas culturais que assegurem iguais possibi-
lidades de acesso aos bens da globalização.
Como o título desse livro sugere, o autor procura indagar como
podemos entender as tensões identitárias entre o sujeito-consumi-
dor e o sujeito-cidadão em um contexto de mercado econômico e
cultural glogalizado. No final, ele reivindica uma articulação entre
mercado e propostas políticas com o intuito de resguardar a produ-
ção cultural latino-americana e preservar o papel do Estado como
um agente importante da identidade cultural coletiva.
Ao recuperar as contribuições mais significativas do pensa-
mento de García Canclini para os estudos culturais latino-ameri-
canos e, especialmente, mexicanos, Lull (1998, p. 412) conclui
que, em Culturas híbridas (1989), “García Canclini imagina um
tipo de utopia da comunicação – uma esfera pública mediada que
lembra o que John Thompson propõe por ‘reinvenção do espaço
público’. García Canclini acredita que o mercado pode reascen-
der a ‘imaginação de uma esfera pública’ e que um vasto e variado
universo de produtos e mensagens deveria estar igual e facilmente
acessível para a maioria do povo”.
Do meu ponto de vista, no mínimo três alternativas se abrem
para definir o posicionamento de García Canclini: utópico, ingê-
nuo ou apenas favorável a um multiculturalismo democrático.
Isso somente poderá ser avaliado com o cuidado que merece,
após resgatar as considerações de García Canclini sobre a con-
temporânea organização das identidades, próxima temática deste
livro. De toda forma, fica explícita a posição de intervenção social
140
assumida por ele. Essa marca de intervenção estende-se, também,
à prática de estudos culturais em outros contextos geográficos.
Novamente, o exemplo pode ser o caso australiano. Na apresenta-
ção de uma coletânea de textos sobre os estudos culturais naquele
território, Frow e Morris (1996, p. 354) salientam que, embora
não exista um consenso sobre “uma política do trabalho intelectu-
al”, o projeto dos estudos culturais está, em certa medida, sempre
marcado pelo discurso do envolvimento social.
Na trajetória da vertente britânica de estudos culturais fica clara
a preocupação em produzir um interesse simultâneo por formas de
conhecimento e formas de política. Referindo-se ao trabalho do
CCCS, Green (1996c, p. 97) afirma: “Eles [os estudos culturais]
tornaram-se amplamente conhecidos por sua combinação de crítica
política engajada, trabalho com textos, mas também através de estu-
dos etnográficos, inseridos num contexto de mudança política e soci-
al, e uma incansável exploração de marcos teóricos”.
Na proposta original do CCCS e do seu coletivo de pesquisa-
dores, não havia dúvidas a respeito da intenção de constituir “in-
telectuais orgânicos”. A necessidade de refletir sobre a posição
institucional e sobre a prática intelectual, novamente, estabeleceu
um vínculo entre Gramsci e os estudos culturais britânicos.
Hall reconhece que:
Devo confessar que, embora tenha lido muitas abordagens mais
elaboradas e sofisticadas, a de Gramsci ainda me parece a que mais
se aproxima daquilo que eu acho que estávamos tentando fazer.
Admito que há um problema com sua expressão ‘a produção de
intelectuais orgânicos’. Porém não tenho a menor dúvida de que
estávamos tentando encontrar uma prática institucional nos estu-
dos culturais capaz de produzir um intelectual orgânico. Antes,
no contexto britânico dos anos 70, não sabíamos o que isso signi-
ficaria, e não tínhamos certeza se seríamos capazes de reconhecer
ele ou ela se conseguíssemos produzi-lo(a). O problema com o
conceito de intelectual orgânico é que ele parece alinhar os intelec-
tuais com um movimento histórico emergente, e não podíamos
dizer naquela época, e dificilmente podemos agora, onde tal mo-
vimento histórico devia ser encontrado. Éramos intelectuais orgâ-
nicos sem qualquer ponto de referência orgânica; intelectuais
141
orgânicos com uma nostalgia ou vontade ou esperança (lançando
mão da expressão gramsciana retirada de outro contexto) de que,
em algum momento, estaríamos preparados intelectualmente para
aquele tipo de relação, caso semelhante conjuntura aparecesse. A
bem da verdade, estávamos preparados para imaginar ou modelar
ou simular essa relação em sua ausência: ‘pessimismo da razão,
otimismo da vontade’. (1996a, p. 267)
A proposta gramsciana implica em pensar o papel do intelec-
tual orgânico em duas frentes: estar à frente teoricamente e não se
omitir da responsabilidade de transmitir conhecimentos, através
da função intelectual, para aqueles que não pertencem a categoria
dos intelectuais. Essa ambição fazia parte do projeto dos estudos
culturais, embora Hall insista: “Nós nunca produzimos intelectu-
ais orgânicos no Centro (gostaria que tivéssemos). […] foi um
exercício metafórico. No entanto, metáforas são coisas sérias. Elas
afetam a prática das pessoas. Eu estou tentando descrever os estu-
dos culturais como um trabalho teórico que deve continuar a exis-
tir com essa tensão [contribuição teórica e prática política]” (HALL,
1996a, p. 268).
Isso mostra a preocupação da vertente britânica com a rela-
ção cultura e política, simbólico e social. A questão política
foi
central na sua constituição, vide sua ligação com a educação de
adultos, com a New Left, com o feminismo, enfim, com os movi-
mentos sociais pelo menos da época de sua emergência. Já do
ponto de vista latino-americano, observa-se uma estreita relação
entre cultura e atitude política que se manifesta na construção da
perspectiva dos estudos culturais, na escolha de seu objeto de es-
tudo e nas preocupações de seus praticantes.
Entretanto, desdobramentos histórico-políticos estão obrigan-
do a repensar a própria idéia de “intelectual orgânico”, assim
como esta vinculação entre produção de conhecimento e o âmbi-
to do social. Ilustra essa problematização o questionamento pro-
posto por McRobbie (1992, p. 720): “Na era do pós- marxismo
quem estará liderando quem? Se a noção de uma classe unificada
cujo papel histórico de agência e emancipação desaparece, então,
que papel será atribuído ao intelectual orgânico? Em nome de
quem ele ou ela está agindo?”
142
Apesar da aparente não-efetividade da idéia de “intelectual
orgânico” na atual conjuntura, Hall considera que essa noção deve
ser retida como guia da prática dos estudos culturais. No contex-
to atual, não há obrigatoriedade de “copiar” esse tipo de posicio-
namento, mas de repensá-lo, observando como essa articulação
entre produção do conhecimento e o social pode ser assegurada,
em diferentes contextos e em um momento histórico distinto.
Contudo, sempre houve no pensamento de Hall um cuidado
especial em observar criticamente nuances entre a ação política
do intelectual e o trabalho acadêmico:
Eu volto às distinções críticas entre o trabalho intelectual e o aca-
dêmico: eles se sobrepõem, eles se aproximam, um alimenta o
outro, um proporciona os meios para realizar o outro. Mas não
são a mesma coisa. [...] Eu volto à teoria e à política, a política da
teoria. Não a teoria como o legado da verdade, mas como uma
série de conhecimentos contestados, localizados e conjunturais,
que devem ser debatidos de forma dialógica. Mas também como
uma prática que sempre pensa sobre suas intervenções em um
mundo onde ela faria alguma diferença e possa ter algum efei-
to.[...] Eu realmente penso que há toda a diferença do mundo
entre entender a política do trabalho intelectual e substituir o
trabalho intelectual por política. (HALL, 1996a, p. 274)
Também, a reflexão de Martín-Barbero mostra sinais eviden-
tes de uma preocupação semelhante. Em Comunicación masiva –
Discurso y poder (1978), declarando princípios para uma prática
investigativa, Martín-Barbero reafirma a importância da história
e assume a existência de um posicionamento político na pesquisa,
mas que não se confunda com “ativismo”. Porém, as exigências
concretas de posições relacionadas com um projeto político não
devem inibir a prática da crítica.
não é sobre os objetos e os métodos que se opta direta e imediata-
mente, mas sobre o projeto histórico que os mediatiza e dota de
sentido e eficácia. Sem cair na armadilha contrária, a de um politi-
cismo redutor que intenta suplantar o trabalho teórico com agi-
tação política. A proposta crítica consiste em assumir que ‘somente
é científico, elaborador de uma verdade, um método que surja
de uma situação histórico-política determinada e que verifique
143
suas conclusões em uma prática social de acordo com as proposi-
ções histórico-políticas nas quais se pretende inscrevê-las’. (SCH-
MUCLER apud MARTÍN-BARBERO, 1978, p. 24)
Para finalizar, vale retornar a conexão que se estabelece entre
intelectuais e o interesse pela cultura popular. Essa ênfase no po-
pular expressa uma determinada opção política e teórica que, na
crítica de McGuigan, foi denominada de “populismo cultural”.
Ele é entendido como “a suposição intelectual […] que as expe-
riências e práticas simbólicas das pessoas comuns são mais impor-
tantes analítica e politicamente do que Cultura com a letra
maiúscula C” (1992, p. 4, grifo meu). Segundo o mesmo autor,
esse tipo de posicionamento implica em um julgamento de valor
decorrente de “sentimentos populistas”.
Não há como negar que o popular, entendido à luz gramsci-
ana não mais como uma essência, mas como uma matriz cultural,
transformou-se num objeto privilegiado de análise dos estudos
culturais. Do ponto de vista dos autores em tela neste trabalho,
aproximar-se desse modo ao âmbito do popular significou exata-
mente desafiar certas noções associadas a sentimentalismos, resti-
tuindo a capacidade de agência aos sujeitos que, de formas diversas
e diferenciadas, compõem o espaço do popular.
144
145
O nosso tempo, então, é o tempo da diferença fazendo o seu
jogo, o tempo da diferença proliferante.
Antônio Flávio Pierucci
Pensar em como se constituem as identidades culturais no
contexto do final deste milênio é o eixo deste capítulo, pois esta é
a temática central dos estudos culturais de hoje. Essa perspectiva
passa a ser evidente, sobretudo, como resultado da influência de
reflexões em torno de temas como identidade e cultura nacional,
raça, etnia, gênero, modernidade/pós-modernidade, globalização,
pós-colonialismo, entre os mais importantes, dentro do espectro
do campo dos estudos culturais.
De forma mais geral, esse debate torna-se um problema teó-
rico a partir da modernidade quando a identidade passa a ser
encarada como algo sujeito a mudanças e inovações. Esse tema
está relacionado com a discussão sobre o sujeito e sua inserção no
mundo; sobre os indivíduos e suas identidades pessoais – como
nos constituímos, percebemo-nos, interpretamos e nos apresenta-
mos para nós mesmos e para os outros; sobre o deslocamento do
indivíduo do seu lugar na vida social e de si mesmo. Esses movi-
mentos e questionamentos acabam gerando tensões, instabilidade
e ameaça aos modos de vida estabelecidos, conseqüentemente, a
identidade cultural torna-se foco de questionamento.
Essas breves referências revelam a amplitude de tal proble-
mática. Devido à sua extensão, esta reflexão circunscreve-se à abor-
dagem do papel dos meios de comunicação, seja na constituição
de identidades nacionais, seja na proliferação de novas identida-
des culturais. Porém, o ponto de partida não é apenas a comuni-
cação e seus efeitos na cultura e identidade nacional, mas,
também, a própria problemática da identidade nacional e de outras
identidades culturais, e qual a importância que as práticas rela-
cionadas à comunicação têm na sua constituição.
IDENTIDADES CULTURAIS:
UMA DISCUSSÃO EM ANDAMENTO
146
De uma maneira geral, o debate sobre as identidades oscila
basicamente entre duas grandes matrizes: “essencialismo” e “cons-
trução social”. A primeira posição é caracterizada por compreen-
der a existência de grupos e/ou comunidades através de uma
categoria inerente e inata aos mesmos, e a segunda posição, por
atribuir a sua presença como um produto social.
Para Larrain (1996, p. 13), esses dois posicionamentos assu-
mem a denominação de teorias racionalistas ou universalistas e,
em oposição às primeiras, estão as historicistas.
As primeiras sublinham a identidade de metas e semelhança de
meios no curso da história, as segundas acentuam as diferenças
culturais e descontinuidades históricas. As primeiras não enten-
dem as diferenças e julgam o ‘outro’ a partir de uma perspectiva
totalizante e universalista; olham a história como uma série de
etapas que todos têm que percorrer. As segundas destacam as dife-
renças e descontinuidades e olham o ‘outro’ a partir da perspectiva
da sua especificidade cultural única; não entendem a base comum
de humanidade entre culturas.
Porém, ambas as posições correm o risco de tornarem-se
preconceituosas. A universalista ao enfatizar a verdade absoluta e
continuidade histórica, descuida da especificidade do “outro” e
tende a julgar as outras culturas sob princípios da sua própria; e a
historicista, ao reiterar a especificidade, pode desenvolver uma
construção
do “outro” como inferior. “Duas formas de racismo
resultam desses extremos: enquanto as teorias universalistas po-
dem não aceitar o ‘outro’ porque não sabem reconhecer e aceitar
sua diferença, as teorias historicistas podem recusar o ‘outro’ por-
que este é construído como um ser tão diferente que chega a
aparecer como inferior” (LARRAIN, 1996, p. 57).
Enfim, as teorias que enfatizam as especificidades históricas
desenvolvem uma concepção de identidade cultural associada à
noção de existência de uma essência que marca diferenças irre-
conciliáveis entre povos e nações. Dessa forma, concebem a iden-
tidade cultural de maneira a-histórica. Já aquelas que acentuam a
história como progresso universal tendem a reduzir as identida-
des culturais a manifestações de um processo histórico universal.
147
Se as teorias racionalistas contêm o perigo do etnocentrismo
(falta de respeito ao outro), totalitarismo (falta de respeito à
diferença), universalismo (falta de respeito às especificidades lo-
cais e espaciais) e a-historicidade (falta de respeito à especificida-
des históricas e temporais), o historicismo contém o perigo do
particularismo racista (acentuação da diferença), essencialismo
(identidade cultural como um espírito imutável), relativismo (a
verdade é impossível) e irracionalismo (ataque à razão). (LAR-
RAIN, 1996, p. 85)
A problematização das identidades culturais estará evi-
denciada, aqui, através da incursão no pensamento da tríade
de autores, eixo central deste livro: Stuart Hall, Jesús Mar-
tín-Barbero e Néstor García Canclini. Embora essas trajetó-
rias intelectuais mostrem coincidências, opto por realizar
uma ramificação da temática, construindo três narrativas in-
dividualizadas.
Antes de adentrar no debate da constituição das identida-
des, é preciso fazer apenas referência ao contexto mais geral
onde essa temática assume importância. Assim, a primeira con-
dição é reconhecer a desestabilização gerada pela modernida-
de nessa discussão, assim como as implicações da problemática
da pós-modernidade e seu interesse na (re)construção das iden-
tidades.1 A segunda condição para compreender a preocupa-
ção contemporânea em torno das identidades é apontar, como
pano de fundo, a existência da globalização.2 Contudo, a defi-
nição e o endosso a um posicionamento a esse respeito fazem
parte dos caminhos que cada autor percorre, assim, esses te-
mas serão abordados, pelo menos indiretamente, em cada uma
das narrativas.
Mesmo assim, vale dizer que a vinculação entre essas duas
problemáticas, recém citadas, tem ressonâncias políticas, econô-
micas e culturais. Dentro do âmbito cultural, a configuração das
identidades sofre profundas alterações. Em um mundo que pare-
ce dominado por um repertório cultural global, novas comunida-
des e identidades estão sendo constantemente construídas e
reconstruídas. É justamente uma reflexão sobre esse processo que
se apresenta a seguir.
148
IDENTIDADE COMO DIÁSPORA
A experiência da diáspora que se desconecta do sentido estri-
to da dispersão dos judeus ou de outros povos por motivos políti-
cos ou religiosos, em virtude da perseguição de grupos intolerantes,
sintetiza, segundo Stuart Hall, a nova configuração que as identi-
dades culturais assumem hoje. “Visto que a migração3 resultou
ser o evento histórico-mundial da modernidade tardia, a clássica
experiência pós-moderna revela-se ser a experiência diaspórica”
(1996d, p. 490).
Essa idéia passa a enfatizar tanto o deslocamento espacial
quanto o temporal. Este último sentido refere-se à permanência
de uma ligação com o passado – mesmo que possa estar associado
à imagem de um passado em ruínas. Por essa razão, Hall vai
discutir a formação de novas formas de identidade ligadas ao re-
contar o passado através da memória e à afirmação da diferença.
Outra imagem que pode simbolizar o arquétipo da condição
atual e reforça a anterior é a do “forasteiro familiar”. Ele expressa
uma tensão entre elementos pessoais e estruturais, residindo aí seu
poder enquanto imagem criativa, mas que não perde suas especifi-
cidades. A trajetória pessoal de Hall é ilustrativa nesse sentido.
Tendo sido preparado pela educação colonial, eu conhecia a Ingla-
terra a partir de dentro. Mas eu não sou e nunca serei ‘inglês’. Eu
conheço ambos os lugares [Jamaica e Inglaterra] intimamente, mas
eu não sou completamente de nenhum desses lugares. E isso é exa-
tamente a experiência diaspórica, distante o suficiente para experien-
ciar o sentimento do exílio e perda, próximo o suficiente para entender
o enigma de uma ‘chegada’ sempre adiada (Idem).
Partindo ou não de seu caso pessoal, a identidade é uma
busca permanente, está em constante construção, trava relações
com o presente e com o passado, tem história e, por isso mes-
mo, não pode ser fixa, determinada num ponto para sempre,
implica movimento.
Eu penso [diz Hall] que a identidade cultural não está fixa, é sempre
híbrida. Mas é precisamente porque surge de formações históricas
muito específicas, de histórias específicas, de repertórios culturais de
149
enunciação, que pode constituir-se em um ‘posicionamento’ [‘po-
sicionality’] que nós chamamos, provisoriamente, identidade. […]
Então, cada um desses relatos de identidade está inscrito nas posi-
ções que assumimos e com que nos identificamos, e temos de viver
esse conjunto de posições de identidade em toda sua especificida-
de” (1996d, p. 502).
Na tentativa de apresentar o desenrolar do debate que trata
de como estão sendo transformadas e produzidas diferentes e
novas posições de sujeitos no curso e desdobramento de uma
cultura global, de uma maneira mais ou menos cronológica, acre-
dito que é importante recuperar, ainda que de forma breve, a
reflexão de Stuart Hall sobre a natureza da identidade cultural
que pertence àquele momento histórico particular, marcado por
uma posição de liderança das nações no mercado mundial. Vale
lembrar que Hall vai pensar essa problemática a partir de um
lugar determinado, a partir do Reino Unido e, particularmente,
da Inglaterra, ou seja, um lugar que exerceu forte liderança mun-
dial mas, hoje, de certa forma tem menos realce devido ao seu
declínio econômico e político.
Circunscrita a um momento determinado, a identidade cul-
tural era, então, definida como fortemente centrada, um ponto
estável de referência, um tipo particular de “etnicidade”, localiza-
da num lugar, numa história específica. No entanto, Hall reco-
nhece que não era polido referir-se dessa forma à identidade
britânica até recentemente. “Uma das coisas que está acontecen-
do na Inglaterra é a longa discussão, recém iniciada, que tenta
convencer os ingleses que eles são, afinal de contas, somente ou-
tro grupo étnico” (HALL, 1991b, p. 21).
Com o processo de globalização, essa relação estável entre
identidade cultural nacional e Estado-nação começa a mudar, isto
é, a idéia de que uma formação nacional possa ser representada
por uma identidade nacional passa a estar tensionada. No caso
britânico, Hall identifica esse processo de mudança através de um
conjunto de fatores: declínio econômico da nação britânica; acele-
rado processo de abertura de mercados globais a partir dos anos
70; movimentos de migração, sobretudo no período pós-Segunda
Guerra; aumento da interdependência internacional; surgimento
150
de acordos monetários e regionais através de organizações supra-
nacionais e suas implicações na concepção de soberania e do Es-
tado-nação; e, também, o impacto do “progresso” no meio
ambiente mundial.
Mesmo que a análise de Hall sublinhe aspectos que dizem
respeito ao caso específico britânico, pode-se, de outro lado, es-
tender suas observações em um contexto bem mais vasto. Assim,
com essa movimentação geral, sumariamente descrita, vem a ero-
são do Estado-nação e das identidades nacionais associadas a ele.
Dessa forma, o autor pondera que “quando a
era dos estados
nacionais, na globalização, começa a declinar, pode-se ver uma
regressão a uma forma de identidade nacional muito defensiva e
altamente perigosa, que está dirigida por uma forma muito agres-
siva de racismo” (HALL, 1991b, p. 26).
Em outro lugar, Stuart Hall (1994) avalia que as “grandes
narrativas” da modernidade criaram uma expectativa de gradual
desaparecimento de posições nacionalistas ao invés do imprevisí-
vel retorno aos nacionalismos que estamos presenciando. Diante
da globalização, aspectos locais e nacionais são cada vez mais me-
recedores de atenção. E, embora os estados nacionais sejam possi-
velmente menos importantes hoje do que em épocas anteriores,
vínculos com a nação, assim como com a região, isto é, com
lugares propriamente ditos, que foram uma vez pensados como
particularismos arcaicos que a modernidade capitalista dissolve-
ria ou ultrapassaria, estão renascendo.
A última fase da globalização capitalista com suas impetuosas
compressões e reordenamentos sobre o tempo e o espaço não
resultou necessariamente na destruição daquelas estruturas espe-
cíficas, conexões e identificações particularistas que estão ligadas
às comunidades mais localizadas cuja modernidade homogenei-
zante supôs substituir. […] Mas, a assim chamada ‘lógica do
capital’ tem operado muito mais através da diferença – preser-
vando e transformando a diferença […] – do que a minando.
(HALL, 1993b, p. 353)
A partir do momento em que foram criados estados nacio-
nais com suas fronteiras geográficas bem definidas, sua economia
151
e cultura nacionais, se estabelece uma tensão entre esse primei-
ro desenvolvimento e os imperativos transnacionais da lógica
capitalista.
A atual e intensa fase de globalização tem favorecido tendências
que pressionam os estados nacionais em direção à integração
supranacional – econômica e, mais hesitantemente, política e cul-
tural – enfraquecendo sem destruir o Estado-nação e, desse modo,
abrindo ambas as economias, locais e regionais, para novos des-
locamentos e novas relações. Paradoxalmente, a globalização pa-
rece, também, ter conduzido a um fortalecimento de fidelidades
e identidades ‘locais’ dentro dos estados nacionais. Embora isso
possa ser enganador, o fortalecimento do ‘local’ é provavelmente
menos o revival de identidades estáveis de ‘comunidades estabe-
lecidas localmente’ do passado e mais aquela ardilosa versão ‘do
local’ que opera dentro e tem sido completamente remodelada
pelo ‘global’, funcionando amplamente dentro de sua lógica.
(HALL, 1993b, p. 354)
O que na verdade pode ser observado, segundo Hall, é uma
gradual, embora irregular, erosão dos nacionalismos dos princi-
pais estados da Europa Ocidental e o fortalecimento tanto de rela-
ções transnacionais quanto de identidades locais. Dois traços
marcam o desenrolar desse processo: por um lado, a revaloriza-
ção de movimentos por autonomia regional e nacional, precisa-
mente encampados por grupos que tiveram suas identidades
amordaçadas por estados nacionais fortes e, de outro lado, o cres-
cimento concomitante de uma reação defensiva daquelas culturas
nacionais que se viram ameaçadas por movimentações de suas
próprias periferias.
Entre os exemplos citados pelo autor, vale recuperar sua refe-
rência a Raymond Williams, pois este reflete a ambivalente iden-
tificação produzida por essas duas tendências quando se
autodenomina um “galês-europeu”, isto é, oriundo do País de
Gales mas sob a égide da Grã-Bretanha que, por sua vez, integra
enquanto uma unidade a Europa Ocidental.
Também, não pode ser negligenciado o que ocorreu e está em
curso na Europa Oriental: o esfacelamento da União Soviética e o
renascimento de nacionalismos étnicos submersos por décadas sob
152
o poder da influência soviética e outros acontecimentos atuais
como a guerra entre sérvios e bósnios. De forma muito cuidado-
sa, Hall avalia que, do ponto de vista político, o nacionalismo não
é necessariamente nem uma força reacionária nem progressiva.
“Ele é suscetível de ser modulado a posições políticas muito dife-
rentes, em momentos históricos diferentes e seu caráter depende
muito de outras tradições, discursos e forças com as quais está
articulado” (1993b, p. 355). Por exemplo, movimentos de países
do Terceiro Mundo que foram produzidos como contra-discursos
à exploração e colonização cultural têm trajetórias bem distintas
daqueles que foram gerados em reação ao sistema socialista.
Sendo assim, Hall endossa a posição de que o Estado-nação
não é apenas uma entidade política, mas, também, uma formação
simbólica que produz uma “idéia” de nação enquanto uma “co-
munidade imaginada”. Porém, o percurso desses movimentos pró-
nacionalismo têm revelado com freqüência a tentativa de construção
de formações etnicamente “fechadas”, isto é, “puras”, alinhando-se
a uma concepção essencialista de identidade nacional.
Mas a história dos estados nacionais do Ocidente nunca foi desse
tipo etnicamente puro. […] eles são, sem exceção, etnicamente
híbridos – o produto de conquistas, absorções de um povo por
outro. A principal função das culturas nacionais, que […] são
sistemas de representação, tem sido representar o que é, de fato,
uma amálgama étnica da nacionalidade moderna como a unidade
primordial de ‘um povo’ […] Além do mais, esse hibridismo do
Estado-nação moderno está hoje, na presente fase de globalização,
sendo composto por uma das maiores, compulsórias e voluntári-
as, migrações de massa dos últimos tempos. Portanto, um após o
outro, os estados nacionais ocidentais, já incontestavelmente dias-
porizados [diaspora-ized], estão tornando-se inextricavelmente
‘multiculturais’ – étnica, religiosa, cultural, lingüisticamente, etc
misturados. (HALL, 1993b, p. 356)
Por esse trajeto, Hall recupera a reflexão de Williams sobre o
“modo de vida global”, problematizando-a.4 Em outras palavras,
refere-se a quem esse modo de vida; a qual vida; existiria um
único modo de vida ou vários; não seria o caso de que, no mundo
moderno, quanto mais se examina esse “modo de vida global”
153
mais internamente diversificado, mais atravessado por complexos
padrões de similaridades e diferenças, ele parece ser. “As pessoas
modernas, de todos os tipos e condições, cada vez mais como
uma condição de sobrevivência, parecem ser membros, simulta-
neamente, de muitas e sobrepostas ‘comunidades imaginadas’; e
as negociações entre e através dessas complexas ‘fronteiras’ são
características da própria modernidade” (HALL,1993b, p. 359).
Embora já se tenha mencionado que o global e o local são
duas rotas simultâneas, características de uma época de globaliza-
ção – da passagem daquela onde o Estado-nação, as economias
nacionais e as identidades culturais nacionais eram dominantes
para a presente, em que esses mesmos laços se afrouxam –, é
importante recuperar esse aspecto de forma mais sistemática.
Hall questiona-se, então,
O que é esse novo tipo de globalização? O novo tipo de globali-
zação não é inglês, mas americano [norte-americano]. Em termos
culturais, o novo tipo de globalização tem a ver com uma nova
forma de cultura de massa global, muito diferente daquela associ-
ada com a identidade inglesa e as identidades culturais associadas
ao Estado-nação numa fase anterior. A cultura de massa global é
dominada pelos meios modernos de produção cultural, domina-
da pela imagem que atravessa e reatravessa fronteiras lingüísticas
muito mais rápida e facilmente, e fala através de linguagens de um
modo muito mais imediato. (1991b, p. 27)
Sintetiza-se que essa “cultura de massa global” permanece
centrada no Ocidente ou melhor nas narrativas ocidentais; “fala
inglês” enquanto língua internacional; é dominada por imagens
da publicidade, da televisão e do cinema; é uma forma peculiar de
homogeneização, ou seja, é uma forma de representação cultural
(fundamentalmente, visual) homogeneizadora mas nunca absolu-
tamente completa.
Essa forma de homogeneização é muito particular, explica
Hall (1991b, p. 28):
[Ela] está querendo reconhecer e absorver as diferenças dentro de
uma extensa estrutura do que é essencialmente uma concepção
154
americana do mundo. Isso é dizer que ela está muito fortemente
localizada na concentração crescente e em andamento da cultura e de
outras formas de capital. Mas é hoje uma forma de capital que reco-
nhece que – usando uma metáfora – somente pode governar através
de outros capitais locais, ao lado de e em parceria com outras elites
políticas e econômicas. Essa forma de homogeneização não tenta
apagar as diferenças, ela funciona através delas (grifo meu).
E mais adiante, Hall cita um exemplo que nos interessa
reter aqui:
Você tem que pensar sobre a relação entre Estados Unidos e Amé-
rica Latina para descobrir sobre o que estou falando, como aque-
las formas que são diferentes, que tem sua própria especificidade
podem ser, contudo, repenetradas, absorvidas, remodeladas, ne-
gociadas, sem absolutamente destruir o que é específico e particu-
lar a elas. (Idem)
Essa menção ao processo cultural vigente na América Latina
relaciona-se precisamente ao que Martín-Barbero e García Can-
clini estão tentando chamar a atenção, isto é, para os movimentos
particulares de negociação de sentidos que incorporam “imagens”
dessa “cultura de massa global” mas com rastros de uma outra
identidade, lastrada numa outra história. Esse novo regime cultu-
ral vive através da diferença.
Assumindo que o reconhecimento da diversidade cultural é
imperativo na contemporaneidade, Hall sinaliza que o grande ris-
co surge de formas de identidade cultural e nacional que tentam
firmar-se adotando versões “fechadas” de cultura e pela recusa a
engajar-se na problemática de viver com a diferença. Por essa
razão, enfaticamente propõe posicionar-se “nas margens” para a
partir desse lugar reconhecer um modo de existência que não se
deixa classificar como simplesmente de assimilação cultural.
É a partir desse espaço, que pode também ser identificado
como o âmbito do local, que passam a aparecer novas representa-
ções, novos sujeitos que mediante diferentes embates, alcançam
meios de falarem por si mesmos. Assim, ao mesmo tempo que se
sente a força da homogeneização e absorção, sente-se a pluralida-
de e a diversidade, formas locais de oposição e resistência.
155
Nesse sentido, Hall identifica em curso uma “política de re-
presentação” – um envolvimento dos sujeitos que até então pode-
riam estar localizados “nas margens”, em reclamar alguma forma
de representação por si mesmos. Duas questões passam a ser cru-
ciais nesse contexto: a disposição de viver com a diferença e, de
outro lado, a etnicidade.
Ambos os termos são passíveis de mal-entendidos, por isso o
autor indica o sentido que lhes dá. O primeiro evoca a multiplicida-
de de diferenças que operam na constituição e representação da
identidade. O termo etnicidade admite o entendimento do espaço
da história, da linguagem e da cultura na construção da subjetivida-
de e da identidade, isto é, um reconhecimento em que todos nós
falamos a partir de um lugar, de uma história, de uma experiência,
de uma cultura particular. “Nesse sentido, nós somos todos etnica-
mente situados e nossas identidades étnicas são cruciais para nosso
senso subjetivo de quem somos” (HALL, 1996j, p. 447).
Contudo, esses movimentos que vêm do local, podem de-
sembocar em duas vertentes bem distintas. Uma implica o retor-
no aos fundamentalismos: “Quando os movimentos das margens
estão tão profundamente ameaçados pelas forças globais da pós-
modernidade, eles mesmos podem retroceder aos seus próprios
enclaves exclusivistas e defensivos. E, nesse ponto, as etnicidades
locais tornam-se tão perigosas quanto as nacionais. Nós vimos
isso acontecer: a recusa da modernidade toma a forma de um
retorno, redescoberta da identidade que constitui uma forma de
fundamentalismo” (HALL, 1991b, p. 36).
E a outra vertente diz respeito ao reconhecimento de que
se fala a partir de um determinado lugar, que seria a descoberta
de um “passado”, de um “chão”. Essas origens, no entanto, não
estão imersas num lugar mítico e idealizado que não estabelece
relações com o presente, mas, ao contrário, é aquele espaço de
fronteira, de cruzamento, apontado como híbrido.
Do lugar de milhões de pessoas deslocadas, de culturas deslocadas,
de comunidades fragmentadas do ‘Sul’, que foram retiradas de
suas ‘comunidades já estabelecidas’, de seus ‘sentimentos já aloca-
dos’, de suas ‘verdadeiras relações vividas’, de seu ‘modo de vida’.
Essas pessoas tiveram de aprender a desenvolver outras habilida-
156
des, aprender outras lições. São produtos de novas diásporas que
estão se delineando no mundo. São obrigadas a viver pelo menos
duas identidades, a falar pelo menos duas linguagens culturais,
negociando-as e traduzindo-as mutuamente. [...] Essas pessoas
são o produto das culturas da hibridação. [...] Os híbridos guar-
dam fortes ligações e se identificam com as tradições e com os
locais de sua ‘origem’. Mas não têm nenhuma ilusão em relação a
um verdadeiro ‘retorno’ ao passado. Ou nunca retornarão (seja
qual for o sentido literal) ou os lugares a que retornarem terão se
transformado em algo irreconhecível devido aos processos des-
providos de qualquer remorso que caracterizam a transformação
moderna. Nesse sentido, não há hipótese de se voltar para ‘casa’
novamente. [...] Estão também obrigados a chegar a um acordo
com as novas culturas em que vivem, bem como fazer algo novo
delas, sem simplesmente deixarem-se assimilar por tais culturas.
Não são e nunca serão, em um sentido antigo, unificados cultural-
mente, porque são inevitavelmente os produtos do encadeamen-
to de várias histórias e culturas, pertencendo, ao mesmo tempo, a
várias ‘casas’ – e assim a nenhuma casa em particular. (HALL, 1993b,
p. 361)
Nessa longa citação, encontram-se, de forma explícita ou
implícita, diversas idéias-chave que marcam a contribuição de
Stuart Hall sobre a identidade no mundo contemporâneo. Em
primeiro lugar, identidade é um espaço onde um conjunto de no-
vos discursos teóricos se interseccionam e onde um novo grupo
de práticas culturais emerge. Trata-se de uma categoria política e
culturalmente construída em que a diferença e a etnicidade são
seus elementos constituintes; a experiência da diáspora se trans-
forma em emblema do presente; a hibridação deixa sua marca e a
fluidez da identidade torna-se ainda mais complexa pelo entrela-
çamento de outras categorias socialmente construídas, além das
de classe, raça, nação e gênero.
Essas últimas categorias somadas à narrativa do Ocidente, se-
gundo Hall, são “as grandes identidades coletivas sociais” que não
desapareceram, mas não têm mais a força de antes. Como pensar,
então, a problemática da identidade na esteira do esmaecimento
dessas “grandes identidades”, sendo que estas já não têm mais o
poder explicativo e compreensivo que tiveram? Esse questionamento
157
é ainda mais crucial em relação à classe, pois esta era o principal
referente de posição social.
Se um sentido de identidade se perdeu, precisamos de outro.
Isso faz com que tornemo-nos cientes de que identidades não são
nunca completas, finalizadas. Ao contrário, estão em permanente
processo de constituição. São narrativas, discursos contados a partir
do ponto de vista do Outro. “[…] identidade é sempre em parte
uma narrativa, sempre em parte um tipo de representação. Está
sempre dentro da representação.5 Identidade não é algo que é
formado fora e, no final, nós narramos histórias sobre ela. É o que
está narrado na nossa própria pessoa (Hall, 1991a, p. 49, grifo meu).
Por essa razão, Hall concebe a identidade articulada ao pas-
sado e presente, em permanente construção, atravessada tanto
pelos discursos públicos quanto pelas práticas e experiências dos
sujeitos, entranhados numa determinada conjuntura histórica. A
identidade, então,
é um assunto de ‘chegar a ser’ como também de ‘ser’. Pertence ao
futuro tanto quanto ao passado. Não é algo que já existe, trans-
cendendo lugar, tempo, história e cultura. As identidades culturais
vêm de algum lugar, têm histórias. Mas, como tudo o que é histó-
rico, elas sofrem uma transformação constante. Longe de estarem
eternamente fixas num passado essencializado, estão sujeitas ao
contínuo ‘jogo’ da história, da cultura e do poder. Longe de esta-
rem fundadas numa mera ‘reprodução’ do passado que está espe-
rando ser encontrado e que, quando encontrado, assegurará nosso
sentido de nós mesmos até a eternidade, as identidades são os
nomes que damos às diferentes maneiras como estamos situados
pelas narrativas do passado e como nós mesmos nos situamos
dentro delas. (HALL, 1990, p. 225)
Dentro desse contexto, Hall presta acurada atenção às iden-
tidades diaspóricas, isto é, o que a experiência da “migração”
afeta a identidade, pois ninguém se translada de um lugar a outro
ou herda e se apropria de culturas diversas sem ser afetado por
essa experiência. E, aqui, as características da hibridez – expressa
na idéia de cut and mix – e do movimento integram-se às caracte-
rísticas, anteriormente descritas, na constituição da identidade.
158
Ao pensar o sentido de identidade no seu caso em particular,
isto é, sua autonarrativa, Hall reconhece sua posição de migrante
e negro como marcantes, posição que vai ter implicações no seu
viver com e através da diferença, compondo, também, a experiên-
cia diaspórica.
Lembro a ocasião em que retornei, a título de visita, à Jamaica, no
início do anos 60, depois da primeira onda de migração para a
Inglaterra. Minha mãe falou: “Espero que lá não pensem que você
é um desses imigrantes!”. Assim, naquele momento, soube clara-
mente e pela primeira vez que eu era um imigrante. Repentina-
mente, relacionada a essa narrativa da migração, uma versão do
meu “eu real” desvelou-se. Eu disse: ‘É claro que sou um imigran-
te. O que você acha que eu sou?’ [...] o problema é que no mo-
mento em que se compreende que se é um imigrante, reconhece-se
que não se pode mais sê-lo: não é uma posição que se ocupe por
muito tempo. Passei, então, pela longa e importante educação
política de descobrir que sou ‘negro’. Constituir-se como ‘negro’
é um outro reconhecimento de ser através da diferença. (HALL,
1993a, p. 135)
Ainda sobre a questão da diferença, Hall se apropria do ter-
mo derridiano différance para evocar o jogo de significantes e a
multiplicação de diferenças que operam no caleidoscópio da iden-
tidade e sua representação. Segundo Hall, essa noção instaura
uma certa perturbação no estabelecido entendimento de diferen-
ça, mas alerta para o risco de escorregar para o desconstrucionis-
mo e seu infinito jogo de significantes.
Pensar a identidade através da diferença é voltar-se, também,
para a politização do local e dessa nova noção de identidade. No
caso britânico, vai ser a formação da diáspora negra que vai trans-
formar a vida inglesa. A própria narrativa de Hall sobre sua traje-
tória pessoal revela a passagem do âmbito do nacional, enquanto
eixo central da constituição da identidade, para a etnicidade, ao
“descobrir-se” migrante e negro.
E esse mesmo movimento está expresso na sua reflexão em
“Minimal selves” (1987) e “New ethnicities” (1989) quando, no
primeiro artigo, concluía que “o vagaroso e contraditório movi-
mento do ‘nacionalismo’ para a ‘etnicidade’ como uma fonte de
159
identidades é uma parte de uma nova política” (1993a, p. 138) e,
no segundo, detendo-se na descrição propriamente dita desse ou-
tro momento: “o que está em questão aqui é o reconhecimento da
extraordinária diversidade de posições subjetivas, experiências
sociais e identidades culturais que compõem a categoria ‘negra’,
isto é, o reconhecimento que ‘negro’ é, essencialmente, uma cate-
goria construída política e culturalmente, que não pode ser funda-
da em um conjunto de categorias raciais transculturais fixas ou
transcendentais e que, por essa razão, não tem garantias na natu-
reza” (HALL, 1996j, p. 443)
Nessa perspectiva, resta anotar que a forma de Hall pensar a
identidade é diferente da perspectiva pós-moderna. Embora ad-
mita um certo descentramento do sujeito na atual conjuntura, nega
a existência de algo tão novo e completamente diferente e de certa
maneira unificado como a condição pós-moderna. Reconhece a
vigência de experiências que podem ser vistas como uma tendên-
cia emergente ou uma entre outras tantas, mas essa não tem uma
forma cristalizada.
Admite que se vive num turbilhão de sentidos onde vige uma
multiplicidade infinita de códigos, discursos e leituras que produz
novas formas de autoconsciência e reflexividade. Isso, de forma
alguma, significa que a representação se exauriu, mas que se tor-
nou um processo bem mais problemático.
Uma variedade de termos existe e está sendo utilizada na
tentativa de descrever essas diversas e diferentes dimensões da
experiência contemporânea: pós-fordismo, pós-industrial, pós-mo-
dernidade, entre outros. “Nenhum desses é completamente satisfa-
tório. Cada um expressa um sentido mais perspicaz do que nós
estamos deixando para trás […] do que para onde nós estamos nos
dirigindo. Cada um, contudo, representa alguma coisa importante
sobre o debate dos ‘Novos Tempos’” (HALL, 1996g, p. 224).
Em suma, Hall não aceita a idéia de que se vive uma nova
era, uma outra época. Porém, utiliza inúmeras vezes o termo pós-
moderno para referir-se à condição atual. Suas observações mos-
tram-se abertas a algumas manifestações desta lógica e são
relativamente otimistas em relação ao seu desenlace.
160
IDENTIDADE COMO DESCENTRAMENTO
Uma atmosfera específica permeia o debate contemporâneo
sobre a particularidade do latino-americano. A descrição do cená-
rio onde se gesta esse pensamento é fundamental, sobretudo se a
reconstituição das cenas se faz a partir da própria caracterização
do autor em foco neste momento: Jesús Martín-Barbero.
Ao percorrer a obra desse pesquisador, percebe-se que o seu
primeiro livro Comunicación masiva: Discurso y poder (1978) deixa
as pistas para a continuidade de uma trajetória que tem em De los
medios as las mediaciones – DMM – (1987) sua seqüência. Porém,
se existem linhas que indicarão continuidade entre um trabalho e
outro, também existem nítidos sinais de ruptura, pois é neste últi-
mo lugar – em DMM – onde se expõe a originalidade de suas
formulações, propondo o estudo da comunicação a partir da cul-
tura ou, mais exatamente, a partir das experiências dos sujeitos
sociais. Em DMM também aparecem marcas que serão explora-
das a partir dos anos 90, sinalizando flertes teóricos e possivel-
mente um outro rumo para uma reflexão que promete imprimir
sua marca neste novo milênio.
Em outras palavras, ao ler e reler a produção de Martín-
Barbero identificam-se momentos de ruptura e momentos de con-
tinuidade. Assim, em 1978, o eixo da reflexão centrava-se nos
discursos, mas a importância do sujeito-receptor estava mencio-
nada, embora permanecesse como pano de fundo. Em 1987, a
experiência desse sujeito assume o papel de protagonista, preen-
chendo todo o espaço. Contudo, a questão transnacional, aborda-
da na última parte do seu livro, serve como elo para repensar as
mediações em tempos de globalização e descentramento cultural,
tema central em 1997.
Na sua produção, especialmente a da segunda metade dos
anos 90, dois lugares são decisivos para a análise cultural da co-
municação: a televisão (sobretudo a publicidade, os videoclipes e
a dramaturgia) e a cidade e suas implicações na construção das
identidades, deslocando interesses anteriores, centrados, por
exemplo, na telenovela. E, nos últimos textos de 97/98, talvez já
esteja em estado embrionário uma rota diferente. No entanto
161
nesse último estágio somente podem ser vislumbradas as conti-
nuidades e rupturas, tendo como contraponto DMM (1987).
O propósito, aqui, é reconstituir alguns momentos dessa tri-
lha, sem perder de vista o eixo do tema da identidade. Como
muitas das sugestões teóricas de DMM já foram devidamente re-
cuperadas em outras partes deste trabalho, parte-se de breves ob-
servações encontradas ainda naquele livro para tentar elucidar
possíveis rupturas que despontam nos textos seguintes.
Os processos políticos e sociais vividos na América Latina
nos anos 70 e 80 mexeram profundamente com algumas certezas
teóricas, com a “razão dualista” e com esquematismos correntes
na época que confrontavam rural/urbano, popular/erudito, Euro-
pa-Estados Unidos/América Latina, universal/local, etc. Ao colo-
car as fronteiras desses termos em xeque, foi possível confrontar-se
com outra “verdade cultural desses países: a mestiçagem, que não
é somente fenômeno racial do qual viemos, mas trama contempo-
rânea de modernidade e descontinuidades culturais, de formações
sociais e estruturas de sentimento, de memórias e imaginários
que remexem o indígena com o rural, o rural com o urbano, o
folclore com o popular e o popular com o massivo” (MARTÍN-BAR-
BERO, 1987a, p. 10).
É nesse contexto e a partir desse ponto de vista que é possível
identificar um sentido contraditório, heterogêneo e descontínuo
para a modernidade latino-americana. Martín-Barbero indica três
planos primordiais para a visualização desse modo dependente de
acesso à modernidade: da assincronia entre formação do Estado e
da nação; do modo “desviado” como as classes populares se in-
corporam ao sistema político e à formação dos estados nacionais;
e, por último, do papel político que os meios de comunicação
desempenham na nacionalização das massas populares.
Assim, o primeiro esforço de construir a modernidade na
América Latina esteve ligado com a idéia de Nação, e os meios de
comunicação foram decisivos na formação e difusão da identidade
nacional. Nesse momento, articulava-se um movimento econômi-
co de entrada das economias nacionais no mercado internacional e
um projeto político de constituição da nação mediante a criação de
162
uma cultura, de uma identidade nacional ou, nos termos da época,
de um “sentimento nacional”. Dessa forma, os meios vão proporci-
onar às populações afastadas do “centro” uma experiência de inte-
gração, de tradução da idéia de nação em vivência cotidiana.
Na perspectiva de Martín-Barbero, a modernidade latino-
americana enquanto experiência coletiva, está estreitamente vin-
culada a expansão das indústrias culturais. Ao contrário da
modernidade ilustrada, em que a cultura do livro era o eixo, aqui,
é, principalmente o rádio, o cinema, a televisão, seu suporte. “A
modernidade fala na América Latina, de uma maneira peculiar,
da compenetração e da cumplicidade entre a oralidade – como
experiência cultural primária da maioria das pessoas – e a visualida-
de eletrônica. […] As maiorias em nossos países aceitam e se apro-
priam da modernidade sem deixar sua cultura oral, sem passar pelo
livro, com tudo o que isso implica de escândalo e desafio para
nossos modelos de cultura” (MARTÍN-BARBERO,1995b, p. 169).
De outro lado, vale recuperar a insistência de Martín-Barbero
na “não-exterioridade do massivo no popular” na constituição da
modernidade latino-americana. A noção de popular é revista, pas-
sando a estabelecer-se uma relação dinâmica entre o popular e o
massivo. Porém, na modernidade latino-americana, “não se con-
fundem memória popular e imaginário de massa, mas se abando-
na a conhecida ilusão essencialista de um estrato popular
incontaminado e autêntico” (HERLINGHAUS, 1998, p. 18).
Todavia, Martín-Barbero insiste no registro em que a “mo-
dernidade não-contemporânea” da América Latina deve ser lida
para evitar mal-entendidos. Essa não-contemporaneidade é dis-
tinta da idéia de “atraso constitutivo”, isto é, o atraso não é o
traço explicativo da diferença cultural.
[A modernidade não-contemporânea] é uma idéia que se mani-
festa em duas versões. Uma, pensando que a originalidade dos
países latino-americanos, e da América Latina como um todo, foi
constituída por fatores que escapam à lógica do desenvolvimento
capitalista. Outra, pensando a modernização como recuperação
do tempo perdido, e portanto identificando o desenvolvimento
com o definitivo deixar de ser o que fomos para afinal sermos
modernos. A descontinuidade que tentamos pensar aqui está
163
situada em outra chave […]. Para poder compreender tanto o que
o atraso representou em termos de diferença histórica, mas não num
tempo detido, e sim relativamente a um atraso que foi historicamente
produzido […], quanto o que apesar do atraso existe em termos de
diferença, de heterogeneidade cultural, na multiplicidade de tempo-
ralidades do índio, do negro, do branco e do tempo decorrente de
sua mestiçagem. Só a partir dessa tensão é pensável uma modernida-
de que não se reduza a imitação e uma diferença que não se esgote
no atraso. (MARTÍN-BARBERO, 1987a, p. 165)
Não há imitação de outras trajetórias de modernidade – eu-
ropéia e/ou norte-americana, mas a tessitura da nossa própria
modernidade. A diferença, então, não é apenas aquela associada
com nosso subdesenvolvimento, mas que retém nesse processo de
“constituir-se e desconstituir-se essa contraditória mas ainda po-
derosa identidade” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 32, grifo meu).
Assim como, num primeiro momento, as indústrias culturais
desempenharam um papel integrador e organizador, hoje, embora
elas continuem interpelando os sujeitos, atuam mais como desorga-
nizadoras e reorganizadoras da experiência social. “O processo que
vivemos hoje é não só distinto como, em boa medida, inverso: os
meios de comunicação são uns dos mais poderosos agentes da des-
valorização do nacional” (MARTÍN-BARBERO,1995b, p. 172).
Hoje, os meios de comunicação agem como o dispositivo
mais poderoso na dissolução de um horizonte cultural comum
no âmbito da nação. Encarnam, assim, uma posição mediadora
na construção de outras identidades: das cidades, das regiões,
do espaço local, etc. “Atravessando o movimento de homogenei-
zação que implica a globalização econômica e tecnológica, os
meios massivos e as redes eletrônicas veiculam um multicultura-
lismo que faz rebentar os referentes tradicionais de identidade”
(MARTÍN-BARBERO, 1997c, p. 20).
Diante dessa situação, o modelo de sociedade implícito à
idéia de modernidade anteriormente descrita entra em crise e,
com ele, duas das suas categorias-chave: Estado nacional e espa-
ço público. A esfera pública vai corresponder fundamentalmente
ao espaço controlado pelos meios de comunicação de massa.
Essa concepção, por sua vez, traz profundas conseqüências para a
164
compreensão do que é política. “Esta veria esvaziar seus conteú-
dos substantivos para tornar-se refém da forma de comunicação
dos meios nos quais não cabem formas de verdade matizadas: os
próprios personagens políticos não buscam distinguir-se por sua
experiência ou capacidade de liderança, mas pela simpatia que seus
publicistas são capazes de suscitar entre os grandes auditórios”
(COSTA, 1999, p. 97). Nas palavras de Martín-Barbero, esse pro-
cesso revela a crise do político como dimensão fundamental da
vida social. A espetacularização da política retira-lhe substância,
transformando-a em “gesto dramático”.6
Nesse novo contexto, duas características primordiais confi-
guram a contemporaneidade latino-americana: as contradições pro-
venientes dos acordos de integração regional nesse continente e a
paulatina desestruturação do espaço nacional. Diante da globaliza-
ção em curso, “a integração dos países latino-americanos implica
a sua inevitável integração a pura e dura lógica de uma economia-
mundo na qual toda aliança é para competir e fragmentar” (MARTÍN-
BARBERO, 1996a,
p. 58). Exigências de competitividade prevalecem
sobre laços de cooperação e complementaridade regional. Sendo
assim, a solidariedade regional se fragiliza.
De outro lado, a desintegração social e política do espaço
nacional é cada vez mais evidente. Indicativos como a crescente
desigualdade social, a inserção de instituições financeiras transna-
cionais que vão substituindo o Estado no planejamento do desen-
volvimento, a deterioração da esfera pública e de mecanismos de
coesão política cultural, entre outros aspectos, levam o autor a
duvidar da pertinência de categorias como nação e Estado para
compreender as experiências culturais contemporâneas.
Entrelaçado com esse cenário, Martín-Barbero reitera o “mal-
estar latino-americano na modernidade”:
Aí se enraízam algumas das nossas mais secretas e entranhadas vio-
lências. Pois as pessoas podem com certa facilidade assimilar os instru-
mentos tecnológicos e as imagens de modernização, mas só muito lenta e
dolorosamente podem recompor seu sistema de valores, de normas éticas e
virtudes cívicas. […] Não dispomos de categorias de interpretação
capazes de captar o rumo das vertiginosas transformações que vive-
mos. Somente alcançamos vislumbrar que na crise dos modelos de
165
desenvolvimento e dos estilos de modernização existe um forte
questionamento das hierarquias centradas na razão universal, que
ao perturbar a ordem seqüencial libera nossa relação com o passado,
com nossos diferentes passados, permitindo-nos recombinar as memórias
e reapropriar-nos criativamente de uma descentrada modernidade.
(MARTÍN-BARBERO, 1996a, p. 59, grifo meu)
A partir de De los medios a las mediaciones (1987) está sugerida
a importância das práticas populares e sua natureza “sincrética”
(nos termos de Martín-Barbero, a mestiçagem). São essas “esque-
cidas” formas de participação na vida cotidiana que contribuem
tanto para preservar as identidades culturais como para adaptá-las
às demandas modernas. Daí a ênfase do autor em insistir que, em
última instância, o próprio objeto dos estudos de comunicação “são
as mudanças nos modos das pessoas juntarem-se, as mudanças nos
modos de estarem juntas”, admitindo, então, que isso têm uma
estreita vinculação com o encarar os meios de comunicação como
espaços de constituição de identidades e como espaços de confor-
mação de comunidades. Em suma, os processos de comunicação
são “fenômenos de produção de identidade, de reconstituição de
sujeitos, de atores sociais” e os meios de comunicação “não são um
puro fenômeno comercial, não são um puro fenômeno de manipu-
lação ideológica, são um fenônemo cultural através do qual a pes-
soa, ou muitas pessoas, cada vez mais pessoas vivem a constituição
do sentido de sua vida” (MARTÍN-BARBERO, 1995d, p. 71, grifo meu).
Embora já estivesse explícita em 1987, essa proposta tem ainda
repercussões na reflexão mais recente de Martín-Barbero.
A posição desse autor, em DMM, é especialmente crítica
em relação àquelas teorias que procuram associar o sentido das
identidades culturais a uma essência ou em termos de uma “pu-
reza” do ser latino-americano. A idéia de identidade cultural
deve servir para discutir a progressiva transformação dos valores
sociais e para explorar os diversos tecidos culturais que a com-
põem. Desprende-se, de tal reflexão, uma proposta que destaca a
natureza negociadora da formação histórica da identidade cultu-
ral latino-americana.7
Para ele, a identidade cultural latino-americana é uma mistu-
ra, uma “mestiçagem”. Esta, no entanto, não se refere estritamente
166
ao caldeirão racial que caracteriza nosso território, mas a trama
entre modernidades e descontinuidades, de memórias e imaginá-
rios que misturam o rural com o urbano, o popular com o massi-
vo. Na mestiçagem, as culturas rurais, urbanas, raciais, locais,
regionais, nacionais e transnacional interagem. E o fato de que a
cultura massiva, seja aquela originária da América Latina como a
de outros continentes, faça parte desse conjunto não contribui
para que essa mestiçagem se descaracterize ou seja “menos latino-
americana”, pois é o próprio mix que é único.
Em DMM (1987) e em Televisión y melodrama (1992), entre
outros momentos, o interesse de Martín-Barbero pela telenovela
como o gênero massivo latino-americano mais importante, deve-
se ao fato de que, embora revele traços do folhetim francês e
convenções do massivo, evoca profundamente o imaginário me-
lodramático dos latino-americanos. Segundo White (1995), Mar-
tín-Barbero sugere que em muitos aspectos a telenovela, com toda
a sua impureza, pode estar mais próxima de articular identidades
políticas do que a tradição maniqueísta das elites políticas que
têm reivindicado representar as classes populares.
Ainda na avaliação de White (1995, p. 484), “para entender
o papel dos meios no processo de articulação de identidades, Mar-
tín-Barbero introduz o conceito de mediações. […] Para Martín-
Barbero, o sentido dos meios não está no texto ou mesmo na
‘leitura’ do texto, mas aloja a fonte de criação do sentido nas inte-
rações sociais e movimentos de grupos que buscam por identida-
des. O sentido do texto dos meios depende muito das identidades
que os diferentes grupos estão tentando definir”.
Martín-Barbero tem argumentado sobre a relação entre iden-
tidade cultural latino-americana e cultura popular, acreditando que
esta última tem modificado as formas de expressão da cultura de
massa. Sugere que “a compreensão do processo de comunicação
de massa implica reconhecer a rearticulação das fronteiras simbóli-
cas e como estas novas fronteiras simbólicas confirmam o valor
e poder das identidades coletivas” (MARTÍN-BARBERO citado por
SCHLESINGER E MORRIS, 1997, p. 63). Nesse sentido, tem insistido
em que os processos de comunicação devem ser abordados a partir
da base dos movimentos sociais, em vez de partir de pressupostos
167
sobre o próprio poder dos meios, isto é, sua proposta largamente
conhecida de deslocamento dos meios em direção às mediações.
Antes de continuar na análise dos processos de constituição
contemporânea da identidade cultural em que a indústria cultural
exerce um papel destacado – reorganizando as identidades coleti-
vas e as formas de diferenciação simbólica –, aproveito esta men-
ção à DMM para ressaltar que, nesse texto, Martín-Barbero
alinhava uma posição crítica ao discurso pós-moderno, não acei-
tando os termos nos quais é posto o debate a partir do ponto de
vista pós-moderno.
Na sua recuperação de posições em torno da indústria cultu-
ral, passando por Horkheimer, Adorno, Benjamin, Morin, Fou-
cault, chega a Baudrillard. Nesse ponto, avalia que a reflexão deste
último é uma “boa expressão da armadilha política” que está im-
plícita na “dialética negativa” destravada pela Escola de Frank-
furt. Diante do pessimismo e irreversibilidade de posturas desse
mesmo corte, Martín-Barbero ilumina o que elas deixam de pen-
sar: as contradições inerentes às tendências da crise cultural con-
temporânea. “A nova valorização da cotidianidade, o moderno
hedonismo ou o novo sentido da intimidade não são unicamente
operações do sistema, mas novos espaços de conflito e expressões
de nova subjetividade em gestação”. E, de forma ainda mais con-
tundente, conclui a seção, afirmando: “Quando a crítica da crise
‘convoca’ à crise da crítica é o momento de redefinir o campo
mesmo de debate” (1987a, p. 70).
No entanto, percebe-se em alguns textos posteriores à DMM
a matização dessa crítica8. Javier Protzel, no aniversário de dez
anos de De los medios a las mediaciones, lançava essa pista: “Precisa-
mente o descompasso do processo da modernidade latino-america-
na e a desierarquização dos relatos e das artes [...] dão continuidade
a uma reflexão que passa a ocupar-se da condição pós-moderna.
Mais ainda, a dupla evidência da formação de uma cultura latino-
americana moderna articulada pela mediação de massa,
por um
lado, e a da cidade como teatro de operações de hibridação, por
outro, passam a ser os referentes para abordar a desterritoriali-
zação das culturas e uma nova relação entre o público e o priva-
do” (PROTZEL, 1998, p. 43).
168
Ao recuperar novamente alguns teóricos alinhados com o
que se denomina pós-modernidade, Martín-Barbero vai começar
a observar que se delineia a emergência de um novo paradigma,
caracterizado pelo fluído e circular em oposição ao mecânico e
linear. A superação desse pensamento linear está fazendo possível
reconhecer novos espaços e modos de relação, assim como uma
nova sensibilidade. “Essa nova sensibilidade se traduz numa nova
percepção do poder que não aparece localizado num único pon-
to desde o qual irradia, mas disperso e transversal; nova valori-
zação do local enquanto espaço da proximidade, isto é, onde se
faz efetiva a diferença; e, no cotidiano como ‘lugar’ onde se luta e
se negocia permanentemente a relação com o poder” (MARTÍN-
BARBERO, 1988, p. 13).
Embora mostre ainda reticências e críticas em relação a esse
paradigma, vai propor como programa, citando García Canclini,
que se assuma “sem nostalgias nem estremecimentos” que é na
“América Latina onde se realiza com ênfase um dos traços desta-
cados pelo pós-modernismo na cultura atual: ser a pátria do pasti-
che e da bricolagem, onde se citam ironicamente todas as épocas
e estéticas” (MARTÍN-BARBERO, 1988, p. 15).
É importante situar esse movimento no pensamento de Mar-
tín-Barbero em sintonia com a descrição das novas dinâmicas
culturais, identificadas por ele próprio e que estariam caracteri-
zando as sociedades latino-americanas atuais. Aqui, podem ser
apontadas as situações correntes mais determinantes. A primeira
delas diz respeito ao modo como as indústrias culturais estão re-
organizando as identidades coletivas e as formas de diferenciação
simbólica, esmaecendo cada vez mais as demarcações entre culto
e popular, tradicional e moderno, o próprio e o alheio. Na verda-
de, essa situação somente veio a se intensificar na última década.
Uma segunda dinâmica trata da ação simultânea dos meios
massivos que hibridizam mas, também, separam, “aprofundam e
reforçam as divisões sociais, refazem as exclusões que vêm da
estrutura social e política, legitimando-as culturalmente” (MAR-
TÍN-BARBERO, 1990a, p. 9). Martín-Barbero, ainda, reitera esse
aspecto: “[…] falar em identidade regional ou local implica falar
não só de costumes e tradições orais, de cerâmicas e ritmos musi-
169
cais, mas, também, de marginalização social, de expoliação eco-
nômica e de exclusão nas decisões políticas, isto é, do ‘desenvolvi-
mento desigual’ de que estão feitos esses países” (1990a, p. 13). É
importante ressaltar esse lado da questão para que, mais tarde, tal
posicionamento não se confunda com uma postura multicultura-
lista que reconhece como politicamente correto as diferenças cul-
turais, sem destacar as desigualdades sociais implicadas.
E, por último, é identificado o surgimento de culturas ou
subculturas não-ligadas à memória territorial. Mais recentemen-
te, esse autor tem se preocupado cada vez mais com as “memó-
rias desterritorializadas”, isto é, com aquelas relacionadas com
uma cultura de massa global (da TV, do vídeo, da música e do
cinema) que dificilmente podem ser vistas em relação a um ter-
ritório definido, pois estão ligadas ao mercado transnacional.
Nessa direção, têm-se tornado tema constante de suas reflexões
certas culturas juvenis “tachadas com freqüência de antinacio-
nais porque não têm raízes num território determinado. No
entanto, elas não são tanto antinacionais, mas uma nova forma
de perceber a identidade. São identidades com temporalidades
mais curtas e precárias, que tem uma flexibilidade que lhes
permite aglutinar ingredientes de diferentes mundos culturais”
(SCHLESINGER E MORRIS, 1997, p. 63).
Na emergência das culturas “sem memória territorial” é que
se evidencia uma outra ordem ou forma de organização promovi-
da pelos meios de comunicação, isto é, o movimento contraditó-
rio de globalização e fragmentação da cultura. “Os meios de
comunicação, tanto o rádio como a imprensa e, aceleradamente,
a televisão, são hoje os mais interessados em diferenciar as cultu-
ras, seja por regiões, por profissões, por sexos ou pela idade. […]
De forma que a desvalorização do nacional não provém unica-
mente da desterritorialização que os circuitos de interconexão global
da economia e da cultura-mundo efetuam, mas da erosão interna
produzida pela liberação das diferenças, especialmente das regio-
nais e geracionais” (MARTÍN-BARBERO, 1995b, p. 172).
Relacionada com essa dinâmica cultural, há uma revitalização
do local, uma emergência de relatos e imagens que revelam a diver-
sidade das culturas locais. E mesmo diante de uma impossibilidade
170
de definir fronteiras precisas de uma cultura nacional, mantida
pela soberania do Estado, a noção de nacional ainda tem vigên-
cia, convertendo-se num “espaço estratégico de resistência à do-
minação e uma mediação histórica da memória longínqua dos
povos, essa que faz possível o diálogo entre gerações” (MARTÍN-
BARBERO, 1995b, p. 173).
É evidente [reflexão de Martín-Barbero] a ruptura com a proble-
mática de uma hegemonia cultural imposta de fora. A transnacio-
nalização é considerada como um fator de deslocamento, não de
homogeneização de culturas e, nesse contexto, é difícil ver como
se pode impor uma identidade coletiva dominante, no âmbito
nacional, por meio de medidas políticas públicas, adotadas pelo
Estado. (SCHLESINGER E MORRIS, 1997, p. 63)
Enfim, Martín-Barbero acaba pondo em questão a capacidade
de ação do Estado no que diz respeito ao campo da comunicação.
Embora, ao mesmo tempo, sustente que o espaço da nação e da
cidade constituem um espaço estratégico de resistência à domina-
ção global e, assim, lugares para se pensar sobre a identidade.
Ao revisar a abundante produção de textos de Martín-Barbero,
ficam evidentes repetições e reiterações de posicionamentos. De
outro lado, é impossível evitá-las, pois são elas que vão sinalizando
as continuidades na reflexão desse autor. Contudo, vão sendo reve-
ladas, também, observações pertinentes a mudanças ou intensifica-
ções de certas experiências sociais, priorizando-se, então, outros
espaços ou outros ângulos para sua abordagem analítica.
Nesse sentido, destaco agora o movimento que pode ser observa-
do nos textos posteriores à DMM, de aproximação com o pensamento
pós-moderno ou pelo menos com alguns de seus princípios. A partir
da dúvida sobre se pensamos a crise da modernidade e o que ela possa
ter de superável, isto é, sua reformulação, ou o que esse debate pressu-
põe de anúncio da pós-modernidade, Martín-Barbero (1992) recupera
ambas as direções dessa discussão. Em ambos os contextos, enfatiza
que o lugar estratétigo para pensá-los é a comunicação.
Na seqüência desse raciocínio vai observar que a crítica
das dinâmicas culturais vigentes não cabe mais nos termos da
modernidade.
171
Um dos efeitos mais evidentes da crise que mina aquela [moder-
na] organização do mundo é a nova percepção do ‘campo das
tensões’ entre tradição e inovação, entre a grande arte e as culturas
do povo e das massas. Campo que já não pode ser captado nem
analisado nas ‘categorias centrais’ da modernidade: progresso/rea-
ção, presente/passado, vanguarda/kitsch. Porque se tratam de cate-
gorias despotencializadas em e por uma sensibilidade que no lugar
de completar a modernidade a problematiza, ao abrir a questão do
outro, a questão das tradições culturais como questão estética e
política. (1992, p. 31)
A exaustão dos termos da crítica moderna estaria relaciona-
da, então, à idéia de que o próprio princípio de separação entre
culto, popular e massivo não tem mais validade? Ou os princípios
da crítica moderna se exaurem porque o discurso moderno pres-
supõe
saber, decidir e legitimar uma determinada cultura?
Em outros termos, pensar essa nova experiência – caracteri-
zada por Vattimo (citado por Martín-Barbero, 1992, p. 31), pelo
debilitamento do real na experiência cotidiana de desenraizamen-
to do homem urbano, pela constante mediação e simulação que
exercem as tecnologias, pela dispersão estética e pelo simulacro
político – a partir do horizonte da crítica moderna, torna impos-
sível escapar de julgamentos que implicam degradação cultural.
Somente outra estética, ética, e outros princípios que caracteri-
zem uma outra sensibilidade, “poderão ter algum papel num pro-
jeto de emancipação para a gente de hoje. Uma emancipação que
começa por sentir o mundo menos seguro, mas, também, menos
totalitário” (MARTÍN-BARBERO, 1992, p. 31).
É nítida, nesse posicionamento de Martín-Barbero, a aceita-
ção de certos traços que marcam nossa inserção no mundo de
hoje à luz de teorias pós-modernas, mas, também, sua vinculação
com ideais essencialmente modernos: pensar na tradução da aná-
lise cultural num projeto político, acreditando ainda na capacida-
de de ação dos sujeitos.
A partir daqui passa a ser essencial verificar como esse ten-
sionamento que confronta o permanecer no campo da moderni-
dade com o aliar-se a posições pós-modernas se manifesta nos
seus textos de 1997/98.9
172
Num texto em que refaz o percurso da sua formação teórica,
revelando, no passado, seu encontro com o campo da comunica-
ção e, no presente, seu reencontro com a filosofia, seu ponto de
partida, assume especial importância o questionamento sobre o
papel do “pensamento crítico” num momento marcado pela “des-
localização do intelectual, o apagamento das utopias e a crise da
representação política”. Reivindica, então, passar de uma forma
explicativa de pensar para outro regime, o da racionalidade com-
preensiva. Assim, ao mesmo tempo que reconhece a existência de
um novo terreno, elucida sua proposta:
Não é verdade que com o apagamento das ideologias e utopias da
esquerda, o pensamento crítico perdeu seu território próprio e se
encontra hoje lutando a partir do campo que o adversário cons-
truiu e domina? Um adversário que, ao diluir-se o território da
esquerda, também se apaga, tornando-se embaciados os traços
que o identificavam, tornando-o vulnerável. Exilado de seu espa-
ço e, em certa medida, do seu tempo, de seu passado, o pensamento
crítico somente pode vislumbrar o futuro, tornando-se nômade,
aceitando o caminho da diáspora. (1998a, p. 205)
Esse pensamento nômade para Martín-Barbero está caracteri-
zado pelo “descentramento”, desordem que afeta tanto a noção de
espaço como de tempo, “exigindo-nos pensar os descompassos que
subvertem uma contemporaneidade esmagada sobre a simultanei-
dade do atual, sobre um presente autista” (1998a, p. 206). O que
era antes apenas um delineamento de um “novo paradigma” que
aparecia mais como resultado da recuperação de outras posições,
aqui, plasma seu próprio (re)conhecimento da situação.
a partir da perspectiva do des-centramento e da diáspora, a comuni-
cação deixa de ser confundida com o movimento de uma mensa-
gem que circula entre um emissor e um receptor. E encontra a idéia
e a imagem de rede – ou melhor, em seu plural: redes – a possibilidade
de pensar a multiplicidade de sentidos que sustenta a comunicação
humana e a diversidade de sentidos em que se move a informação ao
dispersar-se no entrelaçamento dos circuitos. (Idem)
Embora reiterada a idéia de que a modernidade latino-ame-
ricana está fundada na conexão entre cultura oral e visualidade
173
eletrônica, agora, Martín-Barbero nomeia o hipertexto, ou seja,
aqueles “textos sem centro e direção fixa”, como sua narrativa
central. Isso se coaduna com alterações na sua análise da experiên-
cia contemporânea e, nesse sentido, da constituição das identida-
des, assim como com essa nova forma de pensar.
No esboço de mais um dos seus “mapas noturnos” – que ilu-
minam certas rotas, mas onde muitas outras ficam encobertas –,
Martín-Barbero vai identificar o mundo e a técnica como categori-
as imprescindíveis de serem (re)pensadas, pois os saberes que as
rodeiam são precários e as resistências em admitir que estamos
diante de um “novo objeto” são ainda muito fortes. É essencial,
principalmente para quem se insere no campo da comunicação
observar o que esses dois âmbitos estão sinalizando.
A primeira categoria deverá indicar a passagem de um pro-
cesso de internacionalização para o de mundialização, reclama
assim um novo paradigma, pois o mundo de hoje não pode estar
ancorado no tempo das relações internacionais.
Interligada com a idéia de mundo está a recorrente temática
que se encontra na ordem do dia: a globalização. Esta, por sua
vez, está sempre a exigir explicação, pois transforma-se tanto em
metáfora vazia quanto pode ficar reduzida à concentração e ao
poder alcançado pelo mercado. Por essa razão, Martín-Barbero ex-
plicita que o global não se deixa captar pela categoria do Estado
nacional e que é justamente o espaço nacional que sofre, hoje, o
processo mais profundo de reconfiguração. “[…] preso entre as
lógicas desnacionalizadoras do global e as dinâmicas de restau-
ração do local, vê-se superado economicamente (demasiado gran-
de e pesado para gestionar o local e demasiado pequeno para
competir com as forças do global) e deslocado culturalmente. O
que não significa seu desaparecimento […] (MARTÍN-BARBERO,
1998a, p. 212).
Duas imagens sintetizariam nosso ingresso e imersão nesse
mundo. A primeira delas é que nos ofereceu o primeiro satélite,
proporcionando “ver o mundo a partir do espaço”. Isso colocou
em andamento a globalização do imaginário humano. A segunda
imagem é a da queda do Muro de Berlim, que serviria como
metáfora do fim das barreiras entre Leste e Oeste. Nesse cenário,
174
Martín-Barbero retorna a constituição do imaginário coletivo e
volta seu olhar para a vida cotidiana e ordinária, com seu ritmo
muito mais lento e as suas amarras numa outra história que não é
a da fluidez, circularidade, velocidade. “Mais lentos, no entanto,
que a economia e a tecnologia, os imaginários coletivos do global
conservam e arrastam vestígios do lugar, vestígios do local, que
intensificam as contradições entre velhos hábitos perspectivos e
novas habilidades técnicas, entre ritmos locais e velocidades glo-
bais” (1998a, p. 213).
O outro eixo proposto para se (re)pensar é a técnica. Nesse
âmbito, o autor sinaliza três possibilidades de abordagem. A pri-
meira propõe refletir em conjunto o “hipertexto e o palimpsesto”,
isto é, “essa nova enciclopédia na qual as palavras já não remetem
mais a outras palavras, mas a imagens e sons mobilizadores de
novos modos de escritura e leitura, que são os hipertextos. E essa
escritura difusa que confusamente emerge nas entrelinhas com as
quais escrevemos o presente é o palimpsesto” (1998a, p. 213).
A segunda direciona-se às novas narrativas que a tecnologia
faz possível, principalmente aquelas tramadas pela sensibilidade
dos jovens. E, por último, a terceira implica deixar de ver a técni-
ca como mera transmissora e abordá-la como parte constitutiva
dos novos modos de produzir conhecimento.
Articuladas essas três aproximações, um novo sensorium emer-
ge. Este não é mais caracterizado pela “dispersão” e pela “ima-
gem múltipla” que representava a experiência moderna, mas pela
“fragmentação” e pelo “fluxo”. Estes últimos dois – fragmentação
e fluxo – são os novos dispositivos que conectam a estrutura co-
municativa da televisão com os ordenamentos da nova cidade.
A primeira característica – fragmentação – associa-se com
desagregação social, isto é, relaciona-se com a atomização que a
privatização da experiência televisiva proporciona. E a televisão,
hoje, associa-se a uma experiência doméstica e privada, circuns-
crita a casa. É a partir desse ambiente que cada dia um maior
número
de pessoas realiza sua inserção na cidade.
“Do povo que tomava a rua ao público que ia ao teatro ou ao
cinema, a transição era transitiva e conservava o caráter coletivo da
175
experiência. Dos públicos do cinema às audiências de televisão, o
deslocamento sinaliza uma profunda transformação: a pluralida-
de social, submetida a lógica da desagregação, faz da diferença uma
mera estratégia de rating. E não representada na política, a frag-
mentação da cidadania é tomada a cargo do mercado: é dessa
mudança que a televisão é a principal mediação! (MARTÍN-
BARBERO,1997a, p. 36)
O outro dispositivo que complementa a fragmentação é o
fluxo. Ele diz respeito a profusão de imagens que retêm a atenção
do espectador, sinalizando que este ininterrupto fluxo de imagens
é mais importante que o próprio conteúdo da programação televi-
siva. “É com pedaços, restos e resíduos de objetos e saberes que
boa parte da população arma os abrigos onde habita, tece o rebus-
que10 com que sobrevive e enfrenta a opacidade da cidade. E
existe, também, uma eficiente travessia que liga os modos de ver
a partir dos quais o televidente explora e atravessa o palimpsesto
dos gêneros e os relatos com os modos nômades de habitar a
cidade” (1997a, p. 37) Em última instância, o autor nos adverte
que o fluxo televisivo remete às formas da vida na cidade, especi-
almente dos jovens, impondo a dissolução dos gêneros e a exalta-
ção do efêmero.
Como vivemos, então, a contemporaneidade? Habitamos um
mundo onde se cultua o presente, fomentado pelo conjunto de
meios de comunicação, com especial destaque para a televisão, e
onde a percepção do tempo e do espaço se transforma.
A mutação que experimentamos produz “um novo tipo de
espaço reticulado que debilita as fronteiras do nacional e do local,
ao mesmo tempo que converte esses territórios em pontos de aces-
so e transmissão, de ativação e transformação do sentido de co-
municar”. Mas como se conectam o atual desenvolvimento
tecnológico com as transformações na nossa experiência sensível,
e como interatuam? Citando Manzini, Martín-Barbero nos diz:
“o espaço que nossos itinerários perceptivos atravessam se encon-
tra estratificado segundo a velocidade do meio tecnológico que
usamos […], mas a multiplicidade de temporalidades que vive-
mos, não se encontra regulada pela lógica interna do sistema téc-
nico” (1998a, p. 30). O que significa, então, que a inserção dos
176
sujeitos nesse contexto não é automática, mas atravessada de con-
tradições e ambigüidades, de ritmos diferenciados.
Porém, em outro lugar (1998b, p. 55), Martín-Barbero co-
menta que, ao comparar-se práticas de comunicação nos super-
mercados com as práticas que ocorriam nos mercados e feiras
populares, constata-se uma substituição da interação comunicati-
va pela textualidade informativa: “É o que vive o comprador no
supermercado ou o passageiro no aeroporto, onde o texto infor-
mativo ou publicitário guia-o de uma ponta a outra sem necessi-
dade de intercambiar uma palavra durante horas”.
Em relação ao tempo, sua marca hoje é o instântaneo, a “simul-
taneidade do atual”, remetendo, por um lado, ao “debilitamento do
passado”, que fica reduzido à citação em expressões de qualquer
natureza (tais como na arquitetura, literatura, etc) e, de outro, à
“ausência de futuro”, instalando-se um “presente contínuo”.
Associada às reestruturações do espaço e do tempo, a cons-
tituição das diversas identidades locais converte-se em “represen-
tação da diferença”, mas uma diferença comercializável, isto é,
“submetida ao turbilhão de colagens e hibridações que o mercado
impõe” (1997a, p. 32). Embora se reconheça que o processo de
globalização valorize, de forma paradoxal, o âmbito do local,
mostrando-o como a ancoragem primordial do sujeito, seu senti-
do não é unívoco.
É nesse cenário que a reflexão de Martín-Barbero se insere.
Diante de um mundo paradoxal é uma reflexão prenhe de dúvidas
e incertezas, que dilacera-se entre o “lúcido pessimismo” dos rela-
tos desencantados, a idéia de que “uma crítica pessimista da cultura
é uma tarefa positiva” (MARTÍN-BARBERO citando STEINER, 1997a, p.
40) e a tentativa de compreender o desencantado mundo social
com o intuito de transformá-lo. Lidando com uma situação na qual
vivemos “o desencantamento do mundo sem que isto nos converta
automaticamente em seres desencantados”, Martín-Barbero deba-
te-se para inverter a avaliação de Benjamin – “todo documento de
cultura é também um documento de barbárie”, desejando que “nes-
tes escuros tempos existissem documentos de barbárie que fossem
documentos de cultura” (1997a, p. 40).
177
IDENTIDADE COMO HIBRIDISMO
Ao revisar as teorias sobre a modernidade tendo como foco as
transformações ocorridas a partir dos oitenta na parte latina do con-
tinente americano, García Canclini (1989a) vai conceber a América
Latina como uma articulação complexa entre tradições e modernida-
des, diversas e desiguais, coexistindo em múltiplas formas de desen-
volvimento. A partir dessa constatação, o autor converte o termo
“hibridismo cultural” em modelo explicativo de identidade.
Como o sentido que esse termo adquire na reflexão de Gar-
cía Canclini já foi explicado, o ponto de partida será recuperar
algumas das suas idéias, resultantes de uma série de investigações
e análises da cultura visual (por exemplo, monumentos, grafites,
artes plásticas, entre outros), e sua relação com os processos de
constituição da identidade cultural. Seguindo esse roteiro, serão
ampliadas e aprofundadas algumas das suas considerações a esse
respeito. O contexto geral dessas observações pressupõe que, a
partir da consolidação da urbanização na América Latina, são os
meios de comunicação de massa que vão estabelecer uma nova
diagramação dos espaços e intercâmbios urbanos.
Nessa perspectiva, García Canclini (1988b, p. 49) observa
que a constituição da figura do latino-americano, isto é, sua iden-
tidade, pode apresentar sua cara na cultura visual. O termo cultu-
ra visual, segundo o mesmo autor, abrange os diversos sistemas
de imagens e desenhos presentes na organização simbólica de
cada sociedade (arte, artesanato, meios massivos, arquitetura,
desenho gráfico e industrial) e, também, os processos mistos onde
esses sistemas se cruzam e interpenetram.
Uma das principais marcas desse conjunto de formas simbó-
licas, hoje, é a impossibilidade de distinguir nele a existência de
diferentes universos, tais como culto, popular e massivo. Na ver-
dade, diz García Canclini, a América Latina não teve uma histó-
ria cultural semelhante à da Europa, onde existiu uma distinção
culto/popular durante séculos. Tal oposição na Europa
contribui para organizar simbolicamente as diferenças entre as clas-
ses durante todo o processo de modernização. Antes que o reorde-
namento massivo das sociedades contemporâneas perfurasse o muro
178
que dividia o culto do popular, dois tipos bem diferenciados de
cultura visual tinham delineado identidades separadas, formas
diversas de reconhecimento e valorização. Enquanto o campo
artístico conquistava sua autonomia e se dedicava a produzir obras
cotadas pela sua originalidade, a arte popular ia sendo valorizada
pela sua autenticidade e tradicionalidade. (GARCÍA CANCLINI,
1988b, p. 49)
Associado a esse posicionamento sustenta-se que não existe
somente um tipo de identidade, ao contrário, existiriam dois uni-
versos de imagens: o culto e o popular.
A América Latina não compartilha dessa narrativa cultural
européia. No nosso caso, durante a época das colônias, as artes
estavam sob a tutela religiosa ou sob um poder político que não
concedia espaços autônomos. A partir de meados do século XIX,
as artes começam a desprender-se desse jugo, no entanto, esse pro-
cesso não foi acompanhado pela estruturação de um forte mercado
cultural. “Longe de poder constituírem projetos criativos indivi-
duais, os artistas
foram empregados para construir a iconografia
das gestões de liberação e organização nacional” (1988b, p. 50).
Dessa forma, é somente a partir da primeira metade do século XX,
com o desenvolvimento industrial, urbanização e crescente poder
econômico das classes médias e altas, que se constitui um público
comprador de arte, sendo somente nos anos 50/60 que o processo
de autonomização da arte culta começa a deslanchar.
A particularidade do caso latino-americano sobressai quando
se observa que as condições socioeconômicas e culturais que per-
mitiriam a autonomização dos campos culturais coincide com o
desenvolvimento do processo de massificação que remodela os
países dessa parte do continente. “Em parte pelos movimentos
políticos [sobretudo os populismos], em parte pela modernização
comunicacional [instalação da lógica das indústrias culturais], a
autonomia de uma estética culta e o desenvolvimento autônomo
de tradições populares tornam-se empresas falidas” (Idem).
Na América Latina, os sistemas simbólicos e cenários cultu-
rais sofrem mudanças constantes e radicais e, por essa razão, as
regularidades e distinções que poderiam facilitar sua análise são
insustentáveis. Dessa maneira, uma das primeiras conclusões é de
179
que o universo culto e popular se desenvolvem, transformando-se
mutuamente; não se configuram em blocos homogêneos e com-
pactos com contornos definitivos.
Outro ponto relacionado à precária construção da moderni-
dade na América Latina e, por sua vez, à identidade latino-ameri-
cana, concentra-se nos esforços políticos em construir patrimônios
culturais comuns como base simbólica das nações modernas. Nas
suas versões mais modernas, a ideia de patrimônio se constitui em
expressão da aliança entre classes e abrange a herança cultural co-
mum de cada povo. Em tais modalidades são incluídas práticas dos
membros dessas sociedades que vão permitir uma identificação
conjunta. Em outras palavras, tentam abarcar tanto os bens produ-
zidos pelas classes hegemônicas quanto os das classes populares.
Esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam
como nação ou como povo é apreciado como um dom, algo que
recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabe
discuti-lo. […] A perenidade desses bens faz imaginar que seu
valor é inquestionável e os torna fonte do consenso coletivo, des-
considerando divisões entre classes, etnias e grupos que fraturam a
sociedade e diferenciam os modos de apropriar-se do patrimônio.
(GARCÍA CANCLINI, 1989a, p. 150)
Tal tipo de posicionamento desemboca numa noção essencia-
lista de identidade,11 desse modo, “o que se define como patrimô-
nio e identidade pretende ser o reflexo fiel de uma essência” (1989a,
p. 152, grifo meu).
Segundo García Canclini, essa postura expressa pelo patri-
monialismo essencialista não proporciona condições para com-
preender a crise generalizada da cultura visual ou, em outros termos,
o significado do pós-moderno na história da cultura visual. Nesse
sentido, o pós-moderno é uma situação complexa de desenvolvi-
mento cultural em que o ponto central se situa no reordenamento
dos princípios que regiam o culto, o popular e a oposição entre
eles, quando funcionavam como estruturas separadas.
Embora essa cultura visual tenha truncado as explicações de
encontrar uma identidade constituída na raça, num território ou
num patrimônio, não eliminou o questionamento em torno da
180
identidade. Ao contrário, em tempos de contradições e instabili-
dades essa questão se torna ainda mais premente.
É exatamente neste ponto que o termo “hibridação” se transfor-
ma no eixo do conceito de modernidade latino-americana, para Gar-
cía Canclini. Cruza-se, aqui, reflexão teórica com trajetória pessoal.
Indagado, em certa ocasião, sobre se tal conceito tem seu lastro na
sua origem argentina ou na sua vivência no México, respondeu:
Eu diria que das duas origens. A Argentina é um país constitutiva-
mente multiétnico, embora às vezes esqueça esse fato; foi formado
modernamente por muitas migrações européias e, também, medi-
ante um processo de arrasamento e encurralamento da sua popula-
ção indígena originária. Grande parte das manifestações culturais
que habitualmente se consideram distintivas da Argentina, como o
tango ou o sainete, são interculturais, são muito híbridas. Não é
possível falar da Argentina como uma sociedade homogênea, senão
como uma sociedade de alta heterogeneidade regional, de classe, de
grupos étnicos, etc [...] O México, que também é um país constitu-
tivamente multiétnico, tem um perfil distinto. Em primeiro lugar,
pela importante presença indígena e por todos os processos de hi-
bridação que ocorreram durante a colônia, que teve uma presença
muito mais vigorosa no que se chamou a Nova Espanha do que
nesse distante Vice-Reinado do Sul ao qual pertenceu a Argentina.
Minhas experiências no México, através do trabalho de campo em
zonas rurais e indígenas e nos fenômenos urbanos, mostraram-me
uma constante confrontação com processos de hibridação de um
tipo diferente do argentino.Além disso, sem dúvida, está o fato de
eu mesmo ser um imigrante e, portanto, um participante fraturado
por estas duas experiências. A expressão argenmex, com a qual
designam os argentinos que vivem há muito tempo no México,
é claramente representativa desta mescla. (CANCLINI entrevistado
por MONTOYA, 1992, p. 12)
Exatamente por vivenciar na própria pele a separação da ter-
ra natal e inserção num outro contexto, apropriando-se de outro
mix de culturas, García Canclini constitui-se num híbrido. “Ar-
gentino de nascimento, García Canclini está bem qualificado para
escrever sobre híbridos culturais, dado que seu próprio corpo é um
híbrido cultural. […] García Canclini escreve como um argentino
181
sobre o México e como um mexicano sobre o México. Ele retrata
a Argentina como um exílio e como um mexicano. Sua reflexivi-
dade é multiplicada pela mesma trajetória da sua própria história
de vida” (LULL, 1998, p. 408). Nos termos de Stuart Hall, isso
significa construir uma espécie de ponte entre posições diferen-
tes, ter um investimento em mundos distintos, o que compõe a
experiência da diáspora através da qual a identidade cultural con-
temporânea está articulada.
Na avaliação de Herlinghaus (1997, p. 47), a concepção de
hibridização cultural12 de García Canclini é pós-moderna “na
medida em que relativiza aquelas metas que impediram de pensar
o descontínuo e o multitemporal”. Nos cruzamentos e nas nego-
ciações entre o culto, o popular e o massivo suspendem-se as lógi-
cas modernas de divisão, separação e pureza destes níveis.
García Canclini reconhece a utilidade da reflexão sobre a pós-
modernidade para compreender essa heterogeneidade cultural lati-
no-americana. Contudo, ele tem o cuidado de sublinhar que não
concebe a pós-modernidade como uma etapa que substituiria o
mundo moderno, mas como “uma forma de problematizar os vín-
culos equivocados que este [o mundo moderno] armou com as
tradições que quis excluir ou superar para constituir-se” (1989a,
p. 23). A relativização proposta pelas teorias pós-modernas facilita
revisar a separação entre culto, popular e massivo, proporcionando
meios para elaborar um pensamento mais aberto em relação a in-
tercâmbios, integrações e interações entre esses níveis.
Em outras palavras, ele percebe, na corrente de pensamento
da pós-modernidade sugestões para repensar algumas questões
colocadas pela modernidade.13
O aporte pós-moderno é útil para escapar desse impasse, pois revela
o caráter construído e teatralizado de toda tradição, incluída a da
modernidade: refuta a origem das tradições e a originalidade das
inovações. Ao mesmo tempo, oferece a ocasião de repensar o mo-
derno como um projeto relativo, vacilante, não antagônico às tradi-
ções, nem destinado a superá-las por alguma lei evolucionista
inverificável. Serve, em suma, para
fazer-nos cargo, ao mesmo tem-
po, do itinerário impuro das tradições e da realização desencaixada,
heterodoxa, de nossa modernidade. (1989a, p. 190)
182
García Canclini procura construir uma posição intermediá-
ria que nega tanto a postura que absolutiza uma pureza ilusória
quanto o relativismo acachapante pós-moderno, em que qualquer
sentido se desfaz. Há uma explícita tentativa de considerar tanto
as questões modernas quanto as pós-modernas, negociando um
espaço interpretativo entre esses dois discursos.
Nessa direção, sua análise de algumas práticas culturais aponta
para o surgimento de novas formas de subjetividade que, embora
desprovidas de qualquer noção totalizante, mantêm uma tensa
relação interrogativa com as sociedades, ou fragmentos delas, e
onde os novos atores sociais acreditam ver movimentos sócio-
culturais vivos e utopias praticáveis.
Isso sinaliza a crença do autor na temática das utopias e dos
projetos históricos e que estes ainda têm validade. “Alguns de nós
entendem que a queda dos grandes relatos totalizadores não eli-
mina a busca crítica do sentido – ou melhor, dos sentidos – na
articulação das tradições e da modernidade. E que a renovação do
tratamento desta questão deve partir do reconhecimento da plura-
lidade semântica que se dá não somente na arte culta e no popular,
mas nos seus entrecruzamentos inevitáveis e na sua interação com
a simbólica massiva” (1988b, p. 56).
Paulatinamente, a reflexão de García Canclini passou a inte-
ressar-se cada vez mais pelos processos de consumo cultural que já
eram assinalados na década de 80 como relevantes para reavaliar as
políticas culturais e desenhar novas políticas verdadeiramente de-
mocráticas, isto é, que construíssem espaços para o reconhecimen-
to e o desenvolvimento coletivo, mas, também, proporcionassem
condições reflexivas para que fosse avaliado o que obstrui esse reco-
nhecimento (1989b, p. 148). O que se observa nesse movimento é
um deslocamento em direção à importância do mercado e seu
poder na estruturação e constituição das identidades, desbancan-
do a influência do Estado, destacada em outros períodos, no pro-
cesso do consumo.
É difícil rastrear os conceitos e idéias fundamentais dos se-
cundários no livro de García Canclini – Consumidores e cidadãos
(1995b). Ele expõe uma diversidade de questões para pensar e,
além disso, a sua forma de apresentação não é linear, articulando
183
numa série de ensaios um leque de problemáticas em torno do
consumo, identidade cultural e cidadania.
Vemos aí a retomada e atualização de uma série de questões
que foram sendo expostas em textos anteriores. Metodologica-
mente, García Canclini continua insistindo no trabalho de com-
plementação entre antropologia, sociologia, comunicação e outras
áreas do campo das ciências humanas.
Uma das idéias-chave é de que os problemas do consumo não
podem ser vistos apenas como relacionados à eficiência comercial,
aos negócios, à publicidade, ou ainda, como uma questão de gos-
tos pessoais. Entender como as mudanças na maneira de consumir
foram alterando as formas de exercer a cidadania e a construção da
identidade é a provocação que García Canclini propõe.
Para alcançar tal objetivo, traça o novo cenário sócio-cultural
contemporâneo e repassa algumas questões como: o esfacelamen-
to da oposição entre o próprio e o alheio; a assunção do global,
mediado pela cultura local; a necessidade de definir novas políti-
cas culturais em tempos de integração cultural e globalização; a
crença numa sociedade civil rearticulada de forma diferente da-
quela dos anos 70/80, entre outras.
Dois âmbitos são, então, cruciais na análise de García Can-
clini: na cultura destaca-se o consumo e na política é a própria
noção de cidadania que necessita ser revista. No início do livro a
posição do autor fica claramente expressa: “Homens e mulheres
percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que
lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar,
quem representa meus interesses – recebem sua resposta mais atra-
vés do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do
que das regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva
em espaços públicos” (1995b, p. 13, grifo meu).
A própria política tornou-se errática e submetida às regras
do espetáculo onde as decisões são tomadas em função das sedu-
ções do consumo. Por essa razão, García Canclini dirige-se à cida-
dania, entendida como “o núcleo daquilo que na política é relação
social”, sem desvinculá-la do consumo. Ao repensar a cidadania em
conexão com o consumo e como estratégia política, procura-se uma
184
forma de articular o poder de organização do Estado com o do
mercado. “Precisamos de uma concepção estratégica de Estado e
do mercado que articule as diferentes modalidades de cidadania
nos velhos e nos novos cenários, mas estruturados de maneira
complementar” (1995b, p. 24).
Segundo a ótica de García Canclini, os próprios meios de
comunicação de massa que foram responsáveis pelo aparecimento
das massas na esfera pública foram mudando e deslocando o exercí-
cio da cidadania e o desenvolvimento do espaço público em dire-
ção às práticas de consumo. “Devemos nos perguntar se ao consumir
não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto,
constitui uma nova maneira de ser cidadãos. Se a resposta for po-
sitiva, será preciso aceitar que o espaço público transborda a esfe-
ra das interações políticas clássicas” (1995b, p. 31).
E o autor não se furta de elaborar uma proposta onde o con-
sumo não seja comandado pelas forças do mercado, mas faça par-
te de interações sócio-culturais complexas. “Vincular o consumo
com a cidadania requer ensaiar um reposicionamento do merca-
do na sociedade, tentar a reconquista imaginativa dos espaços
públicos, do interesse do público. Assim o consumo se mostrará
como um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e atuar signi-
ficativa e renovadoramente, na vida social” (1995b, p. 68).
Do ponto de vista da análise, as alterações que vão ocorren-
do no plano histórico têm suas equivalências em termos de concei-
tos. Numa determinada situação, conceitos específicos são
produtivos e em outra, são descartáveis. Esse processo está expres-
so no abandono da noção de popular que se tornou inadequada para
abarcar os múltiplos cruzamentos culturais contemporâneos. As-
sim, o popular foi substituído pela idéia de sociedade civil. Porém,
esta também foi tornando-se inapreensível, pois passou a indicar as
mais díspares manifestações de grupos, organizações não-governa-
mentais, empresas privadas e mesmo indivíduos. Na opinião de
García Canclini, o termo sociedade civil passou a ser “outro con-
ceito totalizador a negar o heterogêneo e desintegrado conjunto de
vozes que circulam pelas nações” (1995b, p. 34). Por essa razão,
agora o ponto de vista centra-se na idéia de consumidor-cidadão.
185
A definição sobre quem somos nós, os latino-americanos,
continua demarcando um espaço importante na reflexão de García
Canclini. Se antes as identidades se definiam pelas relações com o
território, tentando expressar a construção de um projeto nacio-
nal, atualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo
que se possui ou daquilo que se pode chegar a possuir.
O rádio e o cinema e, particularmente no caso brasileiro, a
televisão, contribuíram, na primeira metade deste século, para a
organização da identidade e do sentido de cidadania nas socie-
dades nacionais, na América Latina. Os meios massivos acaba-
ram unificando os padrões de consumo e proporcionando uma
visão nacional.
Essa identidade foi construída através de relatos fundadores,
apropriação de um território e defesa desse mesmo território das
invasões estrangeiras. Tudo isso com o fim de nos diferenciarmos
dos outros. No final do século XX, isto se transformou. Esse tipo
de construção identitária começou a
se esboroar nos anos 80. “Os
referentes de identidade se formam, agora, mais do que nas artes,
na literatura e no folclore – que durante séculos produziram os
signos de distinção das nações –, em relação com os repertórios
textuais e iconográficos gerados pelos meios eletrônicos de comu-
nicação e com a globalização da vida urbana” (GARCÍA CANCLINI,
1995b, p. 124). De forma sintética, pode-se dizer que a globaliza-
ção da economia e a integração regional foram reduzindo o papel
das culturas nacionais e dos referentes tradicionais de identidade.
Apesar da mescla de elementos de várias culturas, das diversas
situações de interculturalidade, das formas desiguais de apropria-
ção, combinação e transformação de elementos simbólicos, ainda
subsistem as culturas nacionais, as culturas regionais e os movi-
mentos de afirmação do local. Hoje não existem somente culturas
diferentes, mas, também, maneiras desiguais com que os grupos se
apropriam de elementos de várias sociedades, combinando-os e
transformando-os. Logo, a questão colocada hoje é como se re-
constroem as identidades em processos de hibridismo cultural.
A identidade, para García Canclini, é entendida enquanto
uma narrativa que se constrói; um relato reconstruído incessante-
mente e não uma essência dada por uma vez e em forma definitiva.
186
Uma narrativa construída pelos e entre diversos atores sociais, mas
que se realiza em condições desiguais devido às relações de poder
que intervêm. Dessa maneira, a identidade torna-se uma co-pro-
dução que inclui a presença de conflitos pela coexistência de naci-
onalidades, etnias, gêneros, gerações etc, constituindo-se
simultaneamente em representação e ação.
Embora García Canclini afirme que as categorias de hege-
monia e resistência continuem válidas para compreender os pro-
cessos de configuração das identidades, a complexidade das
interações que se estabelecem, demanda, sobretudo a necessidade
de analisá-las como processos de negociação, na medida em que
são “híbridas, dúcteis e multiculturais” (1995b, p. 151). Isso tem,
pelo menos, duas implicações: o objeto empírico deve abarcar os
espaços de negociação de sentidos14 e, conceitualmente, a negocia-
ção é importante.
Mais uma vez García Canclini reafirma a validade conceitual
de hegemonia, contudo, critica o estilo de investigação que a con-
cepção gramsciana propiciou, pois, na realidade, as complexas
relações entre hegemonia e subalternidade foram reduzidas a um
confronto rígido e bipolar. Nessas condições se confere pouco ou
nenhum peso aos espaços de negociação.
A negociação é um componente-chave no funcionamento das
instituições e dos campos socioculturais. A negociação, hoje, é
uma modalidade de existência, “está instalada na subjetividade
coletiva, na cultura cotidiana e política mais inconsciente. Seu
caráter híbrido, que na América Latina vem da história de mesti-
çagens e sincretismos, acentua-se nas sociedades contemporâneas
pelas complexas interações entre o tradicional e o moderno, o
popular e o culto, o subalterno e o hegemônico” (1995b, p. 238).
É importante retornar, neste momento, à visão de cidadania
que Canclini expressa, rearticulando os planos da cultura e da
política. O exercício da cidadania expressa aquilo que na política
é relação social, mas não mostra somente a racionalidade dos prin-
cípios ideológicos. Isso seria uma redução: identificar pura e sim-
plesmente cidadania e política. “Ser cidadão não tem a ver apenas
com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que
187
nasceram em um território, mas também com as práticas sociais
e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem com que se
sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas seme-
lhantes de organização e de satisfação das necessidades” (CANCLINI,
1995b, p. 22, grifo meu).
Um significado mais amplo de cidadania, segundo García
Canclini, implica abranger as práticas emergentes não consagra-
das pela ordem jurídica, em rever o papel das subjetividades na
renovação da sociedade e entender seu lugar na ordem democrá-
tica. Se ampliarmos seu sentido, poderemos conectar cidadania e
consumo, considerando as atividades do consumo cultural como
uma dimensão da cidadania.
Para tal, García Canclini elabora uma proposição de políticas
culturais concretas, assinalando requisitos indispensáveis: a) uma
oferta vasta e diversificada de bens, representativos da variedade
existente nos mercados, de fácil acesso para as maiorias, isto é,
uma oferta multicultural equilibrada; b) informação multidirecio-
nal e confiável sobre os produtos, cujo controle seja exercido pelos
próprios consumidores, possibilitando refutar as seduções da pro-
paganda; c) participação democrática dos principais setores da
sociedade civil nas decisões de ordem material, simbólica, jurídi-
ca e política em que se organizam os consumos.
Entretanto, García Canclini reconhece que nos anos noventa
vivencia-se a dissolução dos espaços públicos de negociação ou da
esfera pública como âmbito de participação popular. Esse proces-
so vai cada vez mais se intensificando e agravando na medida em
que as indústrias culturais substituem as interações diretas pelas
mediatizações eletrônicas.
Uma série de exemplos de situações nacionais latino-ameri-
canas (campanhas eleitorais de Fujimori, Carlos Menem, Fernan-
do Collor) e de contexto internacional (a Guerra do Golfo)
demonstram para García Canclini a substituição dos conflitos em
espetáculos. Agora, tudo se fotografa, filma, televisiona e conso-
me em imagens. Mesmo assim o autor reluta em aderir às teses de
“tudo é simulacro”, advertindo que essa não se converteu na úni-
ca saída. Ainda há um espaço aberto para negociar.
188
Os conflitos, hoje, não se dão apenas entre classes ou grupos, mas
também entre duas tendências culturais: a negociação racional e
crítica, de um lado, e o simulacro de um consenso induzido pela
mera devoção aos simulacros, do outro. Não é uma opção absoluta,
já que sabemos que os simulacros fazem parte das relações de signi-
ficação em toda cultura. Porém, estabelecer de que maneira iremos
negociar o compromisso entre ambas as tendências é decisivo para
que na sociedade futura predomine ou a participação democrática
ou a mediatização autoritária. (1995b, p. 243)
A alternativa esboçada por García Canclini trata de repensar
conjuntamente o papel do Estado, da sociedade civil e do merca-
do. Implícito nessa revisão, encontra-se a tentativa de reconceber
o espaço público: “Nem subordinada ao Estado, nem dissolvida
na sociedade civil, a esfera pública reconstitui-se simultaneamen-
te na tensão entre ambos” (1995b, p. 253).
A proposta resultante para delinear uma nova concepção estra-
tégica do Estado deve implicar que o Estado reassuma o interesse
público. “O desafio é, principalmente, revitalizar o Estado como
representante do interesse público, como árbitro ou assegurador
das necessidades coletivas de informação, recreação e inovação,
garantindo que estas não sejam sempre subordinadas à rentabilida-
de comercial” (1995b, p. 254). Essa combinação entre Estado e
mercado necessita do reconhecimento do mercado enquanto espa-
ço onde ocorrem interações socioculturais complexas.
Tudo isto tem conseqüências para o entendimento da socieda-
de civil. Para García Canclini (1995b, p. 261), redefini-la implica
ver que, na atualidade,“as sociedades civis aparecem cada vez me-
nos como comunidades nacionais, entendidas como unidades terri-
toriais, lingüísticas e políticas; manifestam-se principalmente como
comunidades hermenêuticas de consumidores, ou melhor, como
conjuntos de pessoas que compartilham gostos e pactos de leitura
em relação a certos bens (gastronômicos, desportivos, musicais),
os quais lhes fornecem identidades comuns”. A nova característi-
ca dessas comunidades é sua organização em torno de consumos
simbólicos e não mais em relação a processos

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