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João Alex andre Barbosa1
Literatura Nunca é Ape nas Literatura2
Vou começar contando uma histór ia que é ilustrat iva daquilo que quero dizer . Há muito tempo,
uma aluna, numa aula de Teoria Liter ária, disse-me que estav a muito inter essada em ler um
livro que fosse impor tante, mas que obedecesse a algumas condições: antes de mais nada,
tinha de ser "fininho". E exatamente na ocasião em que ela falava isso, a editora Civilização
Brasileira acabav a de publicar uma coleção, que infelizmente já desapar eceu, chamada
Biblioteca Universal Popular, composta de livrinhos pequenos, fininhos. A Civilização Brasileira
acabara de publicar uma t radução de A Metamorf ose e eu disse: " Pronto, está aqui o liv ro que
você me pediu; é A Metamorf ose, de Franz KAFKA, um livro fundamental na história da
literatura, e é fininho.".
Depois de uns quinze dias, ela retor nou e disse-me o seguinte: "Pr ofessor, comprei o liv ro que o
senhor indicou, li e detest ei. Detestei por que, logo no início dele, se lê que o personagem se
transfor ma num inseto e isso, pr ofessor, não é v erdade, isso não pode acontecer .".
"É verdade" – disse-lhe. "Eu acho que isso, do ponto de vista ontológico, não pode acontecer; a
natureza do homem é diferente da do inseto. E, do ponto de vista da evolução biológica, isso não
pode acontecer, pelo menos até o momento. Mas isso pode acontecer do ponto de vista da criação
literária. E aí expliquei a ela o seguinte: "Você perdeu uma grande oportunidade de atravessar essa
dificuldade inicial e ir um pouco mais adiante, vendo como esse escritor, Franz KAFKA, tira partido
dessa transformação inicial, como a coisa se torna complexa. Isso ou se transforma ou vai-se diver-
sificando em várias metáforas, várias imagens e acaba agarrando a experiência do leitor de uma
1 Professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo-USP.
2 De poime nto ap rese ntado no Seminá rio Linguagem e Linguagens: a fala, a escrita, a imagem.
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ou de outra maneira. Quer dizer, v ocê perdeu uma grande chance de estar at enta a essa
complexidade.". Depois disso, não sei o que ela fez, se retornou ou não ao livro do KAFKA.
Mas essa história inicial serv e para dizer que, na leit ura – e essa é a primeir a reflexão que
quero fazer – de qualquer obra liter ária, de qualquer t exto que tenha por base a intensificação
de valores – daquilo que chamamos de uma ou outra maneira apr oximada de valores lit erários
– existe sempre, como dizia o grande crítico canadense r ecentemente falecido, Nor throp FRYE,
a necessidade de conhecimento de duas linguagens. Segundo ele, " Na leitura de qualquer
poema é preciso conhecer duas linguagens: a língua em que o poet a está escrev endo e a
linguagem da própria poesia. ".
Acho extraordinár ia essa frase de Nort hrop FRYE porque isso sugere que, ao ler qualquer
poema, eu tenho de ler nele um pouco da hist ória da linguagem na qual ele se inscrev e. Mas
não posso chegar a isso sem passar pelo conhecimento da linguagem ou da língua em que o
poema está escrito, que vai lev antar deter minados problemas, sobr etudo os de ordem
semântica, que qualquer bom dicionário ajuda a resolver . Entret anto, mesmo depois de passar
por esses problemas, v ou-me defront ar com outros muit o graves, que são aqueles r eferent es à
própria hist ória daquela linguagem.
É difícil "ler ", apreciar um quadro de MONDRIAN, por exemplo, se não se conhece um pouco de
que modo este pintor se inser e na tradição da pintur a holandesa. Ist o porque os primeiros
quadros de MONDRIAN são absolutament e figurat ivos e dialogam com a tr adição da pintura
holandesa. Ele não chegou ao abstrat o sem antes passar por um per curso enorme, que f oi o
aprendizado da linguagem de um determ inado tipo de arte – uma arte bastant e localizada, a
arte v isual holandesa.
Esse é um problema que queria lev antar inicialmente, porque ele afasta um pouco a idéia de
que tudo é muito fácil na apr eciação da literatur a ou das outras art es. É o laissez-faire que
muitos arte -educadores defenderam dur ante tanto t empo. Não, é preciso t ambém conhecer
isso; é preciso ter um estoque mínimo, um reper tório mínimo, par a que seja possível identif icar
a importância de uma obr a ou de um texto liter ário. Mesmo porque, sabemos que toda arte é
condenada à história.
Já que mencionei Northrop FRYE, vou, patr ioticamente, cit ar um autor da nossa língua,
Fernando PE SSOA, que, em 1916, escreven do sobre a moderni dade da literat ura, diz ia mais ou
menos assim: "No mais pequeno poema de um poeta dev e haver sempr e alguma coisa por onde
se note que existiu Homer o.". O que significa isso? Signif ica a condenação do poeta a uma
determinada tr adição de linguagem de trabalho. I sso não quer dizer que ele, a todo momento,
fique atento à exist ência de Homero; significa, sim, que, trabalhando aquela linguagem, ele, de
qualquer modo, ainda que longinquamente, estará ecoando aquilo que fez um gr ande poeta do
passado, porque existem element os arcaicos, em qualquer cr iação, que permanecem, apesar de
todas as inovações que dev em existir, ev identemente.
Desse modo, o problema da linguagem liter ária se põe inicialmente, em meu ent ender, nesse
pórtico, com essa duplicidade e t endo em vista essa hist oricidade radical.
Há um outro grande poet a e também crítico – T. S. ELI OT –, um dos maiores da língua
inglesa dest e século. Ele escr eveu, em 1917, um ensaio int itulado A Tradi ção e o Talento
Indi vidual, que é contempor âneo do pequeno tr echo já cit ado de Fernando PE SSOA.
Neste ensaio, ELI OT diz que o escritor não é escrit or, se depois de 25 anos não sentir em
seus ossos o peso de uma tradição. Ele af irma ainda que qualquer grande obr a, quando
surge, que r ealmente interessa e marca uma lit eratura, modifica a tradição. Essa
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é uma frase extr aordinária que foi apanhada por um dos maior es inventor es de todos os
tempos, na liter atura, o ar gentino Jorge Luís BORGES. Est e escritor t em um pequeno trecho,
denominado Kaf ka e seus Precursores, que recomendo como texto de pr azer.
O texto de BORGES apont a para o seguinte: o f ato de KAFKA ter existido criou pr ecursores em
relação a ele. Port anto, podemos imaginar o seguint e: KAFKA criou um seu precur sor
brasilei ro: Machado de AS SIS. Basta ler alguns cont os de MACHADO – por exempl o, Q
Alienista
– para sentirmos isto.
Esse é um ponto primeiro e f undamental de reflexão: ao se r ealizar, uma obra r ealiza
igualmente todas as potencialidades da linguagem – seja ela lit erária, pict órica ou de qualquer
outro ti po. Ela modifica a t radição anterior a ela, reor dena essa tradição. A est e aspecto agrego
algo que me vem preocupando já há algum t empo, ao qual dei expressão no meu liv ro A Leitura
do Intervalo. Trat a-se do que venho chamando de interv alo da leitura. Meu pensamento acerca
dele é o seguinte: a liter atura nunca é apenas liter atura; o que lemos como lit eratura é sempr e
mais – é História, Psicologia, Sociologia. Há sempre mais que literatura na literatura. No
entanto, esses element os ou níveis de represent ação da realidade são dados na literat ura pela
literatur a, pela eficácia da linguagem literár ia. Então, ent re esses níveis de repr esentação da
realidade e sua textualização, seu aparecimento enquanto liter atura, há um int ervalo – mas é
um interv alo, como na música, muito pequeno e que é pr eciso ser muito rá pido para perceber.
Ora, o que imagino, e v enho perseguindo enquanto mat éria de refl exão teórica, é que
exatamente pela intensif icação desses espaços de intervalo as obr as permanecem. E aí toco na
questão da perenidade das obr as, que é um problema centr al. Por que as obras per manecem?
Por que se lê e relê Dom Quixote? Por que se lê e relê DOSTOIÉVSKI? Para facilitar as coisas,
dizemos que esses autores são clássicos.
Um grande romancista it aliano contemporâneo, um dos maior es deste século, que infelizmente
faleceu muito jov em, ítalo CALVINO, escrevendo sobre os clássicos, dizia algo que acho
interessante e engr açado: "Se se perg untar a uma pessoa se já leu tal ou qual clássico, ela
raramente diz que não leu ou r aramente diz que leu. Dir á sempre: estou r elendo.". E CALVI NO
afirma que o problema é de duas pont as. Num primeiro nív el, na aparência, significa que a
pessoa tem ver gonha de dizer que não leu VIRGÍ LIO ou HOMERO; num segundo, há razão para
dizer que está relendo, porque não se lêem mais esses autores – eles são, sim, relidos, mesmo
que não tenham sido lidos. E isso é que acho extr aordinário. I sto é, autores como HOMERO,
VIRGÍL IO passaram de tal modo a par ticipar da corr ente sangüínea da literat ura que não são
mais lidos, eles são relidos. Isto por que acabamos lendo-os em out ros textos, em outros
autores. E CALVI NO dá um exemplo muito caseiro, italiano:
"Eu, quando criança, já tinha lido Pinóquio; tinha lido
Pinóquio m esmo quando não tinha lido, porque o
Pi qu io f azi a de tal man ei ra p arte da c ul tu ra i tal iana
da minha casa, das histórias, das morais, das
representações sociais, das representações
psicológicas, que eu certamente já tinha lido Pinóquio
sem ter lido. E, quando li, tive uma surpresa: ele era
mais e menos daquilo que eu imaginava.".
É isso que tenho procurado chamar de leitura inter valar, ist o é, leitura desses int ervalos
existentes numa obr a. Uso para isso a expr essão francesa an abi me – leituras em abismo,
leitur as que dão arrepi o – porque el a diz tudo. E nisso toco em out ro pont o
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abordado aqui, a relação do leitor com o texto literário. Quando o texto realmente interessa, tal
relação nunca é tranqüila, mas sim tensa, de medo até, ou mesmo de terror – uma relação, de
qualquer forma, inquietante. As obras de arte – e isto vale para todas elas – que não provocarem a
inquietação são obras que não têm interesse. E uma coisa bastante interessante: aquilo que
chamamos obras perenes, que permanecem, muitas vezes não permanecem pelos seus
significados, mas porque nós, seus pósteros, podemos descobrir nelas relações de significantes
que levam a outros significados. Por isso diferentes gerações lêem tais obras.
Hoje, quando se fala em intertextualidade, um autor contemporãneo mais ou menos informado
das várias teorias literárias ou então um leitor podem descobrir que ela já estava presente em Dom
Quixote, em CERVANTES. Portanto, eles podem fazer o teste com suas próprias experiências
culturais, porque até mesmo o leitor está condenado culturalmente, ele não é uma página em
branco.
Como alguém já disse, é muito estranho que a Escola, o ensino pense o aluno como uma página
em branco e não faça nada para aproveitar a alfabetização cultural que ele traz, só porque esta é
diferente – não uma alfabetização de letrinhas, mas uma alfabetização cultural, oferecida, por
exemplo, pela televisão. Quer dizer, o leitor, de certa maneira, também está condenado à cultura
e, portanto, lê nos textos do passado elementos que a sua experiência cultural foi capaz de lhe
oferecer.
Dentro disso tudo, qual é a singularidade da literatura, da criação literária? É uma coisa que tem
de interessar a todo mundo. Gosto muito de perguntas simples, pois, na verdade, são as mais
complexas. As vezes, depois de o professor fazer uma análise muito bonitinha de um poema ou de
um conto, o aluno pergunta: "e o autor sabia de tudo isso?". Ou então: "Mas essa era a casa do
seu avó?". E por isso que creio que uma das singularidades da literatura é a criação de espaços
ficcionais ou, dizendo de uma outra maneira, da fìccionalidade. Ficcionalidade não significa
mentira. Resumidamente, ela quer dizer que aquilo que você está lendo é e não é o que você está
lendo. Para dar um exemplo dessa fìccionalidade, há um texto genial do Jorge Luís BORGES,
presente no ensaio Mag ias P arciais do Qu ixo te , que diz tudo. Nele, BORGES di z o seguinte:
"Por que é que nos inquieta que o mapa esteja incluído no
mapa? E as mil e uma noites num livro das mil e uma noites?
Por que é que nos inquieta que Dom Quixote seja o leitor do
Quixote? Dom Quixote no Quixote lê o Quixote. E Hamlet
espectador de Hamlet? Creio ter dado com a razão. Tais
inversões sugerem que se os personagens de uma f icção
podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou
espectadores, podemos ser f ictícios. ".
Quer dizer, sem essa idéia da ficcionalidade, de que o que se está lendo ou vendo ocupa um espaço
ficcional, é impossível a percepção de toda a complexidade, bem como do lúdico da literatura e da
arte.
E a esse tipo de problema evidentemente se associa de imediato um outro, que é fundamental para
o gozo e o entendimento da linguagem literária – o problema da intencionalidade na literatura.
Trata-se daquilo que disse acerca daquela pergunta do aluno: "e o autor sabia de tudo isso?". E aí
temos de distinguir, de uma maneira muito clara, duas questões: a intencionalidade do autor, que
muitas vezes fica aquém ou além do texto, e a intencionalidade do texto. Quando me refiro à
intencionalidade do autor – que, às vezes, fica aquém do texto –, quero dizer que ele, qualquer que
tenha sido o texto que produziu, muitas vezes ou freqüentemente se espanta com o que escreveu.
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Este espanto ocorr e porque os móveis da escr itura, aquilo que ent ra na composição, não são
sempre conscientes. As v ezes, trat a-se de elementos inconscientes que entram nessa escr itura;
elementos, muitas v ezes, acidentais.
Vou contar uma história a respeito de Graciliano RAMOS. Em seu romance
Angústia
, de forte
influência dostoiev skiana, há uma passagem em que o personagem, f ebril, delira, e aí
aparecem nomes de pessoas, r uas – sobretudo de Maceió, Alagoas –, botecos, lojas, tudo
condensado de forma estupenda. De repente, no ent anto, desponta o nome de uma cachaça.
Atrav és de um amigo íntimo de GRACIL IANO, soube que aquele nome era da mar ca de uma
cachaça que o escritor alagoano bebia enquanto escrevia o episódio do delírio. "( ...) num
momento, eu lev antei a cabeça e vi o nome da cachaça e pus lá. " – disse GRACIL IANO. Quer
dizer, são elementos acident ais que podem entrar na composição como element os
inconscientes.
Há ainda o caso de Paul VALÉRY, poeta e crítico francês. Ele era, muitas vezes, molestado por
pessoas que lhe perguntavam: "O que é que você quis dizer nesse poema?". Isto por ele ser um
poeta extremamente delicado, difícil, abstrato. Um dia, no entanto, VALÉRY escreveu o seguinte
sobre um dos seus próprios poemas: "Quando me perg untam o que eu quis dizer neste ou
naquele poema, eu respondo que eu não quis dizer, eu quis fazer, e foi a intenção de fazer que
quis o que eu disse.". Ou seja, foi o próprio processo de composição que acabou determinando a
obra e não o eu do autor antes do trabalho de composição. Por tanto, é possível perceber de que
modo há uma intencionalidade do texto, do trabalho da linguagem, que não é propriamente
aquilo que está a todo momento ao nível de consciência daquele que escreve. Se assim fosse, não
existiriam os psicanalistas nem os advogados. Ambos trabalham com interpretações de texto,
restos da linguagem, aquilo que foi dito para além do que se quis dizer ou aquilo que não foi dito
com relação ao que se disse. O psiquiatra pede que você diga, para depois dizer o que você não
disse. Ou o contrário. Você diz demais, para esconder outr as coisas que não quer dizer.
Esses são elementos de reflexão impor tantes, por que tratam da nossa condição de leit ores.
Com relação à questão do tr abalho solitário e solidário da lit eratur a, quero lembrar algo que
acho muito interessant e. Há um conto de Albert CAMUS, um escritor infelizmente um
pouquinho for a de moda, que se passa em I guape, uma pr aia de São Paulo. Num a cabana de
pescador, lê-se na port a a seguinte frase post a pelo personagem, que é um art ista: "solit aire" –
ou "solidaire", porque, como diz o escritor, não se percebia bem se era um "t" ou um "d". Este é
um problema fundamental em CAMU S e em toda a reflexão que ele faz sobr e a chamada
literatur a engajada. Ao ganhar o prêmio Nobel de Lit eratura, ele disse:
"O gr ande d ram a, a gr and e te ns ão d o es cr ito r é p or que
ele sabe que está na arena, mas tem que sair dela para
voltar novamente a ela.".
Ora, esse ti po de trabalho, o mesmo da const rução literár ia, foi descrito aqui muit o bem. Trata-
se de transfor mar em texto legív el aquilo que é disjecta membra, f ragmentos da realidade.
Quando realiza a obra, o escr itor tr ansforma a linguagem liter ária, capaz de condensar essa
fragmentação e f azer de tal forma que possamos ler como se fosse algo inteiriço aquilo que a
realidade nos dá como estilhaços. Daí o hábit o da anotação, que não é senão o mapa dos
estilhaços.
Ao comentar sobre sua cader neta de anotações, Ignácio de LOYOLA fez-me lembr ar de uma
história env olvendo Paul VALÉRY, mais uma vez, e o físico EINSTEI N, que eram muito amigos.
VALÉRY escr eveu os seus cahier s de 1894 a 1945. Todos os dias, el e acordava às
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quatro e meia da manhã e os escrev ia. O resultado f oram 29 volumes de anotações as mais
variadas, não apenas psicológicas, mas de leituras, reflexões, inquiet ações. E tal hábito
VALÉRY conservou até o f im da vida. Cer ta vez; per guntou a EINSTEI N: "Professor Einst ein,
você também, como eu, tem a mania de fazer anot ações?". EINSTEI N achou engraçada a
pergunta e disse-lhe: "Eu não tenho, não t enho essa mania. Mas, na v erdade, só tiv e uma ou
duas idéias em toda a minha vida.".
O escritor, entretant o, viv e, exatamente como f oi descrito aqui, dest a vontade de percepção e
recriação dos elementos quase que indecif ráveis que a realidade lhe of erece.
Uma das funções educativ as da arte é da liter atura é torn ar esses conjuntos legíveis – e,
evidentement e, também distingui-los, discr iminá-los, avaliá-los. Tiv e uma experiência cert a
vez, quando fazia cr ítica de jornal semanal. Recebia car tas muito engraçadas de leit ores, às
vezes muito sér ias. Um deles, seminar ista, escrev eu-me dizendo que gostava muit o dos meus
artigos, apr endia muito com eles – fazia, enfim, uma série de elogios – , e terminav a dizendo: "(
...) entretanto, só tenho a lamentar uma coisa (...) o senhor nunca escreveu sobre três autores
pelos quais eu sou extraordinar iamente apaixonado: KAFKA, PI TIGRIL I e Cassandra RI OS".
Achei extraordinár io, sobretudo pensando naquela aluna r eferida. Sempr e lamentei, depois,
não ter escr ito um artigo com o t ítulo Kaf ka, Pitigrili e Cassandra Rios, para di scutir um pouco
da indiscriminação, da incapacidade de discriminar valores. Pode ser um vício de pr ofessor já
mais ou menos velho, mas cont inuo achando fundamental isso.
A Escola tem de ajudar na discriminação, tem de dar elementos para avaliação, mas, mais do que
isso, tem de mostrar ao aluno, passar para ele, que a arte em geral – e a literatura em particular –
é um jogo, que contém elementos lúdicos fundamentais. Não é possível fazer com que, em qualquer
faixa etária, o aluno leia e possa ler MACHADO DE ASSIS, quando se passa para ele apenas o
pseudofilosofante MACHADO DE ASSIS, aquele autor que bancava o sério e era da Academia
Brasileira de Letras. É preciso mostrar-lhe o MACHADO moleque, brincalhão o tempo todo; aquele
que, ao falar de uma moça manca, em Me r ias P ó s tu mas d e B r ás Cu b as , acaba chamando-a de
"A Vénus Manca", o que é de uma crueldade, mas de uma brincadeira extraordinária. É preciso
mostrar o MACHADO que brinca com as palavras, transforma os significastes – e não apenas
transmite significados, muitas vezes absolutamente tediosos. O ciúme, por exemplo, é um topos
literário inteiramente envelhecido. Interessa, no entanto, o modo pelo qual MACHADO, em Dom
Casmurro, foi capaz de criar Capitu e dizer acerca de seus olhos de ressaca. Este é o escritor,
aquele que trabalha com a linguagem, que estabelece níveis de significastes que serão importantes
depois para se tirarem outros significados – e é isso que vai determinar a sua perenidade.
A Escola – desde o primário at é o último grau – tem trabalhado muit o mal nesse sentido. I sto
porque, de um modo geral, ela tem-se preocupado muit o com a passagem desses significados,
assumindo uma postura mora lista, positiv ista, her deira de uma tradição que não r ecebeu
ainda as críticas necessárias, visto que est as foram quase todas histéricas e moment âneas; tais
críticas, no caso, deveriam v ir de um conhecimento int erno dessa Escola, de sua ref ormulação
real e dos seus princípios. Quando t udo isso ocorrer, então será possív el pensar na literat ura
como criação, oficina, jogo, tarefa de realização fundamental do ser humano.
Quero encerrar dizendo que, no que se ref ere à Escola e àqueles que ela tem form ado:
"Ninguém pode ser matemático, f ísico, politécnico 24 horas por
dia. Ele sonha, imagina, e, pelo sonho e pela imaginação, passa
a arte, passa a literatura, passa a linguagem da literatura.".
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João Alexandre Barbosa1 
Literatura Nunca é Apenas Literatura2 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vou começar contando uma história que é ilustrativa daquilo que quero dizer. Há muito tempo, 
uma aluna, numa aula de Teoria Literária, disse-me que estava muito interessada em ler um 
livro que fosse importante, mas que obedecesse a algumas condições: antes de mais nada, 
tinha de ser "fininho". E exatamente na ocasião em que ela falava isso, a editora Civilização 
Brasileira acabava de publicar uma coleção, que infelizmente já desapareceu, chamada 
Biblioteca Universal Popular, composta de livrinhos pequenos, fininhos. A Civilização Brasileira 
acabara de publicar uma tradução de A Metamorfose e eu disse: "Pronto, está aqui o livro que 
você me pediu; é A Metamorfose, de Franz KAFKA, um livro fundamental na história da 
literatura, e é fininho.". 
Depois de uns quinze dias, ela retornou e disse-me o seguinte: "Professor, comprei o livro que o 
senhor indicou, li e detestei. Detestei porque, logo no início dele, se lê que o personagem se 
transforma num inseto e isso, professor, não é verdade, isso não pode acontecer.". 
"É verdade" – disse-lhe. "Eu acho que isso, do ponto de vista ontológico, não pode acontecer; a 
natureza do homem é diferente da do inseto. E, do ponto de vista da evolução biológica, isso não 
pode acontecer, pelo menos até o momento. Mas isso pode acontecer do ponto de vista da criação 
literária. E aí expliquei a ela o seguinte: "Você perdeu uma grande oportunidade de atravessar essa 
dificuldade inicial e ir um pouco mais adiante, vendo como esse escritor, Franz KAFKA, tira partido 
dessa transformação inicial, como a coisa se torna complexa. Isso ou se transforma ou vai-se diver-
sificando em várias metáforas, várias imagens e acaba agarrando a experiência do leitor de uma 
 
1 Professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo-USP. 
2 Depoimento apresentado no Seminário Linguagem e Linguagens: a fala, a escrita, a imagem. 
 
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ou de outra maneira. Quer dizer, você perdeu uma grande chance de estar atenta a essa 
complexidade.". Depois disso, não sei o que ela fez, se retornou ou não ao livro do KAFKA. 
Mas essa história inicial serve para dizer que, na leitura – e essa é a primeira reflexão que 
quero fazer – de qualquer obra literária, de qualquer texto que tenha por base a intensificação 
de valores – daquilo que chamamos de uma ou outra maneira aproximada de valores literários 
– existe sempre, como dizia o grande crítico canadense recentemente falecido, Northrop FRYE, 
a necessidade de conhecimento de duas linguagens. Segundo ele, "Na leitura de qualquer 
poema é preciso conhecer duas linguagens: a língua em que o poeta está escrevendo e a 
linguagem da própria poesia.". 
Acho extraordinária essa frase de Northrop FRYE porque isso sugere que, ao ler qualquer 
poema, eu tenho de ler nele um pouco da história da linguagem na qual ele se inscreve. Mas 
não posso chegar a isso sem passar pelo conhecimento da linguagem ou da língua em que o 
poema está escrito, que vai levantar determinados problemas, sobretudo os de ordem 
semântica, que qualquer bom dicionário ajuda a resolver. Entretanto, mesmo depois de passar 
por esses problemas, vou-me defrontar com outros muito graves, que são aqueles referentes à 
própria história daquela linguagem. 
É difícil "ler", apreciar um quadro de MONDRIAN, por exemplo, se não se conhece um pouco de 
que modo este pintor se insere na tradição da pintura holandesa. Isto porque os primeiros 
quadros de MONDRIAN são absolutamente figurativos e dialogam com a tradição da pintura 
holandesa. Ele não chegou ao abstrato sem antes passar por um percurso enorme, que foi o 
aprendizado da linguagem de um determinado tipo de arte – uma arte bastante localizada, a 
arte visual holandesa. 
Esse é um problema que queria levantar inicialmente, porque ele afasta um pouco a idéia de 
que tudo é muito fácil na apreciação da literatura ou das outras artes. É o laissez-faire que 
muitos arte-educadores defenderam durante tanto tempo. Não, é preciso também conhecer 
isso; é preciso ter um estoque mínimo, um repertório mínimo, para que seja possível identificar 
a importância de uma obra ou de um texto literário. Mesmo porque, sabemos que toda arte é 
condenada à história. 
Já que mencionei Northrop FRYE, vou, patrioticamente, citar um autor da nossa língua, 
Fernando PESSOA, que, em 1916, escrevendo sobre a modernidade da literatura, dizia mais ou 
menos assim: "No mais pequeno poema de um poeta deve haver sempre alguma coisa por onde 
se note que existiu Homero.". O que significa isso? Significa a condenação do poeta a uma 
determinada tradição de linguagem de trabalho. Isso não quer dizer que ele, a todo momento, 
fique atento à existência de Homero; significa, sim, que, trabalhando aquela linguagem, ele, de 
qualquer modo, ainda que longinquamente, estará ecoando aquilo que fez um grande poeta do 
passado, porque existem elementos arcaicos, em qualquer criação, que permanecem, apesar de 
todas as inovações que devem existir, evidentemente. 
Desse modo, o problema da linguagem literária se põe inicialmente, em meu entender, nesse 
pórtico, com essa duplicidade e tendo em vista essa historicidade radical. 
Há um outro grande poeta e também crítico – T. S. ELIOT –, um dos maiores da língua 
inglesa deste século. Ele escreveu, em 1917, um ensaio intitulado A Tradição e o Talento 
Individual, que é contemporâneo do pequeno trecho já citado de Fernando PESSOA. 
Neste ensaio, ELIOT diz que o escritor não é escritor, se depois de 25 anos não sentir em 
seus ossos o peso de uma tradição. Ele afirma ainda que qualquer grande obra, quando 
surge, que realmente interessa e marca uma literatura, modifica a tradição. Essa 
 
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é uma frase extraordinária que foi apanhada por um dos maiores inventores de todos os 
tempos, na literatura, o argentino Jorge Luís BORGES. Este escritor tem um pequeno trecho, 
denominado Kafka e seus Precursores, que recomendo como texto de prazer. 
O texto de BORGES aponta para o seguinte: o fato de KAFKA ter existido criou precursores em 
relação a ele. Portanto, podemos imaginar o seguinte: KAFKA criou um seu precursor 
brasileiro: Machado de ASSIS. Basta ler alguns contos de MACHADO – por exemplo, Q 
Alienista – para sentirmos isto. 
Esse é um ponto primeiro e fundamental de reflexão: ao se realizar, uma obra realiza 
igualmente todas as potencialidades da linguagem – seja ela literária, pictórica ou de qualquer 
outro tipo. Ela modifica a tradição anterior a ela, reordena essa tradição. A este aspecto agrego 
algo que me vem preocupando já há algum tempo, ao qual dei expressão no meu livro A Leitura 
do Intervalo. Trata-se do que venho chamando de intervalo da leitura. Meu pensamento acerca 
dele é o seguinte: a literatura nunca é apenas literatura; o que lemos como literatura é sempre 
mais – é História, Psicologia, Sociologia. Há sempre mais que literatura na literatura. No 
entanto, esses elementos ou níveis de representação da realidade são dados na literatura pela 
literatura, pela eficácia da linguagem literária. Então, entre esses níveis de representação da 
realidade e sua textualização, seu aparecimento enquanto literatura, há um intervalo – mas é 
um intervalo, como na música, muito pequeno e que é preciso ser muito rápido para perceber. 
Ora, o que imagino, e venho perseguindo enquanto matéria de reflexão teórica, é que 
exatamente pela intensificação desses espaços de intervalo as obras permanecem. E aí toco na 
questão da perenidade das obras, que é um problema central. Por que as obras permanecem? 
Por que se lê e relê Dom Quixote? Por que se lê e relê DOSTOIÉVSKI? Para facilitar as coisas, 
dizemos que esses autores são clássicos. 
Um grande romancista italiano contemporâneo, um dos maiores deste século, que infelizmente 
faleceu muito jovem, ítalo CALVINO, escrevendo sobre os clássicos, dizia algo que acho 
interessante e engraçado: "Sese perguntar a uma pessoa se já leu tal ou qual clássico, ela 
raramente diz que não leu ou raramente diz que leu. Dirá sempre: estou relendo.". E CALVINO 
afirma que o problema é de duas pontas. Num primeiro nível, na aparência, significa que a 
pessoa tem vergonha de dizer que não leu VIRGÍLIO ou HOMERO; num segundo, há razão para 
dizer que está relendo, porque não se lêem mais esses autores – eles são, sim, relidos, mesmo 
que não tenham sido lidos. E isso é que acho extraordinário. Isto é, autores como HOMERO, 
VIRGÍLIO passaram de tal modo a participar da corrente sangüínea da literatura que não são 
mais lidos, eles são relidos. Isto porque acabamos lendo-os em outros textos, em outros 
autores. E CALVINO dá um exemplo muito caseiro, italiano: 
"Eu, quando criança, já tinha lido Pinóquio; já tinha lido 
Pinóquio mesmo quando não tinha lido, porque o 
Pinóquio fazia de tal maneira parte da cultura italiana 
da minha casa, das histórias, das morais, das 
representações sociais, das representações 
psicológicas, que eu certamente já tinha lido Pinóquio 
sem ter lido. E, quando li, tive uma surpresa: ele era 
mais e menos daquilo que eu imaginava.". 
É isso que tenho procurado chamar de leitura intervalar, isto é, leitura desses intervalos 
existentes numa obra. Uso para isso a expressão francesa an abime – leituras em abismo, 
leituras que dão arrepio – porque ela diz tudo. E nisso toco em outro ponto 
 
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abordado aqui, a relação do leitor com o texto literário. Quando o texto realmente interessa, tal 
relação nunca é tranqüila, mas sim tensa, de medo até, ou mesmo de terror – uma relação, de 
qualquer forma, inquietante. As obras de arte – e isto vale para todas elas – que não provocarem a 
inquietação são obras que não têm interesse. E uma coisa bastante interessante: aquilo que 
chamamos obras perenes, que permanecem, muitas vezes não permanecem pelos seus 
significados, mas porque nós, seus pósteros, podemos descobrir nelas relações de significantes 
que levam a outros significados. Por isso diferentes gerações lêem tais obras. 
Hoje, quando se fala em intertextualidade, um autor contemporãneo mais ou menos informado 
das várias teorias literárias ou então um leitor podem descobrir que ela já estava presente em Dom 
Quixote, em CERVANTES. Portanto, eles podem fazer o teste com suas próprias experiências 
culturais, porque até mesmo o leitor está condenado culturalmente, ele não é uma página em 
branco. 
Como alguém já disse, é muito estranho que a Escola, o ensino pense o aluno como uma página 
em branco e não faça nada para aproveitar a alfabetização cultural que ele traz, só porque esta é 
diferente – não uma alfabetização de letrinhas, mas uma alfabetização cultural, oferecida, por 
exemplo, pela televisão. Quer dizer, o leitor, de certa maneira, também está condenado à cultura 
e, portanto, lê nos textos do passado elementos que a sua experiência cultural foi capaz de lhe 
oferecer. 
Dentro disso tudo, qual é a singularidade da literatura, da criação literária? É uma coisa que tem 
de interessar a todo mundo. Gosto muito de perguntas simples, pois, na verdade, são as mais 
complexas. As vezes, depois de o professor fazer uma análise muito bonitinha de um poema ou de 
um conto, o aluno pergunta: "e o autor sabia de tudo isso?". Ou então: "Mas essa era a casa do 
seu avó?". E por isso que creio que uma das singularidades da literatura é a criação de espaços 
ficcionais ou, dizendo de uma outra maneira, da fìccionalidade. Ficcionalidade não significa 
mentira. Resumidamente, ela quer dizer que aquilo que você está lendo é e não é o que você está 
lendo. Para dar um exemplo dessa fìccionalidade, há um texto genial do Jorge Luís BORGES, 
presente no ensaio Magias Parciais do Quixote, que diz tudo. Nele, BORGES diz o seguinte: 
"Por que é que nos inquieta que o mapa esteja incluído no 
mapa? E as mil e uma noites num livro das mil e uma noites? 
Por que é que nos inquieta que Dom Quixote seja o leitor do 
Quixote? Dom Quixote no Quixote lê o Quixote. E Hamlet 
espectador de Hamlet? Creio ter dado com a razão. Tais 
inversões sugerem que se os personagens de uma ficção 
podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou 
espectadores, podemos ser fictícios. ". 
Quer dizer, sem essa idéia da ficcionalidade, de que o que se está lendo ou vendo ocupa um espaço 
ficcional, é impossível a percepção de toda a complexidade, bem como do lúdico da literatura e da 
arte. 
E a esse tipo de problema evidentemente se associa de imediato um outro, que é fundamental para 
o gozo e o entendimento da linguagem literária – o problema da intencionalidade na literatura. 
Trata-se daquilo que disse acerca daquela pergunta do aluno: "e o autor sabia de tudo isso?". E aí 
temos de distinguir, de uma maneira muito clara, duas questões: a intencionalidade do autor, que 
muitas vezes fica aquém ou além do texto, e a intencionalidade do texto. Quando me refiro à 
intencionalidade do autor – que, às vezes, fica aquém do texto –, quero dizer que ele, qualquer que 
tenha sido o texto que produziu, muitas vezes ou freqüentemente se espanta com o que escreveu. 
 
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Este espanto ocorre porque os móveis da escritura, aquilo que entra na composição, não são 
sempre conscientes. As vezes, trata-se de elementos inconscientes que entram nessa escritura; 
elementos, muitas vezes, acidentais. 
Vou contar uma história a respeito de Graciliano RAMOS. Em seu romance Angústia, de forte 
influência dostoievskiana, há uma passagem em que o personagem, febril, delira, e aí 
aparecem nomes de pessoas, ruas – sobretudo de Maceió, Alagoas –, botecos, lojas, tudo 
condensado de forma estupenda. De repente, no entanto, desponta o nome de uma cachaça. 
Através de um amigo íntimo de GRACILIANO, soube que aquele nome era da marca de uma 
cachaça que o escritor alagoano bebia enquanto escrevia o episódio do delírio. "( ...) num 
momento, eu levantei a cabeça e vi o nome da cachaça e pus lá." – disse GRACILIANO. Quer 
dizer, são elementos acidentais que podem entrar na composição como elementos 
inconscientes. 
Há ainda o caso de Paul VALÉRY, poeta e crítico francês. Ele era, muitas vezes, molestado por 
pessoas que lhe perguntavam: "O que é que você quis dizer nesse poema?". Isto por ele ser um 
poeta extremamente delicado, difícil, abstrato. Um dia, no entanto, VALÉRY escreveu o seguinte 
sobre um dos seus próprios poemas: "Quando me perguntam o que eu quis dizer neste ou 
naquele poema, eu respondo que eu não quis dizer, eu quis fazer, e foi a intenção de fazer que 
quis o que eu disse.". Ou seja, foi o próprio processo de composição que acabou determinando a 
obra e não o eu do autor antes do trabalho de composição. Portanto, é possível perceber de que 
modo há uma intencionalidade do texto, do trabalho da linguagem, que não é propriamente 
aquilo que está a todo momento ao nível de consciência daquele que escreve. Se assim fosse, não 
existiriam os psicanalistas nem os advogados. Ambos trabalham com interpretações de texto, 
restos da linguagem, aquilo que foi dito para além do que se quis dizer ou aquilo que não foi dito 
com relação ao que se disse. O psiquiatra pede que você diga, para depois dizer o que você não 
disse. Ou o contrário. Você diz demais, para esconder outras coisas que não quer dizer. 
Esses são elementos de reflexão importantes, porque tratam da nossa condição de leitores. 
Com relação à questão do trabalho solitário e solidário da literatura, quero lembrar algo que 
acho muito interessante. Há um conto de Albert CAMUS, um escritor infelizmente um 
pouquinho fora de moda, que se passa em Iguape, uma praia de São Paulo. Numa cabana de 
pescador, lê-se na porta a seguinte frase posta pelo personagem, que é um artista: "solitaire" – 
ou "solidaire", porque, como diz o escritor, não se percebia bem se era um "t" ou um "d". Este é 
um problema fundamental em CAMUS e em toda a reflexão que ele faz sobre a chamada 
literatura engajada. Ao ganhar o prêmio Nobel de Literatura, ele disse: 
"O grandedrama, a grande tensão do escritor é porque 
ele sabe que está na arena, mas tem que sair dela para 
voltar novamente a ela.". 
Ora, esse tipo de trabalho, o mesmo da construção literária, foi descrito aqui muito bem. Trata-
se de transformar em texto legível aquilo que é disjecta membra, fragmentos da realidade. 
Quando realiza a obra, o escritor transforma a linguagem literária, capaz de condensar essa 
fragmentação e fazer de tal forma que possamos ler como se fosse algo inteiriço aquilo que a 
realidade nos dá como estilhaços. Daí o hábito da anotação, que não é senão o mapa dos 
estilhaços. 
Ao comentar sobre sua caderneta de anotações, Ignácio de LOYOLA fez-me lembrar de uma 
história envolvendo Paul VALÉRY, mais uma vez, e o físico EINSTEIN, que eram muito amigos. 
VALÉRY escreveu os seus cahiers de 1894 a 1945. Todos os dias, ele acordava às 
 
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quatro e meia da manhã e os escrevia. O resultado foram 29 volumes de anotações as mais 
variadas, não apenas psicológicas, mas de leituras, reflexões, inquietações. E tal hábito 
VALÉRY conservou até o fim da vida. Certa vez; perguntou a EINSTEIN: "Professor Einstein, 
você também, como eu, tem a mania de fazer anotações?". EINSTEIN achou engraçada a 
pergunta e disse-lhe: "Eu não tenho, não tenho essa mania. Mas, na verdade, só tive uma ou 
duas idéias em toda a minha vida.". 
O escritor, entretanto, vive, exatamente como foi descrito aqui, desta vontade de percepção e 
recriação dos elementos quase que indecifráveis que a realidade lhe oferece. 
Uma das funções educativas da arte é da literatura é tornar esses conjuntos legíveis – e, 
evidentemente, também distingui-los, discriminá-los, avaliá-los. Tive uma experiência certa 
vez, quando fazia crítica de jornal semanal. Recebia cartas muito engraçadas de leitores, às 
vezes muito sérias. Um deles, seminarista, escreveu-me dizendo que gostava muito dos meus 
artigos, aprendia muito com eles – fazia, enfim, uma série de elogios –, e terminava dizendo: "( 
...) entretanto, só tenho a lamentar uma coisa (...) o senhor nunca escreveu sobre três autores 
pelos quais eu sou extraordinariamente apaixonado: KAFKA, PITIGRILI e Cassandra RIOS". 
Achei extraordinário, sobretudo pensando naquela aluna referida. Sempre lamentei, depois, 
não ter escrito um artigo com o título Kafka, Pitigrili e Cassandra Rios, para discutir um pouco 
da indiscriminação, da incapacidade de discriminar valores. Pode ser um vício de professor já 
mais ou menos velho, mas continuo achando fundamental isso. 
A Escola tem de ajudar na discriminação, tem de dar elementos para avaliação, mas, mais do que 
isso, tem de mostrar ao aluno, passar para ele, que a arte em geral – e a literatura em particular – 
é um jogo, que contém elementos lúdicos fundamentais. Não é possível fazer com que, em qualquer 
faixa etária, o aluno leia e possa ler MACHADO DE ASSIS, quando se passa para ele apenas o 
pseudofilosofante MACHADO DE ASSIS, aquele autor que bancava o sério e era da Academia 
Brasileira de Letras. É preciso mostrar-lhe o MACHADO moleque, brincalhão o tempo todo; aquele 
que, ao falar de uma moça manca, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, acaba chamando-a de 
"A Vénus Manca", o que é de uma crueldade, mas de uma brincadeira extraordinária. É preciso 
mostrar o MACHADO que brinca com as palavras, transforma os significastes – e não apenas 
transmite significados, muitas vezes absolutamente tediosos. O ciúme, por exemplo, é um topos 
literário inteiramente envelhecido. Interessa, no entanto, o modo pelo qual MACHADO, em Dom 
Casmurro, foi capaz de criar Capitu e dizer acerca de seus olhos de ressaca. Este é o escritor, 
aquele que trabalha com a linguagem, que estabelece níveis de significastes que serão importantes 
depois para se tirarem outros significados – e é isso que vai determinar a sua perenidade. 
A Escola – desde o primário até o último grau – tem trabalhado muito mal nesse sentido. Isto 
porque, de um modo geral, ela tem-se preocupado muito com a passagem desses significados, 
assumindo uma postura moralista, positivista, herdeira de uma tradição que não recebeu 
ainda as críticas necessárias, visto que estas foram quase todas histéricas e momentâneas; tais 
críticas, no caso, deveriam vir de um conhecimento interno dessa Escola, de sua reformulação 
real e dos seus princípios. Quando tudo isso ocorrer, então será possível pensar na literatura 
como criação, oficina, jogo, tarefa de realização fundamental do ser humano. 
Quero encerrar dizendo que, no que se refere à Escola e àqueles que ela tem formado: 
"Ninguém pode ser matemático, físico, politécnico 24 horas por 
dia. Ele sonha, imagina, e, pelo sonho e pela imaginação, passa 
a arte, passa a literatura, passa a linguagem da literatura.". 
 
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