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51 Os Caminhos da Terapêutica A terapêutica farmacológica dos nossos dias é uma prática relativamente recente. Até o começo do século XIX, a maioria dos medicamentos ainda era de origem natural, de estrutura química desconhecida. Na verdade, o que se denominava tratamento consistia mais em uma “abordagem”, do que propriamente em procedimentos cirúrgicos ou farmacológicos. Isto é, envolvia emoções e relações pessoais e incorporava fatores que determinavam crença e identidade. Hoje, acredita-se serem as terapias introduzidas na segunda parte do século XX produto de uma mentalidade científica, em contraste com as utilizadas antes, eficazes ou não, consideradas de base empírica ou mística. Como evoluíram os caminhos da terapêutica, desde o templo de Epidauro até a poderosa indústria farmacêutica? É certo dizer que utilizamos os medicamentos de forma racional, em total coerência com as bases científicas da medicina moderna? Vejamos. I - A medicina religiosa A medicina exercida por Asclépio e seus seguidores era quase completamente religiosa. As curas, em sua imensa maioria, eram milagres realizados pelo deus ou por algum de seus animais favoritos, a serpente e o cachorro. Em geral os templos se erguiam em lugares saudáveis e de grande beleza. Além do santuário dedicado a Asclépio, da fonte e do bosque sagrado, havia também um lugar para os pacientes dormirem o sono durante o qual haviam de ser curados. O paciente, depois de uma purificação preliminar mais ou menos longa, por meio de sacrifícios, abluções e jejuns, era admitido no templo. Por fim, passava uma ou mais noites à espera do sonho profético em que o próprio Asclépio viria curá- lo ou, ao menos, dar-lhe instruções que, interpretadas pelos sacerdotes, lhes permitiriam recuperar a saúde. A confiança no valor dos sonhos era muito antiga e veio provavelmente do Egito. Acreditava-se que, durante o sonho, a alma, temporariamente liberta do corpo, entrava nas regiões divinas e recebia avisos, conselhos e ordens da parte dos deuses. Apagadas as luzes e convidados os pacientes a um completo silêncio e recolhimento, os sacerdotes visitavam os enfermos, davam-lhes indicações terapêuticas (que eles aceitavam como provenientes do deus) e, talvez lhes ministrassem medicamentos e até praticassem alguns atos cirúrgicos, como a incisão de abscessos. Conseguida a cura, ou o alívio dos males, cabia ao doente manifestar o seu reconhecimento, com ofertas e dádivas. II - A medicina naturalista A physis , para o médico hipocrático, possuía o poder de regenerar a si mesma. A medicina hipocrática faz do poder de cura, intrínseco, da natureza um princípio 52 fundamental e, do médico, um auxiliar cauteloso. O médico, como terapeuta, era um servidor, um assistente da natureza. A confiança no poder de auto-reconstituição e o papel do terapeuta são muito claros nos textos hipocráticos, onde não existe lugar para a coincidência ou o acaso. O doente que se cura, aparentemente sem nada ter feito. Realizou, por instinto, o tratamento ou a dieta corretos. A natureza é, além de formadora e mantenedora, terapêutica: a natureza providencia seus meios de cura. Isto não quer dizer que o médico seja inútil, pois cabe-lhe prever o curso da doença, isto é, fazer o prognóstico. Reforça esta concepção a noção de que não se deve tratar os doentes incuráveis, identificados pela arte do diagnóstico e do prognóstico. Segundo este preceito, o médico só cura aquilo que a natureza cura, e só estimula, ou corrige, o doente cuja natureza ainda pode ser recuperada; de nada serve tentar ir contra as forças naturais, ou procurá-las onde elas não mais existem. O médico intervém apenas como elemento regulador nas relações entre o homem e seu ambiente. A cura é entendida como “recuperação”, “reequilibro”, e depende das decisões sobre o regime de vida, de modo a melhor manter a ordem natural. Na medicina naturalista, a observação do doente era minuciosa, metódica: o aspecto do doente, sua posição no leito, a agitação, a quentura, etc. Se a doença é uma luta entre a força curativa da natureza, que tende a restabelecer o estado normal, e as causas da moléstia que o perturbam, o verdadeiro agente da cura é a natureza, não o médico, nem os remédios. A função do médico é auxiliar esta força natural, por todos os meios ao seu alcance, a vencer a doença, e pôr o paciente nas condições mais favoráveis, é não perturbá-la por uma ação inadequada. “Primeiro, não prejudicar”, diz o preceito hipocrático. Como cada doente é um caso individual, o diagnóstico da doença, como um quadro definido, não era possível e, aliás, não fazia falta. A preocupação importante era compreender o curso da doença, prever a sua evolução e o seu modo de término, isto é, estabelecer o prognóstico. A capacidade de previsão do médico, sinal de sua compreensão do problema clínico e garantia do seu domínio dos meios próprios para debelar o mal, contribuía para aumentar a confiança do paciente na pessoa do “técnico”, daquele que dominava a tekné. Os meios dietéticos e terapêuticos de que Hipócrates podia dispor - caldo e papas de cevada, hidromel (mistura de água e mel), oximel (mistura de vinagre e mel),, vinho, algumas plantas medicinais, purgativos, sangrias, banhos e ungüentos, exercício físico ou repouso - parecem-nos, hoje, modestos. Não devemos, porém, esquecer que a terapêutica, indistinguível da dietética, tinha por objetivo, não o curar, mas permitir que a natureza realizasse a cura. 53 III – Galeno A medicina da Escola de Cós domina enquanto a filosofia e a sociedade gregas estão no apogeu. E, durante o período helenístico, com a hegemonia de Alexandria na cultura grega, começa a mudar. As influências orientais, trazidas por Alexandre, o Grande, oferecem novas drogas, logo incorporadas pelo gregos. O aumento dos conhecimentos e da utilização de ervas leva à distinção das funções de farmacêutico e médico. Ao tempo do domínio romano, encontram-se descritas 950 substâncias curativas, enquanto o Corpus Hippocraticum não apresenta mais do que 250. Contudo, o formador definitivo da terapêutica ocidental foi Claudio Galeno (130-201 d.C.). Galeno, embora seguidor de Hipócrates, apresenta uma terapêutica que difere dos preceitos mais gerais da escola de Cós. E, através do uso extensivo da noção de doença como um desequilíbrio de humores, reforçou a utilização de catárticos, principalmente a sangria. A terapêutica galênica visava restituir o equilíbrio dos humores, perturbado pela doença. Além de uma complexa matéria médica, Galeno servia-se da dietética, da sangria, da aplicação de ventosas, do repouso, do exercício, da hidroterapia, da massagem, etc. Galeno criou e defendeu a teoria de se tomar remédios com a maior quantidade possível de substâncias, pois o organismo escolheria a mais conveniente. As propostas terapêuticas de Galeno reforçaram o uso de dois produtos - originários, provavelmente da Alexandria, no século III a.C. - o mithridaticum e a theriaka, que seriam antídotos contra envenenamentos. A composição desses produtos era cara e complicada, e variava muito entre os diversos fabricantes. Contudo, suas indicações se foram ampliando, juntamente com a expansão do conceito de veneno. Por exemplo, quando as pestes passaram a ser entendidas como “envenenamento do ambiente”, houve oportunidade para o emprego desses produtos. Por fim, a theriaka vira uma espécie de panacéia, pois serve para tratar tudo e, em sua composição, entram de 64 até 100 substâncias. Assim, contra sua própria opinião, Galeno não deve ser considerado um terapeuta hipocrático. Sua proposta de ministrar uma polifarmácia, para que o organismo escolha a melhor substância, não se confunde com a idéia de que o organismo busca, por si só, o regime mais adequado ao seu estado. Não se vê, em Galeno, o mesmo respeito pelo organismo, a preocupação de não corrompê-lo, nem a idéia de cura como resultado de autodesenvolvimento. A terapêutica galênica - formada pela composições de polifarmácia e os catárticos (sangrias, eméticos, purgantes e exsudatórios) - instalou-se por 1500 anos, na Europa. 54 IV - A Alquimia Sabe-se que a palavra alquimia é um vocábulo árabe. As palavras-chave da alquimia são transmutação, inversão e fusão. O primeiro livro conhecido desta matéria, escrito por Bolo de Mendes, chama-se “Física e Mística”, e data do século II a.C., portanto ainda no período helenístico. Na sua primeira página encontra- se o seguinte aforismo: “Uma natureza se regozija na outra; uma natureza triunfa sobre a outra; uma natureza domina a outra”. E a medicina ocidental irá caminhar da natureza curadora para a natureza que se regozija na transmutação. Agora, em pleno cristianismo, a saúde não está mais no corpo e sim na alma, fenômeno que, mais do que prescindir do corpo, o tem como adversário. Neste novo contexto, Higéia estará inteiramente deslocada. A natureza não tem forças próprias; o homem já não se esforça para se desenvolver, mas para se purificar, ou para transformar sua natureza imperfeita. Não há nenhuma contradição entre a visão cristã e a alquimia. A hóstia se transubstancia no corpo de Cristo; o homem que a ingere se transforma de pecador em puro. Igualmente, os alquimistas procuram, por todos os meios, a substância universal, capaz de realizar transformações instantâneas. De início, esta investigação é muito ampla e inclui as tinturas, a pedra filosofal e os elixires. Com o passar do tempo, a idéia de transmutação liga-se à idéia de sabedoria: o verdadeiro objetivo é uma purificação mental, com vistas à salvação. Na Alta Idade Média, este fato ainda não estará muito visível na medicina, pois as práticas terapêuticas correntes eram uma mistura de receitas celtas e germânicas, enquanto nas abadias se desenvolvia um receituário com base em ervas. Os livros médicos eram apenas listas de fórmulas, compêndios de matérias médicas, elaborados a partir de tradições empíricas e de leituras, principalmente, de Galeno. Mais tarde, ao redor do século X, com as Cruzadas e as conquistas árabes, a medicina tomou um novo impulso. A cultura árabe traduziu, absorveu e difundiu os textos do Corpus Hippocraticum, compilou o extenso receituário hindu, fez estudos próprios de anatomia, e os cotejou com os de Galeno. Com os árabes, alguns preceitos de higiene e de dieta reingressaram à cultura européia; mas as propostas terapêuticas dos árabes se apoiavam na versão galênica da teoria humoral e nos preceitos da polifarmácia e da alquimia. Aliás, seus conhecimentos dos metais aumentaram a aproximação entre a medicina e a alquimia, e enriqueceram o receituário europeu com as primeiras fórmulas metálicas, principalmente de mercúrio e arsênico, utilizados como catárticos. Não podemos esquecer que, neste momento, os critérios de verdade na medicina, na filosofia e em todas as áreas de conhecimento eram a tradição e os dogmas religiosos. 55 V – Renascença A Renascença, aliada à descoberta do Novo Mundo e suas flora e fauna, abre um novo período para a terapêutica. Embora procure inspiração na antigüidade clássica, a Renascença não põe a natureza no mesmo plano da physis . O homem renascentista, ao recusar obediência ao dogma religioso e ao afirmar o seu próprio poder criativo, instala-se no mundo mais como um herdeiro de Deus, portanto mais como “senhor da natureza” do que como parte da mesma. O modelo do médico renascentista é o suíço Paracelso (1493-1541), figura bastante controvertida na história da medicina. Personagem típico de seu tempo, Paracelso aliava enorme vontade em adquirir conhecimentos a um intenso misticismo. Considerado louco, truculento, imprevisível, boêmio, curava os sifilíticos e proferia violentas declarações contra os médicos seus contemporâneos. Era violento inimigo da tradição. Em praça pública, queimou livros de Galeno, com os quais, declarou, nada ter aprendido. Além disso, não falava nem escrevia em latim, a língua dos letrados, mas em alemão, tal como o povo rude. Para ele, as quatro bases da medicina eram: a alquimia, a astrologia, Deus e a natureza. Sua escolha terapêutica seguia a “Teoria das Assinaturas”, segundo a qual a natureza fornecia sinais do valor terapêutico das ervas. Assim, a noz, que tem olhos desenhados na casca, servia nas doenças oftálmicas e a folha, com feitio de rim, nas renais. Apesar destas propostas de medicação específica por doença, ele também receitava “panacéias”, principalmente sua “pílula eterna”: um comprimido de antimônio, ingerido e recuperado nas fezes, repetidas vezes, e de efeitos alquímicos no organismo. Em todo caso, Paracelso operou uma revolução salutar na farmacopéia, ao manipular, pessoalmente, os remédios extraídos das plantas e os de origem mineral. Ele foi o pioneiro na criação de composições que têm por princípio o ferro, o enxofre e o mercúrio, do qual verificou a ação específica na sífilis. Também foi o primeiro a observar que certos venenos, quando dosados com cautela, podiam transformar-se em medicamentos. Do final deste período em diante, os médicos se dividiram em diversas escolas terapêuticas, a misturar, cada uma a seu modo, teorias e práticas antigas com conhecimentos recentes. Havia os seguidores de Galeno (tradicionalistas e humoralistas); os espagiritas - seguidores de Paracelso - que destilavam e purificavam suas drogas e deixaram descendentes, os quimiatras; os ecléticos, que tentavam validar todas as propostas; os solidistas, que desenvolviam teorias localistas da doença, buscavam lesões visíveis, e rejeitavam a teoria humoral. Todos faziam uso intenso de drogas catárticas, independente de qual teoria usavam para justificar a necessidade de eliminação. Do mesmo modo, independente de suas escolas, todos terminavam por utilizar as mesmas drogas, por tentativas. Ou seja, utilizava-se o mesmo medicamento para inúmeras doenças e os doentes terminavam por fazer uso de todas as terapêuticas. A sangria, o arsênico e o ópio 56 eram usados rotineiramente e, assim, permaneceram até quase o século XX. Assim, a terapêutica seguiu, de Galeno ao século XIX, uma trajetória de caos crescente. Entretanto, a denominação geral de “terapêutica galênica” tem sua razão de ser, pois as mudanças consecutivas, tomando-se a Escola de Cós como ponto de referência, só aprofundaram a ruptura. Iniciada na própria Grécia, no período helenístico, consolidada por Galeno e desenvolvida, depois, ao longo da Idade Média e da Renascença, a cura passou a vir de algo externo ao homem, algo que o transforma ou purifica: Panacéia venceu Hygéia. VI – Iluminismo Com a chegada do Iluminismo, no século XVII, este panorama começa a mudar. E, ainda mais visivelmente, no século XVIII, o Século das Luzes. O século XVII constitui o ápice do já referido caos terapêutico. A hegemonia ainda está com os quimiatras e seus metais, ligados ao misticismo. Ao lado de suas fórmulas, a quina - proveniente da América - começa a ser amplamente utilizada, com base apenas em sua eficácia empírica. O uso ds sangrias e das demais práticas purgativas milenares se intensificou, e os médicos passaram a prescrever, também, amuletos e penitências, pois a crença na doença como resultado de pecados e possessões - herança da Idade Média - sobrevivia ao início Renascença. O racionalismo, típico desta época, termina por varrer do mapa as concepções mágicas da natureza, que passa a ser entendida na transparência de linhas geométricas: o racionalismo iluminista considera que o real é racional. Não existem mistérios, inclusive divinos, que a razão humana não consiga compreender. Apenas na razão deve o homem confiar para conhecer a si mesmo, relacionar- se com Deus e com o mundo todo. Mudam, assim, mais uma vez, a observação e a interpretação da natureza. Da interpretação de sinais obscuros, a serem decifrados; da Teoria das Assinaturas, de Paracelso, chega-se a uma leitura direta e descritiva dos fenômenos e elementos naturais. O mundo racional é claro: apenas pela observação, através dos sentidos, será possível descrevê-lo, sem necessidade de nenhuma interpretação. O entendimento e o conhecimento vêm da ordem, da arrumação dos fatos observados. Se posto em ordem, tudo será compreendido e conhecido, como faz, por exemplo, a História Natural com a fauna e a flora. Assim, o elemento chave do conhecimento clássico não é tanto a “matematização” do mundo; esta é apenas uma poderosa linguagem, um instrumento da necessidade de ordenar, dar hierarquia e classificar coisas e seres. A confiança na harmonia universal, sustentada pela razão, traz modificações nas concepções de doença e tratamento. A doença deixa de ser produto de magia ou possessão e volta a ser um evento natural. Torna-se um objeto de estudos, a ser classificado e ordenado em seu “reino”. Cria-se uma “Medicina Classificatória”, semelhante à História Natural: 57 cada doença é vista como um ser com existência própria, a se observar e descrever nos seus detalhes, a classificar em família, ordem e espécie. Esta medicina é defendida pela elite dos médicos do século XVII e XVIII, como Sydenham (1624-1689), na Inglaterra, e Cabanis (1757-1808), na França. Desenvolve- se junto com uma proposta renascentista: a de um retorno à natureza e ao emprego das forças naturais como fonte de saúde e de cura. Esse movimento encontra defensores em muitos dos pensadores destes séculos, como Montaigne (1533-1592), Descartes (1596-1650) e Leibniz (1646-1716); a associarem a confiança na razão e na bondade divinas à idéia de natureza mantenedora e curativa. Para este filósofos racionalistas, a Razão Divina não deixaria que o homem se visse entregue, sem recursos ao sofrimento; tanto o seu organismo possuía forças próprias, como a natureza oferecia meios curativos. Como tudo o mais, a busca da cura tinha ter base em propostas racionais, derivadas da observação e da classificação da doença e de elementos da natureza que pudessem servir como remédio. Assim, graças ao Iluminismo, retornam algumas concepções hipocráticas de saúde, doença e cura, e voltam alguns médicos a se chamar de hipocráticos. VII - Ceticismo Terapêutico Em meados do séc. XVIII, surgiu um importante movimento de crítica às condutas terapêuticas, um questionamento da habilidade do médico de intervir e mudar o curso da maioria das doenças. Esta tese punha ênfase na natureza limitada de grande número de casos, e concluía consistir a tarefa dos médicos apenas em ajudar o processo natural de recuperação, com o mínimo de "medidas heróicas". Essa proposta não-intervencionista se baseava, em parte, na controvertida eficácia dos meios terapêuticos disponíveis. Assim, o hipocratismo dos iluministas, confiante na capacidade dos sentidos de ler a natureza e conhecer sua ordem intrínseca, foi uma fonte inspiradora para a atitude dos novos cientistas frente ao tratamento: o ceticismo terapêutico. Isto é, permitiu pensar que, na carência de certezas, o melhor é não fazer nada. Entretanto, esta passividade não seria imobilista, pois se considerava que a natureza curava. Com esta convicção, os clínicos de Paris abandonaram medicações tradicionais e buscavam terapêuticas coerentes com a visão de mundo de que era possível um conhecimento seguro sobre as coisas. A “observação rigorosa” é imperativa para estes médicos, não mais com fins classificatórios, mas para interpretar e concluir. Bichat critica a observação clássica, dizendo ser inútil subdividir a matéria médica em reino animal, vegetal e mineral; os medicamentos deveriam ser classificados segundo seus efeitos no organismo: “Os mesmos medicamentos são usados, sucessivamente, por humoralistas e solidistas. As teorias mudam, mas os remédios continuam os mesmos. Sempre que usados, apresentam os mesmos efeitos, 58 independente da opinião ou da teoria dos médicos. Isto prova que só se pode avaliá- los através da observação”. Estes médicos céticos representaram o primeiro exemplo de uma atitude experimental em terapêutica. Muito criticados pela ênfase no diagnóstico e seu descaso frente ao tratamento, podemos supor que evitaram inúmeras mortes iatrogênicas e estimularam a busca de medicamentos eficazes. Assim, Laënnec (1781-1826), o inventor do estetoscópio, passou a prescrever apenas “ar puro” para os tuberculosos, por observar que os doentes da área rural, sem qualquer medicação, se curavam mais amiúde do que os tratados com os vários remédios da época. Foram reintroduzidos, nas primeiras décadas do séc. XIX, alguns recursos naturais, como a hidroterapia e o uso de dietas. Charles Pierre Louis (1787-1872), em 1828, fez uma avaliação do valor terapêutico da sangria, ao comparar a evolução dos doentes muito e pouco sangrados (já que não dispunha de casos sem sangria), e demonstrou a nocividade desta prática. Suas conclusões surgiram através de quantificações, sendo Louis considerado o pai da estatística médica e da introdução da idéia de probabilidade no raciocínio clínico. O ceticismo também foi praticado em Viena e disseminou-se pela Inglaterra, Alemanha e EUA, e chegou e assumir um tom de verdadeiro niilismo terapêutico, principalmente com Skoda (1805-1881), em Viena; Oliver Wendell Holmes, nos EUA (“Se toda a matéria médica, tal como se encontra hoje, fosse lançada ao fundo do mar, seria muito melhor para a humanidade e muito pior para os peixes”) e Magendie (“Vê-se bem que nunca tentaram não fazer nada”), em Paris. O ceticismo terapêutico tornou-se comum nos meios médicos, sofisticados, americanos, sem encontrar, imediatamente, a mesma receptividade entre a maioria dos médicos. Este empiricismo radical negava utilidade a qualquer medida terapêutica não provada em ensaios clínicos, e pareceu atender às exigências dos meios acadêmicos europeus, mas não às necessidades da prática cotidiana. Assim, as velhas formas de tratamento não desapareceram de imediato, mas passaram a ser empregadas menos vezes e, em geral, em menores doses. Talvez, o nome de maior destaque entre os formuladores e divulgadores deste ceticismo médico tenha sido William Osler (1849-1919). Contemporâneo da descoberta do bacilo anthrax (1849) e do Haemophilus pertussis (1906), pareceu evidente a Osler serem a bacteriologia e a patologia os caminhos naturais para o desenvolvimento da medicina. Para alguém apaixonadamente interessado em anatomia patológica, era irrealista supor que lesões tão graves pudessem ser prevenidas ou curadas por uma substância química. O livro de terapêutica de Osler (Handbook of Therapeutics ), publicado em 1889, é uma clara demonstração de seu apenas moderado interesse pelo tema. "As primeiras páginas tratam sucessivamente de oxigênio (uma página), do uso da água (três páginas e meia), do frio (vinte páginas), do gelo (duas páginas) e de banhos frios e quentes (três páginas). Então, Osler se refere a elementos e compostos inorgânicos e, só na página 293 aborda um remédio específico, a ipecacuanha. 59 Não cabe comentar a extravagância, a nossos olhos, de alguns destes remédios, mas a parcimônia de sua descrição. Prescrevia-se um número muito maior de substâncias; mas aqui estava o primeiro professor de terapêutica da Inglaterra a desprezar a maioria das substâncias, em favor de métodos físicos ou dos íons inorgânicos mais simples. A partir daí, a terapêutica sofreu um considerável atraso em seu desenvolvimento. Desde 1809 já havia análises bem sucedidas do mecanismo de acão de algumas drogas; entre 1850 e 1870, se fizeram surpreendentes estudos de antagonismo entre determinadas substâncias. Contudo, embora houvesse diversas demonstrações sobre como descobrir ou sintetizar e introduzir uma nova droga, desde o primeiro College Pharmacopoeia, de 1618 até o British Pharmacopoeia, de 1864, houve uma redução do número de substâncias, de cerca de 2.000 para 650 ítens; e também uma redução na complexidade das preparações. Assim, a medicina moderna nasceu sem uma proposta terapêutica própria, e se caracterizou mais como um modo de abordagem e diagnóstico das doenças do que como um método de tratamento e cura. A revolução de Bichat, se permitiu uma nova compreensão do processo de doença, através da associação entre sintoma e lesão, não permitiu nenhuma inferência terapêutica. Em princípio, a fisiologia, ao lado da química, levou à elaboração dos primeiros sistemas terapêuticos livres das teorias dos humores, de Galeno, e dos últimos resquícios da alquimia. A Magendie se pode atribuir a conformação definitiva do que se entende hoje por farmacologia e fisiologia. Ele desenvolveu um método realmente experimental em suas pesquisas. E, apesar de sofrer considerável oposição por usar animais, realizou uma série de estudos sobre o sistema nervoso, o peristaltismo e a formação da imagem na retina, entre muitos outros, sendo considerado o pai da medicina de laboratório. Seus trabalhos foram igualmente importantes para a farmacologia. Já no início do século, em 1805, a morfina tinha sido destilada do ópio e, entre esta data e 1832, mais de uma dezena de substâncias, algumas utilizadas até hoje (estricnina, colchicina, quinina, cafeína, codeína), foram destiladas e purificadas por químicos e farmacêuticos. Além de colaborar nestas descobertas, Magendie promoveu a utilização destes novos produtos na clínica, na mesma medida em que seu ceticismo punha da lado os métodos antigos. Ao longo do séc. XIX, Claude Bernard (1813-1878) continuou o trabalho de Magendie, refinando o método experimental e utilizando animais nas observações e testes de hipóteses, assim consolidando a fisiologia como disciplina rigorosa e independente. Não obstante o ceticismo destes líderes, e o surgimento de algumas medicações baseadas na lógica científica, a prática da medicina continuava a ser variada e a seguir diferentes métodos. Como vimos, os novos conhecimentos sobre o corpo e a doença - e mesmo os primeiros produtos da farmacologia - pouco alteraram a arbitrariedade nas práticas terapêuticas. De fato, a medicina do séc. XIX encontrava-se na situação incômoda de competir, pelo mercado de trabalho e por prestígio, com outros terapeutas e sistemas, em 60 uma crise que se arrastava desde o séc. XVII. E, muitas vezes, o clínico tinha menos popularidade que charlatães e curandeiros. No séc. XIX, o aumento da difusão de conhecimentos técnicos e eruditos permitiu ao chamado charlatão ganhar força diante da “corporação médica”, pois o domínio da palavra escrita se ampliou para grupos menos fechados. O aprendizado de conhecimentos tradicionais e a veiculação de novas idéias aumentaram e se ampliaram a absorção da ciência médica e a capacidade de contestá-la. Assim, neste momento, a luta entre um conhecimento “oficial” e um paralelo, ou ilegítimo, dava-se entre cidadãos de um mesmo nível, diferentemente de tempos anteriores, em que as feiticeiras e os bruxos eram marginais e clandestinos na sociedade. O desprestígio dos clínicos se evidenciava, por exemplo, na abundância de publicações intituladas “medicina sem médico”, editadas com o objetivo de fornecer ao leitor a instrução necessária para se tratar; algumas dessas publicações faziam questão de frisar que seus autores, embora soubessem anatomia, fisiologia e matéria médica, não eram médicos, isto é, não ofereciam perigo! VIII – Homeopatia Um grupo de médicos naturistas escapou, em parte, deste descrédito: os homeopatas. O fundador da homeopatia, Samuel Hahnemann (1755-1843), além de criticar a falta de cuidado e respeito ao doente, propunha uma concepção vitalista; do ponto de vista terapêutico, tinha como princípio doutrinário a regra básica de que “os semelhantes são curados pelos semelhantes”. O objetivo fundamental deste método é descobrir a característica básica do indivíduo para, em seguida, tratá-lo com o remédio similar. Esta essência é procurada desde os sintomas relatados pelo paciente, organizados segundo uma hierarquia: os sintomas mentais são considerados uma expressão mais pura do desequilíbrio, enquanto os sintomas físicos devem ser relativizados. De acordo com Hahnemann, a tarefa do médico é a cura do seu paciente, e não lhe cabe fazer teorias sobre as doenças. Para a homeopatia, a doença não é uma entidadade, mas um desequilíbrio da “energia vital”. A teoria terapêutica homeopática conseguiu unir a idéia do poder de cura da natureza ao socorro do remédio, uniu as ações de Higéia e Panacéia: para a homeopatia, a natureza curativa não é um severo exercício de ascetismo e controle, de niilismo terapêutico e recurso exclusivo às próprias forças, pois o homem pode valer-se da medicação. Esta, por sua vez, não é misteriosa ou atemorizante; mas uma natureza semelhante, que se une à outra para fortalecê-la e não para transformá-la. 61 IX - Bacteriologia: em busca das causas Os últimos vinte anos do século XIX assistiram à uma transição. A idéia de tratar o doente pelos sintomas, de considerar a idéia da doença específica mudou. Anteriormente, a discussão sobre infecção e contágio se restringia aos domínios da etiologia, com a qual a terapêutica nada tinha a ver. A partir de agora, a doença existe, tem uma causa a ser pesquisada, para servir de indicação para o melhor tratamento. Os clínicos, combatentes do ceticismo e esperançosos de uma farmacologia e uma terapêutica com base na fisiopatologia e na clínica, não se convenceram, de imediato, da importância da microbiologia para o seu trabalho. Para eles, a existência, ou não, de microorganismos e de um raciocínio etiológico, não era fundamental para a terapêutica. Dominava a idéia de que o remédio era específico para cada doente, e não para cada doença. Assim, o combate ao agente etiológico através de substâncias tóxicas não só não era importante, como podia representar um risco para o paciente. A resistência apresentada por muitos médicos - e mesmo por cientistas, como Claude Bernard - à idéia de que as doenças fossem provocadas por microorganismos, não é simples produto do obscurantismo ou falta de fé na ciência. Para estes clínicos, a crença na positividade da natureza, em Higéia, isto é, na possibilidade da natureza providenciar remédios e forças intrínsecas benignas, os fazia duvidar - não da existência de bactérias - mas do valor do conhecimento das bactérias para a medicina. Se as idéias de Pasteur (1822-1895) não convenceram logo, também não demoraram muito a fazê-lo. Contribuiram para isto o surgimento dos postulados de Koch (1834-1910), a descoberta consecutiva de novas bactérias e o salvamento dramático de um jovem, com o soro anti-rábico, realizado por Pasteur em 1885. Em 1889, Behring (1854-1917) conseguiu controlar a difteria, em crianças doentes, com o soro antidiftérico. Assim, a microbiologia tornou-se indiscutível na medicina: ao invés de ser apenas um ítem da discussão etiológica, passou a interferir na conduta sobre a doença. O mecanicismo estava presente na medicina desde o séc. XVII, com filósofos, como Descartes (1596-1650), e naturistas, como Hoffmann. Entretanto, para os clínicos, da segunda metade do séc. XIX até Pasteur, o vitalismo era o pilar das propostas terapêuticas. Procurando atuar sobre o conjunto do organismo, eles pressupunham existir uma inteireza e uma singularidade do ser vivo em coerência com uma concepção vitalista de organismo. Até 1890, o vitalismo foi a fonte de argumentação mais utilizada, senão para o conjunto das disciplinas da medicina, pelo menos, no momento de instituição da terapêutica. A partir desta data, a explicação mecanicista ganhará ímpeto também neste terreno. Igualmente, a concepção ontológica, a idéia da doença como um ser independente, começou a ganhar espaço. Não mais a doença dos clássicos, classificada pelos parentescos dos sintomas, mas, mesmo assim, uma 62 entidade com existência autônoma que penetra o organismo. Em 1892, o papel dos germes na causação das doenças não provocava mais dúvidas, e as propostas terapêuticas começavam a se alterar. O micróbio traz uma nova cisão para a clínica, entre a causa da doença e suas consequências, entre a doença e o doente, entre o doente e o remédio. Além disso, produz uma divisão dentro do próprio organismo, com a pretensão de se atuar de maneira localizada, sem afetar o conjunto do organismo; essa pretensão só foi possível graças à noção do corpo montado em peças autônomas, peças que se relacionam em suas funções, e não mais, como para os vitalistas, aspectos diferentes de um ser indivisível. De agora em diante, o remédio passa a ser específico para a doença, e não para o doente, e mais: específico contra a causa da doença, não contra as suas consequências no organismo. Assim, a noção de agente etiológico criou, definitivamente, a doença específica. Esta criação orientou todas as demais disciplinas médicas - inclusive a fisiopatologia - para a identificação de doenças específicas, individualizadas por suas etiologias. Assim, os livros de terapêutica mudaram: a terapêutica deixou de ser uma arte, tornou-se uma ciência aplicada. As críticas ao emprego de medicamentos foram, até Pasteur, mais voltadas para encontrar remédios efetivos, para o indivíduo, que não se organizassem em extensas listas de medicação sintomática. Após a consolidação da teoria microbiana, há uma mudança nestas críticas. O empirismo começa a ser visto como um recurso grosseiro, um fator de atraso. Perde importância, assim, a observação à beira do leito como uma prioridade para a tomada de decisão. A idéia de que a ciência deve guiar o médico, impõe-se. X - Quimioterapia: as “balas mágicas” A quimioterapia, isto é, a farmacologia científica, distante do mundo natural, desenvolveu-a o químico Paul Ehrlich (1854-1915). Ao pesquisar corantes específicos para as diferentes estruturas celulares, ele imaginou ser possível sintetizar substância químicas capazes de bloquear, especificamente, as células dos microorganismos patogênicos. Em 1881, Ehrlich passou a empregar o corante azul de metileno - já aproveitado por Robert Koch na identificação do bacilo da tuberculose - e, a seguir, desenvolveu um corante de alta especificidade para o bacilo de Koch. Seu trabalho sobre antitoxinas o persuadira de que o corpo podia abrigar substâncias letais a microorganismos específicos, embora inofensivas sob qualquer outro aspecto. Imaginou, então, que esses corantes poderiam ser mais do que instrumentos de laboratório, fornecer um meio específico para atacar micróbios. E partiu em busca dessas substâncias químicas, desse míssil teleguiado, dessa “bala mágica” dirigida apenas contra o germe. 63 O primeiro triunfo real deu-se em 1904, quando, após selecionar numerosos corantes de benzopurpurina, Ehrlich chegou ao primeiro quimioterápico, o vermelho Trypan, com o qual curou camundongos acometidos da doença "mal das cadeiras", causada pelo tripanossomas. O caráter revolucionário deste primeiro composto não obteve repercussão social na Europa, pois o composto atuava sobre uma doença pouco conhecida. Em 1905, Fritz Schaudinn identificou a causa da sífilis, o Treponema pallidum . Devido à semelhança do treponema com o tripanossoma, Ehrlich começou a testar suas substâncias sintéticas também contra o treponema e, por volta de 1907, já havia produzido e selecionado mais de 600 compostos arsênicos. Em 1909, descobriu-se que o composto de nº 606 era tanto ativo quanto específico contra o agente da sífilis. A nova droga recebeu o nome de Salvarsan e foi usada, pela primeira vez, para tratamento da sífilis no homem, em 1910. Neste momento, surgia a terapêutica de bases científicas, que se consolidou com a síntese das primeiras sulfas, em 1937. Em 1938, foi introduzida a fenitoína; em 1939, a petidina; em 1941, a penicilina; em 1943, os primeiros derivados da 4- aminoquinoleína; em 1947, a estreptomicina; em 1948, a clortetraciclina e o cloranfenicol; em 1951, a isoniazida; em 1951, a procainamida, etc. Assim, Panacéia voltou à cena e trouxe consigo esperanças tão antigas quanto as provocadas pela teriaga, que tornaria o organismo invulnerável. Que não sejam mais ervas colhidas em ocasiões especiais, ou chifres de animais, é secundário. O importante é que a crença nas drogas voltou de forma poderosa e com extrema ampliação de expectativas, em relação ao passado: não apenas cada homem medicado ver-se-á livre de todos as doenças, mas toda a humanidade conseguirá resistir às agressões externas. XI - Do Ceticismo à Onipotência As pesquisas dos laboratórios farmacêuticos se traduziram em substâncias que forneceram aos médicos novos instrumentos de intervenção, e transformaram radicalmente a Medicina. A tecnologia terapêutica simboliza o desejo e a capacidade de modificar a história natural das doenças e, por isso, suas implicações vão muito além de uma atividade terapêutica específica. Os medicamentos constituem, hoje, um instrumento central para a prática médica; são o resumo da atitude e das esperanças em relação ao curso de uma doença; relacionam-se com a compreensão e interpretação das doenças e as infinitas possibilidades de cura. Em conseqüência, acha-se amplamente difundido o sentimento de que "para tudo há um remédio" ou, na pior das hipóteses, haverá! Tal trajetória - do ceticismo à onipotência - não se devem ao aperfeiçoamento da terapêutica, mas à introdução dos novos conceitos de etiologia, evolução e sintomatologia específicas; à capacidade de classificar as doenças em entidades clínicas distintas e de localizar o corpo como sede das doenças. Essas foram 64 condições de possibilidade para que Ehrlich formulasse o conceito de "bala mágica": uma substância química que destruiria germes específicos e seria inócua quanto ao restante do organismo. Tal processo estimulou um grau inimaginável de especialização na medicina, além da prescrição desnecessária de remédios, e estimular a se acreditar que para tudo há um remédio, e que todos os “males” têm base anatomofisiopatológica. Firmou-se a crença de que a medicina antiga matava por ignorância, do médico ou da medicina, matava porque não era uma verdadeira ciência. Porém, desde o começo do século XX, a medicina tornou-se perigosa, não na medida de sua ignorância, mas na medida de seu saber. Surgiram efeitos nocivos devidos não a erros de diagnóstico, nem à ingestão acidental de alguma substância, mas à própria ação da intervenção médica no que tem de mais racional. Estudos de utilização de medicamentos evidenciam distorções comuns a quase todos os países. Por exemplo, constata- se a abundância de produtos desnecessários ou com potencial tóxico inaceitável, de prescrição injustificada, automedicação, etc. Tais desvios ilustram, parcialmente, o grau apenas relativo de cientificidade da prática terapêutica. Ou seja, a maioria destas condutas mostra-se injustificada do ponto de vista científico e sem relação com os perfis de morbimortalidade: não interrompem o curso das doenças, não atingem as causas fundamentais dos estados mórbidos e, não raras vezes, sequer aliviam os sintomas. De modo geral, as especialidades farmacêuticas mais vendidas são os complexos vitamínicos, os tônicos, os protetores do fígado, as misturas para combater a tosse, freqüentemente apresentados como combinações em doses fixas. Como se sabe, a informação sobre os fármacos procede, em sua maior parte, dos próprios fabricantes, uma fonte cujo interesse comercial supera o sanitário. Assim, progressivamente, através de sofisticadas estratégias de propaganda, formou-se um campo de pressão sobre os médicos e os usuários dos serviços de saúde. E a necessidade de assegurar uma expansão constante do mercado acabou por sobrepor-se à necessidade sanitária real. XII - Remédio também é Cultura A cultura (como um sistema de significados, uma forma de ver o mundo e entender a vida) influencia toda experiência humana, incluindo o estar doente. Esta sentença se nos referimos à população leiga, e sobretudo às chamadas populações de "cultura exótica", poderá ser aceita sem grande resistência. Entretanto, se falamos sobre o mundo ocidental industrializado e, afronta maior, se nos referimos aos profissionais de saúde (ainda mais se são médicos), a afirmação de que a cultura influencia decisões e condutas pode ser inaceitável. E, no entanto, as práticas de saúde são, em todo o mundo (sem distinções geográficas ou econômicas), e por todo mundo (incluídos os profissionais de saúde), sempre mediadas pela cultura. 65 Desde o primeiro estudo comparativo internacional sobre a utilização de fármacos, realizado em 1968, em seis países europeus, é possível constatar amplas diferenças nos padrões de uso. O desenvolvimento posterior do Drug Utilization Research Group (DURG) - “Grupo de Pesquisa sobre a Utilização de Drogas”, que se vem ampliando desde 1969, permitiu desenvolver uma metodologia comum e documentar as grandes diferenças na regulamentação legal e nos padrões de uso de medicamentos. Na Alemanha, Suíça, Grã- Bretanha, Itália e Espanha o número de produtos comercializados oscila entre 10.000 e 30.000, comparado com os 2.000 a 3.000 dos mercados dos Países Nórdicos. Para o conjunto de anti-hipertensivos, observa-se uma diferença de quase três vezes no uso destes produtos entre a Suécia (que apresenta as cifras mais altas) e a antiga Tcheco-Eslováquia. Não existem razões para acreditar serem as diferenças de morbidade uma explicação razoável para estas discrepâncias; que refletem, principalmente, as variações culturais entre os diversos países. Por exemplo, a influência das tradições profissionais está presente na aceitação, na Alemanha, da combinação de remédios, que médicos ingleses considerariam “não-científica” e, em alguns casos, pouco segura. Na França, tal como entre nós, o BCG é considerado uma imunização obrigatória contra formas graves de tuberculose; nos Estados Unidos é quase impossível encontrar esse produto. Entre os franceses, uma das classes de drogas mais comumente prescritas são os chamados vasodilatadores cerebrais; não há qualquer pesquisa científica que sustente esta suposição, e estes medicamentos em nenhum outro lugar do mundo são usados com igual freqüência. Outra prática muito comum é a prescrição de lactobacilus toda vez que se receita um antibiótico, supostamente para prevenir efeitos colaterais sobre o aparelho digestivo. Esta prática teve sua origem com Ilya Metchnikoff, cientista russo que viveu na França e recebeu um Prêmio Nobel. Metchnikoff, viveu na era pré-antibiótico e acreditava que o segredo da eterna juventude estaria no iogurte búlgaro. Quando os antibióticos foram descobertos, demonstrou-se que eles mudavam a composição da flora bacteriana do trato intestinal; surgiu a idéia de repor a "boa" bactéria destruída pelas drogas com o lactobacilus, cuja imagem era muito positiva, graças a Metchnikoff. Até hoje, no entanto, nenhum ensaio clínico demonstrou que a "boa" bactéria é reposta no intestino, mais rapidamente, com o lactobacilus do que sem ele. Porque, então, a prática de prescrever lactobacilus e iogurte permanece? É que, se não faz efeito, faz sentido. Falta de apetite é um dos mais sérios sintomas para um francês. Enquanto muitos americanos conhecem seus fígados apenas quando têm hepatite ou cirrose, os franceses se preocupam com esse órgão todo o tempo. Os franceses, sobretudo na região da Provence, atribuem uma ampla variedade de problemas ao aparelho digestivo e, principalmente, ao fígado: crises de enxaqueca, dismenorréia, acne, palidez e fadiga. As mães explicam a lerdeza de suas crianças como um "temperamento hepático", e a cinetose (náusea associada a viagens) é igualmente atribuída ao 66 fígado. Também se atribuem ao órgão depressões nervosas, palpitações, queda de pressão arterial, insônia e desmaios. Na França, crise de foie reforça o significado social do ato de comer e beber; traduz a qualidade superior da comida francesa. Embora o consumo de drogas para o fígado tenha caído bastante nos últimos anos, permanecem algumas conseqüências dessa preocupação. Por exemplo: cerca de 7,5% das drogas francesas, de aspirina a antibióticos, têm a forma de supositórios, comparado com 1% nos EUA. Desta forma, as drogas são absorvidas sem passar pelo fígado; enquanto uma anemia comum, na Inglaterra ou na América, seria tratada com ferro, na França, o paciente deverá receber uma prescrição de vitamina B12 (tratamento mais próprio para anemia perniciosa, um quadro raro na França), vitamina isolada de extratos hepáticos, ou mesmo um extrato hepático. De uma maneira geral, os médicos da antiga Alemanha Ocidental parecem ser cuidadosos com a prescrição de medicamentos. Com relação aos antibióticos, por exemplo, um grande número de profissionais só os prescrevem se o quadro do paciente exige a internação em um hospital. Entretanto, os alemães são extremamente pródigos no consumo de tecnologia cardiológica. Os pacientes alemães fazem três vezes mais eletrocardiogramas do que os americanos, e os médicos alemães prescrevem seis a sete vezes a quantidade de digitálicos utilizada por franceses e ingleses, embora a prevalência de doenças cardiovasculares nestes países seja aproximadamente a mesma. À luz de uma medicina científica, praticada em países desenvolvidos como estes, o que justificaria tal discrepância? No início do século passado, houve, na Alemanha, um movimento chamado "medicina romântica", que nada mais era do que a vertente médica de um outro, muito mais amplo - literário, musical, filosófico - chamado Romantismo. Este movimento, de oposição ao cartesianismo, valorizava o sentimento contra a razão. Ao invés de ver o mundo como uma máquina, o Romantismo o via como um organismo, uma síntese de forças opostas. Assim, filósofos e cientistas alemães desenvolveram explicações baseadas na relação entre positivo e negativo, atração e repulsão, centrífugo e centrípeto, expansão e contração, oxidação e redução, tese e antítese. Há mais de um século, os alemães deixaram de falar em "medicina romântica", mas muito do seu pensamento sobre medicina, sobre saúde e doença, parece estar determinado por um entendimento, digamos, "romântico", do corpo humano e do processo de adoecer, entendimento em que o coração desempenha um papel central. Por exemplo, em alemão não existe um termo técnico para "dor no peito", o que leva médicos e pacientes a, em qualquer caso de dor torácica, referir-se a "dor no coração". Quando um clínico alemão se refere a um caso de "insuficiência cardíaca", pode simplesmente estar diante de um paciente sem dispnéia de esforço, com eletrocardiograma e Rx de tórax normais, mas que alega desânimo e cansaço. Por isso, os digitálicos - substâncias que aumentam a força de contração do músculo cardíaco - são usados como tônicos, em baixas dosagens, na ausência de dispnéia e 67 na presença de eletrocardiograma normal, quase de modo profilático. O Romantismo também explica outro grupo de diagnósticos peculiares entre os alemães: pressão baixa (uma condição sequer mencionada em ensaios americanos), colapso circulatório e distonia vasovegetativa, diagnósticos referentes à circulação. A pressão baixa, hoje em dia, não é considerada doença mas, ao contrário, algo que contribui para a longevidade. Entretanto, num catálogo alemão de drogas, existem 85 fármacos para o tratamento de pressão baixa. As diferenças de padrão de prescrição entre os diversos países se sustentam em profundas variações na cultura médica, mais do que apenas em efeitos de diferentes preços e políticas de controle de lucros. As diferenças na assistência à saúde entre as nações não se explicam simplesmente por fatores econômicos ou pelo perfil de saúde da população. Os valores culturais do médico, do paciente e da sociedade também são influências importantes. Referências Bibliográficas AVORN, J; CHEN, M e HARDEY, R. Scientific versus commercial sources of influence on the prescribing behaviour of physicians. Am J Med, 73: 4, 1982. DENG, P; HAAIJER-RUSKAMP, FM e ZIJSLING, DH. How Physicians choose drugs. Soc Sci Med, 27 (12): 1381, 1988. DIXON, B. Além das Balas Mágicas . São Paulo: T.A. Queiroz-EDUSP, 1981. FOUCAULT, M. 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