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Os Caminhos da Terapêutica 
 
A terapêutica farmacológica dos nossos dias é uma prática relativamente recente. Até o 
começo do século XIX, a maioria dos medicamentos ainda era de origem natural, de estrutura química 
desconhecida. Na verdade, o que se denominava tratamento consistia mais em uma “abordagem”, do 
que propriamente em procedimentos cirúrgicos ou farmacológicos. Isto é, envolvia emoções e relações 
pessoais e incorporava fatores que determinavam crença e identidade. Hoje, acredita-se serem as 
terapias introduzidas na segunda parte do século XX produto de uma mentalidade científica, em 
contraste com as utilizadas antes, eficazes ou não, consideradas de base empírica ou mística. 
Como evoluíram os caminhos da terapêutica, desde o templo de Epidauro até a poderosa 
indústria farmacêutica? É certo dizer que utilizamos os medicamentos de forma racional, em total 
coerência com as bases científicas da medicina moderna? Vejamos. 
 
I - A medicina religiosa 
 
A medicina exercida por Asclépio e 
seus seguidores era quase completamente 
religiosa. As curas, em sua imensa maioria, 
eram milagres realizados pelo deus ou por 
algum de seus animais favoritos, a serpente e o 
cachorro. Em geral os templos se erguiam em 
lugares saudáveis e de grande beleza. Além do 
santuário dedicado a Asclépio, da fonte e do 
bosque sagrado, havia também um lugar para 
os pacientes dormirem o sono durante o qual 
haviam de ser curados. O paciente, depois de 
uma purificação preliminar mais ou menos 
longa, por meio de sacrifícios, abluções e 
jejuns, era admitido no templo. Por fim, 
passava uma ou mais noites à espera do sonho 
profético em que o próprio Asclépio viria curá-
lo ou, ao menos, dar-lhe instruções que, 
interpretadas pelos sacerdotes, lhes 
permitiriam recuperar a saúde. 
A confiança no valor dos sonhos era 
muito antiga e veio provavelmente do Egito. 
Acreditava-se que, durante o sonho, a alma, 
temporariamente liberta do corpo, entrava nas 
regiões divinas e recebia avisos, conselhos e 
ordens da parte dos deuses. Apagadas as luzes 
e convidados os pacientes a um completo 
silêncio e recolhimento, os sacerdotes 
visitavam os enfermos, davam-lhes indicações 
terapêuticas (que eles aceitavam como 
provenientes do deus) e, talvez lhes 
ministrassem medicamentos e até praticassem 
alguns atos cirúrgicos, como a incisão de 
abscessos. Conseguida a cura, ou o alívio dos 
males, cabia ao doente manifestar o seu 
reconhecimento, com ofertas e dádivas. 
 
II - A medicina naturalista 
 
A physis , para o médico hipocrático, 
possuía o poder de regenerar a si mesma. A 
medicina hipocrática faz do poder de cura, 
intrínseco, da natureza um princípio 
 
 
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fundamental e, do médico, um auxiliar 
cauteloso. O médico, como terapeuta, era um 
servidor, um assistente da natureza. A 
confiança no poder de auto-reconstituição e o 
papel do terapeuta são muito claros nos textos 
hipocráticos, onde não existe lugar para a 
coincidência ou o acaso. O doente que se cura, 
aparentemente sem nada ter feito. Realizou, 
por instinto, o tratamento ou a dieta corretos. A 
natureza é, além de formadora e mantenedora, 
terapêutica: a natureza providencia seus meios 
de cura. Isto não quer dizer que o médico seja 
inútil, pois cabe-lhe prever o curso da doença, 
isto é, fazer o prognóstico. 
Reforça esta concepção a noção de que 
não se deve tratar os doentes incuráveis, 
identificados pela arte do diagnóstico e do 
prognóstico. Segundo este preceito, o médico 
só cura aquilo que a natureza cura, e só 
estimula, ou corrige, o doente cuja natureza 
ainda pode ser recuperada; de nada serve tentar 
ir contra as forças naturais, ou procurá-las 
onde elas não mais existem. O médico 
intervém apenas como elemento regulador nas 
relações entre o homem e seu ambiente. A cura 
é entendida como “recuperação”, 
“reequilibro”, e depende das decisões sobre o 
regime de vida, de modo a melhor manter a 
ordem natural. 
Na medicina naturalista, a 
observação do doente era minuciosa, metódica: 
o aspecto do doente, sua posição no leito, a 
agitação, a quentura, etc. Se a doença é uma 
luta entre a força curativa da natureza, que 
tende a restabelecer o estado normal, e as 
causas da moléstia que o perturbam, o 
verdadeiro agente da cura é a natureza, não o 
médico, nem os remédios. A função do médico 
é auxiliar esta força natural, por todos os meios 
ao seu alcance, a vencer a doença, e pôr o 
paciente nas condições mais favoráveis, é não 
perturbá-la por uma ação inadequada. 
“Primeiro, não prejudicar”, diz o preceito 
hipocrático. 
Como cada doente é um caso 
individual, o diagnóstico da doença, como um 
quadro definido, não era possível e, aliás, não 
fazia falta. A preocupação importante era 
compreender o curso da doença, prever a sua 
evolução e o seu modo de término, isto é, 
estabelecer o prognóstico. A capacidade de 
previsão do médico, sinal de sua compreensão 
do problema clínico e garantia do seu domínio 
dos meios próprios para debelar o mal, 
contribuía para aumentar a confiança do 
paciente na pessoa do “técnico”, daquele que 
dominava a tekné. 
Os meios dietéticos e terapêuticos de 
que Hipócrates podia dispor - caldo e papas de 
cevada, hidromel (mistura de água e mel), 
oximel (mistura de vinagre e mel),, vinho, 
algumas plantas medicinais, purgativos, 
sangrias, banhos e ungüentos, exercício físico 
ou repouso - parecem-nos, hoje, modestos. 
Não devemos, porém, esquecer que a 
terapêutica, indistinguível da dietética, tinha 
por objetivo, não o curar, mas permitir que a 
natureza realizasse a cura. 
 
 
 
 
 
 
 
 
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III – Galeno 
 
A medicina da Escola de Cós domina 
enquanto a filosofia e a sociedade gregas estão 
no apogeu. E, durante o período helenístico, 
com a hegemonia de Alexandria na cultura 
grega, começa a mudar. As influências 
orientais, trazidas por Alexandre, o Grande, 
oferecem novas drogas, logo incorporadas pelo 
gregos. O aumento dos conhecimentos e da 
utilização de ervas leva à distinção das funções 
de farmacêutico e médico. 
Ao tempo do domínio romano, 
encontram-se descritas 950 substâncias 
curativas, enquanto o Corpus Hippocraticum 
não apresenta mais do que 250. Contudo, o 
formador definitivo da terapêutica ocidental foi 
Claudio Galeno (130-201 d.C.). Galeno, 
embora seguidor de Hipócrates, apresenta uma 
terapêutica que difere dos preceitos mais gerais 
da escola de Cós. E, através do uso extensivo 
da noção de doença como um desequilíbrio de 
humores, reforçou a utilização de catárticos, 
principalmente a sangria. 
A terapêutica galênica visava restituir 
o equilíbrio dos humores, perturbado pela 
doença. Além de uma complexa matéria 
médica, Galeno servia-se da dietética, da 
sangria, da aplicação de ventosas, do repouso, 
do exercício, da hidroterapia, da massagem, 
etc. Galeno criou e defendeu a teoria de se 
tomar remédios com a maior quantidade 
possível de substâncias, pois o organismo 
escolheria a mais conveniente. As propostas 
terapêuticas de Galeno reforçaram o uso de 
dois produtos - originários, provavelmente da 
Alexandria, no século III a.C. - o 
mithridaticum e a theriaka, que seriam 
antídotos contra envenenamentos. A 
composição desses produtos era cara e 
complicada, e variava muito entre os diversos 
fabricantes. Contudo, suas indicações se foram 
ampliando, juntamente com a expansão do 
conceito de veneno. Por exemplo, quando as 
pestes passaram a ser entendidas como 
“envenenamento do ambiente”, houve 
oportunidade para o emprego desses produtos. 
Por fim, a theriaka vira uma espécie de 
panacéia, pois serve para tratar tudo e, em sua 
composição, entram de 64 até 100 substâncias. 
Assim, contra sua própria opinião, 
Galeno não deve ser considerado um terapeuta 
hipocrático. Sua proposta de ministrar
uma 
polifarmácia, para que o organismo escolha a 
melhor substância, não se confunde com a 
idéia de que o organismo busca, por si só, o 
regime mais adequado ao seu estado. Não se 
vê, em Galeno, o mesmo respeito pelo 
organismo, a preocupação de não corrompê-lo, 
nem a idéia de cura como resultado de 
autodesenvolvimento. A terapêutica galênica - 
formada pela composições de polifarmácia e 
os catárticos (sangrias, eméticos, purgantes e 
exsudatórios) - instalou-se por 1500 anos, na 
Europa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
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IV - A Alquimia 
 
Sabe-se que a palavra alquimia é um 
vocábulo árabe. As palavras-chave da alquimia 
são transmutação, inversão e fusão. O primeiro 
livro conhecido desta matéria, escrito por Bolo 
de Mendes, chama-se “Física e Mística”, e data 
do século II a.C., portanto ainda no período 
helenístico. Na sua primeira página encontra-
se o seguinte aforismo: 
“Uma natureza se regozija na outra; 
uma natureza triunfa sobre a outra; 
uma natureza domina a outra”. 
E a medicina ocidental irá caminhar 
da natureza curadora para a natureza que se 
regozija na transmutação. Agora, em pleno 
cristianismo, a saúde não está mais no corpo e 
sim na alma, fenômeno que, mais do que 
prescindir do corpo, o tem como adversário. 
Neste novo contexto, Higéia estará 
inteiramente deslocada. A natureza não tem 
forças próprias; o homem já não se esforça 
para se desenvolver, mas para se purificar, ou 
para transformar sua natureza imperfeita. 
Não há nenhuma contradição entre a 
visão cristã e a alquimia. A hóstia se 
transubstancia no corpo de Cristo; o homem 
que a ingere se transforma de pecador em puro. 
Igualmente, os alquimistas procuram, por 
todos os meios, a substância universal, capaz 
de realizar transformações instantâneas. De 
início, esta investigação é muito ampla e inclui 
as tinturas, a pedra filosofal e os elixires. Com 
o passar do tempo, a idéia de transmutação 
liga-se à idéia de sabedoria: o verdadeiro 
objetivo é uma purificação mental, com vistas 
à salvação. 
Na Alta Idade Média, este fato ainda 
não estará muito visível na medicina, pois as 
práticas terapêuticas correntes eram uma 
mistura de receitas celtas e germânicas, 
enquanto nas abadias se desenvolvia um 
receituário com base em ervas. Os livros 
médicos eram apenas listas de fórmulas, 
compêndios de matérias médicas, elaborados a 
partir de tradições empíricas e de leituras, 
principalmente, de Galeno. Mais tarde, ao 
redor do século X, com as Cruzadas e as 
conquistas árabes, a medicina tomou um novo 
impulso. A cultura árabe traduziu, absorveu e 
difundiu os textos do Corpus Hippocraticum, 
compilou o extenso receituário hindu, fez 
estudos próprios de anatomia, e os cotejou com 
os de Galeno. Com os árabes, alguns preceitos 
de higiene e de dieta reingressaram à cultura 
européia; mas as propostas terapêuticas dos 
árabes se apoiavam na versão galênica da 
teoria humoral e nos preceitos da polifarmácia 
e da alquimia. Aliás, seus conhecimentos dos 
metais aumentaram a aproximação entre a 
medicina e a alquimia, e enriqueceram o 
receituário europeu com as primeiras fórmulas 
metálicas, principalmente de mercúrio e 
arsênico, utilizados como catárticos. Não 
podemos esquecer que, neste momento, os 
critérios de verdade na medicina, na filosofia e 
em todas as áreas de conhecimento eram a 
tradição e os dogmas religiosos. 
 
 
 
 
 
 
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V – Renascença 
 
A Renascença, aliada à descoberta do 
Novo Mundo e suas flora e fauna, abre um 
novo período para a terapêutica. Embora 
procure inspiração na antigüidade clássica, a 
Renascença não põe a natureza no mesmo 
plano da physis . O homem renascentista, ao 
recusar obediência ao dogma religioso e ao 
afirmar o seu próprio poder criativo, instala-se 
no mundo mais como um herdeiro de Deus, 
portanto mais como “senhor da natureza” do 
que como parte da mesma. O modelo do 
médico renascentista é o suíço Paracelso 
(1493-1541), figura bastante controvertida na 
história da medicina. Personagem típico de seu 
tempo, Paracelso aliava enorme vontade em 
adquirir conhecimentos a um intenso 
misticismo. Considerado louco, truculento, 
imprevisível, boêmio, curava os sifilíticos e 
proferia violentas declarações contra os 
médicos seus contemporâneos. Era violento 
inimigo da tradição. Em praça pública, 
queimou livros de Galeno, com os quais, 
declarou, nada ter aprendido. Além disso, não 
falava nem escrevia em latim, a língua dos 
letrados, mas em alemão, tal como o povo 
rude. 
Para ele, as quatro bases da medicina 
eram: a alquimia, a astrologia, Deus e a 
natureza. Sua escolha terapêutica seguia a 
“Teoria das Assinaturas”, segundo a qual a 
natureza fornecia sinais do valor terapêutico 
das ervas. Assim, a noz, que tem olhos 
desenhados na casca, servia nas doenças 
oftálmicas e a folha, com feitio de rim, nas 
renais. Apesar destas propostas de medicação 
específica por doença, ele também receitava 
“panacéias”, principalmente sua “pílula 
eterna”: um comprimido de antimônio, 
ingerido e recuperado nas fezes, repetidas 
vezes, e de efeitos alquímicos no organismo. 
Em todo caso, Paracelso operou uma revolução 
salutar na farmacopéia, ao manipular, 
pessoalmente, os remédios extraídos das 
plantas e os de origem mineral. Ele foi o 
pioneiro na criação de composições que têm 
por princípio o ferro, o enxofre e o mercúrio, 
do qual verificou a ação específica na sífilis. 
Também foi o primeiro a observar que certos 
venenos, quando dosados com cautela, podiam 
transformar-se em medicamentos. 
Do final deste período em diante, os 
médicos se dividiram em diversas escolas 
terapêuticas, a misturar, cada uma a seu modo, 
teorias e práticas antigas com conhecimentos 
recentes. Havia os seguidores de Galeno 
(tradicionalistas e humoralistas); os espagiritas 
- seguidores de Paracelso - que destilavam e 
purificavam suas drogas e deixaram 
descendentes, os quimiatras; os ecléticos, que 
tentavam validar todas as propostas; os 
solidistas, que desenvolviam teorias localistas 
da doença, buscavam lesões visíveis, e 
rejeitavam a teoria humoral. Todos faziam uso 
intenso de drogas catárticas, independente de 
qual teoria usavam para justificar a 
necessidade de eliminação. Do mesmo modo, 
independente de suas escolas, todos 
terminavam por utilizar as mesmas drogas, por 
tentativas. Ou seja, utilizava-se o mesmo 
medicamento para inúmeras doenças e os 
doentes terminavam por fazer uso de todas as 
terapêuticas. A sangria, o arsênico e o ópio 
 
 
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eram usados rotineiramente e, assim, 
permaneceram até quase o século XX. 
Assim, a terapêutica seguiu, de 
Galeno ao século XIX, uma trajetória de caos 
crescente. Entretanto, a denominação geral de 
“terapêutica galênica” tem sua razão de ser, 
pois as mudanças consecutivas, tomando-se a 
Escola de Cós como ponto de referência, só 
aprofundaram a ruptura. Iniciada na própria 
Grécia, no período helenístico, consolidada por 
Galeno e desenvolvida, depois, ao longo da 
Idade Média e da Renascença, a cura passou a 
vir de algo externo ao homem, algo que o 
transforma ou purifica: Panacéia venceu 
Hygéia. 
 
VI – Iluminismo 
 
Com a chegada do Iluminismo, no 
século XVII, este panorama começa a mudar. 
E, ainda mais visivelmente, no século XVIII, o 
Século das Luzes. 
O século XVII constitui o ápice do já 
referido caos terapêutico. A hegemonia ainda 
está com os quimiatras e seus metais, ligados 
ao misticismo. Ao lado de suas fórmulas, a 
quina - proveniente da América - começa a ser 
amplamente utilizada, com base apenas em sua 
eficácia empírica. O uso ds sangrias e das 
demais práticas purgativas milenares se 
intensificou, e os médicos passaram a 
prescrever, também, amuletos e penitências, 
pois a crença na doença como resultado de 
pecados e possessões
- herança da Idade Média 
- sobrevivia ao início Renascença. 
O racionalismo, típico desta época, 
termina por varrer do mapa as concepções 
mágicas da natureza, que passa a ser entendida 
na transparência de linhas geométricas: o 
racionalismo iluminista considera que o real é 
racional. Não existem mistérios, inclusive 
divinos, que a razão humana não consiga 
compreender. Apenas na razão deve o homem 
confiar para conhecer a si mesmo, relacionar-
se com Deus e com o mundo todo. Mudam, 
assim, mais uma vez, a observação e a 
interpretação da natureza. Da interpretação de 
sinais obscuros, a serem decifrados; da Teoria 
das Assinaturas, de Paracelso, chega-se a uma 
leitura direta e descritiva dos fenômenos e 
elementos naturais. O mundo racional é claro: 
apenas pela observação, através dos sentidos, 
será possível descrevê-lo, sem necessidade de 
nenhuma interpretação. O entendimento e o 
conhecimento vêm da ordem, da arrumação 
dos fatos observados. Se posto em ordem, tudo 
será compreendido e conhecido, como faz, por 
exemplo, a História Natural com a fauna e a 
flora. Assim, o elemento chave do 
conhecimento clássico não é tanto a 
“matematização” do mundo; esta é apenas uma 
poderosa linguagem, um instrumento da 
necessidade de ordenar, dar hierarquia e 
classificar coisas e seres. 
A confiança na harmonia universal, 
sustentada pela razão, traz modificações nas 
concepções de doença e tratamento. A doença 
deixa de ser produto de magia ou possessão e 
volta a ser um evento natural. Torna-se um 
objeto de estudos, a ser classificado e ordenado 
em seu “reino”. Cria-se uma “Medicina 
Classificatória”, semelhante à História Natural: 
 
 
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cada doença é vista como um ser com 
existência própria, a se observar e descrever 
nos seus detalhes, a classificar em família, 
ordem e espécie. 
Esta medicina é defendida pela elite 
dos médicos do século XVII e XVIII, como 
Sydenham (1624-1689), na Inglaterra, e 
Cabanis (1757-1808), na França. Desenvolve-
se junto com uma proposta renascentista: a de 
um retorno à natureza e ao emprego das forças 
naturais como fonte de saúde e de cura. Esse 
movimento encontra defensores em muitos dos 
pensadores destes séculos, como Montaigne 
(1533-1592), Descartes (1596-1650) e Leibniz 
(1646-1716); a associarem a confiança na 
razão e na bondade divinas à idéia de natureza 
mantenedora e curativa. Para este filósofos 
racionalistas, a Razão Divina não deixaria que 
o homem se visse entregue, sem recursos ao 
sofrimento; tanto o seu organismo possuía 
forças próprias, como a natureza oferecia 
meios curativos. Como tudo o mais, a busca da 
cura tinha ter base em propostas racionais, 
derivadas da observação e da classificação da 
doença e de elementos da natureza que 
pudessem servir como remédio. Assim, graças 
ao Iluminismo, retornam algumas concepções 
hipocráticas de saúde, doença e cura, e voltam 
alguns médicos a se chamar de hipocráticos. 
 
VII - Ceticismo Terapêutico 
 
Em meados do séc. XVIII, surgiu um 
importante movimento de crítica às condutas 
terapêuticas, um questionamento da habilidade 
do médico de intervir e mudar o curso da 
maioria das doenças. Esta tese punha ênfase na 
natureza limitada de grande número de casos, e 
concluía consistir a tarefa dos médicos apenas 
em ajudar o processo natural de recuperação, 
com o mínimo de "medidas heróicas". Essa 
proposta não-intervencionista se baseava, em 
parte, na controvertida eficácia dos meios 
terapêuticos disponíveis. Assim, o 
hipocratismo dos iluministas, confiante na 
capacidade dos sentidos de ler a natureza e 
conhecer sua ordem intrínseca, foi uma fonte 
inspiradora para a atitude dos novos cientistas 
frente ao tratamento: o ceticismo terapêutico. 
Isto é, permitiu pensar que, na carência de 
certezas, o melhor é não fazer nada. 
Entretanto, esta passividade não seria 
imobilista, pois se considerava que a natureza 
curava. 
Com esta convicção, os clínicos de 
Paris abandonaram medicações tradicionais e 
buscavam terapêuticas coerentes com a visão 
de mundo de que era possível um 
conhecimento seguro sobre as coisas. A 
“observação rigorosa” é imperativa para estes 
médicos, não mais com fins classificatórios, 
mas para interpretar e concluir. Bichat critica a 
observação clássica, dizendo ser inútil 
subdividir a matéria médica em reino animal, 
vegetal e mineral; os medicamentos deveriam 
ser classificados segundo seus efeitos no 
organismo: 
“Os mesmos medicamentos são 
usados, sucessivamente, por humoralistas e 
solidistas. As teorias mudam, mas os 
remédios continuam os mesmos. Sempre 
que usados, apresentam os mesmos efeitos, 
 
 
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independente da opinião ou da teoria dos 
médicos. Isto prova que só se pode avaliá-
los através da observação”. 
Estes médicos céticos representaram o 
primeiro exemplo de uma atitude experimental 
em terapêutica. Muito criticados pela ênfase no 
diagnóstico e seu descaso frente ao tratamento, 
podemos supor que evitaram inúmeras mortes 
iatrogênicas e estimularam a busca de 
medicamentos eficazes. Assim, Laënnec 
(1781-1826), o inventor do estetoscópio, 
passou a prescrever apenas “ar puro” para os 
tuberculosos, por observar que os doentes da 
área rural, sem qualquer medicação, se 
curavam mais amiúde do que os tratados com 
os vários remédios da época. Foram 
reintroduzidos, nas primeiras décadas do séc. 
XIX, alguns recursos naturais, como a 
hidroterapia e o uso de dietas. 
Charles Pierre Louis (1787-1872), em 
1828, fez uma avaliação do valor terapêutico 
da sangria, ao comparar a evolução dos 
doentes muito e pouco sangrados (já que não 
dispunha de casos sem sangria), e demonstrou 
a nocividade desta prática. Suas conclusões 
surgiram através de quantificações, sendo 
Louis considerado o pai da estatística médica e 
da introdução da idéia de probabilidade no 
raciocínio clínico. 
O ceticismo também foi praticado em 
Viena e disseminou-se pela Inglaterra, 
Alemanha e EUA, e chegou e assumir um tom 
de verdadeiro niilismo terapêutico, 
principalmente com Skoda (1805-1881), em 
Viena; Oliver Wendell Holmes, nos EUA (“Se 
toda a matéria médica, tal como se encontra 
hoje, fosse lançada ao fundo do mar, seria 
muito melhor para a humanidade e muito pior 
para os peixes”) e Magendie (“Vê-se bem que 
nunca tentaram não fazer nada”), em Paris. 
O ceticismo terapêutico tornou-se 
comum nos meios médicos, sofisticados, 
americanos, sem encontrar, imediatamente, a 
mesma receptividade entre a maioria dos 
médicos. Este empiricismo radical negava 
utilidade a qualquer medida terapêutica não 
provada em ensaios clínicos, e pareceu atender 
às exigências dos meios acadêmicos europeus, 
mas não às necessidades da prática cotidiana. 
Assim, as velhas formas de tratamento não 
desapareceram de imediato, mas passaram a 
ser empregadas menos vezes e, em geral, em 
menores doses. 
Talvez, o nome de maior destaque 
entre os formuladores e divulgadores deste 
ceticismo médico tenha sido William Osler 
(1849-1919). Contemporâneo da descoberta do 
bacilo anthrax (1849) e do Haemophilus 
pertussis (1906), pareceu evidente a Osler 
serem a bacteriologia e a patologia os 
caminhos naturais para o desenvolvimento da 
medicina. Para alguém apaixonadamente 
interessado em anatomia patológica, era 
irrealista supor que lesões tão graves pudessem 
ser prevenidas ou curadas por uma substância 
química. O livro de terapêutica de Osler 
(Handbook of Therapeutics ), publicado em 
1889, é uma clara demonstração de seu apenas 
moderado interesse pelo tema. "As primeiras 
páginas tratam sucessivamente de oxigênio 
(uma página), do uso da água (três páginas e 
meia), do frio (vinte páginas), do gelo (duas 
páginas) e de banhos frios e quentes (três 
páginas). Então, Osler se refere a elementos e 
compostos inorgânicos e, só na página 293
aborda um remédio específico, a ipecacuanha. 
 
 
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Não cabe comentar a extravagância, a 
nossos olhos, de alguns destes remédios, mas a 
parcimônia de sua descrição. Prescrevia-se um 
número muito maior de substâncias; mas aqui 
estava o primeiro professor de terapêutica da 
Inglaterra a desprezar a maioria das 
substâncias, em favor de métodos físicos ou 
dos íons inorgânicos mais simples. A partir 
daí, a terapêutica sofreu um considerável 
atraso em seu desenvolvimento. 
Desde 1809 já havia análises bem 
sucedidas do mecanismo de acão de algumas 
drogas; entre 1850 e 1870, se fizeram 
surpreendentes estudos de antagonismo entre 
determinadas substâncias. Contudo, embora 
houvesse diversas demonstrações sobre como 
descobrir ou sintetizar e introduzir uma nova 
droga, desde o primeiro College 
Pharmacopoeia, de 1618 até o British 
Pharmacopoeia, de 1864, houve uma redução 
do número de substâncias, de cerca de 2.000 
para 650 ítens; e também uma redução na 
complexidade das preparações. 
Assim, a medicina moderna nasceu 
sem uma proposta terapêutica própria, e se 
caracterizou mais como um modo de 
abordagem e diagnóstico das doenças do que 
como um método de tratamento e cura. A 
revolução de Bichat, se permitiu uma nova 
compreensão do processo de doença, através 
da associação entre sintoma e lesão, não 
permitiu nenhuma inferência terapêutica. Em 
princípio, a fisiologia, ao lado da química, 
levou à elaboração dos primeiros sistemas 
terapêuticos livres das teorias dos humores, de 
Galeno, e dos últimos resquícios da alquimia. 
A Magendie se pode atribuir a 
conformação definitiva do que se entende hoje 
por farmacologia e fisiologia. Ele desenvolveu 
um método realmente experimental em suas 
pesquisas. E, apesar de sofrer considerável 
oposição por usar animais, realizou uma série 
de estudos sobre o sistema nervoso, o 
peristaltismo e a formação da imagem na 
retina, entre muitos outros, sendo considerado 
o pai da medicina de laboratório. 
Seus trabalhos foram igualmente 
importantes para a farmacologia. Já no início 
do século, em 1805, a morfina tinha sido 
destilada do ópio e, entre esta data e 1832, 
mais de uma dezena de substâncias, algumas 
utilizadas até hoje (estricnina, colchicina, 
quinina, cafeína, codeína), foram destiladas e 
purificadas por químicos e farmacêuticos. 
Além de colaborar nestas descobertas, 
Magendie promoveu a utilização destes novos 
produtos na clínica, na mesma medida em que 
seu ceticismo punha da lado os métodos 
antigos. Ao longo do séc. XIX, Claude 
Bernard (1813-1878) continuou o trabalho de 
Magendie, refinando o método experimental e 
utilizando animais nas observações e testes de 
hipóteses, assim consolidando a fisiologia 
como disciplina rigorosa e independente. 
Não obstante o ceticismo destes 
líderes, e o surgimento de algumas medicações 
baseadas na lógica científica, a prática da 
medicina continuava a ser variada e a seguir 
diferentes métodos. Como vimos, os novos 
conhecimentos sobre o corpo e a doença - e 
mesmo os primeiros produtos da farmacologia 
- pouco alteraram a arbitrariedade nas práticas 
terapêuticas. De fato, a medicina do séc. XIX 
encontrava-se na situação incômoda de 
competir, pelo mercado de trabalho e por 
prestígio, com outros terapeutas e sistemas, em 
 
 
60
uma crise que se arrastava desde o séc. XVII. 
E, muitas vezes, o clínico tinha menos 
popularidade que charlatães e curandeiros. 
No séc. XIX, o aumento da difusão 
de conhecimentos técnicos e eruditos permitiu 
ao chamado charlatão ganhar força diante da 
“corporação médica”, pois o domínio da 
palavra escrita se ampliou para grupos menos 
fechados. O aprendizado de conhecimentos 
tradicionais e a veiculação de novas idéias 
aumentaram e se ampliaram a absorção da 
ciência médica e a capacidade de contestá-la. 
Assim, neste momento, a luta entre um 
conhecimento “oficial” e um paralelo, ou 
ilegítimo, dava-se entre cidadãos de um 
mesmo nível, diferentemente de tempos 
anteriores, em que as feiticeiras e os bruxos 
eram marginais e clandestinos na sociedade. O 
desprestígio dos clínicos se evidenciava, por 
exemplo, na abundância de publicações 
intituladas “medicina sem médico”, editadas 
com o objetivo de fornecer ao leitor a instrução 
necessária para se tratar; algumas dessas 
publicações faziam questão de frisar que seus 
autores, embora soubessem anatomia, 
fisiologia e matéria médica, não eram médicos, 
isto é, não ofereciam perigo! 
 
VIII – Homeopatia 
 
Um grupo de médicos naturistas 
escapou, em parte, deste descrédito: os 
homeopatas. O fundador da homeopatia, 
Samuel Hahnemann (1755-1843), além de 
criticar a falta de cuidado e respeito ao doente, 
propunha uma concepção vitalista; do ponto de 
vista terapêutico, tinha como princípio 
doutrinário a regra básica de que “os 
semelhantes são curados pelos semelhantes”. 
O objetivo fundamental deste método é 
descobrir a característica básica do indivíduo 
para, em seguida, tratá-lo com o remédio 
similar. Esta essência é procurada desde os 
sintomas relatados pelo paciente, organizados 
segundo uma hierarquia: os sintomas mentais 
são considerados uma expressão mais pura do 
desequilíbrio, enquanto os sintomas físicos 
devem ser relativizados. De acordo com 
Hahnemann, a tarefa do médico é a cura do seu 
paciente, e não lhe cabe fazer teorias sobre as 
doenças. Para a homeopatia, a doença não é 
uma entidadade, mas um desequilíbrio da 
“energia vital”. 
A teoria terapêutica homeopática 
conseguiu unir a idéia do poder de cura da 
natureza ao socorro do remédio, uniu as ações 
de Higéia e Panacéia: para a homeopatia, a 
natureza curativa não é um severo exercício de 
ascetismo e controle, de niilismo terapêutico e 
recurso exclusivo às próprias forças, pois o 
homem pode valer-se da medicação. Esta, por 
sua vez, não é misteriosa ou atemorizante; mas 
uma natureza semelhante, que se une à outra 
para fortalecê-la e não para transformá-la. 
 
 
 
 
 
 
61
IX - Bacteriologia: em busca das causas 
 
Os últimos vinte anos do século XIX 
assistiram à uma transição. A idéia de tratar o 
doente pelos sintomas, de considerar a idéia da 
doença específica mudou. Anteriormente, a 
discussão sobre infecção e contágio se 
restringia aos domínios da etiologia, com a 
qual a terapêutica nada tinha a ver. A partir de 
agora, a doença existe, tem uma causa a ser 
pesquisada, para servir de indicação para o 
melhor tratamento. 
Os clínicos, combatentes do 
ceticismo e esperançosos de uma farmacologia 
e uma terapêutica com base na fisiopatologia e 
na clínica, não se convenceram, de imediato, 
da importância da microbiologia para o seu 
trabalho. Para eles, a existência, ou não, de 
microorganismos e de um raciocínio 
etiológico, não era fundamental para a 
terapêutica. Dominava a idéia de que o 
remédio era específico para cada doente, e não 
para cada doença. Assim, o combate ao agente 
etiológico através de substâncias tóxicas não 
só não era importante, como podia representar 
um risco para o paciente. A resistência 
apresentada por muitos médicos - e mesmo por 
cientistas, como Claude Bernard - à idéia de 
que as doenças fossem provocadas por 
microorganismos, não é simples produto do 
obscurantismo ou falta de fé na ciência. Para 
estes clínicos, a crença na positividade da 
natureza, em Higéia, isto é, na possibilidade da 
natureza providenciar remédios e forças 
intrínsecas benignas, os fazia duvidar - não da 
existência de bactérias - mas do valor do 
conhecimento das bactérias para a medicina. 
 Se as idéias de Pasteur (1822-1895) 
não convenceram logo, também não 
demoraram muito a fazê-lo. Contribuiram para 
isto o surgimento dos postulados de Koch 
(1834-1910), a descoberta consecutiva de 
novas bactérias e o salvamento dramático de 
um
jovem, com o soro anti-rábico, realizado 
por Pasteur em 1885. Em 1889, Behring 
(1854-1917) conseguiu controlar a difteria, em 
crianças doentes, com o soro antidiftérico. 
Assim, a microbiologia tornou-se indiscutível 
na medicina: ao invés de ser apenas um ítem 
da discussão etiológica, passou a interferir na 
conduta sobre a doença. 
O mecanicismo estava presente na 
medicina desde o séc. XVII, com filósofos, 
como Descartes (1596-1650), e naturistas, 
como Hoffmann. Entretanto, para os clínicos, 
da segunda metade do séc. XIX até Pasteur, o 
vitalismo era o pilar das propostas terapêuticas. 
Procurando atuar sobre o conjunto do 
organismo, eles pressupunham existir uma 
inteireza e uma singularidade do ser vivo em 
coerência com uma concepção vitalista de 
organismo. 
Até 1890, o vitalismo foi a fonte de 
argumentação mais utilizada, senão para o 
conjunto das disciplinas da medicina, pelo 
menos, no momento de instituição da 
terapêutica. A partir desta data, a explicação 
mecanicista ganhará ímpeto também neste 
terreno. Igualmente, a concepção ontológica, a 
idéia da doença como um ser independente, 
começou a ganhar espaço. Não mais a doença 
dos clássicos, classificada pelos parentescos 
dos sintomas, mas, mesmo assim, uma 
 
 
62
entidade com existência autônoma que penetra 
o organismo. 
Em 1892, o papel dos germes na 
causação das doenças não provocava mais 
dúvidas, e as propostas terapêuticas 
começavam a se alterar. O micróbio traz uma 
nova cisão para a clínica, entre a causa da 
doença e suas consequências, entre a doença e 
o doente, entre o doente e o remédio. Além 
disso, produz uma divisão dentro do próprio 
organismo, com a pretensão de se atuar de 
maneira localizada, sem afetar o conjunto do 
organismo; essa pretensão só foi possível 
graças à noção do corpo montado em peças 
autônomas, peças que se relacionam em suas 
funções, e não mais, como para os vitalistas, 
aspectos diferentes de um ser indivisível. 
De agora em diante, o remédio passa 
a ser específico para a doença, e não para o 
doente, e mais: específico contra a causa da 
doença, não contra as suas consequências no 
organismo. Assim, a noção de agente 
etiológico criou, definitivamente, a doença 
específica. Esta criação orientou todas as 
demais disciplinas médicas - inclusive a 
fisiopatologia - para a identificação de doenças 
específicas, individualizadas por suas 
etiologias. 
Assim, os livros de terapêutica 
mudaram: a terapêutica deixou de ser uma arte, 
tornou-se uma ciência aplicada. As críticas ao 
emprego de medicamentos foram, até Pasteur, 
mais voltadas para encontrar remédios 
efetivos, para o indivíduo, que não se 
organizassem em extensas listas de medicação 
sintomática. Após a consolidação da teoria 
microbiana, há uma mudança nestas críticas. O 
empirismo começa a ser visto como um 
recurso grosseiro, um fator de atraso. Perde 
importância, assim, a observação à beira do 
leito como uma prioridade para a tomada de 
decisão. A idéia de que a ciência deve guiar o 
médico, impõe-se. 
 
X - Quimioterapia: as “balas mágicas” 
 
A quimioterapia, isto é, a 
farmacologia científica, distante do mundo 
natural, desenvolveu-a o químico Paul Ehrlich 
(1854-1915). Ao pesquisar corantes 
específicos para as diferentes estruturas 
celulares, ele imaginou ser possível sintetizar 
substância químicas capazes de bloquear, 
especificamente, as células dos 
microorganismos patogênicos. 
Em 1881, Ehrlich passou a empregar 
o corante azul de metileno - já aproveitado por 
Robert Koch na identificação do bacilo da 
tuberculose - e, a seguir, desenvolveu um 
corante de alta especificidade para o bacilo de 
Koch. Seu trabalho sobre antitoxinas o 
persuadira de que o corpo podia abrigar 
substâncias letais a microorganismos 
específicos, embora inofensivas sob qualquer 
outro aspecto. Imaginou, então, que esses 
corantes poderiam ser mais do que 
instrumentos de laboratório, fornecer um meio 
específico para atacar micróbios. E partiu em 
busca dessas substâncias químicas, desse 
míssil teleguiado, dessa “bala mágica” dirigida 
apenas contra o germe. 
 
 
63
O primeiro triunfo real deu-se em 
1904, quando, após selecionar numerosos 
corantes de benzopurpurina, Ehrlich chegou ao 
primeiro quimioterápico, o vermelho Trypan, 
com o qual curou camundongos acometidos da 
doença "mal das cadeiras", causada pelo 
tripanossomas. O caráter revolucionário deste 
primeiro composto não obteve repercussão 
social na Europa, pois o composto atuava 
sobre uma doença pouco conhecida. 
Em 1905, Fritz Schaudinn identificou 
a causa da sífilis, o Treponema pallidum . 
Devido à semelhança do treponema com o 
tripanossoma, Ehrlich começou a testar suas 
substâncias sintéticas também contra o 
treponema e, por volta de 1907, já havia 
produzido e selecionado mais de 600 
compostos arsênicos. Em 1909, descobriu-se 
que o composto de nº 606 era tanto ativo 
quanto específico contra o agente da sífilis. A 
nova droga recebeu o nome de Salvarsan e foi 
usada, pela primeira vez, para tratamento da 
sífilis no homem, em 1910. Neste momento, 
surgia a terapêutica de bases científicas, que se 
consolidou com a síntese das primeiras sulfas, 
em 1937. Em 1938, foi introduzida a fenitoína; 
em 1939, a petidina; em 1941, a penicilina; em 
1943, os primeiros derivados da 4-
aminoquinoleína; em 1947, a estreptomicina; 
em 1948, a clortetraciclina e o cloranfenicol; 
em 1951, a isoniazida; em 1951, a 
procainamida, etc. 
Assim, Panacéia voltou à cena e 
trouxe consigo esperanças tão antigas quanto 
as provocadas pela teriaga, que tornaria o 
organismo invulnerável. Que não sejam mais 
ervas colhidas em ocasiões especiais, ou 
chifres de animais, é secundário. O importante 
é que a crença nas drogas voltou de forma 
poderosa e com extrema ampliação de 
expectativas, em relação ao passado: não 
apenas cada homem medicado ver-se-á livre de 
todos as doenças, mas toda a humanidade 
conseguirá resistir às agressões externas. 
 
XI - Do Ceticismo à Onipotência 
 
As pesquisas dos laboratórios 
farmacêuticos se traduziram em substâncias 
que forneceram aos médicos novos 
instrumentos de intervenção, e transformaram 
radicalmente a Medicina. A tecnologia 
terapêutica simboliza o desejo e a capacidade 
de modificar a história natural das doenças e, 
por isso, suas implicações vão muito além de 
uma atividade terapêutica específica. Os 
medicamentos constituem, hoje, um 
instrumento central para a prática médica; são 
o resumo da atitude e das esperanças em 
relação ao curso de uma doença; relacionam-se 
com a compreensão e interpretação das 
doenças e as infinitas possibilidades de cura. 
Em conseqüência, acha-se amplamente 
difundido o sentimento de que "para tudo há 
um remédio" ou, na pior das hipóteses, haverá! 
Tal trajetória - do ceticismo à 
onipotência - não se devem ao 
aperfeiçoamento da terapêutica, mas à 
introdução dos novos conceitos de etiologia, 
evolução e sintomatologia específicas; à 
capacidade de classificar as doenças em 
entidades clínicas distintas e de localizar o 
corpo como sede das doenças. Essas foram 
 
 
64
condições de possibilidade para que Ehrlich 
formulasse o conceito de "bala mágica": uma 
substância química que destruiria germes 
específicos e seria inócua quanto ao restante do 
organismo. 
Tal processo estimulou um grau 
inimaginável de especialização na medicina, 
além da prescrição desnecessária de remédios, 
e estimular a se acreditar que para tudo há um 
remédio, e que todos os “males” têm base 
anatomofisiopatológica. Firmou-se a crença de 
que a medicina antiga matava por ignorância, 
do médico ou da medicina, matava porque não 
era uma verdadeira ciência. Porém, desde o 
começo do século XX, a medicina tornou-se 
perigosa, não na medida de sua ignorância,
mas na medida de seu saber. Surgiram efeitos 
nocivos devidos não a erros de diagnóstico, 
nem à ingestão acidental de alguma substância, 
mas à própria ação da intervenção médica no 
que tem de mais racional. 
Estudos de utilização de 
medicamentos evidenciam distorções comuns 
a quase todos os países. Por exemplo, constata-
se a abundância de produtos desnecessários ou 
com potencial tóxico inaceitável, de prescrição 
injustificada, automedicação, etc. Tais desvios 
ilustram, parcialmente, o grau apenas relativo 
de cientificidade da prática terapêutica. Ou 
seja, a maioria destas condutas mostra-se 
injustificada do ponto de vista científico e sem 
relação com os perfis de morbimortalidade: 
não interrompem o curso das doenças, não 
atingem as causas fundamentais dos estados 
mórbidos e, não raras vezes, sequer aliviam os 
sintomas. De modo geral, as especialidades 
farmacêuticas mais vendidas são os complexos 
vitamínicos, os tônicos, os protetores do 
fígado, as misturas para combater a tosse, 
freqüentemente apresentados como 
combinações em doses fixas. 
Como se sabe, a informação sobre os 
fármacos procede, em sua maior parte, dos 
próprios fabricantes, uma fonte cujo interesse 
comercial supera o sanitário. Assim, 
progressivamente, através de sofisticadas 
estratégias de propaganda, formou-se um 
campo de pressão sobre os médicos e os 
usuários dos serviços de saúde. E a 
necessidade de assegurar uma expansão 
constante do mercado acabou por sobrepor-se 
à necessidade sanitária real. 
 
XII - Remédio também é Cultura 
 
A cultura (como um sistema de 
significados, uma forma de ver o mundo e 
entender a vida) influencia toda experiência 
humana, incluindo o estar doente. Esta 
sentença se nos referimos à população leiga, e 
sobretudo às chamadas populações de "cultura 
exótica", poderá ser aceita sem grande 
resistência. Entretanto, se falamos sobre o 
mundo ocidental industrializado e, afronta 
maior, se nos referimos aos profissionais de 
saúde (ainda mais se são médicos), a afirmação 
de que a cultura influencia decisões e condutas 
pode ser inaceitável. E, no entanto, as práticas 
de saúde são, em todo o mundo (sem 
distinções geográficas ou econômicas), e por 
todo mundo (incluídos os profissionais de 
saúde), sempre mediadas pela cultura. 
 
 
65
Desde o primeiro estudo comparativo 
internacional sobre a utilização de fármacos, 
realizado em 1968, em seis países europeus, é 
possível constatar amplas diferenças nos 
padrões de uso. O desenvolvimento posterior 
do Drug Utilization Research Group (DURG) 
- “Grupo de Pesquisa sobre a Utilização de 
Drogas”, que se vem ampliando desde 1969, 
permitiu desenvolver uma metodologia comum 
e documentar as grandes diferenças na 
regulamentação legal e nos padrões de uso de 
medicamentos. Na Alemanha, Suíça, Grã-
Bretanha, Itália e Espanha o número de 
produtos comercializados oscila entre 10.000 e 
30.000, comparado com os 2.000 a 3.000 dos 
mercados dos Países Nórdicos. Para o conjunto 
de anti-hipertensivos, observa-se uma 
diferença de quase três vezes no uso destes 
produtos entre a Suécia (que apresenta as cifras 
mais altas) e a antiga Tcheco-Eslováquia. Não 
existem razões para acreditar serem as 
diferenças de morbidade uma explicação 
razoável para estas discrepâncias; que 
refletem, principalmente, as variações culturais 
entre os diversos países. 
Por exemplo, a influência das 
tradições profissionais está presente na 
aceitação, na Alemanha, da combinação de 
remédios, que médicos ingleses considerariam 
“não-científica” e, em alguns casos, pouco 
segura. Na França, tal como entre nós, o BCG 
é considerado uma imunização obrigatória 
contra formas graves de tuberculose; nos 
Estados Unidos é quase impossível encontrar 
esse produto. Entre os franceses, uma das 
classes de drogas mais comumente prescritas 
são os chamados vasodilatadores cerebrais; 
não há qualquer pesquisa científica que 
sustente esta suposição, e estes medicamentos 
em nenhum outro lugar do mundo são usados 
com igual freqüência. 
Outra prática muito comum é a 
prescrição de lactobacilus toda vez que se 
receita um antibiótico, supostamente para 
prevenir efeitos colaterais sobre o aparelho 
digestivo. Esta prática teve sua origem com 
Ilya Metchnikoff, cientista russo que viveu na 
França e recebeu um Prêmio Nobel. 
Metchnikoff, viveu na era pré-antibiótico e 
acreditava que o segredo da eterna juventude 
estaria no iogurte búlgaro. Quando os 
antibióticos foram descobertos, demonstrou-se 
que eles mudavam a composição da flora 
bacteriana do trato intestinal; surgiu a idéia de 
repor a "boa" bactéria destruída pelas drogas 
com o lactobacilus, cuja imagem era muito 
positiva, graças a Metchnikoff. Até hoje, no 
entanto, nenhum ensaio clínico demonstrou 
que a "boa" bactéria é reposta no intestino, 
mais rapidamente, com o lactobacilus do que 
sem ele. Porque, então, a prática de prescrever 
lactobacilus e iogurte permanece? É que, se 
não faz efeito, faz sentido. 
Falta de apetite é um dos mais sérios 
sintomas para um francês. Enquanto muitos 
americanos conhecem seus fígados apenas 
quando têm hepatite ou cirrose, os franceses se 
preocupam com esse órgão todo o tempo. Os 
franceses, sobretudo na região da Provence, 
atribuem uma ampla variedade de problemas 
ao aparelho digestivo e, principalmente, ao 
fígado: crises de enxaqueca, dismenorréia, 
acne, palidez e fadiga. As mães explicam a 
lerdeza de suas crianças como um 
"temperamento hepático", e a cinetose (náusea 
associada a viagens) é igualmente atribuída ao 
 
 
66
fígado. Também se atribuem ao órgão 
depressões nervosas, palpitações, queda de 
pressão arterial, insônia e desmaios. Na 
França, crise de foie reforça o significado 
social do ato de comer e beber; traduz a 
qualidade superior da comida francesa. 
Embora o consumo de drogas para o fígado 
tenha caído bastante nos últimos anos, 
permanecem algumas conseqüências dessa 
preocupação. Por exemplo: cerca de 7,5% das 
drogas francesas, de aspirina a antibióticos, 
têm a forma de supositórios, comparado com 
1% nos EUA. Desta forma, as drogas são 
absorvidas sem passar pelo fígado; enquanto 
uma anemia comum, na Inglaterra ou na 
América, seria tratada com ferro, na França, o 
paciente deverá receber uma prescrição de 
vitamina B12 (tratamento mais próprio para 
anemia perniciosa, um quadro raro na França), 
vitamina isolada de extratos hepáticos, ou 
mesmo um extrato hepático. 
De uma maneira geral, os médicos da 
antiga Alemanha Ocidental parecem ser 
cuidadosos com a prescrição de medicamentos. 
Com relação aos antibióticos, por exemplo, um 
grande número de profissionais só os 
prescrevem se o quadro do paciente exige a 
internação em um hospital. Entretanto, os 
alemães são extremamente pródigos no 
consumo de tecnologia cardiológica. Os 
pacientes alemães fazem três vezes mais 
eletrocardiogramas do que os americanos, e os 
médicos alemães prescrevem seis a sete vezes 
a quantidade de digitálicos utilizada por 
franceses e ingleses, embora a prevalência de 
doenças cardiovasculares nestes países seja 
aproximadamente a mesma. À luz de uma 
medicina científica, praticada em países 
desenvolvidos como estes, o que justificaria tal 
discrepância? 
No início do século passado, houve, 
na Alemanha, um movimento chamado 
"medicina romântica", que nada mais era do 
que a vertente médica de um outro, muito mais 
amplo - literário, musical, filosófico - chamado 
Romantismo. Este movimento, de oposição ao 
cartesianismo, valorizava o sentimento contra 
a razão. Ao invés de ver o mundo como uma 
máquina, o Romantismo o via como um 
organismo, uma síntese de forças opostas. 
Assim, filósofos e cientistas alemães 
desenvolveram explicações baseadas na 
relação entre positivo e negativo, atração e 
repulsão, centrífugo
e centrípeto, expansão e 
contração, oxidação e redução, tese e antítese. 
Há mais de um século, os alemães 
deixaram de falar em "medicina romântica", 
mas muito do seu pensamento sobre medicina, 
sobre saúde e doença, parece estar determinado 
por um entendimento, digamos, "romântico", 
do corpo humano e do processo de adoecer, 
entendimento em que o coração desempenha 
um papel central. Por exemplo, em alemão não 
existe um termo técnico para "dor no peito", o 
que leva médicos e pacientes a, em qualquer 
caso de dor torácica, referir-se a "dor no 
coração". Quando um clínico alemão se refere 
a um caso de "insuficiência cardíaca", pode 
simplesmente estar diante de um paciente sem 
dispnéia de esforço, com eletrocardiograma e 
Rx de tórax normais, mas que alega desânimo 
e cansaço. Por isso, os digitálicos - substâncias 
que aumentam a força de contração do 
músculo cardíaco - são usados como tônicos, 
em baixas dosagens, na ausência de dispnéia e 
 
 
67
na presença de eletrocardiograma normal, 
quase de modo profilático. 
O Romantismo também explica outro 
grupo de diagnósticos peculiares entre os 
alemães: pressão baixa (uma condição sequer 
mencionada em ensaios americanos), colapso 
circulatório e distonia vasovegetativa, 
diagnósticos referentes à circulação. A pressão 
baixa, hoje em dia, não é considerada doença 
mas, ao contrário, algo que contribui para a 
longevidade. Entretanto, num catálogo alemão 
de drogas, existem 85 fármacos para o 
tratamento de pressão baixa. 
As diferenças de padrão de 
prescrição entre os diversos países se 
sustentam em profundas variações na cultura 
médica, mais do que apenas em efeitos de 
diferentes preços e políticas de controle de 
lucros. As diferenças na assistência à saúde 
entre as nações não se explicam simplesmente 
por fatores econômicos ou pelo perfil de saúde 
da população. Os valores culturais do médico, 
do paciente e da sociedade também são 
influências importantes. 
 
 
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