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O caso dos denunciantes invejosos

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O CASO DOS 
DENUNCIANTES INVEJOSOS 
 
 
DIMITRI DIMOULIS 
 
 
 
 
 
 
 
O CASO DOS 
DENUNCIANTES INVEJOSOS 
 
 
 
 
 
Introdução prática às relações 
entre direito, moral e justiça 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Com a tradução de texto de LON L. FULLER, 
parte da obra The morality of law 
 
 
 
 
 
 
 
 
4ª edição revista e atualizada 
O CASO DOS 
DENUNCIANTES INVEJOSOS 
Introdução prática às relações 
entre direito, moral e justiça 
 
Com a tradução de texto de 
LON L. FULLER, 
parte da obra The morality of law 
 
4.ª edição revista e atualizada 
Original da edição The morality of law, 
revised edition, p. 245 a 253, Lon L. Fuller, 
New Haven and London, Yale University Press, 1969 
 
© 1964 byYale University, revised edition copyright 
© 1969 byYale University 
 
1.ª edição- 2003; 2.ª edição - 2005; 3.ª edição - 2006. 
 
© desta edição 
[2007] 
 
EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. 
CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO 
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multa, busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 
19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). 
 
Impresso no Brasil 
[07-2007] 
 
Universitário 
(complementar) 
 
Revisto e atualizado até [06-2007] 
 
 
 
ISBN 978-85-203-3106-4 
SUMÁRIO 
 
 
 
APRESENTAÇÃO - DIMITRI DIMOULIS ............................................................................. 7 
1. Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos ............................... 7 
2. Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a “justiça de transição” ...................... 10 
3. Direito positivo ou direito justo? .......................................................................................... 16 
NOTA EXPLICATIVA - DIMITRI DIMOULIS .................................................................... 25 
 
 
PRIMEIRA PARTE 
 
O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS - LON L.FULLER .......................................... 29 
 Primeiro Deputado ................................................................................................................... 35 
 Segundo Deputado ................................................................................................................... 37 
 Terceiro Deputado ................................................................................................................... 39 
 Quarto Deputado ..................................................................................................................... 43 
 Quinto Deputado ..................................................................................................................... 45 
 
 
SEGUNDA PARTE 
 
CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS - 
DIMITRI DIMOULIS ................................................................................................................... 49 
Opinião do Prof. Goldenage ..................................................................................................... 53 
Opinião do Prof. Wendelin ....................................................................................................... 61 
Opinião da Profa. Sting ............................................................................................................ 67 
Opinião do Prof. Satene ............................................................................................................ 73 
Opinião da Profa. Bernadotti .................................................................................................... 81 
 
 
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 89 
 
 
 
 
 
 
APRESENTAÇÃO
1
 
 
 
 
1. Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos 
 
Lon Luvois Fuller (1902-1978) nasceu em Hereford no Estado do Texas.
2
 Estudou 
economia e direito em Stanford e atuou como professor de teoria geral do direito, inicialmente 
nas Faculdades de Direito de Oregon, Illinois e Duke e, a partir de 1940, na renomada 
Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, onde trabalhou até 1972. 
Fuller publicou muitas obras de direito civil, de filosofia e de teoria do direito. 
Deve, porém, sua fama a um breve ensaio intitulado O caso dos exploradores de cavernas. 
Esse trabalho, publicado pela primeira vez em 1949, foi lido e comentado por estudantes e 
professores de direito em todo o mundo, tendo sido inclusive traduzido para vários idiomas. A 
tradução para o português, publicada pela primeira vez em 1976, obteve um considerável 
sucesso editorial.
3
 [pg. 7] 
No referido ensaio, Fuller apresenta um caso imaginário. Cinco cientistas ficam 
presos em uma caverna sem alimentos suficientes para sobreviver até que o resgate desobstrua 
a entrada. Quatro entre eles decidem matar o quinto colega para que possam se alimentar, 
sendo esta a única possibilidade para salvar as próprias vidas. Será que eles devem ser 
punidos por homicídio doloso? 
A história lembra mais o roteiro de um filme do que um sóbrio estudo de filosofia 
do direito. Na realidade, Fuller não quer divertir nem apavorar o leitor. Seu objetivo é 
provocar uma discussão sobre o que é justo e injusto, ou seja, uma discussão sobre o que é 
direito. O autor não oferece uma resposta definitiva. Limita-se a expor várias opiniões sobre 
uma possível condenação dos quatro exploradores e nos convida a refletir sobre o caso, 
discutindo estas opiniões. 
Lon Fuller publicou em 1964 sua mais profunda e original obra, intitulada The 
morality of law (A moralidade do direito). Essa publicação causou um grande interesse, tendo 
sido comentada pelos mais importantes filósofos do direito e reeditada diversas vezes.
4
 
Nessa obra encontramos uma inovadora análise das relações entre o direito e a 
moral. Fuller adotou uma posição moralista, propondo a definição e aplicação do direito 
positivo à luz das aspirações morais. Segundo o autor, as normas de conduta e de sanção que 
 
1
 Pela leitura crítica do presente volume e pelas preciosas sugestões agradeço à professora Ana Lucia Sabadell e 
aos professores André Ramos Tavares e Theodomiro Dias Neto. 
2
 Sobre a vida e a atuação acadêmica de Lon Fuller, cf. SUMMERS, Robert. Lon L. Fuller. Stanford: Stanford 
University Press, 1984. p. 3-13. 
3
 FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Fabris, 1999. Nova tradução em: 
FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. São Paulo: Leud, 2003. 
4
 Utilizamos a 29.ª reimpressão da segunda edição da obra: FULLER, Lon L. The morality of
law. New Haven: 
Yale University Press, 1969. Sobre os posicionamentos teóricos de Fuller cf. SUMMERS, Robert. Lon L. Fuller. 
Stanford: Stanford University Press, 1984; ALDAY, Rafael Escudero. Positivismo y moral interna del derecho. 
Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2000. 
são criadas pelo Estado só merecem [pg. 8] o nome “Direito” quando satisfazem certos 
requisitos de qualidade que ele denominou moralidade interna do direito (publicidade das 
normas, generalidade, estabilidade no tempo, não retroatividade etc.). 
Fuller destacou-se, assim, como um dos principais contestadores do filósofo do 
direito Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992) que sustentava, no mesmo período, as 
posições do positivismo jurídico.
5
 
Em A moralidade do direito Fuller incluiu um texto intitulado O problema do 
Denunciante Invejoso. O autor informa que utilizou esse texto como material de apoio em 
seus cursos de teoria do direito e também como introdução à problemática jurídica, 
distribuindo esse mesmo texto entre os alunos de primeiro ano da Faculdade de Direito de 
Harvard, onde ele ministrava a disciplina de introdução ao direito.
6
 [pg. 9] 
Fuller apresenta nesse texto um caso que é bastante diferente do caso dos 
Exploradores de Cavernas. Durante uma ditadura, muitas pessoas denunciaram seus inimigos 
sabendo que os tribunais do país, aplicando a legislação da época, pronunciariam a pena de 
morte para delitos que, objetivamente, não eram graves. Após a queda do regime ditatorial, os 
denunciantes, que Fuller chama de “invejosos”, foram objeto de execração popular. Ainda que 
os denunciantes não tivessem cometido nenhum delito, pois só levaram a conhecimento das 
autoridades fatos puníveis segundo a legislação em vigor, muitas pessoas exigiram sua 
punição. 
 
 
2. Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a “justiça de transição” 
 
O caso dos Denunciantes Invejosos é imaginário. Foi pensado por Fuller que 
possuía um “talento mitopoético”, como observou Herbert Hart.7 Mesmo assim, Fuller 
elaborou o caso com base na experiência das ditaduras do século XX e, principalmente, do 
regime nazista na Alemanha.
8
 Essas ditaduras se apresentavam formalmente como Estados de 
Direito, possuindo uma Constituição e um sistema de leis não muito diferentes daquelas dos 
países democráticos. 
Os regimes democráticos que sucederam às ditaduras enfrentaram o dilema que 
aponta Lon Fuller no caso dos De- [pg. 10] nunciantes Invejosos: perdoar ou punir os crimes, 
os excessos de violência e as injustiças ocorridas durante as ditaduras? Temos aqui um 
problema conhecido como justiça de transição (transitional justice). 
A justiça de transição se define como “um processo de julgamentos, depurações e 
reparações que se realizam após a mudança de um regime político para um outro”.9 
 
5
 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994; Essays 
in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. A polêmica entre Hart e Fuller iniciou-se com 
a publicação do seguinte texto: HART, Herbert Lionel Adolphus. Positivism and the separation of law and 
morals. Harvard Law Review, v. 71, n. 4, 1958. p. 593-629. A resposta de Fuller encontra-se em: FULLER, Lon 
L. Positivism and fidelity to law. A reply to professor Hart. Harvard Law Review, v. 71, n. 4,1958. p. 630-672. 
Sobre a controvérsia entre juspositivistas e moralistas em relação à validade do direito injusto, cf. MERTENS, 
Thomas. Radbruch and Hart on the grudge informer: a reconsideration. Ratio juris, v. 15, n. 2, 2002. p. 186-205; 
HALDEMANN, Frank. Gustav Radbruch vs. Hans Kelsen. A debate on Nazi law. Ratio juris, v. 18, n. 2, 2005. 
p. 162-178. 
6
 FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven: Yale University Press, 1969. p. vii. 
7
 HART, Herbert Lionel Adolphus. Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. p. 363. 
8
 Cf. a análise de casos similares que foram levados a julgamento na Alemanha após a queda do nazismo em: 
MERTENS, Thomas. Radbruch and Hart on the grudge informer: a reconsideration. Ratio juris, v. 15, n. 2, 
2002. p. 186-205; FREUND, Christiane. Rechtsbeugung durch Verletzung übergesetzlichen Rechts. Berlin: 
Duncker und Humblot, 2006, p. 129-134. 
9
 ELSTER, Jon. Closing the books. Transitional justice in historical perspective. Cambridge: Cambridge 
University Press, 2004. p. 1. 
Dependendo do país e do momento histórico, foram adotadas várias soluções, analisadas em 
uma longa série de recentes estudos.
10
 
Em alguns países os responsáveis decidiram “esquecer” o passado, colocando 
“um ponto final”. Foi assim concedida uma ampla anistia, ou seja, um perdão geral aos 
responsáveis e aos colaboradores dos regimes ditatoriais. Esse foi o caminho seguido em 
alguns países da Europa e da América Latina, incluindo o Brasil. [pg. 11] 
 Em outros países foi decidido processar os golpistas e os responsáveis pelos 
males causados durante as ditaduras. Quem foi acusado como colaborador do regime se 
defendeu com cinco argumentos básicos: 
• o réu simplesmente aplicava o direito em vigor (argumento da legalidade); 
• o réu acatava ordens dadas por seus superiores hierárquicos, cumprindo com 
seus deveres; não cabia a ele examinar a legalidade das ordens ou as verdadeiras intenções de 
seus superiores (argumento do dever legal); 
• se o réu não tivesse colaborado aos crimes do regime, teria sido gravemente 
punido ou exposto a perseguições junto a seus familiares, algo que ninguém pode exigir de 
uma pessoa comum (argumento da inexigibilidade de conduta diversa); 
• se o réu não tivesse executado as ordens dadas os ditadores poderiam encontrar 
facilmente outras pessoas que teriam atuado da mesma forma ou até com maior dureza 
(argumento da fungibilidade); 
• a conduta do réu é um verdadeiro detalhe diante das incontáveis atrocidades de 
uma ditadura; sua punição significaria simplesmente que se encontrou um bode expiatório 
(argumento da insignificância). 
Ora, esses argumentos deveriam levar à absolvição de praticamente todos os 
acusados, considerando como únicos culpados o restrito grupo dos chefes da ditadura dos 
quais emanavam todas as ordens! 
A problemática foi tratada na Alemanha em uma ampla jurisprudência após o fim 
da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A maioria dos tribunais alemães descartou o 
argumento [pg. 12] da legalidade do regime nazista com dois argumentos. Em primeiro lugar, 
foi considerado que as normas jurídicas que contrariam o sentimento de humanidade e de 
justiça não possuem validade jurídica. Em segundo lugar, foi considerado que as graves 
violações dos direitos humanos, e principalmente os crimes de guerra e os crimes contra a 
humanidade (exemplos: genocídio; perseguição por motivos religiosos, étnicos, políticos ou 
de orientação sexual; guerra imperialista), devem ser punidos por tribunais nacionais e 
internacionais. Para tanto, foi necessário criar algumas leis penais retroativas, violando o 
princípio da legalidade e provocando críticas e reações. Mesmo assim, as estatísticas indicam 
que a maioria dos colaboradores do regime permaneceu impune, já que grande parte dos 
políticos e dos integrantes do poder judiciário não considerou adequada a punição, em parte 
porque tinham simpatias com o regime nazista, em parte porque consideravam preferível 
pacificar o país.
11
 
 
10
 Ver a apresentação das soluções dadas em vários países em: KRITZ, Neil (Org.). Transitional justice: how 
emerging democracies reckon with former regimes. Washington: United States Institute for Peace Press, 1995. 3 
vol.; ESER, Albin;
SIEBER, Ulrich; ARNOLD, lorg (Orgs.). Strafrecht in Reaktion auf Systemunrecht. 
Freiburg-Berlin: MPI-Duncker und Humblot, 2000-2006, 10 vol.. Cf. as discussões em: ELSTER, Jon. Closing 
the books. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; TEITEL, Ruti. Transitional justice. Oxford: Oxford 
University Press, 2000; MINOW, Martha. Between vengeance and forgiveness. Boston: BeaconPress, 1999; 
MCADAMS, A. lames (Org.). Transitional justice and the rule of law in new democracies. Notre Dame: 
University of Notre Dame Press, 1997; AMBOS, Kai. Impunidad y derecho penal internacional. Buenos Aires: 
Ad hoc, 1999; SMITH, Gary; MARGALIT, Avishai (Orgs.). Amnestie oder die Politik der Erinnerung in der 
Demokratie. Frankfurt: Suhrkamp, 1997. 
11
 GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg. 1945-1946. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; NINO, 
Carlos Santiago. Radical evil on trial. New Haven: Yale University Press, 1998; RATNER, Steven; ABRAMS, 
Uma situação em parte semelhante verificou-se após a queda do regime socialista 
da Alemanha Oriental em 1989 e a incorporação daquele país na Alemanha Ocidental. Os 
tribunais ocidentais decidiram sobre centenas de casos de responsáveis [pg. 13] políticos, 
militares, juízes, outros funcionários e colaboradores do regime socialista, acusados de terem 
provocado a morte, privado a liberdade ou causado graves prejuízos materiais e morais a 
opositores políticos. 
O caso mais notório foi aquele dos “atiradores do Muro” (Mauerschützen). 
Tratava-se de soldados responsáveis pela guarda do Muro de Berlim que separava a parte 
ocidental da parte oriental da cidade. Os soldados do Muro recebiam ordem de atirar contra 
qualquer pessoa que tentasse passar, sem autorização, para o setor ocidental da cidade de 
Berlim. Dezenas de pessoas morreram ou foram feridas na tentativa de atravessar 
“ilegalmente” esta fronteira. 
Processados após a anexação da Alemanha socialista (DDR), os soldados 
defenderam sua inocência alegando que: primeiro, executavam ordens de seus superiores; 
segundo, a obrigação de atirar contra quem tentasse fugir do país era prevista em lei; terceiro, 
eventual descumprimento dos deveres militares os exporia a duras punições. 
Mesmo assim, muitos tribunais da Alemanha Ocidental, incluindo o próprio 
Tribunal Constitucional Federal, consideraram que as leis e as ordens dadas nesse sentido 
eram nulas. Primeiro, porque eram manifestadamente injustas e, segundo, violavam tratados 
internacionais assinados pela Alemanha socialista e assegurando o direito à vida e à livre 
circulação das pessoas. Houve assim condenações de soldados e funcionários do regime 
socialista. 
Esses casos reanimaram o debate acerca da postura do aplicador do direito perante 
“leis injustas” e provocaram novas polêmicas entre os estudiosos. Existe um direito superior 
ao direito legislado (“direito supralegal”) ou mesmo um direito superior a todo o direito 
positivo (“direito suprapositivo”)? O [pg. 14] que ocorre exatamente se esse direito entrar em 
conflito com o direito positivo? Alguns juristas aplaudiram a postura dos tribunais alemães 
por terem posto a justiça acima do direito em vigor. Outros se mostraram mais céticos, 
considerando que seria preferível perdoar. Como podia o soldado que acatava ordens legais 
pensar que após uma mudança de regime viria a ser punido por ter obedecido às leis de seu 
país? Outros, finalmente, formularam duras críticas contra essa jurisprudência. Sustentaram 
que, quando há mudança de regime, os atuais donos do poder querem simplesmente se vingar 
de seus adversários derrotados e aplicam uma “justiça dos vencedores” (Siegerjustiz) com o 
pretexto de que só eles criam e aplicam o verdadeiro direito, o direito justo.
12
 
 
Jason. Accountability for human rights atrocities in international law. Beyond the Nuremberg Legacy. Oxford: 
Oxford University Press, 2001; HANKEL, Gerd; STUBY, Gerhard. Strafgerichte gegen 
Menschheitsverbrechen. Hamburg: Hamburger Edition, 1995; REDAKTION KRITSCHE JUSTIZ (Org.). Die 
juristische Aufarbeitung des Unrechts-Staats. Baden-Baden: Nomos, 1998. p. 265-322 e 383-687; MIQUEL, 
Mare von. Ahnden oder amnestieren? Gottingen: Wallstein, 2004. 
12
 Sobre as posições sustentadas na doutrina e na jurisprudência alemã acerca da questão cf,: ALEXY, Robert. 
Mauerschützen. Zum Verhältnis von Recht, Moral und Strafbarkeit. Hamburg: Joachim Jungius-Gesellschaft der 
Wissenschaften, 1993; ALEXY, Robert. Derecho injusto, retroactividad y principio de legalidad penal. Doxa, 
23/197 - 230, 2000; JAKOBS, Günther. Crímenes del Estado- ilegalidad en el Estado. Doxa, 17-18/445-
467,1995; JAKOBS, Günther. Superación del pasado mediante el derecho penal? Anuário de derecho penal y 
ciencias penales, 2/137 -158, 1994; NEUMANN, Ulfrid. Positivismo jurídico, realismo jurídico y moralismo 
jurídico en el debate sobre “delincuencia estatal” en la antigua RDA. Doxa, 17-18/435-444, 1995; SEIDEL, 
Knut. Rechtsphilosophische Aspekte der “Mauerschützen” -Prozesse. Berlin: Duncker & Humblot, 1999; 
MARXEN, Klaus; WERLE, Gerhard (Orgs.). Die strafreehtliche Aufarbeitung von DDR-Unrecht: Eine Bilanz. 
Berlin: Walter de Gruyter, 1999; FREUND, Christiane. Reehtsbeugung dureh Verletzung übergesetzliehen 
Rechts. Berlin: Duncker und Humblot, 2006; DIECKMANN, Hubertus-Emmanuel. Überpositives Reeht als 
Prüfungsmabstab im Geltungsbereich des Grundgesetzes? Berlin: Duncker und Humblot, 2006. 
O texto de Fuller discute a rica e complexa temática da “justiça de transição” e 
pode ser de grande utilidade para os [pg. 15] estudantes de direito.
13
 Com efeito, o problema 
dos Denunciantes Invejosos permite refletir sobre uma questão de particular importância, 
analisada nas aulas de introdução ao estudo do direito e, com maior profundidade, nos cursos 
de filosofia e de teoria do direito. Trata-se da relação entre direito, justiça e moral. 
 
 
 
3. Direito positivo ou direito justo? 
 
Em tomo da definição da justiça e da moral se desenvolvem intermináveis 
controvérsias.
14
 Mesmo assim, a maioria dos doutrinadores modernos considera que a questão 
da justiça se confunde com a questão da moral. A moral estabelece os comportamentos 
'justos”, ou seja, os comportamentos adequados e aceitos em determinada sociedade. Nesse 
sentido, a moral impõe aos membros da sociedade determinados padrões de comportamento, 
seguindo o critério do justo. Por sua vez, a pessoa que é moralmente correta deve fazer o justo 
adotando regras de comportamento conforme o ideal da justiça social.
15
 [pg. 16] 
 Em palavras mais simples, a moral se identifica com a justiça no campo jurídico 
porque nunca aquilo que é imoral pode ser considerado justo, nem aquilo que é visto como 
injusto pode ser considerado como moralmente correto. 
Dessa maneira, um dos principais problemas da teoria e da filosofia do direito 
envolve as relações entre o comportamento legalmente imposto (ou permitido) e o 
comportamento que é considerado moralmente justo. O que deve acontecer quando uma 
norma jurídica se revela injusta porque contraria as opiniões da sociedade sobre o correto e o 
adequado? O que deve fazer o intérprete do direito quando as normas em vigor levam a 
resultados injustos ou inaceitáveis? O que deve ocorrer quando o direito do passado passa a 
ser considerado como injusto ou imoral? Deve ser punido quem criou e aplicou esse direito 
tido como injusto? 
Muitas vezes constatamos um forte descompasso entre os mandamentos do 
legislador e a solução que é considerada justa pelo intérprete do direito ou pela maioria da 
população. 
Em primeiro lugar, o
descompasso pode ser devido às insuficiências do legislador. 
Isso ocorre quando o regulamento genérico não se ajusta a um caso concreto
16
 ou quando a 
evolução social tomou insatisfatório o próprio regulamento.
17
 [pg. 17] 
 
13
 No Brasil foi realizado um limitado debate sobre a validade de leis criadas pela ditadura militar e, em particular, 
da Lei 6.683 de 28.08.1979 que concedeu anistia para todos os crimes de natureza política cometidos durante a 
ditadura. Cf. os artigos de Fábio Konder Comparato, José Carlos Dias e Hélio Bicudo em: TELES, Janaína (Org.). 
Mortos e desaparecidos políticos. Reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas, 2001. p. 55-63, 65-67, 69-72, 
77-79, 85-87. Uma profunda análise encontra-se em SWENSSON Jr., Lauro Joppert. Anistia penal. Problemas de 
validade da lei de anistia brasileira (Lei 6.683 de 1979). Curitiba: Juruá, 2007 (no prelo). 
14
 Cf. as referências em DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: RT, 2007. 
p. 104-118, 130-155. 
15
 DAUCHY, Pierre. Moral. In: ARNAUD, André-Jean (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e de 
sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 506-508; JESTAZ, Philippe. Le droit. Paris: Dalloz, 
2002. p. 33; KOLLER, Peter. Theorie des Rechts. Eine Einführung. Wien: Bühlau, 1997. p. 255-316; ATIENZA, 
Manuel. El sentido del derecho. Barcelona: Ariel, 2003. p. 173, 184; ALEXY, Robert. La institucionalización de 
la justicia. Granada: Comares, 2005. p. 22. 
16
 Exemplo: o legislador pune o furto mesmo quando o valor da coisa é pequeno (art. 155, § 2. o, do Código 
Penal). Devemos considerar que comete esse crime mesmo quem furta um objeto de valor ínfimo, por exemplo, 
um chiclete? 
Em segundo lugar, o descompasso entre o legalmente imposto e aquilo que é 
considerado justo pode ser devido a uma legislação que protege os interesses políticos e 
econômicos de determinados grupos sociais, prejudicando a maioria da população.
18
 
Finalmente, esse descompasso pode ser devido ao exercício do poder por 
governos autoritários que oprimem os direitos fundamentais da maioria. Esse é o caso das 
ditaduras do século XX, que causaram injustiças e discriminações por meio de leis e decisões 
administrativas.
19
 
Os problemas não terminam por aqui. Mesmo quando as decisões do legislador 
parecem justas e adequadas, encontramos na sociedade opiniões divergentes sobre o exato 
conteúdo das leis. Todos concordam, por exemplo, que o homicídio é um ato de extrema 
gravidade e o legislador atuou corretamente quando o tipificou como crime. Não há, porém, 
acordo geral sobre a pena adequada. Cada vez que a mídia noticia um homicídio grave, uma 
parte das autoridades políticas e dos cidadãos pede uma punição muito mais dura do que 
aquela prevista pela lei penal, existindo, inclusive, propostas de introduzir a [pg. 18] prisão 
perpétua e a pena de morte, ambas vetadas no Brasil pela Constituição Federal de 1988 (art. 
5.º, XLVII). 
Segundo uma outra opinião as penas criminais não resolvem os problemas sociais; 
impõem aos condenados inúteis sofrimentos, não ressocializam e, muitas vezes, o meio 
carcerário transforma o condenado em criminoso profissional. Por isso, sustenta-se que, 
mesmo em caso de crimes graves, seria necessário aplicar penas alternativas, priorizando a 
reeducação dos infratores. Seria também necessário oferecer apoio às vítimas e, sobretudo, 
aplicar políticas sociais para diminuir a marginalização de certos grupos da população, que 
em última instância, é o que propicia ações violentas e desesperadas. Nessa perspectiva, o 
único que não resolve os problemas e os conflitos é a punição. 
Constatamos, assim, que em muitos casos o sentimento de justiça encontra-se em 
descompasso com as previsões legais. Isso pode decepcionar quem inicia o estudo do direito, 
tendo o desejo de atuar para que a justiça triunfe e para que os conflitos sociais sejam 
resolvidos da melhor forma possível. Esse desejo de justiça é louvável, mas não pode ser 
realizado na vida real. Vivemos em sociedades complexas, em que se constatam contínuos 
conflitos entre interesses e ideologias. É impossível encontrar soluções que satisfaçam a 
todos: a solução que é considerada justa (e agradável) por determinadas camadas da 
população recebe, necessariamente, as críticas das demais... 
Isso não deve causar estranheza, já que as leis são editadas após negociação 
política e votação nas casas legislativas, existindo uma minoria que “perde” e, portanto, tem 
seus interesses prejudicados. O legislador deve sempre decidir. E decidir [pg. 19] significa 
escolher entre opiniões contrárias, descontentando uma parte dos cidadãos.
20
 
Nesse sentido, sempre haverá um descompasso entre o direito em vigor (direito 
positivo) e as opiniões de cada pessoa ou grupo sobre a justiça. O problema torna-se mais 
agudo quando a aplicação de uma lei não só desagrada alguns, mas se revela claramente 
injusta ou inadequada. O que fazer, por exemplo, quando uma ditadura priva os cidadãos de 
suas liberdades, quando um governo conservador cria leis que discriminam os negros ou as 
 
17
 Exemplo: o art. 124 do Código Penal, em vigor desde 1940, pune o aborto mesmo quando for realizado a 
pedido de uma gestante que enfrenta sérios problemas psicológicos, financeiros etc. e não pode criar o filho. Em 
nossos dias, as autoridades do Estado praticamente deixaram de perseguir quem realiza aborto em tais condições. 
18
 O mais conhecido exemplo é a legislação tributária, criticada por distribuir os impostos de forma injusta. Essa 
crítica é pertinente, já que, no Brasil, os trabalhadores assalariados assumem a maior parte da carga tributária. 
19
 Exemplo: o Ato Institucional 5, de 13.12.1968, que conferiu ao Presidente da República o poder de “suspender 
os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos”, quando isso estivesse “no 
interesse de preservar a Revolução” (os militares denominavam a ditadura de “Revolução”). 
20
 O verbo “decidir” provém do latim decido, que significa cortar. Quem decide toma uma posição definitiva no 
conflito de interesses e de opiniões. “Dá um corte” e põe um termo às controvérsias. 
mulheres ou, ainda, quando um governo, na tentativa de enfrentar uma verdadeira ou suposta 
“crise econômica”, corta os benefícios sociais dos trabalhadores, aumentando a miséria? 
Diante desses problemas os filósofos do direito adotam duas posições principais: 
alguns optam pela “tese da separação” entre o direito e a moral; outros consideram que existe 
uma forte relação entre o direito e a moral, abraçando a “tese da conexão”.21 
A tese da separação encontra-se nas abordagens positivistas. O positivismo 
jurídico afirma que o direito é um fenômeno normativo diferente das obrigações morais. 
Quando o operador do direito interpreta as normas jurídicas, não deve [pg. 20] levar em 
consideração as exigências morais. Deve interessar-se exclusivamente pelas normas que 
possuem validade dentro do sistema jurídico, fundamentando-se na Constituição e nas demais 
normas criadas pelas autoridades estatais. Em outras palavras, o direito em vigor deve ser 
aplicado de forma rígida, sem que o operador jurídico se deixe influenciar pela sua opinião 
pessoal ou mesmo pela opinião da maioria da sociedade sobre o correto, o justo e o adequado. 
Os partidários do positivismo jurídico lembram que, em cada sociedade, existem 
muitos sistemas de regras morais e muitas opiniões divergentes sobre o justo e o correto. Isso 
significa que se o direito
fosse aplicado conforme a opinião de cada intérprete, teríamos um 
verdadeiro caos, sendo destruída a segurança jurídica.
22
 Cada um aplicaria o direito segundo 
sua visão subjetiva. Os positivistas pensam que, quando o direito se revela injusto ou 
inadequado, a solução está na sensibilização do legislador e na luta política para que sejam 
reformadas ou abolidas as leis injustas ou inadequadas. 
A tese da conexão entre direito e moral caracteriza as abordagens moralistas. 
Seus partidários entendem que o operador do direito deve harmonizar os preceitos morais com 
as normas jurídicas, já que a finalidade do sistema jurídico é encontrar em cada caso uma 
solução justa e aceita pelos membros da sociedade. Segundo essa visão, o direito não é 
simplesmente um conjunto de normas criadas pelo legislador, mas integra os mandamentos 
morais aceitos pela sociedade. [pg. 21] 
A abordagem moralista chega a duas conclusões. Em primeiro lugar, sustenta que 
uma norma jurídica é válida somente quando respeita os princípios básicos da moral. Em caso 
de forte contradição entre a norma jurídica e as exigências de justiça, a norma deve ser 
considerada inválida. Esse é o moralismo da validade, que faz depender a validade de uma 
norma jurídica de sua concordância com as exigências básicas da moral. 
Em segundo lugar, os moralistas sustentam que o direito deve ser interpretado em 
conformidade com os preceitos morais. Fica a cargo do intérprete e, sobretudo, do juiz a 
harmonização das normas em vigor com as exigências da moral e com os ideais da justiça. 
Esse é o moralismo da interpretação que propõe interpretar e aplicar as normas jurídicas 
segundo exigências morais. 
Existe, também, uma terceira abordagem sobre o direito, que é conhecida como 
realismo jurídico.
23
 Os realistas concordam em um ponto fundamental com o positivismo 
jurídico. Admitem que a aplicação do direito não constitui assunto da moral, mas depende da 
 
21
 Proponho assim a classificação das teorias jurídicas em função da posição adotada no debate sobre as relações 
entre direito e moral. Para uma apresentação da distinção entre positivismo e moralismo jurídico, cf. 
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico. São Paulo: Método, 2006. p. 85-165. Para uma análise das escolas 
jurídicas com base nessa distinção, cf. SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: RT, 
2005. p. 19-46. 
22
 A segurança jurídica é uma característica importante dos sistemas jurídicos modernos que prometem a 
aplicação das normas de forma coerente, evitando surpresas e descompassos na prática do direito. Cf. LUNO, 
Antonio-Enrique Pérez. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1994; DIMOULIS, Dimitri. Positivismo 
jurídico. São Paulo: Método, 2006. p. 196-199. 
23
 Sobre essa visão cf. MICHAUT, Françoise. Realismo jurídico americano. In: ARNAUD, André-Jean (Org.). 
Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 667 -670; 
SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: RT, 2005. p. 36-38. 
vontade de quem tem o poder para impor determinada decisão. Ao mesmo tempo, os realistas 
criticam a tese positivista tradicional, segundo a qual o juiz deve simplesmente aplicar as leis. 
Na opinião dos realistas, os juízes possuem ampla liberdade de decisão: aplicam o direito 
conforme suas opiniões pessoais, recebem influências do meio social no qual vivem e também 
são influenciados pela situação social e política do momento histórico. [pg. 22] 
Os partidários do realismo jurídico sustentam, pois, que direito é aquilo que os 
juízes consideram como direito, não se vinculando nem pela suposta justiça, nem pela vontade 
do legislador, que muitas vezes é formulada de maneira abstrata e obscura e impossibilita a 
aplicação objetiva da norma. 
Os doutrinadores e os filósofos do direito discutem com paixão sobre esses 
problemas, existindo uma contínua polêmica entre os partidários das várias abordagens. Essas 
controvérsias podem parecer muito abstratas e de difícil entendimento para quem inicia o 
estudo do direito. Justamente aqui está o grande mérito do texto de Lon Fuller sobre os 
Denunciantes Invejosos que traduzimos em seguida. Em vez de se limitar a análises teóricas, 
Fuller apresenta um caso concreto em que a aplicação do direito positivo leva a resultados 
injustos. 
O caso dos Denunciantes Invejosos é um dos assim chamados “casos difíceis” 
(em inglês: hard cases). A solução não pode ser dada pela simples aplicação de uma norma 
jurídica. É necessário fazer uma profunda reflexão que envolve o problema da definição do 
direito em suas relações com a moral e a justiça. 
Através da apresentação de várias opiniões sobre o problema da punição dos 
Denunciantes Invejosos, Fuller introduz o leitor em um debate teórico e filosófico, 
convidando-o a elaborar sua própria solução. Esse exercício permite refletir sobre a definição 
do direito, sobre suas funções na sociedade e sobre os caminhos que permitem sanar possíveis 
injustiças, causadas pela aplicação do direito. 
Para responder a essas questões não existe nenhuma “receita” pronta e certa. Cada 
um possui a liberdade de formar a própria opinião. [pg. 23] 
 
 
DIMITRI DIMOULIS 
NOTA EXPLICATIVA 
 
 
 
A primeira parte do livro compreende a tradução do texto de Fuller. Ele apresenta 
o caso dos Denunciantes Invejosos e elabora cinco diferentes propostas de solução. Na 
segunda parte do livro, incluímos cinco novos pareceres sobre o mesmo caso, todos de nossa 
autoria. 
A idéia de redigir novos pareceres sobre um problema formulado por Fuller não é 
original. Nas últimas décadas, vários autores de língua inglesa se prestaram ao exercício de 
estudar o caso dos Exploradores de Cavernas, propondo novas análises. A Stanford Law 
Review publicou, em 1980, três novas opiniões sobre o tratamento dos Exploradores 
homicidas, de autoria de Anthony D' Amato.
1
 Em 1993, sete estudiosos apresentaram na 
George Washington Law Review suas opiniões sobre o mesmo caso, tendo modificado alguns 
dos dados originais.
2
 Peter Suber publicou em 1998 um livro sobre o caso dos Exploradores, 
[pg. 25] tendo redigido nove pareceres.
3
 Finalmente, a Harvard Law Review, que tinha 
publicado em 1949 o texto original de Fuller, convidou em 1999, na ocasião do 
qüinquagésimo aniversário desta publicação, seis juristas para redigir novos pareceres, 
publicados com uma introdução de David Shapiro.
4
 No total, foram redigidos nos últimos 
anos 24 pareceres sobre o caso dos Exploradores de Cavernas, acrescidos aos cinco pareceres 
originais de Fuller. 
Curiosamente, ninguém até o presente momento fez o mesmo em relação ao caso 
dos Denunciantes Invejosos, não obstante o grande interesse que este estudo suscitou entre o 
público especializado.
5
 
Em nossa opinião, a elaboração de novos pareceres, como os cinco que foram por 
nós redigidos e que se encontram na segunda parte deste livro com os nomes de cinco 
imaginários professores de direito, se justifica pelo mesmo motivo que levou muitos 
estudiosos a fazer uma “revisão criminal” do caso dos Exploradores de Cavernas. 
A particularidade do texto sobre os Denunciantes Invejosos é a retomada da antiga 
controvérsia sobre a validade e a [pg. 26] moralidade do direito, tema este que permite a 
realização de uma ampla discussão. Isto é o que nós tentamos fazer, por meio da inserção de 
novos pareceres. 
N as últimas décadas foram realizadas novas abordagens dos problemas clássicos 
da teoria e da filosofia do direito. Mesmo os adeptos de antigas correntes de pensamento, 
como o positivismo e o moralismo jurídico, enriqueceram suas argumentações,
tendo 
publicado novos estudos e formulado novas propostas. Os nossos pareceres propõem soluções 
do caso dos Denunciantes Invejosos a partir de abordagens teóricas que encontramos em 
recentes obras de filosofia e teoria do direito, sobretudo na Alemanha e nos Estados Unidos. 
 
1
 D' AMATO, Anthony. The speluncean explorers - Further proceedings. Stanford Law Review 32/467-485, 
1980; cf. D' AMATO, Anthony (Org.). Analytic jurisprudence anthology. Cincinnati: Anderson, 1996. p. 21-35. 
2
 CAHN, Naomi; CALMORE, John; COOMBS, Mary; GREENE, Dwight; MILLER, Geoffrey; PAUL, Jeremy; 
STEIN, Laura. The case of the speluncean explorers. Contemporary proceedings. George Washington Law 
Review 61/1.754-1.811,1993. 
3
 SUBER, Peter. The case of the speluncean explorers. Nine new opinions. London: Routledge, 1998, p. 35-107. 
4
 SHAPIRO, David; BUTLER, Paul; DERSHOWITZ, Alan; EASTERBROOK, Frank; KOZINSKI, Alex; 
SUNSTEIN, Cass; WEST, Robin. The case of the speluncean explorers: a fiftieth anniversary symposium. 
Harvard Law Review 112/1.814-1.923, 1999. 
5
 Duas obras didáticas em língua espanhola apresentam o caso dos Denunciantes Invejosos, limitando-se a 
reproduzir os argumentos apresentados por Fuller: NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 
Barcelona: Ariel, 1983. p. 18-27; ATIENZA Manuel. El sentido del derecho. Barcelona: Ariel, 2003. p. 96-99. 
Após ter lido as dez diferentes opiniões sobre o caso dos Denunciantes Invejosos, 
o leitor terá entendido que nada é pacífico no campo jurídico. Sempre existem controvérsias, 
não sendo possível encontrar uma única resposta certa nem uma solução simples e justa, como 
poderia pensar quem ingressa na faculdade de direito. 
A comparação das opiniões redigidas por Fuller com aquelas que elaboramos 
meio século depois indica que os estudiosos do direito fizeram progressos, oferecendo novas 
respostas às questões clássicas da filosofia e teoria do direito. 
Finalmente, para quem deseja acompanhar o debate contemporâneo, incluímos no 
presente volume uma lista bibliográfica, na qual o leitor encontra referências a obras das 
últimas décadas que estudam o problema da definição do direito em suas relações, nem 
sempre harmônicas, com os ideais da moral e da justiça. [pg. 27] 
 
 
DIMITRI DIMOULIS 
 
 
 
 
 
PRIMEIRA PARTE 
 
O CASO DOS DENUNCIANTES 
INVEJOSOS1 
 
 
1
 Texto traduzido, por Dimitri Dimoulis, do original inglês: Lon L. Fuller, The morality of law, New Haven, Yale 
University Press, 1969, p. 245-253 (Appendix: The problem of the grudge informer). 
Você foi triunfalmente eleito como Ministro de Justiça de seu país, uma nação de 
aproximadamente vinte milhões de habitantes. Já no início de seu mandato, você enfrentou 
um grave problema, que será descrito em seguida. Antes de tudo deve ser apresentado o 
contexto no qual surgiu esse problema. 
Seu país teve o privilégio de viver, por muitas décadas, sob um regime pacífico, 
constitucional e democrático. Infelizmente, há algum tempo começaram os problemas. A vida 
normal foi interrompida por uma profunda crise econômica e por graves conflitos entre 
grupos que seguiam diferentes linhas econômicas, políticas e religiosas. O salvador da pátria 
apareceu na figura do chefe de um partido político ou sociedade que se autodenominava 
“Camisas-Púrpuras”. 
Em uma disputa eleitoral marcada por sérios conflitos e irregularidades, esse 
Chefe foi eleito Presidente da República e seu partido obteve a maioria das vagas na 
Assembléia Nacional. O sucesso eleitoral desse partido ocorreu em razão de uma campanha 
com promessas insensatas e falsificações engenhosas e com a intimidação física causada por 
patrulhas noturnas de Camisas-Púrpuras, motivo pelo qual muitos adversários do partido não 
tiveram coragem de votar. 
Quando os Camisas-Púrpuras chegaram ao poder não tomaram nenhuma 
providência no sentido de revogar a Constituição do país ou de reformar algumas partes da 
mesma. Deixaram igualmente intactos o Código Civil, o Código Penal e os códigos 
processuais. Tampouco foram tomadas providências oficiais para demitir funcionários 
públicos ou afastar juízes de seus cargos. Continuaram as eleições periódicas e os votos [pg. 
31] eram contados de forma aparentemente honesta. Apesar disso, o país vivia sob um regime 
de terror. 
Juízes que contrariavam os desejos do governo eram agredidos e assassinados. Ao 
Código Penal foram dadas interpretações perniciosas para permitir o encarceramento dos 
adversários políticos. Foram estabelecidos regulamentos secretos, conhecidos somente entre 
os altos escalões da hierarquia partidária. Foram também editadas leis que criminalizavam 
retroativamente determinados comportamentos plenamente legais. 
O governo não respeitava as obrigações impostas pela Constituição, pelas antigas 
leis ou mesmo por suas próprias leis. Todos os partidos da oposição foram desmantelados. 
Milhares de opositores políticos foram assassinados, seja nas prisões, seja em ondas de 
repressão noturna. Foi concedida anistia geral a favor de todos os acusados “que cometeram 
atos para a defesa da pátria contra a subversão”. Essa anistia permitiu a libertação de todos os 
presos que eram membros do partido dos Camisas-Púrpuras. Entre os beneficiários da anistia 
não estava ninguém que não fosse membro deste partido. 
Os Camisas-Púrpuras adotaram uma política que permitia flexibilidade na ação. 
Algumas vezes agiam como partido político “nas ruas”. Outras vezes atuavam por meio dos 
aparelhos estatais que eles mesmos controlavam. A escolha do método de atuação era questão 
de pura conveniência. Quando, por exemplo, o restrito grupo da diretoria do partido decidiu 
aniquilar os ex-socialistas republicanos, membros de um partido que fez uma última e 
desesperada tentativa de resistência contra o novo regime, criou-se uma controvérsia sobre o 
método que seria mais indicado para confiscar as propriedades desse partido. [pg. 32] 
Uma facção dos Camisas-Púrpuras, que parecia estar sob a influência de 
concepções pré-revolucionárias, queria realizar este confisco por meio de um regulamento 
que declarasse os bens do partido confiscados por ter este cometido ações criminosas. 
Outros queriam alcançar o mesmo resultado, obrigando os proprietários a doarem 
seus bens sob a ameaça de armas. Essa facção criticou a solução do regulamento, dizendo que 
provocaria comentários desfavoráveis ao partido. O Chefe optou pela solução da ação direta 
do partido, acompanhada por um regulamento secreto que ratificou sua legalidade, 
confirmando os títulos de propriedade obtidos pelo emprego de violência física. 
Agora os Camisas-Púrpuras foram derrotados e se estabeleceu de novo um 
governo democrático e constitucional. O antigo regime deixou, porém, alguns problemas 
particularmente espinhosos. A responsabilidade de resolvê-los recai sobre você e seus colegas 
do governo. Um desses problemas é conhecido como caso dos Denunciantes Invejosos. 
Durante o regime dos Camisas-Púrpuras, muitíssimas pessoas, movidas por 
inveja, denunciaram seus inimigos pessoais ao partido ou a autoridades governamentais. Entre 
as atividades que foram objeto de denúncias estava a crítica ao governo formulada em 
discussões particulares, a escuta de estações de rádio estrangeiras, o relacionamento com 
notórios vândalos e baderneiros, o armazenamento de saquinhos de ovos em pó em 
quantidade maior do que a autorizada, a omissão de informar a perda de documentos de 
identidade no prazo de cinco dias etc. 
Dada a situação do Poder Judiciário nesse período, qualquer uma dessas infrações, 
se fosse comprovada, poderia
[pg. 33] levar à aplicação da pena de morte. Em alguns casos, 
as condenações à pena capital foram autorizadas por regulamentos de “emergência”. Em 
outros casos, foram impostas sem tais regulamentos, por meio da decisão de juízes 
regularmente nomeados em seus cargos. 
Após a derrota dos Camisas-Púrpuras, formou-se um movimento de opinião que 
exigiu a punição dos Denunciantes Invejosos. O governo interino, que antecedeu o seu, 
contemporizou a decisão. No entanto, o assunto tornou-se um problema político explosivo e a 
decisão não pode ser mais postergada. 
Em decorrência disso, sua primeira iniciativa como Ministro de Justiça foi estudar 
o problema. Você pediu a cinco deputados para refletirem sobre o caso e apresentarem suas 
opiniões em uma conferência. Nessa conferência, os deputados tomaram sucessivamente a 
palavra, fazendo as seguintes ponderações. 
 
 
 
PRIMEIRO DEPUTADO 
 
 
 
Não tenho a menor dúvida de que nada pode ser feito em relação aos chamados 
Denunciantes Invejosos. As denúncias versavam sobre fatos que realmente eram ilícitos, isto 
é, contrários às regras estabelecidas pelo governo que, nessa época, exercia o poder do 
Estado. 
As sentenças de condenação das vítimas dessas denúncias foram pronunciadas em 
conformidade com os princípios legais então vigentes. Esses princípios apresentam tamanhas 
diferenças em relação aos nossos, que podemos considerá-los como detestáveis. Mas isso não 
impede reconhecer que tais leis estavam vigentes no país. 
Uma das principais diferenças entre o direito daquele período e o nosso está 
justamente no fato de que o nosso reconhece ao juiz uma liberdade de decisão muito menor 
no âmbito penal. Para nós, o respeito a essa regra (e às suas conseqüências) é muito mais 
importante do que o respeito à reforma introduzi da pelos Camisas-Púrpuras no direito de 
herança, segundo a qual para a redação de testamento são necessárias duas e não mais três 
testemunhas. Sem dúvida alguma, a norma que reconhecia ao juiz uma liberdade de decisão 
quase ilimitada no âmbito penal, nunca foi oficialmente promulgada. Foi aplicada, de forma 
tácita, na prática. Mas o mesmo vale em relação à regra contrária - por nós aceita - que 
restringe muito a discricionariedade dos magistrados. [pg. 35] 
 A diferença entre nós e os Camisas-Púrpuras não está no fato de que eles 
formaram um governo sem leis. Isso constituiria, aliás, uma contradição nos termos. A 
diferença é de natureza ideológica. Ninguém acha os Camisas-Púrpuras mais repugnantes do 
que eu. Devemos, porém, reconhecer que a fundamental diferença entre a filosofia deles e a 
nossa está no fato de que nós permitimos e toleramos a expressão de pontos de vista 
divergentes, e eles tentaram impor a todos o próprio código monolítico. 
Nosso sistema de governo considera que o direito é flexível, capaz de expressar e 
alcançar distintas finalidades. O ponto principal do nosso credo é que qualquer objetivo, 
devidamente incorporado nas leis ou nas decisões dos tribunais, deve ser provisoriamente 
aceito, mesmo por aqueles que o rejeitam categoricamente. A esses últimos deve ser dada a 
oportunidade de conseguir um reconhecimento legal de seus próprios objetivos, por meio de 
eleições ou no âmbito de um novo processo judicial. 
Os Camisas-Púrpuras fizeram o contrário. Simplesmente descumpriram as leis 
com as quais não estavam de acordo, e nem mesmo se deram ao trabalho de revogá-las. Se 
tentarmos, agora, fazer uma triagem entre os atos desse regime, anulando determinados 
julgamentos, invalidando certas leis ou considerando como produto de abuso de poder 
algumas condenações, estaríamos fazendo exatamente aquilo que mais rejeitamos na atuação 
dos Camisas-Púrpuras. 
Reconheço que a tarefa de realizar o programa que proponho será árdua e 
sofreremos fortes pressões da opinião pública. Deveremos, também, tomar as medidas 
cabíveis para evitar que as pessoas façam justiça com as próprias mãos. Acredito, no entanto, 
que o caminho que estou indicando é o único que permitirá fazer triunfar, a longo prazo, as 
concepções sobre direito e governo nas quais acreditamos. [pg. 36] 
 
 
 
TERCEIRO DEPUTADO 
 
 
 
Considero muito suspeitos os raciocínios que se baseiam em dilemas. Não é 
adequado admitir que o regime dos Camisas- Púrpuras estava completamente fora da lei, nem 
considerar que todos os seus atos merecem ser classificados como atos de um governo 
respeitoso da lei. Sem dúvida alguma, os meus dois colegas apresentaram argumentos 
poderosos contra essas duas posições extremas, demonstrando que ambas levam à mesma 
conclusão absurda, ou seja, a uma conclusão moral e politicamente inaceitável. 
Quem reflete sobre o assunto de forma não emocional percebe claramente que 
durante o regime dos Camisas-Púrpuras não tínhamos uma “guerra de todos contra todos”. 
Abaixo da superfície política continuavam a ser realizados muitos atos que fazem parte da 
vida humana normal: celebravam-se casamentos, bens eram vendidos, redigiam-se e 
executavam-se testamentos. 
Essa vida normal enfrentava os habituais contratempos: acidentes de automóvel, 
falências, testamentos nulos, panfletos difamatórios publicados na imprensa. Uma grande 
parte da vida normal e dos contratempos, igualmente normais, não foi afetada pela ideologia 
dos Camisas-Púrpuras. Os problemas jurídicos relacionados com esses assuntos eram tratados 
pelos tribunais daquele período de forma muito semelhante ao período anterior e ao atual. Se 
quiséssemos declarar como [pg. 39] privado de fundamento legal e nulo tudo aquilo que 
ocorreu sob o regime dos Camisas-Púrpuras, criaríamos um caos intolerável. 
Por outro lado, é impossível sustentar que os assassinatos cometidos nas ruas 
pelos membros desse partido, sob as ordens de seu chefe, eram atos legais, simplesmente 
porque o partido conseguiu controlar plenamente o governo e seu chefe tornou-se Presidente 
da República. 
Se devemos condenar os atos criminosos do partido e de seus membros, seria 
absurdo legitimar todos os atos avalizados pela autoridade do governo, já que esse governo 
identificou-se completamente com o partido dos Camisas- Púrpuras. Por essa razão, devemos 
fazer algumas distinções, como acontece na maioria dos problemas sociais. Devemos intervir 
nos casos em que a filosofia dos Camisas-Púrpuras penetrou na administração da justiça, 
afastando-a de suas finalidades e procedimentos habituais. 
Em minha opinião, devemos considerar como uma das perversões da justiça o 
caso daquele homem que se enamorou de uma mulher casada e provocou a morte do cônjuge, 
denunciando-o por um delito totalmente trivial, como o fato de não informar as autoridades da 
perda de seus documentos de identidade dentro do prazo de cinco dias. 
Esse denunciante cometeu homicídio, segundo a definição do Código Penal que 
continuava em vigor no momento da denúncia, já que os Camisas-Púrpuras não procederam à 
sua revogação. Esse homem causou a morte de uma pessoa que impedia a satisfação de sua 
paixão ilícita. Utilizou os tribunais como instrumento para realizar suas intenções criminosas, 
sabendo que os tribunais satisfaziam com presteza qualquer [pg. 40] ordem política que os 
Camisas-Púrpuras consideravam adequada em determinado momento. 
Existem outros casos igualmente claros. Mas devo admitir que também há casos 
muito menos claros. Não podemos, por exemplo, avaliar com facilidade o caso daqueles 
curiosos que observavam a vida dos outros e denunciavam às autoridades qualquer coisa que 
lhes parecia suspeita. Alguns desses denunciantes não atuavam com a finalidade de se livrar 
das pessoas denunciadas, mas com o desejo de prestar serviço e agradar o partido, de diluir
SEGUNDA PARTE 
 
CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE 
O CASO DOS DENUNCIANTES 
INVEJOSOS 
 
 
 
OPINIÃO DO PROF. GOLDENAGE 
 
 
 
Não posso esconder uma certa mágoa pelo fato de o senhor Ministro ter 
convidado exclusivamente personalidades políticas na primeira conferência sobre o problema 
dos Denunciantes Invejosos, apesar de ser esse um problema exclusivamente jurídico. 
Sabemos que as pessoas não têm uma boa impressão sobre os juristas. Na Idade 
Média, o povo alemão dizia “advogados, cristãos malvados” (Juristen, böse Christen) e o 
próprio Lutero repetiu muitas vezes essa frase. Em nossos dias, devemos ouvir críticas duras e 
até piadas sobre a moralidade e a capacidade dos juízes e dos advogados. 
Tenho, porém, a certeza de que o senhor Ministro não excluiu os profissionais do 
direito por preconceito ou antipatia. A decisão inicial de consultar os políticos foi ditada por 
considerações práticas. Nós, juristas, temos a tarefa de estudar e aplicar o direito, mas não o 
criamos. As normas jurídicas são estabelecidas por aqueles que exercem o poder político. 
Isso é realmente estranho. Confiamos a construção de casas a arquitetos e 
engenheiros, pedimos ao contador para fazer a declaração do imposto de renda e quando há 
vazamentos chamamos o encanador. Por que as leis são feitas pelos políticos, ou seja, por 
pessoas sem preparação técnica para essa tarefa? Alguém pediria conselhos médicos a um 
comerciante pelo simples fato de este ter sido eleito deputado federal? Por [pg. 53] que o 
mesmo comerciante deve ser considerado idôneo para a elaboração das leis, podendo 
inclusive opinar, como foi o caso dos cinco deputados, sobre o delicado problema jurídico dos 
Denunciantes Invejosos? 
Essa situação é o resultado histórico das grandes revoluções ocorridas nos séculos 
XVIII e XIX, quando vários povos do mundo, liderados pela classe burguesa, decidiram 
abolir o monopólio jurídico dos juízes e advogados, considerando que o direito deveria ser 
criado pelo próprio povo, por meio de seus representantes. 
Assim sendo, os juristas perderam a oportunidade de utilizar seus conhecimentos 
para elaborar as regras que organizam o convívio social. As opiniões e a experiência dos 
professores e dos operadores do direito parecem não valer mais nada. Devemos nos alinhar à 
vontade do legislador e aplicá-la sem questionamento. 
A última batalha foi travada no começo do século XIX pela escola histórica do 
direito, liderada pelo grande jurista alemão Savigny. Todos sabem que Savigny, em um 
escrito de 1814, defendeu um direito que seria baseado nos costumes e nas tradições 
particulares de cada povo e elaborado nas obras dos juristas e não em códigos criados pelos 
políticos. 
Savigny não conseguiu impor suas opiniões e os juristas aceitaram a derrota. 
Ensinamos, hoje, nas nossas faculdades, o direito criado pelos políticos. Não ensinamos a 
técnica de redação de leis nem tratamos dos problemas de seu conteúdo. Com as famosas 
palavras que usou em uma publicação de 1848 o Promotor de Justiça alemão Julius von 
Kirchmann, o operador do direito foi escravizado pelo direito imposto pelo legislador e 
tornou-se um verme que se nutre de madeira podre. [pg. 54] 
Os problemas cruciais da justiça social e os conflitos políticos em tomo da 
elaboração das leis não despertam mais interesse nas faculdades de direito. São examinados 
em poucas aulas de sociologia e de filosofia do direito perante alunos desinteressados, que só 
querem saber quais são as últimas reformas do processo civil e quais as recentes leis sobre a 
biotecnologia e a proteção ambiental. 
Por isso, a decisão do Ministro foi certa. Ele consultou os políticos que trabalham 
como legisladores, já que eles decidem sobre o direito. Porque então essa consulta não foi 
satisfatória e o Ministro decidiu recorrer a nós, simples estudiosos do direito? 
A resposta é evidente. O tratamento que merecem os Denunciantes Invejosos é 
uma questão de aplicação do direito. As denúncias foram feitas segundo o direito em vigor e 
os tribunais aplicaram sanções previstas pelas leis da época. Por isso, a avaliação das referidas 
denunciações depende da interpretação do direito que estava em vigor naquele período. Antes 
de pensar em fazer uma nova legislação, devemos examinar se o direito em vigor permite 
reagir de forma adequada, satisfazendo o sentimento de justiça da maioria da população que 
está indignada com os Denunciantes Invejosos. 
Permitam-me fazer, inicialmente, uma leitura jurídica das propostas dos 
deputados, explicando aquilo que propuseram esses senhores, leigos na ciência do direito. Em 
seus discursos encontramos três propostas: 
a) Deixar impunes os Denunciantes Invejosos (opinião do primeiro, do segundo e 
do quinto deputado). 
b) Criar uma legislação retroativa, definindo quem deve ser considerado como 
Denunciante Invejoso e quais as sanções merecidas (opinião do quarto deputado). [pg. 55] 
c) Perseguir por homicídio quem fez a denúncia para se vingar ou se livrar de 
uma pessoa e não castigar quem denunciou por convicção política ou por simples covardia 
(opinião do terceiro deputado). 
Essas propostas são fundamentadas, por sua vez, em três diferentes argumentos 
jurídicos: 
a) Todas as leis em vigor durante o regime dos Camisas-Púrpuras devem ser 
consideradas válidas, pois a norma que entra em vigor de forma correta não pode ser anulada 
retroativamente. Para quem aceita essa posição, os Denunciantes atuaram de forma legal, 
seguindo o direito vigente. Esse argumento permite propor três diferentes soluções: o primeiro 
deputado constata o caráter legal das denunciações invejosas, propondo a impunidade; o 
quarto deputado considera que estes atos não eram puníveis quando foram cometidos, mas 
devem ser castigados, hoje, após a criação de uma lei retroativa; o quinto deputado propõe 
tolerar os linchamentos e a vingança popular, já que os atos dos Denunciantes não podem ser 
definidos de forma satisfatória por meio de uma lei retroativa. 
b) Durante o regime dos Camisas-Púrpuras não houve direito válido, já que o 
regime era profundamente injusto, renegando a idéia mesma de justiça. A situação era 
parecida com aquela de uma selva. Punir um Denunciante Invejoso não é menos absurdo do 
que punir um animal selvagem porque devorou um outro (segundo deputado). 
c) Devem ser consideradas inválidas somente aquelas normas do regime dos 
Camisas-Púrpuras que não se conciliam com os ideais da justiça. Os Denunciantes [pg. 56] 
aproveitaram-se de uma perversão da justiça durante esse regime e por isso devem ser 
castigados (terceiro deputado). 
Quais desses argumentos e soluções são corretos? Para decidir devemos tomar 
posição sobre um lancinante dilema: Pode existir um direito injusto? 
Pelo menos desde a Roma antiga o direito sempre se identificou com a justiça. 
Nos séculos II e III d.C. os jurisconsultos romanos Ulpiano e Celso afirmavam que o termo 
direito (ius) provém do termo justiça (iustitia). Na opinião desses autores, o direito é a ciência 
que distingue o justo do injusto: iusti atque iniusti scientia. Em outras palavras, o direito é a 
arte do bom e do équo: ius est ars bani et aequi. 
Nada diferente dizia, quase quinze séculos depois, Rugo Grotius, quando, no 
início de seu famoso livro Direito da guerra e da paz, publicado em 1625, definia o direito 
como regulamentação do comportamento humano que obriga a fazer o justo. 
 
 
 
OPINIÃO DO PROF. WENDELIN 
 
 
 
Escutando o discurso do colega Goldenage, pensei que me encontrava em uma 
das faculdades medievais descritas pelo historiador Jacques Le Goff. Nelas os professores 
organizavam as temíveis disputationes sobre problemas jurídicos, debatendo
com paixão 
perante um público de professores, bacharéis, alunos e curiosos. Por meio da retórica e da 
habilidade no manuseio dos argumentos, os debatedores tentavam derrotar os adversários e 
convencer o auditório. Naquela época os juristas se sentiam donos do direito e da verdade; 
resolviam as questões polêmicas pensando que existia uma solução certa, contida nos 
sagrados textos jurídicos e religiosos. 
O colega Goldenage, apoiando-se em autores contemporâneos, como Paolo Grossi 
na Itália, que sentem saudades do poder do jurista medieval, sustenta que existe o justo e o 
injusto. Para reconhecê-los bastaria escutar a voz da consciência e, principalmente, confiar 
nos pareceres do jurista sábio que punirá os injustos e protegerá as vítimas. 
O colega omitiu a parte mais interessante da história. Os juristas medievais, que se 
consideravam apóstolos da justiça e se sentiam todo-poderosos, foram, com toda a razão, 
acusados de bárbaros e inumanos pelos autores do iluminismo. Na realidade, os juristas 
medievais eram fiéis servidores de reis autoritários e de latifundiários vorazes, que oprimiam 
e exploravam o povo, mantido na superstição e na ignorância. [pg. 61] 
O iluminismo destruiu o mito do jurista como anjo da justiça. O problema é que o 
iluminismo difundiu um novo mito. Aquele que fala do legislador iluminado, escolhido pelo 
próprio povo para fazer leis racionais, simples e claras, que todos possam entender e aplicar 
automaticamente. Santa ilusão que encontramos, por exemplo, no opúsculo Dos delitos e das 
penas de Cesare Beccaria, publicado em 1764 e até hoje estudado nas faculdades de direito. 
O século XX abalou essas certezas. As ilusões da justiça e da verdade que não 
foram destruídas pelas guerras e pelas ditaduras, acabaram sendo desmontadas pelas reflexões 
de grandes filósofos. Estes comprovaram que não existem critérios para distinguir o 
verdadeiro do falso. A nossa linguagem é parecida com a areia movediça do deserto. Os 
significados das palavras são instáveis e múltiplos e dependem do entendimento das pessoas 
que se comunicam em determinado momento. 
Tudo é relativo e mutável. Alguns pensam que o significado dado às palavras 
depende do interesse dos poderosos, que denominam “verdadeiro” aquilo que lhes convém. 
Outros sustentam que tudo depende do aleatório, do acaso. Outros dizem, finalmente, que o 
entendimento das palavras é influenciado pelo papel social que a pessoa exerce em 
determinada situação. 
Não fui convidado para analisar as correntes de pensamento que sustentam a 
incerteza e a mutabilidade da comunicação humana. Considero, porém, que a consciência 
desses dados fundamentais tira a esperança de que alguém poderá encontrar um dia a verdade, 
separar o justo do injusto e fixar o sentido das normas jurídicas. 
A única verdade é que não sabemos nada; não existem certezas. Mas o 
ordenamento jurídico não pode viver com a [pg. 62] contínua incerteza. O Poder Judiciário 
deve resolver os conflitos com determinação e presteza para pacificar a sociedade. Mesmo se 
os filósofos nunca encontrarem uma resposta satisfatória à pergunta “o que é vida”, os 
tribunais devem decidir se o aborto provocado por uma mulher deve ou não ser punido. Não 
 
 
 
OPINIÃO DA PROFA. STING 
 
 
 
Escutei meus colegas e li os pareceres dos deputados. Todos dissertaram com 
erudição e paixão sobre o problema, analisando vários aspectos e desejando propor a melhor 
solução. Confesso que esses pareceres me causaram um profundo mal estar. 
Os deputados e os meus colegas que tomaram a palavra são homens. O mesmo 
vale para o Ministro, para o Chefe dos Camisas-Púrpuras e para todos os dirigentes de sua 
quadrilha que se tomou governo. Sabemos também que quase todos os Denunciantes 
Invejosos eram homens. 
Onde estão as mulheres? N as discussões sobre os Denunciantes Invejosos 
encontrei uma única referência à mulher. Trata-se daquela mulher casada, cujo admirador ou 
amante denunciou o marido para que este fosse preso, condenado e executado e a mulher 
caísse em seus braços! 
Muito bem! Quando dois homens querem uma mulher eles entram na disputa. 
Quem sai vencedor ganha a mulher-objeto como presente. Diante desse caso, os senhores 
deputados e professores tiveram uma única preocupação. Saber se o suposto amante deve ou 
não ser punido. Em outras palavras, a pergunta foi se é legal e justo aproveitar-se de uma lei 
para conquistar uma mulher causando a morte de seu marido. 
Sabemos que as nossas leis escritas não discriminam mais as mulheres. Graças às 
lutas das próprias mulheres o [pg. 67] direito deixou de privilegiar abertamente os homens. 
Utiliza uma linguagem neutra, estabelecendo os mesmos direitos e obrigações para todos. 
Mas, na realidade, o direito continua exprimindo uma ideologia machista e defende os 
interesses dos homens que querem sujeitar as mulheres ao seu poder. O direito funciona como 
instrumento do poder masculino, como instrumento do patriarcado. 
Esse direito masculino permite aos homens terem acesso ao trabalho e ao corpo 
das mulheres. A mulher ganha menos do que o homem no mercado de trabalho, mesmo 
quando executa as mesmas tarefas. A mulher trabalha de graça em casa, arruma, prepara as 
refeições, cuida dos filhos, do marido, dos pais e sogros. O direito não se opõe a essas 
situações escandalosas e, freqüentemente, trata a mulher como objeto que pertence ao homem. 
O espaço privado, onde vive a família, é protegido como “asilo inviolável”. O 
povo diz que nas brigas entre homem e mulher ninguém deve se meter. O mesmo pensam a 
polícia e o Poder Judiciário que deixam as mulheres abandonadas à violência dos homens. O 
homem pode estuprar, maltratar e humilhar sua companheira, como se isso fosse seu direito. 
Quase nunca será punido, porque o direito protege a vida privada. Mesmo nos países onde as 
feministas conseguiram reformar o direito no sentido da proteção da mulher, os aplicadores 
não fazem quase nada para conter e punir a violência masculina. 
O homem quer, ao mesmo tempo, proteger sua propriedade. Quando alguém, na 
rua, estupra ou maltrata “sua” mulher, a lei protege sua propriedade “particular” e pune o 
agressor, que utilizou a mulher-objeto sem o acordo do “proprietário”. 
Alguém pensou que mais de 95% dos presos são do sexo masculino? Isso 
acontece porque a mulher fica confinada em casa, submetida ao controle e às punições dos 
homens. Quando [pg. 68] se rebela é considerada “louca”, sendo enviada aos psiquiatras. Mas 
não devemos achar isso estranho. O direito é criado por homens para garantir seus direitos e 
para punir aqueles que agridem a propriedade de outros. 
 
 
 
OPINIÃO DO PROF. SATENE 
 
 
 
A professora Sting apresentou um violento requisitório contra o sexo masculino. 
Seduzida pela própria retórica, esqueceu de se referir a um episódio que é crucial para tratar 
com serenidade, ponderação e coerência o problema dos Denunciantes Invejosos e que 
também oferece um importante argumento a favor da solução que gostaria de propor. 
Sabemos que, muito antes da ditadura dos Camisas-Púrpuras em nosso país, a 
Alemanha vivenciou a barbaridade do período nazista. Após a restauração da democracia 
naquele país, um tribunal enfrentou o caso da esposa Denunciante. Uma mulher que tinha um 
relacionamento extraconjugal decidiu se livrar do marido denunciando-o por ter criticado, em 
conversas particulares, o governo de Hitler. O marido foi condenado à morte e após um 
indulto parcial foi mandado para a guerra, sendo incorporado em uma unidade militar na qual 
serviam criminosos em condições particularmente duras. 
Essa mulher utilizou-se do direito para se livrar do marido, ou seja, fez 
exatamente aquilo que a professora
Sting considera como típico dos homens! Não vou 
discutir a fundamentação da análise feminista do direito. Interessa aqui avaliar a solução dada 
ao caso da esposa Denunciante. 
O tribunal alemão que julgou o caso após a queda do regime nazista decidiu que 
os juízes que condenaram o marido à pena de morte não mereciam punição, por terem 
simplesmente [pg. 72] aplicado o direito em vigor. Ao contrário, a esposa deveria ser 
condenada por ter causado a detenção ilegal de seu cônjuge. O tribunal considerou que essa 
denunciação contrariava a lei moral e o sentimento de justiça de qualquer ser humano decente. 
Concordo com essa última posição. Não interessa se o autor da denunciação é 
homem ou mulher, idoso ou jovem, branco ou negro. Só interessa saber se seu 
comportamento constitui uma violação do direito. 
Eis o verdadeiro problema. Não podemos decidir o que é “violação do direito” 
sem saber antes o que é o direito. Todos usamos esse termo, mas cada um entende algo 
diferente. A maioria dos doutrinadores entende que direito é o conjunto de normas colocadas 
em vigor pelo legislador. Outros consideram que o direito está contido nas decisões dos 
tribunais. Outros dizem que é direito aquilo que contribui para o progresso social e para a 
felicidade da maioria. Não faltam também os cínicos que dizem que o direito é simplesmente 
a violência e a ganância dos poderosos transformada em lei. Há, finalmente, juristas que vêem 
o direito como manifestação de mandamentos eternos e imutáveis estabelecidos por Deus ou 
pela razão humana. 
Penso que todas essas definições são errôneas. Nenhuma delas exprime aquilo que 
todos nós consideramos, no nosso dia-a-dia, como direito realmente válido. Seguindo os 
ensinamentos do professor Ronald Dworkin, afirmo que o direito deve ser definido como 
resultado de sucessivas interpretações dos princípios que fundamentam a vida social e são 
aceitos pela comunidade. 
O primeiro passo da interpretação é dado pelo legislador que cria as normas jurídicas. 
Essas normas não são produto de uma “vontade”. O legislador não faz o que ele quer, como [pg. 
74] pensam os positivistas, adotando uma posição totalmente ingênua. As leis decorrem da 
interpretação dos princípios fundamentais que norteiam a sociedade. Quando a Constituição 
proclama a soberania do povo, o respeito à dignidade humana e a liberdade, isso não deve ser 
considerado como uma simples vontade do poder constituinte. Os constituintes simplesmente 
exprimem e adotam os princípios e os valores da democracia e da dignidade da pessoa humana 
que todos nós aceitamos. Por isso afirmo que as normas jurídicas decorrem de princípios e de 
convicções políticas fundamentais, que o legislador interpreta e fixa em suas normas. 
O segundo passo da interpretação é dado pelos tribunais que aplicam as normas 
estabelecidas pelo legislador. Essas normas são abstratas e não oferecem automaticamente 
uma solução. Mas o juiz não é um tirano que pode decidir a seu bel-prazer, como parecem 
dizer os realistas, adotando uma posição cínica. 
Para encontrar a solução adequada, os juízes devem interpretar as normas legais 
de acordo com os princípios e os valores que estão em sua base. Ou seja, os juízes recorrem 
novamente aos princípios fundamentais para encontrar a solução correta. Nessa oportunidade, 
os juízes podem mesmo corrigir leis que se revelam contrárias aos princípios fundamentais. 
Nenhum legislador consegue estabelecer de uma vez por todas a solução certa, nem pode 
prever todos os casos que se apresentarão no futuro. Fica a cargo do juiz concretizar, atualizar 
e até corrigir as normas legais. 
Permitam-me citar um exemplo. Uma portaria do Ministro da Educação exige para 
a aprovação dos estudantes universitários uma freqüência mínima de 75%. Este regulamento 
não [pg. 75] foi feito ao acaso, nem simplesmente porque tal foi a vontade do Ministro. 
O regulamento procura conciliar os dois princípios que regem a matéria. A 
obrigação de presença, que é necessária para o aproveitamento do aluno, e a possibilidade de 
ele faltar em casos de doença, acidentes e outros imprevistos da vida familiar e profissional. O 
regulamento parece, à primeira vista, razoável. A experiência de sua aplicação demonstrou, 
porém, que em alguns casos era necessário introduzir modificações. 
A necessidade de garantir o aproveitamento escolar, sem ignorar os imprevistos 
da vida, obriga a aprovar um aluno que, apesar de só ter freqüentado 65% das aulas devido a 
uma grave doença, conseguiu uma excelente nota no exame final. Inversamente, seria justo 
reprovar o aluno que esgotou o número de faltas permitidas sem nenhuma justificativa e 
obteve nota mínima nos exames. 
Percebemos, assim, que a criação do direito não termina com a edição de uma 
norma. Os juízes resolvem casos concretos e imprevisíveis no momento da criação da norma, 
por meio de sua aplicação criativa, sensível e inteligente. 
Não vivemos no império dos caprichos do legislador. Vivemos em uma sociedade 
civilizada, solidária e fundamentada em princípios que dão sentido à vida social. Cada vez 
que for chamado a decidir, o juiz deve seguir esses princípios. Isso ocorre quando as decisões 
do Judiciário satisfazem algumas exigências. 
Em primeiro lugar, as decisões devem ser fundamentadas de forma detalhada e 
com argumentos racionais que possam ser aceitos pela maioria das pessoas. [pg. 76] 
Em segundo lugar, as decisões devem ser coerentes com aquilo que foi 
anteriormente decidido em casos parecidos. Nada impede que o juiz inove. Mas, nesses casos, 
ele tem a obrigação de justificar a nova solução. Com efeito, a interpretação do direito parece 
com a redação de sucessivos capítulos de uma novela por autores diferentes. Cada um escreve 
aquilo que considera adequado. Mas a novela não pode ser caótica. Todos devem respeitar sua 
trama e seu estilo, introduzindo inovações somente quando for absolutamente necessário. 
Em terceiro lugar, as decisões sobre um caso concreto devem ser coerentes com 
aquelas que o mesmo juiz tomou no passado. O juiz que hoje dá preferência ao princípio da 
liberdade e amanhã ao princípio da igualdade, alegando que ambos encontram-se no 
ordenamento jurídico, se expõe a uma contradição que invalida seu trabalho. 
Resumindo: interpretar o direito de forma criativa e responsável significa oferecer 
aos cidadãos soluções racionais, convincentes e coerentes. Significa, antes de tudo, dar o 
sentido mais adequado às palavras utilizadas pelo legislador para fazer jus aos princípios que 
norteiam o convívio social. 
 
 
 
OPINIÃO DA PROFA. BERNADOTTI 
 
 
 
Os colegas Goldenage e Satene repetiram aquilo que desde décadas sustentam em 
dou tas publicações e brilhantes conferências. Peço vênia para expressar minha plena 
discordância. Os colegas dizem que somos membros de uma comunidade política, tendo 
valores comuns nos quais devem se fundamentar as leis e as futuras decisões do Judiciário. 
Dessa forma, adotam a opinião do jusnaturalista francês Michel Villey, segundo o qual o 
aplicador do direito não deve cumprir as ordens do Estado, mas interpretar os textos de forma 
que permita encontrar a solução “justa”. 
Para falar em “justo” devemos ter valores aceitos por todos. Mas quais foram os 
valores comuns a brancos e negros nas sociedades escravocratas do século XIX? Onde está a 
comunidade de valores e interesses entre os pobres e os ricos nos países do terceiro mundo, 
onde, ao lado de mansões luxuosas, encontramos favelas que abrigam centenas de milhares de 
desesperados? Onde está a comunidade entre os homens e as mulheres, uma vez que ô direito 
funciona como instrumento de sujeição do gênero feminino, como bem indicou a colega Sting? 
Os juristas
raramente tratam desse problema e, às vezes, querem ocultá-lo. Um 
exemplo deu o professor Satene. Fala do justo e do correto, esquecendo as enormes diferenças 
de mentalidade e interesses entre pessoas e grupos. Como se isso [pg. 81] não bastasse, o 
referido professor fez uma crítica superficial e equivocada à professora Sting, que mostrou o 
caráter machista do direito, ou seja, sua parcialidade. O professor Satene não quer admitir que 
o sistema jurídico, quase sempre, toma o partido dos mais poderosos: dos brancos, dos ricos, 
dos homens. 
Na realidade, não temos nenhuma comunidade de valores e interesses. Temos 
exploração, violência, discriminação e opressão. Qual é o papel do direito na sociedade? Os 
meus colegas moralistas fecham os olhos diante da realidade ou consideram que os poderosos 
e opressores violam o “verdadeiro” direito. Isso não passa de um sonho. Na realidade, os 
opressores e exploradores simplesmente aplicam o direito em vigor. Se o direito permite 
pagar um salário de fome, por que deve ser punido aquele que paga esse salário? 
Por que então castigar pessoas invejosas que, afinal de contas, denunciaram fatos 
reais e por que perseguir os juízes que puniram os infratores, seguindo o direito em vigor? 
Eles simplesmente aplicaram o direito, tal como faz qualquer respeitada família que paga um 
salário mínimo à sua empregada doméstica ou especula na Bolsa de Valores. 
Foi dito que os Denunciantes Invejosos instrumentalizaram o direito para se 
vingar de inimigos pessoais. O professor Satene baseou-se nisso para apresentá-los como 
autores de homicídios e seqüestros, adotando teorias de doutrinadores conservadores como 
Claus Roxin. Quem utiliza esse argumento esquece que o nosso direito é um direito formal. 
Avalia aquilo que a pessoa faz e não examina o porquê faz. Quem pensou em matar seu 
concorrente e não o fez porque tinha medo da pena pode ser um indivíduo moralmente 
desprezível. Não deixa de ser um cidadão respeitoso da lei, já que o direito simplesmente [pg. 
82] pune o homicídio, sem se interessar pelos desejos e os pensamentos das pessoas. 
Isso é uma característica de todos os ordenamentos jurídicos modernos que se 
fundamentam na separação entre o direito e a moral. O direito moderno não exige que a 
pessoa seja um “bom cristão” ou um “bom pai de família”, como acontecia no direito 
medieval que pouco distinguia entre as regras jurídicas, as obrigações morais e os 
mandamentos religiosos. Hoje o Estado avalia as ações e omissões das pessoas 
BIBLIOGRAFIA 
 
 
 
As obras contidas nesta bibliografia permitem ao leitor estudar com maior 
profundidade o problema da definição do direito em suas relações com a justiça e a moral. 
Além disso, incluímos na bibliografia as referências completas, das obras citadas 
nos “pareceres” dos cinco professores, assinalando-as com um asterisco. 
As opiniões dos jurisconsultos romanos Ulpiano e Celso, mencionadas nos 
“pareceres” dos professores Goldenage e Wendelin, encontram-se no Digesto de Justiniano, 
disponível na internet <http://webu2. upmf-grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/Corpus/d-01.htm>. 
A decisão da Suprema Corte da Argentina sobre a nulidade das leis de anistia, 
mencionada no parecer da professora Sting encontra-se em: 
<http://www.derechos.org/nizkor/arg/doc/nulidad.html>. 
 
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