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José Claudinei Lombardi REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO E ENSINO NA OBRA DE MARX E ENGELS UNICAMP – FACULDADE DE EDUCAÇÃO Outubro - 2009 Landim Typewriter Pagina 80 a 130nullnull Landim Typewriter Landim Typewriter 2 José Claudinei Lombardi REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO E ENSINO NA OBRA DE MARX E ENGELS Tese apresentada à Faculdade de Educação da Unicamp para a obtenção do título de Livre Docente junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação. UNICAMP – FACULDADE DE EDUCAÇÃO Outubro - 2009 3 Aos meus filhos Maíra (e Serginho), Warody e Araê: amor presente e esperança num futuro melhor. À Mara Regina com quem, no amor e no companheirismo, renovo a esperança no futuro. 4 II - O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da teoria, e sim um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento. O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico. III. A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). XI. Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (Marx, Teses sobre Feuerbach) 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 7 PARTE I - OS EMBATES MARXISTAS COMO PONTO DE PARTIDA............................................. 18 1. MARX E ENGELS COMO PONTO DE PARTIDA... OU DE CHEGADA........................................ 18 2. PÓS-MODERNIDADE E CRÍTICA À RAZÃO MODERNA .............................................................. 20 3. AINDA SOBRE A PÓS-MODERNIDADE: APONTAMENTOS SOBRE JAMESON E CASTORIADIS ............................................................................................................................................. 29 4. MARX MORREU! VIVA MARX! .......................................................................................................... 40 4.1. MARX E ENGELS COMO FACES DE UMA MESMA E ÚNICA MOEDA .......................................................... 44 4.2. A OBRA EM SEU PROCESSO DE PRODUÇÃO: RUPTURA E CONTINUIDADE ................................................ 53 4.3. ORTODOXIA INTELECTUAL NÃO É DOGMATISMO RELIGIOSO.................................................................. 55 5. “MARX MANDA LEMBRANÇAS”. NUMA CONJUNTURA MARCADA PELA CRISE, ESTADOS BUSCAM SALVAR O CAPITALISMO DA AÇÃO PREDATÓRIA DOS CAPITALISTAS ......................................................................................................................................................................... 60 PARTE II – PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS DAS CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS E CIENTÍFICAS............................................................................................................................................... 80 1. FUNDAMENTOS DAS CONCEPÇÕES E MOVIMENTOS DA FILOSOFIA E DA CIÊNCIA (DA HISTÓRIA).................................................................................................................................................... 82 2. CONCEPÇÕES E MOVIMENTOS NA FILOSOFIA E NA HISTÓRIA............................................ 93 3. PROBLEMA FUNDAMENTAL DA FILOSOFIA E O PROBLEMA DO CONHECIMENTO..... 106 4. PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS......................................... 121 4.1. A FILOSOFIA NA GRÉCIA: A RACIONALIDADE DO MUNDO E DO CONHECIMENTO.................................. 131 4.1.1. A Ontologia como Cosmologia.................................................................................................. 131 a) Heráclito de Éfeso ........................................................................................................................... 132 b) Parmênides de Eléia........................................................................................................................ 133 4.1.2. Aristóteles: a racionalidade do mundo e do conhecimento ....................................................... 136 4.2. A ESCOLÁSTICA E A ARTICULAÇÃO DA FILOSOFIA À TEOLOGIA .......................................................... 138 4.3. CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS NA MODERNIDADE .................................................................................... 140 4.4. FRANCIS BACON E O EMPIRISMO ........................................................................................................ 142 4.5. RENÉ DESCARTES E O RACIONANLISMO ............................................................................................. 146 4.6. ILUMINISMO E ENCICLOPEDISMO: LUZES, PROGRESSO E REVOLUÇÃO ................................................. 151 6 5. MINHAS REFERÊNCIAS DE ANÁLISE: AS BALIZAS DO MARXISMO.................................... 178 a) A Revolução como manifestação da transformação contraditória da história ............................... 190 b) A luta de classes como motor e a violência como parteira da história ........................................... 197 PARTE III – MARX, ENGELS E A QUESTÃO EDUCACIONAL....................................................... 208 1. BURGUESIA E PROLETARIADO: PROPOSTAS PEDAGÓGICAS CONTRÁRIAS ................................................ 208 2. A CATEGORIA MODO DE PRODUÇÃO E O PRINCÍPIO DA UNIÃO ENTRE ENSINO E TRABALHO ................... 211 2.1. Modo de Produção como categoria central ................................................................................. 213 2.2. Educação e modo de produção capitalista................................................................................... 216 2.3. Princípio da união entre ensino e trabalho .................................................................................. 218 3. ANÁLISE MARXIANA SOBRE EDUCAÇÃO NO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO ..................................... 221 3.1. A acumulação primitiva de capital ............................................................................................... 223 3.2. Divisão do trabalho, cooperação e manufatura ........................................................................... 229 3.2.1. A cooperação simples ................................................................................................................ 230 3.2.2. A manufatura ............................................................................................................................. 233 3.3. Maquinaria e grande indústria..................................................................................................... 241 4. TRABALHO E INSTRUÇÃO DAS CRIANÇAS TRABALHADORAS................................................................... 263 4.1. O suposto prognóstico de Marx.................................................................................................... 263 4.2. A difusão do uso capitalista do trabalho da criança .................................................................... 265 4.3. Historicidade da utilização da força de trabalho infantil ............................................................ 270 4.4. As condições de trabalho das crianças......................................................................................... 274 4.5. Legislação fabril e regulamentação do trabalho infantil na Inglaterra....................................... 284 4.5.1. A descrição de Engels................................................................................................................ 285 4.5.2. A contribuição de Marx ............................................................................................................. 290 4.6. A instrução infantil ....................................................................................................................... 297 5. MARX E ENGELS: FUNDAMENTOS DA PROPOSTA PEDAGÓGICA COMUNISTA ........................................... 309 6. A REVOLUÇÃO RUSSA E A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA PEDAGÓGICA COMUNISTA ................................ 319 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................... 327 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................... 335 7 Introdução Enfim, o trabalho de pesquisa está pronto e enfrento o desafio de, a posteriori, escrever um texto que possibilite ao leitor conhecer as análises aqui presentes .O resultado da pesquisa vai na forma de minha tese para concurso de livre-docência na Faculdade de Educação da Unicamp. O concurso poderia ter sido feito há alguns anos, com base no currículo e memorial, mas minha decisão foi completar os estudos da obra de Marx e Engels, com o objetivo de entender melhor os fundamentos materiais da educação, a articulação entre modo capitalista de produção e educação. Isso tomou alguns anos, pois não houve como me dedicar exclusivamente a tais estudos, já que as atividades docentes, como preparação de aulas e acompanhamento das turmas, a orientação de pós-graduandos, notadamente a colaboração na produção das dissertações e teses, e a articulação do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR), exigindo atenção prioritária e “ação bombeira” (apagando focos de incêndio Brasil afora). Além disso, também tive que me dedicar ao desenvolvimento de outras pesquisas e que acabam tomando grande parte de minha dedicação exclusiva. Como decorrência dessas muitas frentes de trabalho acadêmico, o currículo foi crescendo, com muitos escritos publicados, em decorrência da participação em eventos e outras demandas de pesquisa. Não deu mais para ir adiando a colocação de um ponto final no trabalho que hora apresento, em função das mudanças políticas que vêm ocorrendo nas Universidades Públicas do Estado de São Paulo, particularmente as mudanças na Carreira Docente da Unicamp. Tive que, forçosamente, acelerar o encerramento de minhas análises, ainda que desejando continuar a pesquisa, fazendo as anotações (eletrônicas) das descobertas e completando os fichamentos das obras lidas. Recordo sempre a observação de Marx, no “Posfácio da Segunda Edição” d’Capital, que me orienta metodologicamente os caminhos que a pesquisa deve adotar: 8 [...] É... necessário distinguir o método de exposição formalmente do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. [...] (Marx, O Capital, 1996, T. 1, p. 140) Por isso mesmo, sei que o material ora apresentado, formalmente, ainda é o resultado do método de pesquisa, pelo qual fui rastreando as questões que se apresentavam a partir dos estudos empreendidos, certamente que tendo o objetivo de entender melhor os fundamentos materiais da produção filosófica e científica, base para o entendimento mais amplo da educação e da pedagogia. Isso só foi feito a partir do aprofundamento de meus estudos sobre a obra de Marx e Engels, que me dão a orientação teórica para entender as transformações do modo capitalista de produção. Na deliciosa e surpreendente viagem que tenho empreendido pela elaboração intelectual historicamente produzida e acumulada pela humanidade, no campo da filosofia, das artes e das ciências, não consigo resistir à tentação de percorrer as picadas que se abrem a partir da estrada principal. E tenho consciência que foram muitos os caminhos e as picadas percorridas. Voltar ao leito da estrada principal nem sempre é tarefa fácil. Considero que ainda não cheguei ao fechamento da pesquisa, tendo uma exposição densa e articulada para expor o movimento real, a partir de suas conexões e relações. Relendo o conjunto dos escritos, decorrência da necessidade de costurar as partes, dando aos capítulos e itens um ordenamento e uma articulação, e apesar desse esforço, considero que as três partes do texto, bem como muitos dos capítulos, podem ser perfeitamente publicados à parte, tendo começo-meio-fim. Mas isso não implica em concordância com a retirada de qualquer parte deste “relatório de pesquisa”, como se isso em nada prejudicasse uma visão de conjunto do percurso percorrido. A tese que apresento se articula a partir de três partes, que chamo de “ensaios analíticos”, com seus capítulos, mas que só têm sentido articulados em função dessa tese. A tese é simples, até mesmo óbvia para o marxismo, qual seja: que a educação (e o ensino) é determinada, em última instância, pelo modo de produção da vida material; isto é, pela forma como os homens produzem sua vida material, bem como as relações aí implicadas, quais sejam, as relações de produção e as forças produtivas são fundamentais para apreender o modo como os homens vivem, pensam e transmitem as idéias e os conhecimentos que têm sobre a vida e sobre a realidade natural e social. 9 Estou afirmando, portanto, que para o marxismo não faz o menor sentido analisar abstratamente a educação, pois está é uma dimensão da vida dos homens que, tal qual qualquer outro aspecto da vida e do mundo existente, se transforma historicamente, acompanhando e articulando-se às transformações do modo como os homens produzem a sua existência. A educação (e nela todo o aparato escolar) não pode ser entendida como uma dimensão estanque e separada da vida social. Como qualquer outro aspecto e dimensão da sociedade, a educação está profundamente inserida no contexto em que surge e se desenvolve, também vivenciando e expressando os movimentos contraditórios que emergem do processo das lutas entre classes e frações de classe. Como se sabe, Marx e Engels não se preocuparam em analisar especificamente a educação ou o ensino, e muito menos em discutir ou propor uma teoria pedagógica. As observações sobre a educação, o ensino e a qualificação profissional encontram-se esparsas no conjunto da obra, geralmente aparecem mescladas às críticas das teorizações e práticas burguesas, como a crítica da economia política e, antes dela, a da filosofia alemã e as das várias matizes de socialismo; essas anotações também se encontram mescladas ao entendimento sobre as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, como na obra de Engels sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, ou no contexto em que analisavam a situação e exploração da classe trabalhadora sob o modo capitalista de produção, como em O capital de Marx. Os estudos em torno dessa tese foram estruturados em três partes: tomei os embates marxistas como meu ponto de partida e que encontram-se na primeira parte; na segunda parte, face à necessidade de entendimento das várias explicações e análises dos fundamentos da educação, fiz uma longa incursão para estudar os princípios das concepções filosóficas e científicas; na terceira parte, por fim, as anotações dos estudos da obra de Marx e Engels, particularmente centradas sobre a problemática educacional, sobre o ensino e a qualificação profissional. Feita essa explicação inicial sobre o conjunto do trabalho, em seguida explorarei mais detidamente o conteúdo, fazendo uma exposição invertida do texto. O conteúdo principal da tese encontra-se exposto na terceira parte do texto, e que assim denominei: “Marx, Engels e a questão educacional”, guardadas as suas articulações fundamentais com as outras duas partes, como já apontei Sendo assim, a exposição formal dessa terceira parte do texto encontra-se dividida em seis capítulos complementares e articulados: o primeiro, intitulado “Burguesia 10 e proletariado: propostas pedagógicas contrárias”; o segundo capítulo trata sobre “A categoria Modo de Produção e o princípio da união entre ensino e trabalho”; no terceiro capítulo, debruçei-me sobre as principais obras de Marx e Engels, explicitando a análise que fizeram sobre o modo capitalista de produção e a educação; no próximo capítulo, o quarto, adentro na polêmica sobre o trabalho e a instrução das crianças trabalhadoras, entendendo melhor o posicionamento de Marx e Engels sobre a questão que ainda hoje guarda atualidade; no quinto capítulo, retomo a questão da conformação de uma pedagogia comunista e, finalmente, no sexto capítulo adentro, brevemente, sobre os desdobramentos e aplicações da pedagogia comunista na Rússia revolucionária. Na segunda parte do trabalho, que intitulei “Fundamentos das concepções e movimentos da filosofia e da ciência (da História)”, apresento os estudos que fiz para compreender os pressupostos metodológicos e teóricos fundamentais da concepção materialista e dialética da história. Meu entendimento foi que Marx e Engels não produziram uma exposição sistemática e sintética desses pressupostos, mas eles foram explicitados no conjunto da obra, notadamente na contraposição a toda forma de idealismo, de empirismo fenomênico, de ceticismo e de subjetivismo. Considero essa sistematização fundamental para minha tese , pois a perspectiva com que esses dois clássicos trataram a educação decorria da posição ontológica, gnosiológica e axiológica antimetafísica que adotaram e que se explicitava numa perspectiva materialista, dialética, objetivista e histórica. Explicitei essa compreensão recorrendo à filosofia e aos grandes pilares teóricos pelos quais, historicamente, foram sistematizados a compreensão do homem sobre o mundo existente (ontologia), sobre o próprio conhecimento (gnosiologia) e sobre as ações e valores humanos (axiologia). O objetivo último dessa parte é que toda essa produção teórica só pode ser observada a partir da sua relação com as demandas concretas, materiais, dos homens desse tempo histórico. Para tanto, a segunda parte encontra-se dividida em cinco capítulos: no primeiro retomo os fundamentos (princípios filosóficos) das concepções e movimentos da Filosofia e da Ciência (da História); no segundo faço um mapeamento e aprofundamento sobre a problemática das “Concepções e Movimentos na Filosofia e na História”; no terceiro capítulo enveredo pela sistematização do que, em Filosofia, se convencionou chamar de “Problema fundamental da Filosofia e o problema do conhecimento”; o quarto capítulo é um passeio histórico pelo “Processo de construção das concepções filosóficas”, no qual exponho as principais questões metodológicas e teóricas da filosofica, desde a antiga Grécia à época moderna, com os diferentes encaminhamentos 11 filosóficos e científicos que resultaram do confronto entre a burguesia e o proletariado; finalmente, no quinto capítulo, faço uma exposição das questões metodológicas e teóricas que considero fundantes para a concepção materialista dialética da história, daí o título dado:: “Minhas referências de análise: as balizas do marxismo”. A primeira parte da tese, em função da opção científica e política pelo marxismo, é uma retomada dos embates recentes com que tenho me defrontado. É uma continuidade de meus “acertos de contas”, ao mesmo tempo em que aproveito para aprofundar algumas questões prementes ao marxismo. A esta primeira parte denominei “Os embates marxistas como ponto de partida”, dividindo o texto em cinco capítulos: o primeiro é um início de conversa, pelo qual coloco “Marx e Engels como ponto de partida... ou de chegada”; o segundo é uma retomada ampliada das críticas que tenho feito à pós-modernidade e sua crítica à razão moderna; o terceiro, é uma dívida teórica que tenho com alguns colegas e aproveito para adentrar no debate sobre a elaboração de Jameson e de Castoriadis; no quarto capítulo entro na polêmica quanto a importância da elaboração de Marx na contemporaneidade, daí o título “Marx morreu! Viva Marx!”; onde polemizo sobre a relação de trabalho entre Marx e Engels e a questão da continuidade ou ruptura na obra marxiana. Nesta parte também dou uma resposta àqueles que “carimbam” a ortodoxia intelectual como dogmatismo; finalmente, o quinto capítulo é um escrito conjuntural sobre a crise econômica, social e política atual, no qual evidencio que é a própria crise que tem colocado em relevo o pensamento de Marx: “Marx manda lembranças. Numa conjuntura marcada pela crise, Estados buscam salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas”. A inclusão dessa primeira parte na tese, colocando-a como um ponto de partida, objetiva dar destaque ao fato de que continua forte o discurso antimarxista. Ainda é relativamente comum a publicação e a divulgação de críticas ácidas quanto à esquerdização da escola, promovida por fiéis defensores de uma perspectiva de franca oposição ao marxismo. Apenas para tomar como exemplo, esse tema recebeu grande destaque em matéria especial da Revista Veja, em edição da semana de 20 de agosto de 2008, e que trouxe na manchete de capa: “O inssino no Brasiu è ótimo” (numa montagem que traz um “aluno” escrevendo no quadro negro, seguida da chamada “Os erros não são só dele. Os estudantes brasileiros são os piores nos rankings internacionais, mas... mais de 90 % dos professores e pais aprovam as escolas”. Respaldando as matérias são apresentados dados de levantamento encomendado pela Revista a uma das incontáveis empresas de pesquisa de 12 opinião pública, apresentada como “pesquisa encomendada por Veja à CNT / Sensus” e que traduz o lamentável quadro em que se encontra a educação brasileira. Numa matéria em que a ideologização é mal disfarçada com uma aura de cientificidade, neutralidade e correção das informações, pródiga em adjetivações, mostra que “sob a plácida superfície essa satisfação esconde o abismo da dura realidade – o ensino no Brasil é péssimo, está formando alunos despreparados para o mundo atual, competitivo, mutante e globalizado” (Veja, Edição 2074, ano 41, número 33, 20 de agosto de 2008, p. 73 e 74). Na continuidade da matéria, sob o título “Prontos para o século XIX”, ilustrando a imagem uma montagem do símbolo do comunismo (Foice & Martelo cruzado), com uma caneta como cabo da foice e um lápis como cabo do martelo, após narrar dois episódios, presenciados pelos repórteres da Veja, que mostram professores em sala de aula fazendo crítica ao modo capitalista de ser e pensar e, supostamente, fazendo apologia da esquerda. As jornalistas são enfáticas, argumentando que os episódios e a pesquisa, “exemplificam uma tendência prevalente entre os professores brasileiros de esquerdizar a cabeça das crianças” (Idem, p. 77). Caracterizando o mundo atual como aquele em que “a empregabilidade e o sucesso na vida profissional dependem cada vez mais do desempenho técnico, do rigor intelectual, da atualização do pensamento e do conhecimento”, concluem que, em lugar de formar, “A doutrinação esquerdista é predominante em todo o sistema escolar privado e particular” (Idem, p. 77), contribuindo, assim, para o insucesso e o fracasso escolar. De acordo com as repórteres, os alunos estão sendo preparados para viver no século XIX, quando o marxismo surgiu como ideologia modernizante; neste início do século XXI, entretanto, “o comunismo destruiu a si próprio em miséria, assassinatos e injustiças durante suas experiências reais no século passado” (Idem, ibidem). O controverso registro sobre Marx bem expressa a ideologização e o despreparo intelectual para o trato de um clássico, seguramente pouco lido também nos cursos de jornalismo: [...] Os professores esquerdistas veneram muito aquele senhor que viveu à custa de um amigo industrial, fez um filho na empregada da casa e, atacado pela furunculose, sofreu como um mártir boa parte da existência. Gostam muito dele, fariam tudo por ele, menos, é claro, lê-lo – pois Karl Marx é um autor rigoroso, complexo, profundo que, mesmo tendo apenas uma de suas idéias ainda levada a sério hoje – a Teoria da Alienação –, exige muito esforço para ser compreendido. [...] (Idem, ibidem) 13 Lamentavelmente são usados trechos de posicionamentos de professores que parecem respaldar as denuncias feitas nas matérias, como o da professora Sonia Castellar, descrita como uma geógrafa “que há 20 anos dá aulas na faculdade de pedagogia da Universidade de São Paulo” e autora de um dos livros criticados na matéria. Segundo a matéria a professora afirmou que “Eu e todos os meus colegas professores temos, sim, uma visão de esquerda – e seria impossível isso não aparecer em nossos livros. Faço esforço para mostrar o outro lado” (Idem, p. 86). Também aparece na matéria trecho de entrevista de Miguel Cereza, responsável por apostilas do COC: “Reconheço o viés esquerdista nos livros e apostilas, fruto da formação marxista dos professores. Mas não temos nenhuma intenção de formar uma geração de jovens socialistas” (Idem, p. 86). Num caso e no outro, a matéria remete à formação (ou deformação) dos professores. Fechando a reportagem, a Revista remete para o posicionamento dos que são “contrários à doutrinação”: a ONG Escola Sem Partido, fundada pelo advogado Miguel Nagib, e que mantém um site1 para expressar seus posicionamentos. Na apresentação da ONG no site, é exposto o princípio de que, numa sociedade livre, “as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade”. Segundo o site, tanto as escolas públicas como as privadas não cumprem esse papel, daí resolveram colocar “à disposição de estudantes universitários e do nível médio um espaço no qual poderão expressar suas opiniões sobre professores, livros e programas curriculares que ignoram a radical diferença entre educação e doutrinação”2. Pressupondo, portanto, a possibilidade de neutralidade na transmissão de saberes, normas, valores e padrões sociais, ancorados numa suposta diferença conceitual entre “educação” e “doutrinação”, os responsáveis pela ONG conclamam pais, alunos e demais cidadãos à combater a doutrinação ideológica nas escolas brasileiras. Merece registro a afirmação de que a doutrinação precisa ser comprovada e que a prova disso são “testemunhos das vítimas” e a “formação de um acervo de documentos, artigos, estudos e livros didáticos que corporifiquem o ‘delito’ de doutrinação”. A comprovação das denúncias de esquerdização dos alunos pelos professores, entretanto, na teoria e na prática, acaba resultando na igualmente apologética 1 O link é: http://www.escolasempartido.org/ 2 Citação do site: [http://www.escolasempartido.org/index.php?id=38,1,topico,2,22,new_topic ] 14 defesa da perspectiva oposta – isto é, na defesa no mais deslavado liberalismo e numa perspectiva declaradamente de direita. Não é preciso muito esforço analítico para demonstrar que o combate à doutrinação é feito através da doutrinação inversa. Isso é o que se constata no elenco de “Artigos” postados no site3, bem como nos “Depoimentos” e em outros acervos que ali se disponibiliza. Voltando à matéria da Veja, a suposta ideologização e esquerdização promovida pelo sistema escolar público e privado brasileiro, aparece como uma decorrência da falta de preparo dos professores para o desempenho de suas funções, recorrendo-se a dados estatísticos sobre a qualificação docente: 52 % dos professores não receberam formação específica para lecionar as disciplinas que ministram, 22 % deles sequer receberam algum tipo de formação superior (Idem, p. 80). A reportagem afirma que, para os professores, “os chavões de esquerda servem como uma espécie de muleta, um recurso a que se recorre na falta de informação”. Para respaldar a responsabilização dos próprios professores pela situação, recorrem a um trecho de depoimento do historiador Antonio Villa: “Repetir meia dúzia de slogans é muito mais fácil do que estudar e ler grandes obras. Por isso, a ideologização é mais comum onde impera a ignorância” (Idem, ibidem). Na ausência de uma análise mais acurada, com dados mais profundos e sólidos argumentos, para os efeitos apologéticos pretendidos por essa conhecida Revista, funciona o recurso das quantificações e das afirmações soltas, inclusive recorrendo e distorcendo trechos, pois os colocam fora do texto e do contexto, de intelectuais da envergadura de Simon Schwartzman e de Hannah Arendt. Ao fazer as anotações motivadas pela reportagem da Revista Veja, também me lembrei das várias pesquisas desenvolvidas sobre o curso de Pedagogia e a formação conteudística veiculada na formação de professores. Entre essas, recordo-me particularmente das pesquisas coordenadas por Susana Jimenez, pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará e cujos resultados encontram-se em vários trabalhos publicados. Uma primeira pesquisa, exploratória, ocorreu entre 2001 e 2002, desenvolvida por pesquisadores do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário (IMO), do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Essa pesquisa debruçou- se sobre o Curso de Pedagogia como espaço de formação do educador, num contexto em que os cursos ministrados em universidades públicas convivem com cursos 3 O acesso à lista de artigos é feita a partir do seguinte link: 15 “flexibilizados” de formação pedagógica e que visam “qualificar em massa os professores das redes estaduais e municipais de ensino” (Jimenez e Barbosa, 2004, p. 205). A pesquisa coletou, através de questionário, as opiniões dominantes quanto ao papel do curso de Pedagogia, concluindo que predomina a visão que atribui grande importância à educação para o desenvolvimento do país, seguida pela defesa da importância de uma formação crítico-reflexiva do professor e, na seqüência, pela “formação para a cidadania e pelo desenvolvimento de habilidades e competências” (Idem, p. 219). Tomando por base os dados de pesquisa com os alunos, os autores não têm dúvida quanto ao significado das arraigadas opiniões sobre a educação: “... o quadro representado pelas indicações dos alunos acerca dos principais eixos norteadores do Curso de Pedagogia traduz com expressiva fidelidade os parâmetros dominantes no campo da formação do professor, que conjugam o aporte da imorredoura teoria do capital humano ao revisitado instrumentalismo da pedagogia das competências, temperado com a noção da cidadania acriticamente alçada ao status de medida suprema de todos os projetos e paradigmas sócio educacionais da aludida pós-modernidade. [...]” (Jimenez e Barbosa, 2004, p. 219-220). Essa orientação hegemônica, de recorte claramente liberal, certamente entoada de norte a sul do Brasil, convive com “com os defensores de uma concepção dialética da educação” (Idem, p.220), como que expressando as contradições de classe características da sociedade capitalista. A continuidade do desenvolvimento dessa pesquisa foi direcionada para o entendimento da presença do marxismo no curso de Pedagogia, com dados coletados através dos programas curriculares e em entrevistas com professores na Universidade Estadual do Ceará, concluindo que é rarefeito “o comparecimento... do marxismo no espaço da formação docente”. O resultado da pesquisa aponta que o marxismo aparece: 1) ecleticamente articulado a outras concepções, pela mescla de categorias diferenciadas e divergentes de análise teórica; 2) numa perspectiva academicista de tomá-lo juntamente com outros clássicos; ou ainda, 3) de tomá-lo como um dos representantes clássicos de disciplinas particulares. Em síntese, os resultados da pesquisa de Jimenez expressa que o marxismo é “desfrutado em migalhas dispersas, mescladas a categorias contrapostas de análise do real, quando não ajustadas a um diálogo esdrúxulo com os chamados paradigmas emergentes, acoplados ao ideário da cidadania planetária e http://www.escolasempartido.org/?id=38,1,topico,2,1,new_topic,, 16 da inclusão social”; e que, em muitos programas de curso, as referências a Marx fazem um divórcio “entre o Marx filósofo, analista da sociedade do capital – sendo lícito, como tal, contemplá-lo em alguma medida em disciplinas de filosofia ou sociologia – e o Marx pensador revolucionário comprometido com o comunismo” (Jimenez, In Tonet, 2007, p. 5) Num relato mais alongado dos resultados dessa pesquisa, debruçando-se sobre as disciplinas que tomam o marxismo como uma referência programática, em linhas gerais, concluiu como segue: [...] no contexto analisado, o legado marxista é desfrutado, predominantemente, em fragmentos pouco conectados entre si, quando não se ajuntam estes com categorias atinentes a perspectivas contrapostas de análise do real. Em alguns casos, empregam-se terminologias ou formulações claramente afinadas com o campo marxista, porém as unidades do programa ou as indicações bibliográficas não se coadunam com tal orientação; em outros, o referencial marxista é levado a travar um diálogo esdrúxulo com os chamados paradigmas emergentes, desconsiderando o fato de que estes cumprem, precisamente, o papel de superar a suposta obsolescência do marxismo. Em outras instâncias, ainda, situam Marx e o marxismo em campos opostos, tomando o marxismo, impreterivelmente, como doutrina, como dogma, sendo, como tal, rejeitado. Ou, então, aprecia-se o Marx filósofo, clássico dentre os grandes clássicos, desconsiderando, contudo, sua condição de teórico da revolução proletária. Por fim, reparte-se Marx entre o bom – o que contribui para uma noção de práxis, o desenvolvimento de uma consciência crítica – e o mau –aquele do determinismo econômico, avesso ao humanismo, incapaz, em suma, de reconhecer o ser social para além da esfera do homo economicus. (Jimenez et.al., 2006) A rarefação do marxismo, entretanto, não deve levar à conclusão apressada de aceitação irrestrita do status quo e, muito menos, com a ocorrência de “despreocupação leviana” quanto a formação docente. Os resultados da pesquisa apontam para “o comparecimento, ainda que marcadamente irregular e problemático, do marxismo ... no espaço de formação pedagógica considerado na pesquisa” (Idem, ibidem). Na perspectiva da crítica ao marxismo, a pesquisa aponta que são usados autores que fazem uma desqualificação generalizada do marxismo, notadamente aqueles que apontam a associação entre o marxismo, o socialismo e a tragédia stalinista; também aqueles que promovem o divórcio entre o Marx filósofo, teórico do capitalismo, e o Marx pensador revolucionário, comprometido com a construção estratégica do comunismo. Esse último aspecto é ancorado no entendimento de que o marxismo sofreu, nessas últimas décadas um de seus maiores ataques ideológicos, “Fruto de uma contra-ofensiva político- 17 ideológica levada a cabo pelos ideólogos, partidos, líderes políticos e meios de comunicação do imperialismo” e que “se estendeu às universidades refletindo-se no avanço de ideologias reacionárias” Cerdeira (1999, p. 131). Assim, ao mesmo tempo em que se aponta a atualidade da análise de Marx sobre o capitalismo, este é condenado como “defensor da revolução socialista, do internacionalismo, da organização da classe em partido e do potencial revolucionário da classe operária”, do que conclui que “Ao separar o Marx analista do Marx revolucionário procura-se esterilizar o próprio marxismo” (Idem, ibidem). Tratando das concepções que norteiam a formação de professores, a pesquisa aponta para a hegemonia da perspectiva crítico-reflexiva que explicita seu desacordo com o marxismo no que diz respeito à relação entre educação e prática social. Para Jimenez, essa postura pode ser exemplificada com o livro Escola Reflexiva e Nova Racionalidade (2001), organizado por Isabel Alarcão, da Universidade de Aveiro (Portugal), centrado na defesa de uma suposta necessidade de “adequar a educação às novas exigências postas pela sociedade global e tecnológica contemporânea, por meio de uma mudança paradigmática que conduza a escola na direção da formação reflexiva” (Jimenez, 2006). Na referida obra, Alarcão (2001, p. 22) é uma enfática defensora do ideário cidadão, pelo qual à escola reflexiva caberia não só preparar para o exercício da cidadania, mas, principalmente, praticar e viver a cidadania. É nesse aspecto que Jimenez foca sua crítica: “tal paradigma elege a cidadania como o eixo por excelência da propositura pedagógica”, circunscrevendo-se num sentido “oposto àquele embutido numa abordagem marxista da educação” (Idem). Delimitando a cidadania ao horizonte da ordem burguesa, ideologicamente esta categoria é tomada como sinônimo de emancipação, pretensamente esvaziando a perspectiva revolucionária do marxismo. Encerrando esta introdução, gostaria de explicar aos membros da banca que o texto foi sendo escrito muito gradavidamente, pari passu aos estudos para a preparação de palestras e conferências, com muitos desses textos posteriormente publicados, bem como para a preparação de aulas. Disso resultou o uso de uma multiplicade de obras, de diferentes traduções e edições, bem como na referência a citações iguais, mas com dados bibliográficos diferentes. Fiz um esforço por uniformizar as referências, mas muitas ainda permaneceram mesmo após a revisão final. Oportunamente, quando da publicação do presente trabalho, essas questões estarão resolvidas. 18 PARTE I - Os embates marxistas como ponto de partida 1. Marx e Engels como ponto de partida... ou de chegada Em minha tese de doutorado, "Marxismo e História da Educação: Algumas reflexões sobre a historiografia educacional brasileira recente" (Lombardi, 1993), tomei como ponto de partida os posicionamentos em voga na historiografia educacional brasileira, marcados pelo discurso “novidadeiro”, e que, ainda hoje, considero tratar-se apenas de mais um tipo de discurso isolado, localizado ou simplesmente pontual na área dos conhecimentos humanos e sociais. Esse discurso apologético do novo também se tornou moda na educação, ficando evidente que trata-se de um posicionamento politicamente caudatário de uma perspectiva negadora da revolução e da transformação da história. Trata-se, particularmente, de uma postura de ataque e confronto com o marxismo. Desnecessário repetir aqui os argumentos articulados pela grande imprensa para desqualificar o marxismo, apresentando Marx e Engels como ultrapassados e típicos pensadores do século XIX. No geral afirma-se que assumir o marxismo é adotar uma perspectiva envelhecida, que não tem mais nada a dizer para o homem globalizado do século XXI. Argumenta-se que a falência do marxismo, por outro lado, decorre do fracasso de sua aplicação - na União Soviética e nos países que adotaram o regime socialista - e que se constituiu no seu resultado mais dileto. No meio intelectulizado a argumentação não é totalmente diferenciada de sua apologética vulgada, dela diferindo apenas por uma maior sofisticação argumentativa quanto à falência marxista. Como já explicitei em alguns outros trabalhos, desde minha tese de doutoramento, a argumentação em prol de "novos objetos", de "novos problemas", de "novos métodos" e de "novas fontes" para a pesquisa histórico- educacional brasileira é tributária das posturas que pressupõem a existência de uma crise dos paradigmas das Ciências Humanas e Sociais. Essa crise marca o colapso de um modelo 19 de análise de caráter macroscópico, privilegiador das regularidades sociais, com uma lógica vinculada à tradição da modernidade, de fé na razão, etc. Enfim, trata-se de um tipo de pensamento racionalista e determinista há muito ultrapassado e em crise insuperável. Nesse raciocínio, a defesa da razão, da ciência, da objetividade, da verdade, do progresso e da revolução, faz parte das perspectivas intelectuais cultuadoras da modernidade e, portanto, a um "velho" e ultrapassado modo de pensar; ao contrário deste, os movimentos sociais, culturais e intelectuais de crítica à sociedade realmente existente e que tendem para a valorização do fragmentário, do microscópico, do cotidiano, do singular, do efêmero, do imaginário, são ligados ao novo e, mais que isso, ao diversificado movimento intelectual de crítica à modernidade e à razão moderna. Nesse sentido, não tive dúvidas em vincular tal onda novidadeira ao movimento artístico e intelectual que se auto-denomina pós- modernidade. Já em meados da década de 1980, a absorção da suposta crise dos paradigmas filosóficos e científicos delineava o cenário que viria a seguir: a instauração de um novo movimento, articulando a velha dicotomização entre o novo (ou pós) e o velho. Com isso o discurso novidadeiro foi se fortacelendo e, com ele, o espaço educacional (também o artístico, filosófico e científico) foi sendo tomado pela ênfase no particular, no cotidiano, no efêmero, no imaginário, na cultura, na memória. Na trilha de afirmar a existência de uma profunda crise dos paradigmas, essas elaborações foram sendo impregnadas pelo irracionalismo, pelo subjetivismo e, enfim, no limite, pela perda da própria perspectiva histórica. Penso que, hoje, esse movimento conquistou hegemonia no campo educacional. Atualmente reduziu-se a força dos chamamentos da pós-modernidade e nem mais se fala muito sobre o assunto. Tenho a impressão que a onda, o modismo, do movimento pós-moderno está passando, não sem antes ter o discurso novidadeiro conseguido penetrar fortemente na Filosofia, na Ciência e na Educação, tornando a ênfase no particular, na subjetividade, no discurso e na memória, uma presença hegemônica na pesquisa e na prática educacional. Apesar da dúvida quanto a continuidade desse modismo pós-moderno, que se auto denomina “pós”, usando o prefixo de origem latina que exprime a noção de posterioridade no tempo e no espaço, penso que ainda é importante registrar (ou retomar), de maneira mais detalhada o debate pós-modernista e a crítica que fazem ao marxismo. Essa crítica pós-moderna geralmente coloca como ponto de partida uma suposta 20 insuficiência analítica do marxismo para dar conta da "realidade social da atualidade". Entendem que, como não é somente a análise teórica do marxismo que não é suficente para apreender a complexidade dos tempos pós-modernos, abrangendo o conjunto das concepções metodológicas e teóricas forjadas na modernidade, abriu-se uma profunda crise dos paradigmas filosóficos e científicos da modernidade. 2. Pós-modernidade e crítica à razão moderna Já tendo delineado as características gerais das críticas sofridas pelo marxismo, e que acabou ficando como o quarto capítulo da tese de doutorado (Lombardi, 1993, pp. 270-323), na qual demonstrei que se tratava de uma retomada (ou continuidade) de velhos embates, considerei fundamental o embate teórico com a pós-modernidade. Foi de grande valia as reflexões de João Emanuel Evangelista, tomando por base o livro publicado em 1992 sob o título Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno, uma versão de sua dissertação de mestrado, intitulada ”Práxis e consciência operária: resistência dos trabalhadores no cotidiano da indústria têxtil no Rio Grande do Norte”, defendida no Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Para Evangelista a crítica pós-moderna é (auto)justificada pelo fato de que "a realidade social na atualidade apresenta novidades incapazes de serem captadas por um referencial holístico da sociedade como... o marxismo", como afirma José Willington Germano na Apresentação ao livro (Evangelista, 1992, p. 7). É exatamente esse o significado da chamada "crise de paradigma": é a pressuposição de que a perspectiva racionalista, realista, objetivista e historicista não é mais suficiente para apreender teoricamente uma realidade que mudou substancialmente (Idem, p. 10). A realidade social contemporânea foi mudando radicalmente, e as teorias sociais foram se mostrando insuficientes para o entendimento dos novos fenômenos sociais das sociedades contemporâneas. É nesse quadro de crise do pensamento moderno que tem sido considerada a "crise do marxismo", ao mesmo tempo em que se busca sua superação por uma "nova" teorização do social. Em sua análise sobre a chamada "crise do marxismo", Evangelista afirma que, para esses críticos, o equívoco básico do marxismo foi em considerar que a lógica articuladora dos acontecimentos da sociedade capitalista era como que a "dimensão 21 ontológica" de toda sociedade burguesa (Idem, p. 14). Como a teoria marxista está imersa no modo típico de pensar dos séculos XVIII e XIX, suas análises estão baseadas em formulações "racionalistas" e "deterministas" que o levam a interpretar de modo determinista e mecanicista todo processo histórico-social (Idem, ibidem). Como as demais formulações racionalistas e objetivistas, também o marxismo tornou-se uma teoria marcada pela “defasagem entre suas teses constitutivas e a realidade social efetiva” (Idem, ibidem), assim sintetizada pelo autor: ... o desenvolvimento das sociedades contemporâneas não proporcionou a polarização crescente entre a burguesia e o proletariado, nem muito menos as contradições resultantes do desenvolvimento das forças produtivas conduziram à revolução socialista, dirigira pelo proletariado. Ou seja, a ‘necessidade’ histórica não se afirmou no desenrolar dos acontecimentos históricos, culminando no fim teleológico da sociedade sem classes. [...] (Evangelista, 1992, p. 15) Ao contrário do proletariado cumprir sua “missão histórica”, protagonizando o revolucionar da sociedade em direção ao socialismo, as organizações proletárias foram abandonando gradativamente a perspectiva revolucionária. Politicamente foram assumindo a defesa de reformas sociais, levantando bandeiras em prol da melhoria das condições de vida e de trabalho nas sociedades capitalistas avançadas. Para os pós-modernos a crise do marxismo tornou-se aguda e inexorável com a emergência dos novos movimentos sociais da década de 1960 - movimento estudantil, feminista, homossexual, ecológico, pacifista, etc. Junto com a explosão desses movimentos, 1968 se tornou um novo marco histórico, quando novos sujeitos sociais e políticos emergiram, colocando em segundo plano o velho movimento operário, com seus sindicatos e partidos. Opondo o novo ao velho, a perspectiva novidadeira assim trata dessas mudanças [...] O cotidiano passou a ser descoberto 'enquanto espaço de reprodução da dominação ou de resistência contra ela', produzindo-se a 'politização do social' e o 'estilhaçamento da política'. A 'velha política' foi substituída pela 'nova política'... A estratégia de 'tomada do poder' caducou e cedeu lugar à 'contestação imediata e cotidiana de cada relação de dominação'. [...] O surgimento de novos movimentos sociais levou à constituição de novos sujeitos políticos que, assim, implicou na criação de novos espaços políticos, fora do plano institucional, que ensejarão nvas práticas sociais e novas representações simbólicas... (Idem, pp. 16-17). 22 Com a pós-modernidade, nomes como os de Nietzsche, François Lyotard, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard, Jürgen Habermas, Gilles Lipovetsky, passaram a povoar o ambiente intelectual, como os “grandes profetas do apocalipse” e grandes baluartes de um novo tempo. Os conceitos e a teorização filosófica e social variam conforme os autores, mas todos querem expressar que se adentrou numa nova era – daí os termos pós-moderna, hiper-moderna, modernidade líquida. Também passaram a ser referência obrigatória os nomes de Fredric Jameson e David Harvey que, mantendo o marxismo como referência de suas análises, de forma não necessariamente explicita acabaram aderindo de modo crítico à pós-modernidade. Como observou Perry Anderson, em As Origens da Pós-Modernidade (1999), a noção de "pós-modernismo" surgiu, pela primeira vez, no mundo hispânico, na década de 1930, com uma geração de antecedência de seu aparecimento na Inglaterra ou nos EUA. Conta Anderson que Fredcerico de Onís, um amigo de Unamuno e Ortega, usou o termo pela primeira vez, para descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo. Entretanto, é praticamente unânime considerar-se que o uso contemporâneo do conceito de pós-modernidade foi introduzido por Jean-François Lyotard, em seu livro A Condição Pós- Moderna, originalmente publicado em 1979. Nessa obra o autor utiliza o conceito de "jogos de linguagem", desenvolvido por Ludwig Wittgenstein, como característica da experiência pós-moderna, assim como a fragmentação e multiplicação de centros, e a complexidade das relações sociais dos sujeitos. Para Lyotard a condição pós-moderna caracteriza-se pelo fim das metanarrativas, quando os grandes esquemas explicativos caíram em descrédito, não mais havendo garantias, de espécie alguma, pois até mesmo a "ciência" já não poderia ser considerada como a fonte da verdade (Lyotard, 1987). Fui levado a um maior aprofundamento4 do tema com a organização dos debates e, posteriormente, a publicação do livro Globalização, pós-modernidade e educação (Lombardi, 2001). A sistemtização de Sanfelice (2001, p. 3-12), para este livro, 4 Aprofundamento, pois já vinha trabalhando com o tema sobre a pós-modernidade, a partir das reflexões feitas por Saviani, em Educação e questões da atualidade (SAVIANI, D., 1991). Para Saviani, a emergência dos "pós" ou "neos" está relacionado ao período de decadência ideológica e cultural da burguesia, caracterizado pela contradição entre o avanço material e uma espécie de estagnação cultural (Idem, p. 23). Num quadro marcado pela contradição, o papel da pós-modernidade é de obscurecer os paradoxos, pois em lugar de desvendar a sociedade capitalista (em seu período monopolista), sua preocupação "é o deleitar-se com a informatização da sociedade, com os processos da digitação". A partir de tal entendimento, Saviani deu uma interpretação interessante quanto à pressuposta passagem da modernidade à pós- modernidade: "... se a era da modernidade foi inaugurada com aquela frase de Descartes 'cogito, ergo sum' 23 possibilitou um entendimento sintético de como se forjou o termo e a problemática pós- modernista. Sanfelice relaciona a chegada do termo pós-modernidade, a partir das considerações de Lyotard, ao surgimento de uma sociedade pós-industrial que tinha o conhecimento como sua principal força econômica de produção, ainda que tivesse perdido suas legitimações tradicionais. Assim, o traço fundamental da condição pós-moderna foi a perda da credibilidade das meta-narrativas, pois “a ciência atrelou-se ao capital, ao Estado e a verdade ficou reduzida ao desempenho, à eficiência” (Sanfelice, 2001, p. 3). Sanfelice registra que o livro de Lyotard “foi o primeiro a tratar a pós-modernidade como uma mudança geral na condição humana”, sendo que sua influência “inspirou um relativismo vulgar como marca do pós-modernismo, tanto visto pelos ‘amigos’ como pelos ‘inimigos’” (Idem, p. 4). Com Lyotard deu-se o anuncio da morte de todas as grandes narrativas, notadamente, e acima de tudo, a do socialismo clássico, mas também incluiu a redenção cristã, o progresso iluminista, o espírito hegeliano, a unidade romântica, o racismo nazista e o equilíbrio econômico” (Idem, ibidem). Também Sanfelice recolocou o posicionamento de Jünger Habermas sobre o tema, uma vez que, em 1980, com um discurso em Frankfurt - "Modernidade - Um projeto incompleto" - tornou-se um referencial no tema pós-modernidade. Sobre esse seu discurso, foi o próprio Habermas que o situou no âmbito do debate sobre a pós-modernidade nos termos que seguem: ‘A modernidade - um projeto inacabado’ era o título de um discurso que proferi em setembro de 1980 quando me foi feita entrega do Prêmio Adorno. Este tema, tão polêmico e multifacetado, acompanhou-me sempre deste então. Na esteira de recepção do neo-estruturalismo francês, os aspectos filosóficos desse tema foram objeto de um interesse público cada vez maior - o mesmo acontecendo com o conceito-chave "pós-modernidade" na seqüência de uma publicação de J. F. Lyotard". (Habermas, 1990, p. 11) Retomando Lyotard e, depois, Habermas, a síntese de Sanfelice aponta para o caráter da pós-modernidade: trata-se de uma expressão política da direita, uma vez que, igualmente, não passa de expressão ideológica do capitalismo: O campo conceitual, aos poucos mostrou uma espécie de identidade: era ideologicamente consistente e a idéia de pós-moderno, da maneira como foi (penso, logo existo) a era da pós-modernidade parece substituir aquela frase por esta outra: 'digito, ergo sum' (digito, logo existo)" (Idem, p. 24-25). 24 assumida, era de uma forma ou de outra, apanágio da direita. A democracia liberal passou a ser o horizonte insuperável da época (década de 80) e não podia haver nada mais que o capitalismo. O pós-moderno passou a ser uma sentença contra as ilusões alternativas. (Sanfelice, 2001, p. 5) A pós-modernidade, sendo expressão ideológica da base material capitalista, acaba se constituindo numa perspectiva com profunda cumplicidade com a lógica de mercado e, politicamente, com a direita; por isso é que Sanfelice explicita que se trata de “um fenômeno” e este “expressa uma cultura da globalização e da sua ideologia neoliberal” (Idem, p. 7). ================== XXXXXXXXXXXXX ================== (Abrindo parênteses: (Penso que proximamente será importante me debruçar para estudar mais profundamente o pensamento de dois outros autores, certamente imersos na (des)construção do pensamento contemporâneo, mas que preferem evitar o termo pós- modernidade e cujos exemplos emblemáticos são Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925) foi um dos principais popularizadores do termo pós-modernidade, no sentido de forma póstuma da modernidade. Ao longo da década de 1990, entretanto, foi preferindo usar a expressão "modernidade líquida", buscando assim expressar uma realidade ambígua, multiforme, e que ele expressou tomando uma clássica marxiana: tudo o que é sólido se desmancha no ar. Bauman tornou- se conhecido por suas análises das ligações entre a modernidade e o holocausto, e também a modernidade e o consumismo pós-moderno. Autor de prodigiosa produção intelectual, muitas de suas obras foram publicadas no Brasil (pela Jorge Zahar Editor), todas de grande sucesso editorial, dentre as quais se destacam: Modernidade e Holocausto (1989), Modernidade e Ambivalência (1991), Modernidade Líquida (2000), Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos (2003), Vidas Desperdiçadas (2004), Vida Líquida (2005), Medo líquido e Tempos líquidos (ambos publicados em 2006).5 O outro autor obrigatoriamente relacionado à temática é o filósofo francês Gilles Lipovetsky (1944) que analisa em sua obra A Era do Vazio (1983) uma sociedade pós-moderna, segundo ele marcada pelo desinvestimento público, pela perda de sentido das 5 Esse necessidade de aprofundamento foi aguçada pela leitura de uma entrevista de Bauman à Revista eletrônica Tempo Social, vol. 16, no. 1, São Paulo, June 2004. Acesso através do seguinte link: 25 grandes instituições - morais, sociais e políticas - e por uma cultura aberta na qual predominam a tolerância, o hedonismo, a personalização dos processos de socialização e a coexistência pacífico-lúdica, marcada por antagonismos - como violência x convívio, modernismo x conservadorismo, ambientalismo x consumo desregrado, etc. Dessa posição o autor busca outro tratamento para as visões da sociedade, usando o conceito de hipermodernidade para expressar que não houve, de fato, uma ruptura com os tempos modernos. Segundo Lipovetsky, os tempos atuais são "modernos", com uma exarcebação de certas características típicas de sociedades modernas, tais como: individualismo, consumismo, ética hedonista, fragmentação do tempo e do espaço. O conceito de hipermodernidade surgiu na década de 1970, mas passou a ser usado para expressar o momento atual da sociedade humana, o que se deu com a publicação do livro Os tempos hipermodernos (Lipovetsky, 2004). O termo “hiper” é utilizado em referência a uma exacerbação dos valores criados na modernidade que, para o autor, caracterizam-se por uma cultura do excesso, do sempre mais, onde tudo se torna intenso e urgente. O movimento constante é a marca das mudanças que ocorrem em um ritmo quase esquizofrênico, determinando um tempo marcado pelo efêmero, no qual a flexibilidade e a fluidez aparecem como tentativas de acompanhar essa velocidade. Nessa sociedade, tudo é elevado à máxima potência, como hipermercado hiperconsumo, hipertexto, hipercorpo... Os títulos de suas obras, cujas referências encontram-se na internet6, expressam a perspectiva com que Lipovetsky trata a sociedade contemporânea: A Felicidade Paradoxal; O Império do Efêmero: a Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas; A Inquietude do Futuro: o tempo hiper-moderno; O Luxo Eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas; Metamorfoses da Cultura Liberal; A Sociedade da Decepção; A Sociedade Pós-Moralista; Os Tempos Hipermodernos; A Terceira Mulher.) Fechando parênteses) ================== XXXXXXXXXXXXX ================== Para uma caracterização mais didática sobre a pós-modernidade, tomei Jair Ferreira dos Santos e seu O que é pós-modernidade, buscando com isso uma exposição [http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20702004000100015&script=sci_arttext´] 6 Ver, por texemplo, o verbete biográfico do autor na biblioteca digital aberta: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gilles_Lipovetsky 26 mais sintética, encurtando caminhos para melhor entender esse movimento novidadeiro de nosso tempo e a matriz com que concebe o mundo (isto é, sua matriz ontológica) e a possibilidade de conhecimento sobre ele (sua gnosiologia): [...] Descobriu-se há alguns anos, com a Lingüística, a Antropologia, a Psicanálise, que, para o homem, não há pensamento, nem mundo (nem mesmo homem), sem linguagem, sem algum de Representação. Mais: a linguagem dos meios de comunicação dá forma tanto ao nosso mundo (referente, objeto), quanto ao nosso pensamento (referência, sujeito). Para serem alguma coisa, sujeito e objeto passam ambos pelo signo. A pós-modernidade é também uma Semiurgia, um mundo super- recriado pelos signos. [...] Na pós-modernidade, matéria e espírito se esfumam em imagens, em dígitos num fluxo acelerado. A isso os filósofos estão chamando de desreferencialização do real e dessubstancialização do sujeito, ou seja, o referente (a realidade) se degrada em fantasmagoria e o sujeito (o indivíduo) perde a substância anterior, sente-se vazio. (Santos, 1987, p. 15) Para o autor, a opção pós-moderna, ao contrário das velhas elaborações filosóficas e científicas, não é pela fixação de esquemas teóricos pré-determinados, mas é assumir o ecletismo, marcado pela ausência de toda e qualquer unidade, isto é: é uma “metamorfose ambulante”, lembrando a conhecida música de Raul Seixas e que marca uma perspectiva aberta, plural e transformista: [...] o pós-modernismo é um ecletismo, isto é, mistura várias tendências e estilos sob o mesmo nome. Ele não tem unidade; é aberto, plural e muda de aspecto se passamos da tecnociência para as artes plásticas, da sociedade para a filosofia. Inacabado, sem definição precisa, eis por que as melhores cabeças estão se batendo para saber se a "condição pós-moderna" - mescla de purpurina com circuito integrado - é decadência fatal ou renascimento hesitante, agonia ou êxtase. Ambiente? Estilo? Modismo? Charme? Para dor dos corações dogmáticos, o pós- modernismo por enquanto flutua no indecidível. (Santos, 1987, p. 19) Contrapondo-se a quaisquer das perspectivas identificadas com as matrizes filosóficas antecedentes que pressupõem o real, a razão, o conhecimento, o social, etc., o ecletismo pós-moderno é irrealista, irracionalista, subjetivista, descontrucionista, hiper- individualista, niilista, etc. Santos não camufla essas características, mas as coloca em relevo, como se constata na citação a seguir: [...] O pós-modernismo está associado à decadência das grandes idéias, valores e instituições ocidentais - Deus, Ser, Razão, Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Sujeito, Consciência, Produção, Estado, Revolução, Família. Pela desconstrução, a filosofia atual é uma reflexão sobre uma aceleração dessa queda no niilismo... 27 desejo de nada, morte em vida, falta de valores para agir, descrença em um sentido para a existência. A desconstrução pretende revelar o que está por trás desses ideais maiúsculos, agora abalados, da cultura ocidental. [...] A pós-modernidade entrou nessa: ela é a valsa do adeus ou o declínio das grandes filosofias explicativas, dos grandes textos esperançosos como o cristianismo (e sua fé na salvação), o Iluminismo (com sua crença na tecnociência e no progresso), o marxismo (com sua aposta numa sociedade comunista). Hoje, os discursos globais e totalizantes quase não atraem ninguém. Dá-se um adeus às ilusões. (Santos, 1987, pp. 71-72) Em oposição às velhas concepções de mundo, de sociedade e de história, a pós- modernidade gira em torno de um só eixo - o indivíduo - em suas três apoteoses: consumista, hedonista, narcisista. Trata-se, pois, de um neo-individualismo, que Santos caracteriza como “consumista e descontraído”, característico e típico da sociedade pós- industrial. Com ela, tem-se “pleno conformismo”, com o sistema triunfando do “cabo-ao- rabo”. Santos aponta que, contra o sistema, surgem novos problemas: em lugar dos velhos problemas sociais e dos grandes e revolucionarios projetos para solucioná-los, contra a sociedade pós-capitalista surgem manifestações tipicamente pós-modernas e, em lugar das grandes soluções, visando manter o próprio sistema, surgem em cena alternativas acomodadoras e que conduzem à desmobilização e à despolitização: [...] Têm surgido contra o sistema efeitos bumerangues tipicamente pós-modernos. O individualismo exacerbado está conduzindo à desmobilização e à despolitização das sociedades avançadas. Saturada de informação e serviços, a massa começa a dar uma banana para as coisas públicas. Nascem aqui a famosa indiferença, o discutido desencanto das massas ante a sociedade tecnificada e informatizada. É a sua colorida apatia frente aos grandes problemas sociais e humanos. [...] Eis por que, para se legitimar, para se garantir, além da eficiência econômica, o sistema precisa manter em cena velhos valores e instituições como Pátria, Democracia, História, Família, Religião, Ética do trabalho, ainda que eles sejam puros simulacros. (Santos, 1987, p. 87-88). Sinteticamente, segundo Santos, a sociedade pós-moderna vive sem referências ao passado e sem projeto de futuro. Trata-se de uma sociedade pragmática e sem ideologias (como se isso fosse possível). Um mundo feito por objetos e informações descartáveis. Em lugar de grandes lutas e projetos, a preferência é pelo movimento com fins mais práticos como a liberação sexual, o feminismo, a educação permissiva e questões do dia-a-dia. Os valores foram trocados por modismos, e os ideais pelos ritmos cotidianos. Com isso se tem um indivíduo sincrético, de natureza confusa, indefinida, plural, feita com retalhos que não 28 se fundem num todo. No dizer de Santos, é o viver agora, entre simulacros em espetáculo para seduzir o desejo. A exposição de Santos bem caracteriza o que venho chamando de perspectiva novidadeira da pós-modernidade: o novo é oposto a tudo o que se considera velho e superado. Em termos filosóficos, se trata da defesa do irrealismo, do irracionalismo, do subjetivismo, do fim da história; não se trata de uma concepção, mas de um movimento eclético que faz uma liquificação, uma mistura geral, de várias tendências e estilos; é avesso a unicidade, tendo por perspectiva um pensamento aberto, plural e em permanente metamofose. É o culto pragmático do indivíduo e do presente, sem referência ao passado e sem projetos para o futuro. É o assumir uma perspectiva aparentemente sem parâmetros e sem opções; mas como a ausência de posicionamento também é um assumir de posição, trata-se de mais um modismo reacionário e imobilista, perfeitamente adequado ao gosto de uma burguesia ávida pelo máximo de consumo, animada por uma produção frenética, transformando tudo em máxima acumulação. Penso que o conjunto dessas observações sobre o movimento da pós- modernidade, torna extremamente atual a análise de que o capital é um mundo regido pelo fetichismo da mercadoria; jamais fez tanto sentido, como agora, o entendimento da ideologia como teorização falseadora das relações reais, mas plenamente correspondente aos interesses de uma classe; impressionante como é atual a teoria da alienação e como esta recoloca a problemática da emancipação. Trata-se ademais de uma concepção negadora da História, o que aparece até mesmo quando se pretende fazer História. Pretendendo rejeitar as idéias da história como desenvolvimento, como progresso e como triunfo da razão, grande parte dos autores pós- modernos acabam fazendo coro às perspectivas negadoras da historidade, sob o argumento de que é necessário eliminar os ranços de se pensar causalmente a história, propondo-se a “descausalização da história” (Evangelista, 1992, p. 22). A história é pensada a partir de uma absoluta contingência final, com o acaso assumindo o posto dirigente dos acontecimentos e da vida dos homens. Os fatos e acontecimentos não mais devem ser encarados em termos de causa e efeito, mas como seriais e imprevisíveis. É exatamente pela história não ter ou fazer qualquer sentido que o cotidiano, o particular, o microcosmo do sujeito, é colocado como centrais na análise sobre o social. Como bem observa Evangelista, 29 (...) Como a história não tem sentido, o cotidiano substitui o futuro como preocupação. O imediato toma o lugar do mediato. A revolução, a luta pelo poder do Estado..., a transformação macroscópica e de milhões, é substituída pelas ‘pequenas lutas’, pelas infindáveis transformações ‘moleculares’, sem centro, sem coordenação, sem estratégia central unificada. (Idem, ibidem) No lugar de uma Ciência da História, passa-se a tomar uma espécie de organização discursiva da memória, como uma modalidade de discurso e de análise do discurso, da linguagem; ou ainda, como expressão discursiva do sujeito. Com tal entendimento, a História, enfim, não passa de uma Estória. 3. Ainda sobre a pós-modernidade: apontamentos sobre Jameson e Castoriadis Para reparar e ampliar a discussão que fiz na tese de doutorado, vou situar, nada mais que isso, dois casos à parte nesse debate sobre a pós-modernidade. Em primeiro lugar, no doutorado acabei deixando de lado Fredric Jameson e sua elaboração sobre o tema. Tenho que convir, entretanto, que o autor é um caso a parte no que diz respeito ao debate sobre a pós-modernidade. Iniciou suas pesquisas tratando sobre o existencialismo e Sartre, o que o levou ao encontro da teoria literária marxista. Essa mudança em direção ao marxismo foi acompanhada por sua crescente articulação com a chamada “Nova Esquerda” e com os movimentos pacifistas, levando-o a pesquisar Georg Lukács, Ernest Bloch, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Louis Althusser e Sartre. Com esses estudos passou a conceber a crítica cultural como uma característica integral da teoria marxista, mas retomando as discussões dos primeiros escritos de Marx que, para Jameson, partindo de Hegel, confluiu para uma nova forma de pensamento dialético, no qual o pensamento se impulsiona por si próprio. Assim, a cultura deveria ser estudada a partir do conceito hegeliano de crítica imanente, na qual a descrição e a crítica de um texto filosófico ou cultural devem ser conduzidas nos seus próprios termos, a fim de desenvolver suas inconsistências internas, de modo a permitir o avanço intelectual. Os estudos sobre História foram tomando papel central na interpretação de Jameson, tanto na leitura (como consumo) quanto na escrita (como produção) de texto literários. Demonstrando seu indiscutível compromisso com uma leitura hegeliana do 30 marxismo, com a publicação de O Inconsciente Político: a narrativa como um ato social símbolico, assumiu como slogan "Sempre historicize" (1981), propondo que a literatura deve rigorosamente apreender com detalhes a relação entre as circunstâncias históricas de um texto e seu conteúdo. Os estudos sobre a historicidade da narrativa o levaram a iniciar análises sobre o pós-modernismo. Em um artigo publicado em 1984, no jornal New Left Review, "Pós- modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio", posteriormente ampliado e transformado em livro, início u uma série de análises sobre pós-modernismo de um ponto de vista dialético. Entendeu o "ceticismo com relação a metanarrativas" como um "modo de experiência", uma “lógica cultural” que se origina das condições do trabalho intelectual impostas pelo capitalismo tardio, conforme definido por Ernest Mandel. Contrapondo-se aos pós-modernistas, que afirmavam a superação da modernidade e buscavam a relativização de supostas verdades, Jameson argumentou que as várias questões com que se defrontavam podiam ter sido entendidas a contento a partir da própria estrutura modernista. Para o autor, a união pós-moderna de todo discurso em um todo indiferenciado, resultava da colonização da esfera cultural por um novo capitalismo coorporativista organizado, isto é, pelo capitalismo tardio. Retomando as análises de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural, tratou desse fenômeno em suas discussões críticas sobre filosofia, arquitetura, filmes, narrativas e artes visuais. Penso que as análises de Jameson sobre o pós-modernismo buscavam situá-lo como um movimento historicamente lastreado. Rejeitou explicitamente qualquer oposição moralista à pós-modernidade como um fenômeno cultural, continuando a insistir numa crítica imanentemente hegeliana. Sua recusa em retirar o pós-modernismo da agenda de debates, foi entendida por muitos como uma aprovação implícita de alguns dos pressupostos pós-modernos. Ao longo dos anos noventa, aprofundou e desenvolveu suas críticas ao pós- modernismo - como em As Sementes do Tempo (1994), nas suas palestras na biblioteca Wellek na Universidade da Califórnia, e no seu livro O Método Brecht (1998) – respondendo negativamente às críticas que o colocavam como um intelectual simpatizante do pensamento pós-moderno. Para tanto, se voltou novamente a Adorno e Horkheimer, buscando contribuições para a construção de um modelo teórico contemporâneo para a dialética marxista. 31 No que diz respeito aos estudos pós-modernos, Frederic Jameson é mais referenciado por sua obra Pós-Modernismo (2002), na qual enumera como ícones desse movimento: na arte, Andy Warhol e a pop art, o fotorrealismo e o neo-expressionismo; na música, John Cage, mas também a síntese dos estilos clássico e "popular" que se vê em compositores como Philip Glass e Terry Riley e, também, o punk rock e a new wave"; no cinema, Godard; na literatura, William Burroughs, Thomas Pynchon e Ishmael Reed, de um lado, "e o nouveau roman francês e sua sucessão", do outro. Vale lembrar que Perry Anderson, ao ser convidado para escrever a apresentação do livro de Jameson, acabou escrevendo uma obra pela qual também é referenciado no debate sobre o tema - As origens da pós-modernidade - constituindo atualmente numa referência obrigatória na discussão sobre o tema. Anderson afirma que o modernismo era tomado por imagens de máquinas (como que expressão da grande indústria), enquanto que o pós-modernismo é usualmente tomado por “máquinas de imagens” (Anderson, 1999, p.105), como a televisão, o computador, a Internet e o shopping center. A modernidade era marcada pela excessiva confiança na razão, nas grandes narrativas utópicas de transformação social, e o desejo de aplicação mecânica de teorias abstratas à realidade, por isso Jameson, citado por Anderson, observa que ... essas novas máquinas podem se distinguir dos velhos ícones futuristas de duas formas interligadas: todas são fontes de reprodução e não de ‘produção’ e já não são sólidos esculturais no espaço. O gabinete de um computador dificilmente incorpora ou manifesta suas energias específicas da mesma maneira que a forma de uma asa ou de uma chaminé. (Anderson, 1999, p.105). O segundo caso é fica mais para um reparo: preciso fazer um grande reparo à interpretação que tracei na tese de doutorado sobre Cornelius Castoriadis (1922 —1997), por mim caracterizado como um autor vinculado à pós-modernidade. Nesse sentido, levando a sério as críticas que me foram feitas por David Victor-Emmanuel Tauro, atualmente professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, tenho que concordar que é problemático situar Castoriadis como um intelectual pós-moderno. Não houve intencionalidade em aniquilar a contribuição de Castoriádis, um intelectual que é merecidamente considerado como um dos principais filósofos franceses do século XX, autor de volumosa obra no âmbito da filosofia, em especial, de filosofia política. Colocando os “pingos nos is”, entretanto, tenho que colocá-lo como o filósofo da autonomia, como um teórico que, gradativamente, foi pendendo para o anarquismo. 32 A biografia em português de Castoriádis7, o coloca como filósofo da imaginação social, co-fundador do lendário grupo e jornal Socialisme ou Barbarie, crítico seminal e pensador político, inspirou os eventos de Maio de 1968 na França. Foi economista da “Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico” (OCDE), psicanalista, distinguido sovietologista e crítico consciente da esquerda internacional. Traçando o percurso de Castoriádis para o obtuário de seu site internacional8, o biógrafo David Ames Curtis relembra que, nascido em Constantinopla, na Grécia, recebeu uma bolsa de estudos e mudou-se para a França em 1945, onde viveu sob pseudônimos para fugir da deportação. Ainda na juventude, na Grécia, aderiu à Juventude Comunista; porém descobriu que o "comunismo não era tão comunista assim", o que levou-o a entrar em contato com os trotskistas, mas logo depois, na França, rompeu com esse movimento. Juntamente com Claude Lefort criou a revista Socialisme ou Barbarie em 1949. Conseguiu cidadania francesa somente nos anos 1970. Com críticas ao marxismo real, ao totalitarismo soviético e teorizando as instituições imaginárias da sociedade, Castoriadis se tornou uma figura intelectual de peso no cenário ocidental. Caracterizando a trajetória do autor como um “navegar contra”, o biógrafo afirma que ele acabou navegando por todos os "mares": da crítica ao marxismo à psicanálise. Mas o ponto focal é a perspectiva autonomista de Castoriádis, assim registrada em seu obtuário: Castoriadis se livrou das modas intelectuais de seu tempo. Aquelas francesas, como as representadas pelos companheiros de viagem do existencialismo, estruturalismo, pós-estructuralismo, desconstrução e pós- modernismo […] Análises que não se contiveram ante a Teoria Crítica Alemã, de Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse até chegar a Jürgen Habermas, todos eles demasiado benevolentes em suas críticas do Marxismo "Soviético". Castoriadis pensava por si mesmo e o fazia junto a um pequeno grupo de trabalhadores e intelectuais que se negaram a dissimular ou a avaliar a opressão, qualquer que fosse seu signo. Sua revista foi ativa durante a luta contra a Guerra na Argélia Francesa, não obstante o qual Castoriadis nunca cedeu face a retórica "Terceiro-mundista", nem ofereceu "apoio crítico" aos ditadores "de esquerda". Esta sólida e independente clarividência se traduziu num reconhecimento para ele e seu grupo e foi peça chave para a formação de uma esquerda radical não-comunista na França do pós-guerra. Tão crítico de si mesmo, como dos demais, Castoriadis nunca renunciou a suas convicções no sentido de que a gente 7 Biografia disponível no Website Cornelius Castoriadis, In: http://www.charlespennaforte.pro.br/castoriadis/welcome.html, acessada em 18 de setembro de 2008. 8 O longo obtuário de Castoriadis foi escrito por David Ames Curtis e encontra-se acessível em: http://www.agorainternational.org/index.html, acessado em 18 de setembro de 2008. 33 comum possa governar sua própria vida e instituir a autogestão sem chefes, gerentes, políticos profissionais, líderes de partido, padres, especialistas, terapeutas ou gurus. Não havia pois "Deus que fracassava" em lugar da ausência de Deus , nem "Razão da História", nem "processos dialéticos inevitáveis" que garantissem o êxito ou que salvassem às pessoas da loucura que ela havia criado ou da tragédia. (Curtis, 1997, [s.p.])9 Afirma o biógrafo, em texto digital disponível no site oficial do filósofo, que ele passou os últimos 30 anos da vida revisando seus textos publicados em Socialisme ou Barbarie, e que foi a partir de seu último ensaio na revista que desenvolveu uma nova concepção da história como criação do “imaginário radical”, irredutível a qualquer plano predeterminado, quer este seja natural, racional ou divino. Na obra Instituição imaginária da sociedade e em Encruzilhadas do labirinto, Castoriadis elaborou suas reflexões expandindo sua idéia germinal de "auto-gestão operária", apontando para a existência de um "projeto de autonomia" que, segundo ele, surgiu na Grécia antiga e continua até o presente. Para ele, a verdadeira oposição não é "o indivíduo contra a sociedade", mediado pela "intersubjetividade", mas a psique versus a sociedade como pólos mutuamente irredutíveis, pois a monada psíquica original não pode produzir, por si mesma, significações sociais (Idem, ibidem). Ao criar "significações do imaginário social", que não são dedutíveis de elementos ou forças racionais ou reais, cada sociedade se institui a si mesma, mesmo que não saiba o está fazendo e que, na maioria dos casos, impede a si mesma, por meios heterônomos, do reconhecimento de sua própria auto-instituição. Seu conceito de "imaginário radical social instituinte", baseado na distinção entre "sociedade instituinte" e "sociedade instituída", que se inferem mutuamente, rompe simultaneamente com o funcionalismo e o estruturalismo, ao mesmo tempo em que fornece a chave para um entendimento irracionalista e anti-realista do modo de ser do histórico-social como uma unidade que se auto-institui e se auto-transforma e que não se deixa reduzir ao físico, biológico ou psíquico. Tenho que convir, pois, que Castoriadis acabou sendo um crítico contudente da pós-modernidade, mas que também rechaçou a modernidade. Só para tomar um exemplo de seu posicionamento com relação ao assunto, cito como emblemático o entendimento que expressou em seu texto “A época do conformismo generalizado”, publicado em As 9 Acessei o obtuário disponível em espanhol e fiz a tradução das passagens citadas. 34 encruzilhadas do labirinto, III: O mundo fragmentado, no qual tratando sobre as metamorfoses do tempo, assim se posicionou: Toda designação é convencional; da mesma forma, o disparate do termo “pós-moderno” é evidente. Observa-se, porém, com menos freqüência que se trata de um derivado. Sendo já o próprio termo “moderno” infeliz, a inadequação de pós-moderno tinha de aparecer necessariamente com o tempo. [...] Um período chamado moderno só pode pensar que a História atingiu o seu fim, e que os humanos viverão, daí em diante num presente perpétuo. O termo “moderno” exprime uma atitude profundamente auto(ou ego)cêntrica. [...] O componente imaginário (e consciente de si) do termo implica a autocaracterização da modernidade, como abertura indefinida com relação ao futuro... Eles eram os antigos, nós somos os modernos. [...] (Castoriadis, 1992, p. 15) Assim se posicionando com relação à modernidade e pós-modernidade, na seqüência do texto, Castoriadis sintetiza seu posicionamento quanto à História. Para tratar a História e sua periodização, entende que a melhor maneira é tornar os “pressupostos tão explícitos quanto possível”, sendo dois seus próprios pressupostos: cada período é marcado pela especificidade de suas significações imaginárias e pela significação de seu projeto de autonomia social e individual (Castoriadis, 1992, p. 18). Com base nesses dois pressupostos, a partir da ruptura com a Idade Média, para aquilo que chamam de “moderno”, propõe uma periodização da História em três períodos: 1) emergência do Ocidente - séc. XII ao começo do séc. XVIII; 2) época crítica: autonomia e capitalismo - séc. XIII até meados do séc. XX; 3) retração no conformismo - a partir de 1950 (Idem, p. 18-23). Sobre estes tempos de conformismo, considerado como uma evolução conjuntural de curto-prazo, sua análise é de um pessimismo angustiante quanto às perspectivas para os movimentos sociais e para as possibilidades de transformação. Nisto o autonomismo revela não só tratar-se de uma perspectiva idealista, mas também de um profundo imobilismo. Algumas passagens expressam o posicionamento do autor: [...] A retração no conformismo. As duas guerras mundiais, a emergtência do totalitarismo, a derrocada do movimento operário (ao mesmo tempo conseqüência e condição da evolução catastrófica para o leninismo/estalinismo), o declinio da mitologia do progresso marcam a entrada das sociedades ocidentais numa terceira fase. ... caracteriza-se sobretudo pela evanescência do conflito social, político e ideológico... peso crescente da privatização, da despolitização e do “individualismo”, nas sociedades contemporâneas. Um grave sintoma 35 concomit6ante é a atrofia completa da imaginação política. A pauperização intelectual dos “socialistas”, bem como dos “conservadores” é aterrorizante. [...] A situação... é de decadência manifesta na criação espiritual. [...] Conclui afirmando a necessidade de “ressurgimento do projeto de autonomia”, o que exige “novas atitudes humanas e novos objetivos políticos”, mas os sinais de que isso ocorra “por enquanto são raros” (Idem, p. 26). Esse é o ponto de chegada de Castoriadis. Seu posicionamento anterior, construído a partir da oposição à burocratização da revolução soviética, aos “comunistas estalinistas” e aos chamados “socialistas reformistas”, é emblemáticamente exposto por Castoriadis no seu texto “Sobre o conteúdo do socialismo”, publicado em Socialisme ou Barbárie no. 17, de julho de 1955. Seu percurso de rompimento militante com o comunismo burocrático e o reformismo foram assim explicitados: Como muitos outros militantes de vanguarda, começamos por constatar que as grandes organizações "operárias" não possuem mais uma política marxista revolucionária ou não representam mais os interesses dos proletários. O marxista chega a esta conclusão confrontando a ação dessas organizações ("socialistas" reformistas ou "comunistas" estalinistas) com a sua própria teoria. Vê os partidos ditos "socialistas" participarem de governos burgueses, exercerem ativamente a repressão de greves ou de movimentos dos povos das colônias, serem campeões da defesa da pátria capitalista, e até esquecerem a referência a um regime socialista. [...] O trabalhador consciente faz as mesmas constatações ao nível de sua experiência de classe; vê os socialistas envidarem seus esforços para moderar as reivindicações de sua classe e para tornar impossível qualquer ação eficaz visando a satisfazê-los, para substituir a greve por conversações com o patronato e o Estado; vê os estalinistas ora proibirem rigorosamente as greves (como de 1945 a 1947) e tentarem reduzi-las mesmo pela violência ou fazê-las abortar insidiosamente, ora quererem impor brutalmente a greve aos operários que não desejam fazê-la, pois percebem que ela é alheia a seus interesses (como em 1951- 1952, com as greves "antiamericanas"). Fora da fábrica, o trabalhador vê também os socialistas e os comunistas participarem de governos capitalistas, sem que disto resulte alguma modificação em sua condição; e ele os vê se associarem, tanto em 1936 quanto em 1945, quando sua classe quer agir e o regime está em situação desesperadora, para interromper o movimento e salvar este regime, proclamando que é preciso saber encerrar uma greve", que é preciso "produzir primeiro e reivindicar depois". (Castoriadis, julho de 1955, [s.p.]) Para Castoriadis esta oposição aos comunistas estalinistas e aos socialistas reformistas, tinha conseqüências para os militantes que queriam se manter na vanguarda: substituir o velho programa da revolução socialista - apegado à simples supressão da 36 propriedade privada, a nacionalização dos meios de produção e a planificação – pela gestão operária da economia e do poder (Idem, ibidem) [...] o programa da revolução socialista não pode ser outro senão o da gestão operária. Gestão operária do poder, ou seja, poder dos organismos autônomos das massas (sovietes ou Conselhos); gestão operária da economia, ou seja, direção da produção pelos produtores, organizados também em organismos do tipo soviético. [...]A revolução proletária só realiza seu programa histórico na medida em que ele se inclina, desde o início, a suprimir tal divisão, eliminando toda classe dirigente e coletivizando, mais exatamente, socializando, integralmente, as funções de direção. [...] Torna-se desde logo evidente que a realização do socialismo por um partido ou uma burocracia qualquer em nome do proletariado é um absurdo... (Castoriadis, julho de 1955, [s.p.]) A defesa de um programa revolucionário calcado na gestão operária, concebido como exclusivamente autônomo e independente de todo e qualquer poder externo ao operariado, como o partido ou a burocracia, nesse escrito de 1955, foi tomado como tendo fundamentação marxiana, uma vez que foi Marx o autor da célebre formulação segundo a qual "a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores" (Idem, ibidem). Por isso defendia a necessidade de levar esse projeto totalmente a sério, extraindo dele as implicações ao mesmo tempo teóricas e práticas (Idem, ibidem). Para Castoriadiz muitas eram as dificuldades para que os próprios trabalhadores promovessem a revolução, assumindo totalmente a gestão da coletividade. Para demonstrar esse seu entedimento, assevera que Marx tinha consciência do problema, assim registrando seu entendimento: Marx estava bem consciente do problema: sua recusa do socialismo "utópico" e sua frase "uma iniciativa prática vale mais do que uma dúzia de programas" traduziam precisamente sua desconfiança em relação às soluções "livrescas", sempre afastadas pelo desenvolvimento vivo da história. (Idem, ibidem) Na seqüência do texto, Castoriadis passa a afirmar que também existia uma grave ambiguidade no marxismo – a herança ideológica burguesa ou “tradicional”. Esta teve importante papel histórico impondo de fora para dentro a influência burguesa no seio do movimento proletário. Sobre o assunto, afirmou que: [...] Todavia, permanece no marxismo uma parte importante (que foi crescendo para os marxistas das gerações seguintes) de herança ideológica burguesa ou 37 "tradicional". Nesta medida, existe uma ambigüidade no marxismo teórico, ambigüidade que teve um papel histórico importante; por seu intermédio, a influência da sociedade de exploração pôde exercer-se de dentro para fora sobre o movimento proletário. (Idem, ibidem) Para exemplificar toma o problema da remuneração do trabalho e que não encontrou uma solução satisfatória em Marx e, por conseqüência, também na URSS. Sua conclusão é que “Diante de um problema legado pela época burguesa, raciocina-se como burguês”. Seu entendimento é que “Uma sociedade sem exploração só é concebível... se a gestão da produção não estiver mais localizada numa categoria social, ou seja, se a divisão estrutural da sociedade em dirigentes e executantes for abolida” (Idem, ibidem). Disso decorre seu entendimento sobre a revolução, colocado nos seguintes termos: Se julgamos que a tarefa essencial da revolução é uma tarefa negativa, a abolição da propriedade privada - que pode, efetivamente, ser realizada por decreto -, podemos pensar a revolução como que centrada sobre a "tomada do poder", logo, como um momento (que pode durar alguns dias e ser, a rigor, seguido de alguns meses ou anos de guerra civil) no qual os operários, tomando o poder, expropriam de direito e de fato os proprietários das fábricas. E, neste caso, seremos levados efetivamente a dar uma importância capital à "tomada do poder" e a um organismo construído exclusivamente para este fim. [...] De fato, é assim que se passam as coisas durante a revolução burguesa. [...] Não existe nenhuma relação entre este processo e o processo da revolução socialista. Esta não é uma simples negação de certos aspectos da ordem que a precedeu; ela é essencialmente positiva. Deve construir seu regime - não construir fábricas, mas construir novas relações de produção, das quais o desenvolvimento do capitalismo fornece apenas pressuposições. (Idem, ibidem) A construção de novas relações na revolução deve abarcar o conjunto das relações, mas não pela reprodução da essência das relações de dominação, sejam situadas na fábrica burguesa, na família patriarcal, na pedagogia tradicional e autoritária ou na cultura aristocrátrica, mas na destruição do poder dos exploradores e na construção do poder das massas: O objetivo destas considerações não é somente destacar o momento de identidade da essência das relações de dominação, que estas se situem na fábrica capitalista, na família patriarcal ou na pedagogia autoritária e na cultura aristocrática. É assinalar que a revolução socialista deverá necessariamente abarcar o conjunto destes domínios, e isto não num futuro imprevisível e "por acréscimo", mas desde o início. É certo que ela deve começar de uma determinada maneira, que não pode ser outra senão a destruição do poder dos exploradores pelo poder 38 das massas armadas e a instauração da gestão operária da produção. Mas a revolução deverá imediatamente se dedicar à reconstrução das outras atividades sociais, sob pena de morte. (Idem, ibidem) Nesse escrito, a perspectiva autonomista não implicava um rompimento com o marxismo e, muito menos, com uma perspectiva revolucionária radical. Castoriadis manteve a perspectiva autonomista e revolucionária, mas seu posicionamento com relação ao marxismo foi se alterando, até o seu rompimento com esta concepção. Foi este o sentido que explicitei na minha tese de doutorado, nos capítulos primeiro e segundo, fundamentado nos resultados da pesquisa de Evangelista (1992), que nos principais trabalhos publicados pelos novidadeiros nos anos 1980 e na década seguinte, os críticos do marxismo buscaram em Castoriadis, a argumentação principal (ou munição) de sua fundamentação teórica de combate ao marxismo. Com relação à posição de Castoriadis em relação ao marxismo, defende que o "edifício teórico do marxismo é insustentável" e a "inteligibilidade que ele fornece do funcionamento da sociedade é limitada e em última instância falaciosa" e, mesmo, "mística" (Castoriadis, 1985, p. 76). Para o autor, em A experiência do movimento operário, o marxismo ... não pode ser efetivamente, doravante, mais do que ideologia no sentido forte da expressão, invocação de entidades fictícias, construções pseudo-racionais e princípios abstratos que, concretamente, justificam e encobrem uma prática social- histórica. (Castoriadis, 1985, p. 76 e 77). Retomando os argumentos críticos em relação ao comunismo burocrático e sua incapacidade de entender as transformações estruturais da sociedade, bem como de acompanhar as lutas revolucionárias das massas, vincula essa crítica ao marxismo que, para ele, se no passado teve alguma identificação com movimentos revolucionários, atualmente ele é indiferente e, "na maioria dos casos, é-lhe potencial ou abertamente hostil" (Castoriadis, 1985, p. 77). Para Castoriadis o principal problema do marxismo encontra-se na sua teoria das classes sociais, pois, nos países de capitalismo avançado, a tendência do proletariado é de "se tornar uma 'camada' social numericamente minoritária" que não mais se manifesta como uma classe social. Por esta razão, a teoria da revolução proletária "revelou-se uma abstração racionalista", posto que se baseou na centralidade da classe operária no processo de transformação social; para ele "o proletariado desapareceu como sujeito revolucionário privilegiado” e sua "luta contra o sistema instituído não é, 39 quantitativa ou qualitativamente, nem mais nem menos importante do que a de outras camadas sociais" (Idem, p. 19). Baseado nesse argumento, Castoriadis defende que "a concepção de um sujeito revolucionário deve dar lugar a uma 'nova' forma de pensar as transformações sociais", não mais baseada na teoria das classes sociais como sujeitos coletivos fundamentais na reprodução ou transformação social, mas "a partir de uma pluralidade de sujeitos sociais igualmente importantes" (Idem, ibidem). Para Castoriadis a raiz do viés "determinista" e "racionalista" do pensamento marxista está em sua dimensão ontológica. Se a questão está em se "compreender algo sobre o proletariado e sua história", é preciso livrar-se "desses esquemas ontológicos que dominam o pensamento herdado (e seu último rebento, o marxismo)" e buscar "as significações novas que emergem na/e através da atividade dessa categoria social" (Castoriadis, 1985, p. 54). Mas em vista das observações de Castoriadis, gostaria de questionar: o que colocar no lugar de Marx e da Revolução? Castoriadis, seu autonomismo e sua análise sobre o conformismo? No meu ponto de vista, a análise castoriadiana é de um pessimismo angustiante, com um fundamento idealista e é reveladora de um profundo imobilismo. Mas será que esse caminho é capaz de conduzir ao autonomismo ou a um socialismo desburocrotizado e sem Estado? Acho pouco provável, pois o descompromisso e a ausência e refluxo de movimento social e político não conduzem à transformação, mas ao conservadorismo. Manter esse capitalismo é mergulhar toda a sociedade, cada vez mais, na destruição e na barbárie (Lombardi, 2006). Não quero perder a minha perspectiva de análise, por isso mesmo entendo que no interior das relações mundializadas que se dão sentido ao movimento de transformação, não é a barbárie, mas a revolução que está amadurecendo aos nossos olhos. Nada de autonomismo e individualismo, pois em lugar de ficar propagandeando uma individualidade vazia e abstrata, temos que tomar partido por uma perspectiva social que, sem se entregar à barbárie, mantenha acesa uma chama utópica em prol da construção coletiva de um mundo mais justo e igualitário (Idem, p. 91-91). Uma observação ao final deste item se faz necessária: teoricamente tanto Jameson quanto Castoriadis não se enquadram caracteristicamente nos pereferenciais da pós-modernidade que tenho criticado. Entretanto, penso que eles também não avançam teoricamente, já que acabam endossando uma visão idealista, e até mesmo imobilista, incompatível com uma perspectiva transformadora da sociedade capitalista para outra, de 40 uma sociedade com diferenças profundas entre as classes sociais, para uma sociedade sem classes e igualitária. 4. Marx morreu! Viva Marx! Não é difícil perceber, pelos posicionamentos analisados, que o palco recente para a explosão contrária ao pensamento moderno e principalmente contra o marxismo, já estava armado e solidificado há algum tempo. A chamada "falência do socialismo real" nada mais fez, portanto, que aparentemente escancarar as portas para sua agudização. Assim, na trilha da crise do socialismo e do alardeamento de sua falência ou morte, muita gente passou a declarar o marxismo como ultrapassado e Marx como "cachorro morto". Do ponto de vista da direita, que respalda suas análises e seu projeto político em outro tipo de análise teórico-metodológica, é perfeitamente inteligível a decretação da morte do marxismo, e, por isso mesmo, nem merece ser analisada. Mas a apologia da morte do marxismo não vem somente do bloco conservador; pois muita gente que se considera ou é considerada como tendo um perfil progressista ou de esquerda, como se viu anteriormente, também tem tendido a re-afirmar a morte de Marx ou, na melhor das hipóteses, tem defendido a necessidade de revisão dos pressupostos do marxismo. Para tratar disso, em minha tese (Lombardi, 1993) fiz um mapeamento dos principais posicionamentos recentes desse debate no Brasil, e que indica que se aglutinaram em torno de três tendências: a) de decretação da morte do marxismo, b) de imputar-lhe problemas que exigem uma revisão ou, ainda, c) de considerar que o marxismo está ultrapassado sendo necessário, portanto, a busca de novos caminhos. Para além das críticas atuais, demonstrei que a atual decretação da assim chamada "crise do marxismo" têm somente a aparência de um debate recente, motivada por uma forma a-histórica em considerar essa problemática e pela vinculação de uma suposta "crise do marxismo" com a crise do chamado "socialismo realmente existente". Mas esse também não é um assunto "novo", conforme busquei demonstrar, expressando que a "crise do marxismo" não passa de mais uma expressão ideológica da mistificação da acumulação pelos apologetas do capital. Ao contrário do que o atual debate pode levar a supor, a contestação ao marxismo e a conformação de tendências diversas em seu interior, é muito antiga e 41 remonta ao tempo de Marx e Engels. Não podia ser diferente: o próprio processo de produção da concepção materialista dialética da história, marcado pela confrontação crítica e pela intencional superação da filosofia clássica alemã, do projeto e literatura socialista e da economia política inglesa, delimitavam por si mesmo uma polêmica aberta com essas correntes e com seus principais representantes. A obra toda de Marx e Engels é evidente nesse sentido e, para aqueles que quiserem aprofundar, ver principalmente: A Ideologia Alemã; Manuscritos Econômicos e Filosóficos; Grundrisse; O Capital...; Anti-Dühring; Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico e Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. Somente para ilustrar o conhecimento que Marx tinha da contestação de sua elaboração, ver o "Posfácio da 2a. Edição" d'O Capital, datado de 24 de janeiro de 1873, onde Marx observou que seu método de análise não havia sido "bem compreendido" (Marx, 1982, p. 13). Se o conjunto da obra de Marx e Engels (do qual o "Posfácio da 2a. Edição" d'O Capital é apenas uma ilustração), revelam essa confrontação crítica com outras concepções, algumas poucas referências feitas pelos fundadores do marxismo já davam conta da existência de interpretações equivocadas sobre o novo método, de manuseio estreito e limitado da nova concepção teórico-metodológica e, já naquela época, de desvios diversos. A carta de "Engels a Schmidt", datada de 5 de agosto de 1890, exemplifica adequadamente isso: nela Engels manifestou sua inconformidade com as acusações de alguns autores quanto aos desvios economicistas existentes no marxismo e, indo ainda mais longe, estendeu essa crítica a outras pessoas que, se dizendo marxista, o deturpavam de outras formas, deixando registrada a posição de Marx a esse respeito: (...) A concepção materialista da história tem também, atualmente, muitos amigos desse tipo, para os quais ela não passa de um pretexto para não estudarem história. (..) (Marx, K. e F. Engels. Obras Escolhidas - Volume 3, p. 283) ... para um número considerável de alemães mais jovens, a frase do materialismo histórico (tudo pode ser convertido em frases) só serve para construir, às pressas, a partir de seus conhecimentos históricos, relativamente escassos... todo um sistema e fazer boa figura. (...) (Idem, p. 283-284) (...) Marx, em fins da década de 1870, já dizia, referindo-se aos "marxistas" franceses, que "tudo o que eu sei é que não sou marxista". (Idem, p. 283 - grifo nosso). Contrapondo-se aos que acusavam o marxismo de cometer desvios economicistas (e criticando alguns intelectuais que se diziam "marxistas", mas sequer 42 conheciam os princípios básicos da nova concepção), Engels contestou um desses autores (Paul Barth) nos seguintes termos: ... esse homem não compreendeu ainda que, embora as condições materiais de vida sejam a causa primeira, isso não impede que a esfera ideológica reaja por sua vez sobre elas, ainda que sua influência seja secundária, esse homem não conseguiu entender de modo algum a matéria sobre a qual escreve. (Idem, p.282-283). E defendendo a concepção materialista dialética da história contra a fraseologia de "muitos escritores jovens", contra a rotulação e dogmatização e em oposição aos "muito amigos" que a utilizavam para "não estudarem história", Engels asseverou o referencial marxista como "um guia para o estudo" das condições de vida das diversas formações sociais e, em vista disso, a necessidade de se reestudar toda a história: ... nossa concepção da história é, antes de tudo, um guia para o estudo e não uma alavanca destinada a erguer construções à maneira hegeliana. É necessário estudar novamente toda a história, - e estudar, em suas minúcias, as condições de vida das diversas formações sociais - antes de fazer derivar delas as idéias políticas, estéticas, filosóficas, religiosas, sobre o direito privado, etc., que lhes correspondem. Até hoje,, tem-se feito muito pouco nesse terreno... (Idem, p. 283). Nesse mesmo ano de 1890 Engels voltou a tratar do desvio economicista, em carta a Bloch, datada de 21-22 de setembro de 1890, afirmando categoricamente que nem ele e nem Marx haviam afirmado que o fator econômico era o único determinante da história, mas que era o determinante em última instância: (...) Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela... também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante. (...) (Idem, p. 284). Buscando entender os motivos para a ocorrência de uma tendência economicista, nessa carta a Bloch, Engels chegou mesmo a assumir que esse desvio estava ocorrendo "por culpa em parte" dele e de Marx que, face às investidas idealistas, eram obrigados a sublinhar as condições materiais em detrimento dos demais fatores: 43 (...) Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio fundamental que eles negavam e nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar a importância devida aos demais fatores que intervém no jogo das ações e reações.... (Idem, p. 286) Esse reconhecimento de Engels não o impediu de ser menos duro com esses "jovens marxistas" ou "novos marxistas", apontando para a necessária compreensão dos fundamentos metodológicos e teóricos da concepção materialista e dialética da história. Alertava que “infelizmente, acontece com muita freqüência que se pense ter compreendido totalmente uma nova teoria e que se possa manejá-la, sem mais nem menos, pelo simples fato de haver-se assimilado... suas teses fundamentais...” (Idem, ibidem). Recomendava o estudo da concepção materialista dialética da história "nas fontes originais e não em obras de segunda mão" (Idem, p.285). O estudo da concepção marxista em suas "fontes originais" levaria os que a criticam a lutar "contra moinhos de vento", conforme observou na carta de "Engels a Schmidt", datada de 27 de outubro de 1890: ... quando Barth afirma que negamos toda e qualquer reação dos reflexos políticos, etc., do movimento econômico sobre esse mesmo movimento econômico, luta contra moinhos de vento. Bastará ler O 18 Brumário de Marx, em que ele trata quase exclusivamente do papel particular desempenhado pelas lutas e acontecimentos políticos, nos limites, é claro, de sua dependência geral às condições econômicas. Ou O Capital, em particular o capítulo que trata da jornada de trabalho, onde a legislação - que é um ato político - exerce uma influência tão radical. Ou, ainda, o capítulo dedicado à história da burguesia (capítulo 24). (...) (Idem, p. 291). Com a morte, primeiro, de Marx em 14 de março de 1883 e, depois, de Engels em 05 de agosto de 1895, a concepção materialista dialética da história deixou de estar sob a vigilância direta de seus fundadores, sempre dispostos a assumir e aprofundar a polêmica com outras visões de mundo, bem como reconhecer e contestar, se preciso, interpretações e utilizações equivocadas cometidas por partidários e oponentes da nova concepção. A partir de então a concepção desenvolvida por Marx e Engels sofreu um processo de evolução, caracterizado pela conformação de diversas escolas e tendências que estabeleceram graus variados de vinculação (teórico-metodológica e/ou político- ideológica) com a produção de seus fundadores, ou como se referiu Engels com a produção da concepção "nas fontes originais". Concomitantemente ao processo de evolução da teoria 44 marxista, e que marca igualmente a crítica do dogmatismo em seu interior, desde a última década do século XIX começaram a aparecer críticas sistemáticas ao marxismo, tanto em relação à sua proposta ontológica, epistemológica e axiológica, quanto ao seu corpus teórico ou com relação a aspectos específicos das teorizações de Marx e Engels10. De modo geral, pode-se afirmar que essas críticas internas ou externas à teoria marxista, por seu conteúdo e não necessariamente por sua forma, têm se repetido ao longo do tempo. Impossível explorar todas as questões do embate marxista, mas gostaria de delinear meu posicionamento em torno de três questões: a) sobre a contribuição de Engels e de Marx à construção da concepção materialista dialética da história; b) quanto ao processo de construção da obra marxiana e engelsiana; c) sobre o assumir uma perspectiva ortodoxa ou dogmática da concepção marxista. 4.1. Marx e Engels como faces de uma mesma e única moeda Entre as várias “faíscas” que, de quando em quando, reacendem o embate marxista, e sobre as quais é impossível ficar sem posicionamento, está em se considerar com peso qualitativo diferenciado a contribuição de Marx e de Engels na construção da concepção materialista dialética da história. Tenho defendido a busca por um tratamento sistematizado das premissas teórico-metodológicas da concepção materialista dialética da história, a partir, principalmente, das elaborações de seus fundadores e de autores clássicos, na perspectiva de analisar as obras em seu próprio processo de produção e tratando Marx e Engels em conjunto e não como produtores de concepções particularizadas: marxismo e engelsianismo. Com essa proposta de sistematização, portanto, estou defendendo que Marx e Engels devem ser tomados em conjunto, como faces de uma mesma e única moeda, e que graças à contribuição de ambos é que foram construídas as novas bases teórico- metodológicas para o entendimento dos homens sobre o mundo e sobre si próprios. Do trabalho conjunto dos dois amigos, simultaneamente ocorreu a construção das bases 10 Não se tem por objetivo, no presente trabalho, estudar a evolução histórica do marxismo. Um breve histórico do marxismo e de seus desdobramentos pode ser consultado em: BOTTOMORE, Tom (ed.) e outros. Dicionário do Pensamento Marxista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988. Uma análise mais detalhada, rica e diversificada pode ser encontrada nos 12 volumes de: HOBSBAWM, E. e outros. História do Marxismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980-1989. 45 metodológicas e teóricas da concepção materialista dialética da história. Partilho, portanto, do entendimento de que foi a partir da crítica à filosofia clássica alemã, do socialismo anglo-francês e da economia política clássica inglesa, que se deu a construção dos fundamentamentos ontológicos, gnosiológicos e axiológicos de uma nova concepção que fazia uma contundente análise crítica do modo capitalista de produção, ao mesmo tempo que colocava em relevo o revolucionar da sociedade em direção a novos padrões societários. Com relação à questão de se tratar Marx e Engels em conjunto, de forma a que se recupere a profunda relação entre ambos, e o fato de que desta relação surgiu a concepção materialista dialética da história, penso que é preciso também retomar a polêmica questão da diferenciação do "marxismo" em relação ao "engelsianismo" e de que Engels foi um pensador de menor importância ou menor competência em relação a Marx. De modo geral, argumenta-se que Engels entendeu mal as premissas básicas da dialética materialista; que produziu uma visão mecânica deste, aplicada de forma a produzir a ridícula argumentação de existência de uma dialética da natureza; que esta postura produziu danos políticos irrecuperáveis por sua simplificação da dialética, etc. Muito ao contrário de se referir a Engels por seu "mal entendido", "ridículo ingênuo da argumentação", "visão mecânica do materialismo dialético", "simplificação da dialética", Marx destacou a "constante troca de idéias", a resolução de trabalharem "em conjunto", a maneira de ver e a concepção teórico-metodológica como "nossa maneira de ver" e "nossas concepções"11. Gostaria de colocar um pouco mais de ênfase sobre a contribuição e importância de se estudar Engels. Hoje isso ainda é necessário, pois, desde o início do século XX, no interior mesmo da intelectualidade de esquerda, vem sendo produzida uma forte corrente de opinião que busca minimizar, e mesmo desqualificar, as contribuições de Engels na construção metodológica, teórica e política do marxismo. Os contornos contemporâneos do embate foi dado na década de 1930 com a publicação dos Manuscritos 11 As afirmações entre parênteses são de Hans-Georg FLICKINGER, em Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social, para quem: “(...) Este o passo ao profundo mal entendido de, por exemplo, F. Engels, que produziu o ridículo ingênuo da argumentação da Dialética da Natureza... É sintomático que a luta contra o espiritismo ocupe várias páginas da Dialética da Natureza, pois... a concepção engelsiana de movimento abre as portas para ele. (...) A história da recepção da teoria marxiana e, mais ainda, a visão mecânica do materialismo dialético , com suas conseqüências políticas, do 'socialismo real existente' dão uma idéia dos danos políticos causados por esta simplificação da 'dialética'." (FLICKINGER, H.G., 1986, p. 84). 46 econômico-filosóficos, de Marx, em 1932, e de A dialética da natureza, de Engels, em 1939. O primeiro foi escrito em 1844 e o segundo supõe-se que entre 1878-1882. Tirando os trabalhos de seus respectivos contextos e processos de produção, o que seria suficiente para caracterizar que são trabalhos redigidos em períodos, motivações e perspectivas diferentes, essas duas obras passaram a ser consideradas provas suficientes da existência de uma profunda diferença entre os dois fundadores da concepção materialista dialética da história. Engels considerado mecanicista, positivista e economicista; Marx, dialético e anti-dogmático. No embalo dos embates da III Internacional (a Internacional Comunista), Engels passou a ser acusado de ter criado os pressupostos teóricos e políticos tanto do reformismo social-democrata, quanto do stalinismo. Referenciando-se em seus textos filosóficos, Engels foi acusado de construir um problemático entendimento da concepção materialista e da dialética, uma vez que buscava universalizar a materialidade e dialeticidade ontológica de todas as coisas, inclusive buscando demonstrar a existência de um movimento dialético também na natureza. Com isso Engels foi acusado tanto de tentar naturalizar a história humana, quanto de humanizar a natureza. Para reforçar a argumentação, esses críticos buscavam se utilizar da própria modéstia de Engels para atacá-lo, argumentando que ele próprio se considerava, em todos os aspectos, um pensador inferior a Marx. O argumento é buscado no próprio Engels que, metaforica e humildemente, traçando comparação com Marx, se referiu a si mesmo como um “segundo violino”, na conhecida Carta a Hohann Philipp Becker, de 15/101884: Meu azar é que, desde o momento em que perdemos Marx, cumpre-me ter de representá-lo. Ao longo de minha vida, fiz aquilo para que fui talhado, i.e. tocar o segundo violino, e creio ter realizado meu papel de modo inteiramente tolerável. Tive sorte por haver tido um primeiro violino tão famoso como Marx. Porém, se agora devo representar, em questões de teoria, a posição de Marx, isso não poderá transcorrer sem que incida em alguns equívocos e ninguém percebe isso mais do que eu mesmo. Apenas quando os tempos ficarem algo mais movimentados, tornar-se-á bem sensível para todos nós então o que é que foi que perdemos com Marx. Nenhum de nós possui aquela sua visão de conjunto, consoante a qual haveria de tão rapidamente agir, em determinado momento, adotando sempre a decisão correta e indo imediatamente ao ponto decisivo. Em tempos de calmaria, ocorreu, possivelmente, de os eventos terem-me dado razão em relação a Marx, porém, nos momentos revolucionários, seu julgamento era praticamente infalível. (apud Lenin, 1895, nota 17)12 12 Cf. ENGELS, FRIEDRICH. Brief an Johann Philipp Becker (Carta a Johann Philipp Becker)(15.10.1884), in: Marx und Engels’ Werke, Vol. 18, Berlim : Dietz Verlag, Vol. 36, pp. 218 e ss. 47 Exatamente essa passagem acabou citada por Lênin nesse ensaio necrológico (de 1895). Com o título “Friedrich Engels” (Lenin, 1982), Lênin elogiava a humildade de Engels e seu carinho por Marx, enfatizando que “o proletariado da Europa pode dizer que a sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos” (Idem, p. 33). Mas outras passagens de Engels, na qual fala sobre sua contribuição ao marxismo e sobre a grandeza e genialidade de Marx, são as referenciadas como fundamento para que se considere a diminuta participação engelsiana. Veja-se, por exemplo, a passagem que segue, extraída de Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã: Seja-me permitido aqui um pequeno comentário pessoal. Ultimamente tem-se aludido, com freqüência à minha participação nessa teoria; não posso, pois, deixar de dizer algumas palavras para esclarecer este assunto. Que tive certa participação independente na fundamentação e sobretudo na elaboração da teoria, antes e durante os quarenta anos d;e minha colaboração com Marx, é coisa que eu mesmo não posso negar. A parte mais considerável das idéias diretrizes principais, particularmente no terreno econômico e histórico, e especialmente sua formulação nítida e definitiva, cabem, porém, a Marx. A contribuição que eu trouxe – com exceção, quando muito, de alguns ramos especializados – Marx também teria podido trazê-la, mesmo sem mim. Em compensação, eu jamais teria feito o que Marx conseguiu fazer. Marx tinha mais envergadura e via mais longe, mais ampla e rapidamente que todos nós outros. Marx era um gênio; nós outros, no máximo, homens de talento. Sem ele, a teoria estaria hoje muito longe de ser o que é. Por isso, ela tem, legitimamente, seu nome. (Engels. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã,. In: Marx e Engels. Obras escolhidas – Volume 3, p. 193 – nota 1) É realmente impressionante a fidelidade e admiração de Engels para com Marx. Coisa de amigo, companheiro e parceiro de projeto de vida, de trabalho e de militância política. É esse o meu entendimento quanto à relação de Marx e de Engels, motivo fundamental que me leva a rejeitar a impiedosa crítica imposta à Engels. No fundo acho que isso decorre da postura diletante tão em voga no meio acadêmico e político, pela qual o descredenciamento do marxismo e de sua opção revolucionária recorre ao descarte de um dos autores que teve o papel principal na sistematização dos pressupostos fundamentais da nova concepção. Como se sabe, coube à Engels dar à concepção materialista e dialética um caráter de elaboração não particularizada dos fatos, processos e relações sociais dos homens, mas também das relações dos homens com a natureza e, enfim, das relações existentes na própria natureza. 48 Também me perfilo entre os intelectuais que entendem que a concepção materialista dialética da história é obra comum e conjunta de Marx e Engels, discordando das críticas que imputam a Engels um papel secundário e problemático. Para mim, o marxismo que hoje conhecemos, simplesmente não existiria sem a contribuição teórica e prática de Engels. Analisando o conjunto das obras desses dois intelectuais, que iniciaram a colaboração e trabalho conjunto em 1844, não encontraremos nenhuma obra ou trecho que prove diferenças significativas de posição sobre quaisquer dos temas centrais tratados por eles. Ademais, não se pode esquecer que Marx era um intelectual exigente, e mesmo intransigente, na luta de idéias, tendo rompido com vários interlocutores, pois não era homem de fazer concessões metodológicas, teóricas ou políticas. Ao contrário de terem os amigos posturas diferenciadas, concordo que havia uma consciente e assumida divisão do trabalho entre ambos, como destacado por vários textos biográficos, como bem expressa Augusto Buonicuore, como segue: Foi Engels, em 1887, que elucidou esta questão: “Em conseqüência da divisão de trabalho existente (...) tocou-me a tarefa de apresentar nossos pontos de vista na imprensa periódica, portanto especialmente na luta contra as opiniões adversas; de modo que sobrasse tempo a Marx para a elaboração de sua obra maior”. Dentro deste esquema de trabalho que Engels produziu Anti-Duhring (1877), Do socialismo utópico ao científico (1880), As origens da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Ludwig Feuerbach e O fim da filosofia clássica alemã (1886) e os manuscritos que, depois da sua morte, dariam origem à Dialética da natureza, elaborados na década de 1870. Mesmo estes textos, muito criticados pela maioria dos “marxistas ocidentais”, tiveram o dedo, ou melhor, a contribuição intelectual, do velho Marx. Engels, no Prefácio à segunda edição de Anti-Duhring, deu conta da parte que coube a Marx: “Tendo sido criada por Marx (...) a concepção exposta neste livro, não conviria que eu publicasse a revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia (...) foi escrito por Marx. Infelizmente, eu tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um”. Eis uma prova testemunhal do crime cometido por Marx contra sua própria teoria. (Buonicuore, 2007, [s.p.]) É sobre A dialética da natureza que recaem as mais pesadas críticas. Essa não foi uma obra acabada, mas manuscritos nos quais Engels foi sistematizando os estudos solicitados pela social-democracia alemã, num quadro de embate teórico com o materialismo mecanicista, no contexto da segunda metade do século XIX. Engels passou vários anos (presumivelmente foram oito anos) estudando o avanço e as contribuições das diversas ciências naturais. O trabalho ficou inconcluso, vindo a público somente em 1925. 49 Nos manuscritos, discutindo sobre dialética e ciência, Engels criticou duramente os que advogavam uma “concepção naturalista da história”: ... como se exclusivamente a Natureza atuasse sobre os homens e como se as condições naturais determinassem... o seu desenvolvimento histórico. Essa concepção unilateral esquece que o homem também reage sobre a natureza, transformando-a e criando para si novas condições de existência. (Engels, 1979, p. 139). Certamente que a transformação da natureza, até certo momento, deveu-se a fatores naturais. Entretanto, o estabelecimento dos homens numa região determinada, faz com que todas as transformações naturais e humanas passem a decorrer da atividade do homem. Essa era uma posição que Engels estava efetivamente defendendo, sendo um ponto de vista também afirmado em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, no qual Engels também escreveu sobre a história que ... a história do desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, num ponto, da história do desenvolvimento da natureza. Nesta (...) o que existe são fatores inconscientes e cegos que atuam uns sobre os outros e em cuja ação recíproca se impõe a lei geral. (...) Ao contrário, na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, que atuam movidos pela reflexão ou a paixão, buscando determinados fins; aqui, nada acontece sem uma intenção consciente, sem um fim desejado. Também aqui é um acaso aparente que reina... parecem regidos pelo acaso. Ali, porém, onde na superfície das coisas o acaso parece reinar, ele é... na realidade, governado sempre por leis imanentes ocultas, e o problema consiste em descobrir essas leis. [...] (Engels. Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã,. In: Marx e Engels. Obras escolhidas – Volume 3, pp. 197-198). Concluiu que “os homens fazem a sua história” (Idem, p. 198), tema que também aborda numa carta a Bloch, escrita em 1890, na qual afirmou: “Segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida material” e que nem Marx nem ele nunca afirmaram, “uma vez sequer, algo mais do que isto”. Acrescenta na seqüência que “Se alguém tergiversa ... dizendo que o fator econômico é o único fator determinante, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata e absurda”, registrando assim sua discordância de qualquer determinismo economicista, mas se isso estava ocorrendo, a responsabilidade era deles mesmos que, frente aos adversários idealistas, tinham que sublinhar o princípio negado por eles: 50 A responsabilidade de que, às vezes, os jovens dêem ao aspecto econômico um peso maior do que o devido, deve cair parcialmente sobre Marx e sobre mim. Frente aos nossos adversários, era preciso sublinhar o princípio essencial negado por eles, e então nem sempre tínhamos o tempo, o lugar, nem a ocasião para fazer justiça aos demais fatores que intervêm na ação recíproca. (In: Marx e Engels. Obras Escolhidas, Volume 3, p. 286) Num contexto marcado pelos embates terceiro-internacionalistas, logo após a publicação de A Dialética da Natureza, considerou-se essa obra como uma prova substantiva do suposto viés positivista, mecanicista e naturalista do autor. Na medida, entretanto, que o conjunto da obra de Marx e Engels foi sendo organizado e conhecido, soube-se que ocorreu intenso intercâmbio de informações entre os dois amigos, ao longo da segunda metade da década de 1870, com Marx manifestando estar ansioso para ver a obra publicada. Hoje se sabe que Marx foi um leitor privilegiado dos manuscritos, tendo inclusive feito comentários positivos às margens dos apontamentos de Engels. Um estudo mais aprofundado do esquema metodológico e teórico de Engels e Marx, ao mesmo tempo materialista e dialético, possibilita um entendimento mais complexo do pressuposto ontológico materialista e do princípio de contradição como fundamentais da dialética materialista. Como não existem princípios válidos para a natureza, mas inválidos para a história dos homens, ou vice-e-versa, Engels complexamente defendeu princípios gerais, válidos para a história da natureza e para a história dos homens. Deixava claro, com isso, que eles defendiam princípios ontológicos materialistas válidos para todas as dimensões e relações; igualmente também tomavam a dialética como uma lei geral do desenvolvimento tanto da natureza quanto da sociedade. Isso equivalia a pressupor que a história humana é parte da história natural e os homens fazem parte da natureza e a ela não são estranhos, afirmação que pode ser encontrada desde A Ideologia Alemã. O silêncio de Marx sobre o tema não significa que Marx não o considerasse importante, mas que estudar a dialética da natureza foi, na divisão de trabalho entre ambos, tarefa que coube a Engels. A correspondência entre ambos sobre o assunto encontra-se publicada, sob o título “Cartas sobre las ciencias de la naturaleza y las matemáticas” (Marx e Engels, 1975). Isso fica expresso em Carta de Engels a Marx, de 30 de maio de 1873, na qual expõe o projeto de escrever sobre a dialética nas ciências naturais; numa Carta de Marx a W. Liebknecht, de 07 de outubro de 1876, fica registrada sua opinião acerca do 51 significado do projeto de Engels (Marx e Engels, 1975, pp 78-80 e 89). A competência de Engels para executar este projeto fica expressa, por exemplo, nas discussões que faz sobre o valor da obra de Pierre Trémaux, sobre o papel do mecanismo da evolução, registrada na vasta correspondência trocada entre ambos – a título de exemplo pode-se verificar as cartas de Marx a Engels de 07/08/1866, de 13/8/1866, de 31/10/1866; nas de Engels a Marx de 10/08/1866, 02/10/1866 e 05/10/1866; na Carta de Marx a L. Kugelmann, de 09/06/1866 (Idem, pp 48-57). Poder-se-ia citar e recorrer a uma vasta bibliografia sobre Engels e a dialética da natureza, particularmente suas elaborações no âmbito das Ciências da Natureza. Sobre o assunto foi grata surpresa a leitura do artigo eletrônico “Friedrich Engels e as ciências da natureza”, do físico e historiador Olival Freire Jr (1995, [s.p.]). Debruçando-se sobre a contribuição de Engels às Ciências da Natureza o autor afirma que as “Ciências da natureza eram preocupação comum entre Marx e Engels, mas era maior a especialização de Engels nessas questões” (Idem). Essa preocupação com a contribuição das ciências tinha, segundo Freire Jr, três motivações: a primeira decorria de preocupações de ordem filosófica e social, pela qual buscavam analisar a influência das “visões de mundo” científicas sobre a filosofia de então; a segunda dizia respeito à influência das descobertas científicas na produção material, no desenvolvimento das forças produtivas, na evolução das técnicas aplicadas à produção; a terceira era combater a crescente influência do materialismo mecanicista ou vulgar. Para Freire Jr são preocupações que ainda hoje guardam “imensa atualidade”, fato que coloca as reflexões engelsianas como “clássicas”, pois ao se debruçar sobre as contribuições cientificas do século XIX, acabou Engels refletindo sobre problemas que ainda hoje mantém atualidade: [...] foi exatamente no curso do século XIX, em especial na segunda metade, que, pela primeira vez na história, teorias científicas foram aplicadas à produção, configurando o que chamamos de tecnologia para distinguir das técnicas onde não há essa aplicação consciente de princípios científicos. As indústrias química e elétricas estão entre as primeiras beneficiadas por essa interação. Apenas para realçar essa característica inovadora,é bom lembrar que a revolução industrial, tendo à máquina a vapor o carro chefe, não foi antecedida pela ciência; pelo contrário, o surgimento da disciplina termodinâmica pelas mãos do engenheiro francês Sadi Carnot, no início do século XIX., sucedeu ao uso em larga escala da máquina a vapor. Desnecessário frisar... a contemporaneidade do papel da ciência na produção dos bens materiais. A luta política em curso no mundo, e nesses dias no Brasil em particular, em torno da questão das patentes, nos diz claramente que ninguém subestima esse papel da ciência. As reflexões engelsianas sobre as ciências da natureza são, portanto, atuais, e por isso clássicas, por se tratarem de 52 reflexões sobre os problemas atuais, contemporâneos. Resta agora examinar o valor intrínseco dessas reflexões. Mas, antes, comento algumas razões mais conjunturais que levaram engels à sua preocupação com as ciências da natureza. (Freire Jr., 1995, [s.p.]) Mas é a terceira motivação que leva à necessária recuperação das militantes reflexões de Engels no embate com a simplificação materialista que então ocorria no movimento socialista alemão, levando-o ao embate direto contra Büchner e contra Dühring. Essa motivação levou Engels a escrever o Anti-Dühring e a iniciar os estudos (e anotações) sobre a Dialética da Natureza (Freire Jr., 1995). É paradoxal que exatamente Engels, a quem coube a tarefa de combater o materialismo vulgar e a penetração de tendências positivistas na concepção materialista dialética, seja responsabilizado pelos desvios que ele próprio combateu. É, pois, “infundada a tentativa de certos autores de ver nas preocupações de Engels com as ciências da natureza uma influência positivista”, como se Marx e Engels legitimassem suas conclusões sobre as sociedades nos êxitos obtidos pelas ciências naturais, “transpondo destas últimas conceitos, teorias e métodos para o estudo da sociedade” (Idem, ibidem). Afirma Freire Jr que, ao longo do século XX, muitos pensadores valorizaram as reflexões de Engels sobre as ciências da natureza, como estudos que estabeleceram uma dialética da natureza, vendo neles a expressão ontológica dos princípios da dialética em toda a realidade, pressupondo que “Engels teria demonstrado que as leis e categorias dialéticas operam na própria natureza, logo operam também na sociedade e no pensamento” (Idem). Para o autor, esse é o lado mais controverso da contribuição engelsiana que, para ele, está “na sua dimensão epistemológica... enquanto análise crítica do conhecimento científico existente” (Idem). O autor não fecha o aprofundamento da dimensão ontológica da contribuição engelsiana, mas como é de difícil operacionalização, face ao próprio desenvolvimento do conhecimento científico, é mais razoável considerar a contribuição de Engels não “como obra acabada”, mas como “ponto de partida”, como um “problema ainda hoje aberto” (Idem). Reconhecendo a dificuldade de aplicação dos princípios da dialética no próprio ser da sociedade e da natureza, defende a contribuição epistemológica da obra engelsiana, como segue: O valor atual da reflexão de Engels em Dialética da Natureza deve ser buscado na condição de uma reflexão filosófica sobre a natureza como a conhecemos pelas teorias científicas [como] reflexão sobre as próprias teorias científicas. É, portanto, 53 epistemologia, compreendida esta última como crítica do conhecimento científico existente. (Idem) Somente para concluir, concordo com Buonicore (2007) que, usando da ironia marxiana, questiona como um crítico contumaz do positivismo e do economicismo no interior do movimento socialista tenha sido, posteriormente, acusado de ser seu principal introdutor e incentivador na concepção que ajudou a arquitetar - o marxismo. Tendo consciência dos desvios mecanicistas e economicistas, combateu a posição daqueles que acreditavam ser a sociedade um simples reflexo mecânico da economia, reforçando, ao contrário, o caráter complexo e mediatizado da determinação econômica sobre as demais instâncias estruturais da sociedade, bem como da importância das outras esferas sociais, políticas e ideológicas sobre a economia. 4.2. A obra em seu processo de produção: ruptura e continuidade Outra das questões intermarxistas é quanto a ruptura ou continuidade na obra marxiana (e que implica entrar em outra típica “querela escolástica”). Também aqui não vou ficar citando e alinhando os autores que pensam de uma forma ou outra com relação ao assunto. Na tese de doutorado adentrei pela primeira vez nesse debate e tomei a posição favorável ao entendimento da continuidade na obra marxiana. Entretanto, hoje considero que a obra de um autor – e no caso Marx e Engels, ou qualquer outro(s) autor – à semelhança da própria vida individual ou social, é feita de continuidades e repleta de rupturas. É, pois, o próprio processo contraditório de produção da vida (material e intelectual, individual e social) que fenomenicamente se expressa em termos de continuidades e rupturas. Por isso, é imprescindível afirmar, antes de mais nada, que é falsa (ou pelo menos mistificadora), notadamente para o entendimento da concepção materialista dialética, a análise que se funda ou num rompimento da obra de Marx, como as que propugnam por uma diferenciação entre o "jovem Marx" e o "Marx adulto", ou entre "juventude" e "maturidade" na obra marxiana; ou numa continuidade que beira à eternização de um homem, tratado de forma a-histórica, como que dotado de um projeto (ou destino) percorrido ao longo de toda a sua vida, com poucas mudanças nos rumos, sem grandes alterações nos posicionamentos assumidos. Esse tipo de abordagem em relação à 54 obra de Marx não é nova e tem sido usada quer por marxistas que se julgam “ortodoxos”, como também por aqueles que se posicionam revendo os problemas encontrados na elaboração original e, notadamente, pelos críticos do materialismo dialético. O reconhecimento das continuidades e rupturas existentes na obra decorre de uma leitura atenta do próprio Marx. No conhecido e citado "Prefácio" da Crítica da Economia Política traçou as linhas gerais de seu percurso desde a jurisprudência, à qual se dedicou "como disciplina complementar da filosofia e da história", até os estudos econômicos, deixando claro que o relato feito revelava a evolução de seus estudos e que tinham por objetivo mostrar que suas opiniões eram o resultado de longas e conscienciosas pesquisas: Com este esboço da evolução dos meus estudos no terreno da economia política, quis apenas demonstrar que as minhas opiniões, seja qual for o julgamento que mereçam, e, por muito pouco que concordem com os preconceitos interessados das classes dirigentes, são o resultado de longas e conscienciosas pesquisas. (...) (MARX, K.. Contribuição à Crítica da Economia Política, p. 27). O movimento contraditório do percurso, marcado por continuidades e rupturas, fica explicitado pela leitura atenta desse "Prefácio", onde Marx afirma que, desde a revisão crítica da Filosofia do Direito de Hegel, chegou “à conclusão de que as relações jurídicas - assim como as formas do Estado - não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições de existência” (MARX, K.. "Prefácio" à Crítica da Economia Política, p. 24). A partir de então essa conclusão "serviu de fio condutor dos meus estudos" (Idem, p. 24). Creio que é esse entendimento que apreende mais adequadamente as observações de Octávio IANNI, em sua "Introdução" à coletânea Karl Marx: Sociologia, na qual colocou em evidência que “todos os trabalhos de Marx são, fundamentalmente, de interpretação de como o modo capitalista de produção mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas, em âmbito nacional e mundial.” (IANNI, O.. "Introdução", p. 7). A obra de Marx, como de qualquer outro autor, portanto, é resultado de um complexo processo de produção da própria obra. A partir de tal entendimento, Ianni deixa claro que a integração crítica, feita por Marx, das contribuições da filosofia clássica alemã, do socialismo utópico francês e da economia política clássica inglesa, não se deu como movimentos separados, mas no delineamento do método de análise e que foi se dando, 55 simultanemante, com a interpretação do capitalismo (Idem, p. 7-8). Ianni está querendo expressar, com essa reflexão, que Marx não foi separando questões de método e problemas específicos do capitalismo, ao acaso das oportunidades, ou que Marx programou seu trabalho. Ele simplesmente reconhece que houve um processo de elaboração e que, ao longo deste, Marx produziu simultaneamente o método de análise e a interpretação do capitalismo. Seria enganoso pensar... (que a obra) foi realizada segundo uma separação entre questões de método e problemas específicos do capitalismo ou ao acaso das oportunidades. Com isso não queremos sugerir que Marx prefigurou e programou todo o seu trabalho. É evidente que foi desenvolvendo, passo a passo, uma compreensão cada vez mais clara de problemas que tinha pela frente. (...) Toda a sua obra é um documento vivo sobre a maneira pela qual foi percebendo, delimitando, eliminando, enfrentando e resolvendo as questões. Nesse processo, a atividade política de Marx desempenhou, às vezes, um papel decisivo. O que interessa aqui... é que, ao longo da sua obra, produz, simultaneamente, o método e a interpretação do capitalismo.(...) (Idem, p. 10). 4.3. Ortodoxia intelectual não é dogmatismo religioso Uma concepção filosófica, científica, artística, religiosa, etc., compreende a articulação de alguns princípios que expressam uma compreensão sobre o mundo, a vida, o conhecimento, as ações práticas dos homens; enfim, permanentemente nos posicionamos sobre a origem de tudo, sobre a vida e suas relações, sobre o mundo que nos rodeia e, enfim, sobre o nosso destino final. Início do século XXI e ainda se fazem as clássicas perguntas: o que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Assunto pantanoso, mas entendo que é pelas respostas dadas às grandes e pequenas questões, pelas quais articulamos os vários princípios explicativos sobre como concebemos o mundo, a vida, o homem, a história, etc., que podemos identificar claramente uma determinada concepção filosófica e sua comunidade de seguidores. Quando nos debruçamos sobre a história dessa tradição filosófica, acabamos chegando ao seu surgimento, às condições históricas que a tornaram possível e, depois, às suas posteriores transformações, desvelando a atualidade (ou não) da concepção em ainda responder às grandes questões de seu tempo. Partilho do entendimento de que toda concepção é histórica, é datada, só conseguindo sobreviver para além de seu tempo ou se sua análise metodológica e teórica se mantiver atual, ou se o seu corpo teórico for transformado em verdade – dogma - que paira 56 para além da história. Enveredo por essa discussão para registrar minha compreensão de ortodoxia, composição de duas palavras de origem grega (orthós = reto, direito; doxia = opinião; orthódoxia = conforme a doutrina original), que em filosofia foi incorporada para se referir aos princípios originários de uma determinada escola ou concepção, isto é: à sua origem e aos seus princípios articuladores. Com a incorporação da filosofia à teologia, na Idade Média, ortodoxia passou a ser usada no sentido de absoluta conformidade com a doutrina religiosa (isto é, com os ensinamentos professados pela Igreja Católica). Mas esse é o sentido etimológico da palavra dogmatismo (dogma = verdade inquestionável; + sufixo ismo = princípio, doutrina) que tem o preciso significado de estar em conformidade com os pontos fundamentais e indiscutíveis de uma doutrina religiosa determinada, daí o significado de doutrina e que é professada pelos que admitem, como verdade inquestionável, como um ato de fé, um conjunto de explicações (verdades). É no sentido de ortodoxia que estou entendendo, ancorado em vários estudiosos, notadamente em Antonio Gramsci (1981, p. 186-187), que há no marxismo um conjunto de pressupostos que se referem aos seus fundadores – Marx e Engels – e que este é definidor dessa concepção, historicamente datada e situada. Ortodoxo no sentido de estar em conformidade com os pressupostos estabelecidos pelos fundadores da concepção. Sobre a questão de se buscar entender as premissas teórico-metodológicas da concepção materialista dialética a partir de seus fundadores, é conveniente que se esclareça que não se está considerando o marxismo como uma obra acabada, cabendo à posteridade a sua admiração e/ou mera aplicação. Igualmente, não se adota aqui a pressuposição da correção absoluta (e, por isso mesmo, dogmática) das análises teóricas e históricas dos clássicos do marxismo. Concordo, de modo geral, com os que admitem a existência de um processo de desenvolvimento e de contribuições expressivas na construção da concepção; mas isso não significa, porém, aceitar e reconhecer como materialismo dialético desvios e revisões desenvolvidas (e ainda em desenvolvimento), pois se tratam, dadas suas bases ontológicas e epistemológicas, de construção ou elaboração de referenciais que, mesmo guardando uma relação de proximidade com o marxismo, possuem (ou deveriam possuir) existência própria. Mesmo reconhecendo possíveis contribuições e avanços às elaborações dos fundadores da concepção materialista dialética da história, através das quais o próprio processo histórico e os avanços das mais diversas áreas do conhecimento científico foram sendo elucidados e integrados à concepção marxista, é necessário ainda tomarmos a 57 discussão das premissas esboçadas por Marx e Engels. Em primeiro lugar, face aos próprios desvios, interpretações equivocadas ou falaciosas e arranjos teórico- metodológicos diversos, é preciso ainda hoje, passado quase um século e meio desde as "descobertas" de Marx e Engels, buscar a partir dos próprios formuladores as premissas básicas que possibilitaram a análise da sociedade capitalista e deram sustentação ontológica e espistemológica à nova concepção, em relação às outras então existentes e que foram objeto de crítica e contestação. Não esqueçamos da referência já feita a Engels que, em setembro de 1890, em sua "Carta a Bloch..." (In: MARX, K. e F. Engels. Obras Escolhidas - Volume 3, p. 284- 286), apontou para as distorções e análises errôneas que alguns supostos marxistas estavam cometendo a partir do uso inadequado do método materialista dialético, obrigando-o a explicitar de forma mais sistematizada os fundamentos do novo método. A partir dessa observação não fica difícil reconhecer que muitas das acusações que o marxismo recebe - de análise economicista, de abordagem mecânica, de dogmatismo, etc. - têm fundamento, mas que se trata de desvios metodológicos e teóricos das formulações originais. Como entender, então, a orignalidade das formulações dos fundadores da concepção materialista e dialética da história? Entendo que Marx e Engels não promoveram uma incorporação acrítica das várias contribuições de seu tempo, isto é, não produziram uma nova concepção pela síntese eclética da contribuição da filosofia alemã, do socialismo francês e da economia política inglesa. Meu entendimento é que a concepção materialista e dialética da história foi formulada como uma síntese crítica13 produzida em contraposição a outros autores, métodos e teorias que objetivavam a análise da natureza, do homem e da sociedade. Ampliando os estudos e o engajamento político, a nova concepção foi forjada a partir da crítica contundente das concepções filosóficas, científicas e políticas de seu tempo. Exercitaram a crítica como base para a análise das concepções com que se confrontavam nos estudos filosóficos, econômicos, sociais e políticos, expressando o processo pelo qual se indica os limites dos interlocutores, mas também valorizando suas contribuições. Neste sentido, a rejeição ou a incorporação de pressupostos faziam parte de um mesmo e único processo pelo qual Marx e Engels elaboravam o método de análise e o referencial teórico 13 Estou tomando o conceito de crítica (do grego de “kritikos” = separar, decidir = "capaz de tomar decisões") que na filosofia foi incorporada em seu sentido etimológico de examinar, apreciar, apontar méritos e deficiências. 58 que possibilitavam o entendimento das leis de funcionamento do modo capitalista de produção. Novamente é preciso perguntar se, mesmo após terem Marx e Engels evidenciado os limites e as deficiências de outras concepções usuais no ambiente filosófico e científico daquele tempo histórico (Alemanha de meados do século XIX), por aqui esses mesmos métodos não deixaram de existir ou de continuarem a ser propagados como formulações científicas e neutras? Da mesma forma, como as premissas desses métodos e do próprio materialismo dialético ainda permanecem válidas e em vigor, por que não se buscar na própria origem (isto é, em Marx e Engels) as premissas que fundamentaram o novo método e a sua contraposição em relação aos demais? Nessa discussão sobre a reconstrução das questões que envolvem um método, a partir da forma como foi exposto por seus fundadores, considero muito interessantes as observações feitas por Gramsci que caracterizou Marx como o marco de um novo período histórico, já que “Marx inicia intelectualmente uma idade histórica que provavelmente durará séculos, isto é, até o desaparecimento da sociedade política e o advento da sociedade regulada." (Gramsci, A.. 1981, p. 94). Entendendo Marx como o iniciador de uma nova "idade histórica" ou como o fundador de uma nova "concepção do mundo", salientou que o estudo de "uma concepção do mundo que jamais foi exposta sistematicamente por seu fundador" deve buscar a coerência de seu pensamento de forma global e “não em cada escrito singular ou série de escritos, mas no desenvolvimento global do trabalho intelectual múltiplo, no qual os elementos da concepção estão implícitos.” (Idem, ibidem). Esse trabalho, que Gramsci denominou de "trabalho filológico minucioso", deve ser conduzido "com o máximo escrúpulo de exatidão", "de honestidade científica", "de ausência de qualquer preconceito ou apriorismo" (Idem, ibidem) de forma a que, ao buscar a coerência do pensamento do autor, se reconstrua o seu processo de desenvolvimento intelectual e sejam determinados seus elementos básicos. ... a fim de determinar os elementos que se tornaram estáveis e 'permanentes', isto é, que foram assumidos como pensamento próprio, diverso e superior ao 'material' precedente estudado e que serviu de estímulo; apenas estes elementos são momentos essenciais do processo de desenvolvimento. (...) (Gramsci, A.. 1981, p. 95). 59 Crítico contundente dos desvios e utilização inadequada do materialismo histórico (concepção que Gramsci se refere, para evitar problemas com a censura fascista italiana, como Filosofia da Práxis), defendeu a renovação do conceito de ortodoxia (que o autor opunha ao de "dogmatismo", de "economicismo", etc.) que devia ser relacionado "às suas autênticas origens" e não a qualquer discípulo ou tendência estranha à doutrina original: ... o conceito de 'ortodoxia' deve ser renovado e relacionado às suas autênticas origens. A ortodoxia não deve ser buscada neste ou naquele discípulo da filosofia da práxis, nesta ou naquela tendência ligada a correntes estranhas à doutrina original, mas no conceito fundamental de que a filosofia da práxis "basta a si mesma", contendo em si todos os elementos fundamentais para construir uma total e integral concepção do mundo, uma total filosofia e teoria das ciências naturais; e não só isso, mas também os elementos para vivificar uma integral organização prática da sociedade, isto é, para tornar-se uma civilização total e integral. (Gramsci, A.. 1981, p. 186-187). Concebendo a "filosofia da práxis" como uma concepção de mundo revolucionária, que não precisa de sustentáculos heterogêneos e heterodoxos, defendeu Gramsci a necessidade de se estudá-la a partir de Marx. Após chamar a atenção para questões que não constituem parte essencial do materialismo dialético, estudado a partir de Marx, como os elementos de spinozismo, de feuerbachismo, de hegelianismo, de materialismo francês, etc. - alerta Gramsci para o que é essencial num estudo como esse: ... o que mais interessa é precisamente a superação das velhas filosofias, a nova síntese, o novo modo de conceber a filosofia, cujos elementos estão contidos... nos escritos do fundador da filosofia da práxis, os quais, precisamente, devem ser investigados e coerentemente desenvolvidos. Teoricamente, a filosofia da práxis não se confunde e não se reduz a nenhuma outra filosofia: ela não é só original enquanto supera as filosofias precedentes, mas notadamente enquanto abre um caminho inteiramente novo, isto é, renova de ponta a ponta o modo de conceber a própria filosofia. (Idem, p. 188-189). Essas observações de Gramsci sobre o caráter revolucionário do marxismo, que não se confunde nem se reduz a nenhuma outra concepção teórico-metodológica, e sobre a necessidade de ainda se estudar um homem como Marx, nos remete às discussões sobre o marxismo feitas por Rosa Luxemburgo, em trabalho escrito em 1903 e que levou por título "Estagnação e Progresso do Marxismo". Após indagar por que "as teorias de Marx atingiram um ponto de estagnação há vários anos?", mais precisamente desde a publicação 60 de O Capital e dos últimos trabalhos de Engels (Luxemburgo, 1984, p. 53-54), a autora conclui que tal circunstância não decorre de ser a concepção materialista dialética história um método de pesquisa demasiadamente rígido ou completamente acabado (Idem, p. 54). A aparente estagnação do materialismo histórico decorre, por um lado, dos limites e barreiras que a classe trabalhadora encontra para continuar a criar uma cultura intelectual completa, dadas as condições sociais existentes em toda sociedade dividida em classes: Em toda sociedade dividida em classes, a cultura intelectual, a ciência e a arte são filhas da classe dirigente e têm por objetivo, em parte, satisfazer diretamente as necessidades de desenvolvimento social e, em parte, satisfazer as necessidades intelectuais dos membros da classe diretora. (Luxemburgo, 1984, p. 56) Por outro lado, sendo o movimento da cultura proletária uma produção de Marx, é preciso reconhecer que sua obra, que constitui como descoberta científica um todo gigantesco, ultrapassa em muito as necessidades diretas da luta de classe do proletariado e de seus teóricos, pois “Na análise completa e detalhada da economia capitalista, assim como no método de investigação histórica, Marx nos deu muito mais do que era necessário para a prática da luta de classes.” (Idem, p. 57). Com a análise precedente, busquei me manifestar que, ontem como hoje, o pensamento de Marx (e Engels) mantém sua atualidade histórica e que esta condição bem pode ser resumida pela afirmação de Rosa Luxemburgo de que “não só Marx produziu o suficiente para nossas necessidades” e de que "nossas necessidades não foram ainda suficientemente grandes para que utilizássemos" (Idem, p. 56-57) todas as suas idéias, conduzem a uma outra discussão: a da ciência, do método e da elaboração teórica como um produto histórico. 5. “Marx manda lembranças”. Numa conjuntura marcada pela crise, Estados buscam salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas 61 “Enquanto o capital continuar dominando as relações sociais, a teoria de Marx permanecerá atual, e sua novidade sempre recomeçada constituirá o reverso e a negação de um fetichismo mercantil universal.” (Bensaïd, 1999, p. 11-12). Será que faz algum sentido tratar Marx e Engels como busquei delinear anteriormente? Em outros escritos adentrei nessa questão desde um ponto de vista lógico e histórico, mas face ao anuncio bombástico de que o capitalismo vive uma profunda e grave crise internacional, recorrerei a uma argumentação conjuntural e estrutural, tecendo algumas notas sobre a atual conjuntura, marcada por mais uma grave crise do modo de produção de capitalista. Estou aqui retomando o conceito de crise em seu sentido etimológico14, adequando para o uso que os marxistas fazem, referindo-se aos processos e períodos de desequilíbrio e conflito, no âmbito econômico, social, político e ideológico (Bottomore, 1988, p. 82 e ss.). Há autores que trabalham com o entendimento que há uma teoria das crises em Marx; outros que falam em teorias da crise (no plural). Mas não acho que essa seja uma questão relevante para se discutir neste momento, em que a crise se apresenta empíricamente e aparece estampada num grande conjunto de matérias e análises, publicadas e amplamente divulgadas pela internet. Para o marxismo a crise é entendida como o colapso dos princípios básicos que regem o funcionamento de uma determinada formação social ou de um determinado modo de produção, geralmente fazendo-se a distinção entre as crises parciais ou conjunturais, características dos ciclos de desenvolvimento econômico, daquelas que expressam depressões e colapsos mais profundos e que conduzem a uma transformação profunda, estrutural, das relações econômicas e sociais características de um determinado modo de produção (Bottomore, 1988, pp. 83-85 e 85-89). As crises gerais se expressam no enfraquecimento das relações societais organizativas das relações econômicas, sociais e políticas; sua manifestação se expressa no esgotamento de um determinado padrão de acumulação. É nesse sentido que os estudiosos dos ciclos econômicos apontam para dezenas de crises conjunturais e algumas poucas e profundas crises estruturais. 14 Lat. crise < Gr. Krísiss. Alteração, desequilíbrio repentino; estado de dúvida e incerteza; tensão, conflito (Cunha, 1986, p. 228). Manifestação violenta e repentina de ruptura de equilírio; Fase difícil, grave, na evolução das coisas, dos fatos, das idéias; Tensão, conflito; Transição entre uma época de prosperidade e outra de transição; situação de um governo que encontra dificuldades muito graves em se manter no poder; Situação grave nos acontecimentos da vida social, etc. (Ferreira, [s.d.], p. 402).. 62 Nos Estados Unidos da América, por exemplo, embora tenham ocorrido 35 ciclos econômicos e crises nos 150 anos decorridos de 1834 ... [no período de 1834 a 1984], apenas duas – a Grande Depressão de 1873-1893 e a Grande Depressão de 1929-1941 – podem ser classificadas como crises gerais. [...] (Bottomore, 1988, pp. 83-85 e 85-89) A teorização marxiana das crises decorre da análise das contradições inerentes ao desenvolvimento do modo capitalista de produção, particularmente da tendência geral do desenvolvimento econômico, resultante do uso intensivo de capital e da incorporação das ciências aos processos produtivos. Esse processo é acompanhado de uma maior e mais crescente concentração e centralização de matérias primas, meios de produção e capitais. Lembro-me de uma observação de Gramsci que entendia a crise como expressão de uma situação em que o velho está morrendo e o novo não consegue nascer. Enquanto o parto não ocorre, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece. A teoria das crises é como “irmã siamesa” da teoria das revoluções (assunto que voltarei a analisar na parte terceira deste trabalho). Esse é um aspecto patente nas obras de Marx e Engels, notadamente naquelas em que buscaram explicar acontecimentos políticos contemporâneos a eles. Basta lembrar a síntese feita por Engels das lutas de 1848 à década de 1870, colocando relevo no embate ntre as classes e frações de classe, concluindo que “as condições mudaram na guerra entre povos”, o mesmo tendo ocorrido na luta de classe (Engels. Introdução – As lutas de classes na França de 1848 a 1850,, p. 97). Elgels faz uma autocrítica profunda das análises que fizeram, observando que “a história nos desmentiu... [e] demonstrou que o estado de desenvolvimento econômico no continente ainda está muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da produção capitalista” (Idem, p. 99). Mas estou aqui fazendo um gancho para entender a crise contemporânea, buscando teoricamente expressar o que vem ocorrendo desde a reorganização internacional pós-segunda grande guerra, quando o capitalismo teve uma prolongada fase de expansão econômica. Mesmo tendo a instabilidade econômica se manifestado no fim da década de 1960, ela somente irrompeu com força na década de 1970, causada por dois choques sucessivos nos preços mundiais do petróleo e que trouxeram sérias dificuldades para a conversibilidade do dólar em ouro, marcando o colapso do acordo de Bretton Woods e provocando o endividamento dos países subdesenvolvidos que buscavam, em plena crise petrolífera, manter a importação dessa fonte energética e que havia se tornado fundamental 63 com a expansão do transporte automotivo. A fase de prosperidade anterior foi, assim, interrompida com nova crise capitalista internacional15 de 1974-1975. A crise não tardou a manifestar suas características clássicas, com taxas de lucratividade fortemente decrescentes, queda e quebra no mercado de ações, alta contínua da inflação nos países desenvolvidos. Nesse contexto de crise surgiu um forte movimento contra as idéias keynesianas, contra a intervenção dos Estados nacionais na economia, e ressaltando as vantagens do livre mercado no equilíbrio e na regulação das relações econômicas. Os velhos pressupostos da ortodoxia liberal reaparecem sob novas vestes, explicitando que a “mão invisível” do mercado funcionava mais adequadamente e com vantagem os controles governamentais e as restrições ao livre fluxo de mercadorias, com a economia globalmente liberalizada. No receituário "neoclássico", não havendo intervenção econômica governamental, as economias nacionais e a economia mundial operaria de forma eficiente, conforme os modelos dos mercados "perfeitamente competitivos". Tinha início uma contra-ofensiva do capital hegemonizado pelos sectores neoliberais das classes dominantes (GUTIÉRREZ e outros, 2004). A contra-ofensiva colocou em realce os “Chicago Boys” que experimentaram a adoção de uma radical política de mercado no Chile de Pinochet. Essa contra-ofensiva capitalista, a partir de então, adotou o modelo denominado de “neoliberal”, anunciador de uma nova fase econômica, social, cultural, etc., marcada por relações globais em todos os âmbitos da vida social, daí a denominação “globalização”. Nos últimos anos da década de 1970 e nos primeiros da década seguinte, a Grã- Bretanha, sob o governo de Margaret Thatcher, e os Estados Unidos, sob o governo de Ronald Reagan, passaram a propagandear o novo modelo econômico e a anunciar a globalização do mercado. A partir de então, até recentemente, o neoliberalismo e a globalização tiveram expansão em todo o mundo, ditando as políticas orientadoras da economia, da sociedade, da política, das relações internacionais e da cultura na maioria dos países, em todos os continentes. 15 A exposição que segue sobre a crise sintetiza, em linhas gerais, o texto de GUTIÉRREZ, Alberto Anaya, Virgilio Maltos Long e Rodolfo Solís Parga. Teses sobre a crise do capitalismo e a conjuntura mundial. Comunicação apresentada no VIII Seminário “Os partidos políticos e uma nova sociedade”, promovido pelo Partido do Trabalho, realizado na Cidade do México, 5-7 de Março de 2004. Original pode ser encontrado em formato eletrônico [http://www.cubasocialista.cu/texto/viiiseminario/csviiis13.htm] e também em [http://resistir.info/mexico/anaya_8_seminario_mar04_port.html]. 64 Além da ideologização neoliberal e sua propalada característica globalizante, assuntos que tive oportunidade de analisar em duas coletâneas – Globalização, pós- modernidade e educação: história, filosofia e temas transversais. (LOMBARDI, 2001) e Liberalismo e educação em debate (LOMBARDI e SANFELICE, 2007) – é preciso registrar que a ofensiva da ideologização burguesa, visando à conquista dos corações e mentes em escala mundial, foi a emblemática mistificação de Francis Fukuyama com “o fim da história, expresso, primeiramente, através de artigo publicado em 1989, com o título "O fim da história"16, seguido do livro “O fim da história e o último homem” (Fukuyama, 1992). Com essas publicações Fukuyama elaborou uma abordagem da história, de Platão a Nietzsche, passando por Kant e Hegel, e que teve por objetivo revigorar a tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade. Superando “totalitarismos” de direita e de esquerda, no final do século XX, a humanidade atingiu o ponto culminante de sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Neoliberalismo, globalização e fim da história, com o fim das disputas históricas, foram instrumentos ideológicos da contra-ofensiva do capital, mais precisamente do capital financeiro, notadamente de seu mais novo rebento, sedento por uma acumulação rápida e pura expressão do capital em seu ciclo financeiro de acumulação: o capital especulativo. Essa contra-ofensiva usou de todos seus instrumentos políticos e financeiros para implementar seus objetivos fundamentais: derrotar a classe operária, bloqueando as possibilidades de sua ofensiva, inclusive desmantelando as estruturas, as instituições e as conquistas resultantes do Estado de Bem-Estar Social; reestruturar o capitalismo internacional, abrindo espaço para a livre operação do capital financeiro especulativo, das grandes corporações transnacionais e das potências capitalistas; possibilitar o livre fluxo de investimentos e de comércio de bens e serviços; garantir o controle e a apropriação de recursos naturais estratégicos – fontes de energia, água e a biodiversidade – viabilizando a exploração de força de trabalho barata, em nível global; implementar uma reorganização internacional, com a formação de megablocos econômicos que repartam entre si os recursos, os territórios, a força de trabalho e os recursos financeiros; estabelecer alianças estratégicas para controlar os mercados globais, 16 O artigo de Francis Fukuyama "The end of history” apareceu em 1989, na revista norte-americana The national interest; Em 1992 ocorreu o lançamento do livro The end of history and the last man, editado no Brasil no mesmo ano com o título “O fim da história e o último homem” (Fukuyama, 1992). 65 implementando uma nova redefinição geoeconômica e geopolítica, estabelecendo uma nova partilha do mundo entre os grandes impérios capitalistas; enfim, submeter os Estados nacionais à lógica da globalização financeira, eliminando o seu papel regulador e sua obrigação de procurar o bem-estar das sociedades locais. O fim do bloco soviético, com o chamado fim do “socialismo real”, e a concomitante hegemonização do neoliberalismo e da globalização, resultaram num mundo unipolar e nas condições necessárias que propiciaram o restabelecimento da hegemonia econômica e político-militar dos Estados Unidos. Nesse contexto se forjou a nova política imperialista dos Estados Unidos que, sob a desastrosa batuta de George Bush Junior, tentou implantar a estratégia de “guerra preventiva contra o terrorismo”, a partir de 11 de Setembro de 2001. Mas o acelerado agravamento da crise, ainda sob o governo Bush, deixou evidente que se tratava de uma estratégia para superar a crise capitalista, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos buscavam restabelecer seu controle imperialista sobre o resto do planeta. De modo geral, para a maioria dos países, particularmente para os países atrasados e economicamente dependentes, os anos de 1980 foram o que se convencionou chamar uma “década perdida”. Nos anos de 1990 houve uma recuperação da economia mundial, com a economia americana desempenhando o papel de locomotiva, com um crescimento médio entre 3.5 e 4%, bem como algumas nações da Europa ocidental, como Inglaterra, Alemanha e França, com um crescimento de 2 a 3%, etc. Para os a maioria dos países da América Latina e do Caribe, da África e vários países da Ásia, entretanto, o crescimento foi variável e instável, com uma marcada tendência para a recessão, convertendo essa década de 1990 noutra década perdida. Em 2000 rebentou nos Estados Unidos a bolha financeira e especulativa, inicialmente nos ramos de alta tecnologia, levando à quebra de várias grandes corporações transnacionais, finalmente se traduzindo num processo recessivo que se expandiu pela maior parte do sistema capitalista mundial. Este contexto de profunda crise econômica, social e política, tem se traduzido em insurreições sociais (pacíficas e violentas), marcadas por vitórias eleitorais oposicionistas, com mudanças abruptas na direção governamental de vários países. Esses processos combinaram criativamente velhos e novos sujeitos sociais e políticos, assim como questões programáticas de longa data, mas ainda válidas, com novas reivindicações e formas diversas de luta. É nesse contexto que se colocam os amplos movimentos de massas e frentes político-eleitorais e que, na América Latina, são 66 exemplificados pelos casos da Venezuela, do Equador, do Brasil, da Bolívia, da Argentina, do Uruguai, da Colômbia e de El Salvador. Como em outros períodos da história em que a combinação de crise cíclica com crise estrutural do capitalismo gerou as condições necessárias para a emergência de vigorosos movimentos populares e políticos alternativos à dominação capitalista, este parece ser um momento privilegiado neste sentido. Talvez o amadurecimento da luta conduza à formação de uma frente ampla que articule as forças anti-capitalistas e revolucionárias. Ao menos as análises marxistas voltaram a circular nos meios de comunicação de massa. Assim, contraditoriamente, nestes tempos de crise, tal qual a Fênix, voltam a circular uma quantidade expressiva de matérias jornalísticas e textos analíticos sobre o assunto17. Na impossibilidade de aqui sintetizar o debate que se realiza, vou apenas tomar alguns textos como referência, com o objetivo de expressar o quanto a atual crise recoloca a atualidade da produção marxiana. A nova grave crise estrutural, “sistêmica”, do modo capitalista de produção, tem sido divulgada pela imprensa burguesa, através de matérias que dão conta da profundidade do está sendo chamado de crash de 2008. A gravidade é tamanha que este crash está sendo considerado mais grave que o de 1929, nos seguintes termos: “o mundo está passando hoje por uma crise sistêmica que só tem paralelo com o crash de 1929 e ninguém sabe qual será a extensão desse terremoto” (Barros, 2008, [s.p.])18. O atual crash (2008) manifesta-se por uma grande turbulência no mercado financeiro dos EUA e que é constante desde a eclosão da crise do crédito imobiliário (em 2007), agravada pelo anúncio de concordata de um dos maiores bancos de investimento - o Lehman Brothers. Com uma economia mundializada, simultaneamente a crise tornou-se internacional, com os investidores promovendo a venda de ações, em busca por ancorar-se em dólares. Para amenizar os efeitos do desequilíbrio financeiro, os bancos centrais do mundo todo injetaram mais de US$ 500 bilhões no mercado ao longo da drástica semana de 2008 (a imprensa refere-se à ao período de 15 a 19 de setembro de 2008). Para “salvar o capitalismo dos capitalistas”, a economia ícone do liberalismo e da defesa do mercado protagonizou alguns episódios de intervenção que causaram surpresa aos analistas. Numa 17 Impossível dar conta da multiplicidade dessa produção que tem circulado em livros e revistas impressas e digitais. É preciso registrar, entretanto, que há acumulo de textos de excelente qualidade e que, de modo plural, contribuiem para ampliar o debate analítico para o atual contexto histórico de crise estrutural do modo capitalista de produção, com múltiplas indicações de perspectivas e saídas para a construção de novas relações societárias. 18 Frase de Guilherme Barros, na matéria “Para Nathan Blanche, BC agiu corretamente”, publicada na coluna “Mercado Aberto”, da Folha de S.Paulo de 19 de setembro de 2008. 67 clara intervenção do Estado para regularizar o mercado, o tesouro americano disponibilizou bilhões de dólares para aumentar a liquidez dos mercados afetados pela crise, e o Fed (Federal Reserve, o banco central americano) aprovou na terça-feira, 16 de setembro de 2008, um socorro de US$ 85 bilhões à AIG (American International Group), uma seguradora que opera praticamente em todo mundo, numa ação sem precedentes e que, na prática, equivale à estatização da empresa. Essa ação intervencionista do Estado na economia foi justificada pelo então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que em entrevista pública (concedida no dia 19 de setembro de 2008), afirmou que a intervenção pública nos mercados "não só é justificada, é essencial", para evitar um dano maior na economia; por isso "Devemos agir agora para proteger a saúde econômica de nossa nação". Bush estava acompanhado pelo secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, e o presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke.19 No artigo “Réquiem para a era Reagan”, de Chrystia Freeland, a autora expressa que a poucos dias ninguém acreditava na profundidade da crise, mas que desde o dia 18 de setembro de 2008 “a comparação com 1929 se tornou corrente”. Considerando que “o item mais importante nas exportações ideológicas dos EUA era a idéia de mercado”, a profundidade da crise levou “os americanos a reverem conceitos cruciais como capitalismo de mercado e papel do Estado” (Freeland, 2008, [s.p.]). Para a autora, “a era Reagan chegou ao fim” e, com o fim dessa era, também “a confiança otimista na superioridade do "american way" foi abalada”. Com o crash de 2008, “depois de três décadas de consenso sobre a diminuição do tamanho do Estado, a prioridade agora será tornar o Estado melhor e provavelmente maior” (Idem, ibidem). 20 Com a vitória de Barack Obama para a presidência americana, envolta em grande euforia e mistificação por parte da imprensa americana e internacional, houve continuidade e ampliação do consenso para que o Estado intervisse nos rumos da crise, bancando um plano de estímulo econômico que, em síntese, a imprensa registrou como muito aquém do necessário para minimizar o desemprego e a quebradeira generalizada. O Congresso acabou aprovando um plano econômico avaliado em US$ 787 bilhões, na sexta- feira 13 de fevereiro de 2009. A imprensa informou que o pacote foi aprovado por 60 votos 19 Informação publicada na Folha OnLine de 19/09/2008 - 12h31 – com o título: “Intervenção em mercados é essencial para conter crise, diz Bush”. [http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u446710.shtml] 68 a favor e 38 contra, uma votação apertada que encerrou a tramitação do Plano no Congresso (Estadão on line, 14/02/2009)21. O próprio presidente Obama expressou o entendimento americano quanto ao plano: "Há quem tema que não poderemos implementar eficazmente um pacote dessas dimensões e alcance", advertindo que "este passo histórico não será o último dado para superar a crise, mas apenas o primeiro", pois era preciso que se entendesse que "Os problemas que nos levaram a essa crise são extensos e arraigados, e nossa resposta deve estar à altura da tarefa" (Idem). Apesar de prever centenas de bilhões de dólares em cortes de impostos e investimentos federais, favorecendo sobremaneira as indústrias de energia e tecnologia, a nova legislação foi considerada desalentadora para as empresas, pois era insuficiente para minimizar os prejuízos provocados pela crise. Mas é preciso convir que as informações são muito desencontradas, pois o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, informou em 10 de fevereiro que os bancos americanos receberam um pacote de ajuda do Tesouro no total de US$ 1 trilhão que, somado as ações voltadas ao crédito para o consumidor e para as empresas, supera US$ 2 trilhões (Estadão on line, 10/02/2009)22. Mais interessante, ainda, foi a leitura da publicação de observações de George Soros, multimiliardário, guru norte-americano dos mercados financeiros, que crítica os "fundamentalistas do mercado", mas também o Federal Reserve, o BC dos EUA, e o tesouro norte-americano, dizendo que são responsáveis pela formação de uma "superbolha" que está mergulhando os Estados Unidos e a Europa numa grave recessão. Respondendo à pergunta “Wall Street está afundando. Estamos assistindo à queda do império norte- americano?”, George Soros respondeu Wall Street não está afundando, está em crise. Os efeitos dessa crise vão depender de sua duração. A situação não é fatal: estamos à beira do abismo, mas ainda não caímos nele. O mercado continua a funcionar. Mas nos últimos dias surgiu um fato 20 Chrystia Freeland, do "Financial Times", no artigo “Réquiem para a era Reagan”, reproduzido na Folha de S.Paulo de 20 de setembro de 2008. 21 A imprensa brasileira também noticiou o assunto, por exemplo pode-se verificar o conteúdo de matéria on line, de 14/02/2009, pelo site do estadão, com o título “Congresso aprova plano anticrise; Obama elogia ‘conquista real”, acessada pelo seguinte endereço eletrônico: http://www.estadao.com.br/economia/not_eco323852,0.htm 22 matéria on line, de 10/02/2009, pelo site do estadão, com o título “Entenda o novo plano dos EUA para resgatar bancos”, acessada pelo seguinte endereço eletrônico: http://www.estadao.com.br/noticias/economia,entenda-o-novo-plano-dos-eua-para-regatar- bancos,321553,0.htm 69 novo, sim: existe a possibilidade de o sistema explodir. O que está acontecendo é inacreditável. É a conseqüência do que eu chamo de "fundamentalismo do mercado", essa ideologia do "laissez-faire" e da auto-regulamentação dos mercados. A crise não se deve a fatores externos, ela não é conseqüência de uma catástrofe natural. É o sistema que provocou seu próprio colapso. Ele implodiu. (Soros, 2008, [s.p.])23. Soros reconhece que foi o próprio capitalismo que provocou o seu colapso. Para além dessa afirmativa, também reconhece que a atual crise expressou o “fundamentalismo do mercado”, afirmando que o laissez-faire e a “auto-regulamentação dos mercados” não passam de ideologia. Para os baluartes da liberdade de um mercado auto-regulável e da não intervenção do Estado na economia, George Soros foi mais longe: “A grande diferença entre hoje e a crise de 1929 é a atitude das autoridades. Elas compreenderam que é preciso sustentar o sistema, mesmo que isso seja complicado e custe caro, e mesmo que não seja parte de sua cultura promover intervenções do Estado” (Idem, ibidem). Essa posição, manifestada quando do início das notícias sobre a crise, foram reiteradas e aprofundadas depois, com George Soros afirmando que o “Sistema financeiro está se desintegrando; é pior que a Grande Depressão e não há sinal algum de que estejamos perto do fundo do poço.”24. Essas afirmações, feitas em 20 de fevereiro de 2009, em um jantar na Columbia University, foram noticiadas por aqui em curta matéria do Jornal O Estado de São Paulo, de 21 de fevereiro de 2009, registrando que o megainvestidor afirmou que o sistema financeiro mundial estava efetivamente se desintegrando e que não há perspectiva de solução a curto prazo para a crise, já que a turbulência é mais severa que durante a Grande Depressão e essa situação é comparável ao desmantelamento da União Soviética.25 Para melhor explicar a crise, comparando com o que ocorreu em 1929-30, a Folha de S. Paulo publicou artigo do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, com o sugestivo titulo “Nada de novo”26. Para Belluzzo, várias figuras de proa do establishment financeiro 23 Os trechos estão na matéria "Wall Street não afundou", afirma Soros, publicada no caderno Dinheiro, da Folha de S. Paulo de 20 de setembro de 2008. 24 Citado em Carta Maior, acessado em 22 de setembro de 2009, pelo site: http://www.cartamaior.com.br/templates/index.cfm?alterarHomeAtual=1 25 Matéria intitulada “Soros não vê fundo do poço do colapso financeiro mundial”, na Sessão Economia, no site do Jornal O Estado de São Paulo, estadão.com.br, acessado em 22/02/2009, pelo seguinte endereço: http://www.estadao.com.br/economia/not_eco327883,0.htm 26 Luiz Gonzaga Belluzzo, “Nada de novo”. Folha de S. Paulo, Caderno Dinheiro, de 21 de setembro de 2008. 70 americano, Nicholas Brady, Eugene A. Ludwig e Paul Volker, recomendaram medidas drásticas e urgentes para brecar o avanço da mais devastadora crise financeira desde a Grande Depressão de 1930. Para estes “na ausência de uma ação corajosa, as coisas podem piorar” pois, mais que isso, entendem que “medidas de emergência já tomadas pelo Fed e pelo Tesouro, ainda que necessárias, são insuficientes para domar a crise" (Belluzzo, 21/09/2008, [s.p.]). Para os “três figurões” das finanças “o sistema financeiro americano exige uma reestruturação profunda que o habilite a funcionar de forma mais adequada no futuro”, mas é preciso imediatamente livrar o mercado "do enorme volume de lixo tóxico hipotecário que não será honrado nos termos acordados”. A citação de Belluzzo é, por ela mesma, elucidativa: "Plus ça change, plus c'est la même chose." Franklin Delano Roosevelt assumiu o governo dos EUA quando a Depressão de 1929 andava brava. Cuidou de salvar as grandes corporações e os bancos de seus próprios desvarios e preconceitos. A derrocada financeira foi enfrentada com o Emergency Bank Bill, de 9 de março de 1933, e pelo Glass-Steagall Act, de junho do mesmo ano. Esses dois instrumentos legais permitiram um maior controle do Fed sobre o sistema bancário. Roosevelt facilitou o refinanciamento dos débitos das empresas, sobretudo da imensa massa de dívidas dos agricultores, estrangulados pela queda de preços. O "New Deal" utilizou a "Reconstruction Finance Corporation", criada por Hoover em janeiro de 1932, para promover a reestruturação do sistema bancário e financeiro. Roosevelt impôs a separação entre os bancos comerciais e de investimento; criou a garantia de depósitos bancários; proibiu o pagamento de juros sobre depósitos à vista e estabeleceu tetos no pagamento de juros para os depósitos e prazo. Esses papéis não estão habilitados a suportar as enormes quantidades de instrumentos financeiros estruturados, alavancados muito mais do que 30 vezes. Até que seja adotado um novo mecanismo para extirpar esse tecido apodrecido do sistema, a infecção vai se disseminar, a confiança vai se deteriorar ainda mais e nós teremos de conviver com a mãe de todas as contrações de crédito." (Belluzzo, 21/09/2008, [s.p.].) A análise de Luiz Gonzaga Belluzzo já vinha sendo arredondada pelo economista, desde uma entrevista publicada na revista Caros Amigos de fevereiro de 2008, publicada sob o título “A crise, trocada em graúdos”, e na qual afirmou que a atual crise financeira é a primeira crise em escala mundial após a desregulação promovida pelo neoliberalismo (Belluzzo, fevereiro de 2008, p. 14). Afirma ele que “cada crise tem características próprias... [e esta] é a primeira crise mundial do capitalismo financeiro desregulado” (Idem). 71 Para ajudar o leitor a entender o que está se passando, Belluzzo traça o percurso que desembocou na atual crise, pontuando que, após a crise de 1930, as reformas introduzidas pelos Estados Unidos e Europa, no chamado consenso keynesiano, possibilitaram três décadas de crescimento e estabilidade, com controles sobre os sistemas financeiros. Às lutas sociais nos países desenvolvidos, correspondeu à “proteção dos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e assalariados em geral” (Idem). No final dos anos 1960, a recuperação econômica européia pós-guerra e o reerguimento japonês provocaram “uma mudança de sinal na balança comercial dos Estados Unidos”, com sucessivos déficits na balança de pagamento, agravados com a crescente ampliação das despesas militares. Como toda a economia internacional estava lastreada no dólar, passou a ocorrer uma verdadeira hemorragia das reservas de ouro. Em 1971 o então presidente Richard Nixon decretou unilateralmente a incorversibilidade do dólar em ouro, lastreando a moeda americana em títulos da dívida do governo americano. No final dos anos 1970 os europeus tentavam substituir o dólar por um ativo emitido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), os Direitos Especiais de Saque, mas a reação dos americanos foi de promover um choque de juros, levando a uma quebradeira geral das economias nacionais, notadamente dos países endividados. O resultado da crise foi a vitória das posições liberais mais conservadas, como a vitória de Thatcher em 1979 e de Reagan em 1980, com a radical desregulamentação e liberalização da economia, com o máximo de liberdade de mercado e Estado mínimo. Conforme Belluzzo: ... a crise deu força aos que trabalhavam sem descanso para dar um fim .... as instituições criadas na posteridade da Segunda Guerra para impedir que o capitalismo repetisse experiências catastróficas, como a crise de 1929. A idéia era desregulamentar, liberalizar, promover a desrepressão financeira. Nesse ambiente, com o dólar fortalecido, os Estados Unidos começaram as idéias e as regras do conjunto de proposições ditas neoliberais. [...] (Belluzzo, fevereiro de 2008, p. 14). Como bem caracteriza Saul Leblon, em texto intitulado “A esquerda enfrenta a dura carpintaria da história”, o neoliberalismo foi tomado como a panacéia ideológica da burguesia para todos os males da modernidade, transformando os meios de comunicação de massa em “corregedoria ideológica do fim da história”. Vale a pena atentar para a citação: [...] Por quase 30 anos despejou-se sobre a sociedade uma peroração cotidiana que reafirmava a virtude dos mercados desregulados para promover o crescimento, a inovação, a modernidade, a eficiência, a liberdade, orgasmo e a cura para a calvice. 72 Jornalões, colunas e colunistas, em especial nas editorias de economia, funcionaram esse tempo todo como uma espécie corregedoria ideológica do fim da história. Dentro e fora das redações, cuidavam de vigiar, punir e desqualificar quem ousasse argüir o mainstream, bem como o perímetro por ele reservado à democracia. (Lebron, 2009, [s.d.]) Mas voltemos a Belluzzo, para quem esse ambiente neoliberalizante, com uma suposta liquidez e segurança, fizeram com que os títulos americanos passassem a lastrear as operação de crédito que passaram a ser “securitizadas”, com os títulos não mais ficando nas carteiras dos bancos, mas sendo negociados diariamente nos mercados financeiros internacionais. Foi essa a política adotada nas duas décadas seguintes (1980 e 1990), promovendo amplo crescimento da bolha financeira, com os bancos concedendo crédito lastreado na negociação dos títulos. Foi como que absolutizar a circulação de dinheiro para a obtenção de mais dinheiro. [...] A inventividade dos mercados construiu uma verdadeira pirâmide de papéis, com empréstimos de qualidade variada, misturando o bom, o ruim e o péssimo. Quando explode a crise, toda a cadeia da felicidade entra em pane. A pirâmide começa a desmoronar... (Belluzzo, fevereiro de 2008, p. 15). Para Belluzzo os mais recentes acontecimentos mostram que é preciso “conter a mula-sem-cabeça da finança desregulada”, para evitar que os cidadãos sejam “atormentados periodicamente pelas tropelias da mão invisível” (Belluzzo, 21/09/2008, [s.p.]). Também nesse quadro de crise foi publicado o artigo de César Benjamin, “Karl Marx manda lembranças”, também na Folha de S.Paulo, de 20 de setembro de 2008, e que teve grande alarde na internet27. A epígrafe não poderia ser mais feliz para ilustrar o quadro posto e exemplarmente caratecterizado por Soros. Vale a pena citar para registro: “O que vemos não é erro; mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas.” (Benjamin, 2008, [s.p.]). Achei a afirmação a mais correta expressão do que está se passando, colocando-a como subtítulo desta presente parte de meu trabalho. 27 César Benjamin, “Karl Marx manda lembranças”. Folha de S.Paulo, 20/09/2008. [http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2009200824.htm]. Também em vários sites, como por exemplo: [http://www.diap.org.br/index.php/artigos/5066-cesar_benjamin_karl_marx_manda_lembrancas] 73 Iniciando pela afirmativa de que nas economias modernas não mais tratam de dispor de valores de uso, “mas de ampliar abstrações numéricas”, o autor entende que se criou um novo conceito de riqueza, o que recoloca a atualidade da análise marxiana nos termos que seguem: Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades; como as "necessidades do estômago" são poucas, esses novos bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados à fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria. (Idem) Não encontrando obstáculos externos, era de se pressupor que historicamente nada impediria a livre expansão e acumulação do capital. Mas haviam obstáculos internos, responsáveis pelas instabilidades e pelas crises cíclicas do modo capitalista de produção, como segue: Havia... obstáculos internos, que seriam, sucessivamente, superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em coisas e valores de uso. Só assim pode ressurgir ampliado, fechando o circuito. É um processo demorado e cheio de riscos. Muito melhor é acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D - D" essa forma de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem trabalho é fictícia. [...] (Idem) Com a instabilidade, o “potencial civilizatório do sistema” passaria a esgotar- se, afastando a produção do mundo-da-vida. Com isso, a engrenagem econômica tornaria a “potência técnica cada vez mais desenvolvida, mas desconectada de fins humanos”. Dependendo das forças sociais que predominem, a potência técnica poderá abrir um desses dois caminhos para a humanidade: por um, a técnica estaria colocada a serviço da 74 civilização – “abolindo-se os trabalhos cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da cultura e do espírito”; pelo outro chega-se à barbárie - “com o desemprego e a intensificação de conflitos”. Assim, quanto “Maior o poder criativo, maior o poder destrutivo” (Idem). César Benjamin fecha o artigo lembrando que o que está acontecendo “não é erro nem acidente”, mas é resultado do próprio sistema. Vencendo os adversários, o sistema buscou “a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial”, com predominância da acumulação D - D". Com isso: Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças. (Idem). Este mesmo fio-condutor de análise aparece em grande quantidade de artigos, entre os quais merece destaque o de Rick Wolff28 que, após tecer análise crítica quanto aos descaminhos do capitalismo americano, registra que “... esta crise, como muitas outras, levanta o espectro de Marx, à sombra do capitalismo... As duas mensagens básicas do espectro estão claras: (1) a crise financeira de hoje decorre dos componentes nucleares do sistema capitalista e (2) resolver realmente a crise actual exige a mudança daqueles componentes a fim de mover a sociedade para além do capitalismo” (Wolff, 2008). É também a questão central de entrevista de Eric Hobsbawm a Marcello Musto29, que recebeu o sugestivo título “A crise do capitalismo e a importância atual de Marx”, publicada na Carta Maior, de 29 de setembro de 2008, na qual o historiador inglês analisa a atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando nos últimos anos, aguçado ainda mais após a nova crise de Wall Street. Para Hobsbawm os acontecimentos presentes recolocam a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista” (Hobsbawm, 2008). Mas essas observações de Hobsbawm vem sendo recolocadas há longo tempo e já as 28 Trata-se do artigo de Rick WOLFF, Capitalist Crisis, Marx's Shadow, publicado em Mr Zine, Monthly Review, de 26/09/2008. Acesso [http://mrzine.monthlyreview.org/wolff260908.html], em 27/09/2008. 75 referenciei quando da minha apresentação ao livro Marxismo e Educação: debates contemporâneos (Lombardi, 2005, p. xiv e ss.). Não é demais retomá-las, pois Hobsbawm situa e precisa o quadro referencial da atualidade do marxismo. Para ele, até a Revolução Russa o movimento revolucionário internacional era ideologicamente insuflado pelo embate entre a concepção anarquista e a marxista (Hobsbawm, 1995, p. 80-81). Após 1917, o marxismo e mais que ele o bolchevismo, foi absorvendo todas as outras tradições revolucionárias, o que decorria da vitória do movimento revolucionário russo e de sua repercussão internacional, de forma que a opção revolucionária passou a significar “ser um seguidor de Lenin e da Revolução de Outubro, e cada vez mais um membro ou seguidor de algum partido comunista alinhado com Moscou”. Tal situação perdurou até 1956 quando, acompanhando a “desintegração da ortodoxia marxista na URSS e do movimento comunista internacional centrado em Moscou”, as tradições e organizações da heterodoxia, até então marginalizadas, puderam alçar para a esfera pública. Hobsbawm aponta que, com o colapso da URSS e o fim do chamado “socialismo real”, também houve o abandono da idéia de uma economia única, centralmente controlada e estatalmente planejada (Idem, p. 481). Mais que isso, o colapso da URSS significou de modo extensivo a derrocada do marxismo soviético, formuladas até a década de 1890. Mas o historiador inglês deixa claro que isso diz respeito ao marxismo soviético, pois Marx continuou um pensador de extrema atualidade. No momento em que os defensores do capitalismo festejavam a derrocada do socialismo real e faziam profissão de fé na vitalidade do mercado, Hobsbawm assinalava a profunda crise que o neoliberalismo foi mergulhando ao longo da década de 1990 e que deixavam claro o fracasso dessa perspectiva como terapia de choque nos países ex-socialistas (Idem, p. 552). Para ele, isso deixava claro que a contra-utopia socialista estava em bancarrota, com sua fé teológica na economia de um mercado sem qualquer restrição, em condições de competição ilimitada, e que se acreditava ser capaz de produzir não apenas o máximo de bens e serviços, mas também o máximo de felicidade (Idem, p. 542). Exatamente essa situação é que reafirmava aos socialistas sua convicção de que todos os assuntos, inclusive a economia, são demasiadamente importantes para serem deixados ao mercado. 29 Essa entrevista de Eric Hobsbawm a Marcelo Musto, intitulada “A crise do capitalismo e a importância atual de Marx”, foi publicada na Carta Maior, em 29 de setembro de 2008, e encontra-se disponível em: [http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15253] 76 É também esse o sentido posto por Daniel Bensaïd, na primeira página de seu Marx, o intempestivo - e que merece o registro: “Enquanto o capital continuar dominando as relações sociais, a teoria de Marx permanecerá atual, e sua novidade sempre recomeçada constituirá o reverso e a negação de um fetichismo mercantil universal.” (BENSAÏD, 1999, p. 11-12). Para fechar essas observações, que são meramente pontuais neste trabalho, pensava em recorrer a Marx e Engels – no Manifesto do Partido Comunista - sobre a derrocada do capitalismo e a construção de um novo modo de produção. Também fiquei tentado a citar Lênin e sua arguta análise sobre o Imperialismo, a fase decadente do capitalismo e as transformações que dele decorrereram. Entretanto, resolvi recorrer a duas matérias que circularam com a eclosão da crise. Uma matéria identificada com a direita traz algumas passagens de Thomas Fingar, presidente do Conselho Nacional de Inteligência dos EUA, que vaticinou o declínio norte-americano com colorações fortes (Rodrigues, F., 2008)30. Afirma o maioral do serviço secreto do país que: A dominação americana será muito reduzida [até 2025]. A esmagadora dominância que os EUA desfrutaram no sistema internacional nas áreas militar, política e econômica e, discutivelmente, na área cultural está erodindo e vai erodir num passo acelerado, com a exceção parcial do setor militar. (apud Rodrigues, F., 2008, [s.p.]). Esboçando um quadro sombrio resultante do processo de globalização, afirma Thomas Fingar que haverá uma ampliação ainda maior dos conflitos, pois: "A distância entre ricos e pobres - internacionalmente, regionalmente - vai crescer” (Idem). A carência de uma liderança internacional se fará sentir, pois Fingar não identifica nenhuma força emergente capaz de exercer o papel desempenhado pelos EUA no Ocidente no período pós-Segunda Guerra Mundial. Para Fingar não surgiu uma força mundial capaz de construir uma nova agenda minimamente consensual. Também são interessantes as provocações feitas por Saul Leblon, numa perspectiva à esquerda, em matéria publicada pela Agência Carta Maior, em 23 de 30 A matéria leva o sugestivo título “A erosão do império”, assinada por Fernando Rorigues, que traz trechos de conferência de Fingar a agentes e analistas do setor de informações norte-americano. Foi publicada no Caderno Mais, da Folha de S. Paulo de 21 de setembro de 2008. 77 fevereiro de 2009, com o título “A esquerda enfrenta a dura carpintaria da história”31, na qual provoca a esquerda por apego à discussão metafísica e a conclama para o debate sobre os rumos da “carpintaria de construção da história” neste momento em que a ordem se liquefaz e o futuro nada propõe. O artigo começa duro: Em meio às angústias que assombram trabalhadores e a classe média, emparedados entre a fatalidade de uma ordem que se liquefaz e um futuro que nada propõe exceto agonia, parte dos teóricos da esquerda agarra-se à discussão metafísica de modelos, desobrigando-se de assumir a dura carpintaria de construção da história nesse momento. (Lebron, 2009, [s.p.]) Para o autor, “enquanto intelectuais de esquerda multiplicam as listas de que não é possível fazer–tudo, exceto o aprisco seguro de uma teoria da revolução mundial”, do outro lado – no qual alinha de Paul Krugman a Nouriel Roubini; de Ângela Merkel a Gordon Brown, de Alan Greenspan a Nicolas Sarkozy – vale tudo para manter a ordem: “da demissão em massa, à estatização de bancos; da emissão de moeda em quantidades industriais, a gastos fiscais pantagruélicos” (Idem). Com isso quer expressar que face à ameaça sofrida pelo capitalismo, vale tudo para salvá-lo, notadamente usar o Estado, suas políticas e fundos públicos “quando a escolha é salvar os dedos ou perder toda a mão invisível legada por Adam Smith” (Lebron, 2009, [s.p.]). Para a esquerda é necessário propor “alternativas concretas a essa transição”, por exemplo, “transformar a coordenação provisória da riqueza financeira pelo Estado em ganho permanente da sociedade”, subordinando o poder do dinheiro ao controle do Estado através da estatização do crédito (Idem). Ao contrário da história avançar a partir de modelos, seu avanço decorre das imperfeições e do tenso entrelaçamento entre as novas forças e os velhos instrumentos. A provoção final do artigo vale a pena ser citada: A lição parece ser que a história avança a partir de imperfeições; não de modelos desprovidos de conteúdo histórico. Movimenta-a um entrelaçamento tenso entre forças novas e instrumentos velhos, muitas vezes renovados até o ponto de mutação. A esquerda terá papel relevante na dialética da crise mundial se conseguir enxergar-se como parte desse amálgama de restrições e possibilidades cercados de ruídos e imperfeições. Se renunciar à carpintaria da história para mergulhar na busca metafísica da solução pura, a salvo de contradições, será tratorada pela desenvoltura ecumênica da força-tarefa capitalista. Mais uma vez. (Lebron, 2009, [s.p.]) 31 O artigo de Saul LEBLON, “A esquerda enfrenta a dura carpintaria da história”, encontra-se disponível em: [http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15703]. 78 Como perguntar não ofende, sendo uma dimensão fundamental do exercício infindável de melhor entender o processo de transformação histórica, lá vai: Será que não há mesmo nenhuma força social que, sob os escombros do velho modo de produção, reverta a barbárie em andamento, redirecionando a humanidade no caminho da construção de uma nova e superior civilização? É exatamente essa discussão que a dimensão da atual crise recoloca. Recoloca que Marx tinha razão em prognosticar que o modo de produção capitalista seria compelido a revolucionar incessantemente a produção, a aumentar a massa de mercadorias, igualmente mercadorizando todas as coisas, todas as relações e, enfim tudo sendo transformado em mercadoria. O brutal desenvolvimento das forças produtivas, a constante transformação da produção, ampliará incessantemente a esfera de influência do capital, assim como do espaço geográfico do circuito mercantil e da acumulação de mais riquezas e mais populações participando do processo. O aumento da potência produtiva, a expansão do espaço da acumulação, a revolução técnica incessante, todo o planeta, todos os setores econômicos, todas as empresas, transformadas em monopólios e oligopólios, passam a ter seus destinos igualmente cada vez mais interrelacionados. O rompimento de qualquer elo dessa cadeia, como a falência de um grande oligopólio, com fortes vínculos internacionais e conformados dominantemente pelo capital financeiro, tem implicações para numerosas empresas, para o circuito financeiro de modo ampliado, gradativamente provocando um efeito dominó e levando de roldão todo o circuito no qual se encontra envolvido, as bolsas de valores ao redor de todo o mundo... Grandes e pequenos Estados nacionais, grandes e pequenos impérios. Enfim o imperialismo nunca deixou de ser tema tão atual! (Foster, 2002, [s.p.]) São essas questões que reacendem as possibilidades de transformação profunda de todo o modo de existir dos homens. Após as experiências tenebrosas do século XX, nas quais nenhum vestal à direita ou à esquerda está em condições de lançar pedra alguma, dificilmente pode-se pressupor que a revolução venha a resultar de um evento, de um golpe de Estado ou da derrubada insurrencional do poder do Estado. Reacende, porém, o entendimento da revolução como um processo de transformação, como a implosão de todo edifício social característico de velhas bases e relações marcadas pela exploração do trabalho pelo capital, com a emergência progressiva de novas e revolucionárias relações, identificadas com novas bases e fundamentos societários. Ainda nesse contexto, será 79 necessário defender Marx e o marxismo, como bem observa Hobwbawm, em Sobre História, subsidiando as reflexões sobre a atualidade do marxismo: [...] Quanto ao futuro previsível, teremos que defender Marx e o marxismo dentro e fora da história, contra aqueles que os atacam no terreno político e ideológico. Ao fazer isso, também estaremos defendendo a história e a capacidade do homem de compreender como o mundo veio a ser o que é hoje, e como a humanidade pode avançar para um futuro melhor. (Hobsbawm, 1998, p. 184). Penso que a observação de Hobsbawm constitui uma provocação para irmos em frente, assentados na consideração de que Marx continua se constituindo uma base essencial para a análise da educação e de seu entendimento contextualizado, contribuindo com as lutas políticas e ideológicas, principalmente através da defesa de uma perspectiva histórica que não abdicou de entender como o mundo veio a ser o que é hoje e muito menos de plantear uma alternativa revolucionária para um futuro melhor. Não custa insistir: para que isso ocorra, é preciso que estratégica e taticamente busquemos a superação da lógica do capital, indissoluvelmente articulada à construção de uma “educação para além do capital”, como aponta Mészáros (2005, p. 71), arrematando que: [...] a nossa tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma transformação social, ampla e emancipadora. Nenhuma das duas pode ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A transformação social emancipadora radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da educação [...] (Idem, p. 76). Por isso tenho insistido que é preciso abrir ainda mais o debate, mantendo acesa a perspectiva de construção revolucionária de uma nova sociedade, mais justa e igualitária. É com esse projeto que, como educadores, precisamos lutar para que todos os homens tenham acesso a uma educação que os prepare para além do capital; que possibilite a todos o acesso aos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade; e, enfim, que todos os homens possam usufruir de uma educação crítica, voltada ao atendimento de toda a sociedade e centrada nos conteúdos historicamente produzidos pela humanidade, no interior de uma perspectiva política de transformação social (Lombardi, 2005, p. xxvii). 80 PARTE II – Princípios e Fundamentos das concepções filosóficas e científicas Na primeira parte do presente trabalho retomei meus embates com a pós- modernidade, colocando em relevo a importância e a atualidade metodológica e teórica do marxismo. Enquanto escrevia o trabalho, a eclosão da mais uma profunda crise estrutural do modo capitalista de produção, ensejou-me discutir a própria crise e, a partir da veiculação das mais diferentes matérias e artigos, acadêmicos e jornalísticos, conjunturalmente reforçar essa atualidade do marxismo. É interessante notar que vivemos um contexto em que várias obras econômicas e políticas de Marx e Engels tornarem-se best-seller, como O Capital e o Manifesto do Partido Comunista. Meu objetivo foi deixar claro que a proclamação pós-moderna de fim da modernidade tem o mesmo status que a decretação do fim da filosofia, do fim da história, do fim do mundo - como anunciam os milenarismos que se repetem de quando em quando. São ondas ideológicas pelas quais o novo é anunciado em oposição a um velho frágil, esclerosado e em acelerado processo de decomposição. Como explicitado anteriormente, a atual onda novidadeira, autodenominada pós-modernidade, se coloca em oposição à razão, ao iluminismo e à prometida revolução, conseqüente desdobramento do processo civilizatório, pelo qual se chegaria a uma época de explendor positivo, ou a uma revolução socialista levada a cabo por um proletariado politicamente mobilizado para por fim à propriedade privada, razão básica de sua exploração e miséria. Apesar da recusa a qualquer enquadramento, demonstrei que se trata de um caleidoscópio ideológico que, porém, articula-se com alguns princípios norteadores dos posicionamentos pós-críticos: a negação da realidade exterior, assumindo uma ontologia anti-realista e que, porisso mesmo, é profundamente idealista; a ênfase no fragmentário, no particular e no microcoscópico e que reduz tudo a um sujeito ao mesmo tempo alfa e ômega; a subjetividade extremada e a dúvida como princípio metódico, incador da impossibilidade de construção de qualquer Landim Highlight Landim Underline Landim Underline Landim Underline Landim Underline Landim Underline 81 tipo de conhecimento que ultrapasse o sujeito que o produziu; enfim uma gnosiologia de ceticismo absoluto, negadora de qualquer possibilidade de conhecimento e que, por isso, beira a um agnosticismo metafísico e religioso; o culto à extrema individualidade, ao consumismo e à ética hedonista, não há como deixar de registrar que trata-se de uma axiologia imobilista e politicamente derrotista. Com essa análise não objetivei desqualificar os problemas e questões que animam as reflexões pós-modernas. Entendo que são problemas sociais e filosóficos produzidos desde a segunda metade do século XIX, expressos nas reflexões de Nietzsche, Kierkegaard, Spengler e Freud, e que, a partir do desencanto com a modernidade, animam os embates até a contemporaneidade com Lacan, Lyotard, Foucault, Derrida, etc.. como bem expressa Ellen M. Wood, não se trata de negar os problemas e temas tratados pelos pós-modernistas, referindo-se ao “otimismo iluminista” e a importância de outras “identidades”, além da de classe, como as “lutas contra a opressão sexual e racial”, ou das “complexidades da experiência humana em um mundo instável e mutável” ou ainda o ressurgimento de outras “identidades”, como o nacionalismo, “como forças históricas poderosas e frequentemente destrutivas” (Wood, 1999, p. 17). Diz a autora que não é preciso aceitar os pressupostos da pós-modernidade para entender os problemas e os novos embates colocados pela contemporaneidade. Ao contrário, colocar na ordem-do-dia do materialismo histórico a diferença e a diversidade, bem como a aceitação da pluralidade das lutas contra os vários tipos de opressão, “não nos obriga a descartar todos os valores universais aos quais o marxismo... sempre esteve ligado, ou a abandonar a idéia de uma emancipação humana universal” (Idem, p. 18). Muito ao contrário, é assumir com radicalidade um método a um só tempo materialista, dialético, histórico e revolucionário. Embora os próprios pós-modernos se considerem defensores de uma concepção que rejeita qualquer tipo de princípio e de enquadramento, desmonstrei que todos os posicionamentos sempre articulam um conjunto de princípios filosóficos, sistematizados no âmbito da ontologia, da gnosiologia e da axiologia. Para organizar minhas reflexões elaborei o texto que segue, com o objetivo de servir de suporte para a discussão introdutória da disciplina “Leituras das obras de Marx e Engels”, e que venho trabalhado no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICAMP, na Área de Concentração: História, Filosofia e Educação. Inicialmente a preocupação foi mais didática, mas sucessivamente várias turmas de alunos de pós-graduação expressaram uma forte preocupação com a explicitação dos elementos conformadores de tantas e diferenciadas Landim Underline 82 posições metodológicas e teóricas na pesquisa educacional, de forma a identificarem as grandes matrizes epistemológicas da Filosofia e, particularmente, dos diferentes campos das Ciências Humanas e Sociais. Vários são os estudos sobre a história do pensamento ou sobre espistemologia da pesquisa nas diversas áreas do conhecimento, ou sobre a produção de pesquisa e dos conhecimentos nos mais diferentes campos do conhecimento. Mas não tem sido esse o foco de minhas preocupações e nem tenho grandes pretensões analíticas como epistemólogo da pesquisa educacional. Meu objetivo é em mostrar que todas as concepções partem de um conjunto de pressupostos ontológicos, gnosiológicos e axiológicos. Mas não se trata de buscar princípios descolados do mundo real, princípios essencialistas e metafísicos. Ao contrário, trata-se de desvelar que o conhecimento é sempre um produto histórico da existência humana, é uma expressão do modo de produzir dos homens. 1. Fundamentos das concepções e movimentos da Filosofia e da Ciência (da História)32 A produção da vida material como fundamento da produção intelectual é o fundamento do trabalho acadêmico que tenho buscado fazer, e que tem motivado vários pesquisadores e alunos a se colocarem o desafio de desvelar os fundamentos dos pensadores que tomam como base metodológica e teórica de seus estudos e pesquisas.33 Nos cursos que tenho ministrado, iniciando antes de adentrar no estudo mais sistemático da obra de Marx e Engels, tomo como ponto de partida o entendimento de que toda concepção articula um conjunto de princípios (ou pressupostos) para explicar o mundo, a vida, a sociedade, enfim todas as coisas reais ou ilusórias. Os princípios expressam maneiras de ver e pensar, as visões de mundo partilhadas pelos membros de uma formação social, em um tempo determinado. A forma de pensar e ver o mundo, expressão da base material, se 32 Apresentei publicamente essa discussão em conferência no III Colóquio do Museu Pedagógico, 17/11/2003, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista – BA. Encontra-se publicada em: LOMBARDI, J.C.. História e historiografia da educação no Brasil. In: Revista HISTEDBR On- line. Número 14, junho 2004. [http://www.histedbr.fae.unicamp.br/art4_14.pdf] 33 Foram vários os trabalhos, dissertações e teses produzidos com essa orientação, mas não convém citá-los, pois a memória poderá me trair. Busquei fazer o registro, ainda que parcial, desse percurso na “Apresentação” à publicação da tese de doutorado de Marcos Francisco Martins, Marx, Gramsci e o conhecimento: ruptura ou continuidade? (Lombardi, 2008; in: Martins, 2008). Landim Underline Landim Highlight Landim Underline Landim Underline 83 cristaliza nas representações e na ideologia, nos mitos e nas religiões, enfim, nas opiniões, na Filosofia e nas ciências. Fizemos (no passado) e continuamos a fazer (no presente) praticamente os mesmos questionamentos sobre o mundo, a vida, o tempo, o homem, a sociedade, as ações dos homens e também quanto ao conhecimento, quanto às virtudes morais e a busca do bem dos homens, quanto à política e a busca do bem de toda a coletividade, e quanto às coisas e questões divinas, e quanto as causas e finalidades de tudo o que existe, notadamente quanto a natureza e o homem. A resposta a essas perguntas levou à construção de quadros explicativos, mais ou menos sistemáticos, primeiramente expressoss pelos mitos e poemas. A necessidade de uma formulação mais sistemática e articulada das respostas fez com que a filosofia e, mais recentemente, as ciências ocupassem o lugar do mitológico e do sobrenatural. O desenvolvimento material e intelectual dos homens demandava explicações demonstradas logicamente e comprovadas empiricamente. Gradativamente essas formulações conformaram as diferentes posições metológicas e teóricas que, na Filosofia e nas Ciências, apresentam-se como formas de manifestar a existência humana, porém, constituindo-se em produtos da própria existência e das relações humanas. O conhecimento, como processo e como resultado de um fazer proprio e característico do ser humano, é a forma pela qual o homem expressa abstratamente as relações que mantém com o mundo circundante e com outros homens. Sendo, pois, produto da existência humana, tal qual outros aspectos dessa própria existência, também as diversas formas que o conhecimento assume transformam-se historicamente, estando submetidas às mesmas determinações históricas que as demais idéias produzidas pelos homens. Assim, as idéias constituem a representação daquilo que o homem faz, da sua maneira de viver, da forma como se relaciona com outros homens, do mundo que o circunda e das suas próprias necessidades. É dessa forma que entendo a afirmação de Marx e Engels e nada melhor que recorrer à lapidar passagem em que tratam do assunto, em A Ideologia Alemã: A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens, é a linguagem da vida real. São os homens que produzem as suas representações, as suas idéias, etc., mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. (...) Landim Underline Landim Underline 84 (...) Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. (Marx e Engels. A Ideologia Alemã... - Volume 1, p. 25-26). Sendo uma das formas de conhecimento produzidas pelo homem, também a ciência é determinada pelas necessidades materiais do homem, em cada diferente momento histórico de seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em que nele interfere. Longe de assumir uma perspectiva estreita e mecanicista quanto à produção de conhecimento, entendo que se trata de um processo articulado e complexo, no qual a produção da vida material também sofre interferência das idéias e das representações anteriormente elaboradas. Trata-se de um processo multideterminado, envolvendo inter-relações e interferências recíprocas entre as idéias e as condições materiais, no qual a base econômica constitui-se no fator determinante em última instância, isto é no fator fundamental, numa clara demonstração da opção ontológica materialista, em oposição a todo e qualquer viés idealista, tal qual o entendimento de Marx e Engels apontado anteriormente. Historicamente as condições materiais e espirituais da vida do homem se transformaram. Inicialmente, as relações entre homens eram coletivas e esse caráter comum se expressava em todas as dimensões da vida social dos homens, com a apropriação comum dos meios de produção, com uma organização cooperativa do trabalho e uma apropriação social dos produtos da produção, satisfazendo as necessidades fundamentais de toda a coletividade. De formas comuns de produzir, de viver e de pensar, começaram a surgir processos de apropriação privada da terra e de outros meios de produção. O surgimento da propriedade privada foi transformando as relações e as formas de apropriação dos bens materiais, resultando no aparecimento de grupos e classes sociais com interesses conflitantes e contrários no interior da sociedade. Em outras palavras, a antiga coletividade cedeu lugar ao conflito entre classes. Do mesmo modo que ocorreu com as relações materiais, nas sociedades onde passaram a existir relações envolvendo interesses antagônicos, também as idéias refletiram essas diferenças e antagonismos. E como nas relações econômicas, em que os interesses dos que detém a propriedade dos meios de produção são apresentados e impostos como sendo expressão do interesse de todos, também as idéias e as representações da classe dominante foram sendo impostas à toda a sociedade. Como a hegemonização não é suficiente para eliminar as contradições e conflitos entre as classes, apesar das idéias dominantes expressarem ideologicamente a classe hegemônica, nem por isso as idéias e representações deixam de expressar 85 contraditoriamente os antagonismos sociais. Por isso mesmo, embora as representações de uma determinada formação social, acabem por ideologicamente representar predominantemente as idéias da classe dominante, a possibilidade de produção de idéias que expressem a realidade e as relações naturais e sociais do ponto de vista das classes dominadas, por sua vez, apontam para a possibilidade de transformação radical e profunda da própria realidade social. [...] Em qualquer sociedade onde existam relações que envolvam interesses antagônicos, as idéias refletem essas diferenças. E, embora acabem por predominar aquelas que representam os interesses do grupo dominante, a possibilidade mesma de se produzir idéias que representam a realidade do ponto de vista de outro grupo reflete a possibilidade de transformação que está presente na própria sociedade. Portanto, é de se esperar que, num dado momento, existam representações diferentes e antagônicas do mundo. Por exemplo, hoje, tanto as idéias políticas que pretendem conservar as condições existentes quanto as que pretendem transformá-las correspondem a interesses específicos às várias classes sociais. (ANDERY et al., 1988, pp. 12-13). Como já disse, entendo que as representações expressam o conhecimento humano e que este historicamente se apresentou de diferentes formas (como mito, religião, filosofia, ciência; ou como senso comum, teologia, estética, ética, etc.), exprimindo as condições materiais de um dado momento histórico. A historicidade das representações, abstratamente produzidas pelos homens, se expressa tanto no processo de construção do conhecimento (no método), quanto em seu produto (na teoria) e que, por sua vez, sempre refletem o desenvolvimento e as rupturas ocorridas nos diferentes momentos da história. É neste sentido que entendo que os antagonismos de classe existentes em cada modo de produção, bem como as transformações de um modo de produção a outro, são sempre refletidos nas idéias filosóficas e científicas expressas na história dos homens. Tratam-se de conhecimentos historicamente construídos e que decorrem das próprias condições materiais de existência dos homens e de suas relações. Não há uma História da Filosofia ou uma História das Idéias a expressar um desenvolvimento cumulativo de uma idéia absoluta que paira no tempo ou de um pensamento humano que se transforma; também não há uma revolução do pensamento que se transtorna, transformando as estruturas e paradigmas filosóficos e científicos. Transformações históricas nos métodos e nas teorias são reveladoras das radicais transformações dos modos de produção da existência do homem, expressando, portanto, a própria materialidade dessas idéias. 86 [...] Quer nas primeiras formas de organização social, quer nas sociedades atuais, é possível identificar a constante tentativa do homem para compreender o mundo e a si mesmo; é possível identificar, também... a inter-relação entre as necessidades humanas e o conhecimento produzido: ao mesmo tempo em que atuam como geradoras de idéias e explicações, as necessidades humanas vão se transformando a partir, entre outros fatores, do conhecimento produzido. A ciência caracteriza-se por ser a tentativa do homem entender e explicar racionalmente a natureza... Tanto o processo de construção de conhecimento científico quanto seu produto refletem o desenvolvimento e a ruptura ocorridos nos diferentes momentos da história. Em outras palavras, os antagonismos presentes em cada modo de produção e as transformações de um modo de produção a outro serão transpostos para as idéias científicas elaboradas pelo homem. (ANDERY et al., 1988, p. 13). O conhecimento é, nesse sentido, em suas diferentes formas e conteúdos (da filosofia à ciência), uma das formas de manifestação da existência humana ou, melhor dizendo, uma das expressões da própria atividade humana. Sendo, pois, um produto da existência humana, tal qual outros aspectos dessa própria existência, também o conhecimento – sob a forma de teoria, de filosofia ou de ciência - transforma-se historicamente, estando submetido às mesmas determinações históricas que as demais produções (neste caso, produção das idéias) dos homens. Apoiei-me em Marx e Engels, n’A Ideologia Alemã, para caracterizar que as idéias correspondem às representações daquilo que os homens fazem, da sua maneira de viver, da forma como uns se relacionam com outros homens, do mundo que os circundam e das suas próprias necessidades; em outras palavras “são os homens que produzem as suas representações, as suas idéias” e tratam-se de “homens reais, atuantes ... condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e das relações que lhe correspondem”. É esse o sentido do entendimento que pressupõe que “a produção de idéias, de representações e da consciência está [...] ligada à atividade material [...] dos homens, é a linguagem da vida real”. Partindo desse pressuposto, também no que diz respeito à produção de conhecimento, o melhor caminho é não partir “daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam, nem daquilo que são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação...; parte-se dos homens, da sua atividade real”. Coroando essas pressuposições, Marx e Engels lapidarmente registraram que “Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência” (Marx e Engels. A Ideologia Alemã... - Volume 1, p. 25-26). A determinação histórica da filosofia e da ciência, porém, não é mecânica, pois “Tanto o processo de construção de conhecimento 87 científico quanto seu produto” resultam da ação dos homens nos diferentes momentos da história, dos “antagonismos presentes em cada modo de produção e as transformações de um modo de produção a outro serão transpostos para as idéias científicas elaboradas pelo homem” (ANDERY et al., 1999, p. 13). Sobre a problemática do conhecimento, tenho me posicionado no sentido de que qualquer que seja o entendimento de ciência – e particularmente da Ciência da História - e, também, qualquer que seja a opção do pesquisador quanto ao fazer cientifico (na História), não se pode desvinculá-lo dos contraditórios interesses da sociedade e do tempo histórico em que vive. Sendo o conhecimento historicamente produzido e datado, nenhum pesquisador é neutro, nenhum procedimento científico é asséptico e muito menos o conhecimento produzido por ele é dotado de neutralidade em relação às questões de seu tempo. Muito ao contrário, todo conhecimento produzido implica e pressupõe métodos e teorias que embasam o processo (método) e o resultado (teoria) da construção do conhecimento cientifico, sendo estes igualmente produtos sociais e históricos. Mesmo quando não se explicita o referencial metodológico e teórico utilizado, é evidente que, apesar dessa dimensão ficar subjacente ao texto, não se deixa de adotar princípios ontológicos e gnosiológicos, posto que estes permeiam toda produção de conhecimentos, todo processo e resultado do pensar do homem. Mas nem todas as chamadas correntes filosóficas e históricas (e estou particularmente pensando na produção da pesquisa educacional no Brasil) possuem claras pressuposições paradigmáticas que possibilitem a sua clara identificação. Também há elaborações que recusam qualquer embasamento metodológico e teórico, mas nesse caso trata-se da penetração da velha e surrada matriz agnóstica, irracionalista e cética, em suas várias vertentes. Para aprofundar essa discussão, tenho procurado diferenciar o que é uma concepção, daquilo que tenho denominado como movimento. Tenho usado o termo Concepção34 num duplo sentido: 1) para me referir ao processo e resultado de produção e criação de métodos e teorias filosóficas e científicas; 2) mas também para designar a 34 CONCEPÇÃO (etimologicamente do lat. conceptìo,ónis 'ação de conter, de abranger, o que é contido, concepção, idéia, noção', rad. de conceptum, supn. de concipère 'conceber') – entende-se o ato ou efeito de conceber; ação ou efeito de gerar um ser vivo. Por extensão, também passou a ser usado para a obra da inteligência; produção, criação, teoria; ao trabalho de criação; projeto, plano, idéia e também as respostas a questões filosóficas básicas, como a finalidade da existência humana, a existência de vida (e castigo ou recompensa) após a morte etc.; visão do mundo, cosmovisão (HOUAISS, 2002; ABBAGNANO, 1962, p. 156). 88 comunidade científica dos que partilham os mesmos princípios ontológicos, gnosiológicos e axiológicos. No primeiro sentido, estou tomando o termo concepção num sentido ampliado que incorpora o que classicamente se designa por termos os mais diferenciados como Corrente35, Doutrina36, em alguns campos de conhecimento pelo uso do conceito de Sistema37, e mais contemporaneamente pelo uso do termo Paradigma38 . No segundo sentido, estou usando o termo Concepção para também designar uma Escola39 de pensamento . Geralmente uma concepção se desdobra em tendências e que entendo como aquelas correntes (filosóficas e científicas) mais específicas que se configuram 35 CORRENTE (lat. currens,entis part.pres. de currère 'correr') s.f. no sentido figurado de série continuada de idéias, pessoas ou coisas (concretas ou abstratas) interligadas de alguma maneira; de arcabouço teórico de uma doutrina, de uma escola ou o pensamento dominante que nela existe e que de alguma maneira a diferencia e caracteriza em relação as demais; termo também referido ao grupo de pessoas que se destaca por apresentar alguma afinidade (ética, política, filosófica etc.) entre seus componentes. O termo designa o movimento próprio do ar ou das águas; correnteza; a série ou cadeia de argolas interligadas, feitas geralmente de ferro, usado para cingir, atar fortemente (alguém ou algo); grilhão (HOUAISS, 2002) 36 DOUTRINA – (lat. doctrína,ae 'ensino, instrução dada ou recebida, arte, ciência, doutrina, teoria, método', do v. lat. docére 'ensinar'): conjunto coerente de idéias fundamentais a serem transmitidas, ensinadas; conjunto de conhecimentos possuídos; ciência, erudição, saber; princípio, crença, ou conjunto de princípios ou crenças que tem um valor de verdade absoluta para os que o(a) sustentam e seguem, e que é, no entender destes, o(a) único(a) aceitável; conjunto das idéias básicas contidas num sistema filosófico, político, econômico etc. ou das opiniões de um pensador, de um filósofo; conjunto de princípios adotados num determinado ramo do conhecimento; teoria devidamente formulada que se fundamenta em fatos (ou pelo menos não é por estes invalidada) e que tem o apoio ou a sanção de uma autoridade no assunto [...]; as crenças e dogmas da fé católica; catecismo [...] (HOUAISS, 2002) 37 SISTEMA (lat. systéma,átis 'reunião, juntura, sistema', do gr. σύστηµα - sustéma,atos 'conjunto, multidão, corpo de tropas, conjunto de doutrinas, sistema filosófico') Termo de uso desconhecido na filosofia clássica, só passou a ser incorporado modernamente para designar uma totalidade dedutiva de discurso; ou qualquer totalidade ou todo organizado (como sistema solar, sistema nervoso); também como qualquer teoria, científica ou filosófica; conjunto de regras ou leis que fundamentam determinada ciência, fornecendo explicação para uma grande quantidade de fatos; teoria [...] (HOUAISS, 2002) 38 PARADIGMA (gr. parádeigma,atos 'modelo, exemplo', do v. paradeíknumi 'pôr em relação, em paralelo, mostrar', pelo b.-lat. paradígma,átis 'id.'; a acp. de ling.est é emprt. ao fr. paradigme 'id.') tem etmologicamente o sentido de exemplo que serve como modelo; padrão; como conjunto de formas vocabulares que servem de modelo para um sistema de flexão ou de derivação (p.ex.: na declinação, na conjugação etc.); padrão. (HOUAISS, 2002) Em sentido ampliado, tem sido usado como conjunto de conhecimentos coerentes, ou idéias fundamentais, possuídas e ou transmitidas, por uma escola ou sistema filosófico ou científico. 39 ESCOLA - s.f. (do gr. skholê,ês 'descanso, repouso, lazer, tempo livre; estudo; ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que exerce profissão liberal, ou seja, ocupação voluntária de quem, por ser livre, não é obrigado a; escola, lugar de estudo'; lat. schòla,ae 'lugar nos banhos onde cada um espera a sua vez; ocupação literária, assunto, matéria; escola, colégio, aula; divertimento, recreio') atualmente é usado para designar o estabelecimento público ou privado onde se ministra ensino coletivo; por extensão também aplicado ao conjunto de professores, alunos e funcionários de uma escola; ao prédio em que a escola está estabelecida. Também, por extensão, é usado para o sistema, doutrina ou tendência estilística ou de pensamento de pessoa ou grupo de pessoas que se notabilizou em algum ramo do saber ou da arte; ao conjunto de pessoas que segue um sistema de pensamento, uma doutrina, um princípio estético etc.; conjunto de seguidores, imitadores ou apreciadores; termo também referido a determinado conjunto de princípios seguido por artistas ; conjunto de conhecimentos; saber; aquilo que é adequado para transmitir conhecimento, experiência, instrução; (HOUAISS, 2002) 89 sistematizadamente, apresentando peculiaridades em relação a uma determinada concepção e diferenças significativas em relação às outras tendências da mesma. No que diz respeito a essa classificação, considero pertinente e muito instigante a análise feita por Antonio Joaquim Severino e que classificou e analisou a produção filosófica brasileira, adotando o termo “tradição”, enquanto prefiro o uso de “concepção”. Ao falar de tradição, tomo o conceito num sentido mais geral, denotando o caráter de comunidade, de permanência e de continuidade, na duração histórica, de traços constitutivos de conteúdos filosóficos que tiveram sua gênese e desenvolvimento no contexto da cultura ocidental. Essa filiação das tendências às diversas tradições foi feita levando-se em conta critérios que se relacionam com suas temáticas, com suas metodologias, com suas perspectivas de abordagem ou com seus pressupostos fundantes. Já as tendências foram entendidas como aquelas correntes filosóficas mais específicas que se configuram sistematizadamente e que integram uma determinada tradição, mesmo apresentando peculiaridades em relação a essa tradição e diferenças significativas em relação às outras tendências da mesma tradição. Falo de “tendência” quando se trata de enfatizar mais a compreensão do conteúdo e de “corrente” quando se enfatiza sua extensão. Chamo de vertentes aquelas orientações que, por sua vez, se inserem numa tendência ou corrente, representando uma especificação da mesma; já as subvertentes são aquelas orientações nas quais uma vertente pode-se dividir em decorrência de especificidades particulares. (Severino, 1997, p. 32) Muitas vezes nos defrontamos com posturas (e suas respectivas produções) ainda muito preliminares ou datadas e que não respondem (e certamente nem pretendem responder) às questões relativas à concepção que se tem do mundo existente, do tempo, do conhecimento, do homem, do próprio processo histórico e assim por diante. Por isso mesmo, entendo que essas posturas não se enquadram ou dificilmente se caracterizam no conceito de concepção. A esses posicionamentos tenho denominado de movimento40, termo usado para me referir tanto ao conjunto das idéias e ações básicas que expressam novidade ou evolução artística, filosófica, científica, histórica, social etc., quanto à comunidade dos que se articulam em torno dessas idéias, geralmente algumas grandes bandeiras, algumas palavras de ordem que colocam a reflexão ou a produção acadêmica em conformidade com as modas dominantes em determinados momentos, mas que se esvaem 40 MOVIMENTO (mover + -mento, prov. calcado no fr. mouvement 'id.'), etimologicamente ato ou efeito de mover(-se), deslocamento, mudança de um corpo (ou parte de um corpo) de um lugar (ou posição) para outro. Em sentido ampliado, usado para designar o conjunto de ações de um grupo de pessoas mobilizadas por um mesmo fim; partido, agrupamento, organização que vise a mudanças políticas ou sociais; corrente do pensamento que caracterize novidade ou evolução artística, histórica, filosófica, social etc. (HOUAISS, 2002) 90 assim que passam as motivações. Tratam-se de “ondas”, modismos, característicos dos grupos sociais ao longo de toda a história e que também impregnam grupos profissionalmente dedicados à atividade filosófica e científica. Tratam-se, portanto, de movimentos produzidos no interior das formas de pensamento, emergidas social e historicamente, colocando a filosofia e a ciência em conformidade com o mundo que as produziu. Creio que nos defrontamos com algumas poucas matrizes teórico- metodológicas no nosso campo de saber e com muitos movimentos que buscam dar direções e levantam algumas bandeiras que necessariamente não são vazias de sentido, mas NÃO passam de bandeiras que podem estar ou não embasadas em algumas das matrizes filosóficas ou científicas, historicamente produzidas. Penso que, além das clássicas concepções (ou tradições), também historicamente foram e são produzidas, metodológica e teoricamente, vários ecletismos que, a rigor, são fusões ou articulações as mais diversas entre concepções e autores diferenciados. Pelo uso do termo ecletismo não estou querendo descredenciar as formas novidadeiras de pensar, mas busco retomar o significado de uma postura filosófica – o Ecletismo41 -, ainda originada na Antiguidade grega, freqüentemente retomada na história do pensamento, e que se caracteriza pela justaposição de teses e argumentos oriundos de doutrinas filosóficas diversas, formando uma visão de mundo pluralista e multifacetada. É, assim, eclética toda e qualquer teoria, prática ou disposição intelectual que se caracteriza pela escolha do que parece melhor entre várias doutrinas, métodos ou estilos. Mas então toda a produção filosófica e científica (e penso particularmente da produção no âmbito da história educacional) ou se encaixam nas matrizes clássicas ou constituem ecletismos? No que diz respeito às matrizes metodológicas e teóricas fundamentais ao pensar ou ao fazer científico, a afirmação é correta, mas ela não esgota a crescente e abundante produção acadêmica, estimulada pela burocratização e profissionalização da pesquisa, fenômeno que vem acontecendo, de modo particular, com a 41 ECLETISMO. Etimologicamente do grego eclektismós; incorporado ao frances como écletisme (CUNHA, A.G. da, 1986, p. 283). 1 FIL diretriz teórica originada na Antigüidade grega, e retomada ocasionalmente na história do pensamento, que se caracteriza pela justaposição de teses e argumentos oriundos de doutrinas filosóficas diversas, formando uma visão de mundo pluralista e multifacetada; 2 por exensão qualquer teoria, prática ou disposição de espírito que se caracteriza pela escolha do que parece melhor entre várias doutrinas, métodos ou estilos; 3 ARQ tendência artística fundada na exploração e conciliação de estilos do passado, usual especialmente a partir de meados do século XIX no Ocidente. (HOUAISS, 2002) 91 instituição universitária brasileira desde o final da década de 1960. É por isso que além de caracterizar a produção científica a partir de suas concepções fundantes, ou de seus paradigmas epistêmicos, também introduzi a diferenciação entre concepção e movimento. Isso não significa que os movimentos não são importantes para alavancar, além dos embates culturais e artísticos, o próprio fazer cientifico, inclusive do historiador. Um exemplo talvez ajude a esclarecer essa distinção entre concepção e movimento: certamente todos os historiadores concordam quanto à importância do movimento de superação da história positivista, levado a cabo a partir do final da década de 1920 pela “Escola dos Annales”. O grupo dos Annales não se constitui como uma escola que propugnava por um método ou uma teoria da história, mas como um movimento que encorajava várias inovações no âmbito da História, mas que comportava várias matrizes teórico-metodológicas em seu interior. Esse é o entendimento de Peter Burke, no Prefácio de seu A Revolução Francesa da Historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). Entende o autor que “’la nouvelle histoire’ ... é o produto de um pequeno grupo associado à revista Annales, criada em 1929” (BURKE, 1991, p. 11). Apesar de conhecida como Escola dos Annales, pois é “vista como um grupo monolítico, com uma prática histórica uniforme, quantitativa no que concerne ao método, determinista em suas concepções, hostil... à política e aos eventos” (Idem, ibidem), lembra Peter Burke que muitos de seus próprios membros negavam a existência de uma “escola”, ressaltando as diferentes contribuições individuais. Em lugar de escola, o autor sugere o conceito de movimento para expressar a contribuição desse grupo de historiadores franceses: “Talvez seja preferível falar num movimento dos Annales, não numa ‘escola’” (Idem, p. 12). Também é dessa forma que tendo a caracterizar a chamada Nova História, como é conhecida a “Terceira Geração” dos Annales quando, Braudel se aposentaria, em 1972, e Le Goff tornou-se o Presidente da reorganizada École des Hautes Études em Sciences Sociales. Para Peter Burke é difícil traçar um perfil dessa terceira geração, pois nele prevaleceu o policentrismo e as fronteiras da história foram estendidas: ... de forma a permitir a incorporação da infância, do sonho, do corpo e, mesmo do odor. Outros solaparam o projeto pelo retorno à história política e à dos eventos. Alguns continuaram a praticar a história quantitativa, outros reagiram contra ela. (BURKE, 1991, p. 79). 92 As observações de Burke não deixam dúvidas quanto às dificuldades em melhor caracterizar o grupo francês ligado à Nova História. Certamente ela não se caracteriza como uma concepção homogênea em termos teórico-metodológicos, o que reforça a análise de que se trata de um movimento de renovação do fazer científico do historiador, que tem algumas grandes bandeiras em seu interior – sintetizadas pelo chamamentos novidadeiros – e no interior do qual se situam historiadores das mais diferentes posturas e ecletismos, desde os defensores de uma história narrativa, até a defesa de uma meta-história, chamada de hiper-crítica, centrada no discurso e na narrativa romanceada e inventiva. Além da diferenciação acima delineada entre concepção e movimento, entendo que toda construção ideológica (e nela também estou incluindo o pensar filosófico e o fazer cientifico) se faz a partir de concepções de mundo, de homem, de história, de política, etc. – isto é, ela é impregnada e constituída pelo conjunto de princípios ontológicos, gnosiológicos e, também, axiológicos. Com isso estou a afirmar que as posições assumidas pela ou na comunidade científica, além de estar direta ou indiretamente fundadas em métodos e teorias, mesmo quando não desejam explicitar as balizar metodológicas e teóricas que articulam o pensamento, ou que promovem o esvaziamento da discussão teórico-metodológica, também estão a cumprir um papel político. Além de todos os pesquisadores, de uma forma ou outra, partilharem as disputas de sua sociedade e do seu tempo, também trazem para o interior do próprio fazer cientifico, e para aquilo que denominamos de “comunidade científica”, a disputa política, a luta por hegemonia. Por dever de ofício temos que convir que a comunidade cientifica é, também ela, uma comunidade social e, como tal, também vivencia os embates e as disputas políticas pelo controle, real ou suposto, de poder político. É desnecessário ir além dessas observações quanto a disputa por hegemonia, lembrando que o tema foi objeto de acurada análise de François Dosse, em sua História em Migalhas (1992). 93 2. Concepções e Movimentos na Filosofia e na História42 Para aprofundar a discussão sobre as matrizes teórico-metodológicas da filosofia e ciência contemporânea, nas disciplinas de pós-graduação tenho recorrido a três autores e suas referências bibliográficas, com o objetivo de situar e clarear a discussão sobre o assunto: Antonio Joaquim Severino, Adam Schaff e Ciro Flamarion Cardoso. De modo geral, há entre esses autores um relativo consenso quanto as principais e clássicas concepções que animam a prática filosófica e o fazer científico na contemporaneidade, conforme expressou Antonio Joaquim Severino, em sua obra A filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação. Aponta este autor para quatro tradições: a metafísica (fortemente presente em sua tendência neotomista); a positivista (com suas tendências: Cientificista; Neopositivista; Neoempirista; Transpositivista); a hermenêutica (tendências: Fenomenologia; Culturalismo; Existencialismo; Antipositivismo; Arqueogenealogia) e a dialética (em suas três tendências: a dialética hegeliana, a dialética marxista; e a teoria crítica). Uma citação sintética do autor é elucidativa quanto ao quadro das grandes tradições presentes na prática filosófica brasileira, registrando as concepções e suas respectivas tendências: ... A prática da filosofia no Brasil, enquanto esforço de reflexão sistematizada, se revela mediante linhagens de pensamento vinculadas a quatro grandes tradições, com presença diferenciada: ... tradição metafísica, cuja presença se caracteriza pela marca da força de resistência: trata-se, com efeito, da tradição mais antiga, lastro de todas as demais tradições da filosofia ocidental. Seu elemento fundamental é seu radical essencialismo. (...) no plano da elaboração teórica sistemática, ela ainda se faz presente nas produções ligadas ao pensamento neotomista bem como àquele implícito à teologia católica. Outra tradição com presença marcante no contexto filosófico nacional é a tradição positivista... A tradição positivista, forjada no seio do projeto iluminista da época moderna, se caracteriza pelo radical naturalismo no que concerne a sua concepção da realidade. Constitui-se atualmente de tendências, vertentes e subvertentes cientificistas, neopositivistas e mesmo transpositivistas. (...) outra tradição também lastreada em paradigmas filosóficos da modernidade, que designarei, numa abrangência muito ampla, de tradição 42 Essa sistematização foi apresentada na mesa redonda “História e Historiografia da Educação no Brasil”, realizada no dia 07 de julho de 2004, na IV Jornada do HISTEDBR, realizada entre os dias 5 a 07 de julho de 2004, na Universidade Estadual de Maringá (UEM) – em Maringá – PR, tendo como tema: “História e Historiografia da Educação: Abordagens e Práticas Educativas”. Encontra-se: LOMBARDI, José Claudinei. História e História da Educação: fundamentos teórico-metodológicos. In: SCHELBAUER, A.R. et. al.. Educação em debate: perspectives, abordagens e historiografia. Campinas, SP : Autores Associados, 2006, p. 73-97. 94 hermenêutica, querendo identificar com essa denominação o conjunto das tendências que têm em comum uma forte valorização da subjetividade, da atividade simbolizadora do sujeito, podendo-se considerar seu elemento básico o subjetivismo. Esta tradição se formou sob a inspiração do subjetivismo moderno, herdeira das contribuições de Descartes, Kant e Hegel. As principais tendências que nela se manifestam são aquelas da fenomenologia, do culturalismo, do existencialismo, do antipositivismo e da arqueogenealogia. Finalmente, um quarto leque de expressões filosóficas se vincula à tradição dialética, caracterizada pelo esforço de entendimento da realidade humana a partir de sua construção histórico-social e de sua atividade prática. Seu elemento essencial é o práxismo, ou seja, o homem é visto como produzido pela sua história da qual é também o agente construtor. No âmbito desta tradição, é possível identificar três grandes tendências: aquela que dá continuidade à dialética hegeliana, aquela que se desenvolve na linha da dialética marxista e aquela que se pode designar de dialética negativa, diretamente associada à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. (SEVERINO, 1997, p. 32-33) Severino vai analisando, ao longo da obra, as características filosóficas fundamentais de cada uma dessas tradições, explicitando as principais expressões de cada uma delas no Brasil e adentrando numa análise mais pormenorizada do(s) principal(is) representante(s) nas terras brasílicas. O capítulo segundo é dedicado à análise da tradição metafísica, de suas principais expressões brasileiras43 e, particularmente, de sua principal expressão: Fernando de Arruda Campos e que foi “ferrenhamente neotomista”. Em seguida Severino analisa a tradição positivista e o neopositivismo, bem como seus principais expoentes brasileiros44, dedicando-se a desvelar o pensamento de Leônidas Hegenberg. No quarto capítulo, ainda dedicado à tradição positivista, se dá a 43 Os representantes mais significativos da renovação tomista no Brasil foram: Charles de Sentroul, Leonel Franca, Roberto Sabóia de Medeiros, Antonio Alves de Siqueira, Aloísio Mosta de Carvalho, Maurílio Penido, Antonio Castro Nery; mais recentemente, Alceu Amoroso Lima, Leonardo Van Acker, Alexandre Correa, Geraldo Pinheiro Machado, Artur Versiani Velloso e Francisco Leme (Severino,1997, p. 39). 44 Com relação a inspiração neopositivista na filosofia brasileira, Severino identifica três vertentes: a primeira é de caráter mais logicista, centrada nos fundamentos lógico-formais do conhecimento científico e matemático, na qual sobressaem os nomes de Newton Carneiro Afonso da Costa, Ayda Ignez Arruda, Lafayette de Moraes, Luis Carlos P. Dias Pereira, Luís Paulo de Alcântara, Elias Hunberto Alves, Jorge Emmanuel Ferreira Barbosa, Walter Alexandre Carnielli, Ítala Loffredo D’Ottaviano, Renato Bussato Neto, Helvécio Botelho Pereira, Maria Vilma Fernandes de Lucena, José Alexandre Guerzoni, Paulo Roberto Margutti Pinto, Andréa M.A.C. Loparic. A segunda vertente busca a construção de uma linguagem precisa e rigorosa do discurso, notadamente científico, idenficada com a “filosofia analitica”, com destaque para Danilo Marcondes de Souza Filho, Renato Machado, Vera Lucia Caldas Vidal, Balthasar Barbosa Filho, Marcos Barbosa de Oliveira, Eduardo Oscar de Campos Chaves, Nelson Gonçalves Gomes, Paulo Farias e Arley Ramos Moreno. A terceira vertente tem natureza mais epistemológica, com preocupação na especificidade do conhecimento posto em prática pelas ciências, com destaque para Leônidas Hegenberg, Milton Vargas, Oswaldo Porchat, Maurício Rocha e Silva, Rejane Carrion, Luiz Alberto Peluso, Michel Ghins e Zeliko Loparic. (Severino, 1997, p. 62-66). 95 análise da tendência transpositivista e de seus principais representantes45, com atenção ao pensamento de Hilton Ferreira Japiassu. Nos três capítulos seguintes analisa a tradição hermenêutica, com forte valorização da subjetividade e do subjetivismo, com suas principais tendências: a fenomenologia, o culturalismo, o existencialismo, o antipositivismo e a arqueogenealogia. O capítulo quinto é centrado na fenomenologia inspirada em Husserl, Scheler e Merleau- Ponty46, em Heidegger e na hermenêutica de Paul Ricoeur47, que teve uma ampla expressão entre a intelectualidade brasileira, mas Severino optou por analisar Gerd Borheim como represententante dessa perspectiva. O neo-humanismo é focado no sexto capítulo, introduzido para explicar a importância de uma das tendências da tradição subjetivista e que, em lugar de centrar-se sobre aspectos epistemológicos ou lógicos, debruçou-se prioritariamente sobre problemas ético-antropológicos e que fundamentaram as reflexões existencialistas e personalistas que colocaram primazia na existência do homem no contexto da reflexão filosófica48, com destaque para Henrique Claudio de Lima Vaz, sobre o qual recaiu o foco de análise de Severino. A fenomenologia é ainda a tradição que animou a perspectiva culturalista49 que, tendo sua inspiração na filosofia transcendental kantiana e na tradição idalista alemã, encontrou, ainda no século XIX, representante da envergadura de Tobias Barreto e mais contemporaneamente em Miguel Reale que, para Severino, foi seu representante mais significativo. Os capítulos oitavo e nono são dedicados à dialética. Severino explicita primeiramente a perspectiva marxista que se perfila na tradição inaugurada por Hegel e, 45 O transpositivismo tem presença na filosofia brasileira através de Constança Terezinha Marcondes César, Marly Bulcão Lassance Brito, Carlos Alberto Gomes dos Santos e pelo Grupo de Ensino de Física da USP, integrado por Luiz Carlos Menezes, João Zanetic, Demétrio Delizoicov, Marta Pernambuco, José André Peres Angotti e Maria Cristina Dal Pian; também por Luiz Carlos Bombassaro (Severino, 1997, p. 85-87). 46 A fenomenologia inspirada em Husserl, Scheler e Merleau-Ponty teve grande importância na filosofia brasileira, representada por Antonio Muniz de Rezende, Newton Aquiles Von Zuben, Creusa Capalho, Salma Tannus Muchail, Telma Aparecida Donzelli, José Ozanan de Castro, Miguel Schaeffer, Maria Fernanda Beirão Dichtchekenian. (Severino, 1997, p. 105-110). 47 A hermenêutica, notadamente a fundada em Ricoeuer, teve importância em nosso meio acadêmico também pela expressão de Antonio Muniz de Rezende e de Augusto João Crema Novaski. (Severino, 1997, p. 110- 113). 48 O existencialismo e o personalismo tiveram grande influência nos meios filosóficos brasileiros, com destaque para José Luiz de Souza Maranhão, Odone José Quadros, Irapuan Teixeira, Paulo Reglus Freire, José Luiz Arcanjo, Baldoino Antônio Andreola, Aloísio Ruedell, Alino Lorenzon e o próprio Antonio Joaquim Severino (Severino, 1997, p. 130-134) 49 O culturalismo influenciou os jusfilósofos, como Renato Cirtell Czerna, Luiz Luisi, Silveio Macedo, Djacir Menezes, Paulo Mercadante, Evaristo de Moraes Filho, Antonio Machado Paupério, Nelson Nogueira Saldanha, José Pedro Galvão de Souza, Ireineu Strenger, Lourival Villanova, Gláucio Veiga, Tércio Sampaio 96 depois da crítica profunda e radical, por Marx e Engels. Entre os construtores dessa tradição situa, além de Marx, Engels e Lênin, uma ampla gama de autores que conformaram tendências diversas nessa tradição – como Trotsky, Kautsky, Bernstein, Rosa Luxemburgo, Mao Tse-Tung, Lukács, Adam Schaff, Doldmann, Althusser, Gramsci e muitos outros. Referencia os intelectuais brasileiros que assumiram essa perspectiva50, dedicando-se à análise de José Arthur Giannotti como principal expressão do marxismo no Brasil. No capítulo nono trata da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, considerada como a principal vertente da “dialética negativa” e da influência da reflexão frankfurtiana no pensamento brasileiro. Enfatiza que não se trata de uma “escola” no sentido etmológico, mas numa aproximação justificada por uma “perspectiva crítica de abordagem do projeto filosófico da modernidade, com base na qual se propõem a pensar a contemporaneidade” (Idem, p. 180). Severino entende que a teoria crítica foi apropriada em três grandes orientações no pensamento filosófico brasileiro: primeiramente em sua versão contracultural51, e que se constitui na apropriação da crítica dos movimentos de contestação radical que floresceram na década de 1960 e 70, como os hippiesa , contracultura, o underground, os liberacionistas e as várias formas do misticismo; a segunda é a centrada na temática da cultura e da dominação cultural52, tendo por fundamento as análises de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural; a terceira é a da crítica à instrumentalidade da razão e que se dá com a apropriação da perspectiva habermasiana e que no Brasil teve em Sérgio Paulo Rouanet seu principal representante, sendo ele o focado na análise de Severino sobre a dialética negativa. Ainda que tenha colocado a arqueogenealogia como tendência vinculada à tradição hermenêutica, o décimo capítulo é dedicado à análise dessa nova orientação filosófica que “não constitui uma forma monolítica de expressão filosófica” não instaurando propriamente uma nova “escola”, não se atendo às fronteiras dos campos de saber, se manifestando na obra de filósofos, psicólogos, psicanalistas, antropólogos, Ferraz Júnior e Luís Washington Vita. O autor também perfila entre os culturalistas: Roque Spencer Maciel de Barros, Antonio Luiz Machado Neto, Antonio Paim e Vamireh Chacon. (Severino, 1997, p. 148-149). 50 Apoiando-se em Chacon, Zilles e Antonio Paim, arrola Leônidas de Rezende (1899-1950), Hermes Lima (1902-1978) e Castro Rabelo (1884-1970) na Faculdade Nacional de Direito; seguiram-se a estes, João Cruz Costa (1904-1978) no Departamento de Filosofia da USP e Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) na Universidade do Brasil; são citados também os nomes de Caio da Silva Prado Junior, Leôncio Basbaum (1907-1969), Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e José Arthur Giannotti. 51 No Brasil o nome de Luis Carlos Marciel é citado como seu principal representante. 97 sociólogos, artistas e literatos (Idem, p. 196). Trata-se de uma reação à tradição da filosofia moderna e que “considera exaurida a fecundidade do iluminismo”, com o sistema naturalista do positivismo, o sistema idealista do hegelianismo e o historicista do marxismo (Idem, p. 197). Trata-se de uma abordagem inspirada em Nietzche e Freud e que tem sido assumida, contemporaneamente, pelos mais diferentes pensadores, como Michel Foucault, Lacan, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Cornelius Castoriadis, Maurice Godelier, Roland Barthes e muitos outros (Idem, pp. 199-203). Essa tendência, foi crescendo no filosofar brasileiro a partir de 1986 pelos cursos livres de filosofia do Núcleo de Estudos e Pesquisas da FUNARTE, estimuladores de uma filosofia “de um ponto de vista novo” (Idem, 203). Severino trata de algumas das vertentes da arqueogenealogia: como a que toma o sujeito desejante e a contribuição da psicanálise53, a que entende a filosofia como pensar literário54, a que trata a filosofia como uma antropologia do singular e a que assume a hermenêutica fenomenológica como um instrumento significativo para a crítica e a revisão do iluminismo racionalista55. Para o autor, o precursor e seu principal representante no Brasil foi Rubem Alves, objeto particular de análise de Severino. A análise de Severino sobre a filosofia no Brasil expressa o momento em que foi produzida e, se fosse hoje realizada, certamente, trataria do amplo leque que abrange da arqueogenealogia à pós-modernidade e suas principais expressões nos vários campos intelectuais. Mas esse um assunto sobre o qual já nos estendemos suficientemente. O mapeamento das tradições filosóficas e de sua conformação no Brasil é um passo necessário para o estudo das matrizes teórico-metodológicas da filosofia no âmbito da pesquisa histórica. Em linhas gerais, mesmo havendo pequenas diferenciações quanto às denominações adotadas, excetuando a metafísica, também são essas mesmas concepções as apontadas pelos estudiosos dos métodos e teorias da Ciência Histórica, mormente quando 52 Essa abordagem fez escola no Brasil na década de 1970, animando cursos e disciplinas nos mais diferentes campos do saber. São citados os nomes de Vamireh Chacon, Flávio Kothe, Luis Costa Lima, Otto Maria Carpeaux, Carlos Nelson Coutinho, Gabriel Cohn, Renato Ortiz e Olaria Matos. 53 É referenciado o nome do filósofo e psicanalista Renato Mezan como representante dessa apordagem tomada principalmente a partir da contribuição freudiana; em outra senda encontra-se Suely Rolnik que se apóia em Félix Guattari e Gilles Deleuze. 54 Essa vertende encontra em Renato Janine Ribeiro sua expressão que busca re-unir a filoosofia à literatura, buscando retomar e estudar a filosofia moralista com um olhar cético e crítico. 55 Para Severino os principais representante dessa vertente no Brasil são Marilena de Souza Chauí, Salma Tannus Muchail e Rubem Alves. 98 se dedicam a uma análise historiográfica que objetiva o desvelamento das epistemologias que fundamentam o fazer científico nesse campo do saber. Para ilustrar essa problemática nas disciplinas em que tenho trabalhado com historiografia, tenho recorrido a Adam Schaff e seu livro História e verdade, notadamente a segunda e terceira partes, dedicadas às três grandes concepções de ciência da história sobre as quais incide sua análise: o positivismo, o presentismo e o marxismo, passando pela discussão sobre o caráter de classe do conhecimento e, também, pelo historicismo, notadamente por colocar sua abordagem relativista da história e que se opunha à filosofia das luzes, também se reportando à possibilidade de um historicismo marxista (Schaff, 1987). Escapando das usuais análises da produção científica, que praticamente se reduzem a classificar e descrever os trabalhos a partir das delimitações e opções formais dos pesquisadores (tema, período, fontes, etc.), Schaff adentra pela fundamentação ontológica, gnosiológica e axiológica que dá sustentação às opções dos pesquisadores. O autor tomou os estudos sobre a Revolução Francesa como objeto historiográfico, por entender que é mais fácil “analisar um problema... quando se recorre a um caso real” (Schaff, 1986, p. 10). Não me interessa, neste momento, a análise de Schaff sobre os autores franceses que trataram da Revolução Francesa, mas suas conclusões sobre os modelos metodológicos. Partindo da premissa de que os historiadores possuem diferentes visões de um mesmo acontecimento ou fato histórico, conforme “[...] suas diversas épocas e gerações, ou ... segundo os diversos sistemas de valores nos quais se baseiam e que são a expressão de interesses de classes opostos, de concepções de mundo divergentes” (Idem, p. 65), Schaff explicita que, para o aporte analítico das questões teórico-metodológicas da Ciência da História, “(...) É indispensável uma reflexão filosófica consciente e crítica para chegar a descobrir e esclarecer a problemática teórica e metodológica, particularmente complicada na ciência da história. (...)” (Idem, p. 70-71). Com relação ao processo de conhecimento, começa sua análise pelo que chama de “tradicional tríade”, qual seja: “o sujeito que conhece, o objetivo do conhecimento e o conhecimento como produto do processo cognitivo” (Idem, p. 72). No processo de conhecimento o autor distingue três modelos fundamentais: a) o modelo mecanicista da teoria do reflexo (Idem, p. 73-74); b) o modelo idealista e ativista (Idem, p. 74-75); c) o modelo objetivo ativista (Idem, p. 75-76). Schaff destaca a posição materialista, e que é assumida pelo mesmo (Idem, p. 76); a partir dela, seu entendimento que o objeto do conhecimento é fonte exterior das percepções sensoriais do sujeito que 99 conhece e que o objeto existe fora e independentemente do sujeito (Idem, p. 76); e que, entretanto, é no sujeito que reside “o termo principal da relação cognitiva (Idem, p. 75-76). Tomando Marx, nas Teses sobre Feuerbach, assume a “teoria do reflexo” ativista (ou modelo objetivo-ativista), assim exposto: (...) Só o indivíduo humano concreto, percebido no seu condicionamento biológico e no seu condicionamento social, é o sujeito concreto da relação cognitiva. É portanto então evidente que esta relação não é nem pode ser passiva, que o seu sujeito é sempre ativo, que introduz... algo de si no conhecimento que é então sempre... um processo subjetivo-objetivo. (Schaff, 1986, p. 81). Mesmo reafirmando as diferenças entre o modelo mecanicista da teoria do reflexo e o modelo objetivo ativista, afirma as igualdades existentes entre eles e que autorizam o emprego da palavra comum “teoria do reflexo”. Esses elementos comuns são os seguintes: a) ambos reconhecem a existência objetiva do objeto, posição esta que é ontologicamente materialista e gnosiologicamente realista (p. 84); b) ambos admitem que o objeto é a fonte exterior das percepções sensoriais (p. 84-85); c) ambos admitem o processo do conhecimento como uma relação particular entre objeto e sujeito; d) contrário a qualquer agnosticismo, ambos consideram o objeto como cognoscível, no qual a “coisa em si” se torna, no processo de conhecimento, em “coisa para nós” (p. 85). Também é interessante o terceiro aspecto abordado por Schaff: o problema da objetividade do conhecimento (e que é a discussão sobre a questão da verdade). Pelo adjetivo objetivo dado ao conhecimento, o autor distingue três acepções: a) objetivo é o que o que vem do objeto - é objetivo o conhecimento que reflete o objeto (que existe fora e independentemente deste); b) é objetivo o que é valido universalmente e não apenas para o individual; c) é objetivo o que é livre de emotividade ou parcialidade. Pressupondo essas três acepções, o autor se pergunta: é possível afirmar a objetividade do conhecimento? A resposta à questão implica para Schaff, por um lado, no reconhecimento de que a objetividade é uma propriedade relativa do conhecimento (são sempre objetivo-subjetivos) e, por outro, que o conhecimento é sempre um processo e não um dado pronto (Idem, p. 89). Trata-se, assim, de uma posição que entende o conhecimento científico como objetivo-subjetivo: objetivo em relação ao objeto a que se refere; subjetivo “por causa do papel ativo do sujeito que conhece” (Idem, ibidem). 100 Relacionada a essa análise anterior, um quarto aspecto emerge da análise de Schaff: o encaminhamento que dá ao problema da objetividade da verdade do conhecimento (p. 91-98). Para discuti-la o autor afirma que é necessário considerar não somente a relação cognitiva, mas também a questão da verdade, que é um problema tipicamente filosófico. O problema da verdade é assim posto por ele: “... entendemos por 'verdade' um 'juízo verdadeiro' [...] adotamos a definição clássica da verdade: é verdadeiro um juízo do qual se pode dizer que o que ele enuncia é na realidade tal como o enuncia” (Idem, p. 92). Mas qualificar a verdade como verdade objetiva é um pleonasmo: “não pode existir outra verdade que não seja a verdade objetiva” ou, dito de outra forma, na medida em “que toda a verdade é objetiva... é pois inútil acrescentar o adjetivo ‘objetiva’” (Idem, p. 93). Sendo o conhecimento um processo, a verdade também o é. E mais: sendo o objeto do conhecimento infinito, também o seu conhecimento o é e, por isso, é um processo de acumulação de verdades parciais. Neste sentido, o problema se resolve para Schaff no reconhecimento de que “a verdade é um devir”: pela acumulação de verdades parciais, tende-se para a verdade total (Idem, p. 98). Somente após explicitar os fundamentos de sua análise historiográfica, Schaff passou a analisar minuciosamente as principais concepções metodológicas e teóricas da prática científica do historiador: o positivismo, o presentismo e o marxismo. Para o detalhamento das concepções, aproximando a análise à particularização no Brasil, tenho recorrido à síntese didática de Ciro Flamarion S. Cardoso e seu opúsculo Uma introdução à História, elaborado para introduzir os alunos de graduação nas principais questões de fundo da ciência da História. Após tratar sobre a cientificidade da disciplina, o autor faz uma exposição sobre os quatro principais paradigmas dessa disciplina científica, quais sejam: a) o positivismo; b) o historicismo (também apontando para o ecletismo entre positivismo e historicismo e para os combates ao positivismo e ao historicismo); c) o marxismo; d) o grupo dos Annales. Para delinear o positivismo, Cardoso (1986, pp. 30-33) toma por base a elaboração de Auguste Comte. Para o autor, o positivismo repousa sobre três "leis": 1) a lei dos três estados (teológico, metafísico e positivo); 2) a lei da subordinação da imaginação à observação; 3) a lei enciclopédica (ou de classificação das ciências). Sobre a segunda dessas leis, observa que para positivismo “quaisquer proposição que não possa ser reduzida 101 à simples enunciação de um fato particular ou geral carece de sentido real e inteligível”. Neste aspecto, segundo ele é importante que, para Comte, o "fato" não pode ser conhecido em sua “essência”, mas somente no nível fenomênico. Assim considerava como atividades das ciências: 1) o estabelecimento dos fatos; 2) sua explicação mediante leis (no sentido de "relações constantes de sucessão e similitude existentes entre os fenômenos observados"). À pergunta sobre quais as conseqüências destas teses ou "leis" do positivismo para a História, Cardoso responde que, em primeiro lugar, está a afirmação dos fatos - seu estabelecimento através da crítica erudita das fontes - como tarefa primordial. Por outro lado, um certo pessimismo quanto à possibilidade de explicar tais fatos através de leis. Na lista de ciências de Comte não figura a História; os fatos históricos, a cuja coleta se dedica o historiador, eram vistos como a matéria-prima da Sociologia, esta sim capaz de descobrir nexos entre os fatos sociais. Como os fatos históricos eram considerados como fatos únicos, passados e irrepetíveis, não poderia, por definição, haver lei do que é único e irrepetível. É verdade, porém, que muitos historiadores positivistas, ao contrário de Comte, viam os fatos históricos como algo que tinha existência real, ontológica, externa ao observador, e não a partir de uma concepção estritamente fenomênica ou empirista (no sentido de Hume). Também é certo que vários deles se preocupavam com a problemática da causalidade, em geral ligando "causas" e "conseqüências" ao fio de uma ordem cronológica linear, à qual se atribui per se peso causal (ou seja, o que vem antes causa o que vem depois: post hoc, ergo propter hoc). Apesar dessas interpretações diferenciadas quanto à cientificidade da história, os historiadores positivistas (pós-Comte) consideravam a História como ciência. O historicismo é o segundo paradigma tratado por Cardoso (1986, p. 33) que o caracteriza como uma corrente filosófica neo-kantiana e que professa a respeito da cientificidade da história um pessimismo radical. Baden e outros “historicistas” (como os "idealistas alemães": Windelband, Rickert, Dilthey) colocaram uma oposição irredutível entre "ciências da natureza" (nomotéticas) e "ciências culturais" ou "do espírito" (ideográficas e não-nomotéticas). A natureza se opõe à cultura e, do mesmo modo, o método generalizador e explicativo das ciências naturais se opõe ao método descritivo e individualizador das ciências da cultura. Como os positivistas, os "historicistas" viam nos fatos singulares ou individuais do passado o objeto da História, porém, não lhes atribuíam 102 o caráter de fatos reais, externos ao observador: viam-nos como "fatos de pensamento", como uma criação subjetiva. Sobre o historicismo observa que, como tratava-se de um método baseado na compreensão intuitiva e em uma concepção subjetivista e relativista da História, dele só poderia resultar numa perspectiva paralisante dos progressos de construção da História como ciência. Isto não mudou ao longo do século XX, com a corrente chamada "presentista" (Croce, Collingwood), pois apesar de algumas diferenças filosóficas, as consequências epistemológicas e metodológicas do historicismo e do presentismo são bastante similares. Na seqüência aborda o “otimismo cientificista” e que, em matéria de metodologia, resultou de uma síntese entre o positivismo e o historicismo, promovida no final do século XIX (Cardoso, 1986, p. 33-34). O "otimismo cientificista" próprio da concepção positivista se manifestava no plano da crítica externa e interna, com seus métodos rigorosos postos a serviço do "estabelecimento dos fatos"; já no domínio da síntese histórica, da construção de textos e explicações a partir de tais fatos, aparecia o pessimismo radical do historicismo e a primazia da subjetividade. É muito significativo, a respeito, o manual de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, Introdução aos Estudos Históricos, impresso pela primeira vez na França em 1897, e que teve enorme influência na formação dos historiadores ao longo do século XX.56 Cardoso também registra que a hegemonia das concepções positivistas e historicistas, desde fins do século XIX, produziu vários combates contra elas. Para além da análise dos acontecimentos isolados, alguns historiadores procuravam estabelecer regularidades, através do uso do método comparativo, como Fustel de Coulanges, Henri Pirenne, Henri Sée, Marc Bloch. Estes acreditavam, de fato, que a comparação histórica constituía o único caminho possível para a construção de uma História científica, pois permitia elevar-se da narração descritiva à explicação. Outros pesquisadores, como Paul Lacombe, Henri Berr e Paul Mantoux, dedicavam-se à crítica do que chamavam "História historizante" ou "episódica", voltando-se à defesa de uma síntese histórica efetivamente global. Para Cardoso, o século XX teve duas escolas que tiveram importante papel na construção da história como ciência: o marxismo e a Escola dos Annales. A concepção 103 marxista aparece como o terceiro paradigma abordado pelo autor (CARDOSO, 1986, pp. 34-37) e que possui alguns princípios que diferenciam esta concepção das outras duas: [...] 1) a realidade social é mutável, dinâmica, em todos os seus níveis e aspectos; 2) as mudanças do social são regidas por leis cognoscíveis que, num mesmo movimento de análise, permitem explicar tanto a gênese ou surgimento de um determinado sistema social, quanto suas posteriores transformações e por fim a transição a um novo sistema qualitativamente distinto; 3) o anterior implica afirmar que as mudanças do social conduzem a equilíbrios relativos ou instáveis, ou seja, a sistemas histórico-sociais cujas formas e relações internas (a estrutura de cada sistema) se dão segundo leis cognoscíveis. Em suma, o marxismo admite tanto análises de tipo dinâmico quanto de tipo estrutural, exigindo porém que ambos os enfoques sejam vinculados num único movimento cognoscitivo. [...] (Cardoso, 1986, p. 35). Para o autor, o marxismo busca entender as leis do desenvolvimento histórico- social (leis dinâmicas), que determinam os seus processos reiterativos, constituindo-se, portanto, em leis estruturais. Entretanto, concebendo a história como um desenvolvimento autodinâmico (ou que se autodetermina), o marxismo exclui todas e quaisquer enteléquias metafísicas, externas ao próprio processo histórico, como: Deus, o "Espírito", o "gênio nacional", bem como os determinismos de tipo geográfico, ecológico, racial, biológico ("darwinismo social"), etc.. Para o marxismo a história natural e social são diferentes aspectos de uma mesma e única realidade, cada qual sujeita a um determinado desenvolvimento e, ao mesmo tempo, em relação recíproca. A realidade, e nela todas as possíveis relações, não se encontra regida pelo princípio de identidade, mas pela contradição: A principal contradição dialética reconhecida pelo Materialismo Histórico [...] é a que se estabelece entre as sociedades humanas historicamente dadas e a natureza, e que se resolve no desenvolvimento das forças produtivas. As outras contradições fundamentais são a que vincula as forças produtivas com as relações de produção e a que estabelece a determinação em última instância da base econômica sobre os níveis da superestrutura (política, instituições, leis, ideologias). Justamente da análise integrada de tais contradições surgem os conceitos fundamentais de modo de produção, formação econômico-social e - para certas sociedades - o de classes sociais. (Idem, p. 36) 56 No Brasil esse manual foi publicado meio século depois: Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos. Introdução aos Estudos Históricos, trad. de L. de Almeida Morais, São Paulo, Editora Renascença, 1946 104 No que diz respeito ao problema de ser o homem dotado de consciência, sendo ao mesmo tempo objeto e sujeito do conhecimento, Cardoso (Idem, p. 36-37) entende que essa questão é resolvida pelo marxismo pela pressuposição de que os homens "fazem" a sua história; mas não a fazem de acordo "com uma vontade coletiva", "com um plano coletivo", pois decorrem das suas forças produtivas, como uma força adquirida, produto da atividade anterior dos próprios homens. Em cada momento da história, as lutas sociais que determinam a configuração da sociedade não se travam num vazio, livres de determinações, mas pelo contrário são produto da história anterior. São as lutas de classes que fazem mudar as estruturas sociais, numa ou noutra direção, mas elas se dão num contexto definido. Na análise de Cardoso, no âmbito dos historiadores profissionais, o principal movimento de idéias direcionado para a construção da História como ciência foi dado pelo "grupo dos Annales", notadamente no período 1929-1969 (CARDOSO, 1986, pp. 37-39). Mesmo tratando-se de um grupo muito heterogêneo, seu entendimento é que se pode constatar certas concepções fundamentais comuns, entre as quais destacam-se as seguintes: [...] 1) a passagem da "História-narração" para a "História-problema", implicando o uso de hipóteses explícitas pelos historiadores; 2) a crença no caráter científico da História, mesmo tratando-se de uma ciência em processo de constituição; 3) o contato e debate permanentes com as outras ciências sociais, incluindo a importação de problemáticas, métodos e técnicas de tais ciências para uso dos historiadores (inclusive grande número de técnicas de quantificação); 4) a ampliação dos horizontes da ciência histórica, que tem a pretensão de abarcar numa síntese estrutural global todos os aspectos da vida social: "civilização material", poder e mentalidades coletivas; 5) a insistência nos aspectos sociais, coletivos e repetitivos de preferência aos Biográficos, individuais e episódicos": daí a ênfase na História demográfica, econômica e social; 6) a utilização de todos os tipos de documentos disponíveis - vestígios arqueológicos, tradição oral, restos de sistemas agrários ainda visíveis na paisagem contemporânea, etc. --, acabando com a excessiva fixação só em fontes escritas; 7) a construção de temporalidades múltiplas em lugar de limitar- se o historiador ao tempo simples e linear característico da historiografia tradicional; 8) o reconhecimento da ligação indissolúvel e necessária entre presente e passado no conhecimento histórico, contra qualquer concepção que negue as responsabilidades sociais do historiador. (CARDOSO, 1986, p. 37-38). Cardoso destaca vários pontos comuns entre a concepção marxista e a do grupo dos Annales. Também aponta as profundas diferenças entre elas, notadamente a ausência nos historiadores dos Annales, de uma teoria da transformação social e da luta de classes 105 como o motor dessas transformações. Ciro Flamarion Cardoso conclui essa incursão sobre as principais correntes da História, reafirmando “a força mais poderosa que age no sentido de fazer da História uma ciência” (Idem, p. 39). Apesar das formatações particulares que cada um dos autores referenciados – Antonio Joaquim Severino, em A filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação; Adam Schaff e sua obra História e Verdade; e Ciro Flamarion S. Cardoso e sua Uma Introdução à História - deu à problemática das diferentes concepções que animam a prática filosófica e o fazer científico da ciência da História na contemporaneidade, pode-se constatar que há relativo consenso quanto as principais e clássicas concepções que animam a prática filosófica e o fazer científico na modernidade, quais sejam: positivista, fenomenológica e marxista. Há duas diferenciações que se destacam: a primeira é indicação da tradição metafísica, por Severino; e da escola dos Annales feita por Cardoso. O quadro a seguir ilustra essas coincidências e diferenciações entre os autores. QUADRO DAS CONCEPÇÕES e TENDÊNCIAS – conforme os autores citados SEVERINO (1997) Schaff (1987) CARDOSO (1986) Tradições Tendências Gnosiologia Concepções Paradigmas Metafísica Neotomista Positivista Cientificista Neopositivista Neoempirista Transpositivista Modelo mecanicista da teoria do reflexo Positivismo Positivismo Hermenêutica Fenomenologia Culturalismo Existencialismo Antipositivismo Arqueogenealogia Modelo idealista e ativista Presentismo Historicismo Dialética Hegeliana Marxista Teoria Crítica Modelo objetivo ativista Marxismo Marxismo Escola dos Annales 106 Esse quadro permite uma visualização e sintetese das concepções com base nas coincidências apontadas, colocando como problema a ser (futuramente) investigado a incidência – ou não – de aportes metafísicos no âmbito da historiografia educacional brasileira; também merece ser colocado como problema de investigação as elaborações “dialéticas” e que podem ser diversas em conformidade com a perspectiva adotada, como a dialética hegeliana e sua perspectiva idealista, a dialética marxista e suas abordagens materialistas; ademais há indicativas de que são várias as abordagens teóricas marxistas presentes na produção científica brasileira. Penso que, além dessas concepções (ou tradições) enquanto tais, também foram (e são) produzidas, metodológica e teoricamente, vários ecletismos que, a rigor, são fusões ou articulações as mais diversas entre concepções e autores diferenciados. Mas então toda a produção científica no âmbito da história ou se encaixam nas matrizes clássicas ou se constituem ecletismos? Isso é correto apenas parcialmente. É por isso que além de caracterizar a produção científica a partir de suas concepções fundantes, ou de seus paradigmas epistêmicos, também introduzi a diferenciação entre concepção e movimento. Isso não significa que os movimentos não são importantes para alavancar, além dos embates culturais e artísticos, o próprio fazer cientifico, inclusive do historiador. Para me aprofundar mais sobre o assunto, tenho buscado desvelar os princípios e os pressupostos que norteiam as concepções e os movimentos pelos quais concebemos o mundo existente, o conhecimento construído sobre ele e a ação que exercemos no e sobre o mundo e no e com os outros homens. Nessa direção, tenho enveredado meus estudos para a discussão filosófica classicamente denominada de ontológica, gnosiológica e axiológica, como já apontei. 3. Problema fundamental da filosofia e o problema do conhecimento Como considero a discussão sobre as concepções teórico-metodológicas da maior atualidade, penso que devemos adotar alguns procedimentos que possibilitem uma análise mais profunda dos princípios que norteiam o fazer filosófico e científico. O ponto de partida dessa análise é como um “desmonte” desses fundamentos mesmos, e para esse 107 desmontar, tenho didaticamente usado a imagem da “desmontagem de uma máquina complexa” com uso de ferramentas adequadas, ou mais simplesmente o uso da “cunha”, como no desdobramento da madeira. Expresso, com isso, a necessidade de uso de algumas “ferramentas” metodológicas que possibilitem esmiuçar os princípios (ou pressuposições) fundamentais das concepções teórico-metodológicas (campo hoje mais conhecido como epistemologia e as diferentes concepções de “paradigmas epistemológicos”). Essas “ferramentas” tornam possível o entendimento dos princípios dessas concepções e que, para serem analisados, devem sofrer um "desmonte" histórico que, seguindo as transformações dos modos de produção, leve ao entendimento do processo histórico de transformação do conhecimento. Por outro lado, entretanto, as concepções teórico- metodológicas precisam sofrer um desmonte interno, a partir de seus próprios fundamentos, a partir de seus pressupostos mais básicos e elementares. Para tanto, é imprescindível iniciar a exposição situando desde onde estou falando. Mesmo que no presente trabalho não haja a possibilidade de uma análise acurada das principais concepções no âmbito da Filosofia e da História exercitada no Brasil (principalmente na educação), bem como de seus principais autores, essa sistematização constitui uma ferramenta importante para um mais profundo entendimento da concepção materialista dialética da história, notadamente colocando em relevo os principais embates e as principais diferenças do marxismo em seu cotejamento com outras concepções. No meu entendimento, as principais questões teórico-metodológicas da História, repetidas por praticamente (quase) todos os autores que se dedicam a debater sobre os métodos e/ou teorias da Filosofia, da Ciência e, particularmente, da História, levam para o campo da Filosofia. Quanto mais a incerteza, a dúvida e a apologia do particular e da irracionalidade insistem em tornar supérflua toda produção acadêmica, mais as ferramentas reflexivas e questionadoras da Filosofia renascem e ganham atualidade. Com a Filosofia ainda se mantém a possibilidade de um mais profundo entendimento dos fundamentos sobre os quais toda e qualquer concepção está alicerçada, quer os autores explicitem ou não esses aspectos. Assim procedendo, escapo das análises endógenas (e endogênicas) produzidas por cada campo particular de conhecimento, como a historiografia, a sociologia do conhecimento, e especializações similares em praticamente todas as disciplinas. Como não se trata de aquilatar a produção sobre temas determinados, nem a revisão da produção num campo investigativo específico, fazendo o que comumente se designa por “estado da arte”, 108 é central recolocar algumas questões quanto a concepção de mundo, de homem, de sociedade que está a embasar o entendimento dos autores, questionando o próprio processo de produção do conhecimento e os resultados obtidos. Mas por que questionar as análises da produção no próprio campo de saber no qual se está inserido? Isso se deve principalmente a dois motivos: a) por questões teórico-metodológicas, pois cada disciplina científica, na medida em que se dedica ao estudo de uma dimensão determinada da realidade, se aparelhou metodológica e teoricamente para investigações e estudos pertinentes a esse campo, não estando em condições – metodológicas e teóricas – para uma análise ampla, profunda, crítica e radical do conhecimento por ela produzido; b) por questões sociais ou que dizem respeito à comunidade científica e que, como já expressei anteriormente, dizem respeito à dimensão social e política que também cientistas e pesquisadores vivenciam. Para além das questões mais propriamente científicas, nas quais se colocam inclusive as disputas extra e inter pares em torno de direitos pelas descobertas, autorias, procedimentos e instrumentais científicos, também os pesquisadores partilham as disputas de sua sociedade e do seu tempo, trazendo para o interior da “comunidade científica” a disputa política e a luta por hegemonia. Em outras palavras, a comunidade cientifica é também uma comunidade social, nela se conformando ações de defesa corporativa de interesses e embates e disputas econômicas, sociais e políticas. Para tentar escapar dos problemas decorrentes de análises endogênicas e corporativistas, perfilo-me entre os que defendem a Filosofia como um campo que ainda está a animar os debates e embates acadêmicos, neste início do Século XXI. Não quero confundir as questões, pois a Filosofia não é uma elaboração nem contrária nem complementar à ciência. Também não quero tomar a Filosofia como um meta-campo que tudo pensa, tudo olha e tudo julga. Certamente que a Filosofia é um campo que historicamente sempre está em disputa, mas isso não significa que ela seja uma complementação da ciência, ou uma meta-compreensão acima de tudo e de todos, como se fosse o coroamento e síntese de todos os conhecimentos. A oposição ou complementaridade entre Filosofia e Ciência foram temas datados da história da Filosofia e da Ciência e só fazem sentido no movimento histórico em que as ciências foram se constituindo como campos autônomos, buscando demarcar limites e diferenças quanto aos objetos, quanto aos métodos investigativos, quanto aos procedimentos de construção dos resultados da pesquisa. 109 A Filosofia não é, nem pode ser, nem complementar, nem oposta à ciência. Isso por um motivo simples: a Filosofia é simplesmente Ciência, é episteme, recuperando a própria etimologia do termo, em seu sentido grego (ἐπιστήµη [episteme], ciência, conhecimento). Tomando conhecimento como o processo e o resultado da ação pela qual o homem, social e individualmente, apreende o mundo que o rodeia, as relações que estabelece e, enfim, sobre si mesmos, enquanto homem, não há fronteiras demarcadas que separam o conhecimento de um tipo ou de outro, sobre uma coisa ou sobre outra. Conhecimento é essencialmente de uma só natureza e, por isso mesmo, possui o mesmo caráter, quer tomado como senso comum, ou como senso filosófico, quer como simples observação ou como complexa sistematização. “Não há nenhuma fronteira marcada, ou possível de marcar, nessa complexidade... pois o conhecimento científico de hoje será o vulgar de amanhã” (PRADO JR, 1984, p. 14). É certamente válido e importante como recurso didático diferenciar os vários níveis de conhecimento ou suas várias naturezas, uma discussão que Gramsci (1981), desde o marxismo, sistematizou a partir da afirmação que: É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são "filósofos"... (Gramsci, 1981, p. 11). Diferenciando as características desta "filosofia espontânea", peculiar a "todo o mundo", a todos os homens, como atividade intelectual presente em toda concepção do mundo e expressa na linguagem, Gramsci chama também a atenção para a necessidade de se passar a um “segundo momento, ao momento da crítica e da consciência”, assim expressa: [...] é preferível "pensar" sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, "participar" de uma concepção do mundo "imposta" mecanicamente pelo ambiente exterior [...] ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?" (Gramsci, 1981, pp. 11-12) 110 Essa discussão gramsciana é muito importante e chegou ao âmbito da educação pelas mãos de Dermeval Saviani57, mais recentemente retomada por Renê José Trentin Silveira, para respaldar seu embate com o programa de ensino de Filosofia de Lipman, por entedê-la como uma proposta a serviço da hegemonia da classe dominante (Silveira, 2001, pp. 115-127). Mas o que quero expressar aqui, não é essa diferenciação pela qual é possível discutir o processo político de conscientização, do salto qualitativo de uma consciência fragmentária, espontânea, para um entendimento articulado e crítico da realidade. O que rejeito são as infindáveis divisões e classificações pelas quais se perde, ao mesmo tempo, a visão de totalidade, na qual a articulação entre singular e universal é elo fundamental do conhecimento do mundo e, por outro lado, o próprio conhecimento enquanto possibilidade de entendimento (pelo homem) das coisas existentes e da teia de relações entre as coisas do mundo, nas quais o homem certamente está imerso. A perda da perspectiva de totalidade é o resultado de um esforço de dividir e classificar as coisas e os conhecimentos delas decorrentes, não se percorrendo, depois, o caminho oposto de rearticular as coisas e suas relações, colocando a necessidade do conhecimento como expressão do conjunto dessas relações, de uma totalidade. Essa divisão culminou com a diferenciação e classificação entre ciência e filosofia, que tem sido serviçal, ao mesmo tempo, do cientificismo positivista e empirista, da visão fenomenológica e subjetivista e do irracionalismo que, na contemporaneidade, atua no descredenciamento de toda e qualquer elaboração, transformanda em mera construção literária. Não se trata de respaldar uma visão de conhecimento dividido e seccionada em homem e natureza, mas como uma perspectiva que, assumindo que uma perspectiva de totalidade e o princípio de contradição, reconhece que o conhecimento se diferencia e se unifica, num processo contraditório em que a diferenciação é afirmativa do caráter e da natureza indiferenciada das coisas no âmbito do conhecimento. Essa é a dimensão do conhecimento como objeto de conhecimento e que, apesar das muitas confusões criadas no percurso histórico-filosófico do próprio conhecimento, gostaria de recolocar, enquanto problema fundamental da Filosofia, para aprofundar a discussão em curso. É nessa dimensão que estou assim (re)afirmando o entendimento do conhecimento como uma busca por apreender a totalidade das relações - do universo, das coisas, dos homens, e das relações entre elas -, sendo que a totalidade de 57 Neste caso, particularmente, é importante o legado que recebemos de Dermeval Saviani que fez esse 111 conhecimento, entendida como uma construção histórica e, por isso mesmo, limitada, incompleta, parcial. A isso se deu o nome de Filosofia, da antiguidade clássica à modernidade e, a partir daí foi denominado de Ciência. Comte denominou de Ciência positiva, usando de nominação então usual, e Marx, opondo-se à fragmentação do conhecimento, ao idealismo e ao materialismo fenomênico, apontou na direção da construção de uma única Ciência, uma Ciência da totalidade que deveria apreender as relações naturais e sociais. Para o homem, os questionamentos sobre o mundo existente correspondiam a uma necessidade prática; dessa exigência societária, acompanhando a transformação da própria sociedade humana, e sua conformação de classes sociais antagônicas, separando o fazer do saber, o conhecimento passou a tomar por referência a própria necessidade de conhecer as coisas do mundo e de suas relações. Penso que foi isso o que ocorreu historicamente: a partir de certo ponto de desenvolvimento histórico, o conhecimento do próprio conhecimento passou a fazer parte das indagações do homem. Em outras palavras, ao se questionar sobre as coisas particulares ou universais, sobre a origem e destino do mundo e das coisas nele existentes, o homem estava questionando seu conhecimento sobre essas coisas e relações. Como se sabe, isso se deu na antiga Grécia, no final do século VII e início do século VI a.C.. Diferentemente de uma História da Filosofia e que organiza a transformação do pensamento numa cronologia, de certa forma tomando esse pensamento de modo autonomizada das condições em que foi produzido, busco um entendimento contextualizado da transformação da Filosofia. Parto do pressuposto que as idéias dos homens correspondem ao modo como os homens produzem a sua existência, perspectiva que é central e norteadora da perspectiva marxiana que estou defendendo. Na bibliografia disponível, acho didaticamente bem equacionada a coletânea Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica, de Maria Amália ANDERY e outros, na qual fica evidenciado que a transformação do método cientifica foi se produzindo como parte integrante e articulada das transformações dos modos de produção (ANDERY, 1999). Já nos primórdios do pensamento filosófico, os pensadores se colocavam questões sobre as ocorrências do Universo e do Homem, conforme se pode verificar pelos fragmentos dos pensadores chamados “pré-socráticos” (Os Pré-Socráticos, 1978), exercício fenomenal em seu Educação: do senso comum à consciência filosófica (SAVIANI, 1980). 112 preocupados, quase exclusivamente, com os problemas cosmológicos, buscando o princípio (arché) de todas as coisas. O mito e a religião davam explicações para todas as coisas, mas essas explicações já não satisfaziam os que se indagavam sobre a origem de tudo o que existe, as causas das transformações, da permanência, do desaparecimento e do ressurgimento dos seres. Enquanto o mito narrava a origem de tudo como uma decorrência de forças divinas e sobrenaturais, se prendendo a um tempo imemorial e fabuloso, os filósofos buscavam explicar como e por que as coisas são como e o que são (Chauí, 1997, p. 31). As perguntas que se colocavam os primeiros filósofos cobriam um vasto arco de dimensões do existir de todas as coisas e das relações dos homens com elas58. Entender o mundo exterior nos elementos que o constituem, em sua origem e em suas contínuas transformações, foram os desafios colocados pelos vários pensadores e suas várias escolas. Por isso ficaram conhecidos como filósofos da natureza (physis, entendida como realidade primeira, originária e fundamental, em oposição ao que é secundário, derivado e transitório); tinham por preocupação o problema cosmológico (ou cosmo-ontológico), e buscavam o princípio (a arché) de todas as coisas (SPINELLI, 2006). Praticamente os questionamentos feitos pelos primeiros filósofos são os mesmos que ainda nos desafiam (sendo muito interessante a atualização dessas questões para uma linguagem mais coloquial dos dias atuais, como o exercício feito por Marilena Chaui, em seu Convite à Filosofia, deixando mais explícito ao leitor o complexo arco de problemas que desafiavam os primeiros filósofos, e que ainda nos desafiam59. 58 A diferenciação entre mito e filosofia feita por Chauí, reportando-se aos primeiros tempos da elaboração do pensamento grego, é didaticamente muito interessante e, por isso, segue abaixo citada: “Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes: 1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso... A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são; 2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais. O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar. 3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível... A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.” (Chauí, 1997, p. 31) 59Apesar de longa, a citação é esclarecedora: 113 Não buscavam as coisas em si mesmas, pois o que estava em questão era o conhecimento humano das formas e ocorrências do Cosmos, da qual foi surgindo a problemática fundamental da filosofia que, gradativamente, foi se deslocando das coisas para o ser das coisas, colocando-se relevo no conhecimento que, gradativamente, foi se configurando um campo no qual se coloca em questão o próprio conhecimento do conhecimena (PRADO JR, 1984, p. 19). A releitura filosófica desse primeiro movimento sistemático - de busca do conhecimento do conhecimento - enfatizou que se tratava de uma elaboração cosmológica, da qual resultava a separação entre a realidade física e a possibilidade de conhecê-la, problemática que foi sendo transformada numa crescente polarização entre ser e pensamento, tomados como categorias filosóficas diferenciadas e que expressavam diferentes dimensões de todas as coisas. Com o desenvolvimento da produção apoiada no braço escravo, do comércio, do artesanato, das cidades (polis) e da ação militar organizada, Atenas se transformou em centro da vida social, política e cultural da antiga Grécia, vivendo um período de grande importância para o futuro da Filosofia. Até então vivia-se um período em que dominavam grandes famílias aristocráticas. O poder decorria da propriedade das terras e era exercido pela força das armas. A divisão de classes gerava a necessidade da criação de uma educação diferenciada, própria para a aristocracia, e que se diferenciava da socialização dos saberes, normas, padrões e valores característicos de cada polis. Baseando-se nos dois “Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do tempo? Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões? Por que a doença invade os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes me agradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o som da música que antes me embalava, agora, que estou doente, parece um ruído insuportável? Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem! Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser líquida e transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O dia, que começa frio e gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio de calor. Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os seres? Para onde vão, quando desaparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas também, por que tudo parece repetir- se? Depois do dia, a noite; depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o verão, depois deste, o outono e depois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; à noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à navegação; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O 114 grandes poetas gregos, Homero e Hesíodo, o padrão educacional “afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom... aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis... (principalmente) a coragem diante da morte, na guerra” (Chauí, 1997, p. 36). Tratava-se de uma preparação aristocrática, fundamental para a sustentação da classe de proprietários no poder. A areté60 buscada era a excelência e superioridade guerreira, própria dos aristoi61. Com a expansão das cidades e das atividades econômicas, a classe proprietária foi ampliada e passou a exercer seu poder coletivamente, de modo direto, através da participação de todos os proprietários nas decisões que a cidade deveria tomar. Foi a emergência da figura política do cidadão, denominação para especificar a posição sócio-política e que era específica da classe detentora dos meios de produção, e da qual estavam excluídos os trabalhadores, em sua maioria escravos. A implementação da democracia passou a exigir que os cidadãos discutissem, opinassem e deliberassem nas assembléias, mudando o ideal de educação, que passou a ser a formação do cidadão: formação do bom orador, que soubesse falar em público e que dominasse a arte de persuadir os outros no exercício da democracia. A areté passou a ser a virtude cívica. Nessa passagem do mito à filosofia, da formação do aristocrata para a formação do cidadão, também houve grande desenvolvimento histórico das reflexões do homem. Não se pode esquecer que isso se deu como parte do próprio movimento histórico, acompanhando a aparente reflexão simples quanto ao conhecimento do homem sobre seu conhecimento do Universo e que foi tomando a formatação de duplicidade de níveis em que opera o pensamento elaborador do Conhecimento. Essa duplicidade se apresenta, por um lado, como se fosse um primeiro ponto de ponto de partida, o nível do conhecimento direto e imediato das feições e ocorrências da realidade que se trata de conhecer, isso é, aquilo que ordinariamente entendemos simplesmente por “Conhecimento” e “Ciência do particular”. Por outro lado, como se fosse possível existir um segundo nível de reflexão sobreposto ao primeiro, “no qual o pensamento se ocupa já não diretamente com as feições calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas. Ninguém nasce adulto ou velho, mas sempre criança, que se torna adulto e velho. (Chauí, 1997, p. 25) 60 “A palavra areté tem sido traduzida como virtude em praticamente todas as línguas ocidentais: virtue, virtù, etc... Em que pese esse uso universal e consagrado, é inevitável, para nós, que a palavra virtude apareça carregada de significados e conceitos cristãos que, obviamente, não poderiam ser aplicados ao contexto dos gregos antigos sem causar sérios problemas de interpretação. Assim, sempre preferimos fazer a tradução da palavra areté por excelência, ou seja, o ponto máximo de aperfeiçoamento que um determinado ser pode alcançar.” (Tsuruda, Apontamentos para o Estudo da Areté [s.d.]). O significado mais adequado, portanto, é usar areté no sentido de mérito ou qualidade pela qual alguém se destaca, e que era característico e diferenciado em cada período histórica da Filosofia Grega. 115 e ocorrências da realidade, mas com o Conhecimento acerca dessas feições” (Prado Jr, 1984, p. 21). A realidade e o conhecimento que antes eram tomados como dimensões de uma mesma e unitária dimensão, passou a comportar duas dimensões: num primeiro nível, o pensamento era aplicado “à esfera objetiva e exterior ao ato pensante”, no outro, se aplicava “a si próprio... como seu conteúdo, já desligado da Realidade que representa - conteúdo de Conhecimento...” (Prado Jr, 1984, p. 21-22). Dessas reflexões resultou a diferenciação entre a realidade exterior e o sujeito pensante e que, com o desenvolvimento filosófico, foi se expressando na dicotomização entre sujeito e objeto. Desses dois movimentos do pensamento resultaram confusões até hoje aparentemente insuperáveis, e que giram em torno de colocar como opostos ser e pensamento (como questão de fundo da ontologia) ou objeto e sujeito (como a questão epistemológica fundamental). Caio Prado Jr. exemplifica essas confusões tomando um dos conceitos fundantes da Filosofia, o conceito de “matéria” e que, ao longo dos séculos, tem se constituído em divisor de águas do pensamento filosófico, no mais das vezes levado a cabo “em infindáveis monólogos que se desenrolam paralelamente uns aos outros, e sem correspondência no mais das vezes entre si” (Prado Jr, 1984, p. 23). A citação que segue é esclarecedora da questão: [...] Na maioria dos filosóficos em que ocorre o conceito “matéria”, um exame atento e devidamente alertado revela essa indistinção entre o conceito propriamente e em si, de um lado; e doutro, o objeto da realidade exterior que ele representa, ou que deveria ou poderia referir e representar. [...] A confusão entre esfera subjetiva e objetiva vai dar assim na projeção da primeira na segunda... (Prado Jr, 1984, p. 24) Trata-se de uma inversão idealista, pela qual se supõe recriar no pensamento um mundo feito à imagem desse próprio pensamento, como uma modelagem da realidade segundo determinados padrões conceituais – e que é a nova roupagem fenomênica do que, anteriormente, os positivistas chamavam de modelo conceitual. Era exatamente nessa direção que se colocavam as análises críticas de Marx e Engels n’A Idelogia Alemã, retomada posteriormente por Engels, no Anti-Düring, quando apontou a confusão e inversão idealista cometida por Dühring que, dizendo-se materialista, acabava fazendo uma inversão dos princípios filosóficos aos quais recorria: 61 O termo foi utilizado para descrever os nobres na antiga Grécia, considerados superiores ao povo comum. 116 Quando ele fala de princípios, refere-se a princípios de pensamento independentes, não deduzidos do mundo exterior, e de princípios formais, derivados, aplicáveis à natureza e ao mundo dos homens ... Mas, de onde tira o pensamento esses princípios? Os esquemas lógicos só podem referir- se a formas conceituais... trata-se apenas das formas do que existe, do mundo exterior... Mas isto inverte toda a relação estabelecida: os princípios já não são o ponto de partida da investigação, mas seus resultados finais; não se aplicam à natureza e à história humana...; não é a natureza e o mundo dos homens que se regem pelos princípios, mas só estes é que têm razão de ser quando coincIdem com a natureza e com a história. Nisto consiste a verdadeira concepção materialista das coisas, o oposto do que afirma o Sr. Dühring, que é idealista e cuja concepção inverte todas as coisas, construindo o mundo real partindo da idéia, de uma série de esquemas, planos ou categorias existentes e de valor eterno e anterior à existência do mundo” (Engels, 1979, p. 31-32). Assim caracterizando, Engels reporta-se à principal matriz idealista da filosofia alemã, tributando essa confusão à Hegel para, em seguida, precisar sua matriz onto- gnosiológica: Hegel era idealista. As idéias de seu cérebro não eram, para ele, imagens mais ou menos abstratas das coisas e dos fenômenos da realidade, mas coisas que, em seu desenvolvimento, se lhe apresentavam como projeções realizadas de uma "idéia", existente não se sabe onde, antes da existência do mundo. Este modo de ver tudo subvertia, revirando pelo avesso toda a concatenação real do universo. (Engels, 1979, p. 22) Ainda hoje, a expressão mais acabada dessa perspectiva, é de não adentrar na discussão dos pressupostos ontológicos e gnsiológicos fundamentais das concepções, situando toda a problemática no âmbito da linguagem discursiva, na qual e através da qual a conceituação adquire formalização e expressão. Como que fugindo da exposição dos princípios metodológicos e teóricos adotados, busca-se uma exposição confortável de um Universo conformado por estruturas discursivas, por um “giro lingüístico”. Entretanto, essa foi a base para as primeiras exposições filosóficas das feições e ocorrências da realidade universal, que teve como ponto de partida a noção de um mundo constituído de “ser” e “pensamento”, ou de “coisas” e “entidades”, bem discriminadas e separadas entre si, com todas as suas formas conteúdos característicos. No dizer de Caio Prado Júnior, é uma perspectiva que mal disfarça os princípios idealistas que a fundamentam: ... o modelo que o inspira, a saber, a estrutura gramatical do sujeito e predicado, e seus elementos constituintes essenciais: substantivo, adjetivo, verbo Temos ai os materiais com que se constitui e concebe ordinariamente o Universo, com as circunstâncias que nele se verificam e 117 ocorrem. Os substantivos se farão nas coisas e entidades em que o Universo é discriminado e dividido; os adjetivos serão as qualidades com que se revestem aquelas coisas e entidades; e os verbos, finalmente, designarão... a ação das mesmas coisas e entidades; ação essa com que se descreverá o comportamento do Universo. (Prado Jr, 1984, p. 28) Não é demais insistir que, em grande medida, até a modernidade, a trajetória do pensamento filosófico foi de aprofundamento da inversão idealista, de inversão do processo de conhecimento pelo qual a dimensão subjetiva (o pensamento) se projeta na realidade objetiva (no ser). A confusão quanto ao conhecimento da realidade e seu processo de elaboração conduzia a se confundir a realidade como conformada por ser e pensamento, o conhecimento como oposição entre sujeito e objeto. A Filosofia nasceu sob a marca dessa confusão e, como já observado anteriormente, a primeira tentativa de encontrar um fio- condutor que levasse a um superior entendimento sobre o universo e sobre as possibilidades do homem conhecê-lo, deu-se com os pré-socráticos. Buscavam os vários filósofos do período a resolução do problema cosmológico, colocando em relevo a arché (ἀρχή - origem) de todas as coisas, como um princípio que deveria estar presente em todas as coisas, em todos os tempos - no início, no desenvolvimento e no fim de tudo. Ao fazer gancho com a problemática cosmológica, resgatando as reflexões e elaborações dos filósofos pré-socráticos, não se pode cair em imperdoável anacronismo de considerar que estiveram esses filósofos envolvidos na descoberta do elemento constituinte do Universo, como sendo esta a mesma problemática com que os físicos modernos e contemporâneos investigam as "partículas" elementares do universo. Diferentemente dos físicos modernos, os pré-socráticos se ocupavam de uma questão onto-gnosiológica que foi, em linhas gerais, o tema central de toda a Filosofia grega (Prado Jr, 1984, pp. 32-33). Buscavam os pré-socráticos um verdadeiro e legítimo conhecimento de um mundo variável e em permanente fluxo e transformação; buscavam identificar os objetos fundamentais do conhecimento que, para eles, eram os elementos primordiais ou as substâncias constituintes do universo. Era uma problemática a um só tempo ontológica, pela qual buscavam entender o fator determinante e primeiro do universo, e gnosionógica, no âmbito da qual expressavam a busca pelo conhecimento, pela explicação das regularidades, uniformidade e estabilideade, de uma realidade concebida como variável e em permanente transformação. Um tratamento simplista tenderia a tomar a filosofia pré-socrática de modo homogêneo. Mas as escolas pré-socráticas não só foram diferenciadas, mas fincaram as 118 bases da multiplicidade das possíveis alternativas para a diferenciação ontológica e gnosiológica. Penso que a cosmologia legada pelas diferentes escolas gregas, recebeu diferentes e originais abordagens, inicialmente sintetizadas por dois pré-socráticos que nos legaram seus dois principais e antagônicos encaminhamentos, praticamente contemporâneos, expressos por Heráclito e Parmênides. Partindo das elaborações das várias escolas pré-socráticas, a discussão desembocou em Platão, sendo finalmente sintetizada por Aristóteles. Com a sistematização aristotélica, o chamado “Problema Fundamental da Filosofia” adquiriu a formulação que chegou até a modernidade, sendo tratado por campos diferenciados do saber que culminavam na “Filosofia Primeira” – a Metafísica - à qual caberia o estudo do ser das coisas, da ousia para usar o particípio presente do verbo ser, definida como “estudo do ser enquanto ser”, isto é: estudo da essência das coisas, como algo separado de sua forma ou aparência. Com Aristóteles a chamada “inversão idealista” consagrou a formatação metafísica que bem conhecemos: os conceitos com os quais os sujeitos representam mentalmente a realidade exterior ao pensamento, são considerados como uma dimensão da própria realidade. Afirma Prado Jr que Aristóteles viciou “profundamente não só a Filosofia subseqüente... [mas] Embaraçará ... a marcha da elaboração científica que somente ganhará impulso quando modernamente se libera da Filosofia, ou antes da Metafísica em que a Filosofia se envolvera” (Prado Jr, 1984, p. 43-44). Mas é muito recente a separação da Ciência em relação à Filosofia, como se fossem dois campos separados, justificando-se essa separação pelas supostas diferenças entre objetos, métodos e resultados. Acompanhando as transformações das forças produtivas e o crescente uso dos conhecimentos na produção, característico da Revolução Industrial, as ciências particulares e seus supostos diferentes campos especializados de saber, aliás, também foram se diferenciando sob a justificativa de diferentes objetos, métodos e teorias. Acompanhando o revolucionar da base material da produção, a estratégia do pensamento moderno foi de dividir e separar os objetos de investigação, o que mostrou-se historicamente “produtivo”, pois a aventura humana de conhecer, desde então, rapidamente deu saltos qualitativos e quantitativos, ampliando substantivamente o conhecimento do homem sobre o mundo existente, sobre a organização e funcionamento da sociedade e, enfim, sobre o próprio homem. Em apenas dois séculos a humanidade deu um salto estupendo no conhecimento sobre os mais diferentes aspectos e dimensões da 119 realidade. Isso não teria ocorrido, entretanto, sem o longo e milenar percurso da espetacular aventura de conhecer, de sistematizar e de aprender a aplicar o conhecimento conhecido. Foi longa e complexa a estratégia de dividir o objeto de conhecimento, mas isso propiciou ao homem um avanço substantivo no entendimento sobre as leis do funcionamento do mundo existente, pois os conhecimentos foram transformados em poderosas forças produtivas de bens e serviços, e que também têm se revelado em poderosas forças destrutivas das condições de vida para o próprio homem. Como não se quer conceber a história do pensamento como um movimento em si mesmo, da idéia, descolado de sua base material, outro caminho é pressupor a articulação dialética da totalidade do mundo existente como a totalidade de conhecimentos, e esta, por sua vez, como totalidade de pensamento. Marx expressou isso na análise sobre o método correto e que toma não o concreto empírico como ponto de partida para o conhecimento, mas o concreto pensado, por ele tratado como síntese de múltiplas determinações (Marx, Contribuição à crítica da economia política). Como já me posicionei anteriormente, não pretendo fazer uma História da Filosofia, mas reconhecer que a Filosofia está na História e que têm uma história, recorrendo a essa relação quando necessário reforçar a argumentação, mas pressupondo o conhecimento das determinações históricas. Como não se trata da defesa genérica e idealista da Filosofia, penso que ainda cabe tomar dela os questionamentos que historicamente os homens foram se fazendo e organizados na ontolologia, na gnosiologia e na axiologia. Cada um desses campos englobando as múltiplas questões colocadas pelos homens e que se transformaram em conformidade com o modo como os homens produziram(em) sua existência, mas abstratamente articulados em questionamentos relativos à própria realidade existente (questões ontológicas), às possibilidades do homem conhecer a realidade e questionar o próprio processo e resultado do conhecimento (questões gnosiológicas) e, enfim, quanto aos valores do agir e do fazer dos homens (questões axiológicas). Considero o domínio dessa problemática fundamental e necessário para clarear a tese que busco detender neste trabalho, qual seja: que a educação é determinada, em última instância, pelo modo de produção da vida material. O modo como os homens produzem sua vida material, é fundamental para o entendimento do modo como os homens vivem, pensam e transmitem as idéias e conhecimentos que têm sobre a vida e sobre a realidade natural e social. Foi neste sentido que afirmei que desde os filósofos gregos até a 120 modernidade, excetuando aqueles que colocam dúvidas quanto a existência da própria realidade (expressas nas formas passadas e presentes de arealismo ou antirealismo), todo o percurso histórico da filosofia partiu da pressuposição de que a realidade poderia ser conhecida e que o homem atuava na e sobre essa mesma realidade. A filosofia, aliás, nasceu para aprofundar e sistematizar esses conhecimentos. Nos seus primórdios assumia- se uma perspectiva realista e desse fundamento nasceram as questões metafísicas, ou primeiras, e que depois passaram a ser denominadas de ontológicas; de “filosofia primeira” esse campo foi se tornando uma filosofia transcental, uma elaboração teórica essencialista e ahistórica. O problema fundamental da filosofia, concebido como um problema prático, que diz respeito à ação transformadora do homem no mundo, tanto depende da concepção que se tem do mundo e do homem, quanto da solução ao problema do conhecimento. Uma ordem de problemas depende da outra, de forma a constituírem faces de uma mesma e única moeda, pois estavam os filósofos gregos preocupados em buscar a sabedoria, a explicação das coisas por suas causas reais e naturais, expressando que dever-se-ia ter amor à verdade e que esta deveria levar à prática da virtude e a prudência na conduta. Também na filosofia foram sistematizadas as indagações que, desde os tempos em que os homens buscavam superar as explicações míticas, estavam relacionadas às questões sobre o método (de conhecimento), e sobre o próprio conhecimento produzido (teoria, entendida em sentido amplo). A análise crítica e radical do conhecimento, por sua vez, não se descolava do problema fundamental da filosofia, e que foi explicitado, desde os antigos filósofos gregos, por clássicas perguntas: 1) quanto à existência e à natureza de todas as coisas; 2) sobre a possibilidade de se conhecer em profundidade as coisas existentes; 3) pelo agir de modo correto e conseqüente no mundo e com os outros homens. Não é preciso inventar novos termos e denominações, pois se tratam de termos que histórica e etimologicamente animam as reflexões dos já referenciados três campos da filosofia: a ontologia, a gnosiologia e a axiologia. Essa discussão foi suscitada por Engels, em Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, onde o "problema do conhecimento" se colocava como uma questão relativa ou à relação entre o "ser" e o "pensamento" (ENGELS, em “Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã”, p. 178) ou como um problema quanto a relação dos nossos pensamentos com o mundo existente, expressa na relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível (Idem, p. 179-180). Apresentava-se, assim, por um 121 lado, num "plano ontológico" e, por outro, num "plano gnosiológico". Sinteticamente Engels expôs, na citada obra, que o encaminhamento até então dado ao problema fundamental pela filosofia foi de, gradativamente, englobar tudo o que existe no mundo em duas categorias gerais e abstratas: ser (ou "matéria" / "existência") como a categoria filosófica para denominar todas as coisas materiais, como a matéria, a natureza, o mundo exterior, a realidade e todos os objetos, os fatos e fenômenos materiais. A categoria ser era concebida como unitária, mas que englobava a realidade exterior sob duplo aspecto: quanto à existência e quanto à essência (que acabou se constituindo em outro conceito importante e que dizia respeito à natureza dos seres, à sua "substância" - entendida como aspecto indispensável e necessário). A outra categoria foi pensamento (ou "idéia" / "espírito "), pela qual se designava tanto a consciência (o "pensamento") do sujeito, quanto o espírito , a idéia ou a alma enquanto categoria geral e abstrata, independente da matéria. Depois dessas análises, e como não vejo motivo para novidadeiramente passar a usar outros termos (novos conceitos, novas categorias), sistematizarei as anotações que tenho feito, com o objetivo de entender a obra de Marx e Engels, tendo como meta aprofundar meus estudos fundados na concepção materialista dialética da história no âmbito da filosofia e da história da educação. A sistematização desses três campos da filosofia sempre acaba implicando em perda qualitativa, ou em excessiva sistematização de tipo escolástico, motivo que me leva no presente trabalho a apenas introduzir esses três campos, fazendo um exercício na direção de ententer o processo de construção das concepções filosóficas, pressupondo (mesmo quando não explicite) que o pensamento sempre corresponde a condições materiais historicamente determinadas. O fio condutor da exposição que segue busca situar historicamente as questões e respostas filosóficas, sabendo que se trata de um exercício complexo e sempre incompleto. 4. Processo de construção das concepções filosóficas Passam-se milênios, séculos, décadas e continuamos a fazer as perguntas quanto aos por quês de tudo o existe, do sentido da existência humana, etc. A ninguém soa estranha uma pergunta sobre a causa das coisas, sobre os objetos, sobre a realidade que existe fora e independente dos sujeitos, sobre o conhecimento, sobre a vida; sobre a 122 existência de homens e mulheres, etc. Desde os antigos gregos essas questões foram sistematizadas no âmbito da ontologia, ou da metafísica, como preferiu classificar Aristóteles que, mesmo não tendo forjado o termo, a ele atribuiu grande importância, devendo se ocupar com a investigação dos fundamentos, das causas e do ser íntimo de todas as coisas, indagando por que existem e por que são o que são62. Essas perguntas que ainda hoje fazemos quanto ao ser de tudo que existe, entretanto, receberam formulações diferenciadas ao longo da história. Cada época formulou suas perguntas, usando conteúdos e formas característicos a cada uma dessas épocas e à visão de mundo, à ideologia, característica e própria das diferentes e históricas formações sociais. Cada época e cada formação social, em conformidade com seus modos de produzir a vida, elaboraram suas questões e tiveram diferentes modos de respondê-las. Ao se transformarem os modos de produção, igualmente cambiaram-se as formulações das questões e suas respostas. Não mais me esqueci desse entendimento, e isso faz muito tempo, desde a leitura das reflexões ensejadas por Marilena Chauí, em seu Convite à Filosofia, que exemplifica a mudança histórica de questões e de palavras para expressá-la, da seguinte maneira: [...] um filósofo grego não falaria em “nada”, mas em “não-ser”. Não falaria em “objeto”, mas em “ente”, pois a palavra objeto só foi usada a partir da Idade Média e, no sentido em que a empregamos hoje, só foi usada a partir do século XVII. Também, não falaria em “consciência”, mas em “psyche”, isto é, alma. Jamais falaria em “subjetividade”, pois essa 62 Os termos metafísica e ontologia foram assim sintetizados por Chauí: “A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, por volta do ano 50 a.C., quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que, durante muitos séculos, haviam ficado dispersas e perdidas. Com essa palavra – ta meta ta physika -, o organizador dos textos aristotélicos indicava um conjunto de escritos que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou sobre a Natureza, pois a palavra grega meta quer dizer: depois de, após, acima de. Ta: aqueles; meta: após, depois; ta physika: aqueles da física. Assim, a expressão ta meta ta physika significa literalmente: aqueles [escritos] que estão [catalogados] após os [escritos] da física. Ora, tais escritos haviam recebido uma designação por parte do próprio Aristóteles, quando este definira o assunto de que tratavam: são os escritos da Filosofia Primeira, cujo tema é o estudo do “ser enquanto ser”. Desse modo, o que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica. No século XVII, o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra correta para designar os estudos da metafísica ou Filosofia Primeira seria a palavra ontologia. A palavra ontologia é composta de duas outras: onto e logia. Onto deriva-se de dois substantivos gregos, ta onta (os bens e as coisas realmente possuídas por alguém) e ta eonta (as coisas realmente existentes). Essas duas palavras, por sua vez, derivam-se do verbo ser, que, em grego, se diz einai. O particípio presente desse verbo se diz on (sendo, ente) e ontos (sendo, entes). Dessa maneira, as palavras onta e eonta (as coisas) e on (ente) levaram a um substantivo: to on, que significa o Ser. O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser, à aparência. Assim, ontologia significa: estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas, real e verdadeiramente.” (CHAUI, 1997, pp. 209-210) 123 palavra, com o sentido que lhe damos hoje, só foi usada a partir do século XVIII. A mudança do vocabulário da Filosofia no curso desses 25 séculos indica que mudaram os modos de formular as questões e respondê-las, pois a Filosofia está na História e possui uma história. [...] (CHAUI, 1997, p. 206) Mesmo com toda a transformação histórica nas questões e em suas possíveis respostas, a formulação que as anima permanece praticamente a mesma, a iniciar pela questão ontológica fundamental - “O que é?” – que, como se sabe, tem sido feita em dois sentidos: por um lado, no sentido mesmo de “existir”, expressando a existência da realidade - “O que existe?”; mas também significando a “natureza própria de alguma coisa”, ao que os gregos denominavam de “essência da realidade” - “Qual é a essência daquilo que existe?”. Ao fazer a pergunta ontológica com essa forma – “O que é?” – a realidade, antes una e indivisível, acabou se transformando, nas mãos dos filósofos gregos, numa realidade que comportava duas dimensões - ser e pensamento - em seus múltiplos aspectos. O ser (do grego on; do Lat. sedere assentar) é o conceito filosófico que designa todas as coisas materiais, a matéria, a natureza, a realidade e todos os objetos, fatos e fenômenos materiais que existem fora de nosso pensamento. O conceito de ser engloba uma unidade articulada tanto existência como essência de tudo o que existe. O conceito de ser, do ponto de vista gramatical, pode ser entendido como verbo ou como substantivo. Como verbo tem dois sentidos básicos: expressando existência - "algo é" - ou expressando ligação - "algo é x". Como substantivo refere-se a uma essência, isto é, ao ser que é intrínseco de alguém, de algo ou de alguma coisa. A tradição filosófica grega tendeu a privilegiar a última acepção, definindo o ser como o princípio constitutivo único e a razão fundamental da realidade, mas trata-se de uma noção que não foi tomada de uma maneira única na história da filosofia63 63 “O filósofo grego Parmênides, no final do século VI a.C., formulou pela primeira vez a noção de um ser único, homogêneo, infinito e imutável, que conteria em si tanto a ordem ideal quanto a material. Com base nesse conceito, ele negou a existência do "não-ser" -- o nada -- e do movimento ou da transformação dos fenômenos tais como percebidos pelos sentidos. Essa tese foi combatida pelos atomistas, que defenderam a existência de um "não-ser" e postularam uma concepção dinâmica da realidade. Platão retomou-a no século V a.C. Embora tenha admitido a existência de movimento no plano dos sentidos, Platão considerou o mundo sensível uma cópia imperfeita da ordem imutável das idéias ou essências transcendentes, partícipes da natureza do ser. A fim de resolver essa controvérsia, fundamentalmente centrada em torno da oposição entre "permanência" e "transformação", Aristóteles enfatizou a dupla natureza do significado do ser: por um lado, o fato de ser é a única característica comum a todas as coisas; por outro, concebe-se o ser como princípio essencial da 124 Ao ser se opõe o pensamento – ou a idéia (Gr. Idea ou eidea < do Lat. idea) - de natureza imaterial, ideal, espiritual. O pensamento (ou idéia) é o conceito filosófico que designa a consciência, a mente, o espírito, a alma e todos fenômenos ideais ou espirituais que existem ou em si mesmo – como demiurgo e força espiritual que tudo rege - ou que existente na consciência do sujeito - como sensações, percepções, representações, sentimentos, emoções, idéias, conceitos, pensamentos, etc. Conforme Abbagnano (1982, p. 499 e ss.) o termo tem sido usado em dois sentidos principais: 1º. Como conteúdo perceptível na multiplidade de formas - as idéias como modelos perfeitos das coisas, ou como as próprias coisas em seu estado perfeito; 2º. Como representação das coisas no pensamento humano. O primeiro significado foi usado por Platão, por Aristóteles, pelos Escolásticos, por Kant e por toda a tradição neo-kantiana; no segundo tem sido usado pelos empiristas, por Descartes, enfim pelas tradições filosóficas que buscam posicionamento anti-metafísico. O primeiro sentido é o que fundamentou propriamente a ontologia e o segundo a questão ontológica da gnosiologia. Mas trata-se de conceito usado de modo diverso na história da filosofia64, até hoje alimentando polêmicas entre as concepções filosóficas e científicas. realidade, sua própria "razão de ser". De acordo com o primeiro aspecto, só é cognoscível aquilo que se manifesta no existente; de acordo com o segundo, o ser é imutável e eterno. Tal concepção foi resgatada pela escolástica medieval mediante a distinção entre ens ("ente", em latim) e esse ("ser", em latim). O primeiro termo alude ao que a realidade é, e o segundo, à causa de que a realidade seja. A partir do século XVII a polêmica sobre a natureza do ser assumiu outro enfoque e passou a se concentrar na afirmação ou na negação da existência real de uma substância, ou princípio fundamental da realidade. Assim, os filósofos racionalistas e idealistas tenderam a postular tal existência, enquanto os pensadores empiristas, positivistas e, em geral, todos aqueles que se filiaram a abordagens materialistas, consideraram que noções como "ser" ou "substância" eram meras especulações abstratas. No século XX, a progressiva rejeição às postulações metafísicas fez com que esse problema fosse aos poucos abandonado. Várias correntes passaram a considerar a chamada "pergunta pelo ser" como uma falsa questão. O filósofo alemão Martin Heidegger, no entanto, resgatou-a na década de 1920, ao considerar o ser como o problema central de toda filosofia e ponto de partida para a compreensão plena da existência humana.” (Enciclopédia de Filosofia: http://encfil.goldeye.info/ser.htm) 64 Para Platão, a ideia que fazemos de uma coisa provém do princípio geral, do «mundo inteligível», que constitui a Ideia Universal, categoria que está na base da sua filosofia, o idealismo. Assim, a ideia da coisa é uma projecção do saber : ao verem a coisa, os olhos, emitindo raios de luz, projectam a imagem dessa mesma coisa, que existe em nós como princípio universal (extromissão). Esta doutrina é designada por «idealismo». Para Aristóteles, a ideia da coisa provém da experiência sensível, do «mundo dos fenómenos contingentes» : as coisas emitem cópias de si próprias, através da luz, cópias assimiladas pelos sentidos e interpretadas pelo saber inato ou adquirido (intromissão), doutrina que funda o conceito de «realismo». Estas noções estão presentes em toda a filosofia ocidental, em particular no campo da ontologia, a ciência do Ser. Condicionarão, durante séculos, o pensamento de filósofos, desde a escolástica até às doutrinas da actualidade, em particular, no campo das chamadas «ciências cognitivas» ou «ciências do conhecimento», que cobrem as áreas da biologia, da cibernética, da robótica, da informática. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ideia) 125 Além dos conceitos de ser e pensamento para expressar a realidade, outros dois conceitos ontológicos foram (e são) usados para o infindável debate quanto às determinações e características e todas as coisas: existência e essência. O conceito de essência (do grego eidos; o Lat. Essentia), etimologicamente significa aquilo que constitui a natureza ou substância de uma coisa, considerado independentemente da sua existência. Dizer o que é uma coisa é declarar a sua essência. Até Platão, a essência - eidos – tinha a conotação daquilo que, numa coisa, é permanente e central, em oposição ao transitório e acidental. Para Platão a essência era a verdadeira realidade das coisas, expressava sua forma pura, subtraída das aparências que caracterizavam sua existência. Foi com Aristóteles que o conceito de essência passou a designar ora a substância dos seres, que para ele era a realidade verdadeira das coisas, ora uma qualidade determinada das coisas. Mas as coisas existentes apresentavam-se, simultaneamente, em sua diversidade e em sua unidade. Para responder a essa questão, posta pelos pré-socráticos e mantida por Platão, Aristóteles entendeu que todos os serem articulavam dois princípios: a essência e a existência. Comparando dois seres, por exemplo, um animal e uma árvore, verifica-se que há entre eles um princípio em comum - ambos existem; entretanto, esses dois seres se distinguem, pois um é um ser animal e outro é um ser vegeral – possuem diferentes essências. A essência é o que é uma coisa, aquilo que a caracteriza e a distingue de qualquer outra. A existência é o que põe em ato (actualiza) a essência e a realiza efetivamente. Na perspectiva aristotélica, a essência e a existência são princípios necessários à constituição dos seres, de tal maneira que um ser sem essência ou um ser sem existência não são concebíveis. (cf. Abbagnano, 1982, p. 340 e ss.). Com essa visão, ao mesmo tempo oposta e complementar quanto ao ser de todas as coisas, se pressupõe que todos os objetos tem um duplo princípio - uma essência e uma existência – com isso expressando que tem um conjunto constante de propriedades (uma essência) e que tem uma presença efetiva no mundo (uma existência). Tal qual a problemática quanto ao princípio de determinação do ser – a idéia ou a matéria – também passou a ocorrer elaborações quanto ao que é primeiro, se a essência ou a existência. Esta idéia tem a sua origem no pensamento religioso, pois para os que acreditam que Deus criou os homens, é preciso que Ele o tenha feito por referência a uma idéia que antes tinha deles. Essa foi uma reflexão importante para a filosofia medieval, na medida em que o conceito aristotélico de essência colidia com o conceito cristão de Deus, um Ser absoluto e eterno, 126 que só pode ser concebido como essência pura e existente. A essência de Deus, portanto, não pode ser pensada independentemente da sua existência. [...] A distinção real entre essência e existência é uma das doutrinas típicas da Escolástica do séc. XIII. [...] Seus criadores foram os Neoplatônicos árabes e especialmente Avicena (sec. XI) que a expusera na sua Metafísica... Mas quem deu à doutrina a sua melhor expressão foi S. Tomás; o qual também a reportou ao significado que recebera de Avicena, negando que a existência seja um simples acidente.[...] S. Tomás entende a essência no significado (de) ... necessária ou substancial. Ela é a “qüididade” ou “natureza” que compreende tudo o que está expresso na definição da coisa; logo não só a forma, mas também a matéria. [...] E assim entendida distingue-se o ser ou a existência da coisa definida... Substâncias como o homem resultam, por isso, compostas de essência (matéria e forma) e existência, separáveis entre si. [...] Somente em Deus, porém, a essência é a própria existência, porque Deus “não só é a sua essências, mas também o seu próprio ser” [...] (Abbagnano, 1982, p. 343-344). Na modernidade, com o avanço do racionalismo e do empirismo, mesmo aqueles que buscaram romper com essa visão metafísica essencialista e religiosa, conservaram uma opinião tradicional de que as coisas nunca existiam senão em conformidade com a sua essência. Exemplifica essa postura a naturalização das relações existentes, como no século XVIII e XIX, por uma suposta essência comum a todos os homens, denominada de ‘natureza humana’. Ainda em pleno século XX o existencialismo se batia com a polarização desses dois conceitos sustentando que no homem a existência precede a essência, conforme afirmou Kierkegaard, para quem a existência é, antes de tudo, o existente. Penso que a mais conhecida afirmação contemporânea do primado da existência sobre a essência, tenha sido objeto de discussão de Jean-Paul Sartre, notadamente em sua obra O existencialismo é um humanismo. A problemática ontológica não foi deixada de lado da elaboração de Marx e Engels, como n’A Ideologia Alemã, notadamente quanto assumiram esclarecer o antagonismo existente entre a visão que estavam a construir e a concepção ideológica da filosofia alemã. Fizeram disso um "ajuste de contas com a... consciência filosófica anterior", usando os termos com que Marx registrou esse início de colaboração, no "Prefácio" da Crítica da Economia Política (MARX, K. "Prefácio" da Crítica da Economia Política, Opus cit, p. 26). Com o explícito "ajuste de contas" com a trajetória filosófica anterior, isto é, com a esquerda hegeliana, pretendiam demonstrar que a nova concepção por eles defendida era um avanço - ou desenvolvimento - em relação às posições então em 127 voga nesse grupo intelectual; mais precisamente, a nova concepção era um avanço em relação à concepção idealista hegeliana e, também, a materialista feuerbachiana. Nesse acerto de contas empreendiam, por um lado, a crítica contundente às várias vertentes ontológicas de então - do idealismo (hegeliano) e do materialismo (feuerbachiano) - mas, de outro lado, expressavam o reconhecimento do mérito metodológico e teórico de Hegel e de Feuerbach. A crítica radical, portanto, implicava que a nova concepção deitava raízes históricas nos avanços filosóficos até então obtidos, mas que para avançar ainda mais era necessário que os limites dessas duas concepções fossem ultrapassados (MARX, K. e F. Engels. A Ideologia Alemã, ps. 29-33, 47-49 e 50-55, por exemplo). Em linhas gerais, Marx e Engels retomaram uma discussão circunscrita ao problema fundamental da filosofia, colocando em questão a determinação do real, de modo amplo, e a determinação do existir social dos homens, faces de uma mesma e única problemática. Foi Engels, em Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, que afirmou que, em conformidade com o encaminhamento que os filósofos davam ao problema fundamental, isso também se colocava no plano ontológico pela busca da essência de todas as coisas e, ainda, pela busca por determinar o elemento primário do conhecimento do ser: O que é primeiro, o ser ou o pensamento? a matéria ou a idéia? O encaminhamento dado a essa problemática (cf. ENGELS, s/d, p. 179) dividiu, desde os primeiros tempos, os filósofos em duas posições básicas, com suas inúmeras variantes: idealistas (os que afirmaram a primazia do espírito em relação à natureza e admitiam, em última instância, uma criação do mundo); materialistas (os que viram a natureza como o elemento primordial). Era esse o embate que se colocavam Marx e Engels e que, em linhas gerais, sintetizava um longo e complexo percurso filosófico e que exigia deles uma tomada de posição e uma nova propositura ontológica. Mas uma exposição mais sistemática do posicionamento ontológico marxiano e engelsiano será feita proximamente. No capítulo anterior busquei articular uma ampla discussão na qual o problema fundamental da filosofia acabava sendo profundamente entremeado pelo problema do conhecimento. Iniciando este capítulo, discorri brevemente sobre a dimensão ontológica do problema do conhecimento; é preciso, ainda que resumidamente, expor a outra dimensão do problema fundamental: a problemática gnosiológica, também denominada epistemológica ou teoria do conhecimento. Trata-se da parte da filosofia que tem como 128 objeto o estudo da origem, da possibilidade, da natureza, dos limites, das formas e da validade do conhecimento humano (problema da verdade). O termo Gnosiologia [do grego gnosis = conhecimento e do latim logos = estudo, ciência] etimologicamente o termo significa teoria do conhecimento), foi definido como o estudo da essência, da origem, e da validade do conhecimento. As clássicas questões gnosiológicas perguntam: O que é o conhecimento? O que podemos conhecer? Existe a verdade? Como podemos conhecê-la? Qual é o critério de verdade? Qual é o valor dos nossos conhecimentos? Fazendo os questionamentos que dizem respeito ao problema do conhecimento, Jacob Bazarian assim se expressou com relação ao aspecto gnosiológico do problema fundamental da filosofia: ... [o] problema consiste no seguinte: existe no vir a ser perpétuo das coisas, na mudança permanente e na diversidade infinita das coisas, algo de estável que o nosso pensamento possa captar? Ou estamos condenados de modo inapelável a errar num mundo de aparências e ilusões? (Bazarian, s.d., p. 78). Novamente Engels, em seu Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, nos legou anotações importantes a respeito da preocupação que tinha ele e Marx sobre questões do conhecimento. Retomando a discussão clássica, afirma que os filósofos, no plano gnosiológico, procuravam a essência do próprio conhecimento e a possibilidade de relação cognitiva entre o sujeito e o objeto. De modo geral, vários questionamentos surgiram sob esse aspecto: Qual o fator primário e determinante no conhecimento humano: o objeto ou o sujeito? Que relação o pensamento mantém sobre o mundo? O pensamento é realmente capaz de conhecer o mundo real? Pode-se, a partir das representações e conceitos sobre o mundo real, formar uma imagem exata da realidade? (ENGELS, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, p. 179-180). Certamente que o primeiro problema do conhecimento é responder o questionamento quanto a possibilidade e essência do próprio conhecimento. Há vários conceitos para esta palavra, que etimologicamente significa aquilo que se conhece de algo ou alguém. Com relação ao problema do conhecimento, a sistematização disponível na internet, na Encilopédia de Filosofia, registra que: Os filósofos antigos e medievais abordaram em muitas ocasiões e de formas diversas o problema do conhecimento, mas foi a partir dos racionalistas e empiristas que o tema ganhou importância no pensamento filosófico. Conhecimento é o processo que ocorre quando um sujeito (o sujeito que conhece) apreende um objeto (o objeto do conhecimento). 129 Esses dois pólos, sujeito e objeto, estão sempre presentes na relação de conhecimento. O papel que se atribui a um ou outro varia substancialmente, conforme a posição filosófica a partir da qual se considera essa relação. Assim, enquanto os filósofos realistas admitem a primazia do objeto, ou seja, sua existência independente do sujeito, os filósofos idealistas defendem a primazia do sujeito, isto é, o objeto só existe no entendimento do sujeito. Em alguns casos, o subjetivismo transforma-se num solipsismo, isto é, na afirmação da impossibilidade do sujeito sair de si para poder conhecer o objeto. O sujeito só pode apreender as propriedades do objeto ao se transcender, ou seja, sair de si mesmo. O objeto, pelo contrário, permanece em sua condição e não se altera, não é modificado pelo sujeito. É este quem sofre modificação pelo objeto, modificação que é o próprio ato do conhecimento. Se o sujeito representa para si o objeto tal como é, o conhecimento será verdadeiro. No caso contrário, o sujeito terá um conhecimento falso do objeto. (Enciclopédia de Filosofia. In: http://www.pfilosofia.xpg.com.br/geocities/encfil/epistemologia.htm) Sobre a possibilidade do conhecimento, isto é, quanto a cognoscibilidade do mundo, Bazarian ([s.d.]) sistematiza duas posições antagônicas: os que a negam e os que a afirmam. Entre as soluções negativas estão as doutrinas céticas e agnósticas com suas inúmeras variantes; e entre as soluções positivas estão as doutrinas dogmáticas e materialistas. Os questionamentos gnosiológicos agruparam os filósofos em torno de duas posições básicas: o ceticismo (ou agnosticismo) e o gnosticismo. O agnosticismo e o ceticismo são posturas que tendem a negar em termos absolutos ou relativos a possibilidade de conhecimento. Para melhor entendimento da postura cética têm-se admitido duas variantes: o "ceticismo absoluto", postura característica dos que negam qualquer possibilidade de conhecimento; o "ceticismo relativo" (que, por referência a Kant, também foi denominado de agnosticismo), compreendendo os que negam parcialmente a possibilidade de conhecer a verdade ou que defendem a existência de limites ao conhecimento, negam a possibilidade de conhecimento da essência das coisas, mas admitem um conhecimento existencial ou fenomênico; o "gnosticismo" que admite a possibilidade de se conhecer a realidade, quer concebida enquanto essência quer enquanto existência. Admite-se a existência de duas variantes na postura gnóstica: o "dogmatismo gnosiológico" (denominado classicamente de "metafísica") que admite a possibilidade de se conhecer a verdade absoluta de modo direto e imediato, por meios empíricos, racionais ou supra-racionais; e o "realismo objetivista" que concebe a realidade material como independente do sujeito, que essa realidade e suas leis são perfeitamente cognoscíveis e que as explicações ou representações dos sujeitos são reflexos das coisas que existem fora da consciência. 130 Fechando essa sistematização, não se pode deixar de falar do terceiro campo da filosofia: a axiologia (do grego άξιος "valor" + λόγος "estudo, tratado" = teoria dos valores e/ou da ação): caracterizado como o estudo da origem, da essência e da evolução dos valores e dos princípios da ação (e que englobou, ainda enquanto filosofia, os conhecimentos de ética, de estética, de direito, de política, de antropologia, de psicologia...). No âmbito da axiologia se colocavam questões como: Qual é o valor das coisas? Como devemos agir? O que devemos fazer? Como devemos comportar-nos? O que podemos esperar? Para onde vamos? Qual é o sentido da vida? Qual é o destino da humanidade? Na filosofia clássica a axiologia compreendia vários campos da filosofia, como a filosofia do bem (ética), a filosofia do belo (estética), a filosofia do justo (direito, po- lítica), a filosofia do homem (antropologia filosófica), a filosofia do destino do homem e do universo (escatologia), a filosofia da fé (teologia), etc. (Bazarian, s.d., p. 41). Mas geralmente trata-se de um campo em que os valores são gerais, abstratos, universais, independentes das condições e relações históricas dos homens. Penso que foi o combate a uma perspectiva axiológica metafísica que se colocou Marx, nas Teses sobre Feuerbach, ao criticar de modo demolidor tanto o materialismo como o idealismo, que não assumiam a atuação prática, revolucionária, como de importância fundamental ao existir do homem (Marx, Teses sobre Feuerbach, p. 208). Marx, opondo-se a toda metafísica e a toda escolástica, recolocou-se a questão da verdade, não como uma questão teórica, mas como uma questão prática, pois é na prática social e histórica dos homens que fica demonstrada a veracidade da reflexão humana (Idem, ibdem). E o entendimento sobre essa prática fecha, na 11ª. tese, esse esquemático texto de 1845: “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente: trata-se porém de modificá·lo” (Idem, p. 210). Afirmo que é essa a dimensão axiológica colocada por Marx: para além de meras questões teóricas, abstratadas, o fundamental é a práxis revolucionária, é a transformação do mundo existente. 131 4.1. A Filosofia na Grécia: a racionalidade do mundo e do conhecimento Os estudos de Marx, antes dele os de Hegel, levaram a buscar na antiga filosofia grega, os princípios ontológicos e gnosiológicos mais gerais para se tratar a realidade e seu conhecimento a partir de suas contradições. No que diz respeito às concepções de conhecimento, estas se confundem com o próprio processo de construção da Filosofia65 que, tendo origem nas reflexões feitas por “homens sábios”, foram se transformando em sistematização dos saberes, culminando com a configuração de campos teóricos, metodológicos e práticos, nos quais se explicitavam os entendimentos e posicionamentos quanto ao mundo, a vida social, as opções individuais, as ações ético- políticas, etc.. Isso ocorreu na antiga Grécia, onde e quando os saberes e os posicionamentos filosóficos foram adquirindo formulações explicativas cada vez mais complexas e articuladas, primeiro com os pré-socráticos e, no apogeu da civilização grega, na primeira sistematização e classificação da Filosofia que, como se sabe, foi obra de Aristóteles. 4.1.1. A Ontologia como Cosmologia Inicialmente a ontologia configurou-se como cosmologia, como admiração do mundo existente, levando os primeiros filósofos a buscarem uma explicação racional para a origem do cosmos (o mundo existente ordenado). A busca do princípio causal de tudo quanto existe na Natureza e de tudo o que n’Ela acontece, resultou na busca de uma força natural, perene e imortal, denominada pelos primeiros filósofos com o nome de physis. A ontologia como uma cosmologia66 era uma explicação racional sobre as coisas da natureza, de modo amplo tratava sobre a matéria e energia do Universo, a physis. [Ainda hoje a cosmologia constitui-se num vasto campo de estudos da Física.]67 Já em seu nascedouro, a chamada filosofia pré-socrática foi praticamente toda ela uma espécie de 65 Estou tomando a Filosofia no sentido etimológico, originário, que de “amigo do saber” foi se tornando um campo de síntese do conjunto do saber. Não convém esquecer que é palavra originária do grego Φιλοσοφία = philos - amigo + sophia – sabedoria. 66 Cosmologia (do grego κοσµολογία, κόσµος="cosmos"/"ordem"/"mundo" + -λογία="discurso"/"estudo") 67 Nesta a cosmologia é definida como “... ciência que estuda a estrutura, evolução e composição do universo” como explica Rogério Rosenfeld, do Instituto de Física da Unesp, no texto didático Cosmologia, publicado em Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005, p. 31 e ss. , no qual faz uma apanhado panorâmico do campo e das pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento.] [artigo acessado via internet, em 16/3/2007: http://www.sbfisica.org.br/fne/Vol6/Num1/cosmologia.pdf] 132 filosofia da natureza, expressando a preocupação que tinham em explicar como e do que é feito o mundo, as transformações da natureza e temas correlacionados. Poucos escritos pré-socráticos estão disponíveis, restando apenas fragmentos; o conhecimento que temos sobre os filósofos pré-socráticos foram legados pelos escritos de Platão, Aristóteles, Simplício e na obra de Diógenes Laércio (que no século III d. C. escreveu uma “Vida e obra dos filósofos ilustres”). Um tratamento simplista, tenderia a tomar a filosofia pré-socrática de modo homogêneo, mas a cosmologia legada pelas diferentes escolas recebeu tratamento diferenciado por parte de seus diferentes e originais filósofos, como os dois antagônicos, e praticamente contemporâneos, encaminhamentos de Heráclito e Parmênides. a) Heráclito de Éfeso68 Heráclito de Éfeso foi o filósofo pré-socrático69 que problematizou a questão do devir (da mudança), fincando três princípios ontológicos fundamentais: a) o princípio da materialidade ontológica, pela qual pressupunha a antecedência e importância da matéria na determinação de tudo o que existe; b) o princípio da permanente e dinâmica transformação da physis; c) o princípio da contradição ou da permanente guerra entre opostos. Esses três princípios de Heráclito faziam parte de uma elaboração filosófica centrada na busca por entendimento da physis, motivo pelo qual esse pensador é perfilado entre os pensadores que defendiam a existência de um dinamismo universal da natureza. Tales e Anaximandro, por exemplo, haviam percebido o dinamismo das mudanças na physis, como o nascimento, o crescimento e o perecimento, mas não chegaram a problematizar a questão. Heráclito, ao contrário, partiu do princípio de que tudo é movimento, e que nada pode permanecer estático. Afirmava que "tudo flui", "tudo se move", registrando seu entendimento de que “não entramos duas vezes nas águas do mesmo rio”, pois “quando entro no rio pela segunda vez, nem eu nem o rio somos os mesmo”. A transformação de todas as coisas, a mudança, o permanente devir, é entendido por ele como uma alternância entre contrários: “coisas quentes esfriam, coisas 68 Hράκλειτος Eφέσιος, nasceu +/- 540 a.C. - 470 a.C. em Éfeso, na Jônia. 69 Além da bibliografia que trata de Heráclito, nas aulas de graduação tenho aproveitado alguns bons verbetes disponibilizados pela internet, como: 133 frias esquentam, coisas úmidas secam, coisas secas umedecem”, etc. A realidade, assim, não é uma escolha por uma das alternativas, que constituem apenas parte da realidade, mas na guerra entre os opostos e que permite a harmonia e mesmo a paz, já que assim é possível que os contrários possam existir: "A doença faz da saúde algo agradável e bom" que, numa linguagem mais atualizada, seria o mesmo que afirmar que se não houvesse a doença, não haveria porque valorizar a saúde... Esse novo entendimento da harmonia – como uma unidade ou coincidência de opostos: o princípio e o fim, em um círculo, ou a descida e a subida, em um caminho, são opostos de uma mesma coisa, pois o mesmo caminho é de descida e de subida; o quente é o mesmo que o frio, pois o frio é o quente quando muda, como se ambos, quente e frio, fossem "versões" diferentes da mesma coisa. Como outros pensadores da época, também Heráclito estava empenhado em encontrar uma arché, um princípio de todas as coisas; diferentemente de atribuir o princípio de tudo o que existe a uma força sobrenatural, buscou ele um dos elementos da natureza para explicitá-lo. E para Heráclito, o fogo foi considerado como o elemento primordial de todas as coisas, pois tudo se origina por rarefação e tudo flui como um rio. O cosmos é um só e nasce do fogo e de novo é pelo fogo consumido, em períodos determinados, em ciclos que se repetem pela eternidade. b) Parmênides de Eléia70 Parmênides de Eléia71 foi o primeiro pensador a afirmar que o cosmos é um mundo ilusório, feito de aparências, sobre as quais os homens formulam suas opiniões. Seu pensamento ficou registrado num poema intitulado Sobre a Natureza, dividido em duas partes distintas: uma que trata do caminho da verdade (alétheia) e outra que trata do caminho da opinião (dóxa), ou seja, daquilo onde não há nenhuma certeza. Para Parmênides a filosofia era a Via da Verdade (aletheia), negando realidade à Via da Opinião (doxa), pois esta se ocupa com as aparências, com o Não-Ser. De modo simplificado, [http://pt.wikipedia.org/wiki/Her%C3%A1clito_de_%C3%89feso]+[http://www.ime.usp.br/~rudini/filos.hera clito.htm] 70 Também para Parmênides, além da bibliografia disponível, nas aulas de graduação tenho aproveitado alguns bons verbetes disponibilizados pela internet, como: [ http://pt.wikipedia.org/wiki/Parm%C3%Aanides ] + [ http://www.ime.usp.br/~rudini/filos.parmenides.htm] 71 nasceu em Eléia, Itália, cerca de 530 a.C. - 460 a.C. 134 afirma-se que Parmênides foi quem fundou as bases da ontologia, estabelecendo seus quatro princípios ontológicos fundamentais: a) o princípio da essencialidade ontológica, pela qual o Ser é idêntico a si mesmo, em sua identidade, unidade, imutalidade e eternidade; b) o princípio da identidade, pelo qual se pressupõe a Unidade e a imobilidade do Ser; c) o princípio da não-contradição, entendendo que o Ser é e o não Ser não é, ou o ser é idêntico a si mesmo e não pode ser o seu oposto; d) o princípio da imutabilidade, pelo qual pressupunha que o Ser é Uno, Eterno, Não- Gerado e Imutável. Parmênides foi o primeiro pensador a afirmar que o mundo percebido pelos sentidos é um mundo ilusório, de aparências, sobre as quais formulamos nossas opiniões (doxa). Também foi ele o primeiro a contrapor a esse mundo mutável a idéia de um pensamento (ou discurso) verdadeiro tendo por referência aquilo que é realmente, isto é, tendo por parâmetro o Ser – to on, On. Fixando-se na pergunta: “o que é”, ele tenta vislumbrar aquilo que está por detrás das aparências e das transformações. Assim, ele dizia: “Vamos e dir-te-ei – e tu escutas e levas as minhas palavras. Os únicos caminhos da investigação em que se pode pensar: um, o caminho que é e não pode não ser, é a via da Persuasão, pois acompanha a Verdade; o outro, que não é e é forçoso que não seja, esse digo-te, é um caminho totalmente impensável. Pois não poderás conhecer o que não é, nem declará-lo.” Parmênides comparava as qualidades das coisas umas às outras e as ordenava em duas classes distintas - Ser e Não-Ser. O Ser é, diz Parmênides, afirmando com isso que o Ser é sempre idêntico a si mesmo, imutável, eterno, imperecível, invisível aos sentidos e visível apenas para o pensamento. Foi Parmênides o primeiro a dizer que a aparência sensível das coisas da natureza não possui realidade, não existe real e verdadeiramente, não é. Contrapôs, assim, o Ser (On) ao Não-Ser (me On), declarando: o Não-Ser não é. Comparou, por exemplo, a luz e a escuridão, e para ele essa segunda qualidade nada mais era do que a negação da primeira. Tomando outros opostos (leve-pesado, ativo-passivo, quente-frio, masculino-feminino, fogo-terra, vida-morte) aplicava a mesma comparação do modelo luz-escuridão, pelo qual a luz era a qualidade positiva e a escuridão a qualidade negativa. O pesado era apenas uma negação do leve. O frio era uma oposição ao quente. O passivo em oposição ao ativo, o masculino em oposição ao feminino e, cada um apenas como negação do outro. O mundo dividia-se em duas esferas: aquela das qualidades 135 positivas (luz, quente, ativo, masculino, fogo, vida) e aquela das qualidade negativas (escuridão, frio, passivo, feminino, terra, morte). Mas em lugar das expressões “positiva” e “negativa”, Parmênides usa os termos metafísicos de “ser” e “não-ser”. O não-ser era a negação do ser. Tem-se que essa foi a primeira grande e sistematizada formulação do princípio da não-contradição, pela qual afirmou-se a impossibilidade de coexistência simultânea dos contraditórios, no caso o ser e o não-ser. Se há ser, não pode haver o não-ser. O ser não tem passado nem futuro, mas apenas presente... sem início, nem fim, eterno. A visão ontológica de Parmênides é que o ser é imutável, imóvel, perfeito e acabado e, não tendo necessidade de nada, permanece em si mesmo idêntico no idêntico. Ele é um contínuo todo igual já que qualquer diferença implica o não-ser. Para ele, portanto, o ser é ingênito, incorruptível, imutável, imóvel, igual e uno: o resto é apenas diferentes denominações da mesma coisa. Na busca pela determinação de tudo o que existe, Parmênides chegou à proposição de um princípio essencialista que, sendo determinação primeira e última, explicitava a existência de um Ser-Absoluto que, sendo a realidade imutável, estática, sua essência era uma individualidade divina.. era um Ser-Absoluto que permeia todo o Universo; um Ser onipresente, posto que qualquer descontinuidade em sua presença implicava na existência de seu oposto – o Não-Ser. Esse Ser não pode ter sido criado por algo pois isso implicaria em admitir a existência de um outro Ser. Do mesmo modo, esse Ser não pode ter sido criado do nada, pois isso implicaria a existência do “Não-Ser”. O Ser simplesmente é. Contrapondo-se à cosmologia e sua busca por explicar o devir, a mudança das coisas, para a passagem de uma coisa a um outro modo de existir, Parmênides chegava à conclusão que toda a mudança é ilusória. Sendo as mudanças e transformações físicas, o Vir-a-Ser (devir), que a todo instante vemos ocorrer no mundo, Parmênides as explicava como sendo apenas uma mistura participativa de ser e não-ser. Disso Parmênides conclui que toda mudança é ilusória. Só o que existe realmente é o ser e o não-ser. O vir-a-ser é apenas uma ilusão sensível, com o que afirmada que todas as percepções dos sentidos apenas criavam ilusões, nas quais temos a tendência de pensar que o não-ser é, e que o vir- a-ser tem um ser. Sintetizando, pode-se afirmar que a ontologia de Parmênides foi uma afirmação da diferença entre pensar e perceber. Percebe-se a natureza na multiplicidade e na 136 mutabilidade das coisas que se transformam umas nas outras e se tornam contrárias a si mesmas. Pensar o ser, entretanto, é tratar acerca da imutabilidade e da eternidade daquilo que é em si mesmo. Perceber é ver aparências. Pensar é contemplar o Ser. 4.1.2. Aristóteles: a racionalidade do mundo e do conhecimento O filósofo estagirita sistematizou os vários séculos de elaboração filosófica de seus antecessores, sintetizando o saber produzido e acumulado pelos gregos nos diversos ramos do pensamento e da prática, entendendo que o conjunto desses conhecimentos constituía a própria Filosofia. Esta não poderia ser definida por um saber específico sobre algum assunto, pois Aristóteles se propunha a construir um completo sistema explicativo, no qual fosse possível conhecer todas as coisas, inclusive o próprio conhecimento. Isso implicava em estabelecer bases seguras que possibilitassem a produção desses conhecimentos e, ao mesmo tempo, que também possibilitasse a adoção de procedimentos metodológicos diferenciados para cada campo de coisas que se quer conhecer. Entendendo Aristóteles que a Filosofia englobava a totalidade dos conhecimentos e práticas humanas – no sentido de sistema filosófico complexo - era necessário estabelecer diferenças entre esses conhecimentos, classificando-os e distribuindo-os numa escala do mais simples ao mais complexo. Com essa diferenciação e distribuição dos conhecimentos, Aristóteles classificou os campos de investigação da Filosofia de modo a compreender a totalidade do saber humano. Cada saber, em seu campo próprio, possuía um objeto específico, métodos próprios para aquisição e exposição dos conhecimentos, formas próprias de demonstração e de prova. Nesse sentido, cada campo do conhecimento era, na perspectiva aristotélica, uma episteme (do grego ἐπιστήµη [episteme], ciência, conhecimento). Entretanto, antes de um conhecimento constituir seu objeto e seu campo próprio, seus procedimentos próprios de aquisição, de exposição, de demonstração e de prova, deveriam primeiramente conhecer as leis gerais que governam o próprio conhecimento (gnosis = conhecimento – do grego γνῶσις [conhecimento]), independentemente do conteúdo que poderia vir a ter. O campo de estudo das formas gerais do pensamento, sem preocupação com seu conteúdo, era chamado de Lógica (do grego λογική [logos], significando palavra, pensamento, idéia, argumento, relato, razão ou simplesmente lógica ou princípio lógico), que Aristóteles não considerava como uma ciência, mas como um instrumento para a ciência. Em outras palavras, a lógica era 137 considerada como um instrumento do conhecimento qualquer que fosse o campo do saber, mas não se confundia com nenhum dos campos de conhecimento, com nenhuma ciência. Por isso mesmo que a lógica não foi incluída na classificação das ciências feita por Aristóteles, em sua obra Metafísica, como foi posteriormente denominada. Ainda que de maneira esquemática, mais com preocupação didática, a classificação aristotélica dos campos do conhecimento filosófico englobava as Ciências Produtivas, as Ciências Práticas e as Ciências Teóricas. As Ciências Produtivas enblobavam os conhecimentos das práticas produtivas, artísticas ou as técnicas, qual seja, as ações humanas cuja finalidade estava para além da própria ação e que tinham por finalidade a produção de um objeto, de uma obra. Englobava os seguintes campos de saber: a Arquitetura (cujo fim é a edificação de alguma coisa); a Economia (cujo fim é a produção agrícola, artesanal, industrial... também o comércio; portanto, que tinham por fim a produção para a sobrevivência ou para o acumulo de riquezas); a Medicina (fim é produzir a saúde ou a cura); e as Artes (fim é a produção artística, literária, oratória, etc. como: pintura, escultura, poesia, teatro, oratória, arte da guerra, da caça, da navegação, etc.). As Ciências Práticas compreendiam as que estudavam as práticas humanas enquanto ações que tinham nelas mesma seu próprio fim. Englobava: a Ética (ação realizada pela vontade, por sua vez guiada pela razão, cujo fim era o bem do indivíduo e que eram expresso pelas virtudes morais (como coragem, generosidade, fidelidade, lealdade, clemência, prudência, amizade, justiça, modéstia, honradez, temperança, etc.); e a Política (a ação guiada pela razão, tendo por fim o bem da comunidade ou o bem comum). Nas Ciências Teóricas estavam incluídas as que estudavam coisas que existem independente dos homens e de suas ações (theoria = contemplação da verdade). Mas que coisas existem por si mesmas e em si mesmas, independentes da ação dos homens? São as coisas da Natureza e as coisas divinas. As Ciências Teóricas foram, por sua vez, classificadas por Aristóteles por graus de superioridade (indo do mais simples para o mais complexo), como segue: Ciências das Coisas Naturais submetidas à mudança e ao devir, como: Física, Biologia, Meteorologia, Psicologia (psychê = alma que, para o grego , era um ser natural e que existia de formas variadas em todos os seres vivos). Ciências das coisas naturais não submetidas à mudança e ao devir, como: Matemática e Astronomia (que para os gregos tratavam dos astros e que eram eternos e imutáveis). Ciência da realidade pura e que tratava do não é nem natural mutável, nem natural imutável, nem resultado da ação 138 humana, nem resultado da fabricação do homem; tratava do ser ou substância de tudo o que existe, conformando uma ciência teórica que tratava do ser e dos seres (em grego on = ser; ta onta = os seres), chamada de METAFÍSICA. Finalmente, a Ciência teórica das coisas divinas, consideradas na visão aristotélica como a causa e a finalidade de tudo o que existe na Natureza e no Homem. A última e mais complexa ciência nessa classificação, Aristóteles a chamou de TEOLOGIA (theion = coisas divinas). 4.2. A Escolástica e a articulação da Filosofia à Teologia Esse esforço classificatório de Aristóteles, no período seguinte da filosofia grega, denominado de Período Helenístico e que teve por característica o desaparecimento da polis grega como centro político e a Grécia foi sendo submetida ao poderio do Império Romano, foi constituindo campos de saberes mais doutrinários e que buscavam explicações mais totalizantes (e dogmáticas) sobre a natureza, o homem, as relações entre ambos e deles com a divindade, numa perspectiva em que a fonte fundamental do conhecimento foi retirada do âmbito humano, voltando a situar-se como revelação. A chamada filosofia Patrística não teve preocupação em construir uma síntese sistemática do conhecimento, tendo esta uma caráter incidental e fragmentário, não compondo uma escola filosófica com postura sistemática e orgânica. A partir da classificação aristotélica, no decorrer dos séculos seguintes e por volta do século XII, começou nova renascença filosófica, sob a tutela da Igreja Católica, com a crescente conformação da Escolástica que, a partir do século XIII, promoveu uma grande síntese filosófica que articulava a filosofia grega com os escritos dos Padres da Igreja. Tomando como principal idéia filosófica a problemática da fé e da razão, foi se articulando um sistema filosófico que pressupunha que “A fé conforta e auxilia à razão que se lhe deve submeter como docilidade”, expressa em máximas latinas como: intelligo ut credam, credo ut intelligam, ou fides quaerens intellectum (Franca, 1943, p. 136). Ao contrário de constituírem campos opostos, ocorria total afinidade entre a fidelidade à religião e a reflexão rigorosa. A legitimação dessa articulação era calcada na inexistência de incompatibilidade entre argumentação lógica e fé (Nascimento, 1984, p. 38-39). Com a escolástica tomista, mesmo mantendo a distinção entre Filosofia e Teologia, passou-se a buscar o estabelecimento de uma relação profunda entre razão e fé, pela qual a teologia 139 deveria proceder ao estudo do dogma por autoridade (pela fé) e a filosofia pela demonstração científica (pela razão). Santo Tomás entendia que a Filosofia não é a busca da verdade, pois a verdade já foi encontrada pelos homens através da revelação, pela própria palavra de Deus registrada nas Sagradas Escrituras (Idem, p.39). A filosofia cabia, através da prova racional da existência de Deus, preparar o caminho para a teologia, tornando o ato de fé eminentemente racional (Franca, 1943, p. 157). Com a escolástica deu-se uma nova classificação da Filosofia, pela qual eram delimitados três (3) campos de investigação da filosofia: 1) Ontologia - Na classificação de Aristóteles era formado pela metafísica e pela teologia que, com a escolática passam a ser faces de uma mesma e única moeda, no âmbito da Filosofia. Na escolástica englobava a Metafísica, campo do conhecimento da realidade última de todos os seres, ou da essência de toda a realidade; a cosmologia, como estudo da finalidade interna de todos os seres e a composição dos corpos de matéria, todas compostas por uma só forma substancial; a teodicéia considerada como disciplina que deveria buscar a demonstração da existência de Deus que, não sendo suscetível à demonstração a priori, deveria buscar argumentos a posteriori que comprovassem racionalmente Deus. Sua denominação permaneceu por referência à etimologia grega: on = ser, ta onta = os seres + λόγος estudo, tratado, dai ontologia. 2) Gnosiologia – como o estudo do conhecimento, quanto a capacidade humana de conhecer, ou o conhecimento do próprio conhecimento em exercício. Esse campo também foi denominado por referência à etimologia grega: γνῶσις – gnosis + λόγος estudo, tratado = conhecimento, daí gnosiologia. Esse campo foi conformado: pela Lógica – tendo por objeto o estudo das leis gerais do pensamento; pela Teoria do Conhecimento – estuda os procedimentos pelos quais o homem conhece; pelas Ciências propriamente ditas, cada qual com seu objeto próprio de investigação; pela Epistemologia e que estuda o conhecimento do conhecimento científico. 3) Axiologia - Também recebeu uma denominação por referência à etimologia grega: άξιος valor, dignidade + λόγος estudo, tratado - etimologicamente significando "Teoria do valor", "estudo do valor" ou "ciência do valor". Esse campo compreende: a filosofia do bem = a Ética; a filosofia do belo = a Estética; a filosofia do justo e das leis = Direito; a filosofia do bem comum = Política; a filosofia do homem = Antropologia. 140 4.3. Concepções filosóficas na modernidade Esse esforço classificatório dos saberes do homem, só voltou a ser objeto de sistematização na modernidade, acompanhando as transformações do feudalismo, e do domínio da Igreja, para o modo capitalista de produção e a centração no homem e sua capacidade conhecedora e inventiva. O pensamento, como em qualquer outro tempo histórico, adequava-se à produção material da sociedade. Como era grande o desenvolvimento das forças produtivas que marcavam a conformação da manufatura e, depois desta para a grande indústria, todo interesse da ciência estava carreado para a indústria e o progresso técnico. As fortes e aceleradas transformações da produção eram acompanhadas por igual revolução nas idéias e nas representações construídas pelos homens. Em termos do pensamento filosófico e científico, como observa Alexandre Koyré, a transição marcava, por um lado, a destruição do antigo e isso gerava muitas incertezas, “(...) o homem sente-se perdido num mundo que se tornou incerto. Mundo onde nada é seguro. E onde tudo é possível” (Koyré, 1986, p. 25). Era um ambiente propício ao desenvolvimento de novo surto de irracionalismo e de ceticismo, mas também de busca de novas descobertas. Essa longa transição também foi acompanhada por fortes transformações ideológicas que, de modo geral, indicavam a perda da hegemonia da Igreja Católica e de sua matriz filosófica fundamental – a escolástica. Por outro lado, nesse contexto de transição, como aponta Koyré (1986), foram se colocando três alternativas ideológicas e intelectuais para a busca de certezas: a fé, a experiência e a razão. Foi certamente um período de transição, de grandes embates de idéias, de indefinições. Mas também foi um período marcado por profunda crise e que era, ao mesmo tempo, econômica, social, política, religiosa e intelectual. Para Chauí três foram as principais características gerais que a Filosofia Moderna afetaram: 1) o significado na nova ciência da Natureza; 2) os conceitos de causalidade e de substância; 3) a idéia de método ou de mathesis universalis, e a idéia de razão (Chauí, 1984, p. 69). Com relação à nova ciência da natureza, ou Filosofia Natural, esta implicou na passagem do conhecimento especulativo para uma ciência ativa, cujos conhecimentos fossem empírica ou racionalmente verificáveis; na passagem da explicação qualitativa e finalística para uma explicação quantitativa e macanicista, marcada por relações mecânicas 141 de causa e efeito, em conformidade com leis necessárias e universais (Chauí, 1984, pp. 70- 72). Era a destruição da idéia grega de Cosmos, gradativamente substituída pela de Universo - infinito, aberto no tempo e no espaço, sem começo, sem fim, sem limite. A segunda característica diz respeito à idéia de substância e causa. Para a filosofia antiga substância era tomada como a estrutura necessária, como tudo que existe, como “aquilo que é”, como uma pluralidade infinita e indefinida de formas e conteúdos; sentido que foi sendo transformado para o de conexão ou de existência em si e por si mesma. Com a mudança na idéia de substância, também mudou a de causalidade: do sentido filosófico platônico e aristotélico, no qual causa era o princípio de todas as coisas, aglutinadas por Aristóteles em quatro causas - causa material, causa formal, causa eficiente e causa final -, para o sentido moderno de conexão entre duas ou mais coisas, sendo que em virtude dessa conexão é possível univocamente previsível que uma coisa decorra de outra (Abagnano, 1982, pp. 117-18 e 891-893). O conceito de causa passou a ser tomado como algo real que produz um efeito igualmente real; é também a razão que explica as coisas como elas são; e ainda o nexo lógico que articula e vincula necessariamente uma realidade a outra, tornando possível sua existência e o conhecimento sobre elas (Chauí, 1984, p. 75). O terceiro aspecto é a idéia de método como possibilidade do homem chegar a um conhecimento verdadeiro, expressa pela retomada de seu significado como o de mathesis universalis. O sentido etimológico de Método (de methodos, met' hodos = literalmente, "caminho para chegar a um fim"), tomado pela filosofia clássica como modus da obtenção do conhecimento, passou a ser caracterizado no sentido de instrumento que deveria possibilitar ao sujeito representar corretamente as coisas, entendendo suas causas, controlando os passos de investigação realizados e,enfim, permitindo o progresso dos conhecimentos verdadeiros, caminhando do conhecido ao desconhecido. No sentido moderno “o método é sempre considerado matemático” (Chauí, 1984, p. 77), não no sentido de aritmética, ou álgebra ou geometria, mas no sentido de mathesis universalis, retomando o sentido grego da expressão ta mathema, como conhecimento completo, perfeito e inteiramente dominado pela inteligência, conformado por dois elementos fundamentais: a ordem e a medida (Idem, p. 77). A questão do método passou a ser uma das questões essenciais da filosofia e da ciência, a partir da modernidade, sendo que praticamente todos os filósofos (e cientistas) acabaram escrevendo tratados ou densas exposições sobre o método. 142 Esses aspectos foram se constituindo, acompanhando o caleidoscópico embate de idéias, da Reforma à construção de uma Nova Ciência fortemente ancorada no empirismo e no racionalismo, assim, é oportuno entender os esforços feitos na direção de uma nova classificação do conhecimento e da Ciência. A perspectiva escolástica de classificar cedeu lugar ao fazer, ao conhecer para fazer, à razão como instrumento de busca da verdade, ora recuperando uma perspectiva globalizante de conhecimento, ora direcionando-se à fragmentação do conhecimento de uma realidade supostamente também fragmentária. Não se produziu uma classificação única, mas ao menos três grandes proposituras, acompanhando a efervescência e forte desenvolvimento do conhecimento: a empírico-positivista, a fenomenológico-hermenêutiva e a dialética (cuja principal expressão foi a concepção materialista dialética), como já discutivo neste trabalho. Esse foi um longo processo, com diferentes movimentos e momentos de reorganização do esforço compreensivo do homem, tanto em relação ao mundo existente, quanto das relações naturais e sociais estabelecidas pelo homem, bem como a própria existência individual do homem e de seus processos psicológicos e cognitivos. 4.4. Francis Bacon e o Empirismo Um primeiro esboço propriamente moderno de classificação do conjunto do conhecimento foi buscado por Francis Bacon (1561-1626), notabilizado como pai da ciência experimental moderna. Como se sabe, Bacon realizou o que ele mesmo chamou de instauratio magna (grande restauração), pela qual propunha um plano que, partindo do estágio do conhecimento de sua época, empreendesse a apresentação de um novo método para superar e substituir o de Aristóteles. Bacon desejava uma reforma completa do conhecimento, justificada pela crítica à filosofia anterior, de modo especial a Escolástica, considerada estéril por não conduzir a nenhum resultado prático para a vida do homem. Foi esse seu empreendimento mais importante e mais profundo e que está contido em sua obra Novum Organum, ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza, publicada em 1620. Nessa obra, seu entendimento é que o conhecimento científico possibilitaria ampliar o bem-estar do homem, através de seu domínio sobre a natureza, a partir do conhecimento das leis que a regem, pois a natureza não pode ser dominada, senão conhecendo-a. Uma citação do Novum organum bem explicita seu posicionamento: 143 Em primeiro lugar, pedimos aos homens que não presumam ser nosso propósito, à maneira dos antigos gregos, [...] fundar alguma nova seita de filosofia. [...] Mas não nos ocuparemos de tais coisas suscentíveis de opiniões e também inuteis. Ao contrário, a nossa disposição é de investigar a possibilidade de realmente estender os limites do poder ou a grandeza do homem e tornar mais sólidos os seus fundamentos. [...] (Bacon. Novum organum, I, afor. 116, pp. 75-76) Resta-nos dizer algumas palavras acerca da excelência do fim proposto. [...] Mas, como é necessário estimular a indústria dos outros homens... é de toda conveniência fixar certos pontos em suas mentes. Em primeiro lugar, parece-nos que a introdução de notáveis descobertas ocupa de longe o mais alto posto entre as ações humanas. [...] Vale também recordar a força, a virtude e as conseqüências das coisas descobertas... Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação. [...] [...] Mas se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e o domínio do gênero humano sobre o universo, a sua ambição... seria, sem dúvida, a mais sábia e a mais nobre de todas. Pois bem, o império do homem sobre as coisas se apóia unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe. (Idem, afor. 129, pp. 86-88) Bacon tinha um ambicioso plano, composto por seis partes: realizar uma completa classificação das ciências, apresentar os princípios de um novo método para conduzir a razão na busca da verdade, a coleta de dados empíricos, construir uma série de exemplos de aplicação do método, listar as generalizações para mostrar o avanço realizável pelo novo método, finalmente expor a nova filosofia que seria organizada num completo sistema de axiomas (Bacon. Vida e obra. 1988, pp. XI-XII). O plano não foi realizado, mas dele se tem a parte segunda, com a apresentação dos princípios do novo método – e que está exposta no Novum Organum; um esboço referente à divisão das ciências, publicado como De Dignitate et Augmentis Scientiarum; e anotações para uma História Natural, a terceira parte do plano (Idem, p. XII). Para Bacon o conhecimento científico tinha por finalidade servir o homem e dar-lhe poder sobre a natureza; isto é, deveria restabelecer o império do homem sobre as coisas. Para ele, se impunha a busca de uma nova mentalidade científica, somente alcançada através do expurgo de uma série de preconceitos, por Bacon chamados ídolos. Foi no Novum Organum, que Bacon fez sua análise das falsas noções (ídolos), responsáveis 144 pelos erros da ciência. Penso que esse é o aspecto fundamental da filosofia de Bacon que classificou os idolos em quatro grupos, como segue. Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como... poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuIdem o mais que possam. São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresenta-los, lhes assinamos nomes, as saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro. (Bacon. Novum organum, I, afor. 38 e 39, pp. 20-21) Os Idola Tribus (ídolos da tribo) decorrem das deficiências do próprio espírito humano e se revelam pela facilidade com que generalizamos os casos favoráveis, omitindo os desfavoráveis. Foram assim denominados, pois eram considerados como inerentes à natureza humana, próprios da tribo humana. Como exemplos desse tipo referiu-se a Astrologia, a Alquimia e a Cabala. (Idem, afor. 41, p. 21). Os Idola Specus (ídolos da caverna) são aqueles que, além dos advindos da natureza humana, resultam da “caverna ou cova que intercepta e corrompe a luz da natureza”, quer por decorrência do temperamento de cada indivíduo , da educação e da pressão dos costumes, numa clara alusão à alegoria da caverna de Platão. Resultado desses ídolos é sujeitar o espírito humano a múltiplas perturbações, como se decorressem do acaso. (Idem, afor. 42, pp. 21-22). Os Idola Fori (ídolos do foro, ou da vida pública) são aqueles que decorrem das relações entre os homens, de sua associação e de suas relações. Como os homens são vinculados entre si pela linguagem e “as palavras são cunhadas pelo vulgo”, podem levar a fazermos dela um mau uso, bloqueando e desviando o intelecto e levando os homens “a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias” (Idem, afor. 43, p. 22). Os Idola Theatri (ídolos de teatro, ou da autoridade) são assim denominados pela aparência com que são inventadas, como as fábulas