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1 A ASSIM CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA1 Mesmo que se reconheça a coerência da crítica feita por Marx à Economia Política e que não se tenha nenhuma dúvida quanto ao lugar onde nasce o capital, procede perguntar sobre as origens do modo de produção capitalista e do proletariado moderno. “Não foi a riqueza em dinheiro, como tal, que converteu em capitalistas os comerciantes endinheirados dos séculos XV ao XVI” (ROSDOLSKY, 2001, p 232) Transformar trabalhadores independentes em trabalhadores assalariados pressupunha dinheiro acumulado, mas, principalmente, pressupunha o processo histórico de separação dos meios de produção dos produtores. Infere-se, portanto, a necessidade de uma riqueza monetária precedente à acumulação capitalista. Uma acumulação que, diferentemente daquela que nasce na produção, mediante a exploração da mais-valia, seria o ponto de partida do modo de produção capitalista. A essa acumulação Marx chamou de acumulação primitiva. Poder-se-ia perguntar: que importância tem a acumulação primitiva, se a mesma sugere ser um processo datado, cuja função se esgota quando o processo de transformação tenha decomposto em profundidade e extensão a antiga sociedade? Ora, diria o velho Marx: “se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”. Rosdolsky (2001), citando Marx, numa nota de roda-pé2, afirma que a acumulação primitiva está “contida no conceito de capital”. Mas isso ainda não é suficiente para lhe atribuir um caráter que não seja meramente histórico. Ou seja, o que se quer saber é se a acumulação primitiva continua situada na análise econômica do modo de produção capitalista. A história vai demonstrar que o processo de separação que se inaugura com a acumulação primitiva, “aparece depois como processo permanente”. Seja pelo revolucionamento sistemático da tecnologia, seja pela concentração 1 O texto com este título está em O capital de Karl Marx (1984) A presente versão é uma tentativa de facilitar a leitura do texto original, mediante a inserção de alguns comentários que atualizam a discussão. Caso se queira fazer qualquer citação, recomenda-se ir diretamente aos originais de Marx, ou a Rosdolsky (2001), conforme referências apresentadas ao final. 2 “Mas o capital, para vir a ser, pressupõe alguma acumulação, que já está implícita na antítese entre o trabalho objetivado e o trabalho vivo, na vigência dessa antítese. Esta acumulação necessária para o devir do capital e incorporada como um pressuposto, como um momento, no conceito de capital deve ser radicalmente distinguida da acumulação de capital que já chegou a ser capital, para a qual têm de existir capitais previamente” (Grundrisse, p.226; cf. ibid., p. 484). (Nota 42, Cap. 20, p. 551). 2 do capital, seja pelas diferentes divisões do trabalho, esse processo de separação só terá fim com a eliminação do capitalismo. Justifica-se, portanto, o interesse pelo tema. 1. O segredo da acumulação primitiva Existem outras interpretações para a origem da riqueza, as quais, sob diferentes argumentos, tentam justificar porque uns são capitalistas e outros trabalhadores. Para a tradição judaico-cristã, por exemplo, o trabalho seria o castigo imposto aos homens pelo pecado original. Para a Economia clássica a acumulação se explica, por um lado, numa elite laboriosa, inteligente e parcimoniosa e, por outro, em vagabundos que dissipavam tudo o que tinham. Os primeiros acumularam riquezas, os últimos nada tinham, além da força de trabalho para vender. Na história real, a acumulação primitiva é resultado da conquista, da subjugação, da violência, de assassinatos etc. “Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência” (MARX, 1984, p. 262). Sua transformação em capital depende de circunstâncias que se reduzem a duas espécies diferentes de possuidores de mercadorias. De um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar o que possuem, mediante compra de força de trabalho alheia. Do outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho (Idem, ibidem). Por que livres? No duplo sentido: 1) Por um lado, não pertencem diretamente aos meios de produção, como os escravos, os servos etc. 2) Por outro, os meios de produção não lhes pertencem, como pertenciam ao camponês autônomo. Daí, porque livres e soltos, porque desvinculados dos meios de produção, como posse ou como parte deles. A relação capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização de trabalho. A acumulação primitiva, portanto, se traduz no processo histórico de separação entre produtor e meio 3 de produção. Essa separação não apenas se conserva, mas é reproduzida em escala crescente. Por um lado, ao se tornar trabalhador assalariado, o trabalhador se liberta da servidão. (Aspecto supervalorizado pela economia burguesa). Por outro, esses recém-libertos só se tornam vendedores de si mesmos quando todas as garantias de sua existência lhes foram usurpadas. Ora, não deixa de ser uma ascensão para os trabalhadores livrar-se do poder feudal, bem como não se pode negar o caráter progressista do capitalismo, expresso em diversas dimensões da vida individual e socialmente. Contudo, tais aspectos não anulam a sua lógica destrutiva. Quando teria surgido o modo de produção capitalista? “Ainda que os primórdios da produção capitalista já se nos apresentem esporadicamente em algumas cidades mediterrâneas, nos séculos XIV e XV, a era capitalista só data do século XVI” (MARX, 1984, p. 263). Podemos dizer que a acumulação primitiva se caracteriza: - Pelos revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação; - Pelas grandes massas humanas que são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho, como proletários livres como os pássaros (Idem, Ibidem). 2. Expropriação do povo do campo de sua base fundiária A servidão desaparece da Inglaterra no final do século XIV. A partir de então, sobretudo no século XV, a grande maioria da população consistia de camponeses livres, economicamente autônomos. Estes, quando em seu tempo de lazer trabalhavam para os grandes proprietários, recebiam um salário, um terreno arável de 4 acres, além do cottage. Além disso, junto aos camponeses propriamente ditos, podiam usufruir das terras comunais, onde pastava o seu gado e também de onde se retirava lenha e turfa, que lhes serviam de combustíveis. “O prelúdio do revolucionamento, que criou a base do modo de produção capitalista, ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI” (Idem, p. 264). A partir de então, uma massa de 4 proletários livres como os pássaros foi lançada no mercado de trabalho pela dissolução dos séquitos feudais. O próprio senhor feudal teria criado o proletariado, mediante a expulsão violenta do campesinato da base fundiária, sobre a qual possuía o título e a usurpação da terra comunal. A velha nobreza feudal tinha sido devastada pelas guerras feudais; a nova era, para a qual o dinheiro era o poder dos poderes, explica porque o impulso imediato para o capitalismo foi dado na Inglaterra, pelo florescimento da manufatura flamenga de lã e a conseqüente alta dos seus preços. Por isso, a transformação das terras de lavoura em pastagens, explica porque Thomas Morus afirma que os carneiros devoraram os homens. Neste sentido, há diversos registros que ilustram a violência da expulsão dos trabalhadores, para o cercamento das terras. Até o século XVII, a casa do camponês devia ter 4 acres de terra como anexo. E não só as casas do campo. A construção de uma casa num raio de 4 milhas ao redor de Londres estava submetida à mesma exigência. Ainda no século XVIII, haviam queixas quando o cottage do trabalhador agrícola não tinha ao menos 1 ou 2 acres (Idem, p. 266). O processo de expropriação violenta recebe novo impulso, no século XVI, pela Reforma. Em conseqüência dela, muitos bens da Igreja foram roubados; a supressão dos conventos lançou os seus moradores na proletarização; a parte dos dízimos destinada a camponeses empobrecidos foi confiscada. Já não dava mais para ignorar: “O pobre é em toda parte subjugado” (Idem, ibidem). No quadragésimo terceiro ano do reinado da rainha Elisabeth (XVI-XVII), ela reconhece oficialmente o pauperismo, criando o imposto para os pobres. Marx, citando Cobbett, diz que “Os autores dessa lei se envergonhavam de enunciar suas razões e por isso, contra toda a tradição, trouxeram-na ao mundo sem nenhum preâmbulo (exposição de motivos)” (1984, p. 267). Essa lei foi declarada perpétua em 1834, mas depois ganhou uma forma nova e mais dura (Idem, ibidem). No Sul da Inglaterra, vários proprietários fundiários e arrendatários abastados reuniram suas inteligências e formularam 10 perguntas sobre a interpretação correta da Lei dos Pobres e as submeteram a um jurista famoso. Na nona pergunta, propõe-se a construção de uma prisão na paróquia. Ao pobre que não se deixasse encarcerar na prisão estaria 5 negado o auxílio. Quanto aos presos, a sua existência deveria ser anunciada à vizinhança. Os que tivessem interesse em arrendar aqueles pobres deviam apresentar propostas lacradas (espécie de licitação), dando o preço mais baixo pelo qual desejariam tomá-los. Caso o pobre morresse sob a tutela do contratante, o pecado seria dele, pois a paróquia teria cumprido o seu dever para com o pobre. Os representantes desses interesses induziriam a Câmara dos Comuns a propor uma lei que permitisse o encarceramento e o trabalho forçado dos pobres, de modo que aquele que se recusasse não teria direito a nenhum auxílio. Essa providência impediria que as pessoas em condição de miséria pedissem auxílio. Na Escócia, o número de mendigos é estimado em 200 mil. Um republicano propõe no Parlamento escocês que seja restaurada a condição de servidão e tornados escravos todos os que sejam incapazes de prover sua própria subsistência. Diante de tais posições, sabe-se que, no final do século XVIII, já tinham desaparecido todos os vestígios da propriedade comunal dos lavradores (Idem, ibidem). A Revolução Gloriosa (1688), golpe de Estado que consolidou a monarquia constitucional na Inglaterra, baseado num compromisso entre os nobres proprietários fundiários e a burguesia, inaugurou uma era de roubos. Terras do Estado foram presenteadas, vendidas ou anexadas a propriedades privadas. Por isso mesmo, o patrimônio do Estado apropriado de forma fraudulenta e o roubo da Igreja formam a base dos domínios da oligarquia inglesa. Tudo isso foi favorecido pela burguesia, que visava transformar a base fundiária em artigo de comércio, expandir a exploração agrícola e multiplicar a oferta de proletários livres como os pássaros, provenientes do campo (Idem, p. 268). A propriedade comunal – diferente da propriedade do Estado – era uma antiga instituição germânica, que continuou a existir com a cobertura do feudalismo. A violenta usurpação da mesma começa no final do século XV e prossegue no século XVI. Esse processo se efetiva como ato individual de violência, contra o qual a legislação lutou em vão por 150 anos. No século XVIII, o progresso consiste em a própria lei se tornar veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários ainda apliquem os métodos privados. Segundo Marx, este século ainda não havia compreendido “a identidade entre riqueza nacional e pobreza do povo”, o que 6 vai acontecer no século XIX (Idem,p. 269). Sobre o cercamento das terras há uma violenta polêmica na literatura econômica da época. A usurpação da terra comunal e a conseqüente revolução da agricultura tiveram efeitos tão nocivos à classe trabalhadora que, entre 1765 e 1780, o salário caiu abaixo do mínimo e passou a ser complementado pela assistência oficial aos pobres (Idem, p. 270). Marx, diversas vezes, faz referência a um sujeito de nome Sir Éden. Trata-se de Frederick Morton Éden, pioneiro investigador social inglês, que teria sido induzido a investigar a pobreza, segundo o mesmo, tanto por benevolência quanto por curiosidade. Seu livro, Estado dos pobres, publicado em três volumes, em 1797, foi concebido como o documento que oferece uma base factual para o debate sobre o que fazer com os pobres. Pois bem, diante das pilhagens e da violenta expropriação sofridas pelo povo, diz o senhor Éden: “A proporção correta entre terras para lavoura e para criação de gado tinha que ser estabelecida. Ainda no decorrer do século XV e na maior parte do século XV, havia um acre de pastagem para 2, 3 e mesmo 4 acres de terra para lavoura. Em meados do século XVI, a proporção transformou-se em 2 acres de pastagem para 2 acres de lavoura, mais tarde, 2 acres de pastagem para 1 de lavoura, até que finalmente se estabeleceu a proporção correta 3 acres de pastagem para 1 acre de lavoura” (1984, p. 271). A partir do século XIX, desaparece essa conexão entre lavoura e propriedade comunal. Os seres humanos são varridos das propriedades, num chamado processo de clareamento, pelo qual os trabalhadores já não contam com espaço necessário nem para a sua moradia. Há vários relatos de clareações levadas a cabo, no século XIX (As ovelhas comendo os homens). (Idem, p. 271-272). Qualquer violência era justificada pelo desenvolvimento. Por exemplo, os gaélicos (irlandeses) expulsos da terra eram forçados a ir para Glasgow e outras cidades fabris, para serem trabalhadores assalariados. Alguns foram exportados, sob falsas promessas para o Canadá. Fugiram e foram perseguidos por policiais. Vê-se quão livres eram os trabalhadores. Livres por não serem propriedade nem proprietários, mas não livre para decidir sobre o que fazer da sua liberdade. 7 Fica evidente que para além da separação dos meios de produção dos produtores, outros métodos foram utilizados na constituição da acumulação primitiva. Marx sintetiza: O roubo dos bens da Igreja, a fraudulenta alienação dos domínios do Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica3 em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os pássaros (1984, p. 274-275). 3. Legislação sanguinária contra os expropriados desde o final do século XV. Leis para o rebaixamento dos salários O proletariado livre como os pássaros não podia ser absorvido pela manufatura nascente na mesma velocidade em que foi posto no mundo. Igualmente, aquele proletariado não conseguia enquadrar-se facilmente à disciplina da nova condição. Daí, muitos se converteram em esmoleiros, assaltantes, vagabundos, razão pela qual, no final do século XV e durante o século XVI surge uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. “A legislação os tratava como criminosos ‘voluntários’ e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam” (MARX, 1984, p. 275). Os velhos e incapacitados para o trabalho tinham uma licença para mendigar. Para os válidos, açoitamento e cárcere. Estes eram amarrados atrás de um carro e açoitados até sangrar. Depois eram obrigados a jurar que retornariam à terra natal, ou ao lugar onde moraram nos últimos três anos e “se porem ao trabalho”. Se apanhados pela segunda vez, eram novamente açoitados e tinham uma orelha cortada. Na terceira reincidência eram executados (Idem, p. 275). Um estatuto do governo de Eduardo VI (1547) estabelece que se alguém se recusar a trabalhar e for denunciado, deverá tornar-se escravo de 3 Referentes aos clãs constituídos pelos celtas da alta Escócia, cujas incursões nas planícies da baixa Escócia tornava o chefe proprietário titular do solo ocupado. O direito titular de propriedade foi transformado em propriedade privada. Os membros do clã que opuseram resistência foram enxotados com violência direta. 8 quem o denunciou como vadio. O dono tem amplos poderes sobre o escravizado, podendo até matá-lo. Todas as pessoa têm direito de tomar os filhos dos vagabundos e mantê-los como aprendizes, os rapazes até 24 anos, as moças até 20. Se fugirem e forem pegos tornar-se-ão escravos dos mestres. Estes também podem acorrentá-los, açoitá-los e ainda marcá-los com um anel de ferro no pescoço, nos braços ou nas pernas. O estatuto ainda prevê que certos pobres devem ser empregados pela comunidade ou pelos indivíduos que lhes dêem de comer e beber e desejem encontrar trabalho para eles. Outros estatutos semelhantes foram formulados nos governos seguintes. Leis semelhantes também vigoraram na França. No reinado de Luis XVI, em 1777, todo homem com boa saúde de 16 a 60 anos, sem meios de sobrevivência e sem exercer uma profissão, devia ser mandado para as galés (trabalho forçado, acorrentados). Procedimentos análogos foram adotados em outros países europeus. Como se pode ver, a disciplina necessária ao trabalho assalariado foi imposta por leis terroristas, “por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura”(Idem, p. 277). Mas isso ainda era insuficiente. Não bastava ser forçado a vender voluntariamente sua força de trabalho. Era imprescindível que as exigências do modo de produção capitalista fossem reconhecidas como leis naturais. A educação, a tradição e os costumes tratarão disso. Quando plenamente constituído, a própria organização da economia se encarrega de produzir uma superpopulação que quebra toda a resistência do trabalhador. O salário é adequado às necessidades de valorização do capital e “a muda coação econômica sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador” (Idem, p. 277). A partir daí, a violência dos métodos extra-econômicos só é empregada excepcionalmente. Para o curso usual do capitalismo, bastam as leis internas ao modo de produção e as leis que serão formuladas pelo Estado. Este vai regular o salário, conforme os limites convenientes à extração de mais-valia, de modo a manter o necessário grau de dependência do trabalhador. A legislação sobre o trabalho assalariado foi iniciada na Inglaterra, pelo Estatuto dos Trabalhadores, de Eduardo III, em 1349 e reproduzida em outros países, com conteúdos idênticos, sempre buscando prolongar a jornada de trabalho. 9 Um salário máximo foi ditado pelo Estado (Estatuto dos trabalhadores de 1349). E só em 1813, as leis sobre regulação de salários foram abolidas. Os trabalhadores do campo deviam alugar-se por ano, enquanto os da cidade “no mercado aberto”. Era proibido, sob pena de prisão, pagar salários mais altos, porém a punição era maior aos que os recebiam: 10 dias para quem pagasse o salário, 21 para quem recebesse. Um Estatuto de 1360 agravou as penas e até autorizou o patrão a recorrer à coação física, para extorquir trabalho pela tarifa legal de salário. Coalizões de trabalhadores eram consideradas crimes graves, desde o século XIV até 1825. Neste ano, ante a atitude ameaçadora do proletariado, as coalizões caíram em parte, permanecendo alguns resíduos até 1859. Entre avanços e retrocessos, as leis sempre se colocaram a serviço da classe dominante. 4. Gênese dos arrendatários capitalistas A essa altura, pergunta-se de onde se originam os capitalistas, pois o que se pode concluir da expropriação do povo do campo é a criação de grandes proprietários fundiários, bem como diversas formas de arrendatários. No século XIV, há registros de uma prática de arrendamento, conhecida como meeiro. Essa forma desaparece rapidamente na Inglaterra, para dar lugar ao arrendatário propriamente dito. Este valoriza seu capital pelo emprego de trabalhadores assalariados. Com uma parte do mais-produto, o arrendatário paga ao proprietário, como renda da terra, em dinheiro ou in natura. Durante o século XV, o camponês independente e o servo agrícola que trabalha como assalariado e ao mesmo tempo para si mesmo, se enriquecem mediante o seu trabalho, enquanto a situação do arrendatário permanece medíocre. Entre o final do século XV e quase todo o XVI, a revolução agrícola rapidamente enriquece o arrendatário e empobrece o povo do campo. Aqui, vale lembrar a usurpação das terras comunais, o que permite aos arrendatários a multiplicação do gado, que, por sua vez, também fornecia adubo para o cultivo do solo. O enriquecimento dos arrendatários, no século XVI, também se explica pelo tipo de contratos, frequentemente de 99 anos. A queda do valor dos metais nobres e, portanto, do dinheiro, “trouxe ao arrendatário frutos de ouro” 10 (p. 281). Por um lado, reduziu o salário. Por outro, o constante aumento dos preços de cereal, lã, carne, enfim de todos os produtos agrícolas, “inchou o capital monetário do arrendatário, sem sua colaboração, enquanto a renda da terra, que ele tinha que pagar, foi contraída em valores monetários ultrapassados” (Idem, p. 281). Assim, o arrendatário se enriquecia, à custa dos trabalhadores assalariados e do proprietário da terra. Daí porque, nos fins do século XVI, havia “uma classe de ‘arrendatários de capital’ bastante ricos para a época” (p. 281). 5. Repercussão da revolução agrícola sobre a indústria. Criação do mercado interno para o capital industrial Ao mesmo tempo em que ia rareando a população independente e economicamente autônoma do campo, ia se adensando o proletariado industrial. A revolução nas relações de propriedade fundiária foi acompanhada por métodos melhorados de cultura, maior cooperação, concentração dos meios de produção etc.; os assalariados foram obrigados a trabalhar mais intensamente, ao mesmo tempo em que as terras onde trabalhavam para si mesmos se contraíam mais e mais. Com a liberação dos trabalhadores do campo, também foram liberados os alimentos que os mesmos consumiam. Agora, o camponês despojado tinha que adquiri-los mediante o salário ganho do capitalista industrial, seu novo senhor. Os alimentos liberados se transformam em elementos materiais do capital variável. “Assim como os meios de subsistência, foram afetadas também as matérias primas agrícolas nacionais da indústria. Transformaram-se em elemento do capital constante” (Idem, p. 282). Os “liberados” agora trabalham por salário. “O linho tem exatamente o mesmo aspecto que antes. Nenhuma de suas fibras foi mudada; mas uma nova alma social penetrou-lhe no corpo. Ele constitui agora parte do capital constante dos senhores da manufatura” (p. 282). Os fusos e teares, antes disseminados pelo interior, estão agora concentrados em algumas grandes casernas de trabalho, tal como os trabalhadores e como a matéria-prima. E os fusos, os teares e a matéria-prima, de meios de existência independente para fiandeiros e tecelões, transformam-se, de agora em diante, 11 em meios de comandá-los e de extrair trabalho não-pago (MARX, 1984, p. 282- 283). A expropriação e a expulsão do povo do campo liberam, com os trabalhadores, seus meios de subsistência e seu material de trabalho para o capital industrial e ainda criam o mercado interno. Tudo que antes era produzido como valor de uso se torna mercadoria. “A numerosa clientela dispersa, até aqui condicionada por uma porção de produtores pequenos, trabalhando por conta própria, concentra-se agora num grande mercado abastecido pelo capital industrial” (Idem, p. 283). Entretanto, a manufatura não é suficiente para o total apoderamento da produção. Só a indústria conquista para o capital todo o mercado interno (Idem, p. 284). 6. Gênese do capitalista industrial Marx demonstra que a gênese do capitalista industrial foi bem mais incisiva que a do arrendatário, que se deu gradativamente. Embora alguns pequenos mestres corporativos e pequenos artesãos independentes ou até trabalhadores assalariados tenham se transformado em pequenos capitalistas, mediante exploração do trabalho assalariado, essa não é característica predominante. Na Inglaterra, em fins do século XVII, a acumulação primitiva pode ser resumida através de outros métodos, quais sejam: o sistema colonial, o sistema da dívida pública, o moderno sistema tributário e o sistema protecionista. Todos se baseiam na mais brutal violência, amparada pelo Estado, tendo em vista abreviar a transformação do modo feudal de produção em capitalista. “A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova” (MARX, 1984, p. 286). O sistema colonial fez amadurecer como plantas de estufa o comércio e a navegação. (...) Às manufaturas em expansão, as colônias asseguravam mercado de escoamento e uma acumulação potenciada por meio do monopólio do mercado. O tesouro apresado fora da Europa diretamente por pilhagem, 12 escravização e assassinato refluía à metrópole e transformava-se em capital (Idem, p. 287). O sistema colonial desempenhou um papel preponderante, sobretudo no período manufatureiro, em que a supremacia industrial era garantida pela supremacia comercial. A supremacia industrial, ao contrário, traz consigo a supremacia comercial, na medida em que as antigas formas de produção não resistem à indústria. Proclama-se, então, “a extração da mais-valia como objetivo último e único da humanidade” (Idem, p. 288). O sistema colonial com seu comércio marítimo e suas guerras comerciais serviram de estufa para aquecer o sistema de crédito público. A dívida do Estado torna-se uma marca da era capitalista, que adota o credo público como seu credo. Daí que, para a doutrina moderna “um povo torna-se tanto mais rico quanto mais se endivida” (Idem, ibidem). Contudo, Marx chama a nossa atenção para o fato de que “A única parte da assim chamada riqueza nacional que realmente entra na posse coletiva dos povos modernos é – sua dívida de Estado” (Idem, ibidem). A dívida pública, portanto, é uma das alavancas da acumulação primitiva. “Tal como o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de uma força criadora e o transforma, desse modo em capital, sem que se tenha necessidade para tanto de se expor ao esforço e ao perigo inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária” (Idem, ibidem). Graças à dívida pública, prosperam as sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis e a agiotagem, ou em uma palavra, como o diz Marx: “o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia” (Idem, ibidem). Ora, o Estado não gera capital. Como cobrir os juros e os demais pagamentos anuais da dívida? Se, por um lado, o crédito capacita o governo a enfrentar despesas extraordinárias, sem que o contribuinte se sinta responsável por elas, por outro, o dinheiro empregado tem um custo, pelo qual alguém tem que pagar. O Estado tem duas saídas: aumentar os impostos e contrair novas dívidas. Como não cessam os gastos extraordinários, impostos e dívidas tendem a crescer numa progressão automática. Segundo Marx, “A supertributação não é um incidente, porém muito mais um princípio” (Idem, p. 13 289). Evidente que os impostos recaem sobre os meios de subsistência dos trabalhadores e sobre as atividades dos pequenos produtores e ambos tendem a ser destruídos. Mas a eficácia expropriante do capital ainda é fortalecida pelo sistema protecionista, que, segundo Marx, “constitui uma de suas partes integrantes” (Idem, p. 289). “O sistema protecionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de capitalizar os meios nacionais de produção de subsistência, de encurtar violentamente a transição do antigo modo de produção para o moderno” (Idem, p. 290). A história nos mostra que o sistema colonial, a dívida do Estado, a supertributação e o protecionismo se agigantaram com a grande indústria e, sob novas formas prevalecem até os dias atuais. Contudo, a acumulação primitiva ainda guarda atrocidades, como o tráfico de escravos e o roubo e a escravização de crianças, tudo em nome da transição para o desenvolvimento da indústria capitalista. Ou, nas palavras de Marx; Para desatar as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre trabalhadores e condições de trabalho, para converter em dois pólos, os meios de sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres, essa obra de arte da história moderna (Idem, p. 292). 7. Tendência histórica da acumulação capitalista Aqui, a análise de Marx, tanto nos fornece elementos para pensar sobre um fenômeno em voga – a pequena empresa –, como nos faz crer que o capital, inexoravelmente, daria no socialismo. Sobre a pequena empresa, lê-se: “A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é a base da pequena empresa, a pequena empresa uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador” (Idem, p. 292). Deslocada da totalidade do pensamento marxiano, 14 a afirmação seria perfeita para a defesa que se faz, hoje, da pequena empresa, do empreendedorismo. Contudo, logo a seguir, vemos que “ela (a pequena empresa) só floresce, só libera toda a sua energia, só conquista a forma clássica adequada, onde o trabalhador é livre proprietário privado das condições de trabalho manipuladas por ele mesmo, o camponês da terra que cultiva, o artesão dos instrumentos que maneja como um virtuose” (Idem, p. 292-293). Evidentemente, a pequena empresa, sob as determinações do capital está muito longe de guardar essas condições. No capitalismo, A propriedade privada obtida com trabalho próprio, baseada, por assim dizer, na fusão do trabalhador individual isolado e independente com suas condições de trabalho, é deslocado pela propriedade privada capitalista, a qual se baseia na exploração do trabalho alheio, mas formalmente livre (Idem, p. 293). Mas a lógica destrutiva inerente ao capital não atua apenas sobre trabalhadores e pequenas empresas. Tão logo tudo se torna mercadoria – trabalhadores, meios de produção e meios de subsistência – os expropriadores tornam-se expropriados. “Essa expropriação se faz por meio do jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista mata muitos outros” (Idem, p. 293). Na continuidade dessa exposição, observa-se que apesar de ter como referência o século XIX, o que se afirma sintetiza em grande parte o que no século XXI conhecemos como globalização/mundialização da economia, demonstrando quão atualizado é Marx. Paralelamente a essa centralização ou à expropriação de muitos outros capitalistas por poucos, desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala sempre crescente, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho utilizáveis apenas coletivamente, a economia de todos os meios de produção mediante uso como meios de produção de um trabalho social combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista. Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, os quais usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a extensão da 15 miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista (Idem, p. 293-294). Marx percebe que o monopólio do capital torna-se um entrave a si mesmo. Centralização dos meios de produção e socialização do trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis. Diz ele: “Soa a hora final da propriedade privada capitalista” (Idem, p. 294). Pode-se dizer que as privatizações e as muitas fusões entre grandes empresas são emblemáticas da expropriação a expropriadores, mas teria soado a hora final do capitalismo? Teria a utopia revolucionária do autor se sobreposto à objetividade do cientista social? Não há dúvida que a produção capitalista produz a sua própria negação, bem como, é inquestionável que, em termos materiais, pode-se pensar na superação do capitalismo. Mas não bastam apenas condições objetivas, se não há o sujeito revolucionário. Nessa direção Marx vaticina: A transformação da propriedade privada parcelada, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais longo, duro e difícil do que a propriedade capitalista, realmente já fundada numa organização social da produção, em propriedade social. Lá tratou-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo (Idem, p. 294). De fato, se considerarmos as condições materiais criadas pelo desenvolvimento capitalista, bem como a desproporção entre capitalistas e trabalhadores, tendemos a crer que esta transformação é mais fácil que aquela. Contudo, não podemos ignorar aspectos da mesma realidade que interferem negativamente de modo a impedir que as possibilidades se traduzam em ato. A fragmentação da classe trabalhadora, a atitude defensiva de suas representações, o recuo dos movimentos sociais e a imprecisão 16 acerca do sujeito revolucionário não cancelem a utopia, mas distanciam as nossas esperanças. BRAUDEL, F. A. A dinâmica do capitalismo. Rio de janeiro, 1987. MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural, 1984. L. I, Tomo 2. ROSDOLSKY, R. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro, EDUERJ: Contraponto, 2001.