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N.Cham. 351.824.5 L5331 Autor Leite, Roberto Basilone Título Introdução ao direito do consumidor 1111111 11111 11111 11111 11111 11111 11111 iI1I1JJ1l~i1I1 o à>)> ½ 1 PUC MINAS POÇOS BIBLIOTECA ROBERTO BASILONE LEITE Juiz do Trabalho em Santa Catarina. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR Os direitos do consumidor e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor EDITORA LliÍ sÃo PAULO 1 eo~oq ...Aí’l:’ ~ AQ 2 T O 2 1 ~ Dados Internacionais de Catalogaçâo na Publicaçâo (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Leite, Roberto Basilone Introdução ao direito do consumidor os direitos do consumidor e a aplicação do código de defesa do consumidor / Roberto Basilone Leite — São Paulo LTr, 2002. Bibliografia. lSBN 85-361-0166-O 1. Consumidores — Leis e legislação 1. Título. 01-4433 CDU-34:381.6(61) (094.4) 1. Consumidor: Direito 34:3816(81) (094.4) 2. Direito do consumidor 34:381.6(81) (094.4) BIBLIOTECAS DA PUC MINAS Índices para catálogo sistemático, (Cód. 2464.8) ©Todos os direitos reservados ELT~4 EDITORA LTDA. Ruo Apa, 165- CEP 01201-904- Fone (11)3826-2788- Fax (11)3826-9180 São Paulo, SP-Brasil - www.lir.com.br Fevereiro, 2002 À Beatriz e ao pequeno Rafaet com todo o meu amor 1 ÍNDICE Prefácio 13 Introdução 15 1.Evolução do Direito do Consumidor 19 1.1. Em busca do tempo perdido 19 1.2. A Revolução Industrial e o Liberalismo 19 1 .3. A Revolução Tecnológica 22 1.4. O problema do consumo de massa 25 1.5. Vulnerabilidade do consumidor 26 1 .6. O contrato de adesão 27 1.7. Obsolescência dos princípios jurídicos tradicionais 27 1.8. Novos priL4pios jurídicos 29 1 .9. A sociedade de consumo global 30 1.9.1. Odireito norte-americano 30 1.9.2. Organização das Nações Unidas 31 1.9.3. Comunidade Econômica Européia 32 1.9.4. Mercado Comum do Cone Sul 33 1.10. A Evolução da legislação de consumo no Brasil 36 1.10.1. Pré-história do Direito do Consumidor — Até 1980 36 1.10.2. Fase intermediária — 1980-1 988 39 1.10.3. Constituição de 1988— Nasce o Direito do Consumidor 40 2. Noções Introdutórias de Direito do Consumidor 43 2.1. Elementos da relação de consumo 43 2.1.1. Sujeitos da relação de consumo 43 2.1.1.1. Fornecedor 43 2.1.1.1.1. Pessoa física ou jurídica 44 2.1.1.1.2. Entídades sem personalidade jurídica 44 8 ROBERTO BASILONE LEITE 2.1.1.1.3. Produtos comprados no exterior 44 2.1.1.1.4. Fornecedor profissional autônomo 46 2.1.1.1.5. Responsabilidade do comerciante 46 2.1.1.2. Consumidor 49 2.1.1.2.1. Consumidor pessoa jurídica 50 2.1.1.2.2. Pessoa que ganha o produto ou serviço 50 2.1.1.2.3. Produtos e serviços destinados ao insumo 50 2.1.1.2.4. Consumidor coletividade 51 2.1.2. Produto e Serviço 52 2.1.3. Conceito de consumo 53 2.1.4. Conceito de relação 54 2.1.5. Relação de consumo 54 2.2. Código de Defesa do Consumidor 56 2.2.1. Conceito de Código 56 2.2.2. Distinção entre proteção e defesa 57 2.2.3. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor 58 2.2.3.1. Direitos de personalidade 59 2.2.3.2. Natureza principiológica do Código 61 2.2.3.3. Hermenêutica jurídica 62 2.3. Direito do Consumidor 62 2.31. Definição de Direito do Consumidor 62 2.3.2. Autonomia do Direito do Consumidor 63 2.3.3. Finalidade do Direito do Consumidor 64 2.3.4. Natureza jurídica do Direito do Consumidor 65 3. Política Nacional das Relações de Consumo 67 3.1. Princípios do Direito do Consumidor 68 3.1.1. Princípio protecionista 69 3.1.2. Principio da intervenção estatal 71 3.1.2.1. A intervenção do Estado na atividade privada 71 3.1.2.2. Estado liberal de Direito — Séculos XVlll-XIX 73 3.1.2.3. Estado social de Direito — Séculos XIX-XX 74 INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 9 3.1.2.4. O Estado fiscal — Século XX 77 3.1.2.5. Estado democrático e o mínimo social — Século XX 78 3.1.2.5.1. Neoliberalismo 79 3.1.2.5.2. Neoliberalismo no Brasil 82 3.1.2.6.0 Estado da informação — Século XXI 83 3.1.2.6.1. A disseminação do conhecimento 83 3.1.2.6.2. Consumo desmassificado 84 3.1.2.7. Filosofia de proteção ao consumidor 86 3.1.2.7.1. A realidade brasileira 88 3.1.2.8. Proteção ao consumidor 92 3.1.3. Principio democrático 93 3.1.4. Princípio da garantia de adequação 96 3.1.4.1. Principio da ecologia do consumo 97 3.1.4.2. Principio do desestimulo 97 3.1.5. Princípio da boa-fé objetiva 100 3.1.6. Principio da informação 102 3.1.6.1. Principio da veracidade 103 3.1.6.1.1. Publicidade enganosa ou abusiva 104 3.1.6.1.2. Principio da identificabilidade 104 3.1.6.2. Principio da educaçao 106 3.1.7. Principio da efetividade da norma 107 3.1.7.1. Principio da inversão do ônus da prova 108 3.1.7.2. Teoria da desconsideração da personalidade jurídica 109 3.1.7.3. Aplicação extensiva do Código 111 3.1.7.4. Regra da competência mais benéfica 111 3.1.7.5. Regra dos efeitos erga omnese ultra panes 112 3.2. Direitos fundamentais do consumidor 112 3.2.1. Direito à saúde e à segurança 112 3.2.1.1. Direito ao meio ambiente adequado 113 3.2.2. Direito à proteção econômica 115 3.2.2.1. Direito ao consumo 116 10 ROBERTO BASILONE LEITE 3.2.2.2. Direito à liberdade de escolha 116 3.2.2.3. Teoria da imprevisão e inalterabilidade do contrato 116 3.2.2.4. Direito à assistência judiciária gratuita 11 9 3.2.3. Direito á informação e à educação 119 3.2.4. Direito à representação 1 20 3.2.4.1. Convenção coletiva de consumo 120 3.2.5. Direito à reparação de danos 121 4. Tutela dos Direitos do Consumidor 123 4.1. Problemática da tutela 123 4.1.1. Definição e justificação dos direitos do consumidor 123 4.1.2. Efetividade dos direitos do consumidor 125 4.2. Efetividade e democracia 126 4.3. Formas de tutela dos direitos do consumidor 127 4.4. Tutela formal 128 4.4.1. Publicidade 128 4.4.2. Cláusula de prazo em apartado 129 4.4.3. Cláusulas contratuais em destaque 129 4.4.4. Conhecimento prévio do contrato 129 4.4.5. Contrato incompreensivel 130 4.5. Tutela material 130 4.5.1. Cláusulas contratuais obrigatórias 130 4.5.1.1. Impressos informativos 130 4.5.1.2. Comunicado público 130 4.5.1.3. Cláusula de reparação de danos 131 4.5.1.4. Substituição de produto defeituoso 131 4.5.1.5. Conteúdo liquido incorreto 131 4.5.1.6. Solidariedade dos fornecedores 131 4.5.1.7. Peças de reposição originais ou adequadas 131 4.5.1.8. Nome e endereço do fabricante 132 4.5.1.9. Orçamento discriminado 132 INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 11 4.5.2. Cláusulas contratuais vedadas 132 4.5.3. Responsabilidade 133 4.5.3.1. Obrigação 133 4.5.3.2. Responsabilidade 137 4.5.3.3. Espécies de responsabilidade 1 37 4.5.3.4. Responsabilidade contratual e responsabilidade ex- tracontratual 1 38 4.5.3.5. lmperfeições do produto ou serviço 138 4.5.3.5.1. Vícios do produto ou serviço 139 4.5.3.5.2. Defeitos do produto ou serviço 139 4.5.3.5.2.1. Conceito de defeito 139 4.5.3.5.2.2. Classificação dos defeitos 139 4.5.3.5.2.3. Fato do produto ou serviço 140 4.5.3.6. Elementos da responsabilidade 141 4.5.3.7. Responsabilidade subjetiva, objetiva e por culpa pre- sumida 141 4.5.3.8. Responsabilidade civil na relação de consumo 142 4.5.3.8.1. Terceiro prejudicado — Bystander 144 4.5.3.8.2. Responsabilidade por acidente de consumo 144 4.5.3.9. Responsabilidade na importação de produtos 144 4.6. Tutela instrumental 145 4.6.1. Tutela instrumental administrativa 145 4.6.1.1. Sistema Nacional de Defesa do Consumidor 145 4.6.1.2. Sanções administrativas 146 4.6.1.3. Medidas educativas 148 4.6.1.4. Agência nacional do consumidor e da concorrência 148 4.6.2. Tutela Instrumental Penal 150 4.6.2.1. Espécies de crime contra o consumidor 151 4.6.2.2. Processo no crime contra o consumidor 152 4.6.2.2.1. Ação pública 152 4.6.2.2.2. Assistentes do Ministério Público 152 4.6.2.2.3. Co-autoria — Gerentes e administradores 152 12 ROBERTO BASILONE LEITE 4.6.2.2.4. Penas cabíveis 153 4.6.2.2.5. Cumulação de penas 153 4.6.2.2.6. Circunstâncias agravantes do crime 153 4.6.3. Tutela instrumental jurisdicional cível 153 4.6.3.1. Direito Processual Civil do Consumidor 153 4.6.3.2. Medidas judiciais civeís 154 4.6.3.3. Ação individual de responsabilidade civil 1 55 4.6.3.4. Ação declaratória de cláusula contratual 156 4.6.3.5. Tutela dos interesses coletivos, difusos e homogé- neos 156 4.6.3.5.1. Ação coletiva 158 4.6.3.5.2. Ação civil pública 160 4.6.3,5.3. Ação de responsabilidade do fornecedor 161 4.6.3.5.4. Ação preventiva mandamental 161 4.6.3.5.5. Ação popular 161 4.6.3.5.6. Habeas data 162 4.6.3.6. Mandado de segurança 162 4.6.3.7. Ação cautelar 162 5.AVezdoPovo 163 Bibliografia 169 PREFÁCIO Louvo o desenhista exato: Maneje lápis, carvão Ou pena, trace retrato Ou paisagem, é sua mão Segura, certeira, leve: Nunca vi tão leve assim. (Manuel Bandeira, in “Estrela da Vida Inteira”) A excelência de uma obra também se autodefine por suas refe- rências bibliográficas. Embora aqui se esteja fazendo uma apresentação às avessas desta “Introdução ao Direito do Consumidor, o que se propõe o autor Roberto Basilone Leite, Juiz do Trabalho, mais do que no sumário, encontra-se qualificado na bibliografia de suma relevância em diferentes campos do conhecimento humano, extrapolando a esfera do eminentemente legal, numa ótica holistica da indagação científico-jurídica. Com efeito, o que se cognomina “Direito do Consumidor” tem seu surgimento como categoria jurídica distinta, deflagrada a partir da Carta Magna de 1988, malgrado a previsão do instituto dos vícios redibitórios no secular Código Civil e outras leis esparsas editadas entre 1940 e 1960 em proteção à saúde, à economia e ás comunicações. A publicação do Código de Defesa do Consumidor há pouco mais de uma década representa um marco histórico na luta pelo respeito aos direitos individuais, como aqueles consolidados na relação de consumo, a ser desenvolvida dentro de padrões éticos mínimos. É na construção desses valores, produto cultural de uma época, em que se insere o mun- do jurídico, que o Direito do Consumidor estabelece proficuo manancial ‘vara a elaboração de uma teoria dos direitos de personalidade’, consoan- te assertiva do autor. Ao princípio privatista da autonomia de vontades se opõe uma nova teoria fundada a partir da responsabilidade civil objetiva e da consagra- ção dos interesses e direitos difusos, relativizando os efeitos dos contra- tos em prol da prevalência de interesses coletivos privados. 14 ROBERTO BASILONE LEITE É certo que o surgimento dessa legislação assecuratória dos direi- tos do consumidor, que o autor objetiva comentar, marca um estágio de desenvolvimento de nossa sociedade e representa um passo fundamen- tal na proteção do individuo contra o sistema, mas sobretudo se concre- tiza como um ingente instrumento à consagração do Estado Democráti- co de Direito. Trata-se de uma obra propedêutica, em que o autor, Roberto Basi- lone Leite, aprofunda o perfil sócio-político-econômico da realidade pá- tria, numa cosmovisão do Direito do Consumidor em sua breve, porém revolucionária, existência. Apesar de seu intitulado caráter introdutório, o leitor vislumbrará uma investigação científico-jurídica de alta reflexão, completa e exauriente. Essa qualificação à obra em questão é decorrência do extenso conhecimento multicultural de seu autor, de sua profunda formação hu- manística e de sua reconhecida aptidão para as letras jurídicas, já reve- ladas ao público em “Manual de Direito Sumular do Trabalho’, trazido a lume por esta mesma editora em 1999, e por prêmios atribuidos a suas obras jurídicas em âmbito nacional. Em suma, tenho a honra de prefaciar esta “Introdução ao Direito do Consumidor, da Editora LTr, redigida por um virtuose da literatura jurídica pátria, em tema atual e método didático, obra reveladora da pes- quisa científica e que enriquece o universo jurídico. Ligia Maria Teixeíra Gouvéa Juíza Vice-Presidente do TRT de santa catarina e Professora da Universidade do Sul de santa catarina. INTRODUÇÃO A presente “Introdução ao Direito do Consumidor’ se destina a quem pretenda estabelecer um primeiro contato com esse ramo do direito, haja vista a sistematização e a delimitação metodológica nela adotada, por meio da qual se procura fornecer ao leitor uma visão panorâmica da discipli- na e a conceituação básica dos seus institutos e princípios fundamentais. Considerando que o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor entrou em vigor em 1991, busca-se, em certos momentos, realizar um balanço dos efeitos por ele produzidos na realidade socioeconômica e jurídica do País desde então. A formação de um sistema cultural verdadeiramente brasileiro inicia- se em meados do século XIX, com o Indianismo romântico de Gonçalves Diast1~. Logo depois, influenciada pelas vanguardas européias do início do século XX, a intelligentzia brasileira assume ostensivamente a tarefa de definir o perfil real do País e as características peculiares de nosso povo. Ao longo do século XX, desenvolve-se no Brasil um penetrante e valioso trabalho de pesquisa historiográfica e sociológica: a escola mo- dernista dos anos 1920 e 1930, o pós-modernismo a partir dos anos 1940 e as vanguardas culturais dos anos 1960 revelam todas as variadas — e muitas vezes paradoxais — facetas da realidade nacional. Graças a esse esforço, foi possível ver o que é o Brasil. Agora é hora de descobrir o que o Brasil quer vira ser Esse novo projeto nacio- nal desafiador só se tornou possível agora, que se tem conhecimento da situação fática a partir da qual ele deverá ser desenvolvido, dos instru- mentos e potenciais disponíveis, bem como das fraquezas que deverão ser equacionadas. A sociedade brasileira está na fase inicial desse trabalho empírico de definição de seu projeto de nação autônoma, a partir de elementos (1)0 movimento brasileiro denominado Indianismo inicia-se em 1846, com a publicação dos poemas líricos do escritor maranhense Antônio Gonçalves Dias (1 832-1 864). Massaud Moisés o declara o “primeiro poeta autenticamente brasileiro, na sensibilida- de e na temática’ (MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 8’ ed. rev. e aum. São Paulo: cultrix, 1980, p. 108). 16 ROBERTO BASILONE LEITE herdados de quase todos os povos do mundo. Os atores sociais, em todas as áreas do conhecimento, ainda que inconscientemente, empe- nham-se em delinear os contornos claros e precisos do sistema social, econômico, político, jurídico e ético almejado, extraido de um paradigma do Estado ideal latente na mente coletiva. Há muito se vem estudando o papel da vontade coletiva, distinta da vontade individual, na formulação dos destinos do povo, e a sua influên- cia decisiva na evolução da civilização humana. A propósito disso, o filósofo contemporâneo Pierre Lévy afirma que “o ideal da inteligência coletiva implica a valorização técnica, econômica, jurídica e humana de uma inteligência distribuída por toda parte, a fim de desencadear uma dinâmica positiva de reconhecimento e mobilização das competências”.t21 Mas que relação direta essa questão — a questão da transcendên- cia e da conquista do autoconhecimento por parte da nação brasileira — guarda com o Direito do Consumidor? A resposta é a seguinte: uma profunda relação. O Código de Defe- sa do Consumidor, editado em 11 de setembro de 1990 e vigente desde 15 de março de 1991, é um marco desse novo projeto, pois representa uma de suas primeiras manifestações concretas no Brasil, no campo jurídico. Não se limitou o Código a suscitar a discussão teórica acerca da escala de valores éticos que deve reger as relações sociais na área do consumo — o que já seria louvável—, mas pôs em prática um progra- ma sistemático de ação cooperativa entre Estado, organizações não- governamentais e iniciativa privada, de cunho administrativo-normativo, com a criação de um novo microssistema interdisciplinar de relações humanas. A estrutura hiperestática criada pelo Código do Consumidor permi- te ao estudioso a avaliação: primeiro, da capacidade de adaptação do cidadão brasileiro (em especial, o empresário) a uma nova escala de padrões de comportamento; segundo, do conjunto de princípios compo- nentes dessa nova escala de valores, distinguindo entre os que são as- similáveis e os que tendem a ser rejeitados pela coletividade. Ao normatizar novos princípios de comportamento consumeristico, o Código desencadeou um processo de mudança social do tipo que Celso Furtado chama de “projeto de autotransformação social”. Segundo (2) LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1998. p. 30. INTRODUÇ~O AO DIREITO DO CONSUMIDOR 17 o renomado economista, o método de elaboração de todo projeto social deve prever a participação direta dos próprios cidadãos, aos quais cabe, por um lado, identificar as características positivas da realidade, que devem ser estimuladas, e os aspectos negativos, passíveis de modifica- ção, e, por outro lado, apontar os meios de atuação direta da comunida- de no sentido da implementação das transformações necessárias, Sustenta ele que “o ponto de partida do estudo do desenvolvimento deveria ser, não a taxa de investimento, ou a relação produto-capital, ou a dimensão do mercado, mas sim o horizonte de aspirações da coletivi- dade em questão, considerada esta não abstratamente, mas como um conjunto de grupos ou estratos com perfil definido, assim como o siste- ma de decisões que prevalece nessa sociedade e os fatores imitantes que escapam ao poder interno de decisão. O desenvolvimento é a trans- formação do conjunto das estruturas de uma sociedade em função de objetivos que se propõe alcançar essa sociedade. O primeiro problema é definir o campo de opções que se abre à coletividade. Em seguida se apresenta o problema de identificar entre essas opções aquelas que se apresentam como possibilidade política, isto é, que, correspondendo a aspirações da coletividade, podem ser levadas à prática por forças polí- ticas capazes de exercer um papel hegemônico no sistema de podeC.t~ O estudo dos efeitos sociais da Lei do Consumidor pode revelar aspectos fundamentais quanto ao modo de valoração ética das relações de consumo pelo cidadão brasileiro, suas tendências e, acima de tudo, planos de ação e posturas capazes de concretizar as condições desejá- veis e eliminar as indesejáveis. Apesar do tempo relativamente curto decorrido desde a sua edi- ção, é possível constatar que o Código de Defesa do Consumidor atuou como mecanismo propulsor de uma verdadeira revolução dos costumes nacionais ainda em curso, sobretudo no setor da economia. Cabe reco- nhecer que os estímulos impostos pelo Código no sentido da melhoria da qualidade dos produtos e serviços reforçam tendências contemporâ- neas resultantes da concorrência internacional. Dessa forma, um número cada vez maior de empresas implanta serviços profissionalizados de atendimento ao consumidor; outras insti- tuem a figura do ombudsman, que atua como representante do consumi- dor dentro da empresa; certas empresas passaram a incluir Conselhos (3) FURTADo, celso. Vmprojetoparaoarasi/.4ced. Rio de Janeiro: Saga, 1968, p. 19-20. 18 ROBERTO BA5ILONE LEITE de Consumidores em sua estrutura administrativa, principalmente para a definição de políticas mercadológicas; os produtos são constantemente aperfeiçoados e tornados mais atraentes e funcionais, em níveis até mesmo superiores àqueles exigidos pelo Código; cresce o número de pesquisas de satisfação de clientes. A cultura brasileira guarda traços da moral escravocrata feudal, que acarreta a hierarquização das classes sociais e, com isso, a falta de respeito mútuo entre os cidadãos. O Código do Consumidor, na me- dida em que impõe certos padrões de comportamento ético, vem contri- buindo para a mudança dessa mentalidade, a afirmação da cidadania nacional e a garantia da efetividade do acesso à Justiça. Em última análise, ao ajudar a impulsionar o processo de transfor- mação social e de definição do mosaico da nova sociedade de consumo brasileira, o Código concorre para a propagação das metas de lealdade e eficácia na produção e distribuição de bens e serviços. 18 ROBERTO BASILONE LEITE de Consumidores em sua estrutura administrativa, principalmente para a definição de políticas mercadolágicas; os produtos são constantemente aperfeiçoados e tornados mais atraentes e funcionais, em níveis até mesmo superiores àqueles exigidos pelo Código; cresce o número de pesquisas de satisfação de clientes. A cultura brasileira guarda traços da moral escravocrata feudal, que acarreta a hierarquização das classes sociais e, com isso, a falta de respeito mútuo entre os cidadãos. O Código do Consumidor, na me- dida em que impõe certos padrões de comportamento ético, vem contri- buindo para a mudança dessa mentalidade, a afirmação da cidadania nacional e a garantia da efetividade do acesso à Justiça. Em última análise, ao ajudar a impulsionar o processo de transfor- mação social e de definição do mosaico da nova sociedade de consumo brasileira, o Código concorre para a propagação das metas de lealdade e eficácia na produção e distribuição de bens e serviços. j PUC MINAS POÇOS BIBLIOTECA 1. EVOLUÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR 1.1. EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO O progresso material da humanidade ocorrido nos últimos dois séculos superou tudo o que se havia criado em milhões de anos. Surgido há três milhões e quinhentos mil anos, o homem levou mais de dois milhões de anos para inventar o machado de punho, que se tornou a sua principal ferramenta e arma durante mais de um milhão de anos. Só muito tempo depois, há 35 mil anos, foi que criou o arco e flecha. Passaram-se mais trinta mil anos até que o homem inventasse a roda, o arado, a vela de iluminação e erigisse a primeira grande civiliza- ção do planeta, na Mesopotâmia. O arco e flecha e seus congêneres deram lugar às armas de fogo há trezentos anos. O arado foi substituido pelo trator, e as veias, por lâmpadas elétricas, em meados do século XX. Enquanto nos primeiros três milhões e quinhentos mil anos de exis- tência a espécie humana foi do machado de punho ao arado, nos últimos 150 anos ela caminhou vertiginosamente da máquina a vapor aos satéli- tes artificiais, aos computadores e à clonagem genética. 1.2. A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E O LIBERALISMO Uma fantástica revolução tecnológica estava sendo engendrada desde o século XIV, no coração da Europa. Durante toda a Idade Média e boa parte da Idade Moderna, os povos europeus conviveram com gover- nos absolutistas e não raro despóticos. Ao absolutismo dos monarcas se agregava a imensa influência da Igreja Católica para compor núcleos de força que ditavam as normas e moldavam a realidade social da época. Os cidadãos praticamente não tinham meios de influir na administração do Estado, muito menos de fiscalizá-la ou impor-lhe algum controle. Em regra, também não Lhes era permitido defender seus pontos de vista livremente, sobretudo quando estes divergissem da opinião dos gover- nantes ou dos sacerdotes. Muitos foram condenados à morte pelo sim- ples fato de defenderem suas idéias. ‘‘1t JV. 1 A & 3 1 ..~ 1 .1 Si ti 20 ROBERTO BASILONE LEITE Como reação ao absolutismo estatal e religioso, inicia-se no norte da Itália, em fins do século XIV, o Renascimento, que resgata o huma- nismo dos antigos filósofos g regos pré-helenísticos, sobretudo Sócrates (470-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristételes (364-322 a.C.). Pre- nunciando o liberalismo, o humanismo sustenta que o homem vem ao mundo não apenas para servir a Deus, mas para desenvolver livremente as suas possibilidades e desfrutar a vida. A revolta aos poucos vai se acentuando. Em meados do século XVII a reação contra o absolutismo torna-se mais acirrada. Dando conti- nuidade ao desenvolvimento das novas idéias liberais, o filósofo holan- dês Baruch Spinoza (1632-1677) expõe em 1660 sua teoria sobre a na- tureza e a ética, em que defende de forma enérgica a liberdade de opi- nião e a tolerância religiosa. Embora considere as leis da natureza a causa interna de tudo o que acontece, ele encontra no ser humano uma pequena margem de liberdade. Essa liberdade consiste, para ele, na condição que um ho- mem tem de desenvolver todas as possibilidades que lhe são inerentes. Assim, apesar de ter de se sujeitar às leis da natureza, um homem pode se considerar livre a partir do momento em que consiga desenvolver as possibilidades a ele inerentes, sem encontrar a obstrução das circuns- tâncias políticas, religiosas, econômicas ou sociais. Pouco tempo depois, em 1690,0 filósofo inglês John Locke (1632- 1704), em seu ‘Ensaio sobre o entendimento humano’, reconhece a exis- tência de um direito natural, em função do qual o ser humano já traz consigo, ao nascer, certas diretrizes e conceitos éticos válidos para to- das as pessoas. Locke é o primeiro filósofo a esboçar o princípio da divisão dos poderes — que será mais tarde formulado por Montesquieu (1689-1755)—, por meio do qual prega a adoção do Estado de direito para se evitar a tirania. A par de defender a liberdade de opinião e de crença, Locke é o primeiro grande filósofo moderno a propugnar pela igualdade de direitos entre os sexos, sob o argumento de que a posição de inferioridade das mulheres fora engendrada pelos homens. Graças a Locke, restaura-se o método empírico aristotélico, que conduzirá à futura doutrina positivista. Oempirismo filosófico — compre- endido como o método da busca prática e experimental das soluções para os problemas humanos — estrutura-se ao longo do século XVIII, sustentado no fenomenismo do filósofo escocês David 1-lume (1711-1776) e no imaterialismo do irlandês George Berkeley (1665-1753). Por trás dos fenômenos existe uma realidade que deve ser analisada e apreendida: INTRODIJÇAOAO DIREITO DO coNsuMiDoR 21 Hume extrai de Bekerley os fundamentos para reduzir até mesmo as formas geométricas às suas fontes sensíveis, ou seja, à sua realidade interna, ontológica.141 Com isso se estabelece o marco inicial e a base da ciência contemporânea e da Revolução Industrial. Os filósofos do empirismo inglês — Locke, 1-lume e Berkeley — fornecemos alicerces para o lluminismo francês, em meados do século XVIII. Os pensadores iluministas, dentre os quais se destacam Voltaire (1694-1778), Montes quieu (1689-1755) e Rousseau (1712-1778), tratam de dar sentido político à doutrina liberal inglesa e passam a pregar a rebeldia contra o autoritarismo há muito arraigado às tradições da nobre- za e da Igreja européia. Não demora muito para que a revolta acenda o estopim das Revoluções Norte-Americana e Francesa. As idéias liberais, como se depreende, surgiram com o intuito de eliminar o absolutismo do Estado e ampliar os espaços da cidada- nia. Nasceram na Inglaterra do século XVII com os filósofos empiris- tas, desenvolveram-se na França do século XVIII com os iluministas, propagaram-se pela Europa e pelo mundo, inspiraram a Independên- cia norte-americana em 1776 e triunfaram com a Revolução Francesa, em 1789. Devemos aos liberais importantes conquistas na área do direito, tais como o reconhecimento da existência de direitos e liberdades fun- damentais do homem e a adoção de constituições políticas por quase todos os países do mundo.15t Cada ser traz em si a causa de sua própria ruína: com o passar do tempo, o liberalismo se radicaliza. O projeto iluminista de retorno à natu- reza transforma-se, aos poucos, num complexo sistema de devastação da natureza. A reforma religiosa renascentista prega que o homem não existe para servir a Deus, mas sim para servir-se de Sua criação, a natureza, a fim de conquistar uma situação de bem-estar social; essa idéia vai sendo deturpada e dá causa a um processo de degradação ecológica e devastação da vida no planeta. (4) HEINEMANN, Fritz. A filosofia no século XX. Tradução e prefácio de Alexandre F. Morujão. ø ed. Lisboa: Fundação calouste Gulbenkian. 1993, p. 210. (5) O historiador do direito John Gilissen discorre sobre os efeitos produzidos pelas revoluções liberais norte-americana e francesa na teoria do direito constitucional ocidental em sua magistral Introdução histórica ao direito, publicada em português pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, em tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaista Malheiros, confira-se a sua 2~ edição, de 1995, p. 413-441. 22 ROBERTO BA5ILONE LEITE Assim, do liberalismo nasce o monstro do capitalismo selvagem, que a humanidade terá de destruir ou domesticar, se quiser evitar a sua própria extinção. 1.3. A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA Ao longo do século XIX, o novo método científico empírico produz seus frutos. Em 1825 é inaugurada a primeira estrada de ferro do mundo, de Stockton a Darlington, na Escócia. Em 1838 é construído o primeiro navio de ferro, o Great Britain. Em 1856, Bessemerdescobre o aço. O primeiro poço petrolífero do mundo é aberto na Pensilvãnia em 1859 e em 1870 começa a se erguer o grande truste americano dos Rockefeller Quase todas as grandes invenções da época surgem na Inglaterra, como corolário direto do pensamento empirista. Há umas poucas exce- ções, como a primeira lâmpada elétrica, instalada em 1875 na Gare du Nord, em Paris. O império inglês se expande: o Canadá é tomado aos franceses; a Índia é anexada; a China é submetida; Suez, o Egito e o Oriente Médio são controlados; a Inglaterra domina a Birmãnia e grande parte do terri- tório africano. Entre 1874 e 1906,08 ingleses dominam um quarto das terras do planeta e trinta por cento da população mundial. Em 1895, contudo, surge um concorrente para ameaçar o poderio britânico: a metalurgia inglesa é ultrapassada pela alemã. Daí surge a disputa que constitui o embrião da primeira guerra mundial>61 Inicia-se o século XX e surge o automóvel moderno: o Peugeot 1901. Na década de 19400 homem domina a fusão nuclear e em 1951 são postos à venda os primeiros computadores: o Ferranti Mark 1, na Inglaterra, e o Univac, nos Estados Unidos. A fantástica evolução tecnológica iniciada no século XIX acarreta profundas transformações na realidade econômica, política e social do mundo. Essa nova realidade, por sua vez, impõe a mudança da legisla- ção vigente, que se torna ultrapassada e inadequada para solucionar os conflitos interpessoais. (6) H. O. Wells narra em detalhes o processo de concorrência política entre Alemanha e Inglaterra que acabou por culminar na Primeira Grande Guerra. lo WELLS, H. G. História universal. Tradução de Anisio Teixeira. V ed. São Paulo: cia. Ed. Nacional, 1966, v. 9, p. 41 2-464. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 23 O jusfilósofo Norberto Bobbio adverte que “o elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para realização dos mesmos, das transformações tecnológicas, etc. Direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviola- ble, foram submetidos a radicais limitações nas declarações contempo- râneas; direitos que as declarações do século XVIII nem sequer mencio- navam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações”>7~ Foram surgindo, assim, novas disciplinas jurídicas. O computador e a lnternet propiciaram o aparecimento do direito da informática ou direi- to cibernético; a consciência da devastação ecológica do planeta fez nascer o direito ambiental; as experiências genéticas e a clonagem de seres vivos deram origem à bioética e ao biodireito. Dentre as graves mudanças que condicionam o mundo atual, des- taca-se a que talvez seja a mais sensível no cotidiano do povo: a trans- formação de toda a população do planeta em um staff de consumidores. Hoje praticamente não existem comunidades auto-suficientes ou sus- tentadas por economia de escambo, o que era relativamente comum há trezentos anos. Cada um dos seis bilhões de habitantes do planeta é um consumidor — ao menos em potencial, já que 15% dessa população encontra-se abaixo da linha da miséria e não tem poder de consumo. Todos, ademais, tendem a pensarcomo consumidores. Ressalva- das raras exceções, o cidadão médio,18’ em condições psicológicas nor- mais, decidirá sempre consumir o produto importado de melhor quali- dade e menor preço, mesmo sabendo que, ao deixar de adquirir o pro- duto nacional, estará contribuindo para aumentar o desemprego e des- (7) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: campus, 1992, p. 18. (8) O cidadão médio a que nos referimos corresponde à Ourchschnittsperson, ou seja, á pessoa média do direito germânico, que os governos dos países desenvolvi- dos consideram hoje o principal fator estratégico de todo programa político. Acerca do tema, o iurista Frik Jayme declarou, numa conferência realizada em 5 de junho de 1997 em Osnabrück, na Alemanha, que “nenhuma ordem jurídica pode sobreviver sem a figura criada da pessoa média, são as expectativas e visões de mundo desta figura irreal que ajudam a interpretar e concretizar os conceitos de direito, os conceitos indeterminados e as cláusulas gerais (JAYME, Erik. “visões para um teoria pés- moderna do direito comparado. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribu- nais, v. 68, n. 759, jan. 1999, p. 33). 24 ROBERTO BASILONE LEITE prestigiar a indústria de seu país. Nas relações negociais, inclusive nas de consumo, a ideologia do consumidor normalmente suplanta as de- mais ideologias da pessoa média. É interessante notar que o mesmo indivíduo, quando se coloca na posição de consumidor, adota a ideologia do consumidor, mas se no minuto seguinte tiver de assumir a postura de trabalhador assalariado, ele alterará imediatamente seu discurso e passará a defender a ideolo- gia social do operariado. Em outros termos, ao pleitear a obtenção de direitos trabalhistas, o individuo não quer saber que impacto isso acarretará nos preços e na capacidade de concorrência do produto ou serviço fornecido por seu empregador; contudo, quando se põe na condição de consumidor, o mesmo individuo pugna por produtos baratos e de boa qualidade, sem se interessar por conhecer os custos sociais e trabalhistas implicados no processo produtivo e mercantil que viabilizou a colocação no mercado de produtos importados, a preços às vezes extremamente baixos.19’ Essa contradição de ideologias, por estar latente no íntimo de cada trabalhador-consumidor, tende, a longo prazo, a criar sérios descom- passos macroeconómicos. A sucessão de conflitos decorrentes de tal estrutura ideológica paradoxal reflete, no fundo, um ponto de atrito entre o direito do trabalho (ideologia de proteção ao trabalhador) e o direito do consumidor (ideologia de proteção ao consumidor), e está decerto na raiz dos fatos que provocaram a derrocada do comunismo no mundo. Pois bem, diante da constatação de que todos são consumidores em potencial e, mais do que isso, estão ética e sociologicamente integrados no cenário econômico da sociedade de consumo, pode-se calcular a im- portância do estudo e da regulamentação desse agente econômico — o consumidor—, bem como das relações e fenômenos a ele relacionados. Praticamente todos os setores da vida atual são, direta ou indireta- mente, sustentados por relações de consumo de bens ou de serviços: o lazer, o estudo, a saúde, a moradia, que engloba a locação de imóveis e a construção civil, a alimentação, etc. Os interesses do consumidor deixaram de ter apenas conotação individual e passaram a representar interesse público. A qualidade e a (9) Tivemos a oportunidade de travar com o magistrado Sebastião Tavares Pereira um debate sobre a questão da ideologia do consumidor, que contribuiu para a formu- lação dessa idéia. INTRODIJÇAOAO DIREITO DOIDONSUMIDOR 25 segurança dos produtos e serviços colocados no mercado de massa, a garantia de adequação dos mesmos, a idoneidade do fornecedor, a con- fiabilidade da propaganda são questões que interessam não apenas ao individuo que adquire este ou aquele bem, mas a toda a coletividade, que deseja reduzir os riscos inerentes às relações de consumo. 1.4.0 PROBLEMA DO CONSUMO DE MASSA Até meados do século XVIII, consumidor e fornecedor encontra- vam-se em condições de igualdade. A atividade produtiva era artesanal e envolvia apenas os membros da família ou alguns poucos operários. As relações de consumo eram singelas e modestas: o consumidor final, por via de regra, adquiria as mercadorias diretamente do produtor. Os bens eram manufaturados de forma quase individualizada para cada consumidor, o que contribuía para diminuir sensivelmente a margem de vícios ou defeitos. Dessa forma, o produtor conhecia o produto que colocava no merca- do e o consumidor, de sua parte, sabia a procedência do que comprava. Com a Revolução Industrial e a explosão demográfica, houve nítida separação entre as atividades de produção e de comercialização. A de- manda aumentou incrivelmente e gerou o chamado consumo de massa, ou consumo em larga escala. A demanda passou a ser tão grande que os produtores se viram obrigados a dividir o processo produtivo em fases distintas e sucessivas, atribuidas a diferentes empresas industriais. A mercancia, pelas mesmas razões, também se setorizou: gran- des atacadistas adquirem os produtos da indústria para vendê-los, em larga escala, aos atacadistas regionais e locais, que, por sua vez, os revendem aos comerciantes varejistas, numa rede de negócios que en- volve vários niveis de revenda. A propaganda se desprendeu da atividade puramente comercial e criou seu próprio campo de atuação, com empresas especificas em cada ramo publicitário. Como resultado, o consumidor não conhece mais o produtor da mercadoria que adquire. Normalmente, nem mesmo tem acesso ao con- teúdo da embalagem, que vem lacrada; os defeitos só serão constata- dos depois da aquisição. 26 ROBERTO BA5ILONE LEITE O produtor, por sua vez, perdeu o controle sobre os bens que produz, pois a distribuição, comercialização e propaganda ficam a car- go dos importadores, comerciantes e publicitários. O controle de quali- dade do produtor fica, com isso, limitado ao término da fase do processo produtivo que a ele compete. A prestação de serviços tornou-se impessoal e ínformatizada. O consumidor não mais contrata determinada pessoa para o serviço, como ocorria antes. Os serviços são em parte realizados pelo próprio consu- midor, em sistemas self seâvice, muitas vezes por métodos mecânicos ou eletrônicos. Quando o serviço envolve terceiros, o consumidor não conhece nem tem como escolher as pessoas que a empresa contratada enviará para realizar o serviço. Diante disso, tornou-se imprescindível a existência de normas des- tinadac a organizar esse complexo processo econômico, que começa no extrator da matéria-prima, passa pelos produtores primários e secun- dários e atravessa a rede mercantil-financeira-publicitária, até chegar ao consumidor final. A organização desse processo, com a definição das responsabilidades atribuíveis a cada participante, é necessária, não só para a proteção dos consumidores, mas para a própria viabilidade e so- brevivência do sistema. 1.5 VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR Na relação de consumo, sobretudo no consumo em larga escala, o consumidor tende a ser a parte mais vulnerável — o que não significa ser ele economicamente mais fraco, ou hipossuficiente. O consumidor pode até ser mais rico do que o fornecedor, porém, ao participar de uma relação de consumo, ele está em situação de desvantagem. Pela própria natureza dessa relação, o fornecedor ocupa nela posição estra- tegicamente dominante. Ainda que o consumidor seja economicamente mais forte — o que, diga-se de passagem, não é comum—, praticamente nada poderá fazer no sentido de lesar o fornecedor. Este, ao contrário, terá condições de lesar o consumidor de várias maneiras: pelo ocultamento de detalhes técnicos ou de vícios e defeitos do produto, pela propaganda de caracte- rfsticas irreais do produto, pela cobrança de preço incorreto, pela entre- ga de mercadoria diferente da adquirida, pela instalação incorreta, pela demora ou inocorrência da entrega do produto adquirido, pela prestação INTRODUÇAO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 27 de serviços de qualidade insatisfatória. Ao se defrontar com episódios dessa ordem, pouco poderá o consumidor fazer para obrigar o fornece- dor a solucionar o problema se não existir uma legislação rigorosa e eficaz a ampará-lo. 1.6.0 CONTRATO DE ADESÃO O consumo em larga escala deu origem ao contrato de adesão, cujas cláusulas são padronizadas. O consumidor limita-se a aderir a ele, sem possibilidade de discutir suas cláusulas. Seria infactível, por exemplo, num contrato de seguro, cada contratante querer discutir-lhe as cláusulas, porquanto os cálculos logísticos, a partir dos quais são fixadas as taxas mensais e prêmios, consideram a divisão equânime dos custos e riscos entre os participantes do plano. Não é possível ado- tar-se taxas ou condições diferenciadas para cada segurado. Assim, por um lado, o contrato de adesão é imprescindível para as relações de consumo de massa contemporâneas, por ser a melhor for- ma conhecida de concretizar a contratação em larga escala. Por outro lado, no entanto, esse tipo de contrato acentua os riscos para o consi - midor, o qual fica à mercê das condições previamente impostas pelo fornecedor. Com efeito, acentua-se nesse tipo de contrato a fragilidade do con- tratante-consumidor, pois é ele quem tem de aceitar as cláusulas im- postas pelo contratante-fornecedor. A circunstância de ser o contrato- padrão redigido unilateralmente pelo fornecedor tende, via de regra, a estimulá-lo ao abuso do poder, que acaba se revelando pela estipulação de cláusulas excessivamente vantajosas para ele e injustificadamente prejudiciais ao consumidor. A doutrina civil contratual denomina leoninas as cláusulas excessi- vamente vantajosas ao fornecedor, e vexatórias, as excessivamente gra- vosas ao consumidor. A Comunidade Econômica Européia as chama genericamente de injustas, e a lei brasileira, de abusivas. 1.7. OBSOLESCÊNCIA DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS TRADICIONAIS O instituto do contrato sempre foi regido por princípios herdados do direito romano. Destacam-se dentre eles três principais: o principio 28 ROBERTO BASILONE LEITE da autonomia da vontade, o do respeito absoluto ao contratado ou da força obrigatória do contrato,~’0~ conhecido pela expressão pacta sunt setvanda, e o da responsabilidade fundada na culpa do agente>1” Os três princípios ostentam o mesmo objetivo: assegurar o cumpri- menLo do contrato nos exatos termos constantes de suas cláusulas, como forma de resguardar a segurança dos negócios juridicos. Em última aná- lise, pretende-se, por meio desses princípios, sublimar o ideal luminista da igualdade, pela negação de privilégios a qualquer uma das partes. A máxima pacta sunt sen’anda determina que os pactos devem ser respeitados. Para viabilizar esse objetivo, a lei assegura a liberdade da pessoa de formular ou não o contrato: trata-se do principio da autono- mia da vontade e da liberdade de contratação. Dessa forma, no periodo anterior à publicação do Código do Con- sumidor, desde que houvesse ocorrido um dano ao consumidor em de- corrência de defeito do produto ou dos serviços prestados, o ressarci- mento dependfa da comprovação de ter o fornecedor agido culposamente. A nova realidade econômica, todavia, tornou obsoletos esses anti- gos princípios romanistas. A autonomia da vontade do consumidor é hoje uma falácia. Que àutonomia real de vontade possui o consumidor que, por necessitar de um automóvel para o trabalho, assina um contra- to de leasing ou de consórcio com a empresa representante de uma indústria multinacional automobilística? Que escolha tem ele ao contra- tar com poderosissimas empresas fornecedoras de serviços de telefonia ou de energia elétrica, quase sempre monopólicas? As opções deixadas ao consumidor de renunciará aquisição de um automóvel, de uma linha telefônica ou de abrir mão do uso de energia elétrica são meramente ficcionais, pois estes e outros bens, antes qualificados como supérfluos, hoje representam necessidades básicas do cidadão. Não cabe aqui descer à análise sociológica dessa questão. Os exemplos mencionados são bastantes para demonstrar a carência de que se ressentia a sociedade de princípios jurídicos mais modernos, capazes de acomodar a nova realidade das relações de consumo. Os antigos princípios de cunho liberal acabavam intensificando ain- da mais a situação de vulnerabilidade a que fora conduzido de facto o (10) GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 24. (11) DIAS, Jos~ de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10’ cd. 4’ tir. rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 1, p. 43. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 29 consumidor na sociedade massificada, na medida em que os fornecedo- res se serviam de tais princípios para eludir sua responsabilidade em relação aos produtos e serviços colocados no mercado. A teoria da cul- pa, por si só, permitia ao fornecedor esquivar-se de sua responsabilida- de até o ponto de tornar-se praticamente irresponsável pelos danos cau- sados ao consumidor. Segundo o professor Cavalieri Filho, o “ideário liberal individualista era hostil ao consumidor; erguia-se como verdadeiro dique à proteção dos seus interesses”>12) A deficiência da legislação civil e comercial originária da primeira metade do século XX para a proteção do consumidor estimulava a proli- feração, no meio empresarial, de práticas abusivas, formação de cartéis e contratos leoninos. O empresário assumia, dessa forma, uma condi- ção de evidente preeminência: tinha à sua disposição um mercado con- sumidor de massa, imenso e passível de manipulação pela via publicitá- ria; nenhuma norma legal o impedia de eliminar as condições de efetiva concorrência de mercado por meio de cartéis e acordos informais mo- nopólicos com os demais produtores. A par de tudo isso, tinha ainda à sua disposição meios jurídicos para evitar sua responsabilidade pelos produtos e serviços fornecidos. 1.8. NOVOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS A realidade levou o Direito a estabelecer novos princípios e nor- mas, capazes de proporcionar maior equilíbrio jurídico à relação entre fornecedor e consumidor, sem impedir a livre formulação de contratos de massa e sem embaraçar o mercado de consumo. Era necessário fixar parâmetros e limitações ao poder do fornece- dor. E não seriam suficientes meras alterações superficiais na legisla- ção ordinária, senão a revisão dos próprios princípios orientadores da teoria geral dos contratos e das obrigações, os quais formavam um manto protetor sob o qual se ocultava o poderoso fornecedor capitalista. Desenvolveram-se, assim, novos princípios jurídicos, aplicáveis às relações de consumo e tendentes a proteger o consumidor. Os princípi- os da autonomia da vontade e da liberdade de contratação foram substi- tuidos pelos princípios da vulnerabilidade do consumidor e da interven- (12) CAvALIERI FILHO, Sérgio. ‘O direito do consumidor no limiar do século XXI. Cidadania e Justiça — Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, Rio de Janeiro. anoS, n. 7, 2~ sem. 1999, p. 22. 30 ROBERTO BASILONE LEITE ção estatal; a cláusula pacta suflÊ servanda deu lugar à rebus sic stan- tibus; a responsabilidade deixou de ser fundada na prova da culpa do fornecedor, e assim por diante. 1.9. A SOCIEDADE DE CONSUMO GLOBAL A relevância das relações de consumo alcançou o patamar interna- cional. Com a expansão e integração do mercado mundial, elas tiveram de passar a ser objeto de regulamentação por parte de quase todos os países, bem como dos organismos plurinacionais que representam os grandes blocos económicos. Todas essas normas internacionais apresentam, como caracterís- tica comum, a tendência de estabelecer um rol de direitos fundamentais do consumidor e fomentar a criação de instrumentos destinados à sua proteção. Noutros termos, a inclinação protecionista é uma constante nas legislações das diversas regiões do planeta. Convém empreender uma breve recapitulação da evolução das nor- mas de consumo no âmbito internacional. t9.1. O Direito Nade-Americano O direito norte-americano foi o primeiro a acolher, já no século XIX, os modernos princípios de defesa do consumidor, com certeza porque os Estados Unidos tiveram um processo muito rápido de modernização tecnológica. Fundamentou-se nos princípios protetivos a decisão prola- tada pela Suprema Corte americana no caso Thomas versusWinches- ter, de 1852, segundo relata Gabriel Saad.~131 Houve nova decisão, no mesmo sentido, em 1960, no caso Green- man versusYuba Power Products, que fomentou vigorosa discussão em torno do tema. Pouco tempo depois, o presidente John Kennedy, em discurso proferido ao Congresso dos Estados Unidos a 15 de março de 1962, ressaltou a necessidade de que os governos passassem a reco- nhecer os direitos básicos dos consumidores e a implantar políticas estatais capazes de garanti-los. Esse discurso teve tamanha repercus- são que a Organização das Nações Unidas instituiu o 15 de março como o dia internacional do consumidor. (13) SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor 4 ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 1999, p. 38. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 31 1.9.2. Organização das Nações Unidas A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou, em l6de abril de 1985, a Resolução n. 39/248, que, pela compilação de normas esparsas anteriores,t14~ tratou da proteção ao consumidor. O principio fundamental que orienta a Resolução n. 39/248 consta do item 2 de seu Anexo intitulado Diretrizes para a Proteção do Consu- midor, expresso nos seguintes termos: “Governments should develop, strengthen or maintain a strong consu- mer protection policy, taking into account the guidelines set out below. In so doing, each Government must set its own priorities for the protec- tion of consumers in accordance with the economic and social cir- cunstances of the country, and the needs of its population, and bearing in mmd the costs and benefits of proposed measures”.~15t O item 3 do mesmo Anexo estabelece os princípios da proteção ao consumidor, in verbis: “lhe Legitimate needs which the guidelines are intended to meet are the following: a) The protection of consumers from hazards to their health and safety; b) lhe promotion and protection of the economic interests of consumers; c) Access of consumers to adequate infor- mation to enable them to make informed choices according to indivi- dual wishes and needs; d) Consumer education; e) Availability of effec- tive consumer redress; f) Freedom to form consumer and other rele- vant groups or organizations and the opportunity of such organizations to present their views in decision-making processes affecting them.t16~ (14) A própria Resolução n. 39/248 indica os seguintes antecedentes: a) a Resolução n. 1981/62 do conselho Econômico e Social da ONU, de 23 de julho de 1981, em que o Conselho requisitava à Secretaria-Geral estudos com vistas à elaboração de um sistema de regras gerais para a proteção do consumidor, levando em conta particular- mente as necessidades dos países em desenvolvimento: b) a Resolução n. 38/147 da Assembléia Geral, deiS de dezembro de 1983; c) a Resolução n. 1984/63 do Conse- lho Econômico e Social, de 26 de julho de 1984. (15) “Os governos devem desenvolver, fortalecer ou manter vigorosa política de proteção ao consumidor, levando em conta as diretrizes definidas pela própria socie- dade. Para tanto, cada Governo deve fixar suas próprias prioridades para a proteção dos consumidores, de acordo com as circunstâncias econômicas e sociais do país e as necessidades de sua população, tendo em mente os custos e benefícios das medidas propostas”. (16) “As necessidades legítimas que as normas de cada país devem ter em vista são as seguintes: a) a proteção dos consumidores contra os perigos à sua saúde e segurança; b) a promoção e proteção aos interesses econômicos dos consumidores; 32 ROBERTO BASILONE LEITE 1.9.3. Comunidade Econômica Européia No âmbito da Comunidade Econômica Européia, o primeiro instru- mento oficial a tratar do tema foi a Carta de Proteção ao Consumidor, aprovada pela Resolução n. 543, de 17 de maio de 1973, que trouxe a definição de consumidor e algumas regras gerais de proteção. Em 14 de abril de 1975,o Conselho da Comunidade Européia edi- tou nova resolução, por meio da qual instituiu o programa preliminar de política de proteção e informação dos consumidores, alicerçado em Cin- co categorias básicas de direitos: a) direito à proteção da saúde e da segurança; b) direito à proteção dos interesses econômicos; c) direito à reparação de prejuízos; d) direito à informação e educação; e) direito à representação junto aos órgãos de decisão. O segundo programa de proteção do consumidor foi instituído aos 18 de maio de 1981. A primeira Diretiva sobre a responsabilidade pelo fato do produto defeituoso surgiu em 25 de julho de 1985. O Tratado Constitutivo de la Comunidad Econômica Europea, fir- mado em Roma a 25 de março de 1957, consiste no Código normativo fundamental daquela Comunidade. Nele foram implementadas alterações, por ocasião do Tratado de la Union Europea firmado em Maastricht a 7 de fevereiro dei 992.(1~ Consideradas as referidas alterações, o Tratado de Roma prevê hoje algumas regras relativas ao consumidor. O art. 92.1 do Tratado autoriza os Estados-membros a concede- rem auxílios de caráter social a consumidores individuais, desde que isso não afete as relações comerciais entre os países-membros. O art. 100.A.3 propõe a uniformização das legislações dos países- membros em matéria de proteção ao consumidor, tomando por base o nível de proteção mais elevado. c) o acesso do consumidor à informação adequada, que o esclareça o suficiente para que ele possa fazer com segurança suas escolhas, de acordo com seus desejos e necessidades; d) a educação do consumidor; e) a criação de meios para a efetiva reparação de danos sofridos pelo consumidor; f) a liberdade para a formação de grupos ou organizações de consumidores e outros pertinentes, e a criação de canais por meio dos quais essas organizações possam participar dos processos de decisão que os afetem”. (17) GARcIA, Ricardo Alonso. Tratado de Ia Union Europea. Y ed. Madrid; civitas. 1994, p. 19. (Biblioteca de legislaciõn; v. 68). INTRODUÇAOAO DIREITO DO CONSUMIDOR 33 O art. 1 29.A. 1-3 esclarece que o alto nível de proteção recomenda- do depende da observância, por parte de cada pais-membro, das seguin- tes regras: a) adoção de medidas internas tendentes à uniformização da legis- lação com a dos diversos países-membros; b) ações Concretas que apóiem e complementem a política levada a cabo pelos Estados-membros a fim de proteger a saúde, a segurança e os interesses econômicos dos consumidores, e de garantir-lhes infor- mações adequadas; c) a fixação de normas protetivas pelo Conselho da Europa não im- pede que cada Estado-membro adote medidas mais protecionistas, des- de que sejam compatíveis com os demais princípios do Tratado de Roma. 1.9.4. Mercado Comum da Cone Sul O Mercado Comum do Cone Sul da América Latina, mais Conheci- do como Mercosul, foi criado pelo Tratado de Assunção, firmado em 26 de março de 1991 pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Por meio da harmonização das legislações dos países integrantes do bloco, pretendem os povos do Cone Sul implantar, por etapas, a união aduaneira e a livre circulação de bens e serviços no âmbito dos Estados- membros, bem como uma política comercial coordenada e uniforme em face de outros Estados. O projeto se sustenta sobre as chamadas “cinco liberdades~~. de empreendimento, de concorrência, de circulação de bens e serviços, de circulação de trabalhadores e de circulação do capital. A legislação interna de cada país-membro terá de ser gradativa- mente adaptada para que se consiga a uniformização necessária. A li- berdade de circulação de bens e serviços está diretamente vinculada às leis de defesa do consumidor, já que estas implicam certas limitações e controles à livre circulação. Ocorre que a legislação brasileira de proteção ao consumidor é bem mais rigorosa e moderna do que as leis esparsas existentes na Argentina1181 (18) ARGENTINA. Ley 24.999, de 1 de Julho de 1998. Modifica a Ley 24240/93, de proteção ao consumidor (Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 27, p. 239-240, jul./set. 1998). 34 ROBERTO BASILONE LEITE e no Paraguai1191. O Uruguai, por sua vez, nem mesmo possui legislação sobre o assunto. Os países cujas exigências legais de qualidade são menos rigoro- sas vislumbram entraves para a comercialização no Brasil de seus pro- dutos, que precisam se adaptar às exigências da lei brasileira, ao passo que em seus próprios países estão sujeitos a exigências menores. Como o Tratado de Assunção consagra o princípio da reciprocida- de dos direitos e deveres de cada Estado-membro, essa questão terá de ser solucionada seja pela amenização da lei brasileira, seja pela aprova- ção de leis de defesa do consumidor mais severas nos países vizinhos. Não existe ainda, no âmbito do Mercosul, nenhuma norma regula- mentadora das relações de consumo. O Comitê Técnico n. 7, da Comis- são de Comércio do Mercosul, elaborou o Projeto de Protocolo de Defe- sa do Consumidor, consistente num código unificado destinado a vigorar em todos os países-membros. O projeto foi aprovado pelo Ministério da Justiça do Brasil em 29 de novembro de 1997, mas acabou sendo rejei- tado pela própria Comissão de Comércio do Mercosul em 6 de dezembro de 1997, sobretudo porque impedia que os países-membros fixassem normas nacionais de proteção mais severas. A jurista Cl.iudia Lima Marques aponta certas imperfeições no pro- jeto, destacadamente o fato de ser por demais minucioso, quando deve- ria prever apenas “normas básicas, que assegurem um patamar mínimo comum nos quatro países, mas que permitam a manutenção das nor- mas nacionais mais severas de proteção da saúde, segurança e interes- ses econômicos dos consumidores”.1201 A questão continua a suscitar acirrada polêmica, o que é compre- ensível e até salutar, pois a implantação de um mercado comum dura- douro depende de planejamento sério e minucioso. Nas Jornadas lnternacionales y Ser Congreso Argentino de Dere- cho dei Consumidor, realizado em Mar dei Plata nos dias 13 e 14 de março de 1998, definiram-se os seguintes objetivos: (19) PARAGUAI. Ley 1.334, de 27 de outubro de 1998. Proteção ao consumidor (Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 30, p. 247- 255, abr./jun. 1999). (20) MARQUES, Cláudia Lima. “Mercosut como legislador em matéria de direito do consumidor: crítica ao projeto de protocolo de defesa do consumidor’. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 26, abr./jun. 1998, p. 75. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 35 a) ‘la integración econômica se compiementa con un proceso de ar- monización normativa, que inciuye ias diversas cuestiones de ia de- fensa dei consumidor”; b) la armonización normativa de ia defensa dei consumidor se realiza en dirección ai más alto nivel de protección”. Esta última conclusão — no sentido de que a harmonização nor- mativa no Mercosul deve buscar o mais alto nível de proteção — resultou justamente de discussões em torno do Código Brasileiro do Consumi- dor, enquanto instrumento que destoa das legislações dos demais paí- ses-membros, menos exigentes. Augusto Mano Morello e Gabriel Sf1- glitz, ao redigirem o texto das conclusões das Jornadas de Mar dei Plata, registraram o referido debate, nos seguintes termos: “Especificamente en eI âmbito ei Mercosur, ese resultado deberia ser inexorable, pues ias condiciones para ia concreción de aqueiias dos pautas constituyen un imperativo emergente dei propio Tratado de Asunción. En efecto: ei artículo 1 ro. exige ia armonización de ias legisiaciones de los paí- ses miembros; y ei Preâmbulo establece ei propósito de mejorar ias condiciones de vida de sus habitantes. Por ende, si corresponde armonizar y ai mismo tiempo mejorar ias condiciones de vida, entonces la armonizaciôn debe reaiizarse en ei más alto nivel de protección. incluso se ha sostenido que esa armonización hacia ei mayor grado de protección es un recaudo insoslayabie para ia propia integración económica y iíbre círcuiación de mercaderías. Porque si existen dife- rentes niveles de protección en cada uno de los Estados miembros (y tampoco rigen normas comunitarias de elevada tutela), entonces, los consumidores de determinado país podrian encontrarse mejor prote- gidos a través de su sistema nacional que a partir de ias normas supra-nacionaies. Lamentablemente y a pesar de dichas regias básicas e imperativos, ias lnstituciones dei Mercosur no cumplieron aun ei objetivo de ia armonizaciôn normativa para ia defensa dei consumidor, en lo que representa uno entre varios refiejos de ia debiiidad institucional y jurí- dica de nuestra integración, que transita hoy como un proceso casi exclusivamente político y económico. De modo que aqueilos previsibles resultados positivos para los con- sumidores de la Aegión se encuentran todavia pendientes. 36 ROBERTO BASILONE LEITE E incluso, sobre ia base de ciertas regias incorporadas en ei proyecto de Protocolo — insistimos —, campea (en Brasil y Argentina) ei temor que, no sóio se eluda ei imperativo de buscar ei más elevado nivel de protección para los consumidores de ia Región, sino que se legue a reducir ei emergente e los sistemas nacionaies. Estas dificuítades y retrocesos son ei resultado de una concepción política que pretende excluir ai Derecho y ai Estado de ia reguiación dei mercado y de ia defensa de los consumidores y usuarios. Una concepción que ai consumidor ie promete un futuro mejor. e reclama paciencia, confiar en ei Mercado. Las Jornadas de Derecho dei Consumidor en Mar dei Plata fortalecie- ron otro compromiso, por un país distinto, donde en ia defensa dei consumidor impere ei Derecho”. O único dispositivo do Tratado de Assunção destinado, de certa forma, a proteger o consumidor é absolutamente genérico e encontra-se no art. 2~ do Anexo, que, ao tratar do comércio internacional, assegura “a proteção da vida e da saúde das pessoas. Como se vê, a legislação do Mercosui ainda carece de normas que regulamentem as relações de consumo e os direitos dos consumidores. Conquanto não exista no âmbito do Mercosui nenhuma norma que sistematize a defesa do consumidor, nota-se uma forte tendência social no sentido da adoção de um regulamento interpartes nos moldes do Código Brasileiro do Consumidor , que assegure o aclamado alto nível de proteção— tendência que, por sinal, já chegou a acarretar a rejeição do projeto do Comitê Técnico do Mercosui em dezembro de 1997, fato mencionado há pouco. 1.10. A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO DE CONSUMO NO BRASIL 1.104. Pré -História do Direito do Consumidor—Até 1980 Até fins dos anos 1970, as normas destinadas à tutela do consu- midor brasileiro eram esparsas e pouco eficazes. Desde a época colonial, as Ordenações Filipinas, promulgadas pela Coroa portuguesa em 1603 e vigentes no Brasil até a proclamação da independência em 1822, tipificavam como crime a adulteração do con- teúdo ou do peso da mercadoria vendida (Livro V, Títulos LVII e LVIII). As ações ali previstas tinham sua raiz no antigo direito romano, nas figuras INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 37 da adio redhibitoria, destinada à rejeição da coisa viciada ou defeituosa, e da actio aestimatoria ou adio quanti minoris, usada para reclamar o abatimento do preço da coisa parcialmente perfeita.I21~ A primeira norma elaborada no Brasil a tratar da proteção ao con- sumidor foi o Código Civil de 1916, que o fez em dois principais tópicos: a) o Capítulo V do Titulo IV (Dos Contratos) do Livro III (Do Direito das Obrigações), ao regular os vícios redibitórios capazes de depreciar o bem adquirido, reeditou a acuo redhibitoria (ai. 1.101) e a actio quariti minoris (art. 1.105); b) o Capítulo Vi do mesmo Titulo dispôs sobre a evicção (ais. 1.107 a 1.117), isto é, sobre a responsabilidade que tem o alienante perante o aiquirente do bem, no caso de perda da coisa objeto do negócio. O Código Penal, editado por Getúlio Vargas a 7 de dezembro de 1940, traz diversas regras destinadas a punir os crimes contra o consu- midor, dentre eles a duplicata simulada (ai. 172), fraudes praticadas no comércio (art. 175), emissão irregular de conhecimento wa rra nt (ai. 177), esbulho possessório (ai. 178), concorrência desleal (ai. 196), corrupção, falsificação ou alteração de substância alimentícia ou medicinal (ais. 272 e 273) e invólucro nu recipiente com falsa indicação (art. 275). Na segunda metade do século XX surgem novas leis versando so- bre o tema. A primeira delas é a Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951, conhecida como Lei de Economia Popular, que dispõe sobre os crimes contra a economia popular. Nos anos 1960 são editadas cinco normas importantes. A Lei Delegada n. 4, de 26 de setembro de 1962, autoriza a União a intervir no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo, podendo inclusive desapropriar produtos para distribui-los aos consumidores. A Lei n. 4.137, dela de dezembro de 1962, previa meios de repres- são ao abuso do poder econômico. Foi revogada pela Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, a chamada Lei Antitruste, que dispõe sobre a preven- ção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. A Lei da Reforma Bancária — Lei n. 4.495, de 31 de dezembro de 1964—tratada política monetária e das instituições bancárias e credi- (21) BEvILÃ0UA, Clávis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Rio, 1969, v. 2, p. 215-220. 38 ROBERTO BASILONE LEITE ticias. Em alguns dispositivos reprime a prática de atos perniciosos à economia popular. Essa lei criou o Conselho Monetário Nacional, órgão responsável pela fiscalização da atividade das instituições privadas com- ponentes do sistema financeiro nacional. Logo em seguida, o mercado de capitais foi regulamentado pela Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965, que fixa limitações e punições às empresas contraventoras. Enfim, em 1969 foi criada pelo Governo Federal a Superintendência Nacional do Abastecimento — SUNAB, através do Decreto-lei n. 422, de 20 de janeiro de 1969, que alterou a Lei Delegada n. 4/62. O principal órgão de proteção do consumidor era, até os anos 1980, o Prodecon — Programa de Defesa do Consumidor, ligado ao Poder Executivo, hoje chamado Sistecom. Além dele, havia outros ór- gãos federais, estaduais e regionais desprovidos de poder punitivo. Di- ante da inexistência de um con~unto sistemático de leis destinado a ordenar e regular as relações c e consumo, os órgãos responsáveis desenvolviam atividade meramente consultiva. Afora isso, limitavam-se a encaminhar as queixas dos consumidores às Coordenadorias de Consu- mo do Ministério Público. Dessas queixas, apenas algumas encontra- vam amparo na legislação de então e davam ensejo a procedimentos judiciais. Apesar de toda a parafernáli2 legislativa até aqui historiada, o con- sumidor não estava devidamente amparado, por várias razões. Em primeiro lugar, porque todas as leis mencionadas abordam matéria ora de natureza criminal, ora marcadamente contábil e econômi- ca. Estas últimas, de difícil compreensão para o leigo em ciências con- tábeis, têm sua aplicação restrita aos litígios que envolvem entidades financeiras. Pouca utilidade apresentam para salvaguardar os interes- ses imediatos dos consumidores em geral, no tocante à qualidade e quantidade dos produtos e serviços adquiridos. A profusa legislação criminal, oor sua vez, mostrava-se igualmente ineficaz na área cível e comercial e aqui nos deparamos como que era a segunda causa do abandono do setor. As leis então existentes, sobretudo as leis penais, não eram devidamente articuladas a um siste- ma legal específico de proteção ao consumo, o que criava embaraços à sua aplicação. Em outras palavras, não existia nesse setor um sistema de normas ordenado e coeso, que permitisse a extração de princípios e regras básicas fundadores de uma estrutura jurídica. INTRODuÇÃO AO DIREITO DO cONSuMIDoR 39 Era comum a propaganda enganosa, como a de remédios milagrosos para a calvície e a impotência sexual, de gomas de mascar que impediam a cárie dentária e de ofertas de trabalho autônomo na área de vendas capa- zes de levar o interessado à riqueza em pouco tempo. Os comerciantes habitualmente recusavam-se a trocar mercadorias vendidas com defeito. Posto que, via de regra, os infratores acabavam impunes, nada estimulava o fornecedor a melhorar a qualidade dos produtos e serviços oferecidos. Na verdade, diante da desordem e das lacunas da legisla- ção, os fornecedores encontravam inúmeros meios para se evadirem de sua responsabilidade. Em terceiro lugar, sobressaía o problema cultural. O regime capita- lista tende a estimular no cidadão o individualismo — que Fábio Konder Gomparato chama de ‘individualismo anárquico’(22~ — e a busca irres- ponsável e irrefreável da vantagem pessoal, sem se importar com os respectivos custos sociais. Esse comportamento inibe a capacidade de organização social e o aparecimento de entidades de defesa dos inte- resses coletivos. Para completar o quadro, inexistia qualquer programa de cunho didático, fosse estatal ou privado, destinado ao esclarecimento dos ci- dadãos a respeito da seus direitos enquanto consumidores. A conjugação desses fatores — falta de legislação adequada e articulada, mentalidade individualista e ausência de projetos didáticos — resultava no quase completo desamparo do consumidor. 1.10.2. Fase Intermediária — 1980-1988 Os anos 1980 marcam a expansão do regime capitalista no Brasil, agora apresentado sob a ótica de uma abordagem menos radical, que incorpora ao sistema liberal elementos de cunho social: é o avanço do neoliberalismo. O sistema capitalista, como é sabido, fundamenta-se no consumo; por isso, quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais cres- cem e se intricam as relações de consumo. Junto com o crescimento do consumo amplia-se também a cons- ciência política dos consumidores quanto aos seus direitos. Como se (22) cOMPARATO, Fábio konder. “A proteção do consumidor na constituição brasilei- ra de 1988”. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 80, p. 66-76, out.Idez. 1990. ROBERTO BASILONE LEITE poderia esperar, a discussão do tema chega ao primeiro escalão dos poderes da República e começa a produzir resultados. Em 5 de maio de 1980 é instituido o Conar — Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária, com a função de impedir a propa- ganda fraudulenta. No mesmo ano, são instalados os sistemas estadu- ais de proteção ao consumidor, tais como o Procon de São Paulo, o Prodecon do Rio Grande do Sul e o Decon de Santa Catarina. Cria-se o Juizado Especial de Pequenas Causas, a 7 de novembro de 1984, com competência para julgar os litígios relativos à defesa do consumidor. Com isso se procura facilitar o acesso do consumidor ao Poder Judiciário e a iniciativa, de fato, tem resultados satisfatórios — apesar da já referida carência de leis substantivas. Alguns meses oepois, em 1985,0 Governo, por meio do Decreto n. 91,469, institui o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor — Con- decon, vinculado ao Ministério Extraordinário da Desburocratização. Com a extinção deste, o Condecon é transferido para o Ministério da Justiça. A primeira norma legal que tratou de forma especifica do direito do consumidor foi a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985. Ela representa o prenúncio da história do Direito do Consumidor como disciplina autônoma. A Lei n. 7.347/85 na verdade constitui um marco no direito brasilei- ro, por seu pioneirismo e seu conteúdo altamente inovador. Foi ela que disciplinou a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao consumidor, ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. A partir da edição dessa lei, o Ministério Público passa a ampliar gradativamente sua margem de controle sobre as atividades predatóri- as praticadas por pessoas físicas e jurídicas contra os bens por ela protegidos: não apenas os direitos do consumidor, mas os direitos da cidadania em geral, o meio ambiente, a saúde pública, o patrimônio histórico e cultural. 1.10.3. Constituição de 1988— Nasce o Direito do Consumidor instaurando um novo ciclo político no Brasil, a Assembléia Nacio- nal Constituinte promulga, em outubro de 1988, a nova Constituição da República, na qual insere os direitos do consumidor dentre os direitos fundamentais da cidadania, em seu ai. 50, inciso XXXII. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 41 O art. 48 das Disposições Constitucionais Transitórias determina- va que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulga- ção da Constituição, elaborasse um código para a defesa dos consumi- dores, Dando cumprimento a tal preceito, não sem um certo atraso, o Congresso Nacional aprova em 11 de setembro de 1990 a Lei n. 8.078, que institui o Código de Defesa do Consumidor. O Código entra em vigor a lQde março de 1991. Graças ao Código, consolida-se uma nova disciplina jurídica que os estudiosos chamam de Direito do Consumidor ou Direito do Consu- mo. Com o passar do tempo, jungido à própria expansão das relações de consumo, o Direito do Consumidor deverá se expandir e evidenciar cada vez mais sua autonomia científica. MI Desde a sua publicação, o Código sofreu apenas algumas poucas alterações pontuais, que não alteraram a sua substância—o que depõe em favor da boa técnica legislativa que presidiu a sua elaboração. O Poder Executivo regulamentou parcialmente o Código por meio do Decreto n. 407, de 30 de dezembro de 1991. Em 1997, elaborou o Regulamento completo do consumidor, contido no Decreto n. 2.181, de 21 demarçode 1997. hi~ 2. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS DE DIREITO DO CONSUMIDOR 2.1. ELEMENTOS DA RELAÇÃO DE CONSUMO 2.1.1. Sujeitas da Relação de Consumo A relação de consumo envolve dois sujeitos: o fornecedor e o consumidor. Cada um deles apresenta características próprias, que merecem (4 ser analisadas destacadamente. 2.1.1.1. Fornecedor Fornecedor, segundo o ai. 3Q do Código do Consumidor, é toda pes- Si soa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produ- ção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exporta- r ção, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. Observa-se nessa definíção que o legislador pátrio procura atribuir ao conceito de fornecedor a maior amplitude possível, com o intuito de fixar a responsabilidade solidária, nas relações de consumo, de todos os co-responsáveis por eventuais vícios ou defeitos dos produtos e serviços. São fornecedores, assim, as entidades pertencentes a qualquer setor de atividade, sejam hotéis, hospitais, corretoras de imóveis, em- preiteiras de mão-de-obra do setor de construção imobiliária, empresas de transportes, oficinas mecânicas ou elétricas, depósitos, segurado- ras, financeiras, administradoras de consórcio, cooperativas de crédito, assim como o são os pedreiros, pintores, jardineiros, etc. Em suma, qual- quer pessoa física ou jurídica que forneça produto ou serviço a outrem. Basicamente, o que caracteriza a relação de consumo é o pra fissio- nallsmo do ato de venda do produto ou prestação do serviço. Só se con- sidera relação de consumo aquela que implique o fornecimento de pro- duto ou serviço com caráter profissional, ou seja, com intuito comercial. r 44 ROBERTO BASILONE LEITE Não se considera fornecedor o não-profissional que pratica ato de venda ocasional de objeto de sua propriedade, como, por exemplo, um veículo usado. Ao contrário, a professora que, não sendo comerciante profissional, adquire produtos de beleza para, nas horas vagas, revendê- los a terceiros, como forma de complementar seu orçamento doméstico, responde como fornecedora. E que, nesse caso, ela estará praticando atos de comércio. Importa atentar para a seguinte situação: um comerciante que re- solve alienar peças da mobília de sua residência para desocupar espaço ou para redecorã-la não pratica ato de consumo e, por isso, não participa dessa relação jurídica na qualidade de fornecedor. 2.1.1.1.1. Pessoa Física ou Jurídica O ai. 32 do Código deixa claro que, desde que a relação tenha conotação mercantil, será tida como relação de consumo, seja o forne- cedor pessoa física ou jurídica. Entre as pessoas jurídicas incluem-se as de direito privado — in- clusive as religiosas, científicas e de utilidade pública — e as de direito público interno da administração direta (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) e indireta (autarquias e fundações públicas). 2. 1. 1. 1.2. Entidades Sem Personalidade Jurídica O art. 39 do Código classifica aindá como fornecedor o ente des- personalizado, tal como a massa falida, o espólio, o condomínio e a família. Da mesma forma, as entidades comerciais ou fabris de fato, isto é, aquelas não constituídas regularmente e popularmente conhecidas como empresas de fundo de quintal’, ficam impedidas de utilizar o argu- mento da falta de personalidade jurídica formal para se evadirem de suas responsabilidades perante o consumidor. 2. 1.1. 1.3. Produtos Comprados no Exterior Em decisão prolatada a 11 de abril de 2000, cujo redator foi o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, o Superior Tribunal de Justiça, por sua 4~ Turma, decidiu que a empresa multinacional estabelecida no Brasil deve responder também por produtos de sua marca comprados no exterior. INTRODUÇÂOAO DIREITO DO CONSUMIDOR 45 Assim dispôs a ementa do referido acórdão: Direito do consumidor. Filmadora adquirida no exterior. Defeito da mer- cadoria. Responsabilidade da empresa nacional da mesma marca (Pa- nasonic). Economia globalizada. Propaganda. Proteção ao consumi- dor. Peculiaridades da espécie. Situações a ponderar nos casos con- cretos. Nulidade do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemen- te fundamentado. Recurso conhecido e provido no mérito, por maioría. — Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e esti- mula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, di- mensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacio- nais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetua- das pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado con- sumidor que representa o nosso Pais. II — O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje tombar- deado’ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aqui- sição de produtos. notadamente os sofisticados de procedência es- trangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca. III — Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável desti- nar-se ao consumidor as conseqüências negativas dos negócios en- volvendo objetos defeituosos. IV — Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situa- ções existentes. V — Rejeita-se a nulidade argüida quando sem lastro na lei ou nos autos. Vistos, relatados e discutidos estes autos, prosseguindo no julga- mento, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, venci- dos os Ministros Relator e Barros Monteiro. Votaram com o Ministro Sã/vio de Figueiredo Teixeira os Ministros Casar Asfor Rocha e fluy Rosado de Aguíat’A23~ (23) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4~ Turma. Recurso Especial n. 63.981/SP. Acórdão n. 1995/0018349-8. Relator Ministro Aldir Passarinho Junior. Relator Desig- nado para o Acórdão Ministro Sálvío de Figuoiredo Teixeíra. Brasília, 11 de abril de 2000. Diário da Justiça, Brasilia, DF, 20 nov. 2000, p. 296. 46 ROBERTO BA5ILONE LEITE Trata-se de questão importante, haja vista que o comércio de pro- dutos e serviços pela lnternet movimentou no ano 2000 a cifra aproxima- da de 250 milhões de dólares. 2.1.14.4. Fornecedor ProfissionalAutónomo Os profissionais liberais, tais como o médico, advogado, engenhei- ro, contador e outros, também respondem como fornecedores pelos ser- viços prestados. No entanto, abrindo uma exceção à regra geral da responsabilida- de por culpa presumida do fornecedor, o Código estabelece que a sua responsabilidade pessoal seja apurada mediante a verificação da culpa (art. 14, § 49) 2.1. 1. 1.5. Responsabilidade do Comerciante A conceituação de fornecedor oferece algumas dificuldades ao es- tudioso. Uma delas está em definir quem responde como fornecedor pelos vícios e danos causados na relação de consumo: o produtor, o comerciante ou ambos? A leitura isolada do art. 3~ do Código pode conduzir o intérprete à conclusão de que são co-responsáveis o produtor, o importador e oco- merciante. Isso porque o referido dispositivo qualifica como fornecedor “toda pessoa (...) que desenvolvem atividade de produção, montagem, Criação, construção, transformação’ (o produtor lato sensu), de “impor- tação, exportação, distribuição” (o importador) e de “comercialização de produtos” (o comerciante). Ocorre que o ad. 13 restringe expressamente a responsabilidade do comerciante, ao estabelecer que este só será responsável quando: — o fabricante, construtor, produtor ou importador não puderem ser identificados; II — o produto não contiver a identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador; III — o comerciante não conservar adequadamente os produtos pereciveis. Os responsáveis são, dessarte, por via de regra, o produtor e o importador. O comerciante não responde pelos vícios do produto, senão nas hipóteses excepcionais indicadas no art. 13 do Código. Por ser este ponto um dos mais polêmicos do Direito do Consumi- dor, há autores que chegam a declarar-se perplexos diante da atitude aparentemente contraditória do Código que, a par de estipular regras INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 47 rigorosíssimas contra o produtor, deixa praticamente isento de respon- sabilidade o comerciante. O insigne jurista Gabriel Saad, ao expor as razões de sua posição antagônica ao sentido adotado pelo Código, sustenta que “o legislador não perdeu tempo em examinar os efeitos de um contrato entre o consu- midor e o comerciante tendo por objeto produto fabricado por outro em- presário. Não considerou a hipótese de o comerciante ter conhecimento prévio do defeito ou vício do produto e consumou, assim mesmo, a sua venda. No caso, deveria ele ser co-responsável pelo fato. (...) Nosso legislador—repetimos—coloca nos ombros do fabricante a maior par- cela da responsabilidade pela reparação de eventuais danos provocados por defeitos ou vícios dos produtos”.124~ 1 Aponta, em seguida, diversas situações nas quais, segundo a sua concepção, o comerciante deveria ser responsabilizado, a saber: quan- do ele altera o prazo de validade na embalagem; quando substitui o rótulo da mercadoria pelo de outra mercadoria de melhor qualidade; quando co- mete erro na instalação de aparelho elétrico que não apresentava defeito. Faz-se mister, no entanto, tentar compreender o objetivo que levou o legislador a optar por essa solução. Antes de tudo, cumpre observar que, nos exemplos mencionados por Saad, caso seja comprovada a prática de ato ilícito pelo comercian- te, este poderá ser Condenado com base na lei vigente (ad. 25, § 1 ~, do Código) — muito embora seja cedo que essa responsabilização é um tanto difícil porque depende da prova da culpado comerciante, ao contrá- rio do que se verifica em relação ao produtor, cuja responsabilidade é presumida pela lei. O mais importante, no entanto, é perscrutar a finalidade da norma geral que qualifica como fornecedor principal, para efeito de responsabilida- de legal presumida, apenas o produtor, e exclui da regra o comerciante. A primeira evidência consiste em que o legislador objetivou exercer pressão focalizada sobre o produtor, único agente econômico que pode zelar direta e decisivamente pela evitação da ocorrência de defeitos e vícios no produto. Se a lei declarasse a responsabilidade solidária presumida do co- merciante pelo defeito do produto, o efeito coercivo sobre o produtor pode- (24) SAAD, Eduardo Gabriel. Op. ciL, p. 241. 48 ROBERTO BASILONE IEITE ria ser por demais dissipado, já que a responsabilidade seria pulverizada entre ele e centenas ou milhares de comerciantes. O produtor poderia assim acomodar-se, apostando na tese de que os comerciantes, mais acessíveis ao consumidor e aos órgãos fiscalizadores, seriam responsa- bilizados diretamente, enquanto certos entraves práticos e burocráticos impediriam ou dificultariam a cobrança regressiva contra ele por parte dos comerciantes. As obrigações resultantes de danos causados ao consumidor seriam, no mínimo, repartidas com os comerciantes, por conta da responsabilidade solidária. O comerciante, de sua parte, ver-se-ia diante de um dilema: quem fabrica o produto é o industrial, que, por isso, é normalmente o único que pode corrigir os defeitos intrínsecos do produto e investir no constante aper- feiçoamento dos sistemas de controle de qualidade. A norma que atribuisse ao comerciante a responsabilidade solidária presumida quase não teria efeito prático, pois ele normalmente não dispõe de meios para corrigir vícios e defeitos de fabricação das mercadorias. Muitas vezes, não tem nem como identificá-los — por exemplo, nos produtos que são vendidos lacrados. Se não é o comerciante que produz a mercadoria, pouco adiantaria exercer pressão sobre ele. Que procedimentos poderia ele adotar com vistas a sanar o problema? A correção do vício ou defeito intrínseco do produto, como já afir- mado, não estada ao seu alcance. Poderia ele então recusar as merca- dorias do produtor, quando conseguisse identificar os vícios ou defeitos. Mas, para essa identificação, teria de abrir e testar as mercadorias rece- bidas de cada produtor, uma a uma? Isso decerto demandarÉa equipes enormes destinadas exclusivamente a esse trabalho; basta pensar nos grandes hipermercados, que atuam com centenas de itens das mais diversas origens. E o que faria o comerciante com as mercadorias que não podem ter o lacre violado — como o são praticamente todas as do gênero alimentício? Estas não poderiam ser “testadas’. O resultado seria o seguinte: o comerciante acabaria arcando com grande parte dos prejuízos decorrentes dos vícios ou defeitos dos produ- tos e o legislador brasileiro teria perdido a oportunidade de criar um ins- trumento legal eficaz de coerção sobrê aquele que é, normalmente, o verdadeiro responsável por essas imperfeições. Poder-se-ia, ainda assim, argumentar que a pressão exercida so- bre os comerciantes acabaria redundando em subseqüentes pressões comerciais destes sobre os produtores, os quais, como passar do tem- po, sofreriam uma espécie de coerção indireta da lei. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 49 Cumpre refletir o seguinte: se, via de regra, é o produtor quem ins- tala o vicio ou defeito na mercadoria que fabrica; se é ele, por isso, o único que pode tentar eficazmente evitar essas imperfeições; e, enfim, se a lei tem a opção de imputar a responsabilidade pelo dano diretamen- te ao seu causador, é de se indagar por que razão o faria de modo indireto? Estar-se-ia assim apenas fomentando a criação de novas e desnecessárias relações litigiosas intermediárias: em vez de o litígio instalar-se diretamente entre o consumidor e o produtor, surgiriam litígios intermediários envolvendo os comerciantes. Dessarte, optando por responsabilizar de ordinário apenas o produ- tor, a lei pátria focalizou sobre este todo o seu poder de coerção. Assim, não deixou ao produtor margem para apostar na hipótese de, em caso de ocorrência de dano ao consumidor, atribuir a outrem (ao comerciante, III no caso) a responsabilidade pelos vícios ou defeitos de seus produtos. Em face da clareza e objetividade do Código, sabe o produtor de ante- mão que, se o produto for imperfeito, será ele próprio o único responsá- vel — ressalvadas as exceções expressamente mencionadas na lei e outras que derivem de culpa comprovada do comerciante. Com isso, pretende a ei que o efeito coercivo sobre o produtor seja muito mais eficaz, com o que se corta o mal pela raiz e vinga-se o aprimo- jj~ ramento real da qualidade dos produtos nacionais. 2.1.1.2. Consumidor O Código oferece uma definição básica de consumidor, no caput do ai. 2~. Em seguida, por meio de outros dispositivos, amplia gradati- vamente o conceito central para abarcar em sua esfera de proteção o maior número possível de pessoas. Consumidor, nos termos do caputdo ai. 2~ do Código em estudo, é a pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço, para uso próprio ou de sua família, na condição de consumidor final. O mesmo dispositivo inclui no conceito, além da pessoa que ad- quire, também a que “utiliza o produto ou serviço como destinatário fi- nal”. E consumidor, portanto, aquele que ganha o bem ou serviço para utilizá-lo na condição de consumidor final. O parágrafo único do ad. 2~ equipara a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que hajam intervindo nas rela- ções de consumo. O art. 17 estende a proteção legal às vítimas do acidente de consumo. 50 ROBERTO BASILONE LEITE Prosseguindo no mesmo sentido, o art. 29 desdobra o conceito de consumidor para alcançar todas as pessoas, determináveis ou não, ex- postas às práticas comerciais ou contratuais abusivas. 2.1.1.2.1. Consumidor Pessoa Jurídica São consumidores, por força do Código, não apenas as pessoas jurídicas de direito privado, mas igualmente as de direito público interno ou externo. Dessa forma, o fornecedor responde pelos produtos e serviços alienados à União, Estados-membros, Municípios, Distrito Federal, au- tarquias, fundações, empresas pübiicas e sociedades de economia mista. 2. 1. 1.2.2. Pessoa que Ganha o Produto ou Serviço Além da pessoa que efetua diretamente a aquisição do produto ou serviço, também é consumidor aquele que recebe o produto ou ser- viço como presente. Dessa forma, alguém que receba uma geladeira de presente de casamento pode, ele mesmo, exigir do fabricante ou importador — e, se for o caso, do comerciante que responda por vícios ou defeitos do produto. Embora haja autores que discordem desse ponto de vista, parece inegável ser essa a intenção do legislador quando, no mencionado art. 2~, declara ser consumidor não apenas a pessoa “que adquire’, mas também a que “utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Além disso, é patente a tendência adotada pelo Código de buscar, por todos os meios, estender a sua proteção a qualquer cidadão que se assenho- reie de produto ou serviço vicioso ou defeituoso — ainda que o utilize sem tê-lo adquirido. Não encontramos, outrossim, justificativa jurídica ou metajuridica plausível para negar a este “consumidor de uso” a proteção legal, já que a finalidade primordial do Código é proteger a coletividade e o interesse público, por meio da aplicação do chamado principio do desest (mulo. Constatada a imperfeição do produto ou serviço, os responsáveis pela imperfeição devem ser punidos com intensidade tal que desestímule novas falhas por parte dos mesmos ou de outros produtores. 2. 1. 1.2.3. Produtos e Serviços Destinados ao lnsumo Não se considera relação de consumo aquela travada entre empre- sários, em que o produto ou serviço adquirido destina-se não ao consumo INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 51 final, mas a integrar o processo de produção ou de comercialização. Assim, é consumidor o cidadão que compra pregos para fixar quadros nas paredes de sua casa, mas não o é o industrial mobiliário que adquire parafusos para a montagem dos móveis que comercializa. Este mesmo empresário, no entanto, atua como consumidor quan- do compra sabonetes e toalhas de rosto para guarnecer os banheiros de sua fábrica, já que estes bens não serão integrados no processo de produção. Com fulcro no mesmo raciocínio, o empreiteiro que contrata su- bempreiteiros não é considerado consumidor em face destes, pois o serviço não é fornecido a um destinatário final. A Comunidade Européia, na Resolução n. 543, de 17 de maio de 1973, que aprovou a Carta de Proteção do Consumidor, assim define (o consumidor: ‘pessoa física ou coletiva a quem são fornecidos bens e prestados serviços para uso privado’. Exclui, portanto, do conceito — seguindo a mesma diretriz da lei brasileira — o empresário que adquire bens para serem incorporados aos produtos por ele fabricados ou co- mercializados, ou seja, utilizados como meios para o implemento de sua própria atividade produtiva ou mercantil. 2.1. 1.2.4. Consumidor-Coletividade O parágrafo único do ai 2~ do Codigo do Consumidor equipara a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Estão sob o alcance desta norma todas as pessoas que venham a sofrer danos em razão de defeito do produto ou serviço fornecido, ainda que não os tenham adquirido nem recebido como presente. Nesse sentido, são consumidores todos os convidados de uma festa em face do fornecedor do buffet que serve alimento intoxicado: também o são os vizinhos e transeuntes feridos na explosão do paiol de uma fábrica de fogos de artifício. Esse entendimento é ratificado pelo art. 17, segundo o qual “equiparam-se aos consumidores todas as vitimas do evento”. As coletividades de pessoas indetermináveis, também protegidas pela lei, são aqueles grupos de pessoas em relação aos quais não é possível identificar e particularizar os riscos ou prejuízos a que cada um ficou exposto em razão da imperfeição de produtos ou serviços. Por exemplo, não se pode individualizar as pessoas que ficaram expostas aos riscos gerados por um medicamento defeituoso colocado no mercado nacional. 52 ROBERTO BASILONE LEITE Com essa orientação, o Código pretende criar instrumentos efica- zes para a proteção das coletividades de consumidores, nos casos em que o prejuizo individual de cada membro da coletividade seja tão peque- no que não justifique a adoção de medidas reparatórias individuais. A autorização para a adoção de medidas judiciais de caráter coletivo suge- rida no parágrafo único do ad. ~ é tornada explícita no art. 81 do Código. 2.1.2. Produto e Serviço Produto, segundo dispõe o ad. 3~, § l~, do Código, é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Essa descrição engloba praticamente todos os bens comercializá- veis, tanto móveis quanto imóveis. Não deixa dúvida quanto à aplicabili- dade do Código do Consumidor aos negócios mobiliários, já que existe referência aos bens imóveis no ad. 3~, bem como regra explícita no art. 53, que declara nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de com- pra e venda de imóveis que estabeleçam a perda total das prestações pagas em caso de inadimplemento. Os bens imateriais consistem nos direitos autorais sobre obras intelectuais, direitos hereditários, usufruto e outros bens incorpóreos. Tudo é considerado produto para efeito de aplicação das normas do Có- digo do Consumidor. Serviço, nos termos do § 2~ do mesmo ad. V, é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decor- rentes das relações de caráter trabalhista. Quase todas as formas de prestação de serviços, como se vê, estão sujeitas às regras de defesa do consumidor. Existem apenas duas exceções. Serviços não remunerados estão fora do campo de ação do Código. Cite-se, como exemplo, o serviço voluntário gratuito prestado a entidades religiosas ou filantrópicas. O serviço prestado no ãmbito do contrato de trabalho igualmente não é objeto da relação de consumo. Quanto aos serviços financeiros, o Código ampliou as disposições contidas na Lei n. 7.913, da 7 de dezembro de 1989, que previa a ação civil pública para fixar a responsabilidade por danos causados aos inves- tidores no mercado de valores mobiliários. Passou a abranger toda e INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 53 qualquer atividade bancária, financeira, de crédito e de seguros exercida por entidades públicas ou privadas. 2.1.3. Conceito de Consumo A palavra “consumo”, documentada no início do século XVI, provém do verbo latino consumére, ‘comer, consumir, gastar’, o qual, por sua vez, deriva do latim sumé re, ‘tomar’, de onde resultou o verbo português “sumir’. Este foi o modelo para a adaptação de consumir Em seu sentido genérico, consumo significa todo ato ou processo humano de utilização de bens e serviços econômicos destinado à satis- fação direta de necessidade ou desejo. Os bens e serviços utilizados nesse ato ou processo são denominados bens de consumo e serviços de consumo. I~4I 1 Consumo é a “aplicação das riquezas na satisfação das necessi- dades econõmicas do homem”, indica o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. No mesmo sentido, 1 MatlinezMarín define consumo como o”gasto de aquellas cosas que con ei uso se extinguen o destruyen”.(25) O significado geral de consumo, como se depreende, pressupõe a extinção, a destruição do bem pelo uso. Para a ciência econômica, contudo, o termo consumo possui um sentido mais amplo, porquanto se refere a toda e qualquer aquisição de bem ou de serviço, ainda que não venha a ser efetivamente “consumi- do” ou utilizado. Em outras palavras, no sentido laico, consumo signifi- ca o ato ou processo de consumir, de gastar, de esgotar; para a eco- nomia, pode significar o próprio objeto desse processo, ou seja, o bem ou serviço adquirido. Segundo interessante concepção de Alvíri Toffler, mercado é o espaço estratégico que “se situa precisamente na fenda entre o produtor e o consumido(.126~ Quando as pessoas consumiam o que produziam, o consumidor confundia-se com o produtor e, por isso, não havia mercado. O mercado surge quando a tarefa do consumo se separa da produção. (25) MARIN, J. Martínez (et ai.) Dicciona rio de términos jurídicos. Granada: Comares, 1995, p. 108. (26) TOFFLER. AIvin. A terceira onda. 22~ ed. Tradução de João Távora. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 276. 54 ROBERTO BASILONE LEITE Daí por que Toffierconclui que o mercado de consumo não é caracterís- tica do regime capitalista, mas de qualquer regime, inclusive comunista, em que produtor e consumidor sejam pessoas distintas. Costuma-se classificar o consumo, atualmente, segundo a espé- cie de necessidade a que os bens ou serviços visam a satisfazer. Por exemplo: setor alimentício, de transportes, de diversões, de educação, de saúde, etc. Essa classificação tem sua utilidade, pois é com base nela que são calculados os índices de custo de vida que servem para medir os níveis de qualidade de vida em cada país e possibiHtam a con- seqüente elaboração de gráficos comparativos do nível de vida nas dife- rentes regiões do mundo. O Código do Consumidor, partindo da concepção econômica, limi- ta o conceito de consumo às relações de caráter comercial entre os fornecedores e o consumidor final. 21.4. Conceito de Relação O português “relação”, do século XVI, provém do latim relatío, ónis, ‘ação de dar em retorno, ato de pagar um favor com outro favor’, o qual deriva do verbo latino referre, ‘restituir, repor, trazer de novo, reproduzir, repetir’. As relações estabelecidas entre os homens, em sua vida social, são chamadas relações sociais. Segundo leciona o grande jurista cario- ca San Tiago Dantas (1911-1964), elas podem ser de dois tipos: relação de cooperação ou relação de concorrência. Esta se verifica quando cada um dos individuos persegue o mesmo objetivo do outro; naquela, os dois combinam seus esforços para a obtenção de um resultado comumi27~ 2.1.5. Relação de Consumo A relação de consumo é, por princípio, uma relação de coopera- ção, pois um cidadão entra como bem ou serviço e o outro oferece em troca o pagamento do preço; ambos colaboram assim para o sucesso do objetivo comum, que é a transferência do domínio do bem ou a execução dos serviços. (27) DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. 3 tir. Rio de Janeiro: Rio, 1979, v. 1, p. 145. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 55 Pode, no entanto, a relação de consumo transformar-se numa rela- ção de concorrência se o consumidor constatar, por exemplo, que o bem recebido está em desacordo com as expectativas do negócio reali- zado entre as partes e o fornecedor se recuse a reparar o problema. Eles passam assim a buscar objetivos distintos: um quer desfazer o negócio, o outro quer mantê-lo. Sob outro ângulo, pode-se dizer que a relação de consumo é uma relação jurídica, por ser regulamentada pelo direito. A relação juridica de consumo é o objeto central de que se ocupa o Código de Defesa do Consumidor. O Código não oferece uma definição de relação de consumo, porém nele se Contêm todos os elementos necessários para a conceituação. Já vimos que os sujeitos da relação de consumo são o consumidor final (art. 2Q) e o fornecedor(art. 3Q) Ao consumidor equipara-se todo aquele que haja intervindo na relação de consumo ou que tenha sido vitima de evento danoso por causa de defeitos do produto ou serviço. Doutra parte, considera-se fornecedor o produtor lato sensu, o importa- dor e, nas hipóteses relacionadas no ad. 13,0 comerciante. Reitere-se que não caracteriza relação de consumo aquela por for- ça da qual o empresário adquire mercadorias destinadas a integrar o processo produtivo e incorporar-se no produto final, chamadas insumos. A relação de consumo pressupõe também o ato de aquisição de produto ou utilização de serviços mediante remuneração, ressalvadas, nesta segunda hipótese, as atividades decorrentes das relações de caráter trabalhista. Com base em tais elementos, é possível afirmar que relação de consumo é aquela em que o consumidor final adquire produto do forne- cedor ou utiliza serviços por este prestados mediante remuneração e sem caráter trabalhista; ou seja, é aquela que se estabelece entre o fornecedor e o consumidor final, e que tem por objeto o fornecimento oneroso de um produto ou de um serviço sem cunho trabalhista. Cumpre ressaltar que a relação de consumo está sempre neces- sariamente inserida numa outra relação de caráter mercantil ou obrigacio- nal; os aspectos extrínsecos dessa relação complexa são regidos pela lei civil, comercial, tributária ou qualquer outra, ao passo que os aspec- tos intrínsecos relativos ao consumo obedecem as normas do Código do Consumidor. Este diploma legal, em seu ad. V, dispõe que “o presente 56 ROBERTO BASILONE LEITE Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de or- dem pública e interesse social Suas normas são, portanto, de obser- vância obrigatória; incidem fatalmente em toda relação comercial ou civil que contenha em si um ato de consumo. 2.2. CODIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 2.21. Conceito de Código A palavra “código” provém do latim caudex, ‘tabuinha de escrever’, por codex, ajuntamento de tabuinhas enceradas sobre as quais os anti- gos escreviam. Mais tarde, codex serviu para designar um bloco de fo- lhas de pele de animal. A partir de codexsurgiu, no século III, o vocábulo codice, para designar um bloco de folhas de manuscrito em pergaminho, parecido com os livros atuais, que veio a substituir os livros mais anti- gos, em forma de rolo. Codice era, então, todo manuscrito em pergami- nho, independentemente de seu conteúdo. A partir do século IV, a palavra codice passou a ser utilizada no sentido de coleção de normas legais. Segundo Planiol, “dês l’époque romaine, au lve et au ve siécle, e mot codexfut appliqué spécialement à des recueils de bis, les codices Gregorianus, Hermogenianus, Theodo- sianus, qui furent éclipsés ensuite par e Codexde Justinien, de l’an 529, e plus célêbre de tous. Les anciens codes de l’empire romain étaient des recueils de constitutions impóriales; Is étaient loin de contenir tout e droit, qui se trouvait plus abondamment exposé dans les ouvrages appelés Pandectae ou Digesta. C’est en France, et depuis le xvi9 siêcle seule- ment, que e mot code a pris son sens élargi de recueil complet du droit’.128t Atualmente, código sígnifica o conjunto metódico e sistemático de normas legais atinentes a determinada disciplina jurídica. Distingue-se das coleções ou compilações, na medida em que estas compreendem (28) “Desde a época romana, nos séculos iv e v, a palavra codex foi aplicada espe- cialmente a coleções de leis, os codíces Cre~ioríanus, l-fermogeníanus, Theodosia- nus, que foram, em seguida, eclipsados pelo codex de Justiniano, do ano 529, o mais célebre de todos. Os antigos códigos do Império Romano eram compilações de cons- tituições imperiais; longe ficavam eles de conter todo o direito, que se acha exposto, mais abundantemente, nas obras denominadas Pandectae ou Oigesta. Foi na França, e somente depois do século xvi, que a palavra código adquiriu o seu sentido ampliado de compilação completa do direitd’ (PLANIOL, Marcel. Traité élémentaire de droit civil. 4~ ed. Paris: Librairie Générale de Droít et de .Jurisprudence, 1948, tomei, p. 49). INTRODuÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 57 uma pluralidade de leis singulares, que se mantêm sempre distintas, ao passo que o código consiste numa lei única, que organiza, sistematiza e coordena todas as normas relativas a uma parte do direito vigente, ou uma determinada disciplina jurídica. Dessarte, o que caracteriza um código em seu sentido próprio, distinguindo-o de uma simples compilação de leis, são os elementos que lhe asseguram certa sistemática e certo método. Foi a Revolução Francesa que, com respaldo no principio da igual- dade, demonstrou a necessidade e as vantagens da codificação do direi- to, como forma de facilitar ao povo o conhecimento e a compreensão unitária do conjunto de leis a que está sujeito. A Assembléia Constituin- te francesa, em 2 de setembro de 1791, por unanimidade, resolveu inse- rir na Constituição disposição que determinava: “II sera fait un Code dei bis civiles comun à tout e royaume”.t291 A grande importância da codificação é que ela permite, a partir do estudo de suas regras unitárias e sistemáticas, a criação de um com- plexo de princípios gerais sobre a parte do direito por ela regulamentada — o que, por sua vez, conduz à formação de uma disciplina jurídica autônoma e ao subseqüente estabelecimento de uma teoria geral dessa disciplina. tI ~ For aí se pode avaliar a importância do Código do Consumidor bra- sileiro para a evolução do direito nacional e — tendo sido ele o primeiro “~‘ 1 diploma codificado do mundo sobre a matéria — para o próprio direito comparado, que se debate hoje em busca da definição de normas jurídi- cas internacionais na área dos direitos da personalidade. Ainda hoje, ape- nas o Brasil e a Espanha possuem leis de proteção do consumidor que podem ser chamadas de Código, segundo informa Norbert fleich.1301 2.2.2. Distinção entre Proteção e Defesa O Código do Consumidor atribui significados diferentes aos vocá- bulos “defesa” e “proteção”. O ad. 1~ do Código deixa clara essa distin- ção, no ponto em que afirma estabelecer “normas de proteção e defesa do consumidor’. A lei não emprega palavras supérfluas. Cada termo utiliza- (29) Será elaborado um código civil comum para todo o reino”. (30) REICH, Norbert. ‘Algumas proposições para a filosofia da proteção do consumidor”. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 85, n. 728, jun. 1996, p. 22. 58 ROBERTO BASILONE LEITE do pela lei tem seu significado, sua função, seu valor e sua finalidade. Se o legislador considerasse sinônimos os dois termos — defesa e prote- ção —, não os teria justaposto; teria utilizado apenas um dos verbetes: ou “normas de proteção”, ou “normas de defesa”. A proteção referida no ad. l~, e tratada sob a denominação “inte- resses protegidos” nos arts. 82 e 83, tem conotação ampla e compreen- de todo o conjunto de princípios e instrumentos de amparo ao consumi- dor instituídos pelo Código, judiciais e extrajudiciais. Já a expressão “defesa”, utilizada por exemplo nos arts. 81 e 82. refere-se especificamente aos instrumentos de efetivação da proteção. 2.2.3. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Sempre houve no Brasil, como visto, leis destinadas a proteger o consumidor. Em que, então, o Código de 1990 inovou? As mudanças introduzidas pelo Código afetam direta e objetiva- mente dois campos do estudo jurídico: o do contrato de consumo e o da responsabilidade civil. No primeiro, cuida das irregularidades nos contra- tos de consumo e dos vícios e defeitos nos bens ou serviços fornecidos. No segundo, regula a questão da responsabilidade pelos danos decor- rentes de defeitos do produto ou serviço. Pode-se, desde já, apontar as três principais inovações trazidas pelo Código. Em primeiro lugar, ele fixou, como regra geral, a responsabilidade por culpa presumidã do fornecedor-lesante e, com isso, inverteu drasti- camente a tradição secular do direito ocidental de privilegiar a teoria clássica da responsabilidade subjetiva, segundo a qual a vítima deve provar a culpa do lesante no evento danoso. Em segundo lugar, o Código atribuiu a diversas entidades o poder de substituição processual dos consumidores. Ainda aqui, modificou radicalmente o principio antes vigente, que autorizava a substituição pro- cessual apenas nas hipóteses excepÇionais especificadas na lei. Em terceiro lugar, atribuiu efeito erga omnesou ultra panes à senten- ça que condena o fornecedor pelos danos causados aos consumidores. Dessa forma, prolatada a sentença, todos os consumidores lesados podem ingressar nos autos na fase de execução para pleitear sua indenização, ainda que não tenham participado da fase de conhecimento do processo. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 59 Além disso, o Código do Consumidor estendeu a responsabilidade por danos a todos os participantes do processo de produção, ainda que sejam entes públicos estatais, paraestatais ou concessionários de ser- viços públicos. Ampliou, assim, de tal forma o campo de ação da política de proteção do consumidor, que praticamente eliminou as lacunas antes existentes, por via das quais o fornecedor-lesante se esquivava de suas responsabilidades. 2.2.3.1. Direitos de Personalidade No campo dos direitos de personalidade, o Código de Defesa do Consumidor patrocinou grandes transformações. As mudanças profun- das e radicais no disciplinamento das relações de consumo impostas pelo Código não encontram precedente no moderno direito brasileiro. Tal tu circunstância explica por que o Código vem sendo utilizado à larga para fundamentar teses jurídicas e decisões judiciais que envolvem direitos da personalidade atinentes a outras áreas. Os direitos do consumidor concretizam, em grande parte, direitos da personalidade, que, designados normalmente pela expressão genéri- ca “novos direitos”, englobam o direito ecológico, o bioético, o direito à proteção do patrimônio moral, histórico, cultural, artístico, etc. Dado ser a personalidade o “conjunto de atributos inerentes à con- dição humana”, na definição de San Tiago Dantas,31~ a expressão “direi- tos da personalidade” pretende abranger todo o conjunto de direitos sub- jetivos componentes da personalidade do individuo, intrínsecos à pes- soa, tanto os de caráter físico, quanto os de caráter psíquico e moral. O Código Napoleônico, fruto da Revolução Liberal Francesa, nos legou, pela via do nosso Código Civil, o conceito patrimcnialista de per- sonalidade, que a define como a capacidade da pessoa de ser titular de direitos e contrair obrigações (ad. V do Código Civil). Esse conceito tornou-se hoje obsoleto por não incluir os aspectos éticos e psíquicos do individuo. OsjurisconsultosdaAntigüidade Romanajávislumbravam naper- sonalidade certos elementos de ordem imaterial. “Os romanos” — lecio- na San Tiago Dantas— “possuíam um recurso técnico para defender a personalidade humana, qualquer que fosse o aspecto pelo qual ela fosse (31) DANTAS, San Tiago. Op. cit., p. 192. 60 ROBERTO BASILONE LEITE lesada. Esse remédio era a Actio lnjuriarum, sobre a qual Jhering escre- veu uma monografia clássica. Tudo que se fizesse contra o homem, à sua moral, ofensas físicas, ataque à liberdade, ou a qualquer outro atri- buto pessoal, era injuria e o meio de repelir a injuria era a proposição daquela Actid’.~32~ Data de pouco mais de cem anos a doutrina que criou uma cate- goria especifica de direitos relativa aos bens imateriais da personalida- de. Essa doutrina foi severamente combatida pela escola clássica pa- trimonialista, sob a liderança do jurista austríaco Unger, para quem os direitos psíquicos e morais são mera conseqüência da personalidade civil, que consiste na capacidade que tem todo o homem de direitos e obrigações. Nas últimas décadas, a doutrina dos direitos da personalidade teve uma notável evolução. Com isso, tornou muito nítida a distinção entre bens externas, representados pelas coisas corpóreas e incorpóreas so- bre as quais o homem procura estender sua personalidade por meio da apropriação, e bens internos, inerentes à personalidade, como a honra, a liberdade, a intimidade e a moral. O Código do Consumidor contém diversos dispositivos que prote- gem exatamente estes bens internos e, portanto, os modernos direitos da personalidade. Os direitos ecológicos não possuem um código destinado especifi- camente à sua proteção. O dano moral, estético, o dano não patrimonial em geral, os direitos bioéticos igualmente carecem até hoje de um códi- go de defesa próprio. O mesmo acontece em relação ao patrimônio his- tórico. cultural e artístico. Enfim, dentre os chamados novos direitos, o direito do consumidor éo único dotado hoje de um corpo normativo sistemático e principiológi- co que permite o início da formulação de uma teoria geral dos direitos de personalidade— os quais representam um círculo novo de direitos fun- damentais dos cidadãos, autônomo e superposto ao circulo dos velhos direitos patrimoniais. Por sinal, o ad. 117 do Código autorizou expressamente a aplica- ção dos seus dispositivos processuais à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais disciplinados pela Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da ação civil pública de responsabilidade por danos causados (32) DANTAS, San Tiago. Op. cd., p. 192. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 61 ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artistico, estético, histó- rico, turistico e paisagístico e ao consumidor). Pode-se concluir, diante destas ponderações, que o Código do Con- sumidor, mais do que modernizar a legislação, criou as bases para a forma- ção de um novo direito: o Direito da Personalidade, que, semeado pela Revolução Francesa no século XVIII, cultivado ao longo do século XIX e ger- minado no século XX, estabelecerá as diretrizes jurídicas para o século XXI. 2.2.3.2. Natureza Principiológica do Código O Código do Consumidor é fundamentalmente um código principio- lógico. Não nasceu para disciplinar institutos juridicos específicos. An- tes, apodera-se de institutos típicos de outros ramos do direito, especi- almente do Direito Civil e do Direito Comercial, para acrescentar-lhes novo enfoque e novo alcance. Estabelece, assim, regras gerais que estruturam um corpo de prin- 61 cipios especificas à disciplina do Direito do Consumidor e que se sobre- põem às normas de direito geral nos casos que envolvam uma relação ~St de consumo. ~ II Posto que sua característica consiste em fixar regras gerais e prin- cipios vinculantes da relação de consumo, é natural que o Código utilize Conceitos genéricos e indeterminados que, para a sua plena concretiza- ção, precisam ser complementados por algum juizo de valor. A partir da base normativa genérica e inespecífica fornecida pela lei, o exegeta, com fulcro no poder-dever a ele delegado pelo Código, deve fixar a norma tipificadora de comportamento adequada ao caso. A autoridade competente para a aplicação da lei do consumidor é dotada pelo Código de ampla margem hermenêutica; a tarefa de valorar os interesses em litígio e ditar a regra especifica para o caso pode ser desempenhada pelo intérprete com alto grau de independência interna ou psicológica, segundo seus padrões éticos, morais, filosóficos e cul- turais. Essa tarefa exige muito do intérprete da lei, que, por vezes, tem de “criar” a norma especifica para o caso concreto. A liberdade criadora do intérprete da norma, de qualquer forma, deve sempre cingir-se aos limites da própria norma e aos princípios do direito; isto e, o intérprete — seja ajuizou a autoridade administrativa — deve realizar o processo hermenêutico de aplicação da lei com indepen- dência, mas não com arbitrariedade. 62 ROBERTO BASILONE LEITE 2.2.3.3. Hermenêutica Jurídica A denominação Código indica que o diploma normativo de proteção ao consumidor não se trata de mera lei esparsa, passivel de ser interpre- tada com base em princípios extraídos de Códigos anteriores, mas re- presenta um sistema jurídico autónomo. Como tal, nele próprio é que se deve buscar, no ato da aplicação a uma relação de consumo, os princi- pias e regras gerais norteadores da interpretação da lei. Em outras palavras, a hermenêutica do direito do consumidor se realiza de acordo com os princípios e normas gerais estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor, os quais só estão condicionados aos princípios emanantes da Constituição Federal. Dessarte, princípios ex- traidos de outros diplomas legais só podem ser adotados, no âmbito das relações de consumo, quando não conflitarem com os princípios do direito do consumidor nem, evidentemente, com os princípios constitucionais. Eis, por sinal, o cerne da mudança empreendida pelo Código do Consumidor. Se não se tratasse de um código principiológico, mas de uma simples compilação legal, os litígios de consumo continuariam a ser resolvidos à luz dos principias tradicionais do direito civil e comercial, de cunho eminentemente patrimoníalista. Entretanto, os novos princípios reguladores das relações de consumo encerram elementos conceituais metapatrimoniais, que não podem ser apreendidos a partir da estreita pers- pectiva do direito clássico, pois envolvem noções de sociologia, econo- mia, psicologia, politica e ética, tais como, por exemplo, as noções de utilidade do produto, equivaléncia económica, necessidade, satisfação de consumo e lesão moral. Os princípios civilístas romanisticos não comportam a solução das lides de consumo, pois não conseguem compreender a relação de con- sumo em sua totalidade. Para solucionar esse impasse foi que o Código do Consumidor firmou novos princípios e regras gerais, mais abrangem tes e adaptados às novas necessidades sociais. 2.3. DIREITO DO CONSUMIDOR 2.3.1. Definição de Direito do Consumidor Com base nos conceitos vistos anteriormente, pode-se afirmar que o Direito do Consumidor é o ramo do direito que estuda as relações INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 63 jurídicas entre fornecedor e consumidor final, em que este adquire pro- duto daquele ou utiliza serviços por ele prestados mediante remuneração e sem caráter trabalhista. 2.3.2. Autonomia do Direito do Consumidor No antigo Império Romano havia dois institutos legais destinados à salvaguarda do adquirente de bem vicioso ou defeituoso: a actio redhibi- tona e a actio quanti minorisi33’ A ação redibitória, utilizada pelo adqui- rente para rejeitar a coisa recebida com vícios ou defeitos ocultos que a tornavam imprópria ao uso a que era destinada ou lhe diminuíam o valor, remanesce em nosso Código Civil, no art. 1.101. A actio aestimatoria ou quantiminonis também sobrevive no Direito brasileiro, noart. 1.105 do 44ff Código Civil. Por meio dela, o adquirente reclama o abatimento do preço, (a quando a coisa adquirida, embora imperfeita, ainda lhe é proveitosa. Só no século XX o Direito do Consumidor surge como disciplina autônoma, dotada de princípios e objeto próprios. e:’ Posto envolver a participação profissional do empresário, a relação de consumo refoge à órbita estrita do Direito Civil. Também não se compreen- de nado Direito Comercial, que alcança, de ordinário, apenas as relações ml negocíais entre empresários — e um dos sujeitos da relação de consumo, a saber, o consumidor, não é comerciante. A dificuldade de enquadramento ti da relação de consumo entabulada entre empresário e consumidor impôs a criação de uma nova disciplina jurídica capaz de abarcar essa relação de forma integral e unitária, com a devida profundidade e ordem sistemática. O Direito do Consumidor enfeixou um vasto leque de relações jurí- dicas que antes eram tratadas isoladamente, ora no campo do Direito das Obrigações, ora nodo Direito Comercial, ora no Financeiro. E muito esclarecedora a revisitação às obras clássicas, da época anterior ao aparecimento do Direito do Consumidor. Tome-se por exemplo o monu- mental Tratado de Direito Privado, de Pontes de Miranda, editado em 1964(34t: nos tomos 45 e 46 são abordadas, em capítulos distintos, as relações contratuais de seguro, de crédito, de hospedagem e outras espécies de relação a que hoje chamamos genericamente de consumo. Nenhum indício havia, na época, de que essas relações um dia viriam a (33) BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados unidos do Brasil..., cii., p. 215-220. (34) MIRANDA. Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964, t. 45/46. 64 ROBERTO BASILONE LEITE ser enfeixadas nesse conceito geral — qual seja, o de relação de consu- mo — e que os contratantes adquirentes ou tomadores dos serviços seriam arrolados no gênero consumidor ArielAriza entende que o reconhecimento de um novo ramo do direito supõe que previamente se haja logrado estabelecer sua autono- mia material e formal. A autonomia material compreende três subespécies: a autonomia socioiógica, a autonomia normativa (normológica) e a auto- nomia discursiva ou dialética (dikelógica). A autonomia formal engloba o que Aniza chama de “autonomías secundarias”, ao frisar: “es evidente que las modificaciones que se producem en Ias sociedades indícan que ciertos sectores dela vida social deben contar con autonomia”]351 Em síntese, a caracterização de uma nova disciplina jurídica pres- supõe a existência de um conjunto de princípios jurídicos específicos e de um objeto distinto e relevante. O objeto do Direito do Consumidor — a relação de consumo — é suficientemente relevante para justificar a criação de uma nova discipli- na, já que atinge grande parte dos atos da vida cotidiana de quase toda a população do planeta. E, ademais, distinto, por possuir características que o diferenciam das demais espécies de relações jurídicas. Com efeito, a relação de con- sumo escapa à órbita estrita do Direito Civil porque pressupõe a participa- ção profissional do empresário, contudo também não se compreende no Direito Comercial, que disciplina as relações negociais entre empresários. Por outro lado, o novo complexo de princípios jurídicos orientado- res das relações de consumo implantado pelo Código do Consumidor difere das estruturas juspríncipiológicas preexistentes. Tem base científica, portanto, a tese da autonomia do Direito do Consumidor, cujos princípios estruturantes chegam. em alguns pontos, até mesmo a colidir com os princípios clássicos do Direito Civil e do Direito Comercial. 2.3.3. Finalidade do Direito do Consumidor A finalidade última do Direito do Consumidor é proporcionar har- monia entre os fornecedores e os consumidores no ãmbíto das reIs- (35) ARIZA, And. ‘Aspectos contratuaies de ia defensa dei consumidor”. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 85, n. 726, abr. 1996, p. 27. INTRODuÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 65 ções de consumo, o que busca alcançar por meio da formulação de normas que: a) estabelecem um rol de direitos materiais do consumidor; b) criam instrumentos jurídicos destinados a assegurar a efetivida- de desses direitos e a promover a proteção do consumidor; c) instituem canais de representação que permitem aos consumi- dores atuar nos órgãos do Estado competentes em matéria de consumo e participar das decisões políticas do setor. 2.3.4. Natureza Jurídica do Direito do Consumidor A norma de consumo é de natureza pública, conforme declara ex- plicitamente o art. 1 ~ do Código de Defesa do Consumidor. 2’ Dado serem de ordem pública e interesse social as normas de proteção e defesa do consumidor, os interesses por elas resguardados são irrenunciáveis. E irrelevante a vontade das partes, porque o interes- se social está acima do individual. L~L São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que impliquem renúncia ou disposi- ção de direitos por parte do consumidor, conforme dispõe o art. 51, mci- sol, do Código. ti: Essa irrenunciabilidade encontra seu fundamento no fato de que a lesão a um consumidor afeta um número indeterminado de outras pes- soas e frustra o objetivo primordial da lei, que é ode reduzir os riscos de consumo por meio do desestímulo à repetição do erro pelo fornecedor. rn 3. POLÍTICA NACIONAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO As leis esparsas que tratavam das relações de consumo vigen- tes até 1990, por não comporem uma unidade sistemática, não permi- tiam a formulação de uma estratégia política de médio ou longo prazo nesse setor. Tal deficiência foi sanada pelo Código do Consumidor que, em seu art. 4~, definiu em termos expressos uma política nacional das relações 1 de consumo, cujos objetivos consistem no atendimento das necessida- des dos consumidores, no respeito à sua dignidade, saúde e segurança, ‘1 na proteção de seus interesses econômicos, na melhoria da sua quali- dade de vida e na transparência e harmonia das relações de consumo. Eduardo Bfttarchama a atenção para o aspectojurídico-ideológico da questão, quando afirma que a política nacional das relações de con- sumo “é uma política essencialmente calcada na necessidade de forma- ção de uma ideologia de respeito aos direitos da personalidade”. ti,, Em seguida, indica os tópicos abrangidos pela ideologia da política i’~IiI nacional de consumo: “a) uma política nacional de desenvolvimento; b) uma política nacional de proteção do consumidor; c) uma política nacional de incentivo ao respeito dos direitos funda- mentais; d) uma política nacional de cultura (empresarial e consumerista) do consumo; e) uma política nacional de estudos, informação e divulgação de dados do setor; f) uma política nacional de fiscalização e efetivação de direitos neste setor”.136t (36) BITTAR, Eduardo O. B. Direitos do consumidor e direitos da personalidade: limi- tes, intersecções, relações”. Revista de Informação Legislativa, Brasília. DF, v. 36, n. 143, jul./set. 1999, p. 66. 68 ROBERTO BASILONE LEITE 3.1 - PRINCÍPIOS DO DIREITO DO CONSUMIDOR O art. 49 do Código do Consumidor estipula os princípios que re- gem as relações de consumo e que podem ser entendidos como os princípios do Direito do Consumidor. Note-se que o Código não se limita a traçar uma política de prote- ção do consumidor, mas estabelece os preceitos gerais reguladores de toda a atividade estatal e privada afeta às relações de consumo. Os princípios fundamentais da política nacional de relações de con- sumo podem ser reduzidos a sete categorias: a) principio protecionista ou da vulnerabilidade; b) princípio da intervenção estatal ou da obrigação governamental; o) princípio democrático ou da representação; d) princípio da qualidade ou da garantia de adequação; e) principio da boa-fé objetiva; f) princípio da informação e da educação; g) principb da efetividade da norma ou do acesso à justiça. O Código do Consumidor promoveu uma reviravolta na doutrina jurí- dica dos contratos, em razão de ter introduzido mudanças estruturais nesse campo ao estabelecer novos princípios, opostos aos anteriores. Com efeito, a teoria clássica dos contratos era regida por certos princípios tradicionais do direito, que são a seguir discriminados. a) O tradicional principio da autonomia da vontade dos contratan- tes,137t embora não totalmente eliminado, foi suplantado pelos princípios protecionista e da intervenção estatal. b) O princípio da força obrigatória do contrato1~1 foi substituído pelo da garantia de adequação e pelas teorias da imprevisão e da nulidade das cláusulas lesivas. o) O principio da relatividade dos efeitos dos contratos,39t segundo o qual o contrato tem eficácia limitada às partes, cedeu lugar ao princí- (37) COMES, Orlando. Op. cff, p. 25-37. (38) COMES, Orlando. Op. cit, p. 38-41. (39) COMES, Orlando. Op. oit., p. 43-44. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 69 pio da representação e ás regras da proteção de terceiros e da descon- sideração da personalidade jurídica. d) O princípio da boa-fé~40t foi mantido, porém com sérias altera- ções, já que o fornecedor não pode se valer da exceção de boa-fé para evadir-se do dever de reparar os danos causados ao consumidor. De certa forma, aquele principio clássico foi convertido no principio da boa-fé objetiva. Passaremos agora a uma análise sintética de cada um dos prin- cípios do Direito do Consumidor. 3.1.1. Princípio Protecionista O principio protecionista, ou da vulnerabilidade, está inserido no t art. 49, incisos 1 e II, do Código do Consumidor. Após deixar explícito, no inciso I,o “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no merca- do de consumo”, o Código preceitua a “ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor’, no inciso II. ~itl O Código do Cunsumidor — e, de maneira geral, o próprio Direito do Consumidor—ostenta um Caráter marcadamente protecionista, pois suas normas destinan-i-se a proteger a parte tida como a mais vulnerável na relação de consumo, que é o consumidor. DI A expressão protecionismo pode, em face de uma análise superfi- cial, levar à idéia errônea de que a lei de consumo tem espírito antiisonô- mico, ou seja, pode-se vislumbrar um conflito entre o principio protecio- nista e o principio da isonomia, Constante do caputdo art. 59 da Consti- tuição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem dis- tinção de qualquer natureza”. Na verdade, o antagonismo é apenas aparente. A proteção do con- sumidor não é o fim último da lei de consumo; é, antes, uma espécie de ‘fim intermediário” (a finalidade imediata, observável no direito positivo) destinado à viabilização de seu verdadeiro fim (a finalidade mediata, la- tente na filosofia da norma), que é justamente a garantia da igualdade entre as partes envolvidas na relação de consumo. Procura a lei consumerística promover o equilíbrio econômico e juridi- co entre as partes envolvidas na relação de consumo, por meio da fixação (40) COMES, Orlando. Op. cit, p. 43. 70 ROBERTO BASILONE LEITE de regras protecionistas destinadas a compensar juridicamente a inferiori- dade estratégica do consumidor decorrente de sua maiorvulnerabilidade. Em última análise, portanto, o caráter protecionista do Direito do Consu- midor visa justamente a assegurar a isonomia nas relações de consumo. O direito positivo do consumidor, como se depreende, é um direito de Caráter protecionista, que nasceu da necessidade de se garantir pro- teção lega! a uma determinada espécie de agente socioeconômico —o consumidor—, que, em condições naturais, se encontra em situação econômica e juridicamente inferior em face daquele que representa o outro pólo da relação de consumo, que é o fornecedor. Para concretizar esse ideal de igualdade jurídica entre consumidor e fornecedor, o Código do Consumidor muniu a sociedade, especialmen- te os órgãos fiscalizadores e os juizes, de instrumentos eficazes. Em primeiro lugar, criou uma nova concepção de contrato individu- al, atribuindo a ele uma dimensão social e a ele agregando efeitos soci- ais que antes não eram reconhecidos. A autonomia da~ vontade deixou de ser o elemento essencial do conceito de contrato. >‘ Em segundo lugar, o Estado passou a intervir na~l ões de con- sumo, por meio do controle de preços, pela imposição ou vedação de cláusulas Contratuais, pela estipulação de níveis mínimos de qualidade dos produtos e serviços e assim por diante. Em terceiro lugar, o Código fixou regras de direito material e pro- cessual contrárias às do direito tradicional. Aponte-se, como exemplo, a regra que declara nulas de ofício determinadas cláusulas contratuais consideradas abusivas; a que inverte o ônus da prova em favor do consu- midor e a que afasta a personalidade juridioa da sociedade comercial para imputar a responsabilidade civil diretamente aos sócios. O principio central do Direito do Consumidor é o principio protecio- nista ou da vulnerabilidade e dele decorrem dois outros princípios, a sa- ber: o da adequação e o da interferência estatal. Estes três princípios formam o “tripé” de sustentação do Direito do Consumidor. Existem outros princípios subsidiários orientadores da disciplina em estudo, também inspirados no principio protecionista, os quais se- rão averiguados mais adiante, A orientação protecionista adotada pelo legislador brasileiro é a mesma seguida pela ONU. O item 3 da Resolução n. 39/248, de 9 de ahrWd~ 1985, estabelece as diretrizes internacionais da política de pro- 70 flOBERTO BASILONE LEITE de regras protecionistas destinadas a compensar juridicamente a inferiori- dade estratégica do consumidor decorrente de sua maior vulnerabilidade. Em última análise, portanto, o caráter protecionista do Direito do Consu- midor visa justamente a assegurar a isonomia nas relações de consumo. O direito positivo do consumidor, como se depreende, é um direito de caráter protecionista, que nasceu da necessidade de se garantir pro- teção legal a uma determinada espécie de agente socioeconômico — o consumidor—, que, em condições naturais, se encontra em situação econômica e juridicamente inferior em face daquele que representa o outro pólo da relação de consumo, que é o fornecedor. Para concretizar esse ideal de igualdade jurídica entre consumidor e fornecedor, o Código do Consumidor muniu a sociedade, especialmen- te os órgãos fiscalizadores e os juizes, de instrumentos eficazes. Em primeiro lugar, criou uma nova concepção de contrato individu- al, atribuindo a ele uma dimensão social e a ele agregando efeitos soci- ais que antes não eram reconhecidos. A autonomia da vontade deixou de ser o elemento essencial do conceito de contrato. Em segundo lugar, o Estado passou a intervir nas relações de con- sumo, por meio do controle de preços, pela imposição ou vedação de cláusulas contratuais, pela estipulação de níveis mínimos de qualidade dos produtos e serviços e assim por diante. Em terceiro lugar, o Código fixou regras de direito material e pro- cessual contrárias às do direito tradicional. Aponte-se, como exemplo, a regra que declara nulas de oficio determinadas cláusulas contratuais consideradas abusivas; a que inverte o ônus da prova em favor do consu- midor e a que afasta a personalidade jurídica da sociedade comercial para imputar a responsabilidade civil diretamente aos sécios. O principio central do Direito do Consumidor é o principio protecio- nista ou da vulnerabilidade e dele decorrem dois outros princípios, a sa- ber: o da adequação e o da interferência estatal. Estes três princípios formam o “tripé” de sustentação do Direito do Consumidor. Existem outros princípios subsidiários orientadores da disciplina em estudo, também inspirados no principio protecionista, os quais se- rão averiguados mais adiante. A orientação protecionista adotada pelo legislador brasileiro é a mesma seguida pela ONU. O tem 3 da Resolução n. 39/248, de 9 de abril de 1985, estabelece as diretrizes internacionais da política de pro- INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 71 teção aos consumidores e, em seus primeíros itens, prevê: “a) a prote- ção contra os riscos à sua saúde e à sua segurança; b) a promoção e a proteção dos seus interesses econômicos”. 3.1.2. Princípio da Intervenção Estatal O principio da intervenção estatal, também chamado de princípio do dever governamental,14~’ é aquele segundo o qual o Estado deve inter- ferir nas relações de consumo no sentido de assegurar a observância dos direitos fundamentais do consumidor. Encontra-se inserido de forma esparsa em diversos dispositivos do Código. O art. 49, inciso II, ordena a “ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: (..) c) pela presença do Estado no 4 mercado de consumo . ~ *1! O inciso VI do mesmo dispositivo legal determina a “coibição e iii repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de con- sumo , atividades que só podem ser desenvolvidas por órgãos dotados LIV 1~g de poder estatal. O art. S~ prevê instrumentos por meio dos quais o Estado interfere ~“ “‘ nas relações de consumo: a assistência jurídica integral e gratuita para o consumidor carente; as Promotorias de Justiça de Defesa do Consu- midor; as Delegacias de Policia especializadas no atendimento de con- sumidores vítimas de infrações penais de consumo; os Juizados Espe- ciais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo. O Código ainda manda o Governo Federal “incentivar, inclusive com recursos financeiros e outros programas especiais, a formação de enti- dades de defesa do consumidor pela população e pelos órgãos públicos estaduais e municipais” (art. 106, inciso IX). 3.1.2.1. A lntervenØo do Estado na Atividade Privada A questão da intervenção do Estado nas relações privadas é talvez a mais central no âmbito da economia política e da teoria política, ligada à própria conceituação de Estado. (41) ALVIM, Arruda (eta!). Código do consumidor comentado. 2e ed. mv. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 46. ROBERTO BASILONE LEITE 72 Em seu cerne está o confronto entre dois princípios antagônicos: de um lado, o princípio social, e de outro, o principio liberal. Um principio se refere ao conteúdo do Estado liberal de direito, e o outro, ao do Esta- do social de direito. E interessante notar que as duas teorias avocam exatamente o mesmo objetivo: o de tornar efetiva a proteção dos direitos dos cida- dãos. A diferença está nos meios propostos para se atingir tal desi- derato. O principio liberal prega que o cidadão deve ser livre para exer- cer seus direitos, ou seja, que a melhor forma de se garantir a efetivi- dade dos direitos dos cidadãos é não permitir que o Estado interfira nas relações privadas, criando embaraços ao exercício desses direi- tos. O principio social, por sua vez, afirma que a garantia efetiva dos LII direitos da cidadania depende da intervenção do Estado nas relações intersubjetivas para promover a equiparação de forças entre os desi- guais. O Renascimento surgiu no norte da Itália, em fins do século XIV, como uma reação ao totalitarismo dos reis e da Igreja e, ao mesmo tempo, como um prenúncio do liberalismo. Sustentavam os filósofos re- nascentistas que o homem vem ao mundo para desenvolver livremente as suas possibilidades e para desfrutar a sua vida, não para ser servo de Deus. O homem, até então dominado pelo meio natural, começa a inver- ter a situação e a impor o seu domínio sobre a natureza. Da Itália o movimento se expande rapidamente por toda a Europa. Na seqüência do processo de evolução das idéias liberais, o sécu- lo XVII vê surgir a teoria materialista de Thomas Hobbes (1588-1679) e o racionalismo de René Descartes (1596-1650). Spinoza defende a liber- dade de opinião e a tolerância religiosa. doM Locke, no final do século XVIII, concluindo que existe um direito natural e que todo ser humano traz consigo ao nascer certos conçeitos éticos universais, passa a pregar a adoção do Estado de direi- to e fornece os elementos com os quais Montesquieu formulará a teoria da divisão dos poderes. Inspirados pelo empirismo inglês, os iluministas franceses, em meados do século XVIII, rebelam-se definitivamente contra o autorita- rismo estatal e estabelecem as bases teóricas da Revolução France- sa, promovida em 1789 sob os auspícios das idéias liberais da nascente burguesia. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 73 3.1.2.2. Estado Liberal de Direito — Séculos XVIII-XIX A conceituação de Estado envolve sérías dificuldades. Uma delas decorre do confronto entre o conteúdo do Estado liberal de direito e do Estado social de direito. Os direitos individuais, oriundos das lutas da antiga burguesia, des- tinam-se a tutelar as liberdades privadas, nos setores político, econômi- co e pessoal. Representam, portanto, um empecilho à intervenção do Estado, e dão forma ao Estado liberal de direito. Já os direitos sociais, diversamente, se destinam à participação dos cidadãos na distribuição da riqueza social por eles produzida e no próprio poder político. Pressupõem. assim, a interferência direta do Es- tado no patrimônio individual, como meio de proporcionar a redistribuiçáo equánime dos bens e do poder. Dão forma ao Estado social de direito. Originariamente, os Estados eram totalitários. A pessoa do gover- ~‘t II nante se confundia com o próprio Estado e não existia nenhuma regra superiora ele, à qual estivesse sujeito. Orei tinha poder de vida e morte sobre seus súditos. Em oposição ao Estado totalitário, surge no século XVIII o Estado liberal de direito, assentack. ia revolucionária idéia de que ‘LI ti o poder político do governante.deve estar lintado pelas normas de direi- to. Foi essa idéia que deu origem às primeiras constituições. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, sob o manto do Estado liberal, o sistema capitalista vai se organizando. O Estado liberal atinge seu ápice na virada do século XX, quando os capitais comercial, industrial e bancá- rio, que atuavam separadamente, unem-se em grandes conglomerados para dar origem ao que Norberto Bobbio chama de capital financeiro.142~ Isso determina, segundo Bobbio, uma profunda mudança na estru- tura do Estado liberal. Até então, a função do Estado, no que se refere à atividade econômica, tinha sido apenas a de garantir a liberdade de pro- duzir, comerciar e transportar. A partir dai, como resultado da invencível pressão dos novos grupos capitalistas muitissetoriais ou monopólicos, o Estado passou a atuar diretamente na atividade econômica, mediante a edição de normas e regulamentos tendentes a proteger aqueles gru- pos capitalistas e ainda pela criação da infra-estrutura necessária à valo- rização do capital monopólico. (42) BOBBIO, Norberto (e! ai). Dicionário de política. 9 ed. Tradução de Carmen C. varriale (ei ai.) Brasília, DE Ed. da Universidade de Brasilia, 1997, v. 1, p. 402. 74 ROBERTO BASILONE LEITE O desenvolvimento dos grandes grupos capitalistas dependia de dois fatores: a) a pesquisa científica e tecnológica; b) a obtenção de mão-de- obra cada vez mais qualificada. O capital não tinha como se desenvolver sem a concorrência dessas duas premissas. Ocorre que tanto a pesquisa científica e tecnológica quanto a for- mação educacional de profissionais qualificados são tarefas que exigem investimentos pesados em infra-estrutura. Assim, o Estado liberal de direito passou a aplicar o capital público na execução desses planos infra-estruturais; ou seja, a intervenção do Estado destinava-se agora a socializar os custos e privatizar os resultados da ação capità sta. Re- partia com toda a sociedade civil os custos da valorização pat imônio dos grupos capitalistas monopólicos. Em termos práticos, isso significa que os grandes grupos capita- iistas recebiam gratuitamente aquilo de que dependiam para valorizar continuamente o seu patrimônio: a) a mão-de-obra qualificada, prepara- da pelas escolas ao longo de pelo menos quinze anos, sob o custeio do Estado; b) a infra-estrutura composta de estradas para o transporte da produção, sistemas de esgoto e de tratamento da água poluida pelas indústrias, sistemas de produção e transporte de energia, sistemas de comunicações, etc. Essa constatação deu causa à chamada crise de legitimação do Estado liberal, em que se questionava a legitimidade da intervenção es- tatal destinada a favorecer a acumulação do capital. A influência um tanto tardia do liberalismo no Brasil levou à abolição oficial da escravidão em 1888 e, no ano seguinte, à proclamação da Repú- blica. A Constituição de 1891, de espírito liberal, assegurou os direitos índivíduais fundamentais, mas passou ao largo das questões sociais. Em 1916 entrou em vigor o Código Civil, inspirado no Código de Napoleão, e, portanto, também de traços nitidamente liberais e patrimonialistas. 3.1.2.3. Estado Social de Direito — Séculos XIX-XX O liberalismo dá causa à Revolução Industrial. Esta, porsua vez, leva ao agravamento do problema da pobreza nas cidades. A urbanização esti- mula o êxodo rural e atrai o povo pobre para as cidades, onde ele acabará relegado ao desamparo, sobretudo no que tange à assistência e à segunda- de, sujeito aos caprichos dos proprietários das poucas empresas então existentes e longe da solidariedade natural das comunidades camponesas. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 75 Em meados do século XIX a industrialização descontrolada instala na Europa um sistema de exploração brutal do trabalho humano, o que faz eclodir a chamada “questão social” — semente dc moderno Direito do Trabalho.143~ Instaura-se a crise de legitimação do Estado liberal. O planeta assiste calado, concomitantemente, ao início do proces- so de devastação ecológica. O professor Irany Ferra ri1 em seu notável curso sobre a história do trabalho, consegue transmitir, em poucas palavras, toda a carga psicos- social vivenciada na época pela sociedade: “O trabalho, se por um lado, deu ao homem algum poder, por outro, tornou-o impotente diante de um enorme instrumental que o obriga a pensar em pôr a salvo a própria existência humana. De uma parte eleva, libera e civiliza o homem para o mundo; de outra, reduz o homem a tarefas que o embrutecem, pela rotina desgastante”1441 1 Afinal, com o surgimento dos grandes grupos capitalistas monopôli- cos no inicio do século XX, evidenciam-se os efeitos perniciosos do libera- lismo e da Revolução Industrial sobre a grande massa da população. Como lI’)) contrapartida, floresce o pensamento socialista, segundo o qual o Esta- do liberal, por não intervir nas relações privadas, possibilita a exploração dos indivíduos economicamente mais fracos pelos mais fortes. b As idéias socialistas propagam-se graças à influência das obras de Claude Henrí Sainl-Simon (1760-1825), Robert Owen (1771-1858), Louis Blanc(181 1-1882), Ferdir,and Lassale (1825-1864) e, em seu apo- geu, de KarI Marx(1 818-1883) e Friedrich EngeIs (1820-1895), que publi- cam o Manifesto Comunista em Londres, em 1848, no idioma alemão. O Manifesto Comunista era absolutamente explícito em suas in- tenções: “Os comunistas recusam-se a ocultar suas opiniões e suas intenções. Declaram abertamente que seus objetivos só podem ser al- cançados com a derrubada violenta de toda a ordem social até aqui existente. Que as classes dominantes tremam diante de uma revolução comunista. Os proletários nata têm a perder nela a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vosl”1451 (43) BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil. 2~ tir. São Paulo: LTr; Rio de Janeiro: Fundação casa de Rui Barbosa, 1988. p. 20. (44) FERRARI, Irany. História do trabalho, do direito do trabalho e da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998, p. 48. Em homenagem a Armando casimiro costa. (45) MARX, KarI: ENGELS, Fríedricn. Manifesto do Paftido Comunista. Tradução de Pietro Nassettí. São Paulo: Martín claret, 2001, p. 82. 76 ROBERTO BASILONE LEITE Os autores daquele documento propugnavam pela obrigatorie- dade do trabalho para todos e pela centralização nas mãos do Estado de todos os meios de produção, de transporte, bancos, educação e propriedade. O socialismo científico de Marx comporta uma abordagem socioló- gica,1461 centrada no materialismo histórico, e uma abordagem econômi- ca,t47~ centrada no materialismo dialético. Para o materialismo histórico, os fatos econômicos são a causa de todos os acontecimentos e mudanças sociais, políticos e culturais. O materialismo dialético, por sua vez, se lastreia no chamado determi- nismo histórico, cuja tese central se sustenta em duas leis: a lei da concentração capitalista o a lei da expropriação automática. III De acordo com a lei ud concentração capitalista, a sociedade capi- l(j talista se expandirá cada vez mais, os ricos ficarão mais ricos e os 11h pobres mais pobres, a classe média irá se proletarizando e as empresas irão aumentando de tamanho e reduzindo em quantidade. Por outro lado, segundo a lei da expropriação automática, um dia a sociedade capitalista fatalmente se transformará numa sociedade socia- lista, caracterizada pela ditadura do proletariado e pelo monopólio esta- tal de todos os meios de produção e de distribuição. Nesse dia, todas as gigantescas empresas multinacionais do mundo serão transferidas, pa- cificamente ou pelo uso da força, das mãos de seus poucos proprietári- os para as mãos do Estado totalitário. O elemento-chave para a compreensão dessa transformação está no conceito de mais-valia, ponto fundamental da doutrina marxista em sua concepção econômica. A mais-valia é a diferença entre o que a mão-de-obra trabalhadora de um pais produz e o que ela recebe de volta. Por exemplo, o trabalhador produz 100, mas ganha 10; os9O restantes são a mais-valia que moralmente, na concepção de Marx, pertence ao trabalhador, mas acaba ficando com o capitalista sob a forma do que ele chama de “apropriação indébita do valor-trabalho”. Na segunda metade do século XIX é criado o socialismo cristão, cujo precursor é o padre católico francês Robert de Lamennais (1782- 1852). Em 1891,0 Papa Leão XIII (Papado: 1878-1903) edita a famosa (46) HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 13 ed. 6 tir. São Paulo: Atlas, 1978. p. 223. (47) HUGON, Paul. lbidem, p. 227. INTRODUÇAO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 77 encíclica F?erum Novarun,, em que defende a manutenção da proprieda- de privada, mas condena os excessos do capitalismo. Isso tudo faz com que o Estado passe a assumir uma condição intervencionista. Nasce, assim, no inicio do século XX, o Estado inter- ventivo, ou Estado social de direito. lnicialmente, a interferência estatal visava a conceder aos necessitados auxílio nos setores da previdência e da assistência sociais, que englobam o custeio do tratamento médico em caso de acidentes, doenças, invalidez e velhice. Com o tempo, o Estado foi regulamentando praticamente todos os setores da atividade produtiva, de forma cada vez mais minuciosa. Essa postura intervencionista tende a fazer com que os empreen- dedores percam o interesse financeiro na manutenção do processo pro- dutivo, o que leva à falência econômica do Estado. Mais uma vez com certo atraso, as idéias socialistas chegam ao 1 ~j Brasil em 1930. Gettillo Vargas assume o poder e implanta um programa ‘LI de governo rígorosamente intervencionista. a Ii’. ¼ r!fl 3.1.2.4.0 Estado Fiscal — Século XX :,~, ti 1 ~jtI O século XX, na expressão utilizada pelo historiador egípcio Eric Hobsbawm, é uma era de extremos, caracterizada pela radical oposição :: HSI de sistemas de poder incompativeis e por grandes confrontos ideológi- 2111 cos entre capitalistas e socialistas movidos pela ambição da hegemonia mundial, que ajudaram a provocar os maiores conflitos armados da his- tória, violentas revoluções e genocídios raciais. l-lobsbawm chama de “breve século XX’ o período histórico iniciado em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, e encerrado em 1991, como colapso socialista euro-soviético assinalado pela perestroika (‘reestrutu- ração’) de Mikhail GorbaChez pela desintegração da União Soviética sob Bons Ye/tsin, pela queda do muro de Berlim e dos governos comu- nistas do Leste Europeu — conjunto de fatos que marca o fim da alterna- tiva comunista e da bipolaridade ideológica no mundo.t481 (48) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2~ ed. l3~ remp. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: companhia das Letras, 2001, p. 472. Hobsbawm desenvolve uma teoria de periodização não cronológica da história con- temporãnea. baseada em ciclos conjunturais. Essa divisão lógica do tempo da história, a partir da Revolução Francesa, foi por ele apresentada nas obras: A Era das Revo- luções: 7789-1848; A Era do Capital: 1848-1875; A Era dos Impérios: 1875-1914 e Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 78 ROBERTO BASILONE LEITE No decorrer da primeira metade do século XX, as idéias socialistas se expandem e dominam imensas regiões: somente a União Soviética e a China comunista representam mais de vinte por cento do território do planeta e abrigam, nos anos 1980, trinta porcento da população mundial. Buscando uma síntese do conceito de Estado, Goldscheidelabo- ra, em meados do século XX, a teoria do Estado fiscal/49~ que possibi- litaria uma síntese entre o Estado liberal e o Estado social com a apli- cação da seguinte fórmula: mantém-se a propriedade privada dos mei- os de produção e, ao mesmo tempo, realiza-se a redistribuição da ren- da excedente pela via da tributação, ou seja, retira-se o excedente de renda das mãos do capitalista e reparte-se o montante entre todos os membros da sociedade. Na prática, porém, o Estado demonstra ser incapaz de suportar as pressões sociais e econômicas antagônicas exercidas, num flanco, pelo grande capital e, no outro, pela força-trabalho marginal. Por um lado, a autoridade política do Estado não se mostra suficiente para permitir que ele consiga impor o gravame sobre a renda do capital, de forma a privar o capitalista da mais-valia. Por outro lado, o aparelho estatal não conse- gue prover o erário de receita suficiente para atender ao incremento in- controlável de despesas públicas destinadas a socorrer uma população II! cada vez maior de miseráveis. li’ íI[ Isso constitui a chamada Crise fiscal do Estado, que se articula com a crise de legitimação do Estado para compor a crise social. 3.1.2.5. Estado Democrático e o Mínimo Social — Século XX A não-intervenção na economia, característica do Estado liberal de direito, propicia a exploração espúria dos mais fracos pelos mais fortes. A intervenção do Estado social, por sua vez, não é capaz de eliminar os problemas crônicos que atingem as comunidades — a miséria, o de- semprego, a deficiência da assistência médica e da formação educacio- nal —, porquanto, ou não consegue arrecadar o suficiente para realizar uma satisfatória redistribuição da renda excedente e prever as necessi- dades da mão-de-obra ativa e marginal, ou, se o consegue, afugenta os empreendedores e faz com que eles percam o interesse econômico na manutenção do processo produtivo. Eis o dilema inerente à tarefa de estabelecer o correto dimensionamento do conceito de Estado. (49) BOBBIO, Norberto (eI ai). Dicionário de política, cit., p. 404. INTR0DUÇÃOA0 DIREITO DO CONSUMIDOR 79 Para tentar solucionar esse impasse, surge o Estado democrático de direito, que garante a propriedade e a liberdade de produção, mas exige do titular do lucro que se responsabilize diretamente pela manu- tenção de determinados direitos individuais e sociais mínimos. O grande obstáculo teórico dessa concepção de Estado está na definição de quais são os direitos mínimos e, além disso, do alcance objetivo da responsa- bilidade do capitalista. Convém ressaltar que se trata de duas questões distintas. Uma consiste em definir o que exatamente se deve compreender por direito social mínimo; outra, em fixar os limites da responsabilidade do titular do capital. Quanto à primeira questão — da definição dos direitos sociais mí- nImos —, existem duas posições antagônicas. De um lado estão os capitalistas, que hoje defendem a doutrina neoliberal. Desde que surgiu, no final dos anos 1960,0 neoliberalismo colocou em execução o projeto destinado a excluir das Constituições do mundo as normas que impli- quem a interferência estatal na atividade econômica e na ordem social. Com isso, revelou sua tendência de reduzir o quanto possívei o circuio dos direitos sociais juridicamente protegidos. Na outra extremidade, os movimentos populares pugnam pela am- pliação irrestrita dos direitos sociais, sem a preocupação de proceder a uma análise macroeconômica objetiva acerca da possibilidade de vir a ocorrer um incremento irrefreável da demanda de despesas públicas, que acabe acarretando a debilitação ou o colapso do sistema econômi- co, em prejuízo da própria sociedade. Note-se que os direitos mínimos do cidadão hoje não se restrin- gem aos direitos patrimoniais, porquanto englobam também os novos direitos de personalidade, cujo delineamento é ainda mais intricado. Diante disso, continua em aberto a tarefa de encontrar uma meto- dologia capaz de permitir a realização do trabalho hermenêutico e dialá- tico de definição dos direitos mínimos, delimitação das responsabilida- des e implantação de meios para a efetivação desses direitos. 3.1.2.5.1. Neo/iberalismo Como término da Segunda Guerra Mundial em 1945 e a vitória dos países aliados, de linha democrática, os governos totalitaristas come- çam a cair. Naquele mesmo ano, termina no Brasil o período ditatorial ao ROBERTO BASILONE LEITE de Vargas, sendo votada em 1946 uma nova Constituição, que reduz, em alguns aspectos, a interferência do Poder Executivo nas relações econômicas e sociais. Entre 1985 e 1991, o capitalismo atravessa uma fase de grande entusiasmo, motivado por importantes acontecimentos: a fragmentação pacífica da União Soviética entre 1986 e 1991; o avanço triunfante da globalização econômica; a criação da Organização Mundial do Comércio em 1995, que sucede o GATT— Acordo Geral de Tarifas e Comércio; a ascensão instantânea dos Tigres Asiáticos, graças à adoção de méto- dos capitalistas de produção e comércio. Em discurso realizado em janeiro de 1991, o presidente George Bush anuncia o nascimento deque seria uma nova fase histórica, à qual batiza com a expressão “nova ordem mundial”,1501 que se torna famosa. Sustentam os defensores da “nova ordem” que essa fase assinala o ti esgotamento natural do socialismo e a consolidação do capitalismo. ir~ A partir de 1992, contudo, esmorece o otimismo e a humanidade sucumbe outra vez às incertezas. Tem inicio um período que Rubens Ricupero chama de “era dos desenganos”.151’ A aparente hegemonia li- beral-capitalista, que prometia ser o caminho para a concretização do tão almejado estado do bem-estar social, rui diante dos fatos: os massa- cres ocorridos na Bósnia entre 1992 e 1995, em Ruanda em 1994, na Tche- tchênia entre 1994 e 1996, na África em 1998, no Kosovo e no Timor Leste em 1999. A Rússia pós-perestroika revela sua situação desesperadora, dominada pelas máfias regionais. O perigo nuclear aumenta, com a aqui- sição pelo Paquistão e pela Índia de suas primeiras bombas nucleares. As crises monetárias e financeiras de efeito global se repetem em intervalos cada vez menores. Organizações internacionais promovem pro- testos populares violentos contra a globalização, como aqueles ocorridos em Washington; em Praga; os que paralisaram as negociações sobre in- vestimentos na reunião da Organização para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento norte-americana (OECD); os que tumultuaram a Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio em Seattle em dezembro de 1999; o Primeiro Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre em janei- ro de 2001 para contestar o Fórum Econômico Mundial de Davos; as ma- (50) LAMAzIÊRE, Georges. ‘O fim da guerra fria, a guerra do Golfo e a noção de nova ordem mundial”. Política extema, São Paulo, Paz e Terra, v. 4, n. 4, mar/maio 1996, p. 68. (51) RICUPERO, Rubens. ‘No apagar das luzes’. Folha de são Pauio, São Paulo, 19 dez. 1999, p. 2-2. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO cONSUMIDOR 81 nifestações em Gênova contra a cúpula do G-8 (grupo formado pelos sete países mais ricos do mundo e a Rússia), em julho de 2001, em que é morto o ativista italiano Cano Giullant Em setembro de 2001 ocorre o espetacular atentado anticapitalista no World Trade Center de Nova York. Mesmo assim, os Estados Unidos consolidam seu poder global, o que faz com que o capitalismo se dissemine, agora corporificado na doutrina neoliberal. Pode parecer despiciendo tratar desse tema no âm- bito de um estudo sobre o consumidor, mas a verdade é que nenhum assunto relevante do mundo contemporâneo pode ser perfeitamente com- preendido fora do contexto da hegemonia norte-americana. O projeto neoliberal, segundo prescrição aprovada pelo Consenso de Washington, se apóia na idéia da redução do tamanho do Estado e da eliminação do déficit público. Foi essa teoria que desencadeou uma 1h onda mundial de redução de gastos por parte de quase todos os gover- Ri 1 nos, privatizações de empresas estatais e modificação das legislações LI .I’4 dos países para a redução dos direitos coletivos e sociais. O avanço tecnológico das comunicações e dos transportes possi- bilita que as grandes empresas estendam seu parque produtivo e mer- cantil por todo o território do planeta. Isso resulta no acirramento da competição no mercado internacional. lmpelidas pela necessidade de reduzir os custos e aumentar a produtividade, as empresas multinacio- nais entram em conflito com os governos, que instituem barreiras alfan- degárias e subsídios destinados a favorecer as indústrias nacionais. Para tentar equacionar os graves dissensos internacionais, são dinamizadas as atividades da Organização Mundial de Comércio e dos blocos econômicos: na Europa, a União Européia (UE) e a Comunidade dos Estados Independentes (CEI); na América, o Acordo de Livre Co- mércio da América do Norte (NAFTA), o Mercado Comum do Sul (MER- COSUL), a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), o Mercado Comum e Comunidade do Caribe (CARICOM) e o Pacto Andino; na Asia, a Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (APEC) e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN); na África, a Comunidade da África Meridional (SADC). Megaempresas globalizadas ostentam faturamentos anuais maio- res do que o PIB de certos países. Esse imenso poder econômico per- mite que elas influam nas decisões dos governos, mais acentuadamente nos países subdesenvolvidos, no sentido de reduzir os custos de produ- ção e obter diversas vantagens econômicas em troca da instalação de unidades fabris no pais. 82 ROBERTO BASILONE LEITE O Estado tende a abdicar a sua condição de garantidor do interes- se público para tornar-se garantidor da atividade produtiva. 3.1.2.5.2. Neoliberalismo no Brasil No Brasil, a reação do liberalismo econômico à intromissão do Estado nas relações produtivas começa a se fazer sentir com vigor a partir de 1980. Em 1985,0 País caminha a passos largos no sentido da redemocratização, após vinte anos de férrea ditadura militar. O neolibe- ralismo define seu projeto, que promete a fusão entre o pensamento social e o liberal. A Constituição de 1988 expõe com clareza essa aparente anti- nomia. Por um lado, faz largas concessões de caráter liberalizante: cria espaços de atuação para o capital internacional, assegura a Ii- berdade da empresa, amplia a autonomia dos sindicatos, dinamiza o direito de associação e reconhece a representatividade popular das entidades não-governamentais. Por outro lado, dá status constitucio- nal aos direitos dos consumidores, dos trabalhadores e á proteção do ‘III patrimônio histórico, cultural e ecológico, com o que fortalece a função fiscal e punitiva do Estado e estimula o intervencionismo estatal nas relações privadas. ‘Ir A contradição, no entanto, é apenas aparente, por ser]ustamente essa a proposta do neoliberalismo: garantir direitos individuais e sociais, inclusive na área dos direitos metapatrimoniais, da cultura e da ecologia, ao mesmo tempo em que mantém “válvulas de escape” tendentes a pos- sibilitar a flexibilização da aplicação da lei para a sua adaptação em cada caso concreto. A doutrina neoliberal se fundamenta numa idéia de liberdade com- prometida com determinados padrões sociais minimamente desejáveis. As “válvulas de escape” flexibilizantes são necessárias para permitir a constante criação de espaços necessários ao desenvolvimento do setor comercial-produtivo-financeiro, bem como para a viabílização de condi- ções de concorrência no mercado global para o produto brasileiro — sem o que os direitos humanos assegurados na lei acabariam se tornan- do letra morta. No embate legislativo, a tese neoliberal vem prevalecendo. Alguns atos determinados pela Constituição de 1988 denotam tendência inter- vencionista, tais como a edição do Código de Defesa do Consumidor e a ampliação física da Justiça do Trabalho. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO cONSUMIDOR 83 No entanto, a via contrária — a da Iiberalização— é a que apresen- ta maior avanço quantitativo e qualitativo, sob o ponto de vista exclusivo da normatização (ou, mais propriamente, da “desnormatização”). O pro- grama governamental de privatizações, iniciado em 1981, deslanchou nos anos 90. A inflação foi contida, o que, no entanto, não possibilitou praticamente nenhuma alteração no péssimo quadro social brasileiro: os índices de qualidade de vida do Pais ainda estão entre os mais baixos do mundo; a educação e a saúde continuam caóticas. Foi reconhecida a possibilidade de terceirização por parte das empresas, através de sociedades cooperativas (art. 442 da CLI) ou de contratação de serviços que não representem a atividade-fim da empre- sa contratante (Enunciado n. 331 do TST). Em 1999, surgiram a Lei n. 9.849/99, que prevê a contratação de mão-de-obra por tempo determina- do para atender a necessidades temporárias no serviço público, e a Lei n. 9.867/99, que autoriza a organização em forma de cooperativas soci- LI ais de “atividades agrícolas. industriais, comerciais e de serviços” e de “serviços sociossanitários e educativos”. A estrutura sindical clássica, originária do inicio do século XX, foi 9 se enfraquecendo até que, no ano 2000, desmoronou, com a extinção da ~ 1 representação classista (Emenda Constitucional n. 24, de dezembro de EI 1999) e a criação das Comissões de Conciliação Prévia na Justiça do Trabalho (Lei n. 9.958, de janeiro de 2000). 3.1.2.6. O Estado da Informação — Século XXI 3.1.2.611. A Disseminação do Conhecimento A sociedade — e destacadamente os agentes sociais responsá- veis pela preservação da harmonia social — está agora, no início do terceiro milênio, diante de um grande dilema: em breve a população do Pais chegará à marca dos duzentos milhões de habitantes, inseridos num contexto mundial que abrigará a preocupante cifra de sete bilhões de consumidores em potencial. Os litígios de consumo continuarão a crescer, sob o alento de dois fatores concorrentes: de um lado, o alargamento na população da cons- ciência sobre seus direitos; de outro lado, a falta de tempo hábil para a adaptação à nova realidade por parte de uma sociedade que se habituou, ao longo da história, a ignorar ou desprezar os direitos alheios, sobretu- do os não patrimoniais. Pode-se dizer, de outra forma, que o povo se 84 ROBERTO BASILONE LEITE conscientiza com mais rapidez dos seus direitos do que dos deveres correspondentes aos direitos alheios, o que tende a acarretar o aumento progressivo da quantidade de demandas judiciais, notadamente na área do consumo. Com que postura deverá a sociedade brasileira encarar os desafios do futuro próximo: o aumento das demandas de consumo decorrentes de fatores internos e externos, aliado à falta de alicerce cultural da popu- lação para compreender a necessidade da obediência aos deveres da cidadania; os embates entre entidades liberais, contrárias à intromissão do poder público nas relações produtivas, e grupos humanistas em bus- ca da ampliação dos direitos de personalidade, dentre os quais se inclu- em os direitos do consumidor? 3. 1.2.6.2. Consumo Desmassificado A produção em massa e o consumo em massa estão dando lugar à produção direcionada e ao consumo particularizado. Fala-se hoje em “mercados de um só comprador”, cujos exemplos tipicos são a IV a Ii~’ cabo e a Internet: cada consumidor individual “adquire”, pela via eletrõni- Iiir ca, os “produtos” culturais digitais que lhe interessam, de forma total- II mente particularizada. A comunicação e a educação em massa estão Iii! sendo substituidas pela comunicação e educação individualizadas. Ii Esse é o reflexo, nas relações de consumo, da tendência política de valorização das minorias que se observa em todo o mundo. Repre- sentantes das minorias, como judeus, negros e indios, são escolhidos para ocupar postos que antes lhes eram recusados. As mulheres, depois de séculos de brutal espoliação, em quase todos os países já atuam livremente no mercado e conquistam altas posições sociais e politicas. As populações setorizam-se cada vez mais. As maiorias desper- sonalizadas e dispersas perdem espaço politico para as minorias bem definidas e opinantes. Concomitantemente, a uniformidade cede lugar à diversidade no consumo. A fabricação homogênea de produtos em série está com os dias contados. Ao tratar da desmassificação do consumo. Alvin Tofflerafirma que “o mercado de massa se subdividiu em grupos de minimercados que se multiplicam e mudam incessantemente, exigindo uma série de opções, modelos, tipos, tamanhos e adaptações em continua expansão”.’52’ (52) TOFELER, AIvin. Op. cli., p. 234. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 85 A mais impressionante realização da civilização foi a criação, ao longo dos últimos dez milênios, de um sistema de mercado que correla- ciona sistematicamente bilhões de pessoas umas com as outras, hoje em tempo real. A missão de mercadizar o mundo está virtualmente cumpri- da e, assim, a civilização de mercado deverá ceder lugar ao que Toffler chama de civilização de transmercado.t53~ Os recursos, imaginação e capital que antes eram consumidos na construção da estrutura de mer- cado poderão agora ser canalizados para outras áreas de interesse, de forma a traçar uma nova agenda para a humanidade. O Código do Consumidor foi o prenúncio disso no Brasil. Quando ele impõe ao mercado determinados niveis de qualidade e de adequa- ção dos produtos ao ecossistema, está de fato colocando num plano secundário a tarefa especifica de organização de uma estrutura de mercado. (ou seja, a que assegura o acesso ao consumo) e abrindo uma nova agenda, voltada para as tarefas de moralização das relações interpessoais e de humanização do habitat, que pressupõem a proteção ao consumidor. A nova economia é baseada na informação e no conhecimento. , q Isso porque o perfil da sociedade de consumo se deslocou da uniformi- dade para a diversidade, acompanhando a tendência verificada nos úl- 1 timos três séculos de substituir a verdade única judaico-cristã pelas Ii verdades plurais do modernismo europeu, que “orientalizou” a cultura ocidental. O alargamento contínuo do mercado de conhecimento redobra o impulso à diversidade de culturas e de moralidades. E essa diversidade, por sua vez, gera uma crescente dificuldade de se identificar, no emara- nhado de idéias dispares, os fundamentos éticos da civilização, ou seja, de se estabelecerem padrões éticos universais. A solução, para Octavio Paz, consiste em que “devemos procurar descobrir o fio unificador em meio a essa extraordinária diversidade”, ou seja, tentar ordenar as coisas segundo “uma perspectiva geral da huma- nidade” e “uma ética universal”, até conseguirmos afirmar “que um [con- ceito] é moralmente superior ao outro’?”.~54~ (53) TOFFLER, AIvin. Op. cit, p. 286. (54) PAZ, Octavio. “No fim da história, o Ocidente se volta para o Oriente’. In GAA- DELS, Nathan P. (Org.). No final do século. Tradução de Angola Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 213. 86 ROBERTO BASILONE LEITE 3.1.2.7. Filosofia de Proteção ao Consumidor As diferentes concepções filosóficas de proteção do consumidor prendem-se a uma questão central, que busca definir como fica a posi- ção do Estado dentro da nova realidade socioeconômica do mercado de consumo em larga escala desmassificado. No momento atual, é conve- niente a presença do Estado nas relações de consumo? E no futuro “mercado global de um só comprador’ haverá necessidade da existência do Estado interventor? O Código do Consumidor brasileiro optou por prescrever uma inter- venção estatal relativamente rigorosa nas relações de consumo, desti- nada à garantia dos direitos do consumidor, em função do que impôs ti uma série de restrições à liberdade do empresário e do fornecedor de bens e serviços em geral. ti Sob essa perspectiva, a filosofia de proteção do consumidor com- porta três variantes, que são denominadas por Aiorbert Reich deteoria pré- intervencionista, teoria intervencionista e teoria pós-intervencionista.~55~ IIt A teoria pré-intervencionista desenvolveu-se junto com a economia 11111 de mercado dos anos 1950 e 1960 e, portanto, representa o próprio direi- to de proteção do consumidor em seu nascedouro. Fundamenta-se nas seguintes premissas: a) a informação é o mais eficaz instrumento para assegurar a auto- nomia do consumidor: b) a concorrência é o melhor meio de assegurar a melhoria do bem- estar do consumidor; c) o planejamento da concorrência — com controle de preços, con- trole de qualidade e definição de politica industrial e de empregos — deve possibilitar não a interferência especifica no interesse do consumi- dor, mas a salvaguardado funcionamento global da economia. A teoria intervencionista, situada nos anos 1970, determinou a ação direta do Estado na defesa dos consumidores, mediante a definição de políticas industriais e o controle rigido sobre preços, produtos e relações de consumo. A teoria pós-intervencionista, inaugurada nos anos 1980, é a que está agora na pauta das discussões sobre o tema, principalmente na Europa. (55) REICH, Norbert. Op. oit, p. 12. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 87 Reich afirma categoricamente que “os mercados de economia desenvol- vida estão sofrendo uma racionalização da proteção do consumidor”.156~ Os pós-intervencionistas se opõem à atividade regulamentadora estatal, apontando os seguintes argumentos: a) a regulamentação im- põe custos desnecessários às empresas; b) além disso, aplica ao pro- dutor punições muitas vezes injustas ou desproporcionais; c) o protecio- nismo incentiva a acomodação social e desestimula a organização cole- tiva dos consumidores. Respalda-se a teoria pós-intervencionista em duas premissas: a da auto-regula ção e a do conceito de necessidade. A auto-regula ção é apontada como uma alternativa à regulamenta- ção estatal. É desnecessário estabelecer muitos padrões reguladores para a atividade produtiva, pois a economia dispõe de instrumentos me- nos agressivos e mais eficazes que proporcionam o mesmo resultado. ‘~ I O conceito de necessidade é o elemento regulador ou moderador da a proteção ao consumidor. Afirmam os pós-intervencionistas que a proteção ao consumidor deve sempre considerar a condição pessoal do cidadão. Assim, a venda ocasional de um alicate para guarnecer a despen- sa de um grande advogado é diferente, do ponto de vista sociojuridico, KL 1 da venda da mesma ferramenta a um humilde pedreiro que dela depende a para obter o seu sustento; conseqüentemente, são diferentes os efeitos obrigacionais para o fornecedor. No campo das transações de crédito, a proteção ao consumidor merece tratamento diferenciado se, por exemplo, o devedor — isto é, o consumidor da operação de empréstimo — deixa de saldar seu débito em razão de alguma circunstância que configure caso de força maior, como a perda do emprego ou uma doença grave na família. A teoria pós-intervencionista, é de se notar, não nega a conveniên- cia ou a necessidade de normas protetivas do consumidor; ela sustenta que, em determinado estágio do desenvolvimento das relações de con- sumo, a interferência estatal pode ser descartada e substituida pela auto- regulação, porque as partes adquirem condições culturais de elas pró- prias elaborarem as normas protetivas mais adequadas. Ressalte-se, outrossim, que as teses não-intervencionistas vêm sendo muito questionadas na Europa. leme-se que a auto-regulação na (56) REICH, Norbert. Op. cít, p. 12. 88 ROBERTO BASILONE LEITE área do consumo não seja uma alternativa válida à regulamentação, pois os comerciantes que se recusarem a aderir às regras lucrarão com a inobservância dos padrões mais restritos impostos aos demais. Ademais, quanto ao conceito de necessidade, embora em tese seja muito cativante por se apresentar como uma solução bastante apro- priada para o problema da proteção ao consumidor, na verdade sua apli- cação prática oferece imensas dificuldades, em face da amplitude e da subjetividade impl!cadas no ato de descrever a situa çâo pessoaldo con- sumidor, e mesmo no de definir o que seja força maior A subjetividade inerente ao conceito de necessidade e a dificul- dade em delimitar a situação pessoal do consumidor são fatores im- portantes nessa discussão, pois subjetividade e generalidade repre- sentam características totalmente inadequadas quando se trata de lei de caráter protetivo e punitivo. A norma que implica protecionismo e ti punição deve ser clara, objetiva e completa, mesmo porque sua inter- Iii pretação deve ser restritiva. Cumpre enfim acentuar que tais discussões têm se mantido até agora mais no âmbito acadêmico, já que a União Européia continua a ti editar normas protetivas do consumidor cada vez mais modernas e es- li’ pecificas. E ocaso do Tratado de Amsterdã, publicado no Diário Oficial da União Européia, em 10 de novembro de 1997, que ampliou a compe- 1 tência da União Européia para legislar sobre direito do consumidor; da Diretiva 98/27/EC, de 19 de maio de 1998, sobre injunções ou medidas cautelares e interlocutórias internacionais em matéria de conflitos de consumo; da Diretiva de 22 de junho de 1998, que proibiu totalmente a publicidade de tabaco e cigarros, com um prazo de três anos para imple- mentação da medida; da Legge n. 281, italiana, de 30 de julho de 1998, que versa sobre a proteção do consumidor e da Diretiva 95/64/EC, de 25 de outubro de 1998, sobre proteção de dados no comércio eletrônico.1571 3. 1.2.7. 1. A Realidade Brasileira A realidade socioeconômica dos países desenvolvidos difere da dos países subdesenvolvidos, o que evidentemente reflete nas relações de consumo. Nestes países subsiste, em certa medida, um problema iogicamente anterior ao da proteção ao consumidor, que é o próprio acesso ao consumo. (57) MARQUES, Cláudia Lima. “OuaI o futuro do Direito do consumidor?’ Revista de Direito do consumidor São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 30, abr./jun. 1999. p. 227-231. INTRODUÇÃOAO DIREITO DO cONSUMIDOR 89 ArielAriza assevera que “la realidad econ3mica de los países lati- noamericanos ha levado a que se advierta que uno de los aspectos esenciales en estas comunidades está constituido por la importante franja de habitantes que se encuentra excluida de las relaciones de consumo. Porto tanto se ha sostenido que la premisa fundamental en estas comu- nidades pasa por garantizar a los ciudadanos ei acceso ao consumo”>581 O Brasil está numa posição de vanguarda em relação aos seus parceiros latino-americanos, sul-asiáticos e africanos, haja vista já ter ingressado na fase de consolidação de um sistema de proteção do consumidor. Mesmo assim, quase um terço da população brasileira vive em situação de miséria, impossibilitada de participar do mercado de consumo. Como se pode presumir, a teoria pós-intervencionista não chegou ao Brasil, tendo em vista ser ainda imprescindível a atuação do Estado ;itt - no sentido de implementar projetos destinados a incluir no mercado de consumo as parcelas marginais da população. Além disso, o estágio atual da evolução cultural da sociedade bra- •1 sueira não permite nem mesmo que se cogite a adoção de sistemas de auto-regulação e autofiscalização. Grande parte dos fornecedores nacio- nais ainda não se habituaram a um padrão de comportamento tal que 1 dispense a interferência do poder público na solução dos problemas e Ii controvérsias relacionados ao consumo. A ordem econômica prevista no art. 170 da Constituição Federal de 1988 tem como fundamentos duas forças antagônicas: de um lado, a livre iniciativa (caputdo referido dispositivo) e a propriedade privada (inciso II); de outro, a função social da propriedade e a defesa do con- sumidor e do meio ambiente (incisos III e V). Uma busca a liberdade, a outra fixa limites. É nesse ponto que o Estado interfere nas relações individuais: para harmonizar duas classes distintas de direitos fundamentais assegura- dos pela Constituição, quais sejam, o direito de liberdade de iniciativa do agente econômico e os direitos coletivos e difusos da comunidade e dos consumidores. A harmonização de duas regras constitucionais contraditórias se faz por meio da hermenêutica constitucional. (58) ARIZA, Anel. Op. cít., p. 28-29. ROBERTO BASILONE LEITE 90 lendo em vista que o emprego adequado dos métodos hermenêuti- co-constitucionais pressupõe o conhecimento de seus princípios, con- vém recorrerás lições de Canotilho, no ponto em que elenca tais princí- pios. Interessa-nos destacar dois deles. O princípio da unidade da Constituição impõe que sejam todas as normas constitucionais interpretadas de maneira a evitar contradições entre elas próprias. A Constituição é uma “unidade de sentido político- ideológico, muito antes de constituir uma unidade lógico-axiomática”.1591 O objetivo do jurista é, pela aplicação desse principio, conseguir a superação das antinomias, ou seja, dos conflitos que podem surgir entre duas normas ou princípios constitucionais. De outra parte, o princípio da concordância pr.4tica ou da harmoni- zação propõe a confrontação e a coordenação dos interesses jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de um interesse em relação t ao outro. Dessa forma, sempre que exista contradição entre duas nor- mas ou entre dois direitos—chamados por Canotilhode bens jurídicos — não deve o intérprete sacrificar nenhum dos dois, mas sim “estabele- cer limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens”>60) A conclusão a que se chega é a seguinte: a liberdade de iniciativa e o direito de propriedade garantidos pela Constituição não são absolu- tos, mas estão sujeitos a limites decorrentes de sua função social. E a função social nas relações de consumo consiste exatamente em colo- car ao alcance dos consumidores bens e serviços capazes de satisfazer adequadamente suas necessidades econômicas, sem os expor a riscos impróprios ou desnecessários. Ada Pellegrini Grinoverafirma que “nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo privado. Todos, de uma forma ou de outra, possuem leis que, em menor ou maior grau, traduzem-se em um regramento pelo Estado daquilo que, conforme preconizado pe- los economistas liberais, deveria permanecer na esfera exclusiva de de- cisões dos sujeitos envolvidos”.161t (59) cANOTILHO, 1 1 Comes. Direito constitucionaL e~ ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993. p. 226-229. (60) CANOTILHO, J. J. Comes. lbidem, p. 228. (61) GRLNOvER, Ada Pellegriní ‘(et ai)’. código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6 ed. rev., atual, e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 8. INTRODUÇÃO AO OIREITO DO CONSUMIDOR 91 Não há dúvida de que no ~rasiI ainda é necessária a intromissão do Estado nas relações privadas para impor obediência à lei a uma faixa razoável da população representada por infratores habituais, consideran- do-se sobretudo que a impunidade é um potente estimulante do delito. Está demonstrado que a sociedade contemporânea não consegue implementar, em grau satisfatório, a harmonia e o equilíbrio social, seja no plano interno, seja no plano internacional, quando governada apenas pelas leis do mercado livre — embora este seja imprescindível para o progresso tecnológico e econômico das nações. Zbigniew Brzezinskt assessor de segurança nacional do ex-presi- dente norte-americano Jimmy Cartere autor do livro Out of Control (“Fora de controle”), publicado em 1993, oferece uma interessante abordagem sobre a nova ordem mundial, ao afirmar que “o colapso do marxismo :: revelou as limitações globais do liberalismo. O liberalismo era visto como universal em parte porque o marxismo tinha pretensões universalistas 1 que ameaçavam a condição humana. Em resposta, o liberalismo foi co- ‘lp locado como alternativa universal nessa competição. Agora que a com- petição acabou e o marxismo está morto, já não é perigoso nem politica- mente dispendioso reconhecer as limitações do liberalismo. Estamos entrando nessa fase agora. O perigo da utopia totalitária estando ausen- te, é mais fácil ver os perigos da cornucópia permissiva para nossas sociedades liberais. Mas o processo de testagem será provavelmente prolongado, doloroso e difícil”.162t Também no Primeiro Mundo surgem novas teorias políticas e jurídi- cas que pregam a necessidade da intervenção estatal, como a do garan- tismo jurídico, desenvolvida pelo jusfilósofo italiano Luigi Ferrajolie ado- tada no Brasil por diversos juristas, dentre os quais pode-se descatar os trabalhos de Sérgio Cademartori163~ e de Alexandre Ramos.t641 “Ferra joli”— escreve Ramos— “defende a restrição do direito de propriedade e das liberdades econômicas em nome da garantia dos valo- res fundamentais da existência humana incorporados nas normas cons- (62) BRZEZINSKI, Zbigniew. “Fracos baiuartes do ocidente permissivo. ln CAR- DELS, Nathan P. (Org.). No final do século: reflexões dos maiores pensadores do nosso tempo. Tradução de Angola Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 72-73. (63) CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garan- tista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 188. (64) RAMOS, Alexandre. ‘Garantismo jurídico e principio da proteção no direito do trabalho”. Revista LTr, São Paulo, LTr, v. 64, n. 5. maio 2000, p. 602-608. ¾. 92 ROBERTO BASILONE LEITE titucionais. Com isso, acredita estar ampliando a ‘liberdade’ do cidadão, em contraposição à violência, simbólica e real, que o Estado burguês e o próprio poder econômico exercem sobre os cidadãos’.16~1 Num determinado momento do ciclo evolutivo da globalização, po- derá inclusive ocorrer de sãos Estados não serem mais suficientes para assegurar os direitos coletivos. Haverá, então, necessidade de institui- rem~se orgãos paraestatais complexos, com poder efetivo de fiscaliza- ção e controle constituído em regiões multinacionais, que serão os su- cessores dos atuais organismos internacionais. Assim como os entes económicos se globalizam, também os entes sociais deverão seguir o mesmo destino. Por ora, cabe apenas concluir que o Código Brasileiro do Consumi- dor prescreve a ação coercitiva estatal destinada à garantia dos direitos 1 ~ do consumidor e junge a atuação lucrativa no mercado de consumo à observância de certas normas de comportamento. Adota, em outras pa- t lavras, a fórmula do desenvolvimento sustentado da humanidade, que consiste em assegurar as liberdades de iniciativa, de mercado e de con- 1’ trato, mediante a observância dos limites resultantes da função social III 3 destes institutos econômico-jurídicos. 1 3.1.2.8. Proteção ao Consumidor O fundamento filosófico-jurídico do sistema de proteção ao consu- midor está na necessidade de atuação de uma força externa, represen- tada pelo Estado, para anular o desequilíbrio natural de forças entre for- necedor e consumidor. O risco de ocorrência de vicio ou defeito se veri- fica tanto no bem oriundo da produção em massa, quando no da produ- ção desmassificada; tanto no serviço oferecido no mercado de massa, quanto no serviço personalizado. Constatado o vicio ou defeito do produto ou serviço, desde que o lesante não repare ou compense espontaneamente o prejuízo do consu- midor, há necessidade da ação coercitiva do Estado. Na atualidade, portanto, existe certa concordância em torno do principio socializante, que impõe a aplicação da força do aparelho esta- tal para a manutenção da ordem social e para a realização do interesse público no âmbito das relações de consumo. (65) RAMOS, Alexandre. Op. cit., p. 602. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 93 3.1.3. Princ(pio Democrático Deveras importante é o principio democrático, ou da representação, para a compreensão do espirito do Código do Consumidor. Trata-se de princípio de teoria política, albergado pelo Código em diversos dispositivos. O principio democrático é aquele que garante ao cidadão a partici- pação no poder político, diretamenL4ou por meio de representante por ele escolhido. Dissertando sobre o tema, Rousseau afirma que, “rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá’, pois “contraria a ordem natural o grande número [de cidadãosl governar, e ser o pequeno governado”.t66~ Acrescenta, em seu ceticismo: “Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito governo não convém aos homens”>671 A partir dessa visão pessimista, e fundado em sua teoria do contra- to social, ele busca definir a fórmula da democracia possível entre os homens: “Encontrar uma forma de associação quê defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente. Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social’.t66~ O processo de democratização, segundo Norberto Bobbio, revela- E se em dois sentidos: a) no alargamento gradual do direito do voto; b) na multiplicação dos órgãos representativos.t69~ Na tradição politica brasileira, o cidadão participa da elaboração da lei por meio de representantes eleitos para compor o Poder Legislativo. No entanto, a partir do momento em que a lei sai da órbita do Legislativo e entra nado executor — normalmente o Poder Executivo—, a repre- sentatividade do cidadão torna-se quase inexistente, pois os integrantes deste Poder ou exercem cargos de confiança nomeados pelo chefe do Governo, ou são funcionários públicos de carreira. Apenas está sujeito ao voto o primeiro escalão, isto é, o Presidente da República, os Gover- nadores, Prefeitos e Seus respectivos vices. (66) ROUSSEAU, .Jean-.Jacques. O contrato social e outros escritos, Introdução e tradução de Rolando Roque da Silva. 14’ ed. São Paulo: Cullrix, 1995. p. 74. (67) ROUSSEAU, Jean-Jacques. lbidem. p. 75. (66) ROUSSEAU, Jean-Jaoques. lbidem, p. 30. (69) BOBBIO, Norberto (et aO. Dicionário de política, oU., p. 324. 94 ROBERTO BASILONE LEITE Adotando postura inversa a essa tendência, o Código do Consumi- dor estimula a criação de espaços de representação dos consumidores dentro dos órgãos públicos. Em seu ad. 106, inciso II, atribui ao Depar- tamento Nacional de Defesa do Consumidor, dentre outras funções, a de “receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou suges- tões apresentadas por entidades representativas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado’, vale ressaltar, as sugestões apresentadas diretamente pelo cidadão ou por seus órgãos representativos. O art. 105, por sua vez, inclui as entidades privadas de defesa do consumidor entre os órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Mais do que assegurar ao consumidor o direito de ser ouvido pelo 4h órgão gestor do sistema, o Código determina expressamente que o poder público incentive, “inclusive com recursos financeiros e outros programas es- Iii peciais”, a formação e desenvolvimento de entidades e associações repre- IIi~} sentativasdoconsumidor(arts. 106, inciso lX,40, inciso II. b. es0, inciso V). bem como a participação obrigatória dos consumidores e fornecedores nas comissões públicas permanentes instituidas pelo art. 55. § 3~, do Código. ti111. Nesse ponto, o Código se mantém fiel à tônica constitucional, pois o principio democrático, isto é, o fomento da participação direta da co- til 1 munidade nos órgãos estatais, verte da Constituição de 1988 aos cânta- II[~ ros. Começa por seu ad. l~, que refere explicitamente o principio em tela: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”. O princípio é reiterado depois, ao longo dos títulos seguintes. O art. 10, alínea a, assegura “a participação dos trabalhadores e emprega- dores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses pro- fissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e delibera- ção”. Estabelece-se a mesma exigência para a gestão da seguridade social (ad. 194, inciso VII), a política agrícola (ad. 187), a saúde (ad. 198, inciso III), a assistência social (art. 204, inciso II), a assistência à criança e ao adolescente (art. 227, § 19 e os programas de aproveita- mento de recursos em terras ind[genas (ad. 231, § 39, A participação de representantes da população é prevista, ainda, em outros órgãos públicos, tais corno as Câmaras Setoriais de Custos e Preços criadas pela Lei n. 8.178/91, e o Conselho Monetário Nacional, instituído no Decreto n. 99.207/90. INTRODUCÃOAO DIREITO DO CONSUMIDOR 95 O consagrado professor lves Gandra da Silva Martins distingue dois momentos importantes na História do Direito. O Direito sempre foi imposto por quem detém o poder, sob a justi- ficativa de permitir a convivência social, Nesse contexto, a luta contra o absolutismo passa pelo estabelecimento gradativo de sistemas cada vez mais aperfeiçoados de freios e contrapesos. Numa primeira fase do desenvolvimento do Direito, as garantias dos cidadãos eram outorgadas pelo dono do poder, em número bastante restrito, sem qualquer participação dos destinatários das normas. Em outras palavras, havia poucas garantias e o povo não participava direta- mente do exercício do poder. Num segundomomento—queestamosatravessandoagora—, as garantias individuais e sociais foram ampliadas, mas o destinatário aín- da não participa do exercício do poder, senão de forma indireta através dos Poderes Legislativos. Assevera, neste ponto, o eminente mestre 1 que “o Direito imposto pelos que detêm o poder para permitira convivên- cia social, nas democracias modernas, oferta incomensuravelmente mais 1% garantias ao cidadão do que aquele que vigorava em qualquer Estado no t passado. Nem por isso a sociedade é condutora de seus destinos, tare- fada qual se encarregam aqueles que ela elege entre o limitado elenco de ávidos pelo poder, que são os políticos. O povo sequer participa dire- tamente da escolha dos que conduzem a maquina administrativa, quase sempre feita por concursos técnicos, embora seja ainda a melhor forma de escolha do burocrata.170’ Tudo indica, porém, que já estamos no início de uma nova etapa da história do direito político, que pode ser classificada — se dermos conti- nuidade ao raciocínio de lves Gandra — como o terceiro estágio da evolu- ção do principio democrático ou participativo. Caracteriza-se essa nova etapa pela circunstância de que as comunidades estão começando a in- terferir na condução da vida social, por meio da participação direta nos órgãos de decisão por onde transitam os seus interesses, embora ainda não esteja muito clara a definição sobre a forma como essa participação deve se efetivar. A certa altura, lves Gandra menciona em seu trabalho a “incapaci- dade da sociedade, que deve sustentar o Estado, de suprir as insuficiên- (70) MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coordj. O Estado do futuro. São Paulo: Pioneira; Associação Internacional de Direito e Economia, 1998, p. 18. 96 ROBERTO BASILONE LEITE cias estatais para atender suas finalidades essenciais’71’ Essa afirma- ção merece algum comentário. De tato, é imprescindível o investimento na formação cultural do povo para que ele adquira a “capacidade’ de interferir nas decisões do Estado. De qualquer forma, não há como negar que, até hoje, ainda não lhe foi dada a oportunidade de participar efetiva, direta e cotidianamente dos órgãos do poder, donde se é difícil até mesmo avaliar corretamente qual seria na prática o nivel de desempenho da sociedade na tarefa de suprir as deficiências dos órgãos estatais. Não se pode olvidar, ademais, que existe muito preconceito, so- bretudo nos países subdesenvolvidos, contra a presença de cidadãos do povo nos órgãos decisórios. As raizes históricas e culturais desse pre- Conceito remontam às origens da colonização brasileira, sendo suficien- E te lembrar que o sistema oficial de escravidão humana, vigente no Brasil desde a sua fundação, foi legalmente extinto há pouco mais de cem • anos e deixou cicatrizes profundas na alma nacional. q Não há dúvida, no entanto, de que a participação direta da comuni- ti 1 dade na composição dos órgãos de poder, ao levar para dentro do orga- nismo público a voz e os ouvidos das ruas, consiste no melhor meio de integração entre os agentes estatais e os destinatários de seus servi- ti” 1 ços, além de ser o modo mais eficaz de controle e fiscalização desses II serviços. O princípio da representação é um dos propulsores da revolução juridico-politica pretendida pelo Código do Consumidor. Sua importância está no fato de que o cidadão brasileiro é ainda por demais excluido do poder político, graças aos traços de uma mentalidade elitista deixados pelo feudalismo escravocrata, que não admite conceder ao povo a prer- rogativa de opinar na gestão de seu próprio destino. A ampliação do campo de inclusão social melhora a oxigenação do organismo do Estado. 3.1.4. Principio da Garantia da Adequação O principio da garantia de adequação do produto ou serviço visa a assegurar padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho dos produtos e serviços. Está previsto no art. 42, caput, incisos II, d, e V, do Código do Consumidor. (71) MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. cft, p. 18. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 97 Trata-se de princípio amplo, latente em outros dispositivos do Códi- go, destinado à proteção da saúde e da dignidade, da segurança, da qualidade de vida e dos interesses econômicos do consumidor. Em razão de sua larga abrangência, dele são extraidos outros prin- cípios subsidiários, como o da ecologia do consumo e o do desestimulo, bem como alguns direitos fundamentais, como o direito à saúde e à segurança, o direito à liberdade de escolha e a teoria da imprevisão. 3.1.4.1. Princípio da Ecologia do Consumo Segundo o princípio da ecologia do consumo, ou da qualidade de vida, o sistema de produção e consumo deve funcionar de modo a asse- gurar a sustentabilidade do equilíbrio ecológico. O art. 51, inciso XIV, declara nulas as cláusulas que infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais. ‘II] IS O conceito de sociedade comercial se modificou. A empresa do século XX existia basicamente para produzir bens e serviços e gerar ,, ti lucros. III Nas últimas décadas, acrescentou-se ao conceito de empresa o ‘II 1.I ~ elemento ecológico em seu sentido amplo. Toda atividade empresarial moderna deve visar, além do lucro, ao bem-estar social. A empresa é co- 7 responsável pela solução dos problemas da comunidade, sejam eles de caráter ecológico, social, econômico ou moral. 3.1.4.2. Princípio do Desestímulo O princípio do desestímulo não consta de forma explícita no Códi- go. Trata-se de principio oriundo do Direito Penal, apropriado pela doutri- na civilista que trata da responsabilidade por danos metapatrimoniais. Diante de uma lei destinada a garantir determinado direito consu- meristico, tanto individual, quanto difuso ou coletivo, presume-se implíci- to, nas punições nela estipuladas, o intuito de desestimular o possível infrator à prática do ato ou omissão lesivos. No direito americano existe uma figura jurídica especifica para pe- nalizar o lesante: ao lado da ação de ressarcimento ou Compensação dos danos, chamada de compensatoty damages, existe a ação de puni- ção pelos danos causados, denominada punitiva damages. 98 ROBERTO BASILONE LEITE No Brasil, como não existe essa distinção, o desestimulo às práti- cas lesivas geralmente se traduz na condenação do infrator ao paga- mento de indenização por danos morais. Para a fixação do valor da compensação dos danos morais, deve- se levar em conta três fatores: a) o grau de culpabilidade do agente; b) a gravidade do dano; c) a situação econômica do lesante. Para se realizar a dosimetria da indenização, esses três fatores devem ser analisados em conjunto e cotejados á luz do principio do desestimulo, como forma de desencorajar a repetição do ato danoso. É importante ressaltar que a condição econômica do lesado não E deve ser considerada para a fixação da indenização, porque os direitos 1 de personalidade são inerentes ao ser humano e o seu valor não pode III diferir de pessoa para pessoa. A honra ou a saúde de um consumidor pobre, abalada pelo ato ilícito do fornecedor, não vale menos do que a ti 1 honra ou a saúde de um consumidor rico. Nem é válido o argumento de que o consumidor pobre será privilegiado com um enriquecimento ilícito 1 se lhe for atribuído o direito a uma indenização de valor elevado demais para o seu padrão econômico: o valor do seu bem imaterial (portanto, um bem de valor inestimável, ou um bem “sem-valor’) ofendido, considerada a extensão do dano, equivale justamente ao valor que fará atuar sobre o infrator o principio do desestímulo — nem mais, nem menos do que isso —, razão pela qual o enriquecimento que possa haver não será nessa hipótese um enriquecimento ilícito, mesmo porque se estará atendendo ao interesse público de inibir a repetição do dano. O art. 44 do Código do Consumidor abriga esse principio ao dispor que “os órgãos públicos de defesa do consumidor manterão cadastros atualizados de reclamações fundamentadas contra fornecedores de pro- dutos e serviços, devendo divulgá-los pública e anualmente (...)“. A publi- cidade do nome dos fornecedores que tenham sido alvo de reclamação tem dupla finalidade: a primeira é manter os consumidores informados sobre os produtos e serviços perigosos ou ao menos suspeitos (no que se concretiza o principio da informação); a segunda, desencorajar a re- petição de atos prejudiciais ao consumidor pelo mesmo ou por outros fornecedores (em que atua o principio do desestimulo). A publicidade do nome dos fornecedores deve ser realizada com toda a objetividade possível, consignando-se inclusive os dados relativos INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 99 à fase atual dos processos em tramitação. à existência de condenações ou absolvições e a punições impostas. A divulgação de dados inverídi- cos pode acarretar a responsabilidade por danos morais das pessoas e instituições divulgadoras. Exemplo bem ilustrativo da aplicação do princípio do desestimulo, Colhido por Paulo Soares Bugarin, consiste na decisão prolatada no caso BMW of North America, lnc. versus Gore. Após adquirir um veículo BMW novo de um revendedor do Estado do Alabama, Gore descobriu que o carro fora repintado. Ajuizou ação de ressarcimento de danos (compen- satory dama ges) e de punição por danos (punitive damages) contra a American Distributor of BMW, em que a empresa foi condenada ao pa- gamento de US$ 4.000,00 a titulo de compensatory damages e mais US$ 4 milhões a titulo de punitive damages.172~ A sanção foi reduzida posteriormente pelas Cortes superiores, mas o que interessa, neste passo, é apenas destacar o raciocínio lógico da primeira decisão. US$4 milhões teria sido o valor dos lucros obtidos pela empresa com a venda de todo o lote “condenado” de veículos repin- tados. Com tal punição, pretendia o juiz criar um precedente tendente a ‘1 eliminar no produtor justamente o interesse econômico da assunção do risco de lançar produto defeituoso no mercado. É comum o empresário pautar suas decisões exclusivamente com base em cálculos financeiros. Suponhamos que, num lote de determina- da mercadoria pronto para a comercialização, o produtor constate um certo defeito em todas as unidades. O cálculo das probabilidades, no entanto, indica que poucos consumidores acabarão notando ou sofrendo prejuízos em decorrência desse defeito. O empresário poderá sentir-se tentado a ceder ao seguinte raciocinio: se vier a ocorrer dano a uns poucos consumidores e o ressarcimento das respectivas despesas for pequeno em relação aos lucros obtidos com a colocação daquele lote no mercado, compensa a ele correr o risco. Contudo, se ele souber que a ocorrência de lesão a um único con- sumidor o sujeitará a uma pena pecuniária equivalente ou até superior aos referidos lucros, não valerá mais a pena correr o risco: estará elimi- nada a própria vantagem subjacente à decisão de risco de comercializar (72) BUGARIN, Paulo Soares. “O direito do consumidor e o devido processo legal na moderna jurisprudência constitucional norte-americana: o caso 8MW cl North Ameri- ca, Inc. v. Core”. Revista de lnformaçAo Legislativa, Brasília, DF, v. 36, n. 143, juI./set. 1999, p. 234. 100 ROBERTO BASILONE LEITE o lote defeituoso — que seria a certeza de algum lucro. O fator psicoló- gico instaurador da tentação restará bastante enfraquecido, pois seu objeto principal — a certeza do lucro — terá sido eliminado. Nisso con- siste o princípio do desestimulo. Pode-se concluir, afinal, este tópico, mencionando que a indeniza- ção de desestímulo tem três funções distintas: a) a função reparatória ou compensatória, conforme se trate, res- pectivamente, de dano material ou imaterial; b) a função pedagógica ou didática, que procura sanar as deficiên- cias culturais do lesante; c) a função punitiva ou de desestimulo, que diminui no lesante a pulsão para a prática lesiva. t til 3.1.5. Princípio da Boa-Fé Objetiva A boa-fé contratual é uma exigência ético-jurídica do antigo direito ti romano, legada ao nosso direito civil por intermédio do Código Napoleâ- ti nico. Ela sempre mereceu destaque nos estudos de ética jurídica e ins- pirou todas as legislações democráticas. Foi, contudo, o Código do Con- sumidor que a explicitou: o art. 4~, inciso III, transformou o princípio ético 1, em princípio jurídico e, mais do que isso, delegou ao juiz o poder de fixar a regra objetiva aplicável ao caso concreto. Consiste a boa-fé contratual na postura adotada pelos contratan- tes de agir com lealdade e respeito mútuos, no sentido da perfeita con- secução dos objetivos do contrato, sem abuso ou lesão à outra parte. É um conceito ético, na medida que busca resguardar o respeito mútuo entre os contratantes, e económico, enquanto almeja a plena realização dos fins do contrato e a satisfação dos objetivos dos contra- tantes. Segundo o jurista Marcel Planiol, “la premiêre de ces obligations est celle d’agir de bonne foí Quand e droit romain reconnut l’existence de contrats synallagmatiques, il e sanctionna par des actions de bonne foi (]udicia bonae 11dm) dans lesquelles l’intentio de la formule prescrivait au juge de rechercher tout ce qu’il fallait faire ou donner ex fide bona. On divisa ainsi en droit romain les contrats en contrata de bonne foiet con- trata de droitstrict Ces expressions sont encore quelquefois employées de nos jours, mais elles ne signifient plus rien: par exemple, le contrat INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 101 d’assurance a été qualifié par certains auteurs de contrat de bonne foi et, par d’autres, de contrat de droit strict. Au sens romain du mot, tous les contrats son aujourd’hui des contrats de bonne foi”.t73’ O Código do Consumidor impõe às partes envolvidas na relação de consumo a obrigação objetiva de agirem com boa-fé, para que possam ser atingidos os objetivos estipulados no caputdo art. 4% o atendimento das necessidades do consumidor, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, a transparência e a harmonia das relações de consumo. A obrigação de conduta ética imposta ao fornecedor, embora seja objetiva, envolve elementos subjetivos na composição de seu conceito. Essa obrigação se superpõe à obrigação principal de entrega do bem ou serviço, que, ao contrário, é bem definida e especifica. Ao se superpor, aquela obrigação ética gera deveres secundários ou complementares (deveres anexos), que deverão ser explicitados pelo intérprete da lei em ‘o cada caso concreto. ii O fornecedor, portanto, não assume apenas a obrigação principal, consistente no tornecimento do bem ou do serviço. Assume também obrigações secundárias, denominadas pela doutrina por deveres ane- xos, que o vinculam legal e formalmente ao dever de conduta ética, ou iiq seja, ao dever de portar-se com boa-fé no âmbito da relação contratual. . 1 Clóvis Beviláqua asseverava que todos os atos jurídicos sem exce- ção estão submetidos ao princípio da boa-fé, que ele chamava de ‘princí- pios gerais do justo e do honesto”>741 Quando se diz que o Código impõe o principio da boa-fé objetiva, está-se afirmando o seguinte: desde que tenha sido incluída no contrato (73) A primeira das obrigações [relativas ao contrato] é a de agir de boa-fé. Quando o direito romano reconhece a existência de contratos sinalagmâticos, ele os provê das ações de boa-fé (iudicia bonae lidei), que atribui poderes ao juiz de tudo fazer para garantir a observância da boa-fé. O direito romano dividia os contratos em contratos de boa-fé e contratos de direito estrito [rigorosamente vinculados ao con- teúdo do contrato]. Estas expressões ainda são usadas atualmente, mas já não dizem nada: por exemplo, o contrato de seguro é qualificado por certos autores como con- trato de boa-fé e. por outros, como contrato de direito estrito. No sentido pretendido pelos romanos, todos os contratos hoje são contratos de boa-fé” (PLANIOL, Marcel. Op. cit., p. 164). (74) BEVILAQUA. Clóvis. Teoria geral do direito civil. 2 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Rio: Faculdade de Direito Estácio de Sã, 1963, p. 216. 102 ROBERTO BASILONE LEITE alguma cláusula Considerada abusiva, inclusive aquelas previstas no ad. 51, essa cláusula é nula de pleno direito, independentemente de prova da intenção ou culpado fornecedor. A simples inclusão da cláusula no contrato faz surgir a presunção legal da violação ao princípio da boa-fé. É isso o que se extraido texto do ad. 51, inciso IV, do Código, que declara nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que estabeleçam condições abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exa- gerada ou, conforme a expressão de larga abrangência empregada pela lei, as que “sejam incompativeis com a boa-fé ou a eqüidade”. Viola o principio da boa-fé objetiva, por exemplo, a cláusula contra- tual que exonere o fornecedor da responsabilidade por defeito do produto (ad. 51, inciso 1), a que subtraia do consumidor a opção de reembolso de quantia já paga (ad. 51, inciso II), a que transfira a terceiros a responsa- bilidade do fornecedor (ad. 51, inciso III), a que estabeleça obrigação abusiva ou excessivamente onerosa para o consumidor (art. 51, inciso til IV, e § 1~, inciso III), a que estabeleça inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor (ad. 51, inciso VI), a que atribua ao fornecedor ‘III poderes tais que agravem a situação de inferioridade contratual do con- sumidor (art. 51, inciso VII a inciso XIII), a que possibilite a violação de t normas ambientais (ad. 51, inciso XIV) e, enfim, qualquer cláusula que esteja em desacordo como sistema de proteção ao consumidor (ad. 51, t inciso XV), a critério do juiz ao qual o litígio for submetido. 3. t6. Princípio da Informação Encontram-se normas inspiradas no principio da informação em quase todos os capítulos do Código do Consumidor, conquanto conste de forma explícita dos arts. 4~, inciso IV, e 6~, inciso III. Por força desse princípio, a informação adequada, clara e honesta deve ser a tônica de toda relação de consumo. O princípio da informação implica, portanto, para o fornecedor o de verde informar e para o consumidor, o direito de receber diretamente do fornecedor todas as informações adequadas re- lativas ao bem ou serviço adquirido. Trata-se de mais uma formidável inovação do Código. Antes, preva- lecia nas relações de consumo a regra milenar do ca veat emptor, segun- do a qual compete ao consumidor informar-se sobre eventuais imperfei- ções do produto ou serviço adquirido. O Código implantou a regra do caveat venditor, por força da qual é o fornecedor quem tem a obrigação de prestar as informações completas e corretas sobre os bens ou servi- ços oferecidos ao público. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 103 O contrato não obrigará o consumidor, se o fornecedor tiver violado o dever de informar — é o que dispõe o ad. 46 do Código. Note-se que este dispositivo apenas desobriga o consumidor; não decreta a nulidade da cláusula contratual, deixando assim ao arbítrio dele decidir se lhe convém ou não pedir a anulação do contrato. Do pTiflcIp~D da inlcrmação decorrem outros coro~áçios, dos quais merecem destaque o princípio da veracidade e o da educação ou da formação. 3.1.6.1. Principio da Veracidade O princípio da veracidade, também conhecido como principio da confiança, previsto no ad. 6~, inciso IV. do Código, veda a publicidade enganosa e abusiva e os métodos comerciais coercitivos ou desleais. O consumidor, quando adquire um produto ou serviço, o faz sob o alento de cedas expectativas. O fornecedor que frustra essas expectativas vio- ao principio da veracidade. Dessade, o principio da veracidade é aquele que assegura ao con- MXI sumidor o direito de exi~ir do fornecedor a observância de determinadas “~ qualidades e condições do produto ou serviço adquirido, exatamente de 1 acordo com as expectativas criadas pelo respectivo material informativo ou publicitário. Existem normas especificas inspiradas nesse princípio. Os arts. 8~ e 92 do Código exigem, quanto aos produtos e serviços que ofereçam risco natural à saúde ou à segurança, que o fornecedor preste as informa- ções necessárias e adequadas. O fabricante de produto industrial deve fazê-lo por meio de impressos apropriados, que acompanharão o produto. Se a informação prestada for insuficiente ou inadequada, conside- ra-se o produto ou serviço defeituoso (ad. 12, in filie) ou viciado (ads. 18, capute § 5% 19 e 20), hipótese em que recai sobre o fornecedor a res- ponsabilidade por culpa presumida. O consumidor tem livre acesso às informações existentes em ar- quivos de empresas ou instituições que digam respeito a ele, além do que tem direito de conhecer as respectivas fontes (ad. 43). Quanto aos contratos de adesão escritos, o ad. 54, § 32, determi- na que devem ser redigidos “em termos claros e com Caracteres osten- sivos e legíveis”. 104 ROBERTO BASILONE LEITE 3.1.6.1.1. Publicidade Enganosa ou Abusiva O ad. 30 dispõe que toda informação oü publicidade, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação relativa a produto ou serviço, obriga o fornecedor. Esse é um meio de desestimular o fornecedor a divulgar informações enganosas. Deve constar do produto a indicação clara do nome e endereço do fabricante (ad. 33). A vedação da propaganda enganosa é prevista nos ads. 31, 35 e 37. Independentemente de eventuais indenizações por danos materi- ais ou morais, o Código estabelece duas espécies de punição aos res- ponsáveis pela veiculação de propaganda enganosa: a) a imposição de contrapropaganda, que deverá ser divulgada pe- los responsáveis pela propaganda da mesma forma, freqüência e dimen- são, e preferencialmente, no mesmo veículo, local, espaço e horário, de S ~ maneira capaz de desfazer o malefício da publicidade enganosa ou abu- t siva (arts. 10, § 1% 56, inciso XII. e 60); b) a tipificação da publicidade enganosa ou abusiva como infração ti, penal, punível com pena de detenção de três meses a um ano e multa e: (art. 67). ti O ónus da prova da veracidade e correção da informação ou publi- cidade veiculada incumbe ao patrocinador (ad. 38). 3. 1.6. 1.2. Princípio da Identificabilidade Interessante distinção é feita por Adalberto Pasqualotto entre prin- cípio da veracidade e princípio da identificabilidade. O primeiro relacio- na-se à publicidade enganosa; o da identificabilidade, por sua vez, consta do ad. 36 do Código, segundo o qual “a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”. O anunciante não pode se servir de expedientes editoriais para inserir de forma camuflada a mensagem publicitária que lhe interessa. Esse adificio se verifica quando o redator elabora um adigo jornalístico aparentemente informativo e destituído de interesse comercial, “informan- do” na notícia, por exemplo, que determinado produto “é o melhor atual- mente disponível no mercado”. Está oculta, porém, a intenção e o acor- do publicitários, só conhecidos pelo fornecedor e pelo redator. A isso Pasqualotto chama de publicidade redacional. INTRODUCÀO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 105 Paralelamente, há mister de distinguir publicidade redacional de merchandising. Este consiste em modalidade aceita pela lei, “em que a mensagem publicitária é perceptível, mas encontra-se inserida no contexto de um programa, como pade do scriptou aparecendo ‘casual- mente”’.~751 O referido jurista reclama a inclusão do tema publicidade redacio- nal na pauta de julgamentos do CONAA — Conselho Nacional de Auto- Regulamentação Publicitária. De fato, o controle sobre essa forma de publicidade clandestina é extremamente difícil, por se chocar, já de saida, com a liberdade de expressão do redator jornalístico. Como provar que determinada “noticia” veiculada não se trata efetivamente da opinião do redator e, mais do que isso, que existe interesse publicitário oculto sob a falsa “notícia”? Por conta dessas dificuldades, inexiste tal controle no Brasil, com a única exceção das empresas de comunicação que realizam algum ti tipo de fiscalização interna espontânea. A solução, em tais casos, seria exigir do veículo noticioso a indica- ção da fonte que fundamentou a noticia (lembre-se do exemplo há pouco sugerido: o do “melhor produto do mercado”). A padir dai, analisar-se-ia, caso a caso, a credibilidade e validade da fonte, aplicando-se a teoria da responsabilidade por culpa presumida, segundo a qual o informante é quem deve comprovar a veracidade e a correção da informação veiculada (ad. 38 do Código). Outro empecilho grave que se assoma, neste ponto, é o principio jornalistico do sigilo da fonte, espécie de sigilo profissional de fundamen- tal impodância para o desempenho das atividades do jornalista. Por outro lado, no que tange especificamente ao aspecto normati- vo, o assunto, a nosso ver, está suficientemente regulado no ad. 36 do Código, transcrito há pouco, segundo o qual a publicidade deve ser vei- culada de forma tal que o consumidor. “fácil e imediatamente, a identifi- que como tal”. E óbvio que, num adigo jornalístico em que não haja indicio do caráter publicitário das informações nele inseridas, o consu- midor não conseguirá identificar a publicidade de forma “fácil e imediata”, como exige o Código. (75) PASOUALOTTO. Adalberto. “Uma lacuna do Código de Defesa do Consumidor”. ln Verbis-flevista do Instituto dos Magistrados do Brasil, Rio de Janeiro, v. 2, n. 10, nov./dez. 1997, p. 14. ROBERTO BASILONE LEITE 106 3.142. Princípio da Educação O Código de Defesa do Consumidor estabelece, nos ads. 40, inciso IV, e 6~, inciso II, o principio da educação, ou da formação, que impõe que seja proporcionada aos consumidores e fornecedores a educação para o consumo. A concretização desse principio pode ser implementada através da organização de breves cursos, talvez ministrados por rádio e televisão, que forneçam noções básicas, porém sistemáticas, do microssistema implantado pelo Código. A par disso, deve ser elaborado um programa coeso de ação edu- cativa, composto de cursos, seminários e reuniões patrocinadas pelos órgãos públicos e entidades de defesa do consumidor, em colaboração ti com as escolas, igrejas, sindicatos, associações de bairro e outras en- til tidades civis. Convém que o conteúdo adotado nesses cursos seja de Si nível básico, prático e de fácil assimilação, pois o público-alvo é com- posto de cidadãos comuns e não existe o intuito profissionalizante. Para o desempenho de tais tarefas — dispõe o parágrafo único do ad. 106 do Código—, o Estado pode solicitar o concurso de órgãos e ti entidades de notória especialização técnico-científica. Hoje quase ninguém mais discorda de que qualquer projeto nacio- nal de melhoria depende de investimento maciço em educação, seja ele endereçado ao setor produtivo, social, econômico, jurídico, higiênico, ético, político ou qualquer outro. Enquanto a população não traspassar a linha divisória das trevas do semianalfabetismo endêmico, não terá Con- dições sequer de Compreender O conceito de cidadania, muito menos de exercê-la, Convém sempre reiterar que cidadania não significa simplesmente saber-se titular de cedos direitos; significa também, de um lado, ter ha- bilidade e iniciativa para manipular os instrumentos garantidores da Cida- dania e do bem-estar social e, de outro lado, conseguir adicular os pró- prios direitos aos co-respectivos deverQs e obrigações. Com a ressalva de alguns atos instintivos e processos biológicos e metabólicos, tudo na vida tem de ser aprendido. E a educação que ensi- na a pessoa a realizar suas tarefas com maior rapidez e perfeição, a seguir uma dieta alimentar saudável, a evitar doenças, a obedecer às regras de trânsito, a cumprimentar e a relacionar-se adequadamente com INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR__ 107 as pessoas, a utilizar um telefone e até a atravessar uma rua. O poeta Drummond de Andrade advedia que até “amar se aprende amando”.1761 O erro decorre da ignorância. O individuo descumpre normas le- gais, morais ou compodamentais elementares porque não compreende a sua finalidade, ainda que conheça o seu enunciado; ou seja, ele não foi suficientemente instruído para compreendê-las. Continua atual a lição de Rui Barbosa, no sentido de que “acima de todos os elementos de organização, de administração, de regenera- ção1 acima de todos se acha, evidentemente, como a mais política de todas as forças políticas, a inteligência, a cultura, a ciência”>771 Tanto o Consumidor quanto o fornecedor, a quem não tenha sido proporcionado o mínimo conhecimento técnico e metodizado do micros- sistema constituído pelo Código do Consumidor, encontram dificuldade i~ de adaptar-se a esse sistema. II 3.1.7. Princípio da Efetividade da Norma O princípio da efetividade da norma, ou do acesso à Justiça, é aquele que manda o intérprete optar sempre pela solução mais eficaz para tornar realidade os objetivos da norma de direito material. II O legislador, nesse ponto, preocupou-se não apenas em criar di- reitos materiais subjetivos favorecedores do consumidor, mas também em assegurar a ele meios eficazes para dar eficácia a tais direitos. De fato, um direito desprovido de efetividade não passa de uma falsa pro- messa, é como as “estrofes adoradas que não têm sentido’ do poema de Neruda.1781 É através do processo que o direito ganha existência con- creta. O Código trouxe inovaçôes no campo do direito processual, dos quais as mais relevantes consistem na inversão do ônus da prova e na adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. (76) ANDRADE, Carlos Drummond de- Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Record: Altaya, 1989. 186 p. (Mestres da literatura contemporânea: 17) (77) BARBOSA, Rui. Aos professores e estudantes da Bahia’: discurso da campa- nha presidencial, proferida na Faculdade de Medicina da Bahia em 14 de abril de 1919. lo OALVÃO. Wilmar Pereira Nunes (Org.). Antologia de famosos discursos brasilei- ros. 2 ed. São Paulo: Logos. 1959. p. 128. (78) NERUDA, Pablo Canto geral Tradução de Paulo Mendes Campos, Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 428. loa ROBERTO BASILONE LEITE 11.7.1. Principio da Inversão do Õnus da Prova Sob a perspectiva da efetividade da lei, a mais importante alteração trazida pelo Código do Consumidor consta do art. 6~, inciso VIII, que autoriza o juiz a determinar, no processo civil, a inversão do ónus da prova em benefício do consumidor. Desde que verificado o prejuízo ao consumidor, presume-se a imperfeição do produto ou serviço; cabe ao fornecedor comprovar que o vício ou defeito não existia para afastar a obrigação de reparação do dano. Muito embora se trate de norma de caráter meramente processual, não há dúvida de que ela representa verdadeiro principio do Direito do Consumidor, derivado do principio da efetividade da norma. Tamanha é iii a importância jurídica dessa regra que ela foi incluída pelo legislador entre os “direitos básicos do consumidor’, no Capítulo III do Titulo 1 do ti Código. Um dos grandes trunfos dos fornecedores-infratores, que impedia a decretação judicial de sua responsabilidade, era justamente a teoria 1’ clássica do ónus da prova. A teor do art. 333 do CPC, a prova do fato constitutivo do direito pleiteado incumbe a quem o alega; em outras pa- t lavras, cumpre ao autor da ação comprovar os fatos que fundamentam o seu pedido. 1 O legislador reconheceu ser impossível ao consumidor, via de re- gra, comprovar a imperfeição do produto ou serviço, ou o vício da contra- tação. Por isso, atribuiu ao juiz a faculdade de imputar ao fornecedor o ônus da prova, toda vez que a alegação do consumidor for verossimil, ou seja, quando tenha aparência de verdade. A prova de um acidente de consumo, por exemplo, seria o próprio produto adquirido pelo consumidor, que normalmente se destrói no mo- mento do acidente. Suponha-se um grupo de pessoas encaminhado ao hospital, com cólicas, ao término de almoço servido em certo restaurante. Passados alguns dias do evento, não será mais possivel a prova técnica de que as reações patológicas dos comensais foram causadas pela comida. E absolutamente verossímil, no entanto, a alegação de que o internamento dessas pessoas decorreu de acidente de Consumo ocasionado pela in- gestão de alimentos ruins fornecidos pelo restaurante. Inverte-se o ónus da prova: ao fornecedor compete produzir as provas tendentes a demons- trar que a internação não foi ocasionada pelo almoço. INTRODUÇAO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 109 Note-se que a própria norma que atribui ao juiz a faculdade de inverter o ônus da prova já delimita a margem de discricionariedade”91 a ele reservada: portanto, se a alegação do consumidor for verossímil, o juiz não pode deixar de inverter o anus probandi, por se tratar de um direito da parte e não de uma faculdade ilimitada do juiz. O que cabe ao julgador é unicamente dizer se há ou não verossimilhança na afirmação do autor-consumidor, só podendo exigir dele a prova dos fatos Constitu- tivos do direito se entender que suas alegações são inverossímeis. Por outro lado, quando o consumidor for hipossuficiente “segundo as regras ordinárias da experiência”. o õnus da prova inverte-se de plano, por força de expressa determinação legal contida no mi. 6~, inciso VIII, do Código, não podendo o juiz indeferir tal providência. O princípio em tela é dotado de sólido fundamento lógico, pois é o fornecedor quem tem o domínio tecnológico do produto ou serviço que coloca no mercado. Ele é quem detém o controle do processo produtivo, o domínio da fórmula e a posse dos instrumentos utilizados na fabrica- ção do produto ou na realização do serviço. Só ele, por isso, tem condi- ções de demonstrar cientificamente se determinado produto apresenta ou não os vícios apontados pelo consumidor. 31.7.2. Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica j O desenvolvimento das sociedades comerciais fez surgir no Direito a teoria da distinção entre a personalidade jurídica da empresa e a pes- soa física do sócio. Idealizada na Europa medieval, essa teoria foi aga- salhada no Brasil pelo art. 20 do Código Civil, de 1~ de janeiro de 1916, e, uns anos depois, pelo Decreto n. 3.708, de 10 de janeiro de 1919. Dispõe o mencionado art. 20 que “as pessoas jurídicas têm exis- tência distinta da dos seus membros”. Avançando nesse mesmo sentido, para tornar explicita a exclusão da responsabilidade da pessoa física dos sócios, o art. 2~ do Decreto n. (79) O termo discricionariedade é empregado aqui não no sentido comum, como sinônimo de arbitrariedade, mas no sentido jurídico administrativista, segundo o qual atos discricionàrios são “os que a administração pratica com certa margem de liberda- de de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade for- mulados por eta mesma, ainda que adstrita á lei reguladora da expedição deles” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. V tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 61). w 110 ROBERTO BASILONE LEITE 3.708/19 determinou que o título constitutivo da sociedade por quotas de responsabilidade limitada deveria “estipular ser limitada a responsabili- dade dos sócios à importância total do capital social”. Como tempo, tal legislação passou a servir de instrumento para a burla constante a credores, pela desoneração do patrimônio dos sócios da empresa devedora. O sócio se evadia de suas responsabilidades atra- vés da manutenção de um sistema contábil que permitia a transferência e concentração dos lucros em seu próprio nome, ao mesmo tempo que lançava todas as obrigações e dividas em nome da pessoa jurídica da qual ele fazia parte. Para transpor esses óbices jurídicos que dificultavam a cobrança dos débitos, surgiu a teoria que ficou conhecida como disregardof legal ii eatity (“desconsideração da personalidade jurídica”), a partir de decisão proferidana Inglaterra, em 1897, no caso Salomon versusA. Salomon & Co. Ltd,,~801 em que foi desconsiderada a pessoa jurídica da empresa e Li onerado diretamente o patrimônio do sócio. No Brasil, a questão era mais grave do que na Europa, porquanto aqui os donos de empresas, sobretudo pequenas e médias, transferem com muito mais facilidade a receita da pessoa jurídica para o patrimônio dos sócios. No dia em a empresa é chamada para saldar seus débitos, não possui capital suficiente, enquanto os sócios ostentam condições econômicas incompatfveis com a situação de insolvência da empresa. A lei brasileira autorizava a excussão do patrimônio do sócio ape- nas nas hipóteses de excesso de mandato e violação do contrato ou da lei (Decreto n, 3.708, de 10 de janeiro de 1919). A jurisprudência, no entanto, no decorrer do século XX, incumbiu-se de difundir intensamente a teoria da desconsideração, como o único meio eficaz de viabilizar a execução das condenações. O Código do Consumidor, afinal, acabou por consagrá-la expres- samente em seu art. 28, que dispõe: “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumi- dor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”. Não se limitou, no entanto, o Código a tornar explícita a teoria da disregard. O § 5~ do art. 28 cuidou de alargar enormemente a possibili- (80) MIRANDA JR., Darcy Arruda. Curso de direito comercial: sociedades comerci- ais. 5’ ed. rev., atual, e aunl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, v. 2, p. 15-16. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 111 dade de desconsideração da personalidade jurídica, ao assentar que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de pre- juízos causados aos consumidores”. Diante da amplitude da norma lançada no referido § 5~, não é mais permitido ao fornecedor-infrator escusar-se do cumprimento de suas obri- gações como consumidor ao argumento de que o patrimônio dos sócios não responde pelas dividas da empresa. Não bastasse isso, nos §~ 2~ a 4~ do mesmo art. 28,o Código fixa a responsabilidade subsidiária das sociedades integrantes dos grupos societários e das sociedades controladas, a responsabilidade solidária das consorciadas e a responsabilidade por culpa das coligadas. 3.1.7.3. Aplicação Extensiva do Código ~1 O Código do Consumidor representa o primeiro — e até agora o único — corpo normativo sistemático editado no Brasil para regulamen- taros direitos da personalidade. O próprio Código autoriza a aplicação dos dispositivos constantes 1>~ do Título III, que trata “da defesa do consumidor em juízo”, à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais. Para tal fim, determinou, em seu art. 117,0 acréscimo do art. 21 à Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, conhecida como Lei dos Interesses Difusos, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por da- nos causados ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio artísti- co, estético, histórico, turístico e paisagístico. 3.1.7.4. Regra da Competência Mais Benéfica A regra da competência mais benéfica ao consumidor está assen- te no art. 101 do Código, segundo o qual a ação de responsabilidade civil contra o fornecedor de produtos e serviços “pode ser proposta no domici- lio do autor”. Ao permitir que o consumidor ajuize a ação em seu próprio domici- lio, a lei procura mais uma vez facilitar o seu efetivo acesso à Justiça. Excetua-se dessa regra as causas em que a União, entidade au- tárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de 112 ROBERTO BASILONE LEITE parte, assistente ou oponente. O processo, nesses casos, deve ser ajui- zado em Comarca onde exista Vara da Justiça Federal, conforme deter- mina o art. 109, inciso 1, da Constituição Federal. 3.1.7.5. Regra dos Efeitos Erga Omnese Ultra Panes A sentença que julgar procedente o pedido do consumidor faz coi- sa julgada com efeitos ultra pades e erga omnes, “para beneficiar todas as vitimas e seus sucessores . Trata-se de outra grande inovação do Código, implementada em seu art. 103, incisos la III. Dessarte, desde que julgada procedente a ação de responsabilida- de do fornecedor ajuizada por uma das vitimas do evento danoso, todas as demais vitimas poderão posteriormente habilitar-se no processo para promover a liquidação e execução da indenização devida, mediante exe- cução coletiva (art. 98 do Código). I u Decorrido o prazo de um ano sem a habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão dar seguimen- to à liquidação e execução os substitutos legais da coletividade de con- sumidores, isto é, o Ministério Público; a União, Estados, Municípios e t Distrito Federal; as entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta e as associações de defesa do consumidor (art. 100). 3.2. DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONSUMIDOR Os direitos fundamentais do consumidor, elencados no art. 6~ do Código, podem ser classificados em cinco grandes categorias: a) direito à saúde e à segurança; b) direito à proteção econômica; c) direito à informação e à educação; d) direito à representação; e) direito à reparação de danos. 3.2.1. Direito à Saúde e à Segurança O art. 6~ do Código relaciona os direitos fundamentais do consumi- dor. Em seu primeiro inciso, realça o direito à saúde e à segurança, corolário do direito à vida. INTRODUÇAO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 113 Esse dispositivo busca chamar a atenção do aplicador da lei, seja ele juiz ou administrador, para o fato de que a proteção ao consumidor não se limita ao ressarcimento de danos materiais, mas que a mera ocorrên- cia de riscos provocados pelas práticas adotadas no fornecimento de produtos e serviços deve ter conseqüências juridicas próprias e distintas. O simples risco gerado pelos bens e serviços perigosos é causa de abalo moral na sociedade, ainda que não cheguem a se concretizar lesões físicas ou materiais. É essa idéia que a norma celebra ao impor a garantia à segurança, ao lado da garantia à saúde. A norma codificada encontra respaldo nos arts. 5~, caput, e 196 da Constituição Federal, os quais garantem a vida, a segurança e a saúde como direitos de todos e dever do Estado. Produtos e serviços perigosos não podem ser colocados no mer- cado, exceto aqueles naturalmente perigosos, como agrotóxicos, fogos de artifício, serviços de vigilância e segurança, demolição de edifícios. Em tais casos, o fornecedor é obrigado a prestar todas as informações necessárias e adequadas, a teor do que dispõem os arts. 8~, 9~, 10,12 e 31 do Código do Consumidor. 3.2.2.1. Direito ao Meio Ambiente Adequado O direito à saúde e à segurança implica o direito ao meio ambien- te adequado, previsto na Resolução n. 39/248 da ONU, de 16 de abril de 1985. Ao garantir aos consumidores o direito à saúde e à segurança, o Código institui uma norma legal de proteção ao meio ambiente, pois este fator é imprescindível para a manutenção dos bens principais asse- gurados pela lei. O fornecedor que coloca no mercado produto ou serviço nocivo ao equilíbrio ecológico está a violar os direitos à saúde e à segu- rança do consumidor. A degradação do meio ambiente representa quiçá o mais grave problema dos tempos atuais. E ela resulta, direta ou indiretamente, do mercado de consumo. Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambi- ente e Desenvolvimento, realizada entre os dias Se 14 de junho de 1992 na cidade do Rio de Janeiro, em que foi referendada a Agenda 21, defini- ram-se inúmeras teses, que continuam até hoje a ser discutidas no âmbito da ONU. 114 ROBERTO BASILONE LEITE Uma das teses firmadas naquela Conferência, constante do capi- tulo 4 da Agenda, afirma que “as principais causas da deterioração inin- terrupta do meio ambiente mundial são os padrões insustentáveis de consumo e produção, especialmente nos países industrializados. Moti- vo de séria preocupação, tais padrões de consumo e produção provocam o agravamento da pobreza e dos desequilfbrios’.~81~ Os atuais padrões de produção e de consumo — que estão, por motivos óbvios, intímamente articulados — são a causa central de al- guns problemas estruturais: a) o esgotamento das fontes e recursos naturais que dão susten- tação à vida humana e que são limitados; b) a redução dos recursos vitais provoca o aumento da concorrên- 04 cia e o conseqüente agravamento da miséria; c) os riscos epidêmicos cada vez maiores, ocasionados pelo uso 1 indiscriminado de agroquimicos e de processos de manipulação genéti- ‘ cana indústria alimentícia, e de sistemas de comunicação de potencial cancerígeno, na indústria eletrônica. As epidemias modernas se espalham pelo mundo, sem nenhuma perspectiva de cura. O agravamento da miséria, por sua vez, conduz inexoravelmente ao açodamento da violência urbana e camponesa e, por vezes, à guerra. Enfim, o esgotamento dos recursos naturais produzirá efeitos cli- máticos, biogenéticos, antrópicos e geográficos violentos, que acabarão conduzindo o planeta a um colapso ecológico irreversível. Em termos objetivos, se não forem alterados os rumos atuais da sociedade de consumo globalizado, dentro de alguns séculos o planeta não oferecerá mais condições biológicas adequadas para a vida huma- na; a atmosfera continuará a se aquecer, devido ao efeito estufa, até chegar “ao estado de Vênus, com ácido sulfúrico em ebulição’, confor- me prevê o físico Stephen Hawking.~82’ Duane Elgin, outro cientista norte-americano, igualmente adverte que as alterações climáticas, superpopulação, esgotamento de reser- (81) Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Agen- da 21, cap. 4. Disponível em: http://www.igc.apc.org/habitat’agenda2l/ch-04•html. Acesso em: 15 jan. 2001. (82) “PLANETA pode não ver ano 3000,,. Diário Catarinense. Florianópolis, 1 de out. 2000, p. 39. INTRODUÇAO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 115 vas de petróleo, devastação das florestas tropicais, erosão do solo, bu- raco na camada de ozônio acabarão por aniquilar ou transformar o tecido político, econômico e cultural do planeta”. “Foi espantosa” — argumenta ele — “a rapidez com que o progres- so econômico se transformou em ruína ecológica. No entanto, com a deterioração da biosfera já ultrapassando sua capacidade de suportar o fardo da humanidade, os pontos de vista e os valores que no passado nos serviam tão bem devem agora ser reavaliadost831 A humanidade, no entanto, tem liberdade para escolher se prosse- gue na direção do seu próprio exterminio ou, ao contrário, se muda de rumo e assim consegue ingressar definitivamente na era da solidarieda- de, que representará uma nova etapa na evolução humana. 4. A idéia de consumo, atualmente, se opõe à de preservação ecoló- gica. Mas isso é fruto de um condicionamento cultural, que terá de ser revisto urgentemente pela sociedade para que se projete e implemente um sistema de produção-consumo equilibrado, capaz de reverter o pro- cesso de esgotamento dos recursos da natureza e garantir o desenvolvi- mento sustentado. O Estado, nesse ponto, assume papel muito significativo, pois só ele tem o poder de delimitar os graus de degradação permissiveis nas relações de consumo e nas atividades produtivas. 3.2.2. Direito à Proteção Econômica Agrupam-se sob o titulo direito â proteção econômica diversas nor- mas que objetivam garantir ao consumidor a incolumidade econômica. Cuidam principalmente do acesso ao consumo, da liberdade de escolha e da validade das cláusulas do contrato. As cláusulas contratuais devem ser interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, segundo dispõe o art. 47 do Código. O Código coibe os abusos praticados no mercado de consumo, tais como a concorrência desleal, o uso indevido de inventos que pos- sam causar prejuízo aos consumidores (art. 42, inciso VI) e a publicida- de enganosa e abusiva (art. 6~, inciso IV). (83) ELGIN, Duane. A dinâmica da evolução humana. Tradução de Gilson César cardoso de Souza. São Paulo: cultrix, 1999, p. 11. 116 ROBERTO BASILONE LEITE Com o intuito de proteger os interesses econômicos do consumi- dor, o codificador, no art. 51, declara nula toda cláusula contratual abu- siva, ainda que o consumidor a tenha acatado. 3.2.2.1. Direito ao Consumo O acesso aos bens e serviços de consumo é o mais elementar dos direitos do consumidor. Um quarto da população mundial não desfruta do direito ao consumo, por falta de recursos. Além disso, até os anos 1990, em certas regiões governadas por regimes de índole socialista, as pessoas não tinham aces- so ao consumo em razão do controle rígido exercido sobre o comércio. No Brasil, a inclusão econômica da grande massa de habitantes 04 desprovidos de poder de consumo depende de providências políticas de larga envergadura. Pouco se pode fazer com base na Lei do Consumidor para criar, em favor dos miseráveis, meios de acesso ao consumo. A lei qk pode garantir a qualidade do produto, a lealdade contratual, a publicida- de honesta, mas não pode obrigar o produtor ou o comerciante a fornecer o bem gratuitamente. A solução desse problema, portanto, está fora do alcance do Direito do Consumidor e dentro da órbita da Ciência Política. É comum no mercado a prática do dropping, que consiste no oculta- mento ou recusado fornecimento de produto ou serviço, levada a efeito por cartéis de fornecedores para forçar o aumento dos preços. A fim de impe- dir ouso desse expediente escuso, o Código, no ad. 39, inciso 1, in fine, veda ao fornecedor condicionar o fornecimento do produto ou serviço, sem justa causa, a limites quantitativos, sejam mínimos ou máximos, 3.2.2.2. Direito à Liberdade de Escolha O direito à liberdade de escolha está assegurado no art. 6~, inciso II, do Código. Ao fornecedor é proibido “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço Trata-se da famosa “venda casada’, que o legislador relaciona entre as hipóteses de prática abusiva no ad. 39, inciso, do Código. 3.2.2.3. Teoria da Imprevisão e Inalterabilidade do Contrato Há muito existe, no campo da teoria geral dos contratos, a diver- gência entre o principio da força obrigatória e a teoria da imprevisão. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO cONSUMIDOR 117 A teoria clássica dos contratos é a que lhes assegura efeito vincu- ante. O princípio da força vinculativa estava presente já nos antigos tex- tos romanos, de onde provém a máxima contra ctus Iegem exconventio- ne acciput (“o contrato faz lei entre as partes’). É lembrado até hoje pela expressão pacta sunt setvanda, que significa “os pactos devem ser res- peitados”, e tem larga aplicação na rotina forense. Para a teoria clássica, não há opor o justo ao contrato, pois por ser este superior à lei, o que consta do contrato é o que se considera justo. Ojurista holandês Grdcio, precursor do Direito Internacional, asseverava que “o respeito da palavra dada é uma regra de direito natural; pacta sunt setvanda é um principio que deve ser aplicado não apenas entre os indi- viduos, mas mesmo entre as naçôesfl.(M) A fim de amenizar o principio da força obrigatória, os juristas roma- nos pós-glosadores, vinculados à Igreja Medieval e ao Direito Canônico, criaram no século XIV a cláusula rebus aia stantibus. Esta expressão foi extraida de uma norma vigente na Idade Média, segundo a qual con- tra atua qui habent tra atum sucessivum ei dependentiam de futuro, re- bus aia stantibus intelliguntur (“os contratos de trato sucessivo e de- pendentes de prestaçôes futuras podem ser modificados segundo a situação atual das coisas”). Afirmavam os pós-glosadores que todo contrato dependente de pres- tações futuras traz implícita a cláusula rebus aia stantibus, a qual per- mite a alteração ou a resolução da avença no caso de haver alterações profundas nas condições fáticas. A cláusula rebus não foi bem aceita na época, mesmo porque logo começaram a surgir as idéias renascentistas e liberais que reeditaram a antiga teoria da força obrigatária dos contratos, ou dos pacta suntsetv’anda. Com a escalada do crescimento urbano e tecnológico no inicio do século XX, renasceu na doutrina o interesse pela cláusula rebus, ten- dência que se acentuou ainda mais com a eclosão da Primeira Grande Guerra em 1914. O mundo enfrenta, desde então, um estado de permanente instabi- lidade e de repetidas e bruscas alterações no quadro econômico, social e político. As próprias guerras impuseram ao povo mudanças profundas, o que muitas vezes tornava extremamente difícil o cumprimento pelo devedor dos contratos firmados anteriormente. (84) oRÓcIo apudOILISSEN, John. Op. CII., p. 738. 118 ROBERTO BASILONE LEITE Diante disso, a fim de abrandar os efeitos dolorosos que o principio da obrigatoriedade dos contratos infligia aos mais fracos, a doutrina eu- ropéia não demorou a ressuscitar a cláusula rebus, agora sob a comple- xa roupagem da teoria da imprevisão. Apesar de largamente combatida, essa teoria encontrou defensores em todo o mundo, inclusive no Brasil. A influência do principio clássico da força obrigatória dos contratos fez-se sentir em alguns dispositivos da legislação brasileira, dentre os quais vale destacar o art. 1.091 do Código Civil, que declara: “A impossi- bilidade da prestação não invalida o contrato, sendo relativa, ou cessan- do antes de realizada a condição”. Extrai-se deste dispositivo que a impossibilidade da prestação pode ser absoluta ou relativa. A impossibilidade relativa é aquela que afeta apenas o devedor, não sendo apta a invalidar o contrato. A impossibilida- ‘Ii de absoluta é a que estende seus efeitos à sociedade como um todo e, 14 ao contrário da anterior, permite a invalidação do avençado. No primeiro caso, tem-se o exemplo do devedor que se torna insol- vente; no segundo, o da massa de mutuários do Sistema Financeiro de Habitação atingidos, de forma genérica e indistinta, por uma alteração brusca e profunda na política econômica do país. Como se depreende, nem sequer o Código Civil afastou a possibi- idade de aplicação da teoria da imprevisibilidade aos contratos, apesar da marcante influência que sofreu das idéias liberais. Aos poucos, a cláusula rebus foi penetrando no mundo juridico brasileiro. Desde os anos 1970, Sílvio Rodrigues já acentuava: “encon- tra-se, hoje, uma tendência a alterar a eficácia dessa regra, para admitir a rescisão do contrato na hipótese de onerosidade excessiva”.t85t A cláusula rebus teve extensa aplicação nos últimos vinte anos, devido às bruscas mudanças e às perdas salariais e financeiras impos- tas à população pelos planos econômicos do Governo editados entre março de 1986 (Plano Cruzado) e março de 1991 (Plano ColIor II). Ademais, as idéias liberais vão sendo aos poucos amenizadas; a propriedade e a livre empresa são condicionadas hoje aos limites impos- tos pelos fins sociais que as devem nortear. Paralelamente, o principio pacta sutil servanda também vai perdendo força, num processo de adap- (85) RODRIGUES, SiIvio. Oh-eito civil: dos contratos e das declarações unilaterats de vontade. 19a ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1990, v. 3, p. 79. INTRODuÇÃO AO DIREITO DO cONSUMIDOR 119 tação da teoria dos contratos às novas políticas de condicionamento das liberdades individuais ao interesse público. O Código do Consumidor autoriza a aplicação da teoria rebus sic stat-itibus. Trata-se da primeira lei brasileira a introduzir tal previsão de forma explícita. O ad. 6~ do Código. em seu inciso V, alinha dentre os direitos básicos do consumidor “a modificação das cláusulas contratu- ais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em ra- zão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Assim, fatos supervenientes que, pondo em desequilíbrio o contra- to, tragam excessiva onerosidade ao consumidor autorizam a revisão das cláusulas convencionadas para o restabelecimento da eqüidade na relação contratual. 3.2.2.4. Direito à Assistência Judiciária Gratuita 1 O ad. 5~, inciso, do Código assegura a assistência jurídica inte- gral e gratuita ao consumidor carente. Trata-se de reiteração do direito à assistência judiciária gratuita, instituido no Brasil pela Lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, e confirmado pela Constituição de 1988, nos arts, S~, inciso LXXIV, que impõe ao Estado o dever de assistência, e 134, Ti que regula a competência funcional da Defensoria Pública. Esse direito é mais uma manifestação do princípio da efetividade da norma de consumo, ou do acesso à Justiça. 3.2.3. Direito à Informação e à Educação O direito à informação e à educação congloba uma das cinco gran- des categorias de direitos do consumidor. O consumidor tem direito à informação adequada e clara sobre os produtos e serviços, com a especificação correta de quantidade, carac- terísticas, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. E o que dispõe o ad. 6~, inciso III, do Código. Além disso, o Código assegura ao consumidor a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou des- leais, assim como contra práticas e cláusulas contratuais abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços, nos termos do inciso IV do mesmo ad. 6~. 120 ROBERTO BASILONE LEITE 3.2.4. Direito à Representação O direito de representação decorre do principio democrático e con- siste no direito de ser ouvido e de participar das decisões relativas aos seus interesses. A opinião dos consumidores deve ser levada em conta pelos ór- gãos públicos no planejamento e execução de suas políticas socioeco- nômicas. As denúncias e sugestões da comunidade são encaminhadas ao Governo pelas entidades representativas de consumidores, ou por qual- quer outra pessoa jurídica de direito público ou privado que a tanto se disponha, por intermédio do Departamento Nacional de Defesa do Con- sumidor, vinculado à Secretaria Nacional de Direito Econômico do t4 Ministério da Justiça, como prevê o ad. 106, inciso II, do Código. ‘ 3.2.4.1.Convenção Coletiva de Consumo A evolução da qualidade das relações de consumo pode levar a um 4 quadro mais estável e harmônico, no futuro. Isso propiciará a autodisci- plina dos interesses das partes envolvidas nesse contexto, isto é, forne- 4 cedores e consumidores, com o obietivo de prevenir ou solucionar os seus conflitos. Antevendo essa possibilidade, o Código do Consumidor autorizou as entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica a regularem, por convenção escri- ta, as relações de consumo (ad. 107). Podem ser objeto da convenção de consumo as cláusulas relativas ao preço, qualidade, quantidade, garantia e características de produtos e serviços, à reclamação e à composição de conflitos de consumo. Tem-se questionado se a convenção coletiva está sujeita à norma constante do ad. 51 do Código, que declara nulas de pleno direito as cláusulas contratuais consideradas abusivas. Seria nula, por exemplo, a cláusula convencional coletiva que atenuasse a responsabilidade do forne- cedor em determinada situação? A questão é polêmica, pois o ad. 51 refere-se expressamente à nulidade de “cláusulas contratuais’, não exis- tindo referência às cláusulas de convenções coletivas em nenhum artigo do Código. INTR0DuçÂ0A0 DIREITO DO CONSUMIDOR 121 Parece cedo, no entanto, que se deva decretar a nulidade das cláusu- las convencionais que violem o ad. 51, tendo em vista que as normas de proteção e defesa do consumidor são “de ordem pública e interesse social”, a teor do ad. 1 ~, e portanto inegociáveis. Dessa forma, as cláusulas da convenção de consumo não podem, sob pena de nulidade, ferir os principios e normas do Código de Defesa do Consumidor nem reduzir os direitos assegurados ao consumidor. A convenção de consumo entra em vigor com o registro em Cartó- rio de Titulos e Documentos e só obriga os consumidores e fornecedores que eram filiados às entidades signatárias na data da assinatura do ins- trumento ou que se filiaram depois disso, bem como seus sucessores. O desligamento posterior do filiado não o desonera do cumprimento da convenção (ad. 107, § 3Q). Diferentemente do contrato individual, a convenção de consumo tem natureza normativa: enquanto aquele regula apenas interesses par- ticulares dos contratantes, a convenção de consumo estipula regras gerais destinadas a disciplinar as relações entre as pessoas representadas pelas entidades subscritoras do instrumento normativo. 325. Direito à Reparação de Danos O Código do Consumidor assegura, no ad. 6~, inciso VI, a efetiva reparação dos danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difu- sos. Para dar efetividade a esse direito, disciplina, em duas seções, os meios de reparação do dano e a questão da responsabilidade. Esse as- sunto será tratado no tópico relativo à tutela dos direitos do consumidor. r III Ii ii’ A 4. TUTELA DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR 41. PROBLEMÁTICA DA TUTELA A problemática da tutela dos direitos do cidadão envolve duas ordens de indagação: a) a definição e a justificação teórica dos direitos subjetivos; b) a fixação dos meios para assegurar a efetividade desses direitos. Cada uma delas implica um rol específico de dificuldades. 1 4.1.1. Definição e Justificação dos Direitos do Consumidor A delimitação do rol de direitos subjetivos da pessoa humana es- .1 barra no problema da instabilidade do sistema legal e da jurisprudência. O grave problema da instabilidade da jurisprudência nacional talvez seja a causa remota da insatisfatória efetividade da prestação jurisdicio- nal em nosso país. A necessidade de harmonização da jurisprudência, como pressu- posto de segurança jurídica da sociedade, é logicamente anterior ao anseio de efetividade das decisões. Primeiro é necessário consolidar uma realidade jurídica estável, composta de decisões tão harmónicas quanto possível, para depois se buscar a efetividade dessas decisões. A efetividade de uma jurisprudência balbuciante e movediça não interessa à sociedade. A divergência das decisões judiciais, ao contrário de nociva, é sa- lutar e até essencial para a evolução do direito. A jurisprudência surge exatamente do confronto entre teses antagônicas acolhidas nos julga- mentos e da continua discussão a partir dai desencadeada. Esse emba- te constante de idéias é que leva à reflexão; sem ele, o Poder Judiciário não cumpre o seu papel dialético recriador do direito. Miguel Reale assevera que, “a contrário do que pode parecer à primeira vista, as divergências que surgem entre sentenças relativas às mesmas questões de fato e de direito, longe de revelarem a fragilidade 124 ROBERTO BASILONE LEITE da jurisprudência, demonstram que o ato de julgar não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável margem de poder criador’. E continua, mais adiante: “Se é um mal o juiz que anda à cata de inovações, seduzido pelas ‘últimas verdades’, não é mal menor o julgador que se converte em autômato a serviço de um fichário de arestos dos tribunais superiorest~86~ A nocividade do sistema, na verdade, não está na discrepância natural de arestos divergentes, mas sim na quase impraticabilidade da pacificação desses conflitos de decisões. A causa da insegurança é a inviabilidade de sedimentação da jurisprudência. Ocorre que a fragilidade da jurisprudência brasileira decorre da instabilidade do próprio sistema legal. A insegurança psicológica gera- da pelo uso inadequado do antigo decreto-iei — substituido em 1988 pelas medidas provisórias, que regulam praticamente todos os setores da vida política, social e econômica — acabou por impregnar todo o 1w’ sistema legal, e lançou o pais num estado de permanente reformismo legislativo e até mesmo constitucional. São despejadas sobre os om- bros dos cidadãos, diariamente, carradas de novas normas e altera- ções de leis já existentes. Assim, nosso sistema jurídico, de tradição ii legalista, não se estabiliza. A falta de solidez das normas impossibilita o trabalho de sedimen- tação da jurisprudência. Mal esta começa a acenar com a uniformização sobre determinado tema, sobrevém uma nova avalanche de disposições que o alteram. E notório que a sedimentação da interpretação de um único artigo de lei exige às vezes dez anos de debates. No campo das relações de consumo, a edição do Código do Con- sumidor diminuiu a gravidade desse problema, graças à boa técnica le- gislativa nele empregada e também em razão de sua relativa solidez, já que até hoje não sofreu nenhuma alteração significativa. Ainda assim, a jurisprudência titubeia em diversos pontos. Por oca- sião do Seminário Nacional de Defesa do Consumidor, realizado no audi- tório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados em 29 de novembro de 2000, Archimedes Podre ira Franco, supeiintendente do Procon da Bahia, e Gados Henrique Gonçalves, supervisor do Procon do Maranhão, ao fa- larem das dificuldades enfrentadas no dia-a-dia dos serviços de proteção (86) REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 9 ed. rev. Sâo Paulo: Saraiva, 1981, p. 168. INTRODuçÃOAQ DIREITO DO cONsuMIDOR 125 ao consumidor, queixaram-se de que “os tribunais não reconhecem o Código no julgamento de certas causas”.’87~ É natural, no entanto, que haja, por parte dos juizes e tribunais, alguma dificuldade para a assimilação imediata e integral do microssis- tema de proteção ao consumidor implantado pelo Código de 1990, prin- cipalmente naqueles aspectos que implicam a assunção de posturas jurídicas não ortodoxas e inovadoras, como as que envolvem o princípio da inversão do ônus da prova, o direito à indenização por riscos coletivos ou a proteção dos interesses morais do consumidor. A recentidade do Código aliada ao seu caráter profundamente re- novador são fatores que reclamam um período maior de amadurecimento dos estudos e adaptação da mentalidade dos juslaboralistas aos novos princípios instituidos pela lei. 4.1.2. Efetividade dos Direitos do Consumidor Na outra face da questão da tutela dos direitos do consumidor está estampada a luta pela efetividade do direito material. Os juristas moder- nos esquadrinham todas as áreas do conhecimento tentando encontrar meios eficazes para concretizar os direitos dos cidadãos. O Código do Consumidor forneceu um bom arsenal. Criou meca- nismos protetivos na esfera administrativa e instrumentos tendentes a desobstruir o acesso à providência judicial, os quais serão referidos nos tópicos subseqüentes. Cumpre sublinhar que a pouca efetividade das leis está indissociavel- mente ligada à questão cultural, que constitui uma causa radical do aumen- to contínuo dos litígios. Não há como aperfeiçoar totalmente o controle ad- ministrativo e a prestação jurisdicional no âmbito das relações de consumo sem antes sanar as deficiências da estrutura cultural e educacional do país. Por isso é importante que cada um assuma o seu papel político de intérprete-criador-propagador do Direito, firmando sua consciência ético- jurídica no alicerce principiológico fornecido pela Constituição Federal. Onde há impunidade, não há lei. E onde não há lei, é o cidadão honesto quem perde e o infrator quem lucra, impondo-se pelo direito da força. Como dizia Lacordaire (1802-1861), “na relação entre o forte e o fraco, é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”. (87) “Seminário discute agência para regular concorrência e consumo. Jornal da Câmara dos Deputados, Brasília, DE, 4 dez. 2000, p. 5. 126 ROBERTO BASILONE LEITE 4.2. EFETIVIDADE E DEMOCRACIA A dificuldade em dar existência real aos padrões de comportamen- to concebidos pelo legislador é um dos graves problemas enfrentados pelos países da América Latina, nos quais a abundância de leis convive com a total impunidade daqueles que as desrespeitam, num cenário cruel marcado pela miséria, pela desigualdade e pela violência. A ineficácia, ou mesmo a violação institucionalizada, de muitos di- reitos básicos verificada nos países subdesenvolvidos fez com que a ciên- cia política passasse a questionar o conceito tradicional de democracia. Pergunta-se: pode ser chamado de democrático o Estado que rea- liza eleições gerais, com a maioria de sua população despojada de direi- tos elementares? Norberto Bobbio distingue entre democracia formal, que está as- ociada à forma de governo, e democracia substancial, que concerne ao flte9gIo~ para obter aquilo que a sociedade deveria torná-los capazes correspondente a essa forma.~88~ Para ele, “os que não têm de alcançar, porém são livres para fazê-lo com relação ao Governo, care- cem de ‘verdadeira liberdade”’.189~ O conceito de democracia, portanto, não se esgota na descrição regime político e da forma de organização dos poderes do Estado, Ar as comporta uma dimensão subjacente. Á idéia de cidadania política deve-se acrescentar a de efetividade da cidadania civil e de accotjntabi- lity— entendida a accountability como a obrigação que tem cada pes- soa ou instituição de prestar contas de seus atos. Deve-se considerar o conjunto dos direitos e deveres da cidadania. O professor Guillermo O’Donnell, da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, adota o termo poliarquia para se referir ao conceito restrito de democracia política, em que se considera apenas o sistema político adotado no pais. A partir dai, desenvolve a tese de que toda teoria política deve, ao conceituar democracia, levar em conta “a medida em que um regime poliárquico coexiste com um principio da lei adequa- damente democrático (ou um Estado democrático de direito)”>901 (88) 808810, Norberto. Estado, governo, sociedade.’ para uma teoria geral da política. 4 ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 157. (89) 808810. Norberto (et aO. Dicionário político, cit., p. 711. (90) ODONNELL, Guillermo. ‘Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América Latina’. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 51, juI. 1998. p. 55. INTRODuÇÃo AO DIREITO DO CONSUMIDOR 127 “A democracia” — sustenta ele — “não é só um regime político (poliárquico), mas também um modo particular de relacionamento entre Estado e cidadãos e entre os próprios cidadãos”, capaz de assegurar, além da cidadania política, a cidadania civil e uma rede completa de accountabillties (“responsabilidades’). O Estado que não consegue garantir os direitos fundamentais e o cumprimento dos deveres da cidadania, ainda que esteja organizado sob a forma de regime democrático e garanta as liberdades políticas, consti- tui uma democracia formal, ou poliarquia, mas não uma democracia subs- tancial. Com efeito, a comunidade caracterizada pela pobreza e pela desigualdade social está privada de facto do exercício dos direitos de- mocráticos, embora eles estejam previstos no plano teórico e legislativo. Nesse sentido, a maioria dos países latino-americanos é poliárquica. De qualquer forma, é possfvel adotar uma postura otimista, como a do professor O’Donnell quando afirma que só o fato de se “ter alcançado essa condição é, na verdade, um progresso extremamente importante em relação à arbitrariedade e violência dos sistemas autoritários que, na maioria dos casos, precedeu essas poliarquias”.~911 Conseguiu-se implantar no Brasil uma democracia formal, no plano político, aparentemente estável. Cumpre agora dar o segundo passo e con- cretizar a instalação de uma democracia substancial, no plano da cidada- nia, com a garantia da efetividade dos direitos subjetivos dos cidadãos. O Código Brasileiro do Consumidor proporciona instrumentos ca- pazes de contribuir para a consolidação de uma democracia substanci- al, na medida em que prevê a manutenção de um sistema permanente de responsabilidade social, ou de accountabilities, que beneficia a imen- sa maioria da população representada pelos consumidores. 4.3. FORMAS DE TUTELA DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR Os meios de tutela dos direitos do consumidor podem ser classifi- cados em três grandes categorias: tutela formal, tutela material e tutela instrumental. A tutela formal revela-se pela norma que impõe determinada forma ao ato da contratação. Refere-se ao aspecto exterior da relação de consu- mo. Sua finalidade é evidenciar para o consumidor certas características (91) 0DONNELL, Guillermo. Op. cit, p. 56. r 128 ROBERTO BASILONE LEITE do produto ou serviço, dando a ele condições de decidir com segurança sobre o negócio. A tutela material refere-se ao conteúdo do contrato, e corresponde às normas que impõem ou vedam determinadas cláusulas. A tutela instrumental, que alguns autores chamam, no campo do direito civil, de tutela executiva (92) refere-se aos meios de concretização dos direitos dos consumidores e execução das obrigações impostas ao fornecedor por contrato, lei ou decisão judicial. Pode ser dividida em três subgrupos: tutela instrumental administrativa, tutela instrumental penal e tutela instrumental jurisdicional cível. 44. TUTELA FORMAL As normas de tutela formalim põem determinada forma ao ato con- ‘ql~ tratual, estipulando condições externas para a sua validade. Têm por Ir finalidade chamar a atenção do consumidor para as reais características do produto ou serviço, oferecendo a ele condições de refletir com segu- IW rança sobre o negócio que pretende realizar. %IiI 1 Importa ressaltar que a simples observância dos requisitos formais não convalida o ato, se o negócio implicar ofensa às normas do Código b~1) do Consumidor. tI~ 4.4.1. Publicidade O art. 30 do Código, que vincula o empresário ao conteúdo da pu- blicidade por ele veiculada, é uma norma de tutela formal. Toda informa- ção ou publicidade veiculada, por qualquer forma ou meio de comunica- ção, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado, no que diz respeito aos produtos e serviços oferecidos ou apresentados. Essa norma não cria nenhum direito material propriamente dito em favor do consumidor, nem diminui a liberdade do empresário, porque este é livre para realizar ou não determinada publicidade. Apenas estabelece uma regra de caráter formal: os itens constantes da propaganda inte- gram o contrato de consumo que venha a ser formulado. (92) RuGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Tradução de Ary dos Santos. São Paulo: Saraiva, 1958, v. 3. p. 145. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 129 A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem necessa- riamente ser veiculadas em língua portuguesa, com informações corretas, claras, precisas e ostensivas, conforme determina o art. 31 do Código. 4.4.2. Cláusula de Prazo em A panado O fornecedor responde pelos vícios do produto comercializado, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas no prazo de trinta dias, conforme previsto no art. 18, § l~, do Código. O § 2~ do mesmo dispositivo autoriza as partes a convencionarem a redução ou ampliação do referido prazo e dispõe que, se se tratar de contrato de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor. A exigência de um segundo documento em apartado é uma espê- cie de tutela formal que, na prática, não costuma ter muita eficácia, porque a segunda assinatura é lançada no mesmo ato da primeira e, portanto, com o mesmo grau de atenção. ii 4.4.3. Cláusulas Contratuais em Destaque Nos contratos de adesão, as cláusulas que impliquem limitação de direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, de forma a permitir sua imediata e fácil compreensão — prevê o mi. 54, § 4~, do Código. Trata-se de mero destaque gráfico, capaz de ressaltar e tornar vis- tosas as cláusulas limitativas de direito do consumidor, que pode ser efetuado com o uso de caracteres de tamanho maior e mais espesso, cores diferentes, bordas em torno da cláusula e quaisquer outros méto- dos que sirvam a tal finalidade. Descumprida essa formalidade, a cláusula é nula de pleno direito, por força do disposto no art. 51, § 2~. 4.4.4. Conhecimento Prévio do Contrato O contrato de consumo não obriga o consumidor se não lhe foi dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo. Essa estipulação está contida no art. 46 do Código. 130 ROBERTO BASILONE LEITE Muitas vezes, principalmente em negócios de maior monta e no ramo imobiliário, o consumidor tem interesse de examinar o instrumento de con- trato com antecedência, proceder a uma leitura cuidadosa em sua própria residência, junto com a família. Em face da norma em tela, se o fornece- dor se recusar a fornecer antecipadamente o instrumento de contrato, este, mesmo que venha a ser assinado pelo consumidor, não o obrigará. 4.4.5. Contrato lncompreens(vel Não fica obrigado o consumidor se o instrumento do contrato de consumo por ele subscrito se revelar incompreensível ou dúbio, segundo prevê o art. 46 do Código. 4.5. TUTELA MATERIAL itw~ As normas de tutela materialafetam o próprio conteúdo do contra- 1% to, impondo ou vedando determinadas cláusulas. k%i Em seguida, são indicadas as principais normas de tutela material. 1% I~I 4.5.1. Cláusulas Contratuais Obrigatórias O Código estipula inúmeras cláusulas que devem constar obrigato- riamente do contrato. De qualquer forma, a garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso (art. 24 do Código). 4.5.1.1. Impressos Informativos O art. 8~, parágrafo único, do Código exige, no caso de produto in- dustrial, que o fabricante anexe a ele documentos impressos, com as informações pertinentes a riscos à saúde ou à segurança do consumidor. 4.5.1.2. Comunicado Público Quando, depois da assinatura do contrato, se descobrir que o pro- duto ou serviço é perigoso, cabe ao fornecedor, às suas expensas, co- municar o fato às autoridades competentes e aos consumidores, medi- ante anúncios publicitários (art. 10, §~ 1~ e 2~, do Código). INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 131 4.5.1.3. Cláusula de Reparação de Danos O fornecedor responde, independentemente da culpa, pela repara- ção dos danos causados ao consumidor por defeitos de seus produtos (arts. 12 e 13 do Código) ou serviços (art. 14), bem como por informa- ções insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. 4.5.1.4. Substituição de Produto Defeituoso O prazo máximo para o fornecedor substituir partes viciadas do pro- duto é de trinta dias, por força do disposto no art. 18, caput, do Código. Não sendo o vício sanado nesse prazo, pode o consumidor exigir a substituição do produto, a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço (~ 1~ do art. 18). 4.5.1.5. Conteúdo Liquido Incorreto Outra norma de tutela material é a que fixa a responsabilidade solidária dos fomecedores por vícios de quantidade do produto, sempre que seu con- teúdo líquido for inferior às indicações nele constantes (art. 19 do Código). A mesma norma indica as soluções que o consumidor pode exi- gir: abatimento proporcional do preço, complementação do peso ou medi- da, substituição do produto por outro idêntico ou restituição imediata da quantia paga. 4.5.1.6. Solidariedade dos Fornecedores Ainda que não conste expressamente do instrumento de contrato, a cláusula de solidariedade dos fornecedores integra, por força de lei, todo contrato de consumo. Assim, todos os responsáveis pelo fornecimento do produto ou serviço respondem solidariamente pelos riscos ou danos ocasionados. E isso que dispõem os arts. 19, 25, §~ l~ e 2~, e 34 do Código 4.5.1.7. Peças de Reposição Originais ou Adequadas Está implícita em todo contrato de serviços, por força do disposto no art. 21 do Código, a cláusula que determina que, na reparação de 132 ROBERTO BA5ILONE LEITE qualquer produto, o fornecedor empregará componentes de reposição originais adequados e novos, Ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante. 4.5.1.8. Nome e Endereço do Fabricante Segundo o art. 33 do Código, em caso de oferta ou venda por tele- fone ou reembolso postal, deve constar o nome e endereço dc fabricante na embalagem, publicidade e em todos os impressos utilizados na tran- sação comercial. 4.5.1.9. Orçamento Discriminado O fornecedor de serviços é obrigado a entregar ao consumidor or- çamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem t~:I como as datas de inicio e término dos serviços (art. 40 do Código). Uma vez aprovado pelo consumidor, o orçamento obriga os contra- entes e somente pode ser alterado mediante concordância de ambas as partes. O consumidor, portanto, não responde por ónus ou acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros não previstos no orçamento prévio. 4.5.2. Cláusulas Contratuais Vedadas O art. 51 do Código relaciona as cláusulas contratuais vedadas, por serem consideradas abusivas. Segundo o mencionado dispositivo, são nulas de pleno direito as cláusulas que: a) impliquem renúncia de direitos pelo consumidor; b) subtraiam do consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código; c) transfiram responsabilidades a terceiros; d) estabeleçam obrigações que coloquem o consumidor em desvan- tagem exagerada, ou sejam lncompati’veis com a boa-fé ou a eqüidade; e) estabeleçam inversão do õnus da prova em pre]ulzo do consumidor; INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 133 f) determinem a utilização compulsória de arbitragem; g) deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor; h) permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral; i) autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor; j) autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração; k) infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, 3 exonere ou atenue a obrigação do fornecedor quanto à adequação do pro- duto ou serviço (art. 24) ou quanto à indenização por danos ao consumidor J (art. 25). Em sintese, não pode integrar o negócio de consumo, sob pena de nulidade, cláusula que ofenda qualquer regra constante do Código do Consumidor. 4.5.3. Responsabilidade 4.5.3.1. Obrigação Até a Idade Média, a economia mundial se alicerçava na proprieda- de da terra. Essa circunstãncia se refletiu na legislação: o direito das coisas desenvolveu, ao longo dos últimos dois milênios, umà teoria sóli- da e minuciosa. A partir do século XV, a economia e a riqueza passam a ser deter- minadas pela quantidade de ouro e prata possuída pelo Estado. E a época áurea de Portugal e Espanha, para onde aporta quase todo o metal das colônias. A luta pela acumulação de ouro e prata faz surgir, em meados do século XVI, na Inglaterra, a doutrina mercantilista, que preconiza o au- mento das reservas de metais por meio da exportação de produtos, com a manutenção da balança comercial favorável às exportações. O primei- ro documento oficial a externar a tese de que o Estado deve exportar 134 ROBERTO BASILONE LEITE mais do que importar, intitulado Policies to reduce this realm ofEngland unto a prosperous wealth and Estate, data de 1549~~~~ A política de incentivo às exportações faz com que os governos invistam na ampliação de suas frotas de navios e na organização de suas indústrias, tanto para a fabricação de produtos exportáveis, quanto para suprir o mercado interno. É dessa época que datam a concessão de subsídios públicos às empresas nacionais e a sobretaxa aos artigos importados. Passam os países a ampliar suas frotas de navios, fundamentais para o comércio exterior. No século XVI, a Holanda torna-se a maior potência da Europa, em razão de sua frota marítima>94) No século seguinte, mais precisamente em 1660, o Parlamento ti inglês implementa uma mudança na lei, por força da qual estabelece que todo o transporte de mercadorias importadas ou exportadas só podem liL1 ser realizados em navios de bandeira nacional ou das colônias. Por força das circunstâncias, os maiores beneficiados com esse monopólio do transporte marítimo são os armadores ingleses e norte-americanos. Naquela época, as metrópoles proibiam às colônias qualquer tipo de indústria que pudesse lhes representar concorrência. A matéria-pri- ma da colônia só podia ser vendida à metrópole, a preços fixados por esta. A metrópole utilizava o necessário e reexportava o restante, fican- do com o lucro. A essa altura, as idéias liberais já ganhavam corpo na França. Um comerciante francês chamado Gournay, descontente com a rigoro- sa regulamentação imposta à produção pela Coroa Francesa, passa a criticar a ordem constituída. Atribui-se a ele a autoria da frase Iaissez- faire, laissez-passer (‘deixe fazer, deixe passar”), que um pouco mais tarde tornar-se-á o lema da primeira escola de economistas da histó- ria, a dos fisiocratas, que se reúne regularmente a partir de 1757, sob a presidência de François Ouesnay (1694-1774). Os fisiocratas pedem basicamente o comércio e a indústria livres. O grande mérito dos primeiros economistas foi mostrar que a ri- queza de um pais não depende do estoque de metais acumulado, mas sim do fluxodesse estoque, que é o que produz a renda nacional. (93) HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Tradução de Waltensir fluira. 1 9 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 131. (94) WELLS, H. O. Op. cit, v. 7, p. 22. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 135 Em 1776,0 economista escocês Adam Smith (1723-1790) publica sua obra Inquiry into the nature and causes of the wealth of nations (“Investigação sobre a natureza e causa da riqueza das nações”), em que analisa o sistema mercantilista sob o prisma científico e, com isso, demonstra as falhas fundamentais desse sistema. No mesmo ano, os norte-americanos se revoltam e promulgam a Declaração da Indepen- dência dos Estados Unidos da América. A base da riqueza da nação passa, a partir daí, a ser o fluxo de renda, que depende do montante de capital— compreendendo-se como capital o dinheiro e demais meios empregados pelo investidor com o interesse especifico não de usufruir diretamente dos bens adquiridos, mas de obter lucros com a sua revenda ou reutilização. Nasce assim o sistema capitalista, no qual, diferentemente do que acontecia antes, os países compram (importam) não para uso próprio, e sim para revender (exportar) com objetivo de lucro. A riqueza acumulada pelo comércio — ai incluída a exploração das colônias, a pirataria e o tráfico de escravos — ainda dependia da concor- rência de outro elemento para chegar à produção capitalista em grande escala: o trabalho. Até fins do século XIX, era difícil conseguir mão-de-obra livre, pois havia muitas terras baratas a serem povoadas nos novos continentes — América e Austrália — e as pessoas preferiam trabalhar em sua própria terra a ficar subordinadas a terceiros. Só aquele que não possuia nenhu- ma terra se sujeitava ao trabalho subordinado. Diante disso, os capitalistas emergentes, aliados ao Governo, ini- ciam na Inglaterra, no século XVI, o chamado processo de fechamento de terras, com a expulsão dos camponeses de suas pequenas planta- ções. Dessa forma, conseguem ampliar na ilha britânica a oferta de mão- de-obra livre e assalariada, ou, nas palavras de Huberman, do exército de infelizes sem terra, que tinham de vender sua força de trabalho em troca de salário”>951 Inspirados no modelo inglês, os latifúndios se expandem pelo mun- do, normalmente com a proteção dos Governos, donde resulta um au- mento extraordinário do contingente de trabalhadores sem terra em todo o globo. ~95) HuEERMAN, Leo, Op. cit.. p. 174. 136 ROBERTO BASILONE LEITE Na Inglaterra, em que o latifúndio se difunde com mais vigor, o capitalismo industrial se desenvolve mais rapidamente do que nos de- mais países europeus. A essa massa operária logo depois vêm se somar outros traba- lhadores, oriundos da atividade autônoma. O aparecimento das gran- des fábricas retirou do pequeno manufator o acesso aos meios de pro- dução, pois ele não tinha como oferecer concorrência. As fábricas pro- duziam em maior quantidade e a preço mais baixo do que o trabalhador manual. Acrescente-se a isso o grande aumento da população européia, que saltou de aproximadamente 42 milhões de habitantes, em mea- dos do século XVIII, para quase cem milhões, na primeira metade do século XIX. A expansão do sistema fabril no século XIX aumentou a distância entre ricos e pobres. Hoje, o poder de uma nação não se avalia mais pelo nível das ¾’ divisas, pelo saldo da balança comercial ou pelo fluxo de renda. A rique- ¾ za não depende mais do domínio da produção ou do trabalho, mas sim ¾ do domínio da informação e do conhecimento. Por que isso acontece? Porque são a informação e o conheci- mento que permitem a melhor articulação dos fatores disponíveis: mei- os de produção, força-trabalho e mercados. Quem tem informações em maior quantidade e melhor qualidade, quem tem o conhecimento tecnológico articula melhor os seus negócios e aumenta a sua margem de lucro. Essa articulação de fatores é realizada por intermédio de um com- plexo sistema de obrigacôes mútuas e interativas, que em geral envolve simultaneamente diversas pessoas e instituições. Vivemos hoje numa economia de base obrigacional. Daí a importância do estudo da teoria das obrigações. Em sua concepção clássica. a obrigação é vista como um negó- cio, uma relação jurídica estática implementada entre dois sujeitos, em que um deles — o credor — pode exigir do outro — o devedor — o cumprimento de certa prestação econômica. Na dicção de Barros Monteiro, obrigação é ‘a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto con- siste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida INTRODUÇÃO AO DIREITO DO cONSUMIDOR 137 pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu O conceito de obrigação, no entanto, vem sendo alterado por força de novas concepções que acompanham as profundas mudanças ocorri- das no mundo atual. O direito obrigacíonal tende assim a se adaptar à nova realidade que se manifesta na era do conhecimento. A obrigação não é mais vista como um mero negócio, mas como um processo em andamento, cujo objeto consiste no liame que vincula o titular do direito ao titular da obrigação e cujo fim é a satisfação das expectativas dos contratantes. O objeto da obrigação não é mais visto como uma situação interpessoal estática, mas como uma relação dinâmica. 4.5.3.2. Responsabilidade Responsabilidade é a situação transitória assumida pelo devedor ao transgredir uma norma legal, por força da qual o credor pode exigir dele o cumprimento de certa obrigação. A responsabilidade está ligada sempre à idéia de culpabilidade, seja no descumprimento de um contra- to, seja na prática de um delito ou de um dano contra alguém. Na definição de O. Maflon, responsabilidade “é a situação de quem, tendo violado uma norma qualquer, se vê exposto às conseqüências desagradáveis decorrentes dessa violação, traduzidas em medidas que a autoridade encarregada de velar pela observação do preceito lhe impo- nha. providências essas que podem, ou não, estar previstas”.~97~ 4,5.3.3. Espécies de Responsabilidade Existem três espécies clássicas de responsabilidade: a) a responsabilidade penal, oriunda do antigo direito romano, que se caracteriza por sua finalidade punitiva; b) a responsabilidade civil, também originária de Roma, que se dis- tingue por sua finalidade compensatória; (96) MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das obrigações: / pafte. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 1977, p. 8. (97) MARTON, O. apud DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 3. 138 ROBERTO BASILONE LEITE c) a responsabilidade administrativa, surgida no século XX, des- membrada da responsabilidade civil. Além dessas três, a doutrina aponta outras formas de responsabi- lidade autônoma, como a responsabilidade por abuso de direito e a res- ponsabilidade por litigância de má-fé. A responsabilidade civil distinguiu-se da penal, do ponto de vista científico, apenas no século XIX, por ocasião do surgimento do Código Civil francês, sob o governo de Napoleão. Até então, dispositivos sobre responsabilidade civil e penal mesclavam-se nas mesmas leis, sem ne- nhuma ordem sistemática e sempre de forma casuística. Foi o Código de Napoleão, portanto, que primeiro estabeleceu um conceito geral de responsabilidade civir. Interessa-nos, neste passo. analisar as formas de responsabili- til dade civil. 4.5.3.4. Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual ~tl A responsabilidade civil, quanto à sua origem, pode ser classifica- da em responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual, aquiliana ou delitual. A responsabilidade contratual é aquela que surge quando um dos contratantes infringe o contrato, causando prejuízos ao outro. A responsabilidade extracontratual, aquiliana ou delitual é a que decorre da infração a uma norma legal protetíva de direito alheio. Tanto a transgressão à lei quanto a ofensa ao contrato geram o dever de ressarcimento dos danos causados. 4.5.3.5. lmperfeições do Produto ou Serviço O Código do Consumidor classifica as imperfeições dos produtos e serviços em duas categorias: a) a dos vícios, previstos nos arts. 18 e 20: b) adosdefeitos, reguladosnosarts. 12e 14. Diferenciam-se tais categorias pela natureza da imperfeição, pelos efeitos que geram e pelo regime juridico aplicável. INTRODUÇÃOAO DIREITO DO CONSUMIDOR 139 4.5.3.5. 1. Vícios do Produto ou Serviço Os vícios são as imperfeições que tornam o produto (ai. 18) ou o serviço (ai. 20) impróprios ou inadequados ao consumo a que se desti- nam, diminuem-lhes o valor, ou, ainda, as que denotam disparidade com as indicações constantes do recipiente, embalagem, rotulagem ou da oferta ou mensagem publicitária. Os vícios, de natureza menos grave que os defeitos, acarretam apenas a substituição das partes viciadas do produto ou, não sendo sanado o vicio no prazo de trinta dias, a substituição por outro produto da mesma espécie, a restituição do valor pago ou o abatimento propor- cional do preço. No caso de vicio do serviço, os efeitos são a sua reexecução sem custo adicional, a restituição da quantia paga ou o abatimento do preço. 4 .5.3.5.2. Defeitos do Produto ou Serviço 4.5.3.5.2. 1. Conceito de Defeito Os defeitos dos produtos e serviços consistem em imperfeições de natureza grave, capazes de causar dano à saúde ou à segurança do consumidor. Na acepção legal. produtos e serviços defeituosos são aque- les que não oferecem a segurança que deles legitima e razoavelmente se espera (ais. 12, § 1~, e 14, § 1Q). O Código atribui ao fornecedor, no ai. 10,0 dever de garantia de segurança, ou seja, o dever de não inserir no mercado de consumo pro- duto ou serviço defeituoso, sob pena de responder objetivamente pelas obrigações decorrentes dos danos causados por eventual acidente de consumo. Por sinal, essa garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, sendo vedada a exoneração con- tratual do fornecedor (ai. 24). 4.5.3.5.2.2. Classificação dos Defeitos No que tange à responsabilidade civil, os defeitos classificam- se em defeitos juridicamente irrelevantes e defeitos juridicamente relevantes. Os defeitos juridicamente irrelevantes para a responsabilidade civil não acarretam para o fornecedor a obrigação de reparação de danos. 140 ROBERTO BASILONE LEITE São os seguintes casos: a) dos riscos normais do produto ou serviço, que razoavelmente dele se esperam” (arts. 12, § l~, inciso II, e 14, § l~, inciso II): b) da ação deletéria do tempo, considerando-se a época em que foi fornecido o produto ou serviço (ais. 12, § 12, inciso III, e 14, § V, inciso III); c) de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (ais. 12, § 32, inciso III, e 14, § 3~, inciso II); d) de caso fortuito ou torça maior ocorrentes depois da inserção do produto ou serviço no mercado; e) do factum princip&8~ (“ato do soberano”), em que o fornecedor é constrangido pelo poder público a fornecer determinado bem ou serviço, cujas características são especificadas de forma suficientemente minu- ciosa pela autoridade pública. Trata-ne de hipótese rara, mas pode ocor- rer, especialmente no setor de serviços públicos delegados, de petróleo e na indústria de armamentos. Os defeitos juridicamente relevantes para a responsabilidade civil, ao contrário dos anteriores, obrigam o fornecedor a reparar os danos causados. Estão eles elencados no caput dos ais. 12 e 14 do Código. São os defeitos propriamente ditos, que se subdividem em três categorias menores:~99~ a) os defeitos de criação, relativos ao projeto e à fórmula; b) os defeitos de produção, relativos à fabricação, construção, montagem. manipulação e acondicionamento; c) os defeitos de informação, relativos à publicidade, apresentação e informação insuficiente ou inadequada. 4.5.3.5.2.3. Fato do Produto ou Serviço A repercussão externa ou a manifestação danosa do defeito juridi- camente relevante é chamada fato do produto ou fato do serviço, ou ainda, acidente de consumo. O acidente de consumo, portanto, corres- ponde ao dano ocorrido em razão do defeito. (98) AD/EM, Arruda (ei aO. Op. cit., p. 129-130. (99) ALvIM, Arruda (et aO. Op. cit., p. 101-102. £ d 1 IiJ: v INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 141 Dessa definição se extrai que são defeito juridicamente relevante cau- sa o acidente de consumo e, por via de conseqüência, só o defeito juridi- camente relevante pode acarretar a responsabilidade civil do fornecedor. Eis a chave para a compreensão da grande mudança conceitual trazida pelo Código do Consumidor: o fato gera dor da responsabilidade civil deixou de ser a conduta culposa do agente (ai. 159 do CC) e pas- sou a ser o próprio defeito do produto ou serviço (ais. 12 e 14 do COO). Há aqui uma mudança radical de perspectiva, que se desloca da posição subjetivo-qualitativa (a culpabilidade do sujeito ativo) para a posição ob- jetivo-valorativa (a defectibilidade do objeto da relação). Basta agora o nexo causal entre o defeito do produto ou serviço e o acidente de consumo para que se estabeleça a responsabilidade do fornecedor. 4.5.3.6. Elementos da Responsabilidade A responsabilidade civil resulta, em princípio, do nexo causal entre duas circunstâncias: a) a conduta ofensiva do agente, ou seja, o ato antijuridico, que é descrito no ai. 159 do Código Civil; b) o dano resultante dessa conduta. Em certos casos, exige-se o elemento subjetivo: a culpa. Esse elemento é que distingue a responsabilidade subjetiva da responsabili- dade objetiva. 4.5.3.7. Responsabilidade Subjetiva, Objetiva e Por Culpa Presumida A responsabilidade subjetiva, prevista no ai. 159 do Código Civil, exige a prova de ter o agente causador do dano cometido a ação ou omissão danosa voluntariamente, com negligência ou com imprudência. A responsabilidade objetiva independe da prova da culpa do lesan- te, que fica obrigado à reparação do dano causado pela mera caracteri- zação do liame objetivo entre a ação ou omissão por ele cometida e o resultado danoso. Não importa o conteúdo subjetivo da ação ou omissão do lesante; tenha ele agido ou não com culpa, o simples fato da ocorrên- cia dos danos gera a sua obrigação de repará-los. r 142 ROBERTO BASILONE LEITE A regra geral no direito brasileiro é a da responsabilidade subjetiva, razão pela qual a responsabilidade objetiva incide apenas nas hipóteses expressamente previstas na legislação. Este é ocaso, por exemplo, da responsabilidade do Estado, fixada no art. 37, § 52, da Constituição da República; da empresa autorizada a explorar serviços e instalações nu- cleares, nos termos do ai. 21, inciso XXIII. c. do mesmo diploma; dos acidentes aeronáuticos e ferroviários, regulamentados pelo Decreto-lei n. 32, dela de novembro de 1966 e Decreto n. 2.681,de 7 de dezembro de 1912, e da responsabilidade da Previdência Social por acidente do trabalho, hipótese em que cabe ação regressiva contra o empregador se houve negligência (ai. 120 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991). A responsabilidade por culpa presumida ou com inversão do ônus da prova é aquela em que se presume a culpa do agente pela simples ocorrência do dano, sendo permitido a ele, no entanto, comprovar ter agido sem culpa e, dessa forma, afastar sua responsabilidade. Trata-se, como se depreende, de um tipo intermediário entre a res- ponsabilidade subjetiva e a objetiva, e, da mesma forma que esta, tam- 1%:’ bém representa exceção à regra prevista no art. 159 do Código Civil. Enquadram-se na responsabilidade por culpa presumida as hipóte- ses de dano causado ao consumidor por fato do produto ou do serviço. Isso porque a responsabilidade do fornecedor, nesses casos, pode ser afastada caso ele comprove a culpa exclusiva do consumidor ou de ter- ceiro, nos termos dos ais. 12, § 3~, inciso III, e 14, § 32, inciso II, do Código do Consumidor. Logo, a responsabilidade por culpa presumida difere da responsa- oilidade objetiva, porque nesta não é dado ao lesante afastar sua respon- 1 sabilidade pela prova da ausência de culpa; desde que ocorrido o evento danoso, o lesante sempre responderá, restando a ele apenas a opção de ajuizar ação regressiva contra o verdadeiro culpado, se for o caso. Na responsabilidade por culpa presumida, ao contrário, o causador tem a possibilidade de desobrigar-se mediante prova de sua inculpabilidade. 4.5.3.8. Responsabilidade Civil na Relação de Consumo Incide, nas relações de consumo, como visto, a responsabilidade civil por culpa presumida, já que os ais. 12, § 32, inciso III, e 14, § 3~, inciso II, apontam como causa excludente da responsabilidade do forne- cedor a prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. INTRODUÇÂOAO DIREITO D000NSLJMIDOR 143 A responsabilidade aqui não é subjetiva, pois em razão da presun- çãojuris tantum não se exige a prova da culpa do lesante. Também não é objetiva, posto que admite a prova excludente da culpa e da responsa- bilidade do fornecedor. Constitui, por isso, exceção à regra fixada no ai. 159 do Código Civil. O Código do Consumidor prevê apenas uma hipótese em que inci- de a responsabilidade subjetiva: trata-se do dano resultante de presta- ção de serviços por profissional liberal, em relação ao qual o ai. 14, § 42, exige a verificação de culpa do profissional. A aplicação da teoria da responsabilidade por culpa presumida nas relações de consumo é salutar para a economia nacional, porquanto tende a estimular os fornecedores a criarem instrumentos de autocon- traie da qualidade de seus produtos e serviços — prática que, a médio prazo, deverá elevar o padrão de qualidade geral da produção nacional e sua capacidade competitiva no mercado internacional, ao mesmo tempo que eleva o nível de respeito aos interesses do consumidor. Para se ter idéia da extensão dos efeitos que a mudança de para- digma (do paradigma sujeito para o paradigma fato) no campo da respon- sabilidade nas relações de consumo pode acarretar no mundo jurídico, basta um cálculo aritmético: a lei brasileira do consumidor aplica-se a 170 milhões de consumidores em potencial, considerando-se apenas as pessoas físicas. Se cada um deles praticar apenas um ato de consumo por dia, em um ano terão ocorrido 62 bilhões de atos de consumo. Ocorre que cada habitante realiza, por si próprio ou por seus repre- sentantes legais, normalmente mais de um ato de consumo a cada dia: o operário que vai de ônibus ao trabalho realiza, só com o transporte, dois atos de consumo, um na ida e outro na volta. Milhões de pessoas atuam no comércio, na condição de comerciante, comerciário ou trabalhador autônomo; cada um deles realiza dezenas de atos de consumo por dia. Acrescente-se a isso os atos de consumo envolvendo pessoas jurídicas de direito privado e de direito público, e se chegará à cifra de trilhões de atos anuais, só no mercado interno brasileiro. A partir da edição do Código do Consumidor, a cada ato de nature- za consumeristica concretizado, surge para os respectivos fornecedores a obrigação de responder por eventuais vícios, defeitos ou acidentes de consumo ocasionados pelo produto ou serviço fornecido. De um lado, estão milhões de consumidores dotados de uma nova perspectiva e uma crescente consciência de seu direito à adequação e 144 ROBERTO BASILONE LEITE qualidade do produto adquirido; do outro lado, estão milhares de fornece- dores, obrigados a assumir uma nova postura ética e profissional diante do consumidor, para evitar conseqüências que lhes possam ser nocivas e até desastrosas. Diante dessa perspectiva, pode-se conjeturar as con- seqüências psicológicas e culturais que deverão advir no bojo dessa nova realidade, com o passar dos anos. Ainda neste tópico, convém ressaltar que a responsabilidade do fornecedor não pode ser excluída nem mesmo mediante cláusula contra- tual. É nula de pleno direito a cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a responsabilidade do fornecedor (ai. 51, inciso 1, do Código). 4.&3.8. 1. Terceiro Prejudicado — Bystander E relevante a norma contida no ai. 17 do Código, que equipara a consumidor todas as vítimas do acidente de consumo. A garantia de adequação do produto ou serviço não se circunscreve apenas à relação ii individual de consumo, mas fica gravada ao produto ou serviço. Isso sig- nifica que o fornecedor responde pelos danos ocasionados a todas as vitimas do acidente de consumo, e não apenas ao adquirente. O Código agasalhou, neste ponto, a figura jurídica anglo-america- “ti na do bystander(”espectadofl, representada por aquela pessoa física 11 ou jurídica que, embora não sendo partícipe da relação de consumo, foi atingida em sua saúde ou segurança em virtude do defeito do produto ou serviço. 4.5.3.82. Responsabilidade porAcidente de Consumo Com base nas ponderações anteriores, pode-se definir a responsa- bilidade do fornecedor no acidente de consumo como a obrigação de, independentemente da prova de sua culpa, reparar os danos causados à vitima do acidente resultante da violação do dever de adequação, que proibe ao fornecedor a colocação no mercado de produtos e serviços desprovidos da segurança adequada, ainda que entre o lesante e a víti- ma não exista nenhuma relação contratual. 4.5.3.9. Responsabilidade na Importação de Produtos As leis brasileiras não têm vigência fora do território nacional, se- não excepcionalmente na hipótese de países que as adotem mediante protocolos internacionais, O Código do Consumidor não é objeto de tal INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 145 exceção. Suas disposições, destarte, não obrigam diretamente os pro- dutores estrangeiros. Por isso, a responsabilidade pelos produtos estrangeiros comer- cializados em território brasileiro recai integralmente sobre o importador, que deve investigar a procedência, qualidade, quantidade e adequação dos produtos. É desnecessário acentuar que essa orientação vale inclusive para os países-membros do Mercosul, enquanto não lograrem o consenso para a edição de uma norma supranacional unificada sobre a matéria. 4.6. TUTELA INSTRUMENTAL A tutela instrumental consiste nos meios de concretização dos direitos dos consumidores e execução das obrigações impostas ao for- necedor pela lei, pelo contrato ou por decisão judicial. IL Divide-se em tutela instrumental administrativa, tutela instrumental penal e tutela inst rumental jurisdicíonal cível. 4 4.6.1. Tutela Instrumental Administrativa *1 4.6.1.1. Sistema Nacional de Defesa do Consumidor A tutela instrumental administrativa abrange as áreas de coordena- ção, de gestão, de fiscalização e de educação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. A coordenação do sistema é exercida, em âmbito nacional, pelo Departamento Nacional de Defesa do Consumidor, vinculado à Secreta- ria Nacional de Direito Econõmico, órgão do Ministério da Justiça. Incumbe ao Departamento Nacional planejar, coordenar e executara política nacional de proteção ao consumidor. Para isso, ele deve atuar em permanente interação com as entidades públicas e privadas representativas de consumidores, tanto no sentido de prestar-lhes informações e orienta- ção (ad. 106, incisos III e IV), quanto no de receber suas denúncias e su- gestões. avaliá-las e dar-lhes o devido encaminhamento (ai. 106, inciso II). Quanto às denúncias recebidas, o ai. 106 do Código diz competir ao Departamento Nacional tomar as seguintes medidas: 146 ROBERTO BASILONE LEITE a) dar conhecimento aos órgãos competentes das infrações admi- nistrativas que violarem interesses difusos, coletivos ou individuais dos consumidores (inciso VII); b) solicitar à polícia judiciária a instauraçâo de inquérito policial para a apuração de delito contra o consumidor (inciso V); c) representar ao Ministério Público (inciso VI). Além disso, o Departamento Nacional auxilia na fiscalização de preços, abastecimento, quantidade e segurança de bens e serviços (in- ciso VIII doai. 106). Consideram-se integrados ao Sistema Nacional de Defesa do Con- sumidor, e, poianto, coordenados pelo Depaiamento Nacional, todos os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais, bem como todas as entidades privadas de defesa do consumidor. Destacam-se, dentre esses ôrgãos: a) os Procons — Fundações de Proteção de Defesa do Consumidor, que são fundações de direito público vinculadas aos Governos dos Esta- dos, competentes para receber as denúncias da população, fazer inves- tigações preliminares, buscar a conciliação entre as partes, instaurar processos administrativos e judiciais e aplicar sanções administrativas; b) as Decons — Delegacias de Policia especializadas na defesa do consumidor, que previnem, reprimem e apuram os crimes contra o consumidor; c) as Prodecons — Promotorias de Defesa do Consumidor, órgâos do Ministério Público especializados na defesa judicial e extrajudicial dos direitos coletivos e difusos; d) os Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especiali- zadas, órgãos do Poder Judiciário cuja função é receber denúncias de consumidores, promover a conciliação, julgar os litigios e aplicar sanções. 4.6.1.2. Sanções Administrativas União, Estados e Distrito Federal são competentes, em caráter concorrente, para baixar normas relativas às relações de consumo, con- forme se extrai dos ais. 24, inciso V, da Constituição Federal, e 55, caput, do Código do Consumidor. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 147 A fiscalização e controle do mercado de consumo, produção, dis- tribuição e publicidade incumbem a todos os níveis de Governo, ou seja, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos dos ais. 23, incisos lIa X, da Constituição Federal, e 55, § 1~, do Código. As normas de procedimento da fiscalização são editadas pelo res- pectivo ente público, respeitadas as diretrizes fixadas nos ais. 55 a 60 do Código do Consumidor. Os órgãos federais, estaduais, distritais e municipais encarregados da fiscalização e controle do mercado de consumo deverão manter comis- sões permanentes para atualização das respectivas normas. Nessas comis- sões terão assento representantes dos consumidores e fomecedores, dispo- sição esta consentânea como principio democrático, latente nos ais. 105, fine, e 106, inciso II, do Código, e em diversos dispositivos constitucionais. O cerceamento desta garantia de representa çãoconst itui flagrante violação aos termos expressos do ai. 55, § 3~, in fine, do Código. Ao ii’ contrário do entendimento esposado por alguns autores, não vislumbra- mos eiva de inconstitucionalidade no dispositivo em questão. As sanções aplicáveis no caso de infrações às normas de defesa do ti, consumidor estão relacionadas no ai. 56 do Código, e consistem em: t a) multa; b) apreensão, inutilização, cassação do registro e proibição de fabricação do produto; c) suspensão de fornecimento de produto ou serviço; d) suspensão temporária de atividade do fornecedor infrator; e) revogação de concessão ou permissão de uso; f) cassação de licença de estabelecimento ou de atividade; g) interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade; h) intervenção administrativa; i) imposição de contrapropaganda. As sanções podem incidir cumulativamente e serão aplicadas pela entidade política que as tiver instituido mediante lei própria. É evidente que essas sanções não prejudicam outras obrigações e indenizações decorrentes de vícios e defeitos dos produtos e serviços fornecidos. 148 ROBERTO BASILONE LEITE Importa acentuar que o poder de fiscalização e autuação dos Pro- cons estaduais, previsto no Código, deve ser fortalecido, ainda que para isso sejam necessárias alterações nas leis estaduais, pois são eles que estão em contato direto com os problemas ordinários. A impunidade é o maior estimulo à infração. 4.6.1.3. Medidas Educativas O Código determina que os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor desenvolvam projetos peda- gógicos destinados a prestar aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos e garantias, além de informar, conscientizar e moti- var o consumidor (ai. 106, incisos III e IV). Para tal tarefa, poderá solicitar o concurso de órgãos e entidades de notória especialização técnico-científica. A educação de consumidores e fornecedores, mais do que sim- ples direito subjetivo, é considerada pela lei um dos princípios funda- mentais da política nacional de relações de consumo. Deve se dar efetividade a essa exigência por meio de cursos, semi- nários ou simples reuniões patrocinadas pelos órgãos públicos e entida- des de defesa do consumidor, em colaboração com sociedades de bairro, igrejas, escolas, sindicatos e associações em geral. Normalmente deverá ser adotado um conteúdo didático de nível básico, prático e de fácil assimilação, pois o público-alvo é composto de cidadãos comuns e os cursos não têm caráter profissionalizante. Em face disso, as aulas podem ser ministradas por quaisquer pessoas atu- antes na área de defesa do consumidor que tenham contato prático com a matéria. 4.6.1.4. Agência Nacional do Consumidor e da Concorrência O Governo brasileiro elaborou anteprojeto de lei de criação da Agência Nacional de Defesa do Consumidor e da Concorrência, que deverá substituir os órgãos que hoje coordenam o Sistema Brasileiro de Defesa do Consumidor, quais sejam, o Conselho Administrativo de Defe- sa Econômica e as Secretarias de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, e de Desenvolvimento Econômico, do Ministério da Justiça. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 149 Como se vê, a nova agência deverá cuidar dos direitos do consumi- dor e, ao mesmo tempo, da concorrência. No âmbito da defesa do con- sumidor, terá competência para estipular as normas de funcionamento dos Procons. No âmbito da concorrência, atuará no combate à carteliza- ção e à fusão de empresas destinadas à elevação de preços e à dimi- nuição da oferta de produtos. O projeto cria ainda um Tribunal de Concorrência, competente para julgar os casos de conduta anticompetitiva, e fixa o prazo máximo de 120 dias para a protação de decisão nos casos a ele submetidos, Uma agência nacional, em princípio, parece ser útil para uniformi- zar a atuação dos Procons dos Estados, centralizar ~s informações e auxiliar na solução dos problemas macroeconômicos, A própria raciona- lização dos meios, com a substituição de diversos órgãos federais dis- tintos por um único órgão central, seria salutar, pois um sistema nacio- nal integrado e atuante decerto dificultaria a atuação dos maus fornece- dores em todo o território naci nal. Há, no entanto, alguns “poréns” que devem ser ressaltados. II Em primeiro lugar, a criação da Agência Nacional não deve ocasio- 3 nar o enfraquecimento nem, muito menos, a extinção dos demais ór- gãos e entidades integrados na base do sistema. Deve-se ter a cautela de continuar garantindo autonomia aos Procons estaduais e, mais do que isso, deve-se fortalecer o seu poder de fiscalização e autuação, pois são esses órgãos que mantêm o contato direto com os problemas coti- dianos do consumo. As entidades de defesa dos direitos do consumidor, tais como os Procons, o Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumi- dor e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, são imprescindí- veis para o bom funcionamento do sistema, pois a eles cabe a função de ouvir, selecionar e canalizar os problemas para a agência central, além de contribuir para a fiscalização do sistema. Em segundo lugar, a participação popular oxigena o organismo estatal. Deve ser garantida a participação de representantes de consu- midores e de fornecedores nos órgãos do sistema, em todos os níveis. Para tanto, pode-se estudar a possibilidade de instituírem-se no- vas funções nos órgãos do sistema, em todos os níveis, e sobretudo nas bases. Essas funções seriam reservadas a representantes indica- dos pelas entidades civis de defesa do consumidor. Tal medida pode 150 FOBERTO BA5ILONE LEITE inclusive possibilitar a expansão dos àrgâos de defesa do consumidor, por meio de postos avançados, para as localidades ainda desguarneci- das, que representam hoje 90% dos municípios brasileiros.(1~’ Em terceiro lugar, os recursos advindos das penalidades aplica- das devem ser, na medida do possível, suficientes para a manuten- çâo do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, ainda que para isso seja necessário elevar o valor das multas. É justo que os fornece- dores descumpridores da lei arquem pelo menos com os custos da manutenção do aparelho administrativo que eles mesmos obrigaram o Estado a criar. Dessa forma, os recursos do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos do Governo poderão continuar beneficiando as inúmeras entidades não- governamentais de defesa do consumidor que têm prestado serviços re- levantes à população. Em quarto lugar, há mister de cuidar para que não se invista a maior parte da receita no setor da concorrência, relegando o setor de defesa do consumidor. Talvez convenha criar, no âmbito da Agência Nacional, duas subestruturas independentes, uma para cada área. 46.2. Tutela Instrumental Penal A tutela instrumental penal está contida no microssistema de nor- mas penais composto de um conjunto de regras extraidas do Código do Consumidor, do Código Penal e de leis esparsas. Os dispositivos relativos ao Código Penal e à legislação esparsa já foram mencionados no início desta obra. No Código do Consumidor, a tipificaçâo dos crimes contra as relações de consumo consta dos arts. 61 a 80, que cuidam de delitos de natureza consumeristica e completam o quadro do direito penal do consumidor. Referido Código, diferentemente do Penal, cuida de delitos de ca- ráter metaindividual relativos ao chamado direito penal do consumidor. Todos os delitos apontados no Código do Consumidor resultam da violação a direitos básicos do consumidor elencados nos arts. 6~ e 7~ e analisados em tópico anterior. (100) “Nem 10% das cidades tém procuradoria do consumidor. Agência Câmara, 29 de novembro de 2000. Disponível em: www.oamara.gov.br Acesso em: 29.nov.2000. INTRODUÇÃO Ao DIREITO DO CONSUMIDOR 151 4.6.2.1. Espécies de Crime Contra o Consumidor Dentre os crimes previstos no Código do Consumidor, alguns ofen- dem o direito à saúde e à segurança do consumidor. São eles: a) deixar de retirar do mercado, imediatamente quando determina- do pela autoridade competente, os produtos nocivos ou perigosos (art. 64, parágrafo único); b) executar serviço de alto grau de periculosidade, contrariando determinação de autoridade competente (art. 65); o) na cobrança de dívidas, utilizar ameaça, coação, constrangimen- to físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qual- quer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, ao ridículo ou interfira no seu trabalho. descanso ou lazer (art. 71). Afrontam, por sua vez, o principio da garantia de adequação os seguintes atos delituosos: a) na reparação de produtos, empregar peças ou componentes de reposição usados, sem autorização do consumidor (art. 70); b) deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia adequada- mente preenchido e com especificação clara de seu conteúdo (art. 74). A maioria dos crimes previstos no Código do Consumidor, no en- tanto, dizem respeito ao direito à informação. São criminalizadas, as- sim, pelo Código as seguintes ações do fornecedor: a) omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade ou pericu- losidade de produtos, nas embalagens, nos invólucros, recipientes ou publicidade (art. 63); b) deixar de alertar, mediante recomendações escritas ostensivas, sobre a periculosidade do serviço a ser prestado (art. 63, § 19; c) deixar de comunicar à autoridade competente e aos consumido- res a nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja posterior à sua colocação no mercado (art. 64); d) fazer ou patrocinar afirmação falsa ou enganosa, ou omitir infor- mação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantida- de, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produ- tos ou serviços (art. 66); e) fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva (art. 67); 152 ROBERTO BASILONE LEITE f) fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser ca- paz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou peri- gosa à sua saúde ou segurança (art. 68); g) deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade (ai. 69); h) impedir ou dificultar o acesso do consumidor às informações que sobre ele constem em cadastros, bancos de dados, fichas e regis- tros (art. 72); i) deixar de corrigir imediatamente informação sobre consumidor constante de cadastro, banco de dados, fichas ou registros que sabe ou deveria saberser inexata (art. 73). 4.6.2.2. Processo no Crime Contra o Consumidor 4.&2.2. 1. Ação Pública Os crimes previstos no Código são de ação pública, ou seja, o processo é iniciado mediante denúncia oferecida pelo Ministério Públi- co, segundo dispõe o seu ai. 80. 4. & 2.2.2. Assistentes do Ministèrio Público Estão autorizados a intervir, como assistentes do Ministério Público: a) os entes de direito público interno; b) as entidades e órgãos da administração pública, direta ou indire- ta, ainda que sem personalidade jurídica, destinados especificamente à defesa do consumidor: c) as associações de defesa do consumidor legalmente constituí- das há pelo menos um ano (ai. 82 do Código). 4.62.2.3. Co-Autoria — Gerentes e Administradores Todo aquele que, de qualquer forma, concorrer para o crime incide nas penas a ele cominadas “na medida de sua culpabilidade, conforme dispõe o ai. 75 do Código. Estão incluidos nessa regra o diretor, admi- nistrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de servi- ços nas condições proibidas pela lei. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 153 4.6.2.2.4. Penas Cabíveis Além das penas privativas de liberdade e de multa, fixadas nos ais. 63 a 74, o Código autoriza, em seu ai. 78, a aplicação cumulativa ou alternada: a) da interdição temporária de direitos; b) da publicação em órgãos de comunicação de grande circulação ou audiência, às expensas do condenado, de noticia sobre os fatos e a condenação; c) de prestação de serviços à comunidade. 4.6.2.2.5. Cumulação de Penas As penas previstas pelo Código do Consumidor para os crimes por ele regulados são aplicadas sem prejuízo das disposições constantes do Códi- go Penal e de outras leis penais esparsas (ai. 61 do CDC), quando o fato delituoso de consumo trouxer conseqüências que constituam tipo penal cons- tante de outra norma, como por exemplo, a lesão corporal ou o homicídio. 4. &2.2.6. Circunstâncias Agravantes do Crime Agravamos crimes tipificados no Código do Consumidor, a teor do ai. 76, as seguintes circunstâncias: a) serem cometidos em época de grave crise econômica ou por ocasião de calamidade; b) ocasionarem grave dano individual ou coletivo; c) dissimular-se a natureza ilícita do procedimento; d) quando forem cometidos: em negócio que envolva alimentos, medicamentos ou qualquer outro produto ou serviço essencial; por servi- dor público; por pessoa cuja condição econômico-social seja manifesta- mente superior à da vitima; em detrimento de operário, rurícola, menor de dezoito ou maior de sessenta anos ou deficiente mental. 4.6.3. Tutela Instrumental Jurisdicional Cível 46.3.1. Direito Processual Civil do Consumidor Os órgãos de controle administrativo — ou seja, os Procons — tentam a conciliação do pré-Conflito de consumo. Uma vez frustrada a 154 ROBERTO BASILONE LEITE tentativa conciliatória, pelo fato de uma das partes resistir à pretensão da outra, surge o conflito de interesses, que poderá gerar, de um lado, a punição administrativa aplicável pelos referidos órgãos, e de outro, as devidas ações judiciais penais, cíveis e administrativas. O processo administrativo e as ações penais de consumo devem ser estudados nos campos da tutela instrumental administrativa e da tutela instrumental penal, respectivamente. Interessa-nos aqui focalizar a tutela instrumental jurisdicional cível, que envolve as ações cuja com- petência são do juízo cível. A parte geral do direito processual civil do consumidor é disciplina- da pelos arts. 81 a 104 do Código do Consumidor. Divide-se a defesa judicial dos interesses e direitos do consumidor em defesa individual e defesa coletiva. A defesa individual abrange os interesses e direitos meramente individuais, enquanto a defesa coletiva abarca os interesses e direitos indi- viduais homogêneos, os coletivos e os difusos. Nas lacunas do Código, o ai. 90 autoriza a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil e da Lei n. 7.347/85, conhecida como Lei da Ação Civil Pública, inclusive no que respeita ao inquérito civil. E evidente que tal aplicação subsidiária só se concretiza naquilo que não contrariar as disposições contidas nas normas do consumidor, pois estas são de caráter especial e por isso prevalecem sobre as de caráter geral. De fato, há algumas regras no Código do Consumidor que colidem com outras do CPC. Por exemplo, aquelas relativas à legitimidade para o ajuizamento de ação e as concernentes à substituição processual. Por conseguinte, no processo que verse sobre relação de consu- mo prevalecerá sempre a lei do consumidor, acima de quaisquer outras normas oriundas de leis ordinárias de caráter mais geral, dentre as quais se inclui o Código de Processo Civil, 4.6.3.2. Medidas Judiciais Civeis Para a defesa dos direitos e interesses do consumidor são admis- síveis todas as espécies de ações e medidas judiciais capazes de propi- ciar sua adequada e efetiva tutela, seja na posição de autor, como na de réu. É o que asseguramos ais. 81 e 83 do Código do Consumidor. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 155 Diante disso, em hipótese nenhuma o pedido judicial do consumi- dor poderá ser indeferido sob o argumento de impossibilidade do meio processual por ele escolhido. Podem ser utilizados para a defesa dos direitos do consumidor a ação ordinária, o procedimento sumário ou sumaríssimo, o mandado de segurança, a ação civil pública, as ações cautelares individuais e coleti- vas e todos os demais meios processuais previstos no direito brasileiro. Dessa forma o Código procurou dar contorno prático ao principio do acesso à justiça, prevendo as hipóteses de atuação judicial da norma de consumo. Como acentua o jurista Kazuo Watanabe, a finalidade desse com- [ plexo de normas é formar uma nova mentalidade, através da qual “se cons- trua uma sociedade menos individualista e egoísta, mais paiicipativa e solidária’. O acesso à Justiça e os correspondentes instrumentos proces- suais, prossegue ele, “deverão ser importantes mais pela sua potenciali- dade de uso, pela sua virtualidade, do que pela sua efetiva utilização”.1101~ Destaca-se, a seguir, as ações judiciais cabíveis para a defesa do consumidor. 4.6.3.3. Ação Individual de Responsabilidade Civil A ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e servi- ços, que pode ser individual ou coletiva, é prevista no ai. 101 do Código. O consumidor que se sentir lesado em razão de qualquer prática adotada por fornecedor, ou de produto ou serviço viciado ou defeituoso por ele colocado no mercado de consumo, poderá ajuizar ação individual de ressarcimento de danos patrimoniais, físicos e morais. Não é demais reiterar que a ação de ressarcimento de danos tem tríplice função: a) função reparatória (no caso de dano patrimonial) ou compensatória (no caso de danos físicos ou morais); b) função pedagó- gica; c) função punitiva. Outrossim, a valoração da pena indenizatória na reparação por danos metapatrimoniais deve considerar três fatores: a) o grau de cul- pabilidade do agente; b) a gravidade do dano; c) a situação econômica do lesante. (101) GRINOVER, Ada Pellegrini (et ao. Op. cii., p. 707. 156 ROBERTO BASILONE LEITE 4.6.3-4. Ação Declaratória de Cláusula Contratual O consumidor, individual ou coletivamente, pode se utilizar da ação meramente declaratóría. O ai. 51, § 42, do Código prevê um caso especifico: a ação de declaração de nulidade de cláusula contratual que de qualquer forma viole o justo equilíbrio entre as partes contratantes. 4.6.3.5. Tutela dos Interesses Coletivos, Difusos e Homogêneos O acesso do consumidor individual à Justiça é, em certos casos, economicamente desvantajoso. Um dos grandes obstáculos à proteção ao consumidor, verificado em diversos paises, é exatamente o problema do dano ou risco fragmentário, em que o prejuízo ou risco de cada con- sumidor individualmente considerado é pequeno, mas o somatório relati- vo à coletividade de consumidores atingida é enorme. Gappellettie Garth. demonstrando preocupação como tema, as- severam que “Ia violación de los derechos recién obtenidos por la gente común, como por ejemplo las violaciones que ocurren en las áreas dela protección ai consumidor (...), suele dar lugar a un gran número de recla- maciones relativamente pequei~as en contra (entre otras) de las com- pai’iías e los arrendadores. El ínterés cada vez mayor en hacer valer esos derechos conduce a procedimientos y recursos especiales para resolver esas ‘pequeiias injusticias’ de gran importancia social”.t102t O Código do Consumidor viabilizou a solução do impasse de forma bem adequada: instituiu uma ampla estrutura juridica que permite aos consumidores adotarem o procedimento coletivo, quando for cabível. Para tanto, estabeleceu em seu art. 81, parágrafo único, que a defesa coletiva poderá ser exercida quando se tratar de: a) interesses ou direitos difusos; b) interesses ou direitos coletivos; c) interesses ou direitos individuais homogêneos. Interesses ou direitos individuais homogéneos são, na dicção legal, “os decorrentes de origem comum’. Trata-se daqueles direitos e interes- (102) CAPPELLETTI. Mauro: GARTH. Bryant. Ei acceso a ia justicía. Traducción de Mónica Miranda. México: Ronde ae cultura Económica, 1996, p. 62. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 157 ses cujos titulares são perfeItamente individualizáveis e detentores de direito divisível. O que provoca a aproximação jurídica dessas pessoas, autorizando a defesa coletiva dos direitos individuais, é sua “origem co- mum”; o direito de todos nasceu do mesmo fato, por exemplo, um aci- dente de avião ou de ônibus. Interesses ou direitos coletivos são os transindividuais, de nature- za indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base. O traço distintivo do interesse coletivo, que o diferenciado inte- resse difuso, é que aquele se refere a uma categoria determinada ou determinável de pessoas, por exemplo, os associados de determinado sindicato. Interesses ou direitos difusos são, para o Código, “os decorrentes de origem comum”. Atingem um grupo indeterminado de pessoas que não possuem ligação entre si, senão o próprio fato gerador do direito; são, por exemplo, os consumidores de determinado remédio vendido nas farmácias. Assim, a característica típica do interesse difuso é a indetermina- ção dos titulares, enquanto a do interesse coletivo é a determinabilidade dos titulares. Quanto ao elo entre os cidadãos, no interesse coletivo é uma rela- ção jurídica-base, ao passo que no interesse difuso é o fato gerador do direito. As demais características extraidas da lei, comuns a ambos, são as seguintes: a) tanto o interesse coletivo quanto o difuso são transindivíduais, ou seja, afetam a sociedade como um todo; b) ambos são de natureza indivisível, pois a obrigação do fornece- dor perante o grupo de consumidores só pode ser satisfeita integralmen- te; não é possível ao fornecedor cumpri-la em partes; c) o titular, em ambos os casos, é um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária; os efeitos do dano, por conseguinte, devem ter alcançado uma coletividade de pessoas que possuem algum vínculo entre si ou como fornecedor, O professor Nelson Nenyjúnioraponta o método adequado para se identificar a natureza de um determinado direito, ou seja, para se saber 158 ROBERTO BASILONE LEITE se o direito é individual homogêneo, coletivo ou difuso. Deve-se levar em conta o tipo de tutela jurisdicional pleiteada pelos autores da ação, e não a natureza do objeto do direito. Costuma-se afirmar, por exemplo, que o direito ao meio ambiente saudável é difuso, o direito do consumidor é coletivo e o de reparação de danos, individual. Essa idéia não está correta nem incorreta; o que irá determinar a espécie de interesse será o tipo de tutela demandada. Assim, o mesmo fato pode dar origem a pretensões individuais, co- letivas e difusas. O exemplo descrito pelo eminente mestre, baseado no acidente ocorrido com o barco Bateau Mouche IV, é muito apropriado, pois deixa claro que, de um único fato, podem resultar as três espécies de direito ora analisadas. Assim, em decorrência daquele acidente, caberá: a) ação individual de reparação de danos por parte de qualquer das vítimas do acidente ou seus sucessores (direito individual homogêneo); b) ação de obrigação de fazer, ajuizável por associações de em- presas de turismo interessadas na boa imagem do setor, com o intuito de constranger o proprietário do barco a dotá-lo de maior segurança (direito coletivo); c) ação pública de proteção da vida e segurança dos cidadãos, movida pelo Ministério Público, para a interdição da embarcação (direito dif uso)» 03) 4.6.3.5.1. Ação Coletiva O Código despendeu maior atenção com o disciplinamento das ações coletivas de consumo, do que com as ações individuais. Isso porque as ações individuais contam com minuciosa regulamentação no CPC e em inúmeras leis esparsas, ao contrário das ações coletivas, que são pre- vistas apenas na Lei da Ação Popular e na Lei da Ação Civil Pública. Além disso, as ações coletivas representam a melhor forma de solução dos conflitos sociais inerentes aos litígios nascidos das rela- ções de consumo de massa. Esse tipo de ação possui um caráter polí- tico mais acentuado do que as ações individuais, o que é conveniente quando se atua no campo das relações de consumo. A ação coletiva prevista no parágrafo único do mi. 81 do Código é inspirada na class action do direito norte-americano (o common Iaw), (103) GRINOvER, Ada Pellegrini (e! ah. Op. cit, p. 874 INTRODUÇAOAO DIREITO DO CONSUMIDOR 159 com as devidas adaptações ao sistema francês-germânico de civil law, adotado no Brasil. Essa assertiva é confirmada pela insigne jurista Ada Pellegríni Grinover, co-autora do projeto do Código do Consumidor.ø~~ Aplica-se a class action americana aos casos em que existe um grande número de titulares de direitos materiais individuais que podem ser apreciados simultaneamente num único processo, ajuizado por um único integrante do grupo. A ação civil pública para reparação de danos causados aos inves- tidores no mercado de valores mobiliários, criada pela Lei n. 7.913, de 7 de dezembro de 1989, já protegia os interesses indivisíveis dos consu- midores. O Código do Consumidor incluiu a possibilidade de se defen- der, por meio da class action brasileira, também os interesses individu- ais homogêneos. A disciplina da ação coletiva consta dos ais. 81 a lace 102 a 105 do Código. Pode propor a ação coletiva qualquer das entidades legitimadas pelo Código do Consumidor, elencadas em seu ai. 82: União, Estados, Municípios e Distrito Federal; Ministério Público; entidades e órgãos da administração direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, destinados à defesa do consumidor; associações de defesa do consu- midor constituídas há pelo menos um ano. O Ministério Público atuará obrigatoriamente em todas as causas de consumo, na condição de fiscal da lei, nos termos do ad. 92 do Código. Isso se justifica porque, nos litígios que têm como objeto a rela- ção de consumo, está sempre presente o interesse público, como o ai. l0do Código deixa patente. Uma vez proposta a ação, será publicado edital na imprensa oficial, para que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes. O ai. 94 do Código incentiva a ampla divulgação do processo nos meios de comunicação social, por parte dos órgãos de defesa do consumidor. Em caso de procedência da ação coletiva, a condenação será ge- nérica e fixará a responsabilidade do réu pelos danos causados (ai. 95 do Código). A execução poderá ser coletiva (ai. 98), podendo habilitarem-se, na fase de liquidação de sentença, todos os consumidores lesados e seus (104) GRINOVER, Ada PelIegrini (et ah. Op. cit, p. 670. 160 ROBERTO BASILONE LEITE sucessores, assim como as entidades legitimadas no ai. 82, ainda que não hajam intervindo na fase de conhecimento (ai. 97). A sentença que julgue procedente a ação coletiva faz coisa julgada: a) erga omnes, no caso de interesses ou direitos difusos ou indivi- duais homogêneos; b) ultra panes, limitadamente ao grupo, categoria ou classe, no caso de interesses ou direitos coletivos. A decisão de improcedência por falta de provas, no entanto, segun- do dispõe o ai. 103, não faz coisa julgada, podendo qualquer legitimado intentar nova ação. 4.613.52. Ação Civil Pública A ação civil pública se desti,ia à defesa dos interesses e direitos coletivos e difusos — portanto, indivisíveis — dos consumidores, não se aplicando aos casos que envolvam interesses individuais homogêneos. A primeira lei brasileira a tratar especificamente da ação civil públi- ca foi a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, sobre proteção do consumi- dor, do meio ambiente e do patrimônio artístico, estético, histórico, turís- tico e paisagístico. Alguns anos depois, a Lei n. 7.913, de 7 de dezem- bro de 1989, instituiu a ação civil pública para a reparação de danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários. As normas processuais do Código do Consumidor se aplicam na defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, por força do que dispôs o seu ai. 117, que acresceu o ai. 21 à Lei da Ação Civil Pública. Essa determinação legal dinamizou ainda mais a interação que já havia entre o microssistema processual implantado pelo Código do Consumidor e a ação civil pública, alargando o campo de atuação desta. Segundo levantamento realizado pela Procuradoria-Geral da Justi- ça do Estado de São Paulo, 95% das ações civis públicas de consumo naquele Estado são propostas pelo Ministério Público, através de sua Procuradoria de Defesa do Consumidor — Prodecon.~1~~ (105) SUSSOMANO defende recursos para fundos dos direitos do consumidor’. Jor- nal da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 4.dez.2000, p. 5. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 161 4.6.3.5.3. Ação de Responsabilidade do Fornecedor A ação de responsabilidade do fornecedor, que pode ser individual ou coletiva, está prevista no ai. 101 do Código. Modificando a regra clássica do processo civil, constante do ai. 94 do CPC, o dispositivo autoriza o autor da ação a escolher se prefere ajuizá-la no foro de seu próprio domicilio ou nodo réu. O réu que tiver contrato de seguro de responsabilidade poderá cha- mar ao processo o segurador, mas é vedada a integração à lide do Insti- tuto de Resseguros do Brasil. Essa norma visa a aumentar as garantias do credor, permitindo o ingresso do segurador no pólo passivo da ação, entretanto não dá margem ao retardamento do processo, que poderia ser acarretado com o ingresso na lide do Instituto de Resseguros do Brasil. 4.613.5.4. Ação Preventiva Mandamental lmpoiante instrumento de defesa da saúde pública e do meio am- biente é instituido pelo ai. 102 do Código do Consumidor. Trata-se da ação proposta contra o Poder Público, com a finalidade de o compelir a proibir, em todo o território nacional, a produção, divulgação, distribuição ou venda, ou a determinar alteração na composição, estrutura, fórmula ou acondicionamento de produto cujo uso ou consumo regular se revele nocivo ou perigoso à saúde pública e à incolumidade pessoal. Os produtos nocivos à saúde pública sempre causam efeitos dano- S05 ao meio ambiente, razão pela qual este tipo de ação judicial tem uma amplitude maior do que pode parecerá primeira vista, na medida em que tende a assegurar a preservação do equilíbrio do ecossistema. Para garantir a efetividade da norma, pode propor a ação manda- mental qualquer das pessoas legitimadas pelo ai. 82 do Código, inclui- das as instituições e associações de defesa do consumidor. 4.613? 5.5? Ação Popular Pode ser utilizada a ação popular para a defesa dos interesses e direitos do consumidor, conforme autoriza o ai. 83 do Código. A ação popular é disciplinada pela Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965, e pode ser ajuizada por qualquer cidadão. Destina-se, segundo o ai. l~ da referida Lei, à anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público, como tais considerados os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico. 162 ROBERTO BASILONE LEITE 4.6.3.5.61 Habeas Data O consumidor tem livre acesso às informações existentes em ar- quivos de empresas ou instituiçôes sobre ele e sobre as respectivas fontes. A sonegação dessas informações dá ensejo ao habeas datado consumidor, regulado pelo ai. 43, § ‘te, do Código. 4.6.3.6. Mandado de Segurança O mandado de segurança e o mandado de segurança coletivo, pre- vistos no ai. S~, incisos LXIX e LXX, da Constituição Federal, destina-se á proteção de direito liquido e ceio, não amparado por habeas corpus ou habeas data, que tenha sido violado por um ato praticado com ilega- lidade ou abuso de poder por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições públicas. Podem fazer uso desse instrumento jurídico, nos termos do ai. 83 do Código do Consumidor, qualquer dos legitimados no ai. 82, em favor dos quais outorga expressa autorização para representar em juízo os interesses dos consumidores. 4.6.3.7. Ação Cautelar E possível o deferimento de medida cautelar em favor do consumi- dor ou de seu substituto processual, nos casos em que a urgência o recomende. A ação cautelar pode ser necessária, por exemplo. para, em cará- ter de urgência, proibir a publicidade ou retirar do mercado um produto que esteja a oferecer risco à saúde ou à segurança do consumidor. 5- A VEZ DO POVO O Código do Consumidor, publicado em setembro de 1990, defla- grou uma revolução silenciosa nos subterrâneos do pais. Criou o microssistema jurídico de relações de consumo destinado a organizar e metodizar a paraternália ineficaz de leis existentes até então. Modificou princípios milenares do direito, conveiendo a exceção em regra: o princípio da autonomia da vontade contratual foi substituido pelos princípios protecionista e da intervenção estatal; a responsabilida- de subjetiva deu lugar à responsabilidade por culpa presumida do forne- cedor; inverteu-se o ônus da prova em beneficio do consumidor. Graças ao Código, o direito do consumidor consolidou-se como disciplina autônoma e, mais do que isso, vem fornecendo subsídios para a elaboração de uma teoria dos direitos de personalidade. Com técnica legislativa impecável, o Código não deixou margem de fuga para o infrator. Começa por apontar o produtor como o principal responsável pelos vícios e defeitos dos produtos, para coagi-lo a corrigir na origem as imperfeições verificadas. Na prestação de serviços, res- ponsabiliza o prestador. Se o produtor for estrangeiro, responsabiliza o impoiador. Para evitar que cada co-fornecedor impute a responsabilidade prin- cipal ao outro a fim de protelar a reparação do dano, os ais. 72, parágra- fo único, e 25 dispõem que todos responderão solidariamente, vale di- zer, não há subsidiariedade: o credor escolhe qual dos devedores solidá- rios prefere executar. O ai. 13 do Código acrescenta a responsabilidade solidária do comerciante. Se a empresa tiver mais de uma razão social, todas responderão. Mais de um fornecedor envolveu-se no negócio? Então todos são solidários. Não pode o prestador de serviços principal, geralmente mais rico, se evadir por meio da atribuição da responsabilidade ao subcontra- tado intermediário, via de regra de menor idoneidade econômica. Em outras palavras, as pequenas empresas conhecidas vulgarmente como “testas-de-ferro” não impedem a reparação do dano ao consumidor, 164 ROBERTO BASILONE LEITE porque o art. 28, §~ 2~ a 42, decreta a responsabilidade das socieda- des consorciadas, das coligadas, das integrantes de grupos societári- os e das controladas. Desapareceu o patrimônio da empresa infratora? Executa-se o dos sócios. A tese da responsabilidade limitada dos sócios das empresas danificas é superada pelo Código, que, no ai. 28, autoriza a desconsi- deração da personalidade jurídica da sociedade em várias hipóteses, inclusive “sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento”. Vai ainda mais longe quando pune criminalmente o ge- rente da pessoa jurídica infratora, na medida de sua culpabilidade (ai. 75). Pode o fornecedor alegar que a vitima não realizou a transação comercial diretamente com ele; mesmo assim continuará a responder pelos danos, pois os ais. 17 e 29 equiparam a consumidor “todas as vitimas do evento” e “todas as pessoas determináveis ou não, expostas” ao acidente de consumo. Alegar a ignorância do vicio ou defeito é inútil, pois ela não exclui a responsabilidade (ai. 23). Apostar na incapacidade probante da vitima não compensa, já que o ônus da prova se transferiu para o lesante. Acreditar que o consumidor não terá poder de ação também é ati- tude vã, porque qualquer entidade civil do setor pode substitui-lo proces- sualmente na defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos, além do que os meios de defesa judicial foram alargados. Quem sabe se possa incluir no contrato uma cláusula que exonere o fornecedor de sua obrigação? Pode-se até fazê-lo, mas a cláusula será nula de pleno direito, nos termos dos ais. 24, 25 e 51, inciso 1. Como se vê, o legislador cercou o infrator por todos os lados, dei- xando claro o fim primordial da norma: viabilizar a todo custo a reparação efetiva do risco à segurança ou do dano ao consumidor. O Código, além do mais, abriu uma nova agenda nacional, com a fixação de níveis mínimos de qualidade e de adequação dos produtos e serviços ao ecossistema, voltada para a moralização das relações inter- pessoais e a humanização do habitat Colocou em evidência que a atividade empresarial, além do objetivo imediato do lucro, tem o objetivo mediato do bem-estar social, e que, a par da obrigação principal de fornecer bens e serviços, envolve os deve- res anexos de conduta ética. INTRODUÇAO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 165 O resulïado foi que, no cuio espaço ae tempo decorrido desde a sua edição, assistiu-se a um impressionante aumento do nível de res- peito aos consumidores por parte dos fornecedores e ao aperfeiçoamen- todos produtos e serviços — o que, em última análise, contribui para a elevação do nivel geral de qualidade de vida da população e para a pre- servação do meio ambiente, que, de outra forma, caminha para o colapso. Houve uma mudança de mentalidade, como pretendia Kazuo Wa- tanabe.~106’ As empresas passaram a investir na satisfação do cliente, o que era raro até a época da edição do Código. A propaganda tornou-se mais profissional e credível. As entidades de defesa do consumidor tor- nam-se a cada dia mais foies e atuantes. O Ministério Público instalou promotorias especializadas e o Poder Judiciário implantou pautas espe- ciais para os litígios de consumo. A eficácia da norma jurídica, como a de qualquer norma ética, de- pende de que haja uma aceitação, uma adesão do grupo social ao qual se destina. Por isso, é imprescindível que se consolide na população e nas autoridades estatais, principalmente nos aplicadores do direito, a consciência da necessidade de se assegurar a proteção rigoFosa dos interesses dos consumidores e a preservação severa do equilíbrio ecos- sistémico. Essa é a finalidade da lei do consumidor, facilmente percep- tível pelo estudo desassombrado dos princípios que a fundamentam. Não se espere que isso ocorra sem lutas e sem percalços, pois existem poderosos interesses econômicos e políticos, de natureza neó- foba, a dedicar feroz resistência ao projeto contido na lei do consumidor, já que este pretende instaurar novos padrões de relacionamento e de compoiamento. O processo de aperfeiçoamento cultural da sociedade é lento mas imprescindível e o principal instrumento de que ela dispõe para conduzi- lo é a comunicação. Comunicação lato sensu implica informação, conhecimento e edu- cação. A comunicação, em seu sentido pleno, pressupõe dois elemen- tos essenciais: honestidade intelectualquanto ao objeto da mensagem e adequação quanto ao modo de transmissão da mensagem. Ao longo do texto do Código, o leitor encontra inúmeras referências à necessidade de comunicação lato sensu. Mais uma vez o Código aceiou na mosca, pois está se iniciando uma nova era, que alguns chamam de (106) GRIN0vER, Ada Pellegrini (etaô. Op. oH., p. 611. 166 ROBERTO BASILONE LEITE era da comunicação, outros, de era da informação, outros ainda, de era do conhecimento. O que importa é que ela se mostra muito promissora, porquanto na raiz de todos os problemas do mundo, grandes ou corri- queiros, encontra-se a falha de comunicação, a informação incorreta, a educação incompleta. O Código disseminou e popularizou a noção de efetividade do direi- to, com o que vem contribuindo para fomentar as discussões em torno do problema da eficácia dos órgãos do Estado, em todos os níveis e poderes. O fato de ter o Código sofrido até agora apenas algumas pequenas alterações pontuais demonstra o primor da técnica legislativa a ele apli- cada e a solidez do sistema de princípios e regras gerais por ele implan- tado. Outrossim, sua abrangência e precisão mitigam um pouco o pro- blema da instabilidade da jurisprudência, na medida em que reduzem a margem para as divergências doutrinárias. A experiência demonstra que o Código não deve sofrer modifica- ções de fundo, ou seja, em seus princípios e regras gerais. A quase totalidade das críticas diz respeito a problemas verificados no momento de dar-lhe efetividade, decorrentes de fatores extrínsecos, Pequenas adaptações podem ser feitas no sentido de acrescer alguns dispositivos para disciplinar o funcionamento das empresas pri- vatizadas prestadoras de serviços públicos~107’ — que são as campeãs nas listas de reclamações dos consumidores — e para aumentar o po- der de fiscalização e o poder punitivo dos órgãos basilares do sistema, especialmente dos Procons. E inútil hoje tentar compreender os fenômenos econômicos, jurídi- cos e sociais senão através de uma ótica multidisciplinar. Com o declí- nio do modernismo e o advento da época até agora conhecida simples- mente como pós-modernismo, todas as áreas do conhecimento humano se fragmentaram e se confundiram num universo caótico. Instalou-se a era da diversidade: a diversidade de itens de consumo, de formas de trabalho, de padrões culturais, de crenças filosóficas e religiosas, de modelos de organização poritica. (107) A professora Cláudia Lima Marques sugere estipular disposições específicas para as empresas privadas ou privatizadas prestadoras de serviços públicos, com a imple- mentação de normas que disciplinem o controle das agãncias reguladoras de setores privatizados e a fixação de penalidades adequadas aos casos envolvendo cláusulas e atos abusivos, confira-se in Seminário discute agência para regular concorrência e consumo’. Jornal da Câmara dos Deputados, Brasilia. 0W 4,dez,2000, p. 5. INTRODUÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR 167 Não foi à toa que o Código, buscando alcançar todos os diversos segmentos da sociedade, adotou o principio da representação e deu ênfase à participação popular no exercício do poder político. A consoli- dação do Estado democrático de direito, de conteúdo substancial e não apenas formal, passa pela formulação de um rol de direitos e deveres fundamentais da cidadania, na qual as relações de consumo ocupam um lugar importante. Essa difícil tarefa, que implica fixar limites à liber- dade de iniciativa, de empresa e de uso da propriedade, incumbe a cada um em seu ramo de atividade, pois todos são cidadãos e consumidores. BIBLIOGRAFIA ALVIM, Arruda (et aí). Código do consum,dor comentado. 2! ed. rev. e ampl. 2! tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. AMARANTE, Aparecida. Responsabilidade civil por dano à honra. 3! ed. rev. e atual. Belo Horizonte: DeI Rey, 1996. ANDRADE, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando, Rio de Janei- ro: Record; Altaya, 1989. (Mestres da literatura contemporânea; 17) ARIZA, Anel. “Aspectos contratuales de la defensa dei consumidor’. Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 85, n. 726, p. 24-56, abr. 1996. BARROSA, Rui. 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