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C o le ç ão E d u c a ç ão F ís ica T edição Editora Unijuí Ijuí - Rio Grande do Sul - Brasil 2003 Cenas de um casamento (in)feliz uando falamos de teoria da Educação Física não insistimos na sua adjetivação como teoria científica. Isso não significa que tenhamos abandonado a pretensão de racionalidade para essa teoria,- muito mais, significa alertar para a necessidade de elucidar o conceito de racionalidade científica que é utilizado no discurso e na prática, bem como para as dificuldades de tal empreendimento. O debate epistemologia) atual parece indicar muito mais, por um lado, no sentido da superação da racionalidade científica clássica ou predominante (originada no plano da física e adotada pelas ciências naturais e também pelo positivismo como modelo para as ciências sociais e humanas), e, por outro, no sentido de certo relativismo que desloca a racionalidade científica do pedestal da racionalidade enquanto tal e a coloca no mesmo nível de outras "racio nalidades" ou discursos acerca da realidade. As dificuldades e os movimentos aludidos parecem indicar prudência no que diz respeito à reivindicação de adjetivar uma teoria da Educação Física de científica, embora indique também prudência quanto à propensão de abandonar precocemente a pretensão da funda mentação racional da prática. Nem consumar o casamento nem o divórcio. © 1999, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 Caixa Postal 560 98700-000 - Ijuí - RS - Brasil - Fone: (0__55) 3332-0217 Fax: (0__55) 3332-0343 E-mail: editora@unijui.tche.br Http: / / www. unijui. tche. br/unijui/editora Responsabilidade Editorial e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) Serviços Gráficos: Sedigraf Capa: Elias Ricardo Schüssler Primeira edição: 1999 Segunda edição: 2003 Catalogação na Fonte Biblioteca Central Unijuí B796e Bracht, Valter Educação física & ciência : cenas de um casa mento (in)feliz / Valter Bracht. 2.ed. - Ijuí: Ed. Unijuí, 2003.- 160 p. - (Coleção educação física). ISBN 85-7429-102-1 1.Educação física 2.Ciência do esporte 3.Motri cidade humana 4.Prática pedagógica 5.Epistemo logia I.Título II.Série. CDU: 796 796:001 ______________________________________001: 796____________ _ Editora Unijuí afiliada: A ssociação B rasile ira das E ditoras U niversitárias A coleção Educação Física é um projeto editorial da Editora Unijuí, vinculado a um conselho editorial interinstitucional, que visa dar publicidade a pesquisas que buscam um constante aprofundamento da compreensão teórica desta área que vem constituindo sua reflexão conceituai, bem como os trabalhos que garantam uma maior aproxi mação entre a pesquisa acadêmica e os profissionais que encontram- se nos espaços de intervenção. Promover este movimento é sem dúvi da o maior desafio desta coleção. Conselho Editorial Carmen Lucia Soares - Unicamp Mauro Betti - Unesp/Bauru Tarcisio Mauro Vago - UFMG Luis Osório Cruz Portela - UFSM Amauri Bassoli de Oliveira - UEM Giovani De Lorenzi Pires - UFSC Valter Bracht - UFES Nelson Carvalho Marcellino - Unicamp Paulo Evaldo Fensterseifer - Unijuí Vicente Molina Neto - UFRGS Elenor Kunz - UFSC Victor Andrade de Melo - UFRJ Silvana Vilodre Goellner - UFRGS Comitê de Redação Paulo Fensterseifer Fernando Gonzalez Maria Simone Vione Schwengber Leopoldo Schonardie Filho Joel Corso SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................. 9 PARTE I - EDUCAÇÃO FÍSICA E CIÊNCIA A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO ACADÊMICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA............................................... 15 As características da teorização na Educação Física.. 16 As Ciências do Esporte e a despedagogização do teorizar em Educação Física................................. 18 Repedagogizando o discurso acadêmico no campo da Educação Física..................................................... 24 Considerações finais (perspectivas)............................ 25 A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA............. 27 O campo acadêmico da Educação Física.................. 28 Considerações finais (problematizações) ................... 37 A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: CONHECIMENTO E ESPECIFICIDADE........................41 As diferentes concepções do objeto da Educação Física..................................................... 42 A especificidade pedagógica da cultura corporal de movimento .......... .................................................. 48 PARTE II - A(S) CIÊNCIA(S) DO ESPORTE, A CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA AS CIÊNCIAS DO ESPORTE: QUE CIÊNCIA É ESSA?. 57 O conhecimento do conhecimento............................ 61 A questão da identidade epistemológica da área..... 63 O debate em tomo do “objeto” da Educação Física .. 65 Breves olhares sobre o caso da pedagogia............. 68 A Educação Física e a cientificidade...................... .70 As Ciências do Esporte: fragmentação versus unidade................................. 71 Considerações finais................................................... 73 AS CIÊNCIAS DO ESPORTE NO BRASIL: UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA......................................... 75 Como se caracterizam as práticas científicas no âmbito das Ciências do Esporte?.......................... 76 O esporte e as Ciências do Esporte: empreendimentos da modernidade........................... 85 Dimensões da interdisciplinaridade nas Ciências do Esporte................................................................... 91 A Condição pós-moderna, a crise da razão científica e as Ciências do Esporte............................ 95 A TESE DA CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA, DE MANUEL SÉRGIO.................................................... 99 Kefren Calegari dos Santos Sobre Manuel Sérgio e a tese da Ciência da Motricidade Humana.......................................... 101 Levantando questões............................................... 104 Discutindo questões................................................. 105 Considerações finais................................................ 113 Quadro da evolução do pensamento de Manuel Sérgio em torno da CMH...................... 114 PARTE III - DIÁLOGOS (IM)PERTINENTES A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: UM DIÁLOGO COM MAURO BETTI......................... 117 Debatendo com M. Betti ......................................... 119 Considerações finais................................................ 128 EPISTEMOLOGIA E POLÍTICA NA EDUCAÇÃO FÍSICA BRASILEIRA..................................................... 129 Delineando as posições presentes na Educação Física brasileira e no CBCE...................................... 132 Considerações finais................................................ 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... 143 BIBLIOGRAFIA 149 INTRODUÇÃO O pior casamento é o que dá certo. (Millôr Fernandes, 1994) Os escritos aqui reunidos discutem uma relação que, guardadas as limitações de uma metáfora, apresenta algu mas características presentes nas relações conjugais. Não há aqui, obviamente, um julgamento de valor acerca do próprio casamento, entendido no seu sentido tradicional de união de dois seres humanos, embora o texto em epígrafe assim o sugira. Muito mais, pretende discutir a possibilidade de que uma relação bem-sucedida, neste caso, pode trazer antes um resultado negativo do que positivo. Assim como podemos questionar ser o casamento condição indispensável para a felicidade humana, também podemos colocar em dúvida a positividade da relação da Educação Física (EF) com a ciência, ou mesmo a transformação da Educação Físi ca em ciência. De qualquer forma é uma relação de risco (menos para a ciência do que para a Educação Física). Eliminar a identi dade de um dos pólos desta relação (do casamento), trans- formando um no outro, confundindo os dois, ou subordinan do uma identidade à outra (no caso a EF à ciência), pode, assim como no casamento, ter resultados desastrosos. Se ilidirmos o fato de que a EF é, em certo sentido, filha da ciência moderna (o que significaria em caso de casa mento uma relação incestuosa), o casamento entre a EF e a ciência sempre foi almejada, mesmo porque, até há bem pouco tempo a ciência era um grande “partido”. Um tal casamento poderia trazer à EF (ao noivo ou à noiva, como se queira) prestígio e status social (o dote da ciência seria enorme) e, por extensão, a todos que a sustentam e a fa zem. Embora hoje a ciência continue a ser um grande “par tido”, ela perdeu muito de seu glamour; a imagem da racionalidade científica está muito mais arranhada hoje do que estava há vinte anos. Muitas vozes, em função deste questionamento, hoje falam na necessidade do divórcio ou no rompimento do noivado. O esporte, a partir de sua crescente importância no contexto da cultura corporal de movimento, entra em cena e vai constituir com a EF e a ciência um “triângulo amoroso”. Assumiu o lugar do noivo ou da noiva (EF); falou em seu nome e ofereceu-se para contrair o matrimônio (ou patrimô nio) com a ciência. A reivindicação por ciência pelo fenôme no esportivo redundou na tentativa de se instituir as chama das Ciências do Esporte e nestas a EF foi renomeada de área pedagógica. A crise de identidade da EF foi entendida então como resultado da incapacidade da EF concretizar o casamento. Hoje, ao contrário, alguns entendem que sua ligação com a ciência já foi forte/longe demais e que seria preciso resgatar outros valores que lhe são próprios para que possa superar sua crise de identidade. Nessa ótica, um tal casamento não só não superaria a crise da Educação Física, como desvirtua ria suas características mais importantes. Outros, como é o nosso caso, advogam para a EF uma relação com a ciência que é ao mesmo tempo de proximida de e de distanciamento. Isto significa que as identidades dos “parceiros” não se confundem. Só com esta condição a rela ção parece ser produtiva. Isto significa refletir sobre as pos sibilidades, mas também, sobre as limitações da ciência, exatamente para não tomá-la como um dogma. Os textos aqui reunidos foram escritos em diferentes momentos da discussão que vem-se travando nos últimos anos, na nossa área. Assim, minhas posições aparecem no seu processo de desenvolvimento. E sempre muito difícil organizar textos escritos de for ma esparsa numa ordem lógica. A forma encontrada e que pareceu menos problemática foi a de organizá-los em três partes: “I - Educação Física e Ciência”, discute a constitui ção do campo acadêmico da EF, as questões epistemológicas que se colocam a partir da EF e a especificidade do conheci mento tratado pela EF; “II - A(s) Ciência(s) do Esporte, a Ciência da Motricidade Humana”, reúne os textos que enfocam especificamente as tentativas de se constituirem as Ciências do Esporte e a Ciência da Motricidade Humana, bem como uma avaliação crítica da sua produção. Nesse ponto tivemos a colaboração de um jovem e tale ato : o pro fessor de Educação Física, Kefren Calegari dos Santos, que levanta pontos importantes para a discussão da tese de Ma nuel Sérgio; “III - Diálogos (im)pertinentes”, reúne os textos que debatem com posições expressas por outros pesquisa dores da área que se ocupam com essa questão, num caso identificando o interlocutor, Mauro Betti, e em outro dialo gando com posições presentes na área. Cabe neste momento agradecer às várias instituições e aos colegas que foram fundamentais para o desenvolvimen to destas reflexões; Ao Conselho Nacional de Desenvolvi mento Científico e Tecnológico (CNPq), que por algum tem po colaborou mediante a concessão de uma bolsa de pesqui sa; à UFES, que me acolheu como docente; aos colegas de trabalho do LESEF; aos colegas de diálogo que não nomino para não cometer injustiças esquecendo alguém. A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO ACADÊMICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA1 „stssss*'** v" ' ‘ Neste capítulo tomamos como foco de atenção a cons trução do campo acadêmico da EF no Brasil, com especial atenção para o período que vai do final da década de 60 até nossos dias. E importante desde logo ressaltar que nossa atenção recai sobre a produção acadêmica da “área”, vale dizer, a teorização que envolve e acompanha esta prática social que convencionamos chamar de Educação Física, ou seja, é um estudo sobre o pensamento da EF brasileira e sobre como ela vem-se pensando. Especificamente, perseguimos a ques tão de como foram pensados os limites/contornos deste cam po, quem dele participa legitimamente, quais problemáticas são privilegiadas e reconhecidas como pertencentes ao cam po, ou seja, como a partir deste conjunto de práticas forja-se o próprio campo. Outro aspecto que considero necessário aclarar desde logo, dadas as posições que venho defendendo em relação ao uso do termo EF (Bracht, 1992 e 1995), é de que enten- 1 Este texto foi inicialmente apresentado no IV Encontro Nacional de História do Esporte, Lazer e Educação Física (Belo Horizonte/MG, 1996). do esta, fundamentalmente, como uma prática que tematiza com a intenção pedagógica as manifestações da cultura cor poral de movimento. Esse entendimento, sabemos, está lon ge de ser unanimidade. Ele convive com vários outros que estendem o significado do termo para, por exemplo, todas as manifestações da cultura corporal de movimento, ou en tão, como é mais comum, para todos os campos de atuação do profissional de EF. E nítido que ao longo do desenvolvi mento do campo acadêmico da “EF”2nem sempre foi esse o entendimento, muito ao contrário, os limites deste campo sempre estiveram difusos (e confusos). Assim, embora parta da posição acima aclarada, será preciso, para analisar a construção do campo acadêmico “EF”, adentrar e enfocar as produções que se colocam como pertencentes ao campo, mas que partem de uma outra visão de quais são seus con tornos. As características da teorização na Educação Física O surgimento ou a incorporação de práticas corporais nos currículos escolares na Europa no século XVIII e princi palmente XIX foi precedida e portanto resultou de uma série de mudanças e desenvolvimentos no âmbito da medicina e da própria pedagogia3. Na medicina, os avanços provoca ram uma valorização da atividade física, como elemento fomentador e garantidor de saúde, e, na pedagogia, a acei tação crescente de uma visão de homem calcada na ciência, 2 Coloco aspas exatamente para chamar a atenção de que é uma denominação provisória, porque concorrente com denominações (e propostas) como as de Ciên cias do Esporte, Ciência do Movimento Humano ou Ciência da Motricidade Humana. 3 Essas mudanças estão ancoradas no complexo processo de mudanças societárias mais amplas, mas que aqui não serão discutidas. basicamente nas ciências naturais, levou a se fundamentar a propriedade das práticas corporais pertencerem ao currículo escolar (Cachay, 1988). O século XIX vai ser o século da sistematização dos chamados métodos ginásticos cujo dis curso científico fundamentador era predominantemente de rivado das ciências biológicas, sendo os intelectuais que cons truíram esse discurso do campo médico e também pedagó gico, sendo, neste último caso, a fundamentação também fortemente marcada por pressupostos biológicos. Outra ins tituição importante e que foi cadinho da elaboração teórica da EF é a militar. Assim, as estruturas de pensamento, com seus pressu postos científicos e filosóficos, estavam ancoradas tanto na instituição médica quanto na militar, mas também na pró pria pedagogia. Neste sentido é interessante a hipótese le vantada por Ferreira Neto (1999), de que, no caso brasileiro, a instituição militar construiu, nas décadas de 30 e 40 deste século, um projeto de EF para o país, articulado com um projeto para a educação brasileira como um todo. Sem adentrar aos detalhes dessa produção de forma diferenciada, como aliás seria necessário, gostaria apenas de destacar uma sua característica que julgo ser possível identificar. Refiro-me ao fato de que a teorização da ginásti ca escolar era realizada a partir de um olhar pedagógico (médico-pedagógico, moral-pedagógico), ou seja, as práti cas corporais eram construídas e vistas como instrumentos para a educação para a saúde e para a educação moral. Teorizar4 era fundamentar uma prática pedagógica envol vendo práticas corporais, embora com base em um arcabouço 4 E importante ressalvar que os intelectuais ativos no âmbito da ginástica escolar ou EF trabalhavam mais na perspectiva da recepção dos métodos ginásticos do que na construção fundamentada destes. Quem sabe a única iniciativa neste sentido na época tenha sido o concurso promovido em 1942 para a elaboração de um método nacional de EF (Ministério da Educação e da Saúde, 1952). teórico-metodológico marcadamente biológico. Outra carac terística é a de que essa teorização era realizada, necessaria mente, por intelectuais de outros campos (medicina, forças armadas, pedagogia, ciências políticas), uma vez que o campo acadêmico “EF” (ou ginástica escolar) não havia ainda se constituído. Isto passa a se realizar com a formação em nível de terceiro grau, de profissionais civis de EF, bem como com a afirmação da EF enquanto curso de formação de professo res, nas instituições superiores de ensino. As características da formação de instrutores de ginás tica, inicialmente, e de professores de EF, mais recentemen te, fortemente marcada pela idéia de treinamento através da execução de movimentos, fizeram retardar o apareci mento do intelectual da EF. Não me refiro aqui ao intelectual no singular, mas, sim, ao agente social pertencente a um campo acadêmico capaz e instrumentalizado para construir teoria que fundamente a prática pedagógica em EF. Exis tem indicadores de que os intelectuais que pensaram a EF brasileira, neste período, trouxeram/adquiriram o instrumental para tanto em outros campos, ou seja, o campo da “EF” não dispunha dos meios para teorizar sua prática. De qualquer forma o discurso, a teorização neste campo emergente, era, até a década de 60, marcadamente de caráter pedagógico. As Ciências do Esporte e a despedagogização do teorizar em Educação Física Se nas suas origens, no Brasil, e até aproximadamente a década de 60 o discurso no âmbito da EF era marcado pelo viés pedagógico (de tom muitas vezes fortemente normativo), a partir de então passa a ganhar espaço um “teorizar” cientificista. Logo levantou-se a questão se a EF ■'"'Í 8 l™ ,,. era uma ciência ou uma disciplina acadêmica ou científica. Questão levantada muito em função de uma pressão exter na para que a EF se legitimasse no campo científico, que tem nas universidades seu locus privilegiado. Fator determinante para essa nova onda cientificista na EF, no entanto, foi o enorme desenvolvimento que so freu, após a II Guerra Mundial, o fenômeno esportivo e como ele foi absorvido ou se impôs à EF. As décadas de 60 e 70 são cruciais para o campo acadêmico da EF e isto não somente no caso do Brasil. Aliás, no Brasil, esse movimento apresenta um atraso de quase uma década em relação aos países capitalistas desen volvidos. Whitson e Macintosh (1990), retratam como, no Canadá, nas décadas de 60 e 70, o discurso humanista da EF foi substituído por um outro, de tipo cientificista, com base nas Ciências do Esporte (CE) ou Ciências do Movimen to Humano, sob a influência dos EUA. Willimczik (1987), por outro lado, analisando o desenvolvimento da Ciência Desportiva (Sportwissenschaft) na Alemanha, afirma que a discussão teórico-científica naquele país sobre a questão do objeto desta “área”, centrou-se no período de 1935 a 1970, na contraposição entre teoria da EF (Leibeserziehung) e te oria dos exercícios corporais (Leibesübungen). Mas, em pri meiro plano, o objeto era visto como um objeto pedagógico. No final dos anos 60 se impôs a denominação Ciência Desportiva e isso, segundo o autor, em função da tendência internacional nesse sentido, bem como do fato de que o esporte tornou-se o fenômeno dominante nesta área. Dietrich e Landau (1987, p. 384s.) vão além, afirmando que o con ceito de pedagogia desportiva (Sportpädagogik) determinou o fim da época do conceito de teoria da EF (Leibeserziehung) com suas concepções orientadas nas teorias da educação. Além disso, também a pedagogia desportiva, como outras subdisciplinas da Ciência Desportiva, vão ser funcionalizadas a partir dos interesses da instituição desportiva. Podemos perceber então pelas análises de Greendorfer (1987), Whitson e Macintosh (1990), Willimczik (1987) e Dietrich e Landau (1987), que tanto na Alemanha como no Canadá e nos EUA, nas décadas de 60 e 70, a EF esteve orientada para a melhoria do desempenho esportivo no país5. O “Diagnóstico da EF/Desportos no Brasil” (Costa, 1971) apontou uma deficiência no âmbito da medicina desportiva, considerada uma das razões da deficiência da área. A partir daí investimentos foram orientados para melhorar o nível de desenvolvimento científica da “área”, como o incentivo à pós-graduação e os investimentos em laboratórios de fisiolo gia do exercício. Nesse contexto é fundada, no final dos anos 70, uma nova entidade científica, o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE). A produção acadêmica volta-se para o fenômeno es portivo. É a importância social e política desse fenômeno que faz parecer legítimo o investimento em ciência neste campo. Por sua vez, aqueles que atuam no campo ou tem interfaces com ele privilegiam o tema do esporte porque é ele que oferece as melhores possibilidades de acumulação de capital simbólico por via de seu tratamento científico. São pesquisas que dele se ocupam que têm maiores chances de serem reconhecidas no campo e fora dele6. Ou seja, é a importância política e social do fenômeno esportivo (ou do 5 Evidências disso podem ser encontradas nos documentos: Diagnóstico da EF e dos Desportos no Brasil (Costa, 1971); Plano Nacional de EF e Desportos 1976-1979 (Brasil, 1976) e era Gonçalves, J. A. P. Subsídios para implantação de uma política nacional de desportos. Brasília, 1971, entre outros. 6 Como lembra Bourdieu (1983, p. 124), “é inútil distinguir entre determinações' propriamente científicas e as determinações propriamente sociais das práticas es sencialmente sobredeterminadas”. desempenho esportivo do país em nível internacional) que confere legitimidade ao próprio campo acadêmico da EF ou das Ciências do Esporte7 ou EF e Ciências do Esporte (EF & CE). E nesse contexto que se permite afirmar a EF nas universidades, que se permite um discurso científico na área, com reivindicação conseqüente de cursos de pós-graduação, simpósios científicos, entidades científicas, financiamento de pesquisas científicas, estruturação de laboratórios de pesqui sa, etc., que é forjado um “novo” agente social, o intelectual da EF, ou seja, intelectual com formação original em EF e que agora almeja também a prática científica, isto é, reivin dica e se lança à prática de teorizar (cientificamente) so bre... Bem, qual é o objeto deste teorizar? Em princípio o objeto é construído ou ganho enfocando o fenômeno esporti vo e a problemática central é a melhoria da performance esportiva. A partir de 1970 a EF é colocada explicitamente e planejadamente a serviço do sistema esportivo, desempe nhando o papel de base da pirâmide, sistema esse que pos suía como culminância a alta performance esportiva. Plane jou-se constituir a EF como elemento do sistema esportivo. EF e esporte ou EF/esporte deveriam elevar o nível de apti dão física da população. O campo da EF/CE é permeado, nas décadas de 70 e 80, por profissionais de diferentes disciplinas. Ele é pluridisciplinar: médicos, psicólogos, sociólogos, professores de EF, etc. É.importante destacar, no entanto, que o teorizar 7 Segundo Paiva (1994), a iniciativa de “elevar” a profissão de EF à condição de Ciências do Esporte tem seu ápice na publicação do editorial da RBCE 2(2), onde se lê: “o professor de EF não pode mais ser representado como um homem forte e de boa vontade [...]: em resumo, ele hoje não é mais o ‘professor de ginástica’, mas o mestre em ciências do esporte”. — nr- de caráter cientificista vai-se dar fundamentalmente a partir das ciências-mãe, como a fisiologia, a psicologia, etc. como ainda hoje diagnosticam Gaya (1994), Greendorfer (1987) e Willimczik (1987), com tendências à especialização a partir de subdisciplinas. Ora, o profissional de EF, num primeiro momento, premido pela busca de reconhecimento no e para o campo, vincula-se a uma especialidade ou a uma subdisciplina das Ciências do Esporte (ou da EF ou ainda da Ciência do Movimento Humano) e torna-se um “cientista” no âmbito da fisiologia do exercício, da biomecânica, da sociologia do esporte e não um cientista da EF. É fácil perce ber que a EF enquanto prática pedagógica quase que desa parece do horizonte de preocupações deste teorizar, com exceção das preocupações como as que buscavam identifi car o método mais eficiente para ensinar determinada des treza (esportiva). O discurso pedagógico que havia caracterizado este campo em construção, até mais ou menos a década de 60, é deslocado para um plano secundário - só no final da déca da de 80 é que as pesquisas mostram que há um aumento crescente das pesquisas na área que vai ser denominada, no interior das Ciências do Esporte, de ‘pedagógica (Matsudo, 1983; Gaya, 1994). Isso acontece porque o sistema esportivo somente apela para a categoria educação como forma de buscar legitimida de social. Estando, no entanto, orientado por outros princí pios, permanece a questão educacional apenas como recur so retórico. O que importa mesmo é a medalha! Isso não significa que ele não tenha efeito educativo, ao contrário. Significa, isto sim, que a lógica que define as ações no cam po esportivo (que determina o que está em jogo no campo) ignora e não é influenciada pelo resultado educativo — o campo ou o sistema esportivo é indiferente ao resultado que produz em termos educacionais. As ações no sistema espor tivo não serão redefinidas em função de um melhor ou pior resultado educacional e, sim, em função de um melhor ou pior resultado esportivo8. Assim, o esporte se impôs à EF, como conteúdo e como sentido da própria EF (Bracht, 1992). O esporte é que legitima a EF porque faz coincidir seu discurso com o daquela no que diz respeito ao seu papel nos planos educativo e da saúde - o esporte se impôs também enquan to tema e orientador da teorização neste campo acadêmico em construção. Em suma, o discurso pedagógico na EF foi quase que sufocado pelo discurso da performance esportiva; literalmente afogado pela importância sociopolítica das me dalhas olímpicas, ou pelo “desejo”, tornado público, por medalhas. Chegou-se aqui a uma situação que, na esteira de Bourdieu (1996), poderíamos denominar de subordinação estrutural, com o campo acadêmico da “EF/CE” usufruindo de quase nenhuma autonomia para determinar a problemá tica teórica a ser privilegiada no campo. Essa tendência à funcionalização deste campo acadêmico a partir dos interes ses da instituição esportiva também foi detectada por Whitson e Macintosh (1990) e Dietrich e Landau (1987) para os ca sos do Canadá e Alemanha, respectivamente. 8 Aos poucos o sistema esportivo vai sentindo-se forte o suficiente para abandonar o discurso da promoção da educação e da saúde. O presidente da Confederação Brasileira de Natação, Coaracy Nunes Filho, afirmou, em entrevista à revista Veja, que educação não tem nada a ver com esporte, mesmo que esporte também seja educação (Nunes Filho, 1995, p.8). ....—n r * Repedagogizando o discurso acadêmico no campo da Educação Física No mesmo processo de busca de reconhecimento aca dêmico da EF e dos seus profissionais no âmbito universitá rio, alguns destes freqüentaram cursos de pós-graduação (mestrado) em programas da área da Educação (filosofia da educação, principalmente)9. É a partir do contato, não com as Ciências do Esporte, e sim com o debate pedagógico brasileiro das décadas de 70 e 80, que profissionais do campo da EF passam a construir objetos de estudo a partir do viés pedagógico. Independen temente da matriz teórica que esses profissionais vão ado tar, o que caracteriza suas reflexões é que estão orientadas pelas ciências humanas e sociais e isso por via do discurso pedagógico10. Essa vertente vai representar não só um pólo de resis tência política no campo, defendendo interesses não-domi- nantes, interesses aliás ligados aos do sistema esportivo, mas, também, resistência acadêmica ao cientificismo das Ciên cias do Esporte. Mais recentemente alguns autores (Coletivo de Autores, 1992; Bracht, 1992; Betti, 1992) vêm refor çando a necessidade de construção de uma teoria da EF, entendida esta como uma prática pedagógica, ou seja, uma repedagogização do teorizar na EF, uma vez que essa práti ca pedagógica foi quase que alijada do campo enquanto objeto. A construção de um corpo teórico com base num discurso pedagógico, que possa filtrar e reconverter, à luz da lógica desse campo, a influência “externa” do sistema es 9 Alguns dos mais influentes na área: Vítor Marinho de Oliveira, João Paulo Subirá Medina, Apolônio Abadio do Carmo, Lino Castellani Filho e Carmen Lúcia Soares. 10 Isso também vai redundar numa certa fragilidade teórica dessa produção. portivo, é elemento importante para a construção da auto nomia (pedagógica) da EF. É claro que, no momento em que a educação e o magistério estão numa situação caótica em nosso país, só mesmo pensando na perspectiva da resistên cia é possível alimentar essa necessidade. Considerações finais (perspectivas) O campo acadêmico da EF ou da EF/CE11, como convencionou-se chamá-la no interior do CBCE, é hoje cru zado e recortado por basicamente três perspectivas diferen tes de caracterização ou de delimitação: a) tentativa de deli mitação de um campo acadêmico que teorize a prática pe dagógica que tematiza manifestações da cultura corporal de movimento, ou seja, o teorizar aí estaria voltado para a cons trução de uma teoria da EF, entendida enquanto uma práti ca pedagógica; b) tentativa de construir um campo interdis- ciplinar a partir das Ciências do Esporte, que, em alguns casos (Gaya, 1994), reivindica uma Ciência do Esporte vol tada para as necessidades da prática esportiva; c) a tentati va de construção de uma nova ciência, a Ciência da Motri cidade Humana (Sérgio, 1989; Tojal, 1994; Cavalcanti, 1994). O que é importante e interessante ressaltar é que todas essas perspectivas vão buscar a tradição e as institui ções da original EF (ginástica escolar) - se colocam como herdeiras desta. Existe uma forte pressão, já que a total instrumentali zação da EF não foi possível em função de uma resistência interna (com desdobramentos acadêmico-científicos e políti- 11 No CNPq a área é tratada como a subárea EF e faz parte das ciências da saúde. Na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) a área é denominada de Ciências do Esporte/Motricidade Humana e faz parte das ciências aplicadas. cos), no sentido da construção de um campo acadêmico liga do/voltado ao esporte. Existem sinais de que se está cons truindo um discurso para justificar o surgimento de um cam po acadêmico autônomo ligado ao esporte - que não estaria subordinado aos códigos da pedagogia como é o caso da EF. A reivindicação de uma ciência do esporte tem como base a importância sociopolítica (e econômica) do esporte e a con tribuição da ciência para o seu progresso. Parece-nos claro, por exemplo, que os cursos de ba charelado em esporte sejam já o resultado dessa pressão (do mercado). Os dirigentes esportivos, cada vez mais claramen te, reivindicam uma formação universitária específica para os profissionais do campo esportivo, argumentando inclusive que as atuais faculdades de EF não suprem as suas necessi dades: “Quero uma universidade do esporte para formar técnicos, em vez das atuais faculdades de EF” (Nuzman, 1996, p. 8). Outro elemento indicador é o de que o ex-ministro extradordinário dos Desportos, Edson Arantes do Nascimen to (Pelé), reivindicou uma linha de financiamento de pesqui sas específica para as Ciências do Esporte junto ao CNPq. Além disso, o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento do Desporto (INDESP) dispõe de dotação orçamentária para pesquisas e publicações das Ciências do Esporte. Se, por um lado, isso indica uma autonomização do campo acadêmico da EF em relação ao sistema esportivo - e indica no sentido do surgimento de um campo acadêmico que estaria voltado para o teorizar especificamente desta prática social, sem ter como viés central o pedagógico - co loca questões para a EF como a de obter, urgentemente, le gitimidade no interior do campo pedagógico, enquanto práti ca e disciplina acadêmicas, sob pena de ter sua própria exis tência ameaçada e isso não simplesmente no sentido da ex tinção, mas de simples substituição pelo esporte (na escola). A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA1 Quando abordamos o tema da epistemologia da Edu cação Física (EF) assalta-nos uma série de questões que tem aparecido muito frequentemente em nossas discussões nos últimos anos, afetando, inclusive, a questão da (crise de) identidade da EF. Algumas dessas questões são: - a EF é uma ciência ou uma disciplina científica? - Deve a EF almejar/pretender ser uma ciência? E essa uma reivindicação legítima? Essa pretensão é orginária do inte rior da própria EF ou de “fora” dela? - Qual a epistéme predominante na EF? E a científica? A prática científica ligada à EF filia-se aos princípios das ci ências naturais ou aos das ciências sociais e humanas? Ou então, com qual concepção de ciência opera a EF? - Quais são as especificidades ou peculariedades da questão epistemológica da EF? - Quais são os limites e as possibilidades do paradigma cien tífico para fundamentar a prática do profissional da EF? 1 Este texto (Bracht, 1997) foi originalmente publicado no V. 5 de Ensaios: Educação Física e Esporte, de Carvalho & Maia (p. 5-17). - É a interdisciplinaridade científica uma imposição à produ ção do conhecimento em EF? É claro que o conjunto das questões acima listadas não esgota os questionamentos possíveis, mas pode dar uma idéia da complexidade da questão. Quero iniciar com a pergunta sobre se a EF é uma ciência. Essa questão assumiu importância no debate em torno da crise de identidade da EF, porque levantou-se a hipótese (ou a tese) de que a superação dessa crise (que seria de legitimidade também no plano acadêmico universi tário) viria com a sua afirmação como ciência, ou seja, com a definição de objeto, método e linguagem próprios. 0 campo acadêmico da Educação Física Para tratar dessa questão é preciso resgatar um pouco o processo de construção do campo acadêmico da EF. A chamada EF moderna é filha da modernidade. Isso significa que ela surge num quadro social em que a racionalidade científica se afirma como a forma correta de ler a realidade, em que o Estado burguês se afirma como forma legítima de organização do poder e a economia capitalista baseada na indústria emerge e se consolida. A EF moderna sofre a influên cia, desde seus primeiros passos, do pensamento científico. Vale o princípio: exercitar cientificamente o corpo, ou exer citar o corpo de acordo com o conhecimento científico a respeito. Ling e Amoros esmeraram-se em construir seus métodos ginásticos em estreita consonância com os conheci mentos oriundos da fisiologia e da anatomia humana. Ling falava inclusive, em movimento racional com economia de esforço. Ou seja, desde logo, esta prática, qual seja, este conjunto sistematizado de exercitações corporais, buscou fun " 28 *' • damentar-se no conhecimento das disciplinas científicas emer gentes (como a física orgânica = fisiologia). Portanto, não é gratuita a presença influente da instituição médica na EF (ver a respeito Cachay, 1988, e Soares, 1994). Num primeiro momento, em função do papel atribuí do à EF (na perspectiva higienista), o aporte de conhecimen tos científicos vinha exatamente das ciências biológicas. O corpo e as atividades físicas eram estudados como fatos/ fenômenos biológicos2. Por isso mesmo, falava-se menos em movimento humano e mais em atividade física. O que é importante ressaltar é que o campo da EF era marcado me nos como um campo acadêmico de produção do conheci mento, e mais, como de aplicação do conhecimento (cientí fico). Os métodos ginásticos eram construídos aplicando-se os conhecimentos da anatomia, da fisiologia e da medicina ao campo dos exercícios físicos. Quando a EF passou a se afirmar no âmbito dos siste mas de ensino como componente curricular, ascendendo ao ensino superior (em alguns casos universitário), para a for mação de professores, já um número bastante grande de disciplinas se ocupava do estudo do corpo/movimento hu mano ou de suas objetivações culturais como o esporte. Aliás, não esqueçamos de que o esporte, como fenômeno social, teve papel importante no reconhecimento da necessi dade de formação de profissionais em nível universitário e da necessidade da produção do conhecimento científico nes se âmbito. Em grande parte foi sua importância sociopolítica que determinou o surgimento de organizações científicas de Ciências do Esporte. 2 Não estou desconhecendo ou ignorando a influência grega sobre alguns filantropos, que no final do século XVIII e no início do XIX buscavam legitimar a ginástica ou a exercitação corporal nas suas escolas a partir do ideal da “harmonia entre corpo e espírito”. Apesar dessa influência, vários estudos mostram (Cachay, 1988; Krüger, 1990) que as ciências naturais logo se impuseram como elemento fundamentador, como base legitimadora dessas práticas. O que observávamos naquele momento, e aqui estou falando basicamente das décadas de 60 e 70 deste século (em alguns países mais cedo, em outros mais tarde), era, por um lado, o surgimento e, por outro, a consolidação de uma série de subdisciplinas ligadas epistemologicamente às tradicionais disciplinas científicas: fisiologia do esforço, a biomecânica (do esporte), a psicologia do esporte, a sociolo gia do esporte, etc. Já aqui devo dizer que entendo a EF como aquela prá tica pedagógica que trata/tematiza as manifestações da nossa cultura corporal e que essa prática busca fundamentar-se em conhecimentos científicos, oferecidos pelas abordagens das diferentes disciplinas. Ou seja, o campo acadêmico da EF vem se constituindo a partir da absorção e/ou incorporação de práticas científicas fortemente marcadas por abordagens monodisciplinares do fenômeno do movimento humano ou da atividade física3. Ora, o fato do campo acadêmico EF incorporar cada vez mais intensamente as práticas científicas, não só conhe cimento científico (isso no Brasil se dá mais intensamente na década de 70), determinou a criação de entidades científi cas próprias, realização de eventos científicos próprios, cria ção de cursos de pós-graduação, definição de programas de apoio à pesquisa, etc. No entanto, na produção do conheci mento predomina o enfoque disciplinar ou monodisciplinar determinado pela chamada disciplina-mãe. Um pouco da crise de identidade da EF vem daí, do desejo de tornar-se ciência, e da constatação de sua dependência de outras dis ciplinas científicas (a EF é “colonizada” epistemologicamente 3 Existem indicadores de que lá onde a EF desde logo obteve o status universitário, a incorporação das práticas científicas ao campo processou-se mais rápida e inten samente. Em alguns países, como a Argentina, o fato da formação de professores de EF dar-se em cursos não-universitários tem dificultado tal processo; por exemplo, naquele país não existem até hoje cursos de mestrado na área da EF. por outras disciplinas). Assim, no processo de sua constitui ção, o campo acadêmico EF fragmentou-se; as línguas cien tíficas faladas são diferenciadas, específicas. No campo da EF, no que diz respeito à produção do conhecimento científi co, surgiram os especialistas, não em EF, mas, sim, em fisiologia do exercício, em biomecânica, em psicologia do esporte, em aprendizagem motora, em sociologia do espor te, etc.4. Os professores de EF, enquanto “cientistas”, pas saram a se identificar como especialistas em fisiologia, em biomecânica, etc. e não em EF. Em função do processo de especialização não demorou a instalar-se no campo um “diá logo de surdos”. Dada a importância e o status que a ciência goza na sociedade e principalmente no meio acadêmico, a EF coloca como meta tornar-se ela própria uma ciência. Passa então, a sofrer de certo tipo de complexo de édipo; quer ser mas não pode ser, não consegue ser (não pode consumar o ato). Esse complexo é tão grande que alguns entenderam ter surgido, como que de dentro do campo da EF, uma nova ciência, a Ciência da Motricidade Humana, para alguns, ou a Ciência do Movimento Humano, para ou tros. Se essa se concretizasse, finalmente os professores de EF poderiam dizer-se “cientistas”, poderiam dizer-se perten centes a um campo científico, o da Ciência da Motricidade Humana. Por outro lado, uma forte pressão para a cientifização da EF vem das chamadas Ciências do Esporte. E exatamen te quando a EF deixa de se apresentar como ginástica (mé todos ginásticos) e consolida-se o esporte enquanto seu con teúdo maior, que as chamadas Ciências do Esporte insta lam-se no campo, inicialmente chamado de EF. Hoje, não é possível distinguir os campos de produção do conhecimento 4 E interessante notar que análises recentes feitas por importantes autores do campo da pedagogia também identificam esse problema em seu campo (Arroyo, 1998; Brandão, 1998; Libâneo, 1996). da EF e das Ciências do Esporte. Publicam-se os mesmos trabalhos em revistas de EF e/ou de Ciências do Esporte, apresentam-se trabalhos em congressos de um e de outro, sem qualquer discriminação ou alteração. A EF, nesse âmbi to, costuma ser tratada como pedagogia do esporte. Portanto, embora sejam profissionais de EF e não mais apenas biólogos, médicos, fisiólogos, psicólogos e sociólogos que pesquisam em torno do movimento humano e suas objetivações culturais, a situação concreta é que essas pes quisas têm sua identidade epistemológica ancorada nas ciên- cias-mãe e não na EF, ou seja, a EF não é capaz de ofere cer/fornecer uma identidade epistemológica5 própria a es sas pesquisas. A pesquisa em fisiologia do exercício não é ciência da EF e, sim, ciência fisiológica, assim como história do esporte não é Ciência do Esporte e, sim, ciência his tórica. Aqui, neste âmbito, ocorreu um equívoco que reputo à influência de uma concepção empirista ingênua de ciência. Refiro-me ao fato de confundirmos objeto científico com al gum fato/fenômeno ou recorte da realidade: ou seja, o en tendimento de que ter um objeto próprio seria o mesmo que identificar um fenômeno do mundo concreto/empírico que seria propriedade dessa ciência ou disciplina. O movimento humano por si só não é um objeto científico, são antes os problemas que lhe são colocados sob uma nova perspectiva que podem configurar um novo campo do conhecimento. Objeto científico é algo construído a partir de determinada abordagem. Defendo a idéia de que a EF não é uma ciência. No entanto, está interessada na ciência, ou nas explicações cien tíficas. A EF é uma prática de intervenção e o que a carac 5 Identidade epistemológica significa a forma própria com que cada disciplina cientí fica interroga e explica a realidade, o que é determinado pelo tipo de problema que levanta, pelos métodos de investigação e pela linguagem que desenvolveu e utiliza. teriza é a intenção pedagógica com que trata um conteúdo que é configurado/retirado do universo da cultura corporal de movimento. Ou seja, nós, da EF, interrogamos o movi- mentar-se humano sob a ótica do pedagógico. Acredito que, influenciados exatamente pela pressão cientificista, sempre entendemos a definição de nosso obje to como a definição de um “objeto científico”. Ora, o objeto de uma prática pedagógica não tem as mesmas característi cas fundantes de um objeto de uma ciência. O objeto da EF enquanto prática pedagógica é retirado do mundo da cultura corporal/movimento, ou seja, é selecionado a partir de crité rios variáveis, ou seja, dependentes de uma teoria pedagógi ca, desse universo. Podemos chegar ao ponto de configurar nosso objeto de forma mais abstrata e aí diríamos ser a cultura corporal de movimento. A EF está interessada nas explicações, compreensões e interpretações sobre as objetivações culturais do movimen to humano fornecidas pela ciência, com o objetivo de funda mentar sua prática, e isso porque nós, da EF, estamos con frontados com a necessidade de constantemente tomar deci sões sobre como agir. Por exemplo: decisões sobre o conteú do dos meus planos de ensino; sobre a quantidade e a inten sidade de exercícios; sobre õ método de ensino a adotar para ensinar um esporte; sobre a forma de reagir de frente a uma atitude agressiva de um aluno, etc. Com base em qual conhecimento eu tomo essas decisões? Como ter certeza de que as decisões que tomei são as corretas? Bem, em princípio achamos que a ciência nos auxilia ria nessa tarefa. Há (ou houve) o entendimento de que a ciência faria com que tivéssemos respostas mais seguras/ verdadeiras para essas questões. Mas, o que é conhecer cien tificamente a realidade? Por que ela nos ofereceria um co nhecimento ou uma base mais segura? A ciência moderna parte do pressuposto de que as explicações da realidade estão contidas nela mesma, ou seja, rompendo com o pensamento mítico, entende que as expli cações do que acontece na natureza não precisam apelar para forças externas a ela (como a vontade divina). Existem leis internas que determinam o movimento das coisas. A descoberta dessas leis permite prever o comportamento dos corpos ou das coisas de forma universal. Ou seja, a realidade contém regularidades e possui uma ordem. A ciência está interessada na regularidade, na rotina, no que é comum na realidade, para controlá-la (desvelar, desvendar a realidade, descobrir as leis que a regem). Por exemplo: eu posso prever o comportamento da queda de um dardo, porque sobre qualquer corpo físico age uma lei universal, que é a lei da gravidade. Posso prever, com relativa precisão, a repercussão de um treinamento de corridas contínuas em determinada intensidade sobre a con dição aeróbica de uma pessoa, porque estou de posse de uma teoria (que expressa uma lei ou leis) construída no âm bito da fisiologia, que diz que, quando uma pessoa é subme tida a uma atividade X, o organismo reage de forma Y. Teorias expressam leis que permitem prever o comporta mento da realidade e assim nela intervir e/ou controlá-la. Buscou-se aplicar esses mesmos princípios para o co nhecimento “científico” da realidade social e do comporta mento humano. Durkheim dizia que a realidade social devia ser estudada como “coisa” e Comte chamava a atual socio logia de física social. No entanto, movimentos acadêmicos logo questionaram a possibilidade e a validade da aplicação desses princípios científicos ao estudo da realidade social e humana. Dilthey, por exemplo, entendia que as humani dades (Geisteswissenschaften) devem operar com a catego ria da compreensão, ao passo que as ciências naturais (Naturwissenschaften) operam com a categoria da explica ção. Compreender (verstehen) é uma operação diferente da de explicar (erklären) e, para o caso das humanidades, o adequado é o primeiro: compreender o sentido/significado subjetivo das condutas humanas. Tem também leis (universais) capazes de explicar o comportamento humano, regularidades sociais/históricas do mesmo tipo das presentes na natureza? O debate em torno de um possível dualismo metodológico ou epistemológico entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanas continua. Para nós interessa a pergunta: o estudo do movi mento humano deve ser feito a partir dos princípios das ciências naturais ou das ciências sociais e humanas, ou, ain da, de ambas?6 Parece que o mais importante é ter a capacidade de entender o tipo de conhecimento do movimentar-se humano que uma e outra abordagem possibilita, as possibilidades e limitações de cada uma das abordagens. Toda abordagem científica é “pré-conceituosa”, portanto, oferece explicações/ interpretações da realidade que são relativas (a um ponto de vista) e, por conseqüência, limitadas pelo aparato teórico- metodológico próprio daquela disciplina. Por exemplo: quando faço uso do instrumental teórico-metodológico da biomecânica para estudar o movimento humano, o conhecimento produ zido falará algo do movimento humano mas se “calará” em relação a uma série de aspectos desse mesmo movimento. Assim, não farão parte desse conhecimento os aspectos li gados à afetividade do sujeito que se move, os aspectos sociais ligados ao contexto em que se realiza o movimento e que o influenciam, etc. O mesmo acontece em relação às outras disciplinas científicas - não existe uma abordagem global que “esgote” a realidade. 6 Aliás, M. Sérgio coloca a Ciência da Motricidade Humana no âmbito das ciências do homem, mas, em momento algum reporta-se ao que isso, epistemologicamente, significa; pelo menos não se refere ao aludido debate epistemológico e não toma posição a respeito, de maneira que fica-se sem saber das conseqüências (metodo lógicas) que tal vinculação/classificação teria. Essa característica do saber científico - toda aborda gem ser “pré-conceituosa” e relativa a um ponto de vista - impõe, para o caso da EF, a questão da interdisciplinaridade. Entendo que a questão da interdisciplinaridade se impõe ao campo acadêmico da EF. Para a EF (para fundamentar essa prática) não basta somar o conhecimento da biomecânica, com o da fisiologia do exercício, com o da psicologia. Há a necessidade de operar uma síntese ou sínteses, o que é dife rente da soma das partes (ao mesmo tempo, mais que a soma das partes e menos que cada parte, como diria E. Morin, 1993); uma síntese operada a partir das necessida des e dos interesses específicos da EF, da prática pedagógi ca em EF (descolonização científica). O que hoje predomina são as problemáticas/temáticas disciplinares. Gostaria de dar um exemplo para demonstrar a neces sidade de superar as perspectivas disciplinares. Partirei de uma pergunta: qual é o método que devo usar nas aulas para ensinar um esporte, como o volibol? O método sintéti co ou o método analítico? Se escuto as pesquisas da apren dizagem motora posso ter a resposta, hipotética, de que é o método analítico. Se escuto as pesquisas da fisiologia do exercício, posso ter a resposta de que é o método sintético (que propicia maior movimentação). Se escuto a sociologia ou a psicologia social, seria, talvez, o método sintético pela maior possibilidade de contato social. Se atento para a socio logia do currículo questionarei inclusive o próprio esporte enquanto fenômeno cultural que expressa relações de poder, etc. Qual abordagem devo considerar para minhas decisões de professor de EF? Como integrar essas distintas aborda gens? E possível decidir com base no conhecimento discipli nar? E possível decidir sempre no plano da racionalidade científica?7 7 Interessante é observar que, apesar da flagrante necessidade de mediação entre os saberes disciplinares presentes no campo da EF, os especialistas nas diferentes subdisciplinas do nosso campo não conseguem dialogar, ou seja, a partir de sua especialidade interagir com outra, como ficou claro no IX Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (Vitória/ES, Set. 95). Considerações finais (problematizações) Para finalizar este capítulo gostaria de pontuar algu mas problemáticas que, considero, devem ser enfrentadas pela reflexão espistemológica do campo da EF. Precisamos, por exemplo, analisar a tese da Ciência da Motricidade Humana de M. Sérgio (1989), como possível fornecedora do estatuto epistemológico da EF. Adianto mi nha posição, embora sem fazer aqui uma análise mais exaus tiva dessa tese: ela não apresenta uma solução para os pro blemas epistemológicos da EF. Aliás, em M. Sérgio, a EF aparece, em relação à Ciência da Motricidade Humana, com duas conotações: ora como a Pré-Ciência da Motricidade Humana, e ora como ramo pedagógico dessa ciência. A idéia ou tese de que a EF é a Pré-Ciência da Motricidade Humana é sustentável apenas à medida que sob essa deno minação esse campo acadêmico se constituir; resta no en tanto, demonstrar que esse constitui-se hoje na forma de uma nova disciplina científica ou de uma nova ciência. Já a tese de que a EF8 seria o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana me parece altamente questionável. Em nenhum momento, aliás, os autores que referendam essa tese explicam o que significa para a EF (ou Educação Motora) ser o ramo pedagógico de uma tal ciência (partindo-se do pressuposto de que tal ciência existe). Significa que essa prática pedagógica tematiza os conhecimento oriundos de tal ciência? Significa que os fundamentos dessa prática pe dagógica vêm dessa mesma ciência? As “outras ciências” 8 O autor da tese, M. Sérgio, prefere denominar a EF de educação motora, Yio que é seguido por um grupo de professores brasileiros, principalmente atuantes na Facul dade de Educação Física da UNICAMP. No livro, que foi publicado como resultado de um simpósio sobre educação motora (De Marco, 1995), alguns autores, ao invés de falar em educação motora (ex-EF) como ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana, falam em ramo pedagógico da teoria da motricidade huma na, sem justificar, no entanto, o porquê dessa opção por teoria, em vez de ciência. também possuem um ramo pedagógico? Por acaso o ensino da biologia constitui-se no ramo pedagógico da biologia? O que se ensina na biologia é o conhecimento biológico. O que se ensinaria na EF ou educação motora? Seria o conheci mento da Ciência da Motricidade Humana? Essas são ques tões que estão a merecer uma resposta. Continua me parecendo mais importante para nosso campo acadêmico interpretar a EF como prática pedagógi ca. Parlebas (1993) também entende que a EF não é uma ciência e, sim, uma “pedagogia das condutas motrizes”. En tende como objeto específico da EF as “ações motrizes”. Já, Gamboa (1994) situa a EF no âmbito do que chama de “novos campos epistemológicos”, pois, superando a pers pectiva de “ciência aplicada”, tem como característica ser uma ciência da e para a ação educativa ou uma ciência da ação, como a pedagogia. O autor considera que o “eixo da sistematização científica” (p. 37) e o que lhe fornecer especifici dade é o movimento/ação do corpo humano (motricidade). Entendo que as reflexões de Gamboa (1994) significam um avanço para a discussão da área sobre suas questões epistemológicas e isso porque: primeiro, o autor afirma a especificidade da EF no plano pedagógico e, com isso, subli nha a dimensão de intervenção imediata própria de nosso campo; segundo, aponta para novos elementos e a necessi dade da interdisciplinaridade. Mas, algumas questões precisam ser aprofundadas. Por exemplo, sabemos quase nada sobre como realizar a interdisciplinaridade (não dispomos de uma epistemologia interdisciplinar). Como comenta Parlebas (1993, p. 131), “se postula que a adição de conhecimentos que provém de distintos horizontes vão harmonizar-se numa unidade. Tal milagre, porém, não pode produzir-se”. Assim, entendo que o teorizar específico da EF deveria concentrar-se exatamen te na integração das diferentes abordagens, seria um teorizar sintetizador de conhecimento à luz das necessidades especí ficas da prática pedagógica. Vale lembrar que isso ocorre também com a pedagogia. O que complexifica a questão é a possível existência de um saber prático ou corporal que resiste à teorização, como diz Mauro Betti (1994) em instigante artigo. Por outro lado, não é possível ignorar o debate em torno das limitações da racionalidade científica (e sua crise) e da polêmica relação entre o saber fático e o éti- co-normativo, questões re-colocadas pelo pós-modernismo. E preciso considerar os limites da própria racionalidade científica, quanto ao fornecimento dos fundamentos de nos sa prática. Como sabemos, a prática pedagógica envolve sempre uma dimensão ética de caráter normativo, ou seja, se a ciência se atém ao fático, a prática pedagógica opera também no plano do contrafático (do dever-ser). Outra di mensão importante presente no âmbito pedagógico é a di mensão estética. Sem me alongar no assunto, diria que o teorizar na EF precisa ultrapassar as limitações da racionali dade científica, para integrar no seu teorizar/fazer a dimen são do ético e do estético. Assim, o apelo para a cientifização da EF é problemá tico porque a racionalidade científica (tradicional) é limitada em relação às necessidades de fundamentação de sua práti ca - o que indica a superação do modelo tradicional de ra cionalidade científica (por exemplo, com o projeto da razão comunicativa de J. Habermas) - e sofre, ao mesmo tempo, o abalo da nova filosofia da ciência que é relativista no senti do de não reconhecer superioridade na racionalidade cientí fica de frente às outras formas de conhecer a realidade. A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: CONHECIMENTO E ESPECIFICIDADE1 Parece-me que o tema remete a uma questão que tornou-se fator de frustração e, em alguns casos, motivo de pesadelos para o professor de Educação Física (EF): a tão propalada crise de identidade da EF, que em muitos mo mentos foi entendida como resultado da falta de definição do seu “objeto”, da falta de definição clara de sua especifi cidade (identidade no sentido de sua singularidade). Entendo que a temática colocada, em última instância, nos remete a essa questão. Para adentrar ao tema e colocar minha posição desejo fazer, inicialmente, uma demarcação. Quando falo em objeto da EF me refiro ao “saber” específico de que trata essa prática pedagógica. Não estou me referindo, portanto, ao objeto de uma prática científica específica - não coloco, para responder a essa questão, as exigências que são feitas para definir o objeto de uma ciên cia. Essa diferenciação é importante porque entendo que 1 Artigo originalmente publicado na Revista Paulista de Educação Física. Supl.2, 1996, p. 23-8. parte das dificuldades na superação da “crise de identidade” advém do fato de se insistir em ver na EF uma disciplina científica e, mais, como uma disciplina com estatuto episte- mológico próprio. Entendo que a especificidade da EF no campo acadêmico é a de que ela se caracteriza, fundamen talmente, como prática pedagógica2, no que concordamos com Lovisolo (1995). A necessidade e a reivindicação de fundamentar “cientificamente” a EF é que a levou a incor porar as prática cientificas ao seu campo acadêmico (o que é muito diferente de passar a ser uma ciência com estatuto epistemológico próprio). Então, quando nos referimos ao objeto da EF, pensamos num saber específico, numa tarefa peda gógica específica, cuja transmissão/tematização e/ou reali zação seria atribuição desse espaço pedagógico que chama mos EF. As diferentes concepções do objeto da Educação Física Feita essa demarcação, vejamos como se entendeu o “saber” próprio da EF ou a sua especificidade. As expres- sões-chave para tal identificação foram ou são: a) “atividade física”; em alguns casos, “atividades físico-es- portivas e recreativas”; b) “movimento humano” ou “movimento corporal humano”, “motricidade humana” ou, ainda, “movimento humano consciente”; 2 Gamboa (1994) entende que a EF, assim como a pedagogia, estariam situadas no que chama de “novos campos epistemológicos”, cuja característica específica seria exatamente a dimensão da “ação” (que estou chamando de “intervenção"); para esse autor, a EF é uma ciência da e para a ação. c) “cultura corporal”, “cultura corporal de movimento” ou “cultura de movimento”. Pretendo defender, aqui, a tese/idéia de que, para a configuração do saber específico da EF, devemos recorrer ao conceito de cultura corporal de movimento. É importante termos claro que a definição do objeto da EF está relacionada com a função ou com o papel social a ela atribuído e que define, em largos traços, o tipo de conhe cimento buscado para sua fundamentação3. Os termos “ati vidade física”, e “exercícios físicos” são fortemente marca dos pela idéia de que o papel da EF é contribuir para o desenvolvimento da aptidão física e pertencem claramente, no plano do conhecimento, ao arcabouço conceituai das dis ciplinas científicas do âmbito da biologia, das ciências bioló gicas4. A definição clássica de EF, nessa perspectiva, é a que a considera como disciplina que, por meio das atividades físicas, promove a educação integral do ser humano - mas, a conotação, na prática, é a do desenvolvimento físico-mo- tor ou da aptidão física, servindo a “educação integral do ser humano” para satisfazer/caracterizar o discurso pedagógico. A absorção na EF do discurso da aprendizagem motora, do desenvolvimento motor, da psicomotricidade e, mesmo, em certo sentido, da antropologia filosófica, resultou numa mudança de denominação de nosso objeto (embora nem sem- 3 Aqui estamos de frente a uma via de mão dupla: a função atribuída à EF determina o tipo de conhecimento buscado para fundamentá-la e o tipo de conhecimento predominante sobre o corpo/movimento humano determina a função atribuída à EF. No entanto, nem um nem outro são auto-explicativos: eles precisam ser analisa dos integradamente como componentes de um movimento mais geral e complexo da sociedade. 4 Não é necessário aqui resgatar o tipo de educação (física) que é postulado e acontece a partir desse entendimento. Basta lembrar que ela ficou conhecida como uma perspectiva biologicista de EF. pre numa mudança de paradigma ou de concepção). Pas sou-se a privilegiar os termos “movimento humano” (em al guns casos, “motricidade humana”). Destaca-se, a partir dessa perspectiva, a importância do movimento para o desenvolvi mento integral da criança e esse é o papel atribuído à EF. A definição clássica, nesse caso, é a de que a EF é a educação do e pelo movimento. Como exemplo paradig mático temos a abordagem desenvolvimentista de Tani, Manoel, Kokubun & Proença (1988), mas, também, com nuanças, a educação de corpo inteiro, de Freire (1992). A base teórica advém, fundamentalmente, da psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, uma com ênfase no desenvolvimento motor e outra no desenvolvimento cognitivo. Fala-se, nesses casos, em repercussões do movimento sobre a cognição e a afetividade ou o domínio afetivo-social; fala-se dos diversos arranjos e tarefas motoras para garantir o desenvolvimento das habilidades motoras básicas (Tani et alii, 1988), com repercussões sobre os domínios cognitivo e afetivo-social. Mas ambas as propostas não superam a pers pectiva da psicologia, o que, para a questão pedagógica, é problemático, como salienta Silva (1993a), em “Descons- truindo o Construtivismo”. A psicologização da educação implica, necessariamen te, a sua despolitização. Não é suficiente afirmar, a título de defesa - de forma simplista -, que determinada psicologia leva em conta os fatores sociais. O que importa, ao contrá rio, é destacar a existência de um aparato social e político, como é a educação institucionalizada, e as implicações disso (Silva, 1993a, p.5). As duas definições, ou melhor, construções do objeto da EF, tratadas até aqui (biologia/psicologia do desenvolvi mento), permitem ver o objeto não como construção social e 44 C..,,.. '-- .. histórica e, sim, como elemento natural5 e universal, portan to, não histórico, neutro politica e ideologicamente, caracte rísticas que marcam, também, a concepção de ciência onde vão sustentar suas propostas. A outra perspectiva presente é a de que o objeto da EF é a cultura corporal de movimento. É importante salientar que se, em princípio, fala-se neste caso das mesmas ativida des humanas presentes nas concepções anteriores, as ex pressões usadas para denominá-las denunciam, além de uma diferença terminológica, diferenças e conseqüências subs tanciais no plano pedagógico6, pois, o objeto de uma prática pedagógica é uma construção - e não uma dimensão inerte da realidade - para a qual pressupostos teóricos são fundantes e/ou constitutivos. Não é possível dissociar o fenômeno do discurso da teoria que o constrói enquanto objeto (pedagó gico). Nessa perspectiva, o movimentar-se é entendido como forma de comunicação com o mundo que é constituinte e construtora de cultura, mas, também, possibilitada por ela. E uma linguagem, com especificidade, é claro, mas que, enquanto cultura habita o mundo do simbólico7. A naturali zação do objeto da EF, por outro lado, seja alocando-o no plano do biológico ou do psicológico, retira dele o caráter histórico e com isso sua marca social. Ora, o que qualifica o movimento enquanto humano é o sentido/significado do mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que o coloca no plano da cultura. 5 E “naturalmente social”. 6 Como diria Assmann (1993): “não são apenas festejos diferentes de linguagem”. 7 Daí a importância do artigo de Mauro Betti (1994) que remete a novos horizontes do estudo do movimento humano ou das manifestações da cultura corporal de movimento através da semiótica. No entanto, trabalhar na EF com o movimentar-se na perspectiva da cultura (cultura corporal de movimento) não basta para colocá-la no âmbito de uma concepção progres sista de educação, mesmo porque, o conceito de cultura pode ser definido e operacionalizado em termos social e politicamente conservadores. É preciso portanto, articular um conceito de cultura que se coadune com os pressupostos sociofilosóficos da educação crítica. Para Geertz, citado por Thompson (1995, p. 176), “cultura é o padrão de significados incorporados nas for mas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e ob jetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiên cias, concepções e crenças”. Thompson aponta a insuficiência dessa concepção, di zendo que “estas formas simbólicas estão também inseridas em contex tos e processos sócio-históricos específicos dentro dos quais, e por meio dos quais, são produzidas, transmitidas e recebi das. Estes contextos e processos estão estruturados de várias maneiras. Podem estar caracterizados, por exemplo, por rela ções assimétricas de poder, por acesso diferenciado a recur sos e oportunidades e por mecanismos institucionalizados de produção, transmissão e recepção de formas simbólicas (1995, p. 181). Dessa forma, a análise cultural como o estudo de for mas simbólicas deve considerar os “contextos e processos específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas”. Portanto, o movimentar-se e mesmo o corpo humano precisam ser entendidos e estudados como uma complexa estrutura social de sentido e significado, em contextos e processos sócio-históricos específicos. Uma das razões para entendermos nosso objeto valen do-nos do conceito de cultura diz respeito ao fato de que ela é uma categoria-chave para o empreendimento educativo de maneira geral. A relação entre educação e cultura é orgâ nica. Como lembra Forquin (1993), “o que justifica fundamentalmente o empreendimento educativo é a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a expe riência humana considerada como cultura” (p. 13). “A cultura é o conteúdo substancial da educação, sua fonte e sua justificação última” (p. 14). Nas abordagens de EF baseadas no conceito (biológico) de atividade física e no conceito (psicológico) da abordagem desenvolvimentista, o corpo e o movimentar-se humano apre sentam-se desculturalizados8. Duas observações ainda se fazem necessárias quanto à relação cultura-educação: a) “a educação ‘realiza’ a cultura como memória viva, reativação incessante e sempre ameaçada, fio precário e promessa necessária da continuidade humana” (Forquin, 1993, p. 14); b) “Uma teoria cultural da educação, vê a educação, a peda gogia e o currículo como campos de luta e conflito simbólicos, como arenas contestadas na busca da imposi ção de significados e de hegemonia cultural. (Silva, 1993b, p. 122) 8 Desculturalizados não no sentido de que os movimentos, os jogos e as brincadeiras utilizados nessas abordagens não emanem do universo cultural - por exemplo, Freire (1992) e valoriza sobremaneira a cultura infantif- mas, sim, no sentido de que os critérios a partir dos quais são sistematizados e tratados pedagogicamente advêm, exclusivamente, de análises do desenvolvimento infantil, descontextualizadas social e historicamente. A especificidade pedagógica da cultura corporal de movimento Para a construção de uma teoria da EF coloca-se aqui uma questão central: qual é a especificidade pedagógica da cultura corporal de movimento enquanto saber escolar?9 Os saberes tradicionalmente transmitidos pela escola provêm de disciplinas científicas ou então, de forma mais geral, de saberes de caráter teórico-conceitual. Entendo que, diferentemente do saber conceituai, o saber de que trata a EF (e a Educação Artística) encerra uma ambigüidade ou um duplo caráter: a) ser um saber que se traduz num saber- fazer, num realizar “corporal”; b) ser um saber sobre esse realizar corporal10. No caso do entendimento de que o objeto da EF era a atividade física ou o movimento humano, a ambigüidade era resolvida a favor da dimensão “prática” ou do fazer corporal. Esse fazer corporal é que repercutia sobre a “totalidade” (os diferentes domínios do comportamento) do ser humano. Nesse caso, o debate se desenvolveu em torno da polarização: edu cação do ou pelo movimento, ou ambos. Já, trabalhando a partir da idéia da cultura corporal de movimento como objeto da EF, a questão do saber sobre o movimentar-se do homem passa a ser incorporado enquanto saber a ser transmitido (não é apenas instrumento do profes sor). Desenvolveu-se aqui, rapidamente, o “pré-conceito” de 9 Outras questões aderem a esta, como: o que é possível ensinar/aprender quando trato pedagogicamente essa parcela da cultura? Quais são os critérios para selecio nar e sistematizar essa dimensão da cultura? 10 Essa questão está magistralmente tratada no artigo mais instigante de nossa área publicado em 1994. Refiro-me ao artigo de Mauro Betti, publicado na revista Disco rpo: O que a Semiótica Inspira ao Ensino da EF. que o que se estava propondo, nesse caso, era transformar a EF num discurso sobre o movimento, retirando o movimen- tar-se do centro da ação pedagógica em EF. Betti, enfocando essa questão, observa: “Não estou propondo que a EF transforme-se num discurso sobre a cultura corporal de movimento, mas numa ação pe dagógica com ela [grifo nossoj. E evidente que não estou abrindo mão da capacidade de abstração e teorização da lin guagem escrita e falada, o que seria desconsiderar o simbolis mo que caracteriza o homem. Mas a ação pedagógica a que se propõe a EF estará sempre impregnada da corporeidade do sentir e do relacionar-se.” (1995, p. 41) Nos parece que, no fundo, está aqui presente a ambigui dade insuperável que radica-se no nosso estatuto corpóreo. Simultaneamente, somos e temos um corpo. Um desdobramento ou uma vertente dessa ambigüida de refere-se à relação natureza-cultura, que é uma questão que afeta o entendimento geral de ser humano e que se aguça sobremaneira quando falamos de corpo e movimento. É interessante colocar aqui o que Cullen11 chama de encruzilhada quando buscamos situar o lugar do corpo na cultura. Para esse filósofo argentino, o corpo, ou a existên cia corporal do homem, é fonte de certo mal-estar para a cultura, pois seriam marcas do corpo a singularidade, ao passo que a cultura seria o reino do comum, o remeter imediatamente ao desejo e à morte, necessitar de espaço e movimento e depender do meio ambiente. A cultura cir cunscreve o corpo, que parece querer negá-la, ao plano da natureza, impondo-o, assim, um vazio, ou então fá-lo reger- se por uma idéia ou modelo - é o simulacro. Por isso estamos, segundo o autor, numa encruzilhada: culturalizar o corpo e 11 Anotações pessoais da palestra proferida por C. Cullen durante o II Congresso Argentino de Educación Física y Ciência (La Plata, outubro/1995). torná-lo semelhante (reprimindo sua singularidade) ou descul- turalizar o corpo e reduzi-lo à diferença. O corpo naturaliza do ou o corpo culturalizado? Ou, talvez o grande desafio do projeto educativo: como culturalizar sem desnaturalizar? Como isso se expressou na EF? A EF sempre fez um discurso, baseado nas ciências naturais, de controle do cor po, de “construção” de um corpo saudável e produtivo, treinável, capaz de grandes e belos desempenhos motores. Era o corpo “natural” submetido ao entendimento dominan te de nossa corporeidade. Não há aqui espaço para conside rar o corpo “sujeito” de cultura, produtor de cultura, ele ape nas “sofre cultura”. E interessante notar que em alguns casos ainda temos a denominação de órgãos públicos de Secreta ria de Esportes e Cultura; cultura é o que retrata artistica mente o corpo, ou então, aquelas atividades corporais que são realizadas sob o signo da cultura (ballet, por exemplo). Outra postura é aquela que enaltece o sensível (o lúdico), enquanto instância ainda não submetida às regras do mundo racional ou social, que busca e valoriza aquelas experiências que atestam a unidade homem-mundo, uma certa unidade primordial, experiências em que somos corpo e mundo. Uma terceira postura quase que elimina a primeira natureza em favor da segunda natureza, a cultura, privilegiando nesta a racionalidade científica. O movimento instalado na EF brasileira a partir da década de 80, ao menos em uma de suas vertentes (aquela que vai buscar fundamentação pedagógica na pedagogia his tórico-crítica), situa-se na terceira perspectiva descrita, que tem pelo menos um aspecto em comum com a primeira: uma perspectiva racionalista do movimento humano. Ou seja, em vez de controlar o movimento apenas no sentido mecâ- nico-fisiológico, encarando-o agora como fenômeno cul tural, pretende dirigi-lo a partir da “consciência crítica dos determinantes sociopolítico-econômicos que sobre ele recaem”. Ghiraldelli Júnior (1990) detectou essa questão e colo cou frente a frente duas tendências no âmbito da chamada EF progressista: a tendência racionalista e a tendência anti- racionalista. Segundo o autor, as tendências racionalistas buscam uma saída pela janela: “Detectando no movimento, na “prática corporal”, elemen tos não desejáveis, acabam por tomá-los como a própria e ex clusiva essência do movimento e, na sequência, concluem que é preciso que ‘alguma coisa de fora’ venha acrescentar-lhe cri- ticidade, venha libertá-lo, libertando seu praticante. Essa coi sa exterior é o discurso, que pode ter caráter sociológico, an tropológico, político, etc. [...] A aula de EF torna-se uma aula sobre o movimento e não mais uma aula com movimento. Ou então, uma aula com o movimento nas condições da EF ‘tradicional’ agregada ao estudo e discurso crítico.” (p. 197-8) Por outro lado, “as correntes anti-racionalistas captam que o movimento cor poral humano, por não ser algo que passe pela verbalização, pode escapar da razão e, por essa via, se aproximar da intui ção. Afinal, o movimento não é algo que pode ser descrito e explicado (positivismo e afins) nos seus últimos detalhes, mas é algo que pode ser compreendido (historicismo e afins), vivi do, sentido; é algo do plano subjetivo e que esconde que este plano foi construído subjetivamente.” (p. 198)12 Parece-me que aqui a EF é levada a uma encruzilhada ou mesmo um paradoxo: racionalizar algo que, ao ser racio nalizado, se descaracteriza. Ou seja, existiria uma dimensão das experiências/vivências humanas passíveis de serem pro piciadas também pelo movimentar-se (nas mais diferentes formas culturais) que “resiste às palavras”, ou, dito de outra forma, não é possível pedagogizá-las por via da sua descri 12 Ghiraldelli Júnior (1990) entende que ambas as correntes ficam a meio caminho e propõe uma visão alternativa baseada numa leitura dialética materialista. No nosso entendimento, a busca da contradição interna, por via da historicização, acaba se circunscrevendo na própria perspectiva racionalista, não superando, portanto, o impasse identificado pelo autor. ção científica; fogem ao controle, à previsão (da ciência); são, de certa forma, únicas, singulares. Aliás, para Nietzsche, citado por Naffah Neto (1991, p. 23), “Nossas experiências verdadeiramente fundamentais não são, de forma alguma, tagarelas. Elas não saberiam se comunicar, mesmo que quisessem. É que lhes falta a palavra. Aquilo para que encontramos palavras, já ultrapassamos [...] A língua, parece, foi inventada somente para as coisas medíocres, co muns, comunicáveis. Pela linguagem, aquele que fala se vul gariza13.” Como tratar na EF essas experiências? Nos subordinar ao “desfrute lúdico”? Como construir uma prática pedagógi ca que, por definição, é uma intervenção racional/conscien te sobre o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, de maneira a contemplar essas dimensões do movimen- tar-se humano? A questão se complexifica porque sabemos que a edu cação da sensibilidade ou o afeto é tão importante quanto a cognição na definição do comportamento social (político) dos indivíduos. Por isso retomo aqui uma pergunta que formulei em um simpósio de nossa área14: é possível falar em “movi mento crítico”? A criticidade ou a educação crítica em EF somente pode acontecer através de um discurso crítico so bre o movimento? E preciso não incorrer no erro de enten der criticidade, neste caso, apenas como um conceito da esfera da cognição. E preciso alargá-lo abarcando a dimen são estética. Aliás, Carlos R. Brandão, no VIII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (Recife/1987), afirmou que, para ele, crítico só poderia ser o sujeito amoroso, aque le que tem a capacidade de se sensibilizar com o drama do mundo. É preciso, valendo-me de Assmann (1993), ampliar 13 Há, nessa interpretação, uma redução das possibilidades da linguagem, o que é reconhecido por Naffah Neto (1991), que vai, na seqüência discutir, essa questão a partir de Merleau-Ponty, com seu “uso criativo da linguagem”. 14 Precisamente em Goiânia, no ano de 1991. ....52 t ____ o conceito de linguagem a todo tipo de ativações da corporeidade15. Parafraseando Chauí (1994), poderíamos dizer que, na filosofia e nas ciências, falamos de “movimen to e pensamento” (um discurso filosófico e científico sobre o movimento), mas que, na EF, deveríamos falar de movimen- to-pensamento. Por algum tempo pensei e falei (em círculos mais pró ximos) em uma “epistemologia do movimento”. Ao contrá rio das conhecidas taxionomias do domínio psicomotor, tra tava-se, pensava eu, de identificar o tipo de conhecimento da realidade que o movimentar-se humano pode propiciar, que tipo de leitura da realidade essa forma de comunicação com o mundo pode propiciar e quais conhecimentos e leitu ra da realidade determinadas formas culturais do movimen tar-se propiciariam. Estou inclinado a complementar essa proposta com uma “fenomenologia/hermenêutica do movi mento”, uma vez que a expressão epistemologia está exces sivamente comprometida com uma postura racionalista no sentido cognitivista, que não abre espaço para a ampliação do conceito de verdade. Como pergunta Gadamer, citado por Hekman (1990, p. 147): “É correto reservar o conceito de verdade para o conheci mento conceptual? Não devemos também admitir que a obra de arte possui verdade? Veremos que o reconhecimento des tes aspectos coloca não só o fenômeno da arte, mas também o da história [e o do movimento, VB], sob uma nova luz”. 15 Lembro aqui das palavras de Benedito Nunes (1994, p. 403), discorrendo sobre a “poética do pensamento”. Vale a pena ouvi-lo: “A poesia-canto desobjetifica a linguagem, retira-a do âmbito da visão prática, da ação e do intercurso cotidiano, a que serve de instrumento de comunicação, para o da abertura, temporal e histórica. Do mesmo modo que na arte a terra se torna terra, e não é propriamente usada, ao contrário do que sucede com o instrumento material, absorvido em seu próprio emprego, a poesia usa a palavra como palavra, sem gastá-la, librando o seu poder de nomear, de fundar o ser, de desencobri-lo no poema. E o que distingue o poeta do pensador é que a nomeação naquele alcança o que excede à compreen são do ser em torno do qual o último gravita: o sagrado, indizível, estranho ao pensamento”. Assim, uma educação crítica no âmbito da EF tem igual preocupação com a educação estética, com a educa ção da sensibilidade, o que significa dizer, “incorporação”, não por via do discurso e, sim, por via das “práticas corpo rais”16 de normas e valores que orientam gostos, preferên cias, que junto com o entendimento racional, determinam a relação dos indivíduos com o mundo. Sem me alongar na polêmica da crise da razão (iluminista) ou da racionalidade científica, entendo que não se trata de subsumi-la à sensibi lidade, mas, sim, de não pretender absolutizá-la. O desafio parece-me ser: nem movimento sem pensa mento, nem movimento e pensamento, mas, sim, mouimen- topensamento17. 16 Coloquei o termo entre aspas para demonstrar, por um lado, que reconheço a falta de um termo que supere o dualismo inevitavelmente presente na nossa linguagem quando usamos a palavra “corpo", mas, por outro lado, preciso reconhecer, tam bém, que ele é fruto da possibilidade que temos de reconhecer nossa existência corporal. 17 Deixo a cargo dos prezados leitores a interpretação do porquê aglutinei a palavra “pensamento" à palavra “movimento” e não, por exemplo, “sentimento”. Talvez, ambigüamente, intuitiva-racionalmente, esteja me contrapondo às posturas relativistas que postulam uma pluralidade radical da razão, sem hierarquia de qualquer tipo. AS CIÊNCIAS DO ESPORTE: QUE CIÊNCIA É ESSA?1 No ano em que o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE) completou quinze anos de existência fize mos a pergunta: que ciência é essa que fizemos nestes anos todos? Tomar essa questão como tema de congresso pareceu refletir uma necessidade do colegiado e da “área”. Essa orien tação/necessidade estava já presente na temática do VII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE), realizado em Uberlândia, em 1991, e, também, no livro do ano editado pela Sociedade Brasileira para o Desenvolvi mento da Educação Física2. Entendemos que depois de uma certa euforia e “inge nuidade” cientificista dos seus primeiros anos de existência, com conseqüente aversão à reflexão filosófica, a que se se guiu um predomínio ideológico com a sobreposição do polí tico ao acadêmico, o CBCE chegou aos seus quinze anos 1 Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 13(1), 1993. 2 Existem vários indicadores nesse sentido, como os recorrentes reclamos de pesqui sadores da área como Tani (1988) e Carmo (1987) e de órgãos financiadores como o CNPq e a F1NEP. como que possuído pelo desejo de complementar o conheci mento das coisas com o conhecimento de si mesmo - dos pressupostos epistemológicos com que opera. O VIII CONBRACE foi então organizado e estruturado fundamentalmente para servir de palco para uma discussão em torno dos pontos que ao longos destes anos apresenta ram-se como problemáticos para o desenvolvimento científi co da área da EF/CE (Educação Física/Ciências do Esporte). Pretendeu-se dar também um caráter deliberativo a esse congresso, para que a síntese dos debates nele desenvolvi dos, bem como as perspectivas e as ações possíveis para a superação dos problemas, sejam consubstanciadas em docu mento aprovado pelo colegiado em assembléia. Com isso, o CBCE, entidade da sociedade civil, busca a iniciativa e cha ma para si a responsabilidade de orientar o desenvolvimen to científico da área da EF/CE. E importante situar historicamente essa iniciativa e seu significado sociopolítico. Essa iniciativa constrói-se após um período de institucionalização da pesquisa científica na “área”3 (criação e implantação de cursos de pós-graduação, incenti vo à capacitação docente, financiamento e fomento de pes quisa científica), em cujo âmbito as ações governamentais foram sempre as norteadoras e decisivas. Pode-se levantar a hipótese de que isso tenha significado que a pesquisa na área tenha estado fortemente atrelada aos interesses dos sucessivos governos do regime ditatorial vigente, principal mente na década de 70. Ou seja, estamos apontando, com mais essa iniciativa do CBCE, para o aumento da possibili dade de construirmos uma prática científica mais afinada com os interesses democráticos da sociedade brasileira. Isso dependerá, é claro, do grau de legitimidade que alcançar mos com essa ação coletiva. 3 Uso a palavra área entre aspas por entender que um dos problemas é exatamente identificar/explicitar os seus contornos. Mas, a década de 70 parece ter sido realmente decisi va para a área da EF/CE. O Diagnóstico da Educação Físi ca e dos Desportos, realizado pelo MEC em 1969/1970, identificara a falta de pesquisa científica na área. Lembre mos rapidamente, que a ciência (objetiva e neutra) fazia parte do credo e do discurso tecnocrático e era entendida como fundamental instrumento para garantir a eficiência dos programas de ação governamentais nas diferentes áreas (no caso na EF/esportes). Datam dessa década uma série de iniciativas no setor: - envio de grande número de professores para cursar pós- graduação no exterior, principalmente nos EUA; - convênios e intercâmbios com centros de pesquisa no ex terior - por exemplo com a Escola Superior de Colônia, da Alemanha; - criação e implantação de cursos de pós-graduação na área da EF/CE; - implantação de laboratórios de pesquisa, principalmente de fisiologia do esforço e cineantropometria, em alguns centros universitários - por exemplo, na UFRJ e UFRGS. Não se deve esquecer que é nesse âmbito que vão surgir o CELAFISCS e, posteriormente, o próprio CBCE. A partir da reforma univerisitária, através da Lei ng 5.540, de 1968, que estabeleceu as regras para a pós-gra duação, baseadas basicamente no modelo norte-americano, a Educação Física vai almejar/reivindicar o status acadêmi co da pós-graduação. Isto é, as “práticas científicas” passam a fazer parte, de maneira agora mais intensa, da atividade acadêmica dos docentes dos cursos superiores de Educação Física. Ora, já se instalara a relação de simbiose (parasitismo) entre o esporte e a Educação Física, já havia-se consolidado a esportivização da Educação Física, com a instrumentalização desta última pelo primeiro, instrumentalização aprofundada pelos sucessivos planos governamentais da área que coloca vam a Educação Física como base para o desporto nacional. Assim, pesquisa em esporte e em Educação Física podiam- se confundir. Faço essa digressão para a) explicar a razão do uso privilegiado da expressão “Ciências do Esporte”, e b) evidenciar que apesar da pesquisa da época orientar-se, majoritariamente, por uma matriz teórico-científica que ad voga a neutralidade da ciência, o fomento à pesquisa tinha como objetivo garantir a eficiência do sistema esportivo (e da EF a ele atrelado). Neste contexto, a comunidade acadêmica da EF/CE busca legitimidade no âmbito das organizações vinculadas à pesquisa científica. Ela reivindica cursos de pós-graduação, reivindica recursos para financiar pesquisa científica, etc. Mas, é preciso adentrar ao campo científico para solicitar/ exigir esclarecimentos ou respostas a questões do tipo: Ef é ciência, ou devemos falar em Ciências da EF ou do Esporte? Qual é o objeto desta ou destas ciências? E esse objeto o esporte, a atividade física ou o movimento humano? Lem bremos que os órgãos de fomento à pesquisa científica pre cisam e exigem classificá-la para reconhecê-la4. Embora sempre reclamadas, as respostas a essas ques tões nunca apresentaram grande consistência teórica e, por vezes, essas questões foram solenemente ignoradas5, per manecendo a área no plano do que o sociólogo francês P. Bourdieu chama de doxa (no plano do não-discutido). 4 Junto ao CNPq nossa classificação ss dá a partir do nome Educação Física e no âmbito das Ciências da Vida - Coordenação de Saúde. Na SBPC se dá com o nome de Motricidade Humana/Esportes e como Ciência Aplicada. 5 Isso me faz lembrar a observação de M. Sérgio (1988, p. 6): “A Educação Física nunca precisou autolegitimar-se epistemologicamente, ou seja, de encontrar em si as formas e razões de sua própria cientificidade, precisamente porque o poder sempre se serviu dela e nunca a serviu como instrumento insubstituível de conheci mento e transformação". Mas, antes de apontar mais precisamente os proble mas que consideramos sejam os que mais obstaculizam o desenvolvimento científico da área, gostaríamos de rever ra pidamente o conhecimento do conhecimento produzido. 0 conhecimento do conhecimento Entendo que uma das possibilidades de fazer a avalia ção da ciência que fizemos nestas últimas três décadas é recuperar as análises e os estudos já realizados sobre a pro dução do conhecimento em nossa área. Essas análises ou o conhecimento do conhecimento produzido é, a nosso ver, denunciador do próprio estágio de desenvolvimento científi co da área no seu percurso histórico, ou seja, no próprio autoconhecimento é possível identificar as limitações cientí ficas da área. E possível caracterizar pelo menos dois momentos dis tintos nos estudos sobre a produção do conhecimento na área. Num primeiro grupo pode ser alocada uma série de trabalhos produzidos na década de 80, como os de Matsudo (1983), Canfield (1988), Tubino (1984) e Faria Jr. (1987). Nesses estudos encontramos basicamente uma descrição e/ ou identificação das “subáreas” onde mais se concentrava a pesquisa, como também suas tendências de crescimento. Ou seja, os estudos consistiam em dividir a “área” em “subáreas” e verificar o percentual de pesquisas realizadas (apresentadas/publicadas) em cada uma dessas. A pergunta “Que ciência é essa?”, era na verdade traduzida nas perguntas “Em quais subáreas mais se pesqui sa?” Qual é a tendência em termos de crescimento da pes quisa nas diferentes subáreas?” Esses estudos constataram então que havia um predo mínio das “subáreas” da medicina esportiva, da fisiologia e da cineantropometria, enfim, uma forte influência das ciên cias naturais, mas que, principalmente a partir de 1980, podia-se verificar um crescimento das “subáreas” pedagógi ca e sociocultural, essas sob a influência das ciências sociais e humanas. A discussão propriamente epistemológica esta va na verdade ausente, mas o crescimento da influência das ciências sociais e humanas vai fazer aflorar esse debate ne cessário6. Um segundo momento do conhecimento do conheci mento marca o início da discussão propriamente epistemo lógica. No início dos anos 90 aparecem os estudos que bus cam não mais identificar em quais “subáreas” mais se pes quisa, mas, sim, quais são as “matrizes teóricas”, ou seja, as concepções de ciência, que orientam as pesquisas na área. O estudo central nesse caso é a dissertação de mestrado da professora Rossana Valéria S. e Silva (1990), que analisou as teses de mestrado produzidas na década de 80. Faria Jr. (1991), também baseado em Gamboa (1989), amplia seu estudo original (Faria Jr., 1987), incorporando a discussão epistemológica. Mas, recentemente, Gaya (1993) publicou estudo que situa-se também nessa perspectiva de análise. Que ciência é essa? Como se apresentava/apresenta a produção científica quando interrogada sua matriz teórica? Os resultados encontrados “denunciam” que a produ ção do conhecimento na área baseia-se numa concepção positivista (Souza e Silva, 1990) ou empírico-analítica (Faria Jr., 1991 e Gaya, 1993) de ciência, identificando uma ten dência (embora tímida) de crescimento das pesquisas funda 6 Mesmo porque muito do que se apresentava como científico nas subáreas pedagó gica e sociocultural não era assim reconhecido pelo segmento orientado nas ciên cias naturais. mentadas na fenomenologia e no materialismo histórico dialético, aliás, tendência encontrada também por Gamboa (1989) no âmbito da educação, o que nos leva a suspeitar de uma forte influência do pensamento pedagógico na Educa ção Física. Lembrando rapidamente: Souza e Silva (1990) chegou à conclusão, em seu estudo “que o entendimento dominante de ciência nas pesquisas está atrelado aos princípios da quantificação e matematização dos fenômenos, da análise e descrição dos mesmos segundo parâmetros estatísticos, da descontextualização e isolamento dos fenômenos ou fatos para sua experimentação e neutrali dade dos pesquisador, entre outras características que apon tam para uma visão de ciência voltada para a vertente posi tivista”. (p. 154) Ao mesmo tempo propunha-se a adoção do materia lismo histórico dialético ou a abordagem crítico-dialética (como na pedagogia), como o caminho para a superação dos reducionismos e equívocos da pesquisa da área. Eu mesmo (Bracht, 1991) procurei avaliar a produção do conhecimento sobre o esporte com um referencial basea do na distinção habermasiana dos interesses norteadores do conhecimento, ressaltando que, no caso dos estudos enfocando o esporte no Brasil, o interesse norteador é basicamente o interesse técnico - o que explica a predominante adoção da matriz empírico-analítica - e, em bem menor grau, os inte resses prático e emancipatório. A virtude desses estudos foi questionar os critérios de cientificidade até então legítimos na área, preparando o ca minho para uma possível superação do senso comum cientí fico predominante. E importante salientar que a incorporação dessa dis cussão, no âmbito da EF/CE, foi propiciada pelo amplo e radical debate que instalou-se no início da década de 80 e que consubstanciou-se na chamada “crise” (Medina, 1983) da EF. Esse “movimento” teve conseqüências fundamentais na história e construção do próprio CBCE, que a exigüidade do espaço impede desenvolver aqui7. A questão da identidade epistemoiógica da área Além dos estudos que descreviam a incidência das pes quisas nas diferentes subáreas, apontando suas tendências, e daqueles que buscavam identificar as matrizes teóricas com as quais se operava na área, alguns autores preocuparam-se com o que poderíamos chamar de estatuto ou identidade epistemoiógica da área da EF/CE. Destaco neste caso os estudos do filósofo português Manoel Sérgio, com sua tese da Ciência da Motricidade Humana (Sérgio, 1988), de Go Tani (1988), de Apolônio A. do Carmo (1987), de Silvino Santin (1992) e, mais recentemente, de Hugo Lovisolo (1993 e 1995)8. A esses estudos gostaria de acrescentar minha modesta contribuição, tomando como interlocutores princi palmente os trabalhos de Tani et al.(1988) e Lovisolo (1993). Antes, porém, gostaria de ressaltar que os problemas no âmbito da produção e veiculação do conhecimento na área da EF/CE não se restringem à questão da identidade epistemoiógica. Além desse aspecto, mas também a ele vin culado, o Departamento Científico do CBCE tem identifica do outros, como o baixo grau de significação do conheci mento produzido no sentido de dar resposta aos problemas colocados pela prática a socialização restrita do conhecimen- 7 Remeto o leitor a esse respeito ã obra de Paiva (1994). 8 Observe-se que estou me atendo aos estudos no âmbito da lingua portuguesa, não ignorando os estudos a respeito no âmbito dos países de línguas inglesa, francesa, espanhola e alemã. Além dos citados anteriormente, outros dois autores da área desenvolveram estudos recentes. São eles Adroaldo Gaya e Vítor M. de Oliveira. to produzido decorrente da falta de publicações periódicas a falta de rigor científico do que é produzido e publicado e a excessiva proliferação de eventos em detrimento das publi cações. Atenho-me, assim, um pouco mais às questões da iden tidade ou estatuto epistemológico (estatuto científico) da EF/ CE. Parece-me claro o quanto essa questão é também fun damental para os aspectos listados anteriormente, ou seja, para a estruturação dos cursos de pós-graduação, para os esforços de publicação, para a pesquisa e para a própria discussão curricular. Um dos pontos sempre levantados para a construção da identidade epistemoiógica é a necessidade de esclarecer o objeto9 da EF/CE. 0 debate em tomo do “objeto” da Educação Física Nem sempre, no entanto, na busca do objeto da EF (deixo de lado, por um instante, a expressão Ciências do Esporte), teve-se claro que ela é antes de tudo uma prática pedagógica, portanto uma prática de intervenção imedia ta10. Tani (1988) busca clareza nesse sentido, a partir da distinção entre a EF enquanto profissão e enquanto discipli na acadêmica. 9 “Uma disciplina acadêmica se caracteriza pela existência de um objeto de estudo, de uma metodologia de estudo e de um paradigma próprios” (Tani, 1988, p. 388). 10 Lovisolo (1993, p. 39) de certa forma comunga desta idéia. Ele entende o “educa dor físico” como uma espécie de brícoleur “que a partir de fragmentos de antigos objetos, guardados no porão, constrói um objeto novo no qual as marcas dos antigos não desaparecem". Assim, o educador físico articula os diferentes conhecimentos sobre as práticas corporais com vistas a uma intervenção social. Essa distinção é fundamental para a discussão epistemo lógica, como procurarei demonstrar a seguir. Quando per guntamos pelo objeto da EF, estamos perguntando por um “objeto” de uma prática de intervenção imediata que tem seu “sentido não na compreensão, mas no aperfeiçoamento da praxis” (Schmied-Kowarzik, 1983, p. 23), ou por um “objeto científico”? Tani (1988) reclama do fato de que sempre se privile giou o entendimento da EF enquanto profissão negligencian- do-se o entendimento enquanto disciplina acadêmica, suge rindo algum tipo de antagonismo. Entendemos que não há antagonismo, mas, reconhecer a EF primeiro enquanto prá tica pedagógica é fundamental para o reconhecimento do tipo de conhecimento, de saber necessário para orientá-la e para o reconhecimento do tipo de relação possível/desejável entre a Educação Física e o “saber científico”, ou as discipli nas científicas11. Entendemos que enquanto área de estudo da realidade com vistas ao aperfeiçoamento da prática pedagógica, a EF precisa construir seu objeto a partir da intenção pedagógica. Essa é que deve nortear a construção da problemática teóri ca que vai orientar o estudo do seu objeto. Mas, por que falar em “construção do objeto”? Ele já não está dado na realidade? Como reconhecido por muitos autores o objeto da EF situa-se no plano do movimento humano (Tani, 1988, Santin, 1992)12. Mas esse reconhecimento está longe de solucionar 11 Confundir os dois papéis, o do cientista e o do bricoleur ou “interventor", é o primeiro e freqüente mal-entendido que encontramos entre os educadores físicos" (Lovisolo, 1993, p. 40). 12 Lovisolo (1993) entende que “o campo dos fenômenos que ocupa a EF é o das atividades corporais num sentido amplo” (p. 37). Nós temos denominado esse cam po como o da cultura corporal (Coletivo de Autores, 1992, Bracht, 1992). o problema de demarcação ou construção de um objeto cien tífico. Parece-me que Tani (1988), de certa forma, é refém de uma postura empirista que busca delimitar o objeto a partir de um recorte da realidade empírica. Bourdieu et al. (1993), tratando dessa questão, citam Saussure: “o ponto de vista cria o objeto” (p. 51). Isto é, uma ciência não poder definir-se por um setor do real que lhe corresponder. Conti nuam os autores, citando então Marx: “a totalidade concre ta, como totalidade do pensamento é, de fato, um produto do pensamento na concepção” (idem, p. 51). Laplantine (1991) segue essa linha de raciocínio ao afirmar que “uma disciplina científica (ou que pretende sê-lo) não deva ser caracterizada por objetos empíricos já constituídos, mas, pelo contrário, pela constituição de objetos formais. Ou seja, a única coisa possível, a nosso ver, de definir uma disciplina (qualquer que seja), não é de forma alguma um campo de in vestigação dado (a tecnologia, o parentesco, a arte, a religião ... o esporte - V.B.), muito menos uma área geográfica ou um período da história, e sim a especificidade da abordagem utili zada que transforma esse campo, essa área, esse período em objeto científico”, (p. 96) Voltemos para Bourdieu et al. (1993). Os autores en tendem que Max Weber formulou um princípio epistemológico que é instrumento de ruptura com o realismo ingênuo. Eles o citam: “Não são as relações reais entre ‘coisas’ o que constitui o princípio de delimitação dos diferentes campos científicos, e sim, as relações conceituais entre problemas. Somente assim, onde se aplica um método novo a novos problemas e onde, portanto, se descobrem novas perspectivas nasce uma ‘ciên cia nova’.” (p. 51). Assim, a investigação científica se organiza de fato em torno de objetos construídos que não têm nada em comum com aquelas unidades delimitadas pela percepção ingênua ou imediata. Ora, não temos no âmbito da EF/CE uma construção única ou unívoca do objeto (científico) denominado de movi mento humano. Ou seja, na biomecânica, na aprendizagem motora, na sociologia do esporte, na fisiologia do esforço, etc., o movimento humano enquanto objeto científico não é o mesmo. Então não temos um objeto científico. Isso modi fica a percepção do problema que se tem colocado como o da fragmentação do conhecimento em torno do movimento humano. Isso explica por que as chamadas Ciências do Es porte cada vez menos mantêm diálogo entre si (mesmo ten do como “objeto” o movimento humano ou o esporte) e tendem ou a criar organizações específicas (na verdade, fóruns específicos de discussão; por exemplo a Sociedade Brasilei ra de Biomecânica), ou a buscarem o abrigo das disciplinas- mãe (psicologia, fisiologia, sociologia, etc.), onde a identida de epistemológica é determinada pela disciplina-mãe e não pela especialidade, ou seja, sociologia do esporte ou fisiolo gia do esforço não é Ciência do Esporte e sim ciência socio lógica ou fisiológica. Breves olhares sobre o caso da Pedagogia Talvez seja produtivo lançar um olhar sobre a pedago gia ou as “ciências da educação”, onde problemas seme lhantes podem ser encontrados. Vejamos o que diz o professor M. O. Marques (1990): “buscamos [...] justificar as pretensões de uma Pedagogia, ao mesmo tempo como ciência e como a ciência do coletivo dos educadores, em oposição tanto à separação entre o pensar/ decidir e o fazer [...], quanto às incursões atomizadoras das chamadas ciências da educação, que operam com conceitos gerados em outros contextos a respeito de outros temas. Os esforços das interdisciplinaridades não conseguem, a nosso ver, recuperar a unidade teórica necessária, a não ser que nas distintas regionalidades do saber, como é a educação, haja uma ciência articuladora do eixo interno dos saberes e práti cas, a partir do qual possa a reflexão inserir-se dinamicamente no universo teórico mais amplo do saber, das ciências e da filosofia”, (p. 10) O que é reivindicado aqui, e gostaria de analogamente estendê-lo à Educação Física, é a construção de uma disci- plina-síntese (no caso ainda adjetiuada de científica) ou articuladora que pudesse fornecer o saber necessário - ou que pudesse construir esse saber - para orientar a prática dos educadores. Uma ciência da e para a prática, como diria Schmied-Kowarzik (1983). Outro pensador da educação que tem tratado da especificidade da pedagogia enquanto ciência é L. C. de Freitas (1995). Ele introduz o problema citando Ribes (1982), para quem “a identidade de uma disciplina configura-se, em primeiro lu gar, a partir de sua especificidade epistemológica como modo de conhecimento científico [...]. A identidade da psicologia educacional não pode ser encontrada como uma ciência da educação, mas sim, como ciência psicológica” (p. 84-5). Para Ribes (1982) apud Freitas (1995, p. 27), “se uma disciplina não possui campo epistemológico próprio - como no caso da pedagogia - o que a define é a sua responsabili dade social13, ou seja, sua vinculação com a solução de pro blemas concretos sob o marco de uma instituição social”. E conclui Freitas (1995): “A pedagogia [a Educação Física - V.B., portanto, opera em um nível qualitativo diferente daquele das ciências individuais que lhe dão suporte epistemológico tais como a psicologia, a sociologia e outras. Este nível qualitativamente diferente está 13 Lovisolo (1993), traçando um paralelo entre a EF e a medicina, tem um entendi mento muito próximo ao de Ribes (1982). expresso na própria elaboração da teoria educacional e peda gógica, em relação dialética com a prática educacional multifacetada. Este é o papel de uma ciência pedagógica”, (p. 87) A Educação Física e a cientificidade Mas, se reivindicamos para a EF (e a pedagogia) o estatuto de uma ciência especial (da e para a prática), o que estamos reivindicando? Tornar a EF uma tal ciência significa institucionalizar no seu âmbito as ditas práticas científicas e trabalhar com as categorias epistemológicas da “ciência”? Precisaríamos aclarar se a EF operaria a partir dos princípios epistemológicos das ciências naturais14 ou das ciências so ciais e humanas15? Se formos operar a partir dos princípios da “ciência clássica” poderíamos introduzir reducionismos no estudo do movimento humano que precisariam ser evitados. Ou seja, o teorizar em EF precisa ultrapassar o próprio teorizar científico. A teorização permitida ou realizada com as cate gorias epistêmicas da ciência tradicional não atende às ne cessidades da EF que tem no objeto “movimento humano” e na intenção pedagógica suas características definidoras. Pre cisaríamos teorizar de forma a contemplar o biológico, o psicológico e o social, mas também o ético e o estético, numa perspectiva de globalidade - portanto numa nova cons trução de nosso objeto. Ora, o ético e o estético, como sabe mos, sempre foram alijados do âmbito da “ciência” e reme tidos ao decisionismo subjetivista ou a uma disciplina especí fica da filosofia e/ou para as expressões artísticas. Ao colo 14 É o que faz ver Santin (1992) com ceticismo e como problemática a reivindicação da EF por cientificidade. 15 Estou partindo do dualismo epistemológico que é negado, por exemplo, pelo positivismo e pelo racionalismo crítico popperiano. car a questão ético-normativa16 como necessariamente pre sente na teorização em EF coloca-se (na pretensão de cientificidade desse teorizar) a questão da separação clássica entre o saber fático e o saber ético-normativo - e estamos então no difícil terreno do debate em torno da dimensão ético-política da produção do conhecimento e da prática pedagógica em Educação Física. Para que a EF se desse por satisfeita com o conheci mento científico precisamos ampliar o significado da ciên cia, ou fazê-la operar, como querem K. O. Apel e J. Habermas, com um novo conceito de razão, a razão comuni cativa, que engloba a razão teórica, a razão prática e a dimensão da subjetividade. Entendo que há a necessidade de voltar a produção do conhecimento nas faculdades, institutos, departamentos e centros de EF (e Desportos) para as necessidades da prática pedagógica em EF, ou seja, superar a fragmentação a partir das necessidades da prática, que são globais. As Ciências do Esporte: fragmentação versus unidade Quanto às Ciências do Esporte ou Ciências do Movi mento Humano parece-me inevitável neste momento usar o plural. A tendência parece ser ainda a da fragmentação. Não me parece ter sido construída na área urna problemáti ca teórica que possa agrupar/reunir os esforços das discipli- 16 Lovisolo (1993) parece ter captado esse problema com clareza ao dizer que “os valores não são nem verdades científicas nem questão de mero gosto individual” (p. 31) e enfatiza que “a velha solução de dialogar sobre os valores continua sendo um caminho transitável se acreditarmos na razoabilidade do homem” (p. 32). A esse respeito gostaria de remeter o leitor ainda ao interessante texto de Klafki (1992) que discute os limites do conhecimento produzido pelas “ciências da educação" no estabelecimento dos objetivos educacionais. nas que se ocupam cientificamente do esporte ou do movi mento humano. Elas continuam operando, cada uma, com seu referencial teórico-metodológico, com problematizações próprias/específicas, que são, como denuncia Sobral (1992) as das disciplinas-mãe. E comum ouvir que o esporte ou o movimento humano são tão complexos que exigem um tratamento interdiscplinar ou “crossdisciplinar”. Ora, isso é permanecer no âmbito de uma visão empirista. O movimento humano ou o esporte não exigem por si só tratamento interdisciplinar, nós é que podemos problematizá-lo de modo a exigir tratamento interdisciplinar17, e isso está na dependência dos interesses norteadores do conhecimento. Então, as dificuldades no sentido da (re)unificação ou síntese do conhecimento, que hoje se assemelha às ofertas de um supermercado, são inúmeras. Talvez um caminho seja interrogarmo-nos sobre a legitimidade do pesquisar em “Ciências do Esporte”. Tradicionalmente essa legitimidade advinha do objetivo de (a) fornecer conhecimento para a prática pedagógica em EF, (b) fornecer conhecimento útil para os órgãos públicos, para a indústria, etc. e (c) fornecer conhecimento para o crescimento e desenvolvimento do pró prio sistema esportivo. Não se deve esquecer de que há aqueles que defendem a pesquisa em Ciências do Esporte a partir do simples objetivo de conhecer (desinteressadamen te) essa dimensão da realidade. A pergunta que fica é se essas legitimações são suficien tes e/ou ainda podem ser sustentadas e se elas podem ori ginar uma problemática teórica unificadora. 17 Como lembram Bourdieu et al. (1993), “não há que se esquecer que o real não tem a iniciativa, posto que só pode responder o que se lhe pergunta. Bachelard susten tava, em outros termos que o ‘vetor epistemológico [...] vai do racional para o real e não o inverso’.” (p. 55). Considerações finais Procurei demonstrar que estamos de frente a grandes desafios, que, aliás, somente serão vencidos com um enor me esforço coletivo. Por falar em coletivo, entendo que o CBCE, organiza- cionalmente, pode trilhar basicamente dois caminhos: a) apos tar numa possível unidade do conhecimento produzido na área, ou b) se curvar de frente à “fragmentação” (uma das tendências nesse sentido é a criação de comitês de, por exemplo, sociologia, de fisiologia, etc.) e correr o risco de, em breve, ser palco de uma “diálogo de surdos”. Por outro lado, para outro tipo de pluralidade o CBCE precisa dar solução adequada. Refiro-me à diversidade de entendimento do que é e por que fazer ciência: o chamado pluralismo científico. Esse, como lembra Martins (1993, p. 105), “reflete o problema de que o caráter, o estatuto, o conceito e os limites da própria ciência são controvertidos e de que o conflito entre concepções de ciência, com suas pretensões divergentes de verdade e relevância, não exclui (nem méto dos, nem teorias, nem o cânon das disciplinas, nem ainda os critérios de suas avaliação)”. E preciso não incorrer no equívoco de reduzir a multipli cidade, “nem a uma unidade inconstante, imune à contro vérsia, dotada de critérios unívocos de cientificidade, nem a uma mera diversidade, supostamente neutra”, pois, “o con ceito de pluralismo científico abrange uma diversidade anta gônica e não neutra” (Martins, 1993, p. 105). Para que não se busque uma solução simplista e negativa como a de ex cluir o antagônico, parece-nos só existir o lábil caminho da democracia interna; a humildade democrática de não pos -----í 73 "v suir a verdade acabada e absoluta e ao mesmo tempo reco nhecer e fazer valer os melhores argumentos. Unir a vigilân cia epistemológica à vigilância democrática. Retomando o início de nossa intervenção relembro que o CBCE, a comunidade reunida sob essa entidade, está cha mando para si a responsabilidade de orientar a prática cien tífica na área, o que, como procurei colocar brevemente, nos coloca de frente a desafios de várias naturezas. Mas, gostaria de lembrar que o metadesafio continua a ser, a meu ver, colocar mais essa prática a serviço da humanização do homem. AS CIÊNCIAS DO ESPORTE NO BRASIL: " AVALIAÇÃO CRÍTICA1 “O saber não é um lugar, é antes uma porta que abrimos, sem saber ao certo ou previamente para onde vamos." (Fichtner, 1993) Partindo de uma avaliação da produção do conheci mento nas Ciências do Esporte, buscamos mapear os princi pais problemas desta “área do conhecimento”, para então problematizar em torno da legitimidade, do sentido das Ciên cias do Esporte, em torno das exigências e possibilidades (ou não) da interdisciplinaridade, e, brevemente, situar e discutir as Ciências do Esporte no âmbito do debate a respeito da crise da razão científica. Esperamos com esta abordagem ter êxito quanto ao levantar de questões que nos auxiliem no processo de autoconhecimento, fundamental para o desenvolvimento de uma área do conhecimento. 1 Artigo originalmente publicado na coletânea organizada por Goeltner, S., Ferreira Neto, A., Bracht, V. As ciências do esporte no Brasil. Campinas : Autores Associa dos, 1995. ...— A opção por esta abordagem deveu-se ao nosso enten dimento de que se faz necessário realizar uma crítica radical das Ciências do Esporte enquanto empreendimento científi co, enquanto projeto que se coloca no plano de determinada racionalidade, para chegarmos (expormos) à base, aos fun damentos, aos modelos (entendido num certo sentido como paradigmas) que determinam nosso pensar, nosso teorizar. Como se caracterizam as práticas científicas no âmbito das Ciências do Esporte? “Nunca houve tantos cientistas-filósofos como atualmente [...]. Depois da euforia cientista do séc. XIX e da conseqüente aver são à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, chegamos a finais do séc. XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coi sas com o conhecimento do conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios”. (B. S. Santos, 1988) Não serei propriamente original na tentativa de res posta a esta questão. Vou valer-me aqui de alguns estudos recentes que considero fundamentais para conhecer critica mente o que vem sendo as Ciências do Esporte no âmbito dos países de língua portuguesa, ou, mais especificamente, no Brasil e em Portugal. Refiro-me à dissertação de mestrado de Rossana V. e Souza e Silva (1990), à tese de doutorado de Adroaldo Gaya (1994), à dissertação de mestrado de Fernanda Paiva (1994) e aos estudos de Francisco Sobral (1992). Assim, neste ponto, procurarei apresentar as princi pais conclusões desses estudos e dialogar criticamente com eles, perspectiva de construir um ponto de partida para as problematizações anunciadas. Claro, logo de início somos confrontados com uma ques tão terminológica. Embora as definições de termos coloquem uma questão de vocabulário e, por conseguinte, de conve- "76 “ niência (que não podem ser submetidas ao critério de verda de/falsidade, como lembra Japiassu, 1976), elas podem nos colocar algumas armadilhas e nos levar, no plano conceituai, a equívocos. Não raras vezes, é bom que se diga, o caos terminológico evidencia já dificuldades de ordem teórico- conceituais. Refiro-me à necessidade de definição do âmbito, do objeto a ser focalizado: as chamadas “Ciências do Esporte”. E possível distingui-las das “ciências da Educação Física”? ou das ciências ou “Ciência do Movimento Humano (ou da Motricidade Humana)? ou, ainda, das “ciências da atividade física”2? Referindo-se a esse problema, Sobral (1992), observa, por exemplo, que os “adeptos da Pedagogia do Desporto são ‘tão flexíveis’ ao ponto de publicarem a mesma obra, num país, com o título de didá tica das atividades físicas, em outro, Pedagogia da Educação Física, em outro ainda, Pedagogia do Desporto. E tudo isto sem alterarem uma linha do texto original.” (p.58) Ora, os estudos que buscam analisar a produção do conhecimento nessa “área” se deparam com esse problema; alguns simplesmente o ignoram (Matsudo 1983, Tubino, 1984), outros a tomaram como “área” indiferenciada, inde pendentemente de sua denominação, enquanto que alguns estudos mais cuidadosos problematizaram exatamente essa questão, embora sem chegar a uma sugestão mais consis tente. Tanto Paiva (1994), quanto Gaya (1994) e Sobral (1992) identificam esse problema. Sobral (1992) e Gaya (1994) advogam a necessidade de diferenciar claramente os campos da Educação Física e das Ciências (ou Ciência, como propõe Gaya) do Esporte; enquanto que Paiva (1994) colo 2 Quase que exclusivamente artigos de fisiologia do exercício. S 77-N cando das dificuldades concretas de diferenciação, opta por usar a expressão “Educação Física/Ciências do Esporte (EF/ CE)”, como, aliás, tornou-se hábito no interior do próprio Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, afirmando que essa “ambigüidade” acompanha o processo de construção desse campo, no sentido de Bourdieu. Parece-me claro que, hoje, não é possível diferenciar a identidade epistemológica de uma e de outra, nem sequer uma identidade própria. Daí, também, alguns autores pro porem, como solução, uma “nova ciência”: a do movimento humano ou a da motricidade humana3, ou, ainda, como foi o caso da Alemanha, a Ciência (no singular) do Esporte. Isso significaria concretizar uma identidade epistemológica nova e própria. Portanto, estaremos aqui fazendo uma análise da pro dução científica da “área” que envolve as “Ciências do Es porte” e a “Educação Física”, pela impossibilidade de dife- renciá-las concretamente. A quais conclusões básicas chegaram os estudos que avaliaram nossa produção científica (no âmbito da EF/CE)? É importante destacar que os primeiros estudos nesse sentido preocuparam-se mais com a identificação de em quais subáreas mais se pesquisava, estudos esses, com ca racterísticas mais descritivas, por exemplo, Matsudo (1983), Canfield (1988), Tubino (1984) e Faria Jr (1987). Os estu dos com preocupações mais acentuadamente epistemológicas são mais recentes. Poderíamos dizer, como já identificado por Paiva (1994) para o caso do CBCE, que essa discussão ganha espaço no final dos anos 80 e início dos 90. 3 Neste caso, ao menos é a proposta de M. Sérgio, a Educação Fisica seria “o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana”. ■o^78 — — Um dos primeiros estudos foi o de Rossana V. Souza e Silva (1990), que analisou as dissertações de mestrado dos cursos existentes no Brasil. Nesse estudo, Souza e Silva (1990) buscou identificar as matrizes teóricas que orientavam essas pesquisas, concluindo que a concepção de ciência ampla mente predominante é a de cariz positivista (empírico-analí tica), com tímido crescimento, nos últimos anos da década de 80, de pesquisas orientadas na fenomenologia herme nêutica e no materialismo histórico dialético. Essa conclusão não é negada pelos estudos subsequentes (Gaya, Sobral e Paiva). De certa forma, ou de forma indire ta, eles a reforçam. No entanto, outras foram acrescenta das. A. Gaya (1994) chegou às seguintes conclusões bási cas ao analisar um amplo conjunto de pesquisas (teses, dissertações, artigos em periódicos), tanto brasileiras quanto portuguesas: 1. as investigações respondem predominantemente a ques tões das disciplinas de origem; 2. a própria delimitação das variáveis independentes de in vestigação, se bem que normalmente referenciadas ao des porto, encontram-se distanciadas das práticas desportivas concretas; 3. os conhecimentos produzidos são, em grande parte, parcia lizados, fragmentados e desarticulados; 4. predominam as concepções empiristas e objetivistas; 5. há uma forte tendência para o aumento de investigações com abordagem metodológica especulativa; 6. desenvolve-se pesquisas com interesses em temas de ou tras áreas específicas; 7. os conteúdos não têm qualquer preocupação inicial com referenciais teóricos orientadores (definem-se variáveis, coletam-se dados, aplicam-se técnicas estatísticas, apre- sentam-se os resultados e publicam-se os trabalhos); 8. os conteúdos não tem o adequado cuidado com o conjun to de regras lógicas, o que determina falta de coerência, consistência e originalidade em muitos dos trabalhos pu blicados; 9. há uma evidente dificuldade de interações entre as di versas disciplinas que co-habitam o seu espaço (multidis- ciplinar); 10. nas ciências do desporto configura-se uma produção in telectual com pressupostos epistemológicos e metodoló gicos dicotômicos; como mostram nossas análises, de modo geral as investigações apresentam um caráter empi- rista e objetivista, ou assumem delineamentos discursivos e subjetivistas. Analisando os problemas da investigação científica em ciências do desporto, Sobral (1992) levanta três teses: a) as ciências do desporto procuram compensar, através de um formalismo exacerbado, tomado de empréstimo a ou tros campos da iniciativa científica, as suas limitações pró prias no domínio da Problematização (sofrem de um feu dalismo epistemológico das ciências suseranas; falta auto nomia científica às ciências do desporto); b) as ciências do desporto têm-se imposto mais como uma operação estratégica de alguns quadros acadêmicos oriun dos da EF, em busca de influência num mercado apetecí vel, como é o desporto de rendimento, do que pelo trata mento sério dos problemas que emergem dos domínios do treino e da competição. c) como conseqüência, a investigação em ciências do des porto apresenta uma configuração heterogênea, sem um paradigma nítido, realçando a acumulação de fatos em prejuízo da construção da teoria. Paiva (1994), analisando a história do Colégio Brasilei ro de Ciências do Esporte e os trabalhos publicados no seu periódico, identificou três fases diferenciáveis quanto ao en tendimento de ciência: 1978-1985, 1985-1989 e 1989- 1993. De 1978 a 1985: - a ciência e a prática científica são neutras e “possuem” a verdade; fazer ciência é medir e comparar dados; - as ciências do desporto são as diversas ciências instru mentalizando a “melhor” forma de fazer atividade física e praticar esportes. De 1985 a 1989: - A ciência e a prática científica são instâncias ideológicas e devem trabalhar para a “transformação social”. Fazer ciência é analisar um dado fenômeno de forma a possibili tar uma interferência nele, visando a conservá-lo ou transformá-lo; - as ciências do desporto são a Educação Física transforma da em ciência, tenha ela o predicativo “do movimento”, “da motricidade humana”, “do esporte” (no singular) ou “da EF”. De 1989 a 1993: - a ciência deve discutir na sua dimensão epistemoiógica e a sua dimensão ideológica; fazer ciência é analisar e teorizar dado fenômeno buscando instrumentalizar uma possível e necessária intervenção no real; - as ciências do desporto são a assunção valorativa de que é possível e necessário tratar do ponto de vista científico fenômenos referentes á prática pedagógica, á prática de atividades esportivas, ao esporte, ao lazer, ao movimento, ao corpo, etc. Fica claro no estudo de Paiva (1994) que a comunida de científica do CBCE, mais recentemente, passa a diferen ciar os fenômenos da Educação Física (entendida como uma disciplina curricular que tematiza a cultura corporal ou física) e os do esporte (uma prática corporal específica que é tematizada na EF). Num esforço de síntese, podemos resumir os resulta dos desses estudos em alguns pontos básicos: a) a investigação no âmbito das Ciências do Esporte se a- presenta extremamente heterogênea, tanto no que diz res peito à matriz teórica, quanto à orientação teórico- metodológica disciplinar, não sendo possível identificar, cla ramente, algum tipo de unidade (nem mesmo quanto ao fenômeno estudado, que nem sempre é o esporte); isto significa, na linguagem kuhniana, ausência de situação paradigmática, ou ausência de paradigma; b) predominam as investigações orientadas numa concepção de ciência oriunda das ciências naturais, de cariz empírico- analítica, que privilegia técnicas quantitativas de pesquisa (dentro do credo objetivista); nos últimos anos observa-se um incremento das investigações orientadas na fenome- nologia hermenêutica e no materialismo histórico-dialético (que foram classificados por A. Gaya como orientação especulativa/discursiva e subjetivista). c) as investigações estão atreladas aos interesses e aos pro cedimentos teórico-metodológicos das disciplinas científi cas de origem, o que determina, primeiro, uma falta de autonomia científica; segundo, que muito raramente os problemas investigados revestem-se de importância para o destinatário em potencial, o próprio esporte; e terceiro, uma falta de interação entre as diferentes subdisciplinas (temos uma multidisciplinaridade e não interdisciplinaridade); d) metodologicamente as investigações oscilam entre um ob- jetivismo empirista ingênuo (onde fazer ciência significa medir/quantificar, comparar e acumular dados, sem exer cício propriamente teórico)4, e um discurso hiperpolitizado, que negando a neutralidade científica postulada pela ver são objetivista, descuidou-se da autovigilância epistemoló gica; no afã da crítica à rigidez metodológica, descui dou-se do rigor metodológico5; e) não existem critérios claros elaborados que permitam di ferenciar as pesquisas classificáveis como pertencentes às Ciências do Esporte daquelas pertencentes à Educação Física; a partir da criação dos cursos de pós-graduação vinculados aos centros universitários de Educação Física e Esportes, têm crescido o número de professores de Edu cação Física que investigam o âmbito das Ciências do Esporte. E claro que uma tal síntese peca, necessariamente, por insuficiência e por inevitáveis reducionismos. Mas, a partir do quadro esboçado, já é possível levantar alguns questionamentos que podem ser frutíferos no sentido de au xiliar no processo de nosso autoconhecimento. 4 Em editorial do periódico alemão Sportwissenschaft (Ciência Desportiua, 20(1), 1990), pode-se ler a reclamação da dificuldade de se conseguirem bons artigos de revisão ou síntese. 5 O entendimento de ciência polarizou-se, como mostraram Gaya (1994), e Paiva (1994) para o Brasil, entre uma visão “empirista ingênua” e uma visão “político- instrumentalista”, ambas com insuficiência crônica de debate epistemológico. Muitos dos problemas levantados podem nos levar à pergunta: como resolvê-los6? Para muitos desses problemas, portanto, buscaríamos soluções como “aperfeiçoar os méto dos de investigação” e “melhorar o nível de teorização”. Para outros, no entanto, entendo ser necessário radicalizar o questionamento, perguntando se é possível dar outro direcionamento às investigações ou à produção do conheci mento na área, mantendo-nos no interior do paradigma de ciência hoje hegemônico. Seguindo essa trilha (radicalização), chegamos rapidamente à questão da própria legitimidade das Ciências do Esporte7: por que e para que elas existem8? O que move ou moveu a ciência (as diferentes disciplinas científicas) a objectualizar o esporte? Entendo também apro priado perguntar: até que ponto as Ciências do Esporte al cançaram o que se poderia chamar de “consciência de si”, no sentido de reconhecer com quais princípios (epistemoló- gicos) opera? Quais são as bases (teoria da ciência) sobre as quais assenta sua prática científica, sua produção do conhe cimento? 6 Sobral (1992) lançou-se nessa tarefa, propondo quatro conjuntos de atitudes para superar os problemas levantados e aqui já referidos: a) cultivar o pensamento diver gente; b) problematizar a partir dos fenômenos e não dos quadros de interpreta ção; c) desenvolver a crítica e formular teorias; d) definir problemas mais amplos, utilizar metodologias mais abrangentes. 7 Tenho dúvidas se a comunidade científica das ciências do desporto mantém a capacidade de perguntar sobre o sentido das ciências do desporto. Parece-me que o mito moderno da ciência como que eliminou das mentes tal necessidade. Ou, como lembra Santos (1988, p. 68), “a explicação científica dos fenômenos é autojustificação da ciência enquanto fenômeno central da nossa contempora- neidade". 8 Em tempos marcados pelo utilitarismo, conservador ou revolucionário, parece-me que é muito bom manter viva a tradição de que conhecer é um bem em si mesmo, independentemente das utilidades imediatas ou mediatas que se derivem do conhe cer. Essa posição “academicista” entendo ser uma posição unilateralizada como também o é a utilitarista. Precisamos é buscar um “compromisso” entre estas duas posturas. 84 L — Pretendo, na seqüência, não propriamente responder a esses questionamentos, mas balizar caminhos que nos per mitam uma reflexão frutífera a respeito. 0 esporte e as Ciências do Esporte: empreendimentos da modernidade Para discutir o sentido das Ciências do Esporte, enten do necessário buscar, brevemente, a gênese do fenômeno esportivo e a da própria ciência moderna, relacionando-as. Ainda que discutível, podemos entender o esporte (mo derno) como um fenômeno que é gestado sob a influência do que se convencionou chamar de “modernidade”. Nas socie dades tradicionais, as práticas corporais, assim como todas as atividades sociais, estiveram fortemente marcadas pela influência da religião. A religião constituía-se no primeiro discurso, no centro, que totaliza o sentido das práticas soci ais e culturais e as dota de significação (por exemplo o jogo de pelota entre os maias)9. O esporte moderno, no seu pro cesso de construção, sofre influência das transformações so- cioculturais e absorve uma série de características da socie dade industrial moderna. Guttmann (1979) sumarizou nos seguintes termos as características do esporte moderno: secu- larização; igualdade de chances; especialização; racionaliza ção; burocratização, quantificação; busca do recorde10. Como mostrou Rigauer (1981), há um paralelismo entre o processo de racionalização do treinamento esportivo e a racionaliza ção do sistema produtivo na sociedade capitalista industrial. 9 Veja-se a respeito. La función dei juego de pelota entre los antiguos mapas. (Weis, 1979). 10 Veja-se a respeito também Eichberg, H. Der Weg des Sportos in die industrielle Zivilisation e Sport und Arbeit (Rigauer, 1981). Para entendermos, portanto, a relação entre ciência e esporte, é importante situar um pouco melhor o advento da modernidade que viu e fez surgir o fenômeno esportivo. Como sabemos, para Max Weber (cf. Rouanet, 1987) a modernidade é o produto do processo de racionalização que ocorreu no Ocidente, desde o final do século XVIII, e que implicou a modernização da sociedade e a moderniza ção da cultura. Nesse contexto, “a modernização cultural é o processo de racionalização das visões de mundo e especialmente da religião. Em conseqüên cia desse processo, vão se diferenciando esferas axiológicas (Wertsphãren) autônomas, até então embutidas na religião: a ciência, a moral e a arte. A ciência moderna permite o au mento cumulativo do saber empírico e da capacidade de prog- nose, que podem ser postos a serviço do desenvolvimento das forças produtivas. A moral, inicialmente derivada da religião, se torna cada vez mais secular [...]. Enfim, surge a arte autô noma, destacando-se do seu contexto tradicionalista (arte re ligiosa) em direção a formas cada vez mais independentes, como o mecenato secular e finalmente a produção para o mercado”. (Rouanet, 1987, p. 231-2) Numa outra perspectiva sociológica é possível identifi car o processo de diferenciação social abrangendo o despor to; este vai-se constituir, aos poucos, em uma instituição diferenciada das outras esferas. Isso tudo levou a formulações, entre outras, do tipo: o desporto é a racionalização ou institucionalização do jogo, ou um crescente alijamento do lúdico, para falarmos com Huizinga (1980). Com isso quero argumentar que a racionalidade cientí fica, característica da modernidade, cujo paradigma hegemô nico estava voltado para a identificação das leis inerentes às coisas ou fenômenos, com o objetivo de aumentar nosso poder/controle sobre esses (M. Weber apud Rouanet, 1987) chamou de Zweckrationalitat, racionalidade com vistas-a- fins), foi co-produtora do esporte moderno; ou então, que o desenvolvimento do esporte moderno se dá no mesmo caldo sociocultural em que se desenvolveu a ciência moderna. A ciência entra como coadjuvante/auxiliar para a concretização de uma das características centrais do esporte moderno: a maximização do rendimento. A esse objetivo adapta-se exemplarmente a racionalidade científica hegemô nica (denominada pelos frankfurtianos de razão instrumen tal), porque está voltada exatamente para o aumento da eficiência dos meios, excluindo, por definição, a discussão em torno dos fins dessa prática11. Ora, o aumento da importância social do esporte, prin cipalmente da importância sociopolítica (e mais recentemente econômica), requisitou os serviços da ciência, para eliminar o acaso, o imprevisto, e, assim, “garantir” o sucesso. Basta ver o incremento das investigações em torno do esporte a partir da sua inserção nos movimentos da Guerra Fria e, mais recentemente, com a transformação do esporte num segmento importantíssimo da economia mundial. Dentro dessa perspectiva e de forma consequente, o interesse norteador da produção do conhecimento, usando uma expressão de J. Habermas, é o interesse técnico e, num plano muito secundário, os interesses prático e emanci 11 Um episódio da copa do mundo de futebol realizada nos EUA, em 1994, é, em meu entender, indicado para exemplificar a “racionalização” do desporto. Os co mentaristas da emissora de TV Bandeirantes, indignados com a forma de jogar da equipe de Camarões, chamaram seus jogadores de irresponsáveis porque encara vam os jogos como brincadeiras; ao contrário, para os comentaristas, a Copa do Mundo, o futebol, é coisa séria. Segundos eles, a equipe de Camarões praticava uma forma de jogar que era absurda, não voltada para a vitória e sim para o espetáculo. patório12. Isso, de certa forma, confirma-se nos estudos an teriormente citados, que demonstram a predominância da abordagem empírico-analítica, que J. Habermas associa, jus tamente, ao interesse técnico. A razão instrumental impôs-se também nas Ciências do Esporte. Hegemonizou-se determinada visão de ciência que inscreve-se no âmbito do “agir-racional-com-respeito-a- fins” (Zweckrationalitãt), o qual, estando os objetivos estabe lecidos em situações preconcebidas, acaba extraindo da racionalidade o que ela tem de característico, que é refletir levando em consideração os interesses globais da sociedade. Interessantes são algumas consequências que Habermas (1988a) extrai para a comunidade científica. Segundo ele, “a comunidade comunicativa dos pesquisadores, que toma como sua tarefa a justificação de um auto-entendimento cientificista da ciência, pode se auto-tematizar apenas a partir dos conceitos de uma ciência objetiva. [...] Assim, a comuni dade científica não pode se perceber enquanto sujeito; a sua postura objetivista obriga-a a uma auto-objetivação” (p. 374). Daí o porquê da minha observação de que a comu nidade das Ciências do Desporto perdeu a capacidade de refletir sobre o seu sentido numa perspectiva que não seja funcional-pragmática. Não se trata aqui de fazer uma sociologia do esporte, mas é necessário mostrar, na esteira da sociologia da ciên cia, como o processo de produção do conhecimento está atrelado aos processos de desenvolvimento da sociedade como um todo e da conseqüente necessidade de superar a visão 12 Habermas (1988a) argumenta que toda produção do conhecimento tem a norteá- la um interesse cognitivo. Ele classifica esses interesses em técnico, prático e emancipatório. O interesse cognitivo determina como o fenômeno será objectualizado. “As ciências estritamente empíricas estão sob as condições transcendentais da ação instrumental, enquanto que as ciências hermenêuticas procedem ao nível das ações comunicativas” (Habermas, 1988a, p. 236). empírico-objetivista para poder discutir, ainda com reivindi cação racional para essa reflexão, o sentido da prática cien tífica no âmbito das Ciências do Esporte. Trata-se, também, de mostrar que, apesar do postulado inerente à concepção empírico-objetivista de ciência predominante nas ciências do desporto (de neutralidade política), essa prática esteve sempre inserida num contexto (do desenvolvimento sociocul tural, aí incluído o esporte), que confere uma determinada finalidade ao conhecimento científico produzido, indepen dentemente das vontades subjetivas de seus pesquisadores13. Trata-se de alertar, mais uma vez, para o condicionamento social de todo conhecimento científico. Nesse sentido vale aqui lembrar a advertência de Mar ques (1993, p. 88): “As ciências empírico-analíticas não podem ignorar-se cons tituídas por atos humanos, sustentadas por uma comunidade científica e inseridas no processo cultural mais amplo da lin guagem ordinária. Estão elas sujeitas ao processo de valida ção de suas premissas, à prova da argumentação, não da ex perimentação em si mesma, porque se voltam à interpreta ção, não à simples produção de novas experiências ad infinitum. Não pode, por isso, o interesse técnico do conhe cimento desvincular-se dos interesses prático e emanci patório.” Gostaria de apenas citar, como indicadores da necessi dade da superação da unilateralidade da ciência empírico- analítica, as repercussões das pesquisas nas Ciências do Es- 13 Lovisolo (1995), defende a legitimidade da pesquisa pelo fato de que “conhecer é bom porque é bom conhecer”, o que não reduz nem amplia as conseqüências sociais do conhecimento produzido, independentemente das satisfações pessoais do pesquisador. porte na questão do doping14 e nas consultorias (por exem plo, Matsudo, 1991, discutindo a pílula anticoncepcional enquanto doping). Temos como perspectiva dominante a posição de legi timar as Ciências do Esporte pela importância que têm para o sistema esportivo (deixando inquestionável sua função so cial, que é positiva). Nesse sentido, vale observar o que diz a respeito K. H. Bette (apud Rütten, 1990), que opera com a teoria dos sistemas de N. Luhmann. O autor, analisando a relação de dois sistemas complexos (esporte e ciência), pro cura demonstrar como o sistema esportivo cria dificuldades para as abordagens científicas que não trabalham com os códigos dessa instituição, por exemplo, a maximização do rendimento na perspectiva do crescimento infinito, e, ao contrário, propõe uma relativização do conceito de rendi mento a partir de razões pedagógicas, sociais ou de saúde. O sistema esportivo tende a funcionalizar para si, a partir de seus códigos, a ciência. Isso tem conseqüências importantís simas para as discussões em torno das razões/necessidades de uma Ciência do Esporte de caráter aplicado. Para finalizar este ponto: o que estou a reivindicar é uma reflexão sobre a legitimidade das Ciências do Esporte, que ultrapasse uma legitimação funcional pela obviedade do desporto busque ancorar-se num projeto emancipatório. 14 A Sociedade Alemã de Ciência Desportiva, no Congresso de 1992 (Oldenburg), tomou posição a respeito da pesquisa em torno de substâncias dopantes, dizendo que a comunidade científica precisa assumir a responsabilidade política que a ela cabe nesses casos. 90 t — *-...- Dimensões da interdisciplinaridade nas Ciências do Esporte Falta unidade, o campo é excessivamente heterogê neo, dizem os estudos. Uma das possibilidades da superação desse problema é o caminho da interdisciplinaridade? Mas o que é interdisciplinaridade? Existem vários argumentos a favor da interdisciplinari dade. Um deles diz respeito ao fato de termos construído uma cultura de especialistas, o que tem-se mostrado, embo ra não necessariamente, antagónico a visões mais amplas, que são necessárias (tanto quanto o conhecimento discipli nar especializado) para a solução dos problemas e para evi tar outros15. Para Japiassu (1976, p. 40-1), a exigência da interdisci plinaridade, “longe de constituir progresso real, talvez seja mais o sintoma da situação patológica em que se encontra hoje o saber [...], o especialista converteu-se neste homem que, à força de co nhecer cada vez mais sobre um objeto cada vez menos exten so, acaba por saber tudo sobre o nada. Nesse ponto do esmigalhamento do saber, a exigência interdisciplinar não passa da manifestação, no domínio do conhecimento, de um esta do de carência”. E claro que podemos observar reivindicações por coo peração (inter)disciplinar fundamentadas em interesses ain da disciplinares. Por exemplo, um biomecânico que busca auxílio do estatístico, do matemático, do engenheiro eletrô nico e do fisiologista para a solução de um problema, ainda biomecânico; o que na verdade não é interdisciplinaridade, mas sim, “intradisciplinariedade”. 15 O problema da ecologia é sempre citado como exemplo da ação unilateral, sem o entendimento das repercussões sistêmicas sobre o meio ambiente das ações par ciais, o que somente poderia ser alcançado com uma abordagem interdisciplinar. Para além dessa visão simplista e equivocada de interdisciplinaridade, esta tem o objetivo de superar a frag mentação naquilo que ela dificulta colocar a ciência a serviço da vida humana em geral. Nesse caso, estamos também falando na mediação entre ciência e filosofia, ou da media ção entre ciência e arte, ou, em outros termos, entre os diferentes saberes ou racionalidades. Se observarmos o quadro das Ciências do Esporte, verificaremos que o movimento dominante ainda é o da frag mentação, que é crescente, com o aparecimento de sempre novas especialidades e subespecialidades, inclusive com a criação de entidades específicas (Sociedade Brasileira de Biomecânica, Medicina Esportiva, etc.), e isso porque não existe nada que sirva de elo de ligação entre as Ciências do Esporte absortas em seus problemas específicos. Não existe uma identidade epistemológica das Ciências do Esporte. Como demonstram os estudos de Gaya (1994), não é possí vel identificar, na atual produção do conhecimento na área, elementos que indiquem no sentido de uma unidade. Mas, no caso das Ciências do Esporte, a reivindicação por interdisciplinaridade está baseada nas necessidades da prática, que exige um conhecimento sintético (interdisciplinar). No entanto, pela subordinação, já referida por Sobral (1992) e Gaya (1994) às problemáticas das disciplinas de origem, a produção do conhecimento é fragmentada disciplinarmente e não tematicamente como reivindica Santos (1988). As Ciências do Esporte vivem num estágio pluridisci- plinar16. Convenhamos, em nossos congressos cada um dá seu recado em meio à indiferença simpática dos demais, o que leva à pergunta: faz algum sentido ainda organizarmos congressos multidisciplinares? 16 Essa é também a avaliação de Roberto Prohl (1991), que analisou exaustivamente a situação da Ciência do Esporte (Sportwissenschaft) na Alemanha, que havia se colocado como projeto explícito a construção, por via da interdisciplinaridade, de uma nova ciência (no singular). Existem muitos obstáculos para a superação dessa frag mentação (outros nem a entendem necessária). Japiassu (1976) identifica três ordens de obstáculos: a) os de ordem epistemológica (já brevemente discutidos aqui); b) os de or dem institucional; c) os de ordem psicosociológica. Também a partir do modelo de J. Habermas (dos dife rentes interesses que norteiam a produção do conhecimento) é possível prever/identificar dificuldades. Outra dificuldade é a idéia equivocada que se instalou em nosso imaginário, de que temos um objeto científico comum: o esporte (o que justificaria a existência de organi zações que congreguem pesquisadores com um objetivo co mum). Embora, sob a perspectiva da prática, exista real mente um objeto comum, o mesmo não acontece com a produção do conhecimento. O esporte, enquanto objeto empírico, não é, necessariamente, um objeto científico unívoco. Um objeto científico é algo construído; construído pela abordagem específica de cada disciplina. “Cada méto do é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada” (Santos, 1988, p. 66). Um outro equívoco é o de ver as dificuldades da interdisciplinaridade como um problema de simples falta de comunicação entre os pesquisadores (por isso deveríamos continuar a realizar congressos pluridisciplinares e apelar para a “vontade” dos cientistas de estabelecerem relações). Vale lembrar, nesse sentido, o que dizem Bourdieu et al. (1993): “Ver, como normalmente se faz, o princípio de todas as difi culdades de comunicação entre as disciplinas na diversidade das linguagens, é abster-se de descobrir que os interlocutores se encerram em sua linguagem porque os sistemas de expres são são ao mesmo tempo os esquemas de percepção e de pensamento que fazem existir os objetos sobre os quais vale a pena falar. São realmente objetos e não um objeto, no caso das Ciências do Esporte. Gostaria de observar, sem poder desenvolver, já que não é esse o tema aqui, que a questão da interdisciplinaridade é particularmente importante para a Educação Física (en tendida essa enquanto prática pedagógica). A interdisciplinaridade não pode ser tomada como pa- nacéia. A necessidade da interdisciplinaridade não é algo abstrato; está ligada ao interesse na realização de determi nado projeto, para o qual é (ou não) necessária. Portanto, a unidade interdisciplinar só pode ser uma unidade ética. As sim, voltamos à questão discutida anteriormente, ou seja, o sentido das Ciências do Esporte, como também, a questão da mediação entre os diferentes saberes ou racionalidades. Os estudos sobre a interdisciplinaridade esbarram, por um lado, nas dificuldades da construção de uma epistemologia interdisciplinar (não alcançada até hoje) e, por outro lado, nas fronteiras da própria epistemologia. Um mini-resumo pontual: - as Ciências do Esporte não possuem objeto científico em comum; operam a partir dos mais diferentes interesses; não possuem identidade epistemológica própria; reúnem- se em organizações em função de interesses corporativos (as ciências, independentemente das organizações de ciências ou Ciência do Esporte, continuam a estudar o esporte); — uma Ciência do Esporte, de cunho aplicado, está forte mente atrelada aos interesses da instituição esportiva; com isso, é subordinada aos seus códigos e interesses; assim, perderia seu pontencial crítico, tornando-se pragmático- funcional; legitima-se pela importância do fenômeno es portivo; ■ ' - ' ' 9 4 I _____ - A Educação Física (ou pedagogia, onde o esporte é um dos temas) oferece uma problemática teórica que pode ser tratada também cientificamente; essa problemática exige exercício/tratamento interdisciplinar, tanto entre di ferentes disciplinas científicas, quanto entre as diferentes racionalidades. A condição pós-moderna, a crise da razão científica e as Ciências do Esporte “Nas questões fundamentais, o conhecimento científico desemboca em insondáveis incertezas” (Morin, 1993) Alguns desenvolvimentos recentes no plano da ciência e da epistemologia deveriam fazer eco nas Ciências do Es porte e isso porque afetam as bases, os princípios do pensa mento científico, que supõe-se serem seguidos pelas Ciên cias do Esporte, isto é, sejam os fundamentos de nossas práticas científicas. Além do debate, não concluído no plano da epistemo logia (e nem sequer iniciado ou percebido nas Ciências do Esporte), sobre a questão do possível dualismo metodológico/ epistemológico entre ciências naturais e ciências sociais/hu manas, o que hoje está em questão é o próprio paradigma da ciência moderna ou da racionalidade científica. Segundo Marques (1993), “de inquiridora a razão converter-se-á em inquirida”. O desenvolvimento da ciência17, incluídos aí tanto os desenvolvimentos da micro e da macrofísica, da química e da biologia, quanto os da hermenêutica e os da filosofia da 17 “O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda” (SANTOS, 1988, p. 54). linguagem e das por elas suscitadas e a elas ligadas discus sões epistemológicas, chegamos ao que se poderia chamar de limites/fronteiras da epistemologia (que sempre procurou um ponto de vista privilegiado como garantia de certeza) e que coloca os epistemólogos em dois lados: a) os fundacionalistas ou criterialistas; b) os antifundacionalistas (ou relativistas) ou não-criterialistas. Alguns autores associam a segunda postura à condição ou ao pensamento pós-moderno que, no que diz respeito à questão do saber científico, coloca-se como uma postura relativista. Ou seja, critica/relativiza a posição absolutista da razão (científica). Advoga a pluralidade irredutível da razão; pleiteia o livre jogo das diferentes racionalidades (num livre jogo de linguagens), sem postular/almejar unidade, muito menos hierarquia. Isso não significa que a ciência, repentinamente, per deu sua capacidade de prognose, de fornecer elementos que permitam interferir na realidade. Significa muito mais, que ela deve abdicar de sua condição/aspiração de conhecimen to privilegiado da realidade e da aspiração de fornecer a chave de todos os “mistérios” do mundo18. Nas questões fundamentais, como afirma Morin (1993, p. 22), “o conhe cimento científico desemboca em insondáveis incertezas”. Essa crise, que, na opinião de B. Santos (1988, p. 54), não apenas é profunda, mas irreversível (ou indica um reco meço, como querem M. O. Marques e F. S. Rouanet), é o resultado de condições sociais e teóricas. As condições teóri cas já foram rapidamente aludidas aqui. Quanto às condi ções sociais, entre tantos (como os que identificam na revo 18 “Ampliando-se os espaços do conhecimento, ampliam-se também as fronteiras do desconhecido, na direção do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, para além do alcance dos homens" (Marques, 1993, 57). ' 96 lução eletrônica a base das modificações socioeconômicas e culturais que geraram a condição pós-moderna), evoco aqui a versão marxista, defendida por Frederic Jameson e Marilena Chauí, de que o pós-modernismo (e sua versão no plano da cultura e do saber) é fruto da nova fase do capitalismo, cuja característica central é a acumulação flexível do capital. Malgrado a precariedade desses debates e o caráter de transição do momento que vivemos, parece-me importante perguntar como as Ciências do Esporte estão a reagir ou reagirão a essas questões. É interessante notar que, se por um lado, as Ciências do Esporte buscam satisfazer as exi gências de rigor científico do paradigma dominante, por ou tro, são abalroadas nesse processo, pela crise desse mesmo paradigma. Ciências do desporto! Pois bem, a qual cientificidade se ligam ou querem se ligar essas ciências? Abrir-se-ão as ciências do desporto à possibilidade de ampliação do concei to de razão, abarcando a racionalidade estético-expressiva e a prático-moral, para falar com Habermas? Finalizando: ou as ciências do desporto dão respostas a essas questães, ou melhor, as enfrentam e assumem a res ponsabilidade das respostas, ou estaremos num barco ao qual nos compete imprimir velocidade, mas não determinar- lhe a direção. A direção.... Bem, esta será determinada pelo jogo das forças do mercado (A própria racionalidade neoli- beral!), ou pelas forças do poder constituído e nós, das Ciên cias do Esporte, embora constituída de seres humanos com capacidade para optar por determinados fins, nos restringi remos a mantê-lo em movimento (ao menos enquanto for mos nutridos com capital financeiro e simbólico). E preciso, portanto, fortalecer esse tipo de debate/ reflexão no âmbito das organizações científicas da área, para que possam assumir a condição de sujeito coletivo que assu me posturas políticas e age de acordo com elas. Para concluir quero enfatizar a importância do reconhecimento do “envolvimento” (no duplo sentido) do cien tista (do esporte), valendo-me das palavras da filósofa M. Chauí (1994, p. 481), comentando a obra de M. Ponty: O artista, como o filósofo, [e eu diria um cientista], nunca está no centro de si mesmo, estão sempre fora de si, rodea dos pela miséria empírica do mundo e pelo mundo que devem realizar e revelar pela obra [...]. Por isso interrogam o mundo, a si mesmos, seu próprio trabalho, não podendo parar de pintar, compor, dançar, escrever. Sua obra é interminável por que nunca abandonamos nossa vida e o mundo, nunca vemos a idéia, o sentido e a liberdade cara a cara". A TESE DA CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA, DE MANUEL SÉRGIO1 Kefren Calegari dos Santos2 Está caracterizado, por meio de diversas publicações a respeito, que as décadas de 70/80 apresentam-se como um período de “crise” para a Educação Física. Sérgio (1988, p. 12) citado por Bracht, por exemplo, afirma que “o discur so da Educação Física é, desde a década de 60, declaradamente de crise”. Mas é Medina (1983) que, no início da década de 80, denuncia publicamente a “crise” da Educação Física no cenário brasileiro, momento este de um intenso e proveitoso debate na área. Entretanto o(s) motivo(s) desta denominada crise não está(ão) totalmente claro(s). Bracht (1992) relata que diferentes causas são aludidas, “uma de las, por exemplo, parte do argumento de que não existe uma profissão de professor de Educação Física” enquanto 1 Este texto é um resumo da monografia apresentada ao CEFD/UFES como requisito parcial ã conclusão do curso de graduação em Educação Física (97/1), sob orienta ção de Valter Bracht. 2 Especialista em Fisiologia do Exercício pelo CBM/UFES; professor de Educação Física no Centro Educacional Gênesis/Cooperativa Educacional (CEG/ COOPEDUC) e de natação na Associação Esportiva Siderúrgica Tubarão (AEST). outros “entendem que a crise é de cunho epistemologia” (p. 36). Para esse autor a crise de identidade da Educação Física está relacionada com a sua possível falta de legitimi dade e lembra que esta não pode ser confundida com legali dade. Para alguns a legitimação desejada somente seria alcançada quando a Educação Física fosse reconhecida como ciência. Para tanto, propostas de “cientifização” dessa área surgem, apresentando-se como Ciências do Esporte, Ciên cia da Motricidade Humana (ambas de raiz européia) e Ciência do Movimento Humano (esta de origem americana), entre as mais conhecidas atualmente. Devemos lembrar, entretanto, que para a aceitação de alguma, ou mesmo al gumas dessas teses/teorias pela comunidade “científica” da área, questões devem ser respondidas, principalmente num momento em que a própria racionalidade científica encon tra-se em crise, como defendem alguns filósofos da ciência. Dessa forma a crise da Educação Física não é apenas de cunho epistemológico como uns afirmam, mas diante das propostas apresentadas a busca de sua legitimação não pode prescindir do debate epistemológico. Em nosso estudo abordamos a tese da Ciência da Motricidade Humana (CMH), do filósofo português Manuel Sérgio Vieira e Cunha, que afirma estarmos de frente a uma nova ciência. A escolha da Ciência da Motricidade Humana justifica-se pela considerável penetração que essa tese al cançou na comunidade acadêmica da Educação Física (diga mos que de forma um pouco passiva), ao mesmo tempo em que identificamos algumas questões preliminares não res pondidas e/ou não bem compreendidas em sua tese, por meio das quais pudemos visualizar a abertura para um possí vel debate com o autor, a fim de buscarmos soluções coeren tes para o problema (da crise) ora levantado. Objetivamos, então, analisar a evolução do pensamento de Manuel Sérgio em torno da tese da Ciência da Motricidade Humana, desta cando o referencial teórico utilizado pelo autor e buscando identificar a necessidade e as possibilidades de uma tal ciên cia. Com isso, esperamos estar contribuindo no sentido de oferecer alguns elementos para o debate epistemológico acer ca da (crise de) identidade da Educação Física. Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa de cunho teórico através da reflexão hermenêutica de textos do autor acerca de sua tese. Para construção deste trabalho foram seguidos alguns passos, a saber: I - levantamento da produção de Manuel Sérgio que diz res peito à tese da Ciência da Motricidade Humana (CMH); II - levantamento da produção acadêmica que se baseia na tese da CMH, de Manuel Sérgio; III - levantamento das referências na bibliografia da área à tese da CMH3; IV - análise da evolução do pensamento de Manuel Sérgio em torno da tese da CMH, destacando o referencial teórico utilizado pelo autor; V - identificação dos autores que servem como pilares da tese da CMH; leitura e análise desses autores, com vis tas a avaliar a adequação do seu uso por Manuel Sérgio. Sobre Manuel Sérgio e a tese da Ciência da Motricidade Humana Manuel Sérgio é um filósofo português que há muito tem contribuído para a reflexão a respeito da Educação Físi ca. Podemos dizer que a sua contribuição através de ensaios 3 Na monografia, disponível na biblioteca do CEFD/UFES, encontram-se em anexo os levantamentos I, II e III. — ^ J 1 0 1 iniciou-se no ano de 1974 quando publicou o livro Para uma Nova Dimensão do Desporto. Antes, porém, já havia publi cado obras literárias, como crônicas e poesias, e posterior mente escreveu também narrativas de cunho jornalístico. Entre a sua extensa obra (considerando seus livros e artigos temos mais de trinta publicações), interessa-nos a bibliogra fia referente à tese da CMH. Nesse sentido, a publicação que inaugura o seu pensamento acerca daquela tese, apa renta ser Prolegómenos a uma Ciência do Homem, publi cado pela primeira vez na revista Ludens, em 1979, e pos teriormente num livro intitulado Filosofia das Atividades Corporais, em 1981. Como o próprio título sugere a inten ção do autor é apresentar de forma ainda sincrética a nova ciência que futuramente denominaria de CMH. Naquele momento Manuel Sérgio oscilava na dúvida sobre a sua me lhor denominação: Ciência do Movimento Humano ou Quinantropologia? Entretanto, é interessante ressaltar que, em 1974, Manuel Sérgio já perguntara pela existência de uma Ciência do Movimento Humano (Quinantropologia?). Trata-se de uma rápida passagem, num pequeno capítulo intitulado “Educação pelo Desporto”, do livro Para uma Nova Dimensão do Desporto, de sua própria autoria. Nesse livro, dizia Sérgio (1975), que, se confirmada a existência da Ciên cia do Movimento Humano (Quinantropologia?), faria parte dela a “iniciação desportiva”, tendo, aí, o pedagogo lugar privilegiado e função imprescindível. Sua grande preocupa ção centrava-se na “humanização” do desporto, possibilita da, segundo ele, somente pela adequada orientação peda gógica - diga-se científica4. 4 Nesse texto Sérgio (1975) considera a pedagogia uma ciência e por isso reclama sua inserção na educação desportiva. Afirma ele que “no campo da ‘iniciação desportiva’ [...] a atualização científica mais se torna necessária, já que a pedagogia é uma ciência e não é possível orientar uma criança (seja no que for) à base da intuição, esquecendo as exigências hodiernas da pedagogia” (p. 82). Daí em diante, Manuel Sérgio assumiu com determi nação o seu maior projeto - a tese da CMH - e com isso deu prosseguimento à sua elaboração teórica, concentrando-se quase que exclusivamente nesse intento. Isso fica bem evi dente na vasta publicação a respeito - em média um livro ou artigo por ano. Entre elas, podemos destacar: Filosofia das Atividades Corporais (1981); Uma Nova Ciência do Ho mem - a Quinantropologia (1983); A Investigação Epistemo iógica na Ciência da Motricidade Humana (1985); Motri cidade humana: uma nova ciência do Homem (1986); Edu cação Física ou Ciência da Motricidade Humana? (1991); Para uma Epistemologia da Motricidade Humana (1994); Motricidade Humana: um Paradigma Emergente (1995). Entretanto, é no decorrer das leituras que percebemos varia ções no trato com a sua tese, apresentando-a de formas diferentes, bem como fundamentando-a a partir de referen ciais diversos. Com o objetivo de levantar essas diferenças, discutimo- as em torno das seguintes categorias: motricidade humana; homem; Ciência da Motricidade Humana; e corte epistemo lógico. Cabe ressaltar que essas são apenas categorias cen trais, escolhidas por aparecerem constantemente em sua obra e porque, no decorrer do estudo, evidenciaram variações ao longo do pensamento do autor - ocorrendo inclusive mudan ças nas suas denominações. Contudo, devido à limitação de espaço, dada pelo caráter deste livro, não foi possível apre sentar essa evolução de forma resumida sem esvaziar seu conteúdo e/ou prescindir das relações possíveis e reflexões necessárias. Desse modo, ao final deste capítulo encontra-se um quadro resumo da evolução do pensamento de Manuel Sérgio em torno da CMH, que pretende apenas situar o leitor, ilustrando suas tendências ao longo da sua obra. Para maiores esclarecimentos, remetemos à leitura do capítulo II da monografia em questão. Levantando questões Partindo do que foi evidenciado na obra de Manuel Sérgio acerca da tese da CMH, recuperamos, abaixo, algu mas dúvidas/contradições levantadas por nós e, em seguida estabelecemos um debate com autores que nos serviram de auxílio nesta discussão. Acreditamos que nesses momentos estaremos também contribuindo para aclarar um pouco aque las variações que citamos anteriormente. - Qual é a concepção de ideologia defendida por Sérgio em sua relação com a ciência? - Quais implicações surgem ao considerar-se a motricidade humana como objeto de estudo e a ciência que dela se ocupa pertencente às ciências do homem, como defende Manuel Sérgio? - Está claro qual é a especificidade dessa nova ciência? - O que significa a educação motora ser considerada um ramo pedagógico da CMH? Como se daria a relação da quela com esta? - O que significam algumas mudanças conceituais, de fun damentação teórica e/ou de termos, identificadas na tese da CMH? - Qual é a possibilidade de conjugarem se dois autores, con siderados pela discussão epistemológica atual como repre sentantes legítimos de tendências opostas, para fundamentar a existência da CMH? Tais autores são Popper e Kuhn. - Nesse texto Sérgio (1975) considera a pedagogia uma ciência e por isso reclama sua inserção na educação despor tiva. Afirma ele que “no campo da ‘iniciação desportiva’ [...] a atualização científica mais se torna necessária, já que a pedagogia é uma ciência e não é possível orientar uma criança (seja no que for) à base da intuição, esquecen do as exigências hodiernas da pedagogia” (p. 82). Em que se baseia a necessidade de afirmar a E. F. como ciência? Ela realmente possibilita um acesso superior ao conheci mento do homem, como quer Manuel Sérgio? No plano pedagógico, quais são suas limitações? Discutindo questões Ciência e ideologia Podemos dizer que, com base no pensamento althusseriano, categorias como corte epistemológico e pro blemática dão início à fundamentação teórica do surgimento da nova ciência proclamada por Manuel Sérgio. No texto, “Louis Althusser ou uma Certa Maneira de Ler o Desporto”, Sérgio (1984) faz uma leitura do desporto à luz do pensa mento epistemológico de Althusser. Para ele “o Desporto integra uma nova ciência do Homem (a Cinantropologia)” e “o Desporto é ciência e filosofia” (p. 140). Sintetizando, Sérgio (1984) apresenta as idéias de Althusser a respeito da relação entre ciência, filosofia e política: “Em meia dúzia de palavras podemos afirmar que a prática filosófica se recorta no labor da produção de teses respeitantes à rotura entre ciência e ideologia. Fazer filosofia equivale a uma expressão intensa de vitalidade intelectual ao traçar linhas de demarcação entre o científico e o ideológico [grifo nosso], entre o idealismo e o materialismo [neste segundo caso, a filosofia intervém na prática social, fornecendo teses a uma das classes em luta], (p.137) Diante disso ocorrem-nos duas questões referentes à dicotomia estabelecida entre ciência e ideologia e o papel atribuído à filosofia: a) Entendendo a realidade como um campo de luta de clas ses (Althusser é de filiação marxista), se está realmente garantindo uma prática científica isenta de ideologia ao proclamar-se que a filosofia deve optar por uma das clas ses em luta e fornecer-lhe teses? Para “desideologizar” a ciência, basta vinculá-la a uma das classes? A verdade, nomeadamente científica, pertence a esta ou àquela clas se social? Entender a ciência como campo permeado por relações de poder, onde os cientistas ficam submetidos a instâncias burocráticas que nada ou pouco têm relação com a ativi dade propriamente racional, é facilmente compreensível; mas propor sua “desideologização” e seu “preenchimen to” com a ideologia de uma das classes em luta é desconsi derar o avanço do conhecimento científico alcançado até os nossos dias. b) Na leitura apresentada por Manuel Sérgio, a filosofia apa rece como orientadora dos rumos que a ciência deve se guir. Antes vejamos de que forma isso se daria. A partir da distinção althusseriana entre leitura literal e leitura sintomal, Sérgio (1984) relaciona-as com o aparecimento das categorias de problemática e corte epistemológico. A leitura literal aparece como descrição aparente, enquanto a leitura sintomal é responsável pelos questionamentos, através de uma contextualização histórico-política. Apres sadamente podemos dizer que neste segundo tipo de lei tura é possível buscar uma problemática, ou seja, explicitar questões que a ciência coloca ao seu objeto, possibilitando um corte epistemológico, que consagra “a linha de sepa ração entre a ciência e a ideologia” (p. 136). Nesse senti do, a filosofia cumpre o papel de vigilância epistemoiógica operando com teses/teorias que garante aquela ruptura. Podemos adentrar agora na segunda questão; pergunta mos, então, pelo ponto de vista onde reside a superiorida de da filosofia. Evangelista (1990) nos lembra que, para Althusser, “a principal palavra de ordem era reduzir oposições, como por exemplo as propostas por Kuhn entre os paradigmas a uma única e absoluta oposição, à oposição entre A ciência e A ideologia”, (p. 222) E prossegue ele: “quem decretava a cientificidade da ciência era uma filo sofia científica, o Marxismo enquanto filosofia científica” (p. 222). Entretanto, Evangelista (1990) ressalta que Althusser, diante da “demonstração de Dominique Lecourt será forçado [...] a fa zer uma auto-crítica”. (p. 222). Nas palavras de Althusser (1966) citado por Evangelista (1990): “necessário [...] reconhecer a ilusão e a impostura de seu pro jeto [ou seja de uma epistemologia]. É preciso (...) ele renun ciar e criticar o idealismo ou os mofos idealistas de toda epistemologia”, (p. 222) Parece que, assim como Althusser, Manuel Sérgio tam bém reviu algumas de suas colocações anteriores sobre cate gorias utilizadas, bem como a relação entre ciência e ideolo gia. Em “Carta Aberta à Presidente do CBCE”, à época, a professora Celi Taffarel, Sérgio (1989), depois de quase dois anos de permanência no Brasil, despede-se do CBCE. Nes sa carta, além dos gentis agradecimentos a todos que o re ceberam neste país, Manuel Sérgio reflete rapidamente a respeito de alguns pontos que a Educação Física brasileira precisa observar, defendendo, obviamente, a tese da CMH. Num desses pontos, Sérgio (1989) afirma que “a Educação Física brasileira precisa de criar uma teoria, que nasça do diálogo com a sua prática específica” (p. 74). Contudo, lem bra que não defende atualmente, “um corte epistemológico (grifo do autor) ao jeito althusseriano” (p. 74). Ainda, segun do ele, “a ideologia não é o simples reverso das Ciências” (p. 74). Entretanto, aí reside uma dúvida: Manuel Sérgio não explicita em nenhum momento (nesse e nos seus outros escritos) os motivos que o levaram a pensar diferentemente, bem ao contrário do que fez anteriormente, quando preferiu a categoria de problemática (da linha Bachelard-Althusser) à de paradigma (formulada por Kuhn). Pensamos não ser possível demarcar claramente o que é ideológico daquilo que é científico. Não existe uma linha clara que pode consagrar essa separação, nem tampouco uma disciplina pode ser responsável por isso. Essa tentativa poderia ser (talvez seja realmente) inócua. Uma alternativa que achamos viável é aquela trilhada pela “epistemologia crítica”, que, segundo Japiassu (1991), surge da interroga ção sobre a significação real da ciência, de uma reflexão histórica feita pelos cientistas sobre os resultados, o lugar, o alcance, os limites e as significações socioculturais da ativi dade científica, interrogando-se portanto sobre a responsa bilidade social dos cientistas. Japiassu constata que a racionalidade científica transformou-se em ideologia, quan do pretendeu impor-se como a única forma de racionalidade possível, criando, assim, a ideologia do cientificismo, em que o homem alienado deposita toda a sua confiança na ciência, como se ela fosse uma nova religião. E a fé cega na ciência e nos seus resultados: o domínio da natureza, a ri queza material, a organização eficaz da vida social, etc. Objeto de estudo, especificidade e filiação epistemológica É bastante evidente, desde o início dos escritos de Manuel Sérgio, a consideração da/do Motricidade Humana/ Movimento Humano como objeto de estudo da CMH, bem como sua filiação epistemológica às ciências do homem5. Sérgio (1981, p. 126), afirma, por exemplo, que “a Ciência do Movimento Humano tem portanto o seu lugar assegurado entre as Ciências do homem, como uma região da realidade bem específica: o movimento humano” (p. 126). Diante dis so perguntamos se de fato podemos afirmar o objeto de estudo de uma ciência a partir da delimitação de uma “re gião da realidade”, como defende Manuel Sérgio. Bracht (1993), partindo de uma breve contextualização histórica acerca da incorporação das “práticas científicas” no interior da EF/CE, bem como da reivindicação desta por um “status científico”, indaga que ciência é essa (EF/CE), apresentando-nos nesse sentido algumas questões que na sua opinião devem necessariamente acompanhar essa rei vindicação. Entre elas, uma pode-nos ser útil na discussão do objeto de estudo da CMH: o objeto de estudo desta(s) ciência(s)6 é o esporte, a atividade física ou o movimento humano? Especificamente nesta última, a tentativa de se fazer do movimento humano o objeto de estudo de uma ciência7 é criticada por Bracht (1993). Ele entende que o objeto de estudo não é um simples recorte da realidade empírica, caracterizando essa visão como uma concepção empirista ingênua de ciência. No entanto, sabendo-se que o objeto de estudo não está dado na realidade, a construção desse objeto de estudo8 se dá pela maneira como essa reali dade é abordada (p. 114). Dessa forma o movimento huma no, como bem-lembram Ferreira e Bracht (1995), pode ser 5 Muitas vezes a CMH é confundida mesmo com a própria ciência do homem. 6 Bracht indaga se a melhor denominação não é ciências da Educação Física ou do esporte (no plural) 7 Aí incluímos a CMH. 8 Para Bracht (1993) a EF “é antes de tudo uma prática pedagógica, e portanto uma prática de intervenção imediata” (p. 114). Neste caso a construção de seu objeto de estudo deve partir da intenção pedagógica. abordado de diversas maneiras ou pontos de vista, cada qual a partir d& condição epistemológica de cada disciplina que dele se ocupa (p. 57). Essa fragmentação do conhecimento observada em torno do movimento humano apresenta-se então como um obstáculo a qualquer ciência que intente construir seu objeto de estudo tendo o movimento humano como objeto de estudo9. Nesse sentido ainda, sabemos que as diferentes disci plinas que se ocupam do estudo do movimento humano se orientam por matrizes epistemológicas específicas1^ ou seja, pautam-se por princípios epistemológicos das ciências da natureza ou das ciências sociais e humanas11. Enquanto, por exemplo, a fisiologia e a biomecânica (CN) estão interessa das em explicar os aspectos fisiológicos ou biomecânicos do movimento humano, a sociologia e a filosofia (CSH) ínteres- sam-se pela compreensão do movimento humano nos seus aspectos sociológicos ou filosóficos. Constatado isso, uma interrogação surge: como defender a inserção da suposta CMH no interior das ciências do homem (CSH), inclusive com o mesmo status das demais, se a ela não pode prescin dir dos conhecimentos acerca do movimento humano oriun dos das ciências da natureza? Ao mesmo tempo, contradito riamente, Manuel Sérgio afirma que os princípios da expli cação e da compreensão cabem inteiramente na CMH como foi evidenciado no capítulo II da monografia em ques tão. As contradições se ampliam aprofundando a incoerên cia da sua tese, quando ele, Manuel Sérgio, começa a referenciar o filósofo português Boaventura Souza Santos. Esse autor defende que, na transição para uma ciência pós- 9 A respeito da fragmentação do conhecimento, bem como dos limites e das possibi lidades da interdisciplinaridade, consultar Veiga Neto (1996). >o Essa é uma discussão bastante complexa e polêmica que neste momento deixare- mos suspensa. 11 Esta última Manuel Sérgio prefere nominar de ciências do homem. moderna, “começa deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências sociais” (1998, p. 48). Ainda segundo este, o paradigma emergente que se anuncia no horizonte fundamenta-se na superação daquela dicotomia entre Ciências Naturais e Ciências Sociais, cuja “distinção assenta numa concepção mecanicista de matéria e da natu reza a que contrapõe, com pressuposta evidência, os concei tos de ser humano, cultura e sociedade” (p. 60). Sabendo-se da insistente tentativa de Manuel Sérgio de entender o ho mem através da sua tese, que se daria pela superação das dicotomias inauguradas com a modernidade, torna-se difícil aceitar que ele ao longo de toda a sua obra, defenda a CMH enquanto ciência do homem, principalmente quando busca sustentação em Souza Santos. Ademais, essa sua considera ção vem carregada de todo tipo de problema epistemológico detectado acima. Ele não deveria, na verdade, caminhar para essa superação? Ou será que está-se apoiando na tese da curvatura da vara12? Parece que Manuel Sérgio é capturado também por uma armadilha que afeta a própria ciência: a fragmentação do conhecimento. Veiga Neto (1996) ressalta que o conheci mento disciplinar (fragmentado) é fruto da própria moder nidade, ou seja, “a disciplinariedade é a maneira pela qual não só o conhecimento se organizou como, ainda e princi palmente, organizou o próprio mundo contemporâneo” (p. 132). Além dessa perspectiva foucaultiana de entender a constituição das ciências13, ele lembra que a causa dessa 12 Observação feita, em tom de brincadeira, pelo professor Francisco Caparroz, em conversa particular. Grosso modo, essa tese afirma que para alcançarmos um ponto de chegada a partir de um extremo devemos buscar o outro extremo, como na tentativa de endireitar uma vara torta. Analogamente, será que defendendo a CMH enquanto ciência do homem, Manuel Sérgio busca um ponto de superação a partir da negação da ciências da natureza? Pensamos ser essa uma hipótese improvável. 13 Segundo Japiassu (1991) a constituição das ciências, numa perspectiva foucaultiana, está alicerçada no importante conceito de epistéme, ou seja, como a infra-estrutura cultural do saber propriamente dito , caracterizado como representação, como registro epistemológico específico de todo um período do pensamento e da cultura. ^JTÍT*N suposta doença do conhecimento científico14 pode ser bus cada mais na “separação entre a res cogitans e a res exten sas [grifos do autor], ou seja, no nosso afastamento, enquan to pensantes, do resto do mundo” (p. 136). Lembra ainda as contribuições recentes da filosofia que apontam no sentido de ser impossível “o estabelecimento de um campo epistemológico único” (p. 132). Kuhn ressalta que “os paradigmas, nos quais se circunscrevem áreas do conhe cimento (e seus praticantes), são partilhados por comunida des de linguagem. Isso significa que cada paradigma tem não só seu próprio discurso e sua própria maneira de colocar suas questões e de determinar o que é e o que não é relevante e problemático. Tal especificidade paradigmática faz com que aquilo que é visto como um problema e/ou objeto de pesquisa numa comunidade possa até nem ser visto ou notado por outra comunidade.” (p. 132). Com as considerações acima, tentamos evidenciar que a constituição de uma ciência que tenha o movimento hu mano como objeto de estudo encontra obstáculos erguidos pela própria maneira como o conhecimento se organizou, o que leva a diferentes possibilidades de abordar o movimento humano, cada qual a partir da sua especificidade (para digma?). Dessa forma a proposição de uma CMH que tenta abarcar todo o conhecimento (científico) em torno do movi mento esbarra nos mesmos obstáculos observados anterior mente, pois, como bem-lembra Veiga Neto (1996), “o co nhecimento disciplinar [no caso do movimento humano, frag mentado por disciplinas como a fisiologia, a biomecânica, a sociologia e a filosofia] não pode ser extinto por atos de vontade e por decretos epistemológicos” (p. 132). É notável a boa vontade e o otimismo impregnados no espírito de Manuel Sérgio, todavia, um projeto dessa enver gadura é fruto nada menos do que de muita audácia. Pode- 14 Para Veiga Neto a fragmentação do conhecimento não pode ser considerada uma doença. Já Japiassu a vê assim, inclusive publicou um livro intitulado Interdisciplinariedade e Patologia do Saber. mos, no entanto, até especular se ele não está mais interes sado em reconstruir as próprias ciências do homem, que por muito tempo estiveram pautadas por princípios positivistas que ele tanto condena. Com isso afastou-se de uma aborda gem nova que vem anunciando, a qual pode conferir especifi cidade e, portanto, uma identidade epistemoiógica15 à uma área (EF) que, como ele tão bem observa/denuncia, sempre foi usada a serviço das mais variadas formas de poder. Res ta, para Manuel Sérgio, explicitar a especificidade da CMH, que traduz uma maneira própria de abordar o movimento humano. Entendemos que o primeiro passo é apresentar um conjunto de questões que configura uma problemática pró pria a essa “ciência”. Considerações finais Para a aceitação da tese da Ciência da Motricidade Humana tornam-se necessários esclarecimentos e/ou res postas a questões respeitantes, por exemplo, à sua especificidade, à sua filiação epistemoiógica, à sua relação com outras “ciências” e com a prática pedagógica de Edu cação Física e às suas necessidades e possibilidades. Essas questões foram levantadas durante o decorrer do trabalho e acreditamos que são questões geradoras de dúvidas e impasses que comprometem o/a surgimento/afirmação da CMH. Entretanto, uma autocrítica também nos cabe: não foi possível discorrer sobre todas as questões levantadas, bem como aprofundar as exposições desenvolvidas. Dessa forma, na revisitação de alguns pontos e na exploração dos outros, estamos abertos e esperamos, críticas e sugestões para a concretização deste trabalho. Bracht (1996) lembra-nos que identidade epistemoiógica “significa a forma pró- pria com que cada disciplina científica interroga e explica a realidade, o que é determinado pelo tipo de problema que levanta, pelos métodos de investigação e linguagem que desenvolveu e utiliza” (p. 6). J 1Í3 Q U A D R O DA E V O L U Ç Ã O DO P E N S A M E N T O DE M A N U E L S É R G IO EM T O R N O DA C M H A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: UM DIÁLOGO COM MAURO BETTI1 Avoluma-se e cresce em qualidade a discussão em tor no da caracterização científica da área da Educação Física (Ciências do Esporte; Ciência do Movimento Humano; Ciên cia da Motricidade Humana)2. A preocupação com tal carac terização tem-se concentrado em três aspectos distintos e complementares: a) a identificação da distribuição da produ ção do conhecimento nas diferentes “subáreas” (biológica, sociológica, psicológica, pedagógica, etc.); b) a identificação das concepções de ciência (positivismo, neopositivismo, fenomenologia-hermenêutica, materialismo histórico dialético) que têm orientado as pesquisas na área; e c) a tentativa de delimitar e caracterizar epistemologicamente a área ou o campo, ou seja, caracterizar a identidade da área no que diz respeito à sua relação com a ciência. Em estudos anteriores (Bracht, 1992, 1993, 1995, 1996 e 1997) enfocamos esses três aspectos. Uma tese recorrente nesses nossos estudos, entre outras, é a da não 1 Trabalho apresentado no GTT de Epistemologia do X CONBRACE (Goiânia/GO, 1997). 2 A denominação da área se dá de forma diferenciada. No entanto, qualquer que seja a denominação, sempre está-se referindo a uma tradição que teve como denomina ção comum o termo Educação Física (e anteriormente a esta, ginástica). Ou seja, todas se colocam como herdeiras do campo da Educação Física. existência de um elemento norteador da produção do conhe cimento na área que permite vislumbrar a construção de uma unidade (seja disciplinar, seja interdisciplinar), ou seja, a produção do conhecimento é disciplinar e caminha na dire ção de sua crescente fragmentação e especialização. Colo cam-se aí pelo menos duas questões: a) quais são as razões dessa tendência à fragmentação? b) Qual pode ser o ele mento orientador a conferir uma unidade que permita falar de uma área do conhecimento? Mais recentemente (Bracht, 1996, 1997), recuperan do o processo histórico de construção do campo acadêmico (ou da área) da Educação Física (EF), viemos construindo a tese de que existe a possibilidade de construir um campo acadêmico a partir de um elemento integrador do esforço teórico na área da “EF”. Para tanto temos de superar o entendimento empirista-ingênuo de que o esporte, a ativi dade física, o movimento ou a motricidade humana podem ser entendidos como um objeto científico (de uma ou de mais ciências). Assim, um pressuposto inicial é o de que tal elemento integrador, ou o nosso objeto, é uma problemática teórica compartilhada. Analisando a história da EF, entendo ser possível caracterizá-la como uma prática pedagógica (com sua especificidade) e que, como tal, requereu e requer um corpo de conhecimentos que a sustente. Esse corpo de conheci mentos (que muitos, entre eles, Betti [1996], entendem deve ser adjetivado de científico), se o entendermos vinculado a essa prática, precisa ser construído a partir da problemática que identifico como o movimentar-se humano e suas objetivações culturais na perspectiva de sua participação/ contribuição para a educação do homem3. Portanto, ele- 3 Desde logo, para prevenir possíveis mal-entendidos, esclareço que essa é uma caracterização meramente descritiva. Educação do homem, objetivações culturais e outros conceitos nela presentes precisam receber tratamento teórico para adqui rirem concretude. mento caracterizador indispensável dessa proposta de pro blemática é a intenção pedagógica, ou seja, o olhar que orientará a reflexão (na busca de explicações e compreen- sões), sobre o movimentar-se humano e suas objetivações culturais (cultura corporal de movimento), é o pedagógico. Betti (1996)4, em recente trabalho, analisa criticamen te essa tese e os elementos que a sustentam e levanta uma série de perguntas e questionamentos. Na seqüência nos ocuparemos, então, em acompanhar o raciocínio do autor buscando refletir sobre os questionamentos levantados, na perspectiva de melhor fundamentar nossas posições. Debatendo com M. Betti Betti (1996) intitulou seu trabalho de forma sugestiva: Por uma Teoria da Prática. O título já indica uma opção e uma direção: a sua preocupação com a prática, em ofere cer uma teoria da prática; é ao longo do texto que ele carac teriza, então, seu entendimento do que é prática no âmbito da EF. O autor se propôs no texto a estabelecer um debate com autores que, nos últimos anos, no seu julgamento, “con tribuíram significativamente para a constituição de uma teo ria da EF de matizes brasileiras”. Os autores tomados para tal interlocução foram: Tani (1988, 1989), Lovisolo (1994), Kolyniak Filho (1994, 1995a, 1995b) e Bracht (1993). Tra ta-se em nosso entender de um dos mais brilhantes esforços já empreendidos para analisar sistematicamente o pensa mento epistemológico da EF brasileira. 4 Estamos nos valendo aqui do texto na versão a nós enviada pessoalmente pelo autor, pelo que agradecemos de público. O texto foi publicado, não sabemos se com modificações, na revista Motus Corporis (v. 3, n. 2, dez. 1996). Uma tônica presente ao longo do texto é o combate aos diversos dualismos/dicotomias (EF versus Esporte; es porte versus jogo; EF como área do conhecimento uersus EF como prática pedagógica, etc.) que o autor entende existi rem na nossa área. Aliás, para o autor é possível identificar uma “nova macro dicotomia” na divisão dos discursos atuais sobre a teoria da EF: uma, que vê a EF como área do conhe cimento científico; outra, que a vê como prática pedagógi ca. Situa os diferentes autores nessas duas “matrizes”, alocando-nos na segunda, ou seja, na matriz pedagógica5. Inicialmente Betti observa que os defensores da matriz pedagógica, “desesperados com o desaparecimento da EF, buscam resguardá-la no interior da Escola, restringindo o seu alcance conceituai, quando deveriam buscar ampliá-lo. Perdem igual mente a EF quando a encontram. Antagonizam com o espor te, hostilizam as academias, criticam as bases epistemológicas das ciências da natureza e associam a si próprios com as ciên cias humanas [e instalam aí uma nova dicotomia...]”6. É claro que o autor está trabalhando, necessariamente, com generalizações. Cada um dos “atingidos” pode sentir-se não-contemplado ou “injustiçado”. Particularmente, para o nosso caso, entendemos que a caracterização acima não é adequada, como procuraremos argumentar na seqüência. Antes, porém, é importante colocar melhor a recepção, por parte de Betti, do nosso pensamento. 5 Observe-se aqui que não será possível, neste momento, debater também com o conjunto de autores revisados/criticados por Betti (1996). Limitar-nos-emos a um diálogo com as interpretações de Betti de nossas posições, embora tangencie postu ras de outros autores. 6 Uma observação rápida: os termos dualismo e dicotomia são utilizados alternadamente, sem que nos dois casos aconteça o seu tratamento conceituai. Como observarei adiante esses termos estão longe de serem auto-explicativos ou não-problemáticos. Betti faz menção ao nosso entendimento de que, para a busca do objeto da EF, devemos ter claro que ela é antes de tudo uma prática pedagógica e que reconhecer a EF primeiro como prática pedagógica é fundamental para reco nhecer o tipo de conhecimento, de saber necessário para orientá-la, e para o reconhecimento do tipo de relação pos sível/desejável entre a EF e o “saber científico”, ou as disci plinas científicas. Refere-se, também, ao nosso entendimen to de que o movimento humano enquanto fenômeno não é já um objeto científico e que sua objectualização pelas dife rentes disciplinas redunda, na verdade, em diferentes obje tos. Apresenta nossa idéia de que a EF tem de assumir o caráter de uma ciência da e para a prática. Betti diz entusias mar-se, até esse ponto, com nossas conclusões. Mas, enten de que, ao aprofundarmos nosso entendimento sobre tal ciên cia, incorremos em uma nova dicotomia. Refere-se Betti a nossa observação de que “precisaríamos aclarar se a EF ope raria a partir dos princípios epistemológicos das ciências na turais ou das ciências sociais e humanas”. Coloca ainda que, em nosso entendimento, a “ciência clássica” introduz, inevi tavelmente, reducionismos no estudo do movimento huma no, e que sugerimos então que o teorizar em EF precisa ultrapassar o próprio teorizar científico, contemplando o biopsicossocial, o ético e o estético, numa perspectiva de globalidade, portanto uma nova construção do nosso objeto. Afirma Betti, ainda, que nós não acreditamos na interdisci plinaridade, já que entendemos predominar a tendência à fragmentação e não existir uma problemática teórica que possa integrar as disciplinas que se ocupam cientificamente do movimento humano. Nesse ponto Betti (1996) diz ter, em relação às nossas posições, muitas objeções: 1) se a ciência “clássica” ou “tradi cional” a que nos referimos são as ciências naturais ou o po sitivismo e se a alternativa são as ciências humanas/sociais; nos imputa, nesse caso, uma assimilação entre positivismo e empirismo e certa confusão entre positivismo e quantificação; 2) argumenta que, se o ético e o estético são remetidos para a filosofia, isso não é pouco, pois Apel e Habermas são filósofos; faltou, no seu entender, estabelecer relações mais explícitas entre a filosofia e as demandas da pesquisa em EF; 3) por que temos de escolher primeiro a prática pedagó gica e depois o conhecimento científico “Se Bracht reconhece que a ‘chave’ está na relação entre as duas instâncias, o que interessa então é a inter-relação. Ter que optar por um primeiro, é como ter que'optar entre o indivíduo e a sociedade, o sujeito e o objeto, a teoria e a prática, minimizando a possibilidade da mediação”. (Betti, 1996). Por fim, o autor concorda ser preciso haver um princí pio integrador, que nós entendemos ser a prática pedagógi ca; nesse sentido Betti entende ser necessário que esta últi ma abarque todas as manifestações da motricidade social mente institucionalizadas. Algumas das questões que Betti nos coloca são passí veis de respostas razoavelmente imediatas e simples; outras,, no entanto, e estas são as realmente substanciais, são extre mamente complexas e dificilmente respondíveis, devido às nossas limitações pessoais e à própria indefinição e polêmi ca existente no plano do pensamento científico-filosófico mais avançado. Ma;, vamos às questões! As duas primeiras questões situam-se no plano geral da teoria do conhecimento e/ou teoria da ciência. Quando nos referimos à ciência “clássica” ou “tradicio nal”, estamos nos referindo não às ciências naturais enquan to tais, mas às ciências que fazem seus os princípios daque las. É importante frisar que é esse o modelo ou a concepção de ciência que torna-se hegemônico, inclusive no interior das ciências sociais e humanas. O positivismo é apenas um exem plo. Assim sendo, é claro que a alternativa para fundamen tar a EF não é simplesmente as ciências sociais e humanas. É, no entanto, no interior dessas que temos um movimento contestador dos princípios da ciência tradicional ou hegemô nica, que traz à luz as limitações (conseqüências) dessa para a explicação/compreensão das ações humanas. Se existem diferentes entendimentos do que é a racionalidade científi ca, se temos no seu interior um debate em torno do monismo ou dualismo metodológico, quando falamos em dar funda mentos científicos para a EF, o que se exige, no mínimo, é que nos posicionemos a esse respeito7. Não é possível falar de ciência como se esta fosse um mar de unanimidades. E preciso tomar posição e com fundamento racional, diga-se de passagem, porque o que campeia são posições assumi das com base em vinculações meramente emocionais, políti- co-partidárias, ou então que se situam no plano da doxa ou do senso comum. A questão dois, vinculada a essa, diz respeito ao pres suposto básico daquela ciência tradicional da qual faláva mos. Trata-se da distinção entre o saber fático e o ético- normativo. A ciência sempre se propôs a se pronunciar so bre o que é a realidade e não sobre o que ela deveria ser. Ou seja, a racionalidade científica não está em condições de se pronunciar acerca do que deveríamos ou não ser; ela está em condições de auxiliar as decisões éticas com conheci- 7 É interessante a crítica de incorrer no dualismo (ciências naturais versus ciências sociais e humanas) que Betti nos endereça, porque ele mesmo trabalha com a distinção entre essas ciências para criticar Kolyniak Filho: “Para mim [M. Betti], a limitação do positivismo não é tanto a fragmentação em áreas e subáreas cada vez mais especializadas (que atingiu tanto as Ciências da Natureza quanto as Ciências Humanas), mas na indistinção entre as metodologias das Ciências Naturais e Ciên cias Humanas. Exige-se para estas últimas os mesmos critérios de cientificidade consagrados nas primeiras, não considerando a possibilidade de que a objetividade das Ciências Humanas seja de outra ordem e esteja em construção, em adequação crescente aos seus objetos (Ladrière, 1982)” (Betti, 1996). mento seguro do que somos ou do que a realidade é, ou melhor, de como a realidade funciona (quais as leis que a regem). De sentenças sobre o que a realidade é não é possí vel deduzir lógica e necessariamente (ou cientificamente, se quiserem) o que ela deve ser. Como a EF, enquanto prática pedagógica, necessariamente envolve a dimensão do ético- normativo, para que a ciência (ou a racionalidade científica) possa lhe fornecer a fundamentação necessária, é preciso, ou complementar o conhecimento científico com a filosofia (que me parece a opção de Betti porque fala por diversas vezes (p. 33) em conhecimentos “científicos e filosóficos” e em “ciências/filosofia”8, ou, trabalhar com um novo concei to de racionalidade (que talvez não precise ser adjetivada de científica se nos livrarmos do fetiche da ciência moderna), que consiga estabelecer a ponte entre o fático e normativo sem abdicar da pretensão à racionalidade para suas assertivas. Esse é o projeto conhecido de J. Habermas, o da razão comunicativa. Mas, base para tal empreendimento é a su peração do paradigma científico centrado na relação sujeito- objeto, a favor do paradigma da linguagem (a partir da vira da linguística operada pela filosofia analítica e pela hermenêutica), que se constitui em base do conceito de ra zão comunicativa. Nessa, a linguagem não é mais mera for ma de representação e sim uma forma de ação. “Desloca-se o foco da investigação da racionalidade cognitivo- insirumental para a racionalidade comunicativa. Não mais se embasa o conhecimento na relação sujeito-objeto, mas na relação intersubjetiva que assumem atores sociais capazes de fala-ação ao se entenderem entre si sobre algo no mundo”. (Marques, 1993, p. 86). 8 Devolvo aqui a crítica de incorrer numa dicotomia. Betti, quase ao final de seu texto, afirma: “o princípio integrador possível neste processo advém de um processo de valoração; portanto, só a filosofia pode propiciar esta integração". Porque só a filosofia? A filosofia não estaria contemplada no plano da racionalidade científica? Que tipo de verdade seria produzida por uma e por outra? Não se trata de considerar supérfluo o conhecimento produzido a partir do interesse técnico (pelas ciências empírico-analíticas), nem absolutizar o conhecimento produ zido a partir do interesse prático pelas ciências histórico- hermenêuticas. Trata-se, isto sim, de reconhecer seus limi tes e possibilidades e reinterpretá-los, submetê-los a outro critério, a uma racionalidade comunicativa. “Entrelaçam-se na unidade da razão comunicativa o interesse prático das ciências histórico-hermenêuticas e o interesse emancipatório das ciências crítico-reflexivas” (Marques, 1993, p. 89). Buscando superar o dualismo entre a racionalidade téc nica e a racionalidade normativa, a teoria da ação comuni cativa busca uma racionalidade prática de ação comum à procura dos melhores objetivos através do diálogo. Betti (1996) fez uma tentativa de pensar uma possível teoria da prática para a EF, a partir da teoria da prática (da ação) de P. Bourdieu. E uma tentativa interessante, mas que, se não incorro em erro, exclui ou não contempla exata mente o dualismo acima discutido (conhecimento fático uersus conhecimento normativo), aspecto fundamental para uma 'teoria da prática, entendida como ação ética, normativa, caracteristicamente humana. Assim, parece-me interessan te, também, pensar uma teoria da EF a partir da proposta de Habermas (num certo sentido E. Kunz e colaboradores na UFSC estão engajados nesse projeto). A nós parece, e esse é um julgamento preliminar e parcial, que a teoria da ação comunicativa é mais produtiva para o caso de uma prática pedagógica. Se pensarmos junto com Habermas (tomarmos a sua posição), diríamos, provavelmente, que Bourdieu, com sua tentativa de superar o impasse objetivismo uersus subjetivismo, presente na sociologia, em favor de uma teoria da prática, permanece no paradigma da filosofia da consciên cia e recai, ora no objetivismo, ora no subjetivismo (por isso ele é criticado por alguns autores como estruturalista e recla ma-se dele algo propositivo). Mas esse debate não pode ser levado a termo aqui. A terceira questão foi colocada por Betti da seguinte forma: por que temos de primeiro escolher a prática peda gógica e depois o conhecimento científico? Recoloquemos a questão: postulamos que a EF deve ser entendida primeiro como prática pedagógica, ou seja, definidor de sua identida de, como prática social, é a sua característica de ser uma prática de intervenção imediata, no caso, uma prática peda gógica. Portanto, nossa questão não é colocá-la aqui ou ali: ou ciência, ou prática pedagógica. Esses não são termos antagônicos, embora diferentes. Alguns autores, como Tani, em alguns momentos, e M. Sérgio, a quem as minhas afir mações estavam endereçadas, parecem só ver uma possibi lidade da EF alcançar legitimidade: afirmando-se como ciên cia. Por que para nós a questão não se apresenta como alternativa? Porque toda prática social, principalmente aquela com características de prática pedagógica, exige um supor te teórico que não pode prescindir do saber científico para fundamentar as decisões com as quais está constantemente confrontada. Constituir um campo acadêmico é, portanto, necessário complemento/acompanhamento dessa prática. Quais são as características e os contornos desse campo, com quais outros interage e como, com qual concepção de racionalidade (científica) vai ou deve operar? Bem, essa é a questão! Mas, tentar afirmar a identidade da EF somente ou primeiramente como ciência é, em nosso entendimento, uma inversão, mesmo porque a EF (sua tradição), nessa perspec tiva, se perde. Talvez este seja o momento de fazer algumas conside rações acerca da proposta de uma Ciência do Movimento Humano ou Cinesiologia (Tani, 1996) ou Ciência da Motri- cidade Humana (CMH) (Sérgio, 1994). Tani (1996), como bem-observa Betti (1996), tem a virtude de se preocupar com a Educação Física, entendendo-a como ciência aplica da, enquanto Sérgio (1994) considera a EF (Educação Motora) como ramo pedagógico da CMH. Já apresentamos nossos argumentos que, no nosso entendimento, demonstram a im possibilidade de tal ciência (no singular). De certa forma, após duas décadas de experiência, uma boa parte dos estu diosos alemães da área também concluiu que a ciência desportiva continua e continuará sendo Ciências do Esporte (no plural)9. No entanto, é claro que as Ciências do Movi mento Humano ou as Ciências da Motricidade Humana po dem se organizar “debaixo de um mesmo teto”, propiciando um ambiente no qual cada um faz suas pesquisas em meio à indiferença simpática dos demais. Parece-me inclusive ha ver demanda, nos mais diversos setores sociais, para tal co nhecimento (disciplinar, pluridisciplinar). Se então elas de vem ocupar nas universidades um espaço específico, organi zarem-se num instituto, centro, etc., é uma decisão política. A decisão pode ser inclusive, a de transformar os hoje cen tros/departamentos/escolas de Educação Física e Desportos em centros/departamentos/institutos de Cinesiologia. No entanto, qualquer que seja a decisão, esses não irão substi tuir a prática social EF. Isto é, não devemos confundir a reorganização dos saberes nas instâncias de sua produção e de formação profissional com determinada prática social. Particularmente, e esta é uma posição política, entendemos e colocamos nossos esforços na perspectiva da EF entendida como prática pedagógica. 9 Ver a respeito Prohl (1991). Considerações finais Betti (1996) propõe corrigir nossa posição ampliando o conceito por nós utilizado de “prática pedagógica” para “prática social das atividades corporais de movimento, con cebida como campo de dinamismo social, onde se dá a con frontação e a disputa de modelos de prática e no qual atuam diversas forças sociais (inclusive a comunidade acadêmico-pro- fissional da EF). Uma prática social assim concebida é quase sinônimo do conceito de ‘cultura corporal de movimento’.” (Betti, 1996, p .31). O problema que vejo aqui é que, assim definida, a EF não é quase sinônimo de cultura corporal de movimento; ela é sinônimo propriamente dito dessa expressão! Uma teoria (geral) da EF é então uma teoria geral da cultura corporal de movimento. Assim formulada, fica muito difícil identificar uma problemática teórica que delimite os esforços teóricos específicos deste campo. Entendemos que nossa formulação permite identificar tal problemática quando centra/organiza tal teorizar na perspectiva do pedagógico. Assim, repetindo, a teoria da EF tem como problemática a participação/con tribuição do movimentar-se humano e suas objetivações cul turais na/para a educação do homem. A teoria daí decor rente poder orientar/fundamentar os sujeitos da ação na quelas instâncias sociais em que a intenção pedagógica con fere o sentido (fosse o leitmotiu) dessas ações. Toda vez que um profissional (da EF, do esporte...) pretendesse, em qual quer instância social, tematizar qualquer elemento da cultura corporal de movimento, a partir da intenção pedagógica, ele encontraria fundamentos nessa teoria. Vale dizer, que a ins tituição educacional possui especificidades que tornam ne cessárias reflexões para adequar-lhe a teoria. EPISTEMOLOGIA E POLÍTICA NA EDUCAÇÃO “El discurso metafísico de Occidente está llegando a su fin y la filosofia, en su atardecer, nos há hecho, através de los grandes nombres dei siglo, un ultimo servido: deconstruir su proprio terreno y crear las condiciones de su propia imposibilidad. Pensemos, por ejemplo, en los indecidibles de Derrida. Una vez que la indecidibilidad há alcanzado al propio fundamento, una vez que la organización de un cierto campo es gobernada por una decisión hegemónica - hegemónica porque ella no es determinada objetivamente, porque decisiones diferentes son también posibles - el reino de la filosofia llega a su fin y comienza el reino de la política.” (Laclau, 1996) Os desenvolvimentos científicos das últimas décadas nos levaram a uma maior consciência dos limites da racio nalidade científica. Acirrou-se o debate em torno dos funda mentos da ciência, sobre as possibilidades/impossibilidades de encontrar/construir fundamentos seguros para a ativida de de conhecer cientificamente a realidade. Esse debate parece ter resultado num grande não à possibilidade de um fundamento último a partir do qual o edifício científico pu desse ser construído. Afirma-se cada vez mais o caráter pro- 1 Texto enviado para o GTT Epistemologia do XI CONBRACE (Florianópolis/SC, 1999). cessual da verdade. Acentuou-se também, muito em função da ameaça ecológica, a consciência de que a produção cien tífica (traduzida em tecnologia) não é inocente, que a produ ção científica não pode ser reduzida a uma operação lógica, ela é sempre intrinsecamente política, não sendo possível isolar hermeticamente em pólos distintos o papel do cidadão e o do cientista. As ciências naturais, outrora tão zelosas (e arrogantes) quanto à propalada objetividade do conhecimen to que produzem, precisaram aos poucos admitir, a partir de seus próprios desenvolvimentos, que o objeto não permane ce indiferente ao observador ou ao sujeito do conhecimento. Nas ciências sociais e humanas ouvem-se, em volume cres cente, vozes que admitem a necessidade de rever o antago nismo natureza-cultura que permeou e permeia essas ciên cias. A pretensão da racionalidade científica de eleger-se como a própria racionalidade é acusada de ser coadjuvante de reducionismos e totalitarismos, ao mesmo tempo em que se busca e se propala a importância de outras racionalidades, numa perspectiva psicologizante, outras inteligências, como a emocional. Intervir a partir do conhecimento científico passa a ser problemático porque o otimismo, a visão positiva da racionalidade científica, como forma privilegiada de conhe cer a realidade está sob forte suspeita: abalou-se a “crença” no poder da razão científica, o que tem levado, por um lado, à sua negação simplista, justificando um mergulho no esoterismo e, por outro, a tentativas de redefinição/recons trução do modelo de racionalidade, tomando-a como fenômeno também histórico e portanto contingente. Da crí tica à oposição cultura-natureza emerge a revalorização da nossa (primeira) natureza, ou do corpóreo no homem, não mais entendido como mero mecanismo de uma estrutura superior, a mental, mas como uma estrutura com plexa que ao mesmo tempo contém aquela (ou na qual aquela radica), mas a transcende. Desenvolvimentos da filosofia da ^ ^ 130^ -—- - - - - — linguagem mostram como somos seres imersos na lingua gem, como as apreensões que fazemos do real são depen dentes e préfiguradas pelos conceitos dos quais nos valemos, isto é, a linguagem não é um instrumento/meio neutro na ação do conhecimento. A superação paulatina do euro- centrismo permite considerar outras culturas não como “in feriores” mas como diferentes e dignas. A complexificação do mundo pela interpenetração ou crescente intercâmbio de várias ordens (econômico-financeiro, político e cultural) pa rece-nos colocar de frente a uma “nova intransparência” (J. Habermas). Todos esses desdobramentos, internos e externos ao fazer científico propriamente dito, afetam nossa vida e nos sa produção acadêmica talvez mais do que num primeiro momento possamos perceber, ou mesmo estejamos dispos tos a admitir. Estamos confrontados com problemas que pa recem desafiar nossos modelos de pensamento ou o modelo moderno do conhecimento (cf. Marques, 1993). Entre as inúmeras questões que nos desafiam a partir do quadro es boçado acima, selecionei algumas que entendo afetam a vida do CBCE (Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte) como comunidade que reúne pessoas interessadas no avan ço do conhecimento e na intervenção social qualificada para a qual esse conhecimento pode contribuir. As questões a que me refiro estão ligadas a um conjun to de conceitos que albergam polêmi;as e visões, ao menos aparentemente, conflitantes: pluralismo, diversidade, dife rença, particularismo, fragmentação, antifundacionalismo, irracionalismo, acaso/caos, de um lado, e unidade, totalida de, universalidade, ordem e racionalismo de outro2. A polê mica em torno destes temas marca as posições e as ações 2 A polarização que fiz é meramente didática. Ela em verdade é precária, como discutirei no texto. em torno da relação epistemologia e política ou entre conhe cimento e intervenção. Buscarei demonstrar como estas ques tões não só afetam nossas noções de conhecimento, ciência e verdade, como as de democracia e política. Destacam-se neste sentido as discussões em torno do pluralismo e do relativismo, temáticas caras ao antifundacionalismo e que afetam mais diretamente nossas noções de democracia. Delineando as posições presentes na Educação Física brasileira e no CBCE3 Na Educação Física brasileira e particularmente no CBCE, depois de um debate entre os que advogavam uma ciência neutra e aqueles que defendiam uma ciência engajada (década de 80, principalmente), o debate que se impõe hoje parece ser de outra ordem. Não mais o debate entre, de um lado, o isolamento e, de outro, o engajamento da ciência, mas sobre possibilidades, características, limitações, enfim, sobre o que pode ou deve significar ciência engajada. Como lembra Demo (1998), modernamente avolumou-se o inte resse em caracterizar a relação entre ciência e política como intrínseca, em que pese a fácil banalização que isso pode acarretar. Dentro desse novo quadro algumas posições se deli neiam. Podemos observar, no campo, uma visão da relação epistemologia e política que entende que no plano da produ ção do conhecimento reflete-se a contradição, ou melhor, o 3 Neste texto opto por não identificar autores com as posições aqui delineadas por dois motivos. O primeiro deles é que, ao caracterizar posições, esta é feita esquematicamente, ressaltando pontos e empobrecendo possíveis nuanças internas à própria posição. O segundo é que, dada a pouca discussão acumulada na área, em EF tendemos a transformar essas caracterizações/aproximações imediatamen te em rótulos valorativos. ' 132C v v w < - ^ wv antagonismo social, o que leva a uma necessária dicotomia que é determinada pela opção política a favor dos interesses dominantes (capital) ou a favor dos interesses dominados (trabalho). A opção pelo interesse (político) histórico da maio ria (classe trabalhadora/proletariado) conferiria a condição de um acesso privilegiado, em termos de conhecimento (ver dadeiro), à realidade. A outra posição (opção) seria ideológi ca, no sentido da falsa consciência. Essa posição desemboca em contradições e está sustentada em bases hoje dificilmen te defensáveis e muitas vezes é alvo de banalização. A mais comum é “o abandono apressado da lógica, como se democracia a subs tituísse. Em vez do argumento cuidadoso, logicamente funda do, prefere-se o discurso exacerbado, agressivo, demolidor, sem dispor de nada mais sólido para colocar no lugár. No extremo, pretende-se submeter lógica à democraciâ, fazendo o erro oposto do positivismo, que submete democracia à lógi ca. Falta apenas exigir que se vote, para decidir se lógica ainda vale”. (Demo, 1998, p. 238) Numa versão vulgar, essa posição advoga a possibilida de da identificação de leis históricas (à semelhança das leis da natureza) que indicam o proletariado como a classe res ponsável pelo projeto de emancipação humana; a reconcilia ção do homem com ele mesmo. Não há maiores problemas, em princípio, em identificar um grupo, uma classe social como responsável por um tal projeto. O problema se coloca quando se o faz com a pretensão de que essa é uma neces sidade histórica inelutável e portanto, “cientificamente comprovável”. Entendo ser essa necessidade argumentável, mas não pelo seu caráter inevitável e sim por razões políti cas e éticas. A idéia da prática como critério de verdade, muitas vezes citada para indicar o entendimento de ciência adota do, leva a um círculo vicioso. A vida concreta dos homens, é .. claro, é nossa referência última. No entanto, essa prática adquire significado humano quando por ele refletida. Portan to, é a prática interpretada que é o critério de verdade. Para tal interpretação concorrem (pré)conceitos que demandam opções. Ou seja, estamos no plano de um círculo herme nêutico. Não obstante é preciso advertir: “A negação que haja um fundamento a partir do qual os con teúdos sociais obteriam um sentido preciso, pode ser facil mente transformada na afirmação de que a sociedade carece inteiramente de sentido; questionar a universalidade dos agen tes da transformação histórica conduz, com freqüência, à pro posição de que toda intervenção histórica é igualmente limita da e sem esperança; e mostrar a opacidade dos processos de representação é com frequência considerado como equivalen te a negar que a representação seja em absoluto possível.” (Laclau, 1996, p. 153) A posição acima exposta adota a perspectiva da uni dade metodológica no sentido de que determinada via per mite um acesso privilegiado (verdadeiro) à realidade, negan do assim, o relativismo e o pluralismo metodológico. Outra posição vem-se delineando mais recentemente no plano filosófico, científico e político-social e vai adquirin do proeminência nos últimos anos, inclusive na Educação Física. Trata-se de posições identificadas pelo jargão “pós- moderno”; posições que parecem poder ser identificadas pela idéia de superação do projeto e das crenças características da modernidade, muitas delas já apresentadas no início do texto. Como mostrou Welsch (1988), o termo “pós-moderno” tem significações muito distintas nos diferentes campos do conhecimento e setores sociais: na arte, na filosofia, na socio logia, na política, etc. Sem a possibilidade de perseguir o processo de construção simbólica que envolve o tema da 134 pós-modernidade nesses diferentes campos, vou ater-me a identificar alguns pontos que dizem diretamente respeito aos objetivos da presente discussão. Um deles é o antifundacionalismo que traz consigo a discussão do relativismo e do pluralismo. Na Educação e na Educação Física essa discussão acontece mais com base na obra de M. Foucault, tendo como pano de fundo Nietzsche, a partir dos quais a ciência é expressão da vontade de po der, sendo que não há a possibilidade de qualquer discurso situar-se fora de seu domínio. O antifundacionalismo e o desconstrucionismo enten dem que a pretensão da razão científica moderna é desme surada e expressa a aspiração à totalidade que leva intrinse camente a totalitarismos que massacram o particular e a diferença, que pecam contra o pluralismo necessário para que exista respeito a posições minoritárias e não-hege- mônicas. Vários são os movimentos intelectuais que dão sus tentação à posição antifundacionalista, entre eles situamos os desenvolvimentos da lingüística e filosofia da linguagem (virada lingüística) e as discussões no plano da filosofia da ciência nas suas tentativas, frustradas, de encontrar um fun damento último (não-metafísico) para a própria razão cien tífica. Colocada essa posição em termos genéricos, vou to mar como referência a posição de um autor antifundacio nalista importante, que é R. Rorty, com base na recepção feita por E. Laclau (1996). Isso porque Rorty é um dos raros antifundacionalistas que buscam pensar as conseqüências dessa posição no plano da política. Isso adquire relevância porque, conforme Laclau (1996), a adoção da posição que advoga a indecidibilidade está afetando o sentido da ação coletiva, está levando a um isolamento generalizado do político. Rorty se autodefine como liberal irônico (ironista libe ral). Para Rorty, segundo Laclau (1996), liberais são aqueles que pensam que a crueldade é o pior que se pode fazer. E irônico é o tipo de pessoa que é capaz de assumir a contin gência de suas crenças e desejos mais centrais - alguém tão historicista e nominalista a ponto de haver abandonado a idéia de que essas crenças e desejos centrais remetam a algo além do tempo e da oportunidade. Os liberais irônicos são gente que inclui, entre os desejos impossíveis de fundamen tar, sua própria esperança de que o sofrimento diminuirá, de que a humilhação dos seres humanos por outros seres huma nos poderá cessar. Como podemos perceber, uma posição francamente antifundacionalista. Afirmar que a ordem social ou uma comunidade são igualmente contingentes carece de fundamento último, na interpretação de Laclau. Rorty se manobraria numa dificul dade, porque o vocabulário no qual a democracia liberal ha via inicialmente se apresentado é o do racionalismo iluminista. Ele precisa, então, fazer um esforço para reformular o ideal democrático de um modo não-racionalista e não-universalista. Um dos pontos a ser enfrentado é o do relativismo, que é questionado com uma pergunta de Michael Sandel, citado por Laclau (1996): se as convicções próprias são ape nas relativamente válidas, por que defendê-las resolutamen te? Rorty tenta responder, buscando demonstrar que o pro blema do relativismo é um falso problema. Descarta as no ções de validade absoluta ou universal e diz que a única alternativa é restringir a oposição entre formas racionais e irracionais de persuasão aos confins de um jogo de lingua gem dentro do qual é possível distinguir entre razões de uma crença e causas de uma crença que não são racionais. A posição de Rorty leva a questionar a própria noção de irracionalidade ou irracionalismo. A conseqüência é que a questão da validade é essencialmente aberta e conversacional. Mas, se, segundo Rorty, uma sociedade liberal é aquela que se contenta em chamar verdadeiro ao resultado desses en contros, qualquer que seja, como compatibilizá-la com uma situação em que uma sociedade aceita um sistema de tabus e a imposição de uma ordem social? Segundo Laclau (1996, p. 191), o poeta e o revolucionário utópico, que são os atores centrais na narrativa de Rorty, desempenham o papel de protestar em nome da própria sociedade contra aqueles aspectos da sociedade que são infiéis à sua própria imagem. Laclau (1996) mesmo se incumbe de colocar duas ob- jeções à utopia liberal de Rorty: a primeira é que o abando no de uma fundamentação metafísica das sociedades libe rais as privará de um cimento social indispensável para a continuidade das instituições livres e a segunda é que não é possível, desde um ponto de vista psicológico, ser um liberal irônico sem se ter, ao mesmo tempo, algumas crenças metafísicas acerca da natureza dos seres humanos (p. 193). Além dessas objeções, gostaria de colocar que a posi ção do liberal irônico parece conduzir para uma aporia se melhante a identificada por Habermas (1988a, O discurso filosófico da modernidade) na teoria do poder de M. Foucault; a de que o sofrimento imposto pelo poder não pode ser percebido como tal (sofrimento) porque não há nada exterior ao próprio poder que possa servir de referência (tudo é dis curso). Como julgar o caráter revolucionário e utópico de uma ação, se todas são contingentes, se não há fundamento não-questionável, não-contingente, ou melhor, se não se deve buscar um fundamento universal para as diferentes posições? Como lembrou Luchi (1999) em recente palestra, afirmar a diferença pura e simplesmente é canonizar o fraco, é cano nizar o forte e, acrescentaríamos, o tolerante e o intolerante, o democrático e o autoritário, ou, com diz Brayner (1999), o problema é que existem certos “diferentes” que, uma vez no poder, gostariam de suprimir a própria diferença que os per mitiu se manifestar. A tolerância deve tolerar o intolerante? Parece também que Rorty não consegue evitar a contradi ção performativa como colocada por Apel (1988): argumen tar resolutamente a favor de uma posição relativista é (impli citamente) reivindicar validade para sua posição em detri mento de outras - eu não posso argumentar sem pretender validade para minha posição. De qualquer forma, a posição acima discutida tem-se apresentado como uma denúncia do caráter conservador e de .suas vinculações com o poder de princípios e idéias como as de universalidade, unidade e totalidade, contrapondo a essas as de diversidade, diferença, particularidade e contin gência; uma postura que nega qualquer possibilidade de hierarquizar o conhecimento em mais ou menos verdadeiro (portanto, rejeita a idéia de ideologia), propugnando um pluralismo radical, com base no relativismo, e que de forma conseqüente declara como inimiga a idéia de unidade/totali dade, erigindo como princípio a diferença. Uma terceira posição presente na educação física bra sileira (e no CBCE) é aquela estribada na teoria da razão comunicativa de J. Habermas. Algumas idéias centrais aqui são: (a) faz sentido e é necessário diferenciar racionalismo de irracionalismo; (b) a verdade (científica) não deve ser en tendida como correspondência entre conceito e fenômeno, mas sim como a validade de uma tese proveniente de um consenso obtido num diálogo discursivo isento de coerção (verdade é uma pretensão de validade); (c) a discutibilidade radical das asserções sobre o real como princípio básico; (d) não há como prescindir de um fundamento universal (na ciência/na razão e na política); e (e) a conjugação da quali dade formal e política do conhecimento, trazendo para a cena da cientificidade, além do compromisso lógico sistemá tico, a democracia dos consensos possíveis e bem-discutidos (Demo, 1998). ^ Í 3 8 t _ Demo (1998), de quem passo a me valer para apre sentar a posição habermasiana, discutindo o caráter intrínse co do questionamento crítico e autocrítico, observa que esse fenômeno é também intrinsecamente político, identificando três marcas políticas nesse processo: “A primeira marca política está na necessidade de diálogo, pois uma crítica solitária não acarreta resposta, destruindo desde logo a complementariedade dialogai advinda da contracrítica. A ciência sem diálogo é um aborto. Seria ape nas um narcisismo lógico. A segunda marca política está na pretensão de validade, revelando que implica ambiência hu mana questionadora. Strito sensu uma posição só pode ser aceita por consenso, para não ser coação ou artimanha. A terceira marca política encontra-se na comunicação intersub- jetiva, imprimindo ao conhecimento a fraqueza e a grandeza dos fenômenos históricos humanos. O consenso, de si, não garante necessariamente nada. Basta relembrar a condenação consensual de Galileu. Entretanto, para algo valer, o consen so aceitável é aquele discutido abertamente, nunca o imposto ou cabalado. A abertura irrestrita do questionamento continua sendo a arma lógica e política mais decisiva para se obter, rever, superar consensos”. (Demo, 1998, p. 235) Os defensores dessa posição não abdicam da idéia de uma unidade possível ou de um consenso possível, que está, porém, submetido ao princípio do permanente questiona mento e autoquestionamento. A idéia aqui é de que os acor dos em torno das regras que regem o campo devem ser resultado de um processo comunicativo que busca os melho res argumentos, mas que os entende como necessariamente provisórios (comunidade ilimitada de comunicação). Considerações finais Como podemos perceber, superada a questão da neu tralidade do conhecimento científico, advogada pelas postu ras positivistas, a relação do conhecimento com a política (com a questão da democracia) passa a ser intrínseca. No entanto, admitir isso não é o fim da jornada, é antes colocar- se de frente a uma série ainda maior de dificuldades, se não quisermos banalizar o problema. Inúmeras são as armadilhas que precisam ser superadas, algumas das quais procuramos debater aqui. No nosso entender, para uma comunidade como o CBCE, essa discussão é plena de conseqüências. Colo- cam-se questões como: em que bases essa comunidade se sustenta, qual é o cimento dessa organização? Quais são as bases de sua intervenção e quais as crenças compartilha das4? Por que a pluralidade e as diferenças nela presentes não determinam sua desintegração? Qual é a base de sua unidade (unidade da diversidade, é claro!)? E mais: como deve essa comunidade tratar do diferente, a partir de quais princípios tratar a diversidade? Qual vinculação entre conhe cimento e política defender e como chegar a essa decisão? Como manter coerência entre os princípios (as regras) que orientam a produção do conhecimento e os que estruturam as relações sociais na sua comunidade? Como evitar a con tradição entre a forma (os princípios que orientam) de cons trução do conhecimento (a verdade científica) e a interven ção social (a verdade política)? Podemos perceber que as diferentes posições esboçadas aqui dariam, quanto a alguns aspectos, respostas diferentes a essas perguntas. Não vou-me alongar nesse aspecto, ape nas delineá-las resumidamente (com riscos de simplificação): a) uma posição é a de que essa comunidade deve-se orientar na idéia de que há uma verdade cujo acesso está franqueado aos que fazem a opção política a favor de determinada clas se social; (b) outra posição entende poder prescindir de uma 4 Uma resposta a essa questão com base na teoria de P. Bourdieu pode ser observada no estudo de Paiva (1994). idéia fundamentadora, que confira unidade e oriente a co munidade; a base é contingente e o mais importante é con viver com a diferença e a indecidibilidade sobre a verdade; e (c) uma posição que vai-se orientar pela idéia colocada no horizonte de que deve valer o melhor argumento, que só pode ser identificado, só terá validade, se construído por uma comunidade ilimitada de comunicação. Mas nossas reflexões aqui têm como alvo central as três últimas questões, as que envolvem diretamente a rela ção epistemologia e política. Minha posição pessoal a res peito se aproxima dos caminhos apontados por Habermas, embora concorde com uma série de críticas a ele endereçadas e perceba seus impasses. A questão central está nas conseqüências do relativismo da verdade para a construção da democracia, da necessida de do universal (ou não) para fundamentar a democracia. Junto com Laclau (1996) entendo que o abandono total de qualquer tipo de universalismo abala os fundamentos de uma sociedade democrática. A proposta habermasiana (e de Apel) é a pragmática universal que está radicada na linguagem - na visão de uma comunicação livre de coerção. Mas, para Laclau (1996), a própria idéia de universalidade é contin gente/histórica. E preciso abraçá-la como base para a de mocracia, mas sem abdicar da idéia de que o próprio univer salismo é contingente. Na perspectiva habermasiana, a pró pria comunidade, a partir desse princípio, define por con senso as normar às quais se submeteria para decidir sobre os discursos válidos (verdadeiros) e sobre como intervir. No en tanto, as normas definidas por consenso, na perspectiva ado tada, são provisórias e podem por exemplo, não respeitar o diferente. Estaria esta posição, a habermasiana, subestimando o elemento de coerção, de força (o poder) nas relações co municativas? Uma resposta seria a de que as normas mu dam, mas não muda o respeito à democracia. Mas se ela é também contingente, também histórica, porque devemos respeitá-la? Não há critério externo ao processo de sua cons trução. Para Habermas o que a fundamenta é a pragmática universal, a contradição performativa. Estamos num círculo ou tratando com a auto-referencialidade. E o que aparece em Laclau, quando diz: “Toda teoria acerca do poder em uma sociedade democrática tem que ser uma teoria acerca das formas de poder que são compatíveis com a democracia, não uma teoria da eliminação do poder”. (1996, p. 200) A concepção de democracia que emana dessas refle xões é a que tem por base a auto-referência. Para Maturana (1998), a tarefa da democracia é criar um domínio de convi vência no qual a pretensão de acesso privilegiado a uma verdade absoluta desvanece. Ou, como afirma Laclau (1996): “A condição de uma sociedade democrática é seu caráter constitutivamente incompleto - o que implica, desde logo, a impossibilidade de um fundamento racional último. Como podemos ver, esta des-fundação escapa à perversa dicotomia modernidade - nihilismo: ela nos enfrenta, não com a alter nativa presença-ausência de um fundamento, e sim, com a busca sem fim de algo que deve dar um valor positivo à sua própria impossibilidade”, (p. 177) Mas, esse não é um fundamento com pretensão uni versal? Bem, com qual concepção da relação entre conheci mento e democracia queremos (devemos) operar? E preciso construir uma unidade (ética) como comunidade? Ou essa é uma questão irrelevante e é ainda uma aspiração metafísica? Com a palavra a comunidade (ilimitada) de comunicação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concordamos com Betti (1996), que as posições so bre a identidade epistemológica da Educação Física, na dis cussão brasileira, podem ser resumidas e classificadas em dois grandes grupos: a) aqueles que entendem que a própria Educação Física é uma ciência ou que no seu âmbito se construiu/constituiu uma nova ciência, denominada às vezes de Ciência da Motricidade Humana e outras de Ciência do Movimento Humano, ou ainda Cinesiologia e também Ciên cia do Esporte; e b) aqueles que a entendem como uma prática pedagógica, como uma prática social de intervenção imediata e que enquanto prática humana necessita ser teori camente elaborada. Como aquele autor já indica, situamo- nos no segundo grupo. Entendemos ter demonstrado que sob o prisma epistemológico não existe a possibilidade de fundamentar a existência de uma nova ciência nesse cam po, ou, ainda, que não existe um novo objeto científico. No entanto, existe também um forte movimento na área, que, como estratégia de alcançar legitimidade no campo acadê mico, começa a denominá-la de ciência e a organizar espa ços de produção e veiculação do conhecimento a partir des sa idéia. Como a Educação Física pode ficar órfã nesse pro cesso e também por razões epistemológicas expostas, de fendemos a posição política de envidar esforços para cons truir teoria da Educação Física, tomando-a como prática pe dagógica, ou seja, o debate/embate é inextricavelmente epistemológico e político. Quando falamos em teoria da Educação Física não in sistimos na sua adjetivação como uma teoria científica. Isso não significa que tenhamos abandonado a pretensão de racionalidade para essa teoria; muito mais, significa alertar para a necessidade de elucidar o conceito de racionalidade científica que é utilizado no discurso e na prática, bem como, para as dificuldades de tal empreendimento. O debate epistemológico atual parece indicar muito mais, por um lado, no sentido da superação da racionalidade científica clássica ou predominante (originada no plano da física e adotada pelas ciências naturais e também pelo positivismo como modelo para as ciências sociais e humanas) e, por outro, no sentido de certo relativismo que desloca a racionalidade cien tífica do pedestal da racionalidade enquanto tal e a coloca no mesmo nível de outras “racionalidades” ou discursos acer ca da realidade. As dificuldades e os movimentos aludidos parecem indicar prudência no que diz respeito à reivindica ção de adjetivar uma teoria da Educação Física de científica, embora indique também prudência quanto à propensão de abandonar precocemente a pretensão da fundamentação racional da prática. Nem consumar o casamento nem o divórcio. Indicamos nos diferentes capítulos, mas apenas in dicamos, a tentativa de J. Habermas de superar alguns des ses impasses com sua teoria da razão comunicativa, como alternativa para orientar uma possível teoria da prática, mes mo porque, uma das questões que tal teoria necessita en frentar é a relação entre o fático e o normativo, questão que é central no pensamento habermasiano. Para Chauí (1995, p. 251), uma teoria científica 144'! “é um sistema ordenado e coerente de proposições ou enun ciados baseados em um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais com pleto possível um conjunto de fenômenos. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparente mente muito diferentes sejam compreendidos como semelhan tes e submetidos às mesmas leis; e vice-versa, permite com preender por que fatos aparentemente semelhantes são dife rentes e submetidos a leis diferentes”. Podemos observar nessa definição de teoria científica o seu caráter “descritivo” e não prescritivo. Não ignoro o fato de que as descrições podem assumir caráter prescritivo e normativo, como também não ignoro o quanto as descri ções são condicionadas histórica e ideologicamente. No en tanto, apesar disso, nos parece que, de uma descrição de como a realidade é não deriva, necessária e logicamente, nenhuma norma de ação, embora essas possam ou devam ser definidas a partir de uma análise atenta da realidade. Construir uma “ponte” entre essas duas dimensões faz parte do projeto habermasiano. Esse aspecto é importante por que, enquanto teoria de uma prática de intervenção, a teo ria da Educação Física é necessariamente prescritiva ou normativa. Tomado nessa perspectiva o teorizar em Educação Fí sica está de frente a vários desafios. Entre eles destacamos a necessidade de articular organicamente os conhecimentos produzidos acerca do movimentar-se humano pelas diferen tes disciplinas científicas; articular o conhecimento da reali dade com uma visão prospectiva da realidade, portanto, com uma visão de homem, mundo e sociedade - articular descri ção com prescrição; articular o saber conceituai com o saber prático. Mas, é bom desde logo refletir sobre as possibilidades e as limitações de uma teoria da e para a prática. Não vamos retomar a discussão dos limites da racionalidade cien tífica para tal intento. Muito mais, para finalizar, gostaría mos de abordar os limites da teoria, num sentido lato, en quanto organizadora e orientadora da prática pedagógica em Educação Física. As teorias científicas, no âmbito das ciências da natu reza (e muitas vezes também nas ciências sociais e huma nas), à medida que retratam o funcionamento da realidade, das leis que regem o seu movimento, permitem prever o seu comportamento e, conseqüentemente, fornecem elementos que orientam uma intervenção eficiente - o desenvolvimen to de uma tecnologia. A ciência é, aí, um instrumento de poder; amplia nossa capacidade de intervir na realidade. São teorias desse tipo as teorias da aprendizagem, da fisio logia do esforço, etc. Aliás, uma certa vertente educacional pretendeu orientar-se por esses princípios (pedagogia tecni- cista). Entender uma teoria da educação nessa perspectiva é um reducionismo com conseqüências políticas bem-conheci- das de todos nós. Assim, é preciso considerar que uma teo ria de uma prática pedagógica não pode se resumir à discus são dos meios eficientes para sua ação, mas, sobretudo, precisa refletir sobre os fins, sobre o sentido dessa ação - os meios lhe são subordinados. Por outro lado, é comum perceber no âmbito da Edu cação Física o entendimento de que a teoria deve ter como tarefa primordial oferecer um conjunto de prescrições, ou seja, oferecer uma tecnologia (ações eficientes) - aquilo que convencionou-se chamar de “receitas”. Entendo ser essa uma expectativa equivocada por várias razões, entre essas as de que as receitas (dos outros) desobrigam os seus utilizadores da tarefa de pensar, de criar. Não obstante, toda teoria que não se apresenta na forma de uma tecnologia imediatamen te consumível, tende a ser rotulada de “filosófica” (em senti do pejorativo, distante da realidade). Ora, qualquer teoria, no plano pedagógico, por mais que forneça indicadores para a prática, não poderá nunca apresentar um conjunto de pres crições de como agir do mesmo modo como um prospecto indica os passos da montagem de uma mesa ou de uma máquina. Uma teoria pedagógica não deve ser uma tecnologia (Como dito anteriormente, isso aconteceu e acontece ainda hoje). A relação pedagógica é (deve ser!) uma relação entre sujeitos; deve ser uma relação criativa e criadora, não pode ser reduzida a uma téchne-, ela deve ser sempre também poíesis. A teoria não substitui a prática e vice-versa; cada qual tem sua lógica, lógicas essas que precisam fecundar-se mutuamente, para uma teoria da prática e para uma práti ca teorizada. BIBLIOGRAFIA APEL, K.-O. Diskurs und Verantwortung. Frankfurt : Suhrkamp, 1988. ARROYO, M. G. Trabalho - educação e teoria pedagógica. In: FRIGOTTO, G. (Org.). Educação e crise do trabalho. Petrópolis : Vozes, 1998. p. 138-165. ASSIS, J. de P. 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É autor dos livros Educação Física e aprendizagem social (Magister, 1992) e Sociologia crítica do esporte; uma introdução (CEFD/UFES, 1997) e co- autor de Metodologia do ensino da educação física (Cortez, 1992). Foi presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte por duas gestões (1991/93 e 1993/95). Educação Física deve tornar-se uma ciêncía!(!) A esta, propõem-se os nomes de: Cinesiologia, Cíência(s) do Movimento Humano, Ciência da Motricidade Humana e Ciência(s) do Esporte. Este "casamento" foi indicado, por algum tempo, para que a Educação Física lograsse legitimidade enquanto área do conhecimento, e, ao mesmo tempo, superasse sua crise de identidade. Embora tivesse chegado a soar a marcha nupcial, para o bem ou para o mal, o "casamento" não concretizou-se. Não que faltasse torcida. No entanto, parece que mais recentemente, também para a área da Educação Física a ciência deixou de ser um "partido" inquestionável. O objeto de discussão deste livro são os detalhes e as conseqüências que este namoro trouxe e vem trazendo i para a Educação Física.