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Teoria da Argumentação Jurídica

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Enviado por Moacir Rocha de Oliveira Neto em

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ 
FACULDADE DE DIREITO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO PROPOSTA DE UMA 
RACIONALIDADE POSSÍVEL FRENTE À POSTURA CÉTICA DO POSITIVISMO 
JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 
 
 
José Renato Gaziero Cella 
 
 
 
 
Dissertação apresentada no Curso de 
pós-graduação em Direito do Estado, 
do Setor de Ciências Jurídicas da 
Universidade Federal do Paraná, como 
requisito parcial à obtenção do grau 
de Mestre. 
Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz 
Ludwig 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Curitiba 
2001 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO PROPOSTA DE UMA 
RACIONALIDADE POSSÍVEL FRENTE À POSTURA CÉTICA DO POSITIVISMO 
JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 
 
 
 
por 
 
José Renato Gaziero Cella 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ORIENTADOR:___________________________________ 
 Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig 
 
 
 
 ___________________________________ 
 Prof. Dr. Cassiano Cordi 
 
 
 
 ___________________________________ 
 Prof. Dr. João Maurício L. Adeodato 
 
 
 
 
 
 
 ii
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para meus pais 
JOSÉ e MARIZA 
 
 
 
 
 
 iii
 
SUMÁRIO 
 
 
 
 
TERMO DE APROVAÇÃO..........................................ii 
DEDICATÓRIA................................................iii 
AGRADECIMENTOS..............................................vi 
RESUMO.......................................................x 
SUMMARY.....................................................xi 
RESUMÉ.....................................................xii 
INTRODUÇÃO..................................................01 
1. A CRISE DA RAZÃO NO SÉCULO XX............................10 
1.1 Razão em Crise..........................................10 
1.2 Relativismo e Ceticismo.................................20 
1.3. Pragmatismo e Direito..................................31 
2. A FORMAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO.........50 
2.1 Direito e Justiça.......................................50 
2.2 Positivismo Jurídico no Século XIX......................59 
2.3 Direito e Ceticismo: o Realismo Jurídico................93 
2.4 Legalidade e Legitimidade: a Crítica de Habermas.......103 
2.5 Legalidade e Discricionariedade: Hart X Dworkin........129 
 
 iv
3. A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN COMO PRECURSORA DE UMA 
TEORIA GERAL DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA......................151 
3.1 Lógica Formal e Argumentação Jurídica..................151 
3.2 Chaïm Perelman e a Nova Retórica.......................199 
3.3 Teoria da Argumentação como Racionalidade Possível.....249 
CONCLUSÃO..................................................258 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................262 
 v
AGRADECIMENTOS 
 
 Meu interesse pela temática da argumentação 
jurídica, que já existia desde os tempos em que cursava a 
graduação, tornava-se mais intenso sempre que em debates 
jurídicos, quando surgia algum impasse, os contendores 
convergiam para a cômoda, pacífica e sedutora conclusão de 
que, em cada caso, o bom senso deveria ser o parâmetro para o 
deslinde do impasse respectivo. Jamais me dei por satisfeito 
com esse tipo de resposta, sentindo-me deveras intrigado com 
essa forma de subterfúgio. 
 Não imaginava, porém, que esse tema pudesse ser 
— e que realmente já era de longa data — objeto de pesquisas 
acadêmicas na área jurídica, até que, durante o período em que 
participei do programa Intercampus Brasil-Espanha junto à 
Faculdade de Direito da Universidade de Deusto em Bilbao (País 
Basco), o professor Lorenzo Goikoetxea Oleaga — que lá exerceu 
minha tutoria — apresentou-me a um professor de filosofia 
jurídica da Universidade de Alicante (Catalunha) que naquela 
ocasião ministrava, na condição de professor convidado, um 
curso que tinha por objeto a argumentação jurídica, que 
imediatamente passei a freqüentar. 
 Tratava-se do professor Manuel Atienza 
Rodriguez, a cuja obra recorri inúmeras vezes no decorrer 
 vi
desta pesquisa e a quem agradeço efusivamente por ter sido o 
responsável por meu primeiro contato com o pensamento de 
autores como Robert Alexy, Neil Maccormick e Ronald Dworkin. 
Obviamente também estendo minha gratidão ao professor Lorenzo. 
 Tempos depois, em conversa com o agora 
professor desta Universidade Cesar Antonio Serbena — 
companheiro desde a época em que cursamos juntos as graduações 
de filosofia e direito — que na ocasião já tinha iniciado o 
mestrado em direito, percebendo meu interesse na área da 
argumentação jurídica, sugeriu-me que ingressasse no mestrado 
e pesquisasse o pensamento tópico-retórico, franqueando-me 
imediatamente a bibliografia de que dispunha. Ao professor 
Cesar sou muito grato, inclusive pelo auxílio prestado na 
elaboração de meu projeto para ingresso nesta pós-graduação, 
agradecimento este que também deve alcançar o professor 
Rodrigo Rossi Horochovski, que forneceu opiniões valiosas para 
a elaboração daquele projeto inicial. 
 Mas a pesquisa só se tornou viável graças a 
conjugação de dois fatores: a bolsa de fomento a mim concedida 
pelo Programa de Demanda Social da Coordenação de 
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e a 
permissão que obtive para afastamento do escritório de 
advocacia Cançado Filho Advogados Associados, de que sou 
membro. 
 vii
 A bolsa de fomento foi de extrema valia, 
sobretudo para o acesso à bibliografia pesquisada. Já a 
licença concedida pelo escritório torna os meus colegas de lá 
co-autores da pesquisa, eis que somente através do suprimento 
de minhas tarefas, que por eles foram avocadas durante o meu 
período sabático, somado ao incentivo incondicional que sempre 
me foi conferido, é que se fez possível a tranqüilidade 
necessária para a feitura do trabalho. Sou-lhes grato por 
isso, sobretudo na pessoa dos professores Acrísio Lopes 
Cançado Filho e André da Costa Ribeiro; e dos advogados Juarez 
Baby Sponholz e Tania Maria Pedroso. 
 Agradeço também imensamente aos incansáveis 
Péricles de Souza, Mariza Canário Cella e Cristiane Morais 
Rizzi Cella, que me auxiliaram na digitação dos manuscritos 
para o computador, o que levou dias de incessante trabalho. À 
minha mulher Cristiane — além do auxílio na digitação — devo 
também a paciência que teve na revisão de todas as citações, 
bem como a tolerância no convívio comigo naqueles dias em que 
o prazo ia se esvaindo e o meu humor não me tornava uma pessoa 
de fácil convivência. 
 A meus fraternais amigos, professores André da 
Costa Ribeiro, Cesar Antonio Serbena e Danilo Cesar Maganhoto 
Doneda, agradeço pelo interesse demonstrado na leitura da 
 viii
primeira versão deste trabalho e, principalmente, pelas 
valiosas críticas e sugestões que me foram transmitidas. 
 Agradeço também a todo o corpo docente e as 
funcionárias da pós-graduação, a quem saúdo na pessoa dos 
Professores Doutores José Roberto Vieira e Celso Luiz Ludwig. 
Ao professor Vieira — que tem acompanhado e incentivado meus 
passos desde a graduação — pela vocação para o magistério que 
o torna um modelo a ser seguido e a quem tenho buscado me 
espelhar neste início de carreira como professor. Ao professor 
Ludwig pela abertura e disponibilidade que sempre o 
distinguiram na tarefa de orientação desta pesquisa. 
 Uma palavra final de agradecimento a meus pais, 
José Cella e Mariza Canário Cella, por terem sempre valorizado 
meus estudos, bem como pelo fato de os terem financiado apesar 
de todas as dificuldades, sem o que
obviamente tudo teria sido 
mais difícil. A eles dedico este trabalho. 
 ix
 
RESUMO 
O presente trabalho tem como escopo demonstrar que o 
desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica, 
formulada a partir do aprimoramento das teorias já existentes 
e da ampliação de seu objeto, pode contribuir para a mitigação 
da postura cética característica do positivismo jurídico 
contemporâneo. Para tanto, partindo da descrição dos motivos 
que levaram o pensamento cético-relativista a se impor no 
século XX, buscar-se-á demonstrar a influência que essa 
circunstância trouxe ao pensamento jurídico. Assim, será 
abordada a formação do positivismo jurídico, desde o 
jusnaturalismo racionalista precursor do positivismo jurídico 
típico do século XIX — formado pela inter-relação das escolas 
da exegese e do conceitualismo — até a sua roupagem adquirida 
no século XX, tendo como referência o pensamento de Hans 
Kelsen. A partir disso far-se-á a análise de algumas críticas 
importantes ao positivismo vintenário, quais sejam as críticas 
efetuadas pelo realismo jurídico norte-americano, por Habermas 
quanto ao problema da legitimidade e por Dworkin quanto ao 
problema da discricionariedade judicial. Enfim, ver-se-á que 
todas essas críticas apontam as limitações do positivismo 
jurídico, insuficiências estas que devem ser extirpadas ou 
atenuadas. Diante disso tentar-se-á demonstrar que a teoria da 
argumentação jurídica pode contribuir neste mister. Para tanto 
será trazido como referência o pensamento de Chaïm Perelman, 
que na década de 1950 propunha um alargamento da noção de 
razão, que não poderia ficar adstrito apenas ao pensamento 
formal, buscando-se romper com a postura inaugurada por René 
Descartes. Para tal propósito Perelman, em colaboração com 
Lucie Tyteca, resgata a tradição retórica da antigüidade — que 
foi posta no ostracismo pela modernidade — e a reformula, 
denominando-a de nova retórica. Enfim, o desenvolvimento de 
uma teoria da argumentação jurídica, em que se admite um 
alargamento da noção de razão para além do pensamento formal — 
que não é excluído, mas complementado pela razão prática — 
poderá fazer frente à postura cética do positivismo jurídico 
contemporâneo, bem como aprimorar os mecanismos de controle 
das decisões jurídicas: legislativas e judiciais. 
 x
 
SUMMARY 
The present work aims to demonstrate that the development of a 
theory of juridical argument, formulated upon the improvement 
of the theories already existent and from the enlargement of 
its object, can contribute to the mitigation of the skeptical 
posture characteristic of the contemporary juridical 
positivism. To demonstrate the above, starting from the 
description of the reasons that led the skeptical-relativist 
thought to impose itself in the 20th century, it will be 
sought to demonstrate the influence that such circumstance 
brought to the juridical thought. Thus, the formation of 
juridical positivism will be approached, from the 
rationalistic jusnaturalism precursory of the juridical 
positivism typical of the 19th century - formed by the 
interrelation between the schools of exegesis and 
conceptualism - to its shape acquired in the 20th century, 
having as reference Hans Kelsen’s thoughts. Starting from 
this, an analysis of some important criticism to the 20th 
century positivism will be done, such critics being elaborated 
based on the North American juridical realism, by Habermas 
concerning the issue of legitimacy, and by Dworkin upon the 
problem of judicial discretion. Finally, it will be 
demonstrated that all those critics point to the limitations 
of juridical positivism, inadequacies that should be 
extirpated or attenuated. Considering this, it will be sought 
to demonstrate that the theory of juridical argument can 
contribute to this task. The thoughts of Chaïm Perelman will 
be brought as reference, having him in the decade of 1950 
proposed an enlargement of the notion of reason, that could 
not just be restricted to the formal thought, seeking to break 
the posture inaugurated by René Descartes. For such purpose, 
Perelman, in collaboration with Lucie Tyteca, rescues the 
rhetorical tradition of the antiquity - that was put in 
ostracism by modernity - and reformulates it, denominating it 
new rhetoric. Finally, the development of a theory of 
juridical argument, where an enlargement of the notion of 
reason is admitted beyond the formal thought - that is not 
excluded, but complemented by practical reason - could 
confront the skeptical posture of contemporary juridical 
positivism, as well as improve the control mechanisms of 
juridical decisions: legislative and judicial. 
 xi
 
RESUMÉ 
Ce travail a pour but de montrer que le développement d’une 
théorie de l’argumentation juridique, formulée à partir des 
théories déja existentes et du grossissement de son sujet, 
peut contribuer à l’adoucissement de la posture sceptique 
caractéristique du positivisme juridique contemporain. Pour 
autant, à partir de la description des motifs qui ont 
proportionné l’imposition de la pensée sceptique-relativiste 
dans le XXème siècle, on cherchera à démontrer la influence que 
cette circonstance a apportée à la pensée juridique. Ainsi, on 
approchera la formation du positivisme juridique, dés le 
jusnaturalisme rationaliste precurseur du positivisme 
juridique – formé par l’inter-rélation des écoles de l’exégèse 
et du conceptualisme – jusque son caractère acquis pendant le 
XXème siécle, avec référence à la pensée de Hans Kelsen. A 
partir de cela on fera l’analyse de quelques critiques 
importantes au positivisme du XXème siécle, comme des critiques 
faites par le réalisme juridique américain, des critiques 
d’Habermas sur le problème de la légitimité et celles de 
Dworkin sur le problème de la discritionnairité judiciaire. 
Alors, on verra que toutes ces critiques pointent des 
limitations du positivisme juridique, qui doivent être 
éliminées ou attenuées. Vis-à-vis de cela, on essayera de 
démontrer que la théorie de l’argumentation juridique peut 
contribuer dans ce but. Pour autant, on apportera comme 
référence la pensée de Chaïm Parelman, qui dans les années 50 
proposait un élargissement de la notion de raison, qui ne 
pourrait pas rester limitée seulement à la pensée formelle, 
dans la recherche de rupture avec la posture inaugurée par 
René Descartes. Pour autant, Perelman, avec la collaboration 
de Lucie Tyteca, retrouve la tradition réthorique de 
l’antiquité – que la modernité a mise dans l’ostracisme – et 
la reformule, avec la dénomination de nouvelle rethorique. 
Alors, le développement d’une théorie de l’argumentation 
juridique, où on admet un élargissement de la notion de raison 
de la pensée formelle – qui n’est pas exclu, mais il est 
accompli par la raison pratique – pourra faire face à la 
posture sceptique du positivisme juridique contemporain et 
perfectionner aussi des mécanismes de contrôle des décisions 
juriques: législatives et judiciaires. 
 
 
 xii
INTRODUÇÃO 
 A ciência jurídica possui problemas antigos — 
os quais têm sido enfrentados de diversos modos no decorrer da 
história — que, de tempos em tempos, sempre ressurgem quando 
alguma eventual solução antes adotada e aceita já não mais 
satisfaz as necessidades humanas. 
 No âmbito jurídico um dos grandes problemas 
existentes e que ainda persiste — o qual tem ocupado 
pensadores desde a antigüidade — é a questão, já clássica, da 
justiça. O que é a justiça? 
 Essa que já foi uma pergunta recorrente no 
âmbito de atuação daqueles que, no decorrer da história, 
fizeram do direito seu objeto de trabalho ou de estudo, com o 
advento do positivismo jurídico e, principalmente, a forma por 
ele assumida no século XX, deixou quase que completamente de 
se fazer presente no cotidiano do foro, em que
o advogado, 
quando invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente 
tranqüilo porque esta constitui ponto de partida seguro para o 
seu trabalho profissional. Da mesma forma, quando o juiz 
prolata a sua sentença, e a apóia cuidadosamente em textos 
legais, tem a certeza de estar agindo corretamente, pois apóia 
sua convicção em cânones que devem ser reconhecidos como 
obrigatórios. 
 2
 O problema da justiça foi transferido para os 
filósofos do direito, cabendo a estes, e não ao jurista, a 
tarefa de converter aqueles pontos de partida (os cânones da 
dogmática jurídica) em problemas, perguntando: por que o juiz 
deve se apoiar na lei? Quais as razões lógicas e morais que 
levam o juiz a não se revoltar contra a lei e a não criar 
solução sua para o caso que está apreciando, uma vez 
convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da 
lei vigente? Por que a lei obriga? Como obriga? Quais os 
limites lógicos da obrigatoriedade legal? 
 Foi erguida uma barreira quase que 
intransponível entre os campos de atuação do filósofo e do 
jurista, sendo que o trabalho deste último ficou reduzido à 
interpretação e aplicação da lei, não cabendo a ele, neste 
âmbito de atuação, formular-se questões de ordem moral. 
 Ocorre que, mais uma vez, sobretudo a partir da 
década de 1950, o problema da justiça volta à tona e se 
insinua, inclusive, no âmbito de atuação dos juristas. A busca 
da solução mais justa possível para pôr termo a conflitos 
sociais, sobretudo a procura de algum critério que indique os 
caminhos para que isso se torne possível, volta a estar, mais 
do que nunca, na ordem do dia dos juristas, implicando mesmo a 
reconciliação entre filósofos e juristas, antes divorciados. 
 3
 Com efeito, a crítica filosófica de nossas 
práticas jurídicas também deve ser efetuada pelos juristas 
que, afinal de contas, são aquelas pessoas que vivenciam 
diariamente os problemas do mundo jurídico. Mais que isso, 
talvez seja imprescindível, para a realização da crítica 
filosófica sobre o direito, que aquele que critica seja também 
um membro participante das práticas jurídicas, conforme 
sustenta Ronald DWORKIN, que entende que a crítica só pode ser 
validada se realizada por alguém que integra o universo objeto 
de análise. 
 O presente trabalho, cujo autor, usando uma 
expressão de Miguel REALE, tem vivido o direito como 
experiência, terá como pano de fundo o eterno problema da 
justiça, que subjaz todos os temas que serão abordados. 
 Para tanto, tentar-se-á percorrer o caminho que 
culminou no positivismo jurídico do século XX, desde o 
rompimento com o jusnaturalismo racionalista — fato que teve 
lugar no século XVIII e cuja consolidação se operou no século 
XIX — até os problemas enfrentados pelo positivismo jurídico 
nascente diante das mais variadas posturas críticas que 
surgiram. 
 Buscar-se-á também traçar um paralelo entre a 
postura cética e relativista do positivismo jurídico do século 
XX e a crise por que passou e tem passado a razão neste mesmo 
 4
período, crise que, perturbando os alicerces do grande 
edifício do pensamento ocidental que teve origem com o 
surgimento da filosofia na Grécia, tem posto em cheque as 
possibilidades de defesa de um agir racional nas amplas áreas 
do conhecimento, inclusive no âmbito jurídico. 
 Espera-se que estas abordagens iniciais 
permitam uma compreensão da atitude normativista que culminou 
em Hans KELSEN e, a partir dele, no positivismo jurídico 
atual, cujos representantes mais proeminentes — e que servirão 
de guia, juntamente com KELSEN, para as análises que serão 
feitas a partir deste ponto — são indubitavelmente Norberto 
BOBBIO e Richard HART. 
 A compreensão da atual atitude positivista é 
conditio sine qua non para a compreensão das críticas 
contemporâneas que contra o positivismo se dirigem, críticas 
estas que serão o objeto central de análise deste trabalho. 
 Com efeito, tendo como pano de fundo as 
críticas contemporâneas ao positivismo jurídico efetuadas por 
Jürgen HABERNAS, Ronald DWORKIN e, ainda, algumas questões 
abertas pelo realismo jurídico norte-americano, serão 
apresentadas as principais aporias experimentadas pela atitude 
positivista, as quais se tornaram mais incômodas em virtude da 
crise sofrida pelo cientificismo após o final da 2a guerra 
mundial — a partir do que a idéia de uma ciência jurídica 
 5
dogmática, encastelada em princípios normativos rígidos e 
inflexíveis, não se impôs mais como verdade monolítica. 
 É neste contexto que surge o pensamento de 
Chaïm PERELMAN que, ao reconhecer os limites que o saber 
tradicional impõe aos homens, posto que uma série de problemas 
não podem ser resolvidos por aquele tipo de conhecimento, 
sobretudo no âmbito das ciências humanas (em que o direito 
está incluído), propõe aos filósofos que, ao invés de terem 
como guia a racionalidade das ciências matemáticas, passem a 
se conduzir pela racionalidade argumentativa proveniente do 
modelo jurídico. 
 A parte final deste trabalho demonstrará as 
deficiências enfrentadas pela lógica formal quando se trata de 
enfrentar questões práticas que envolvam a tomada de decisões 
que implicam alguma forma de agir humano. Acredita-se que 
através desta abordagem se tornarão mais claras as críticas 
que PERELMAN dirige à racionalidade moderna e, ainda, 
clarificados também estarão os motivos pelos quais este autor 
fez reviver o pensamento tópico e retórico de ARISTÓTELES que 
havia sido relegado ao ostracismo, principalmente pelos 
modernos. 
 Acredita-se também que a demonstração das 
deficiências da lógica formal permitirá justificar a 
importância que o desenvolvimento de uma teoria da 
 6
argumentação jurídica adquire na atualidade, sobretudo quanto 
à contribuição que uma tal teoria pode trazer para a solução 
das aporias — acima mencionadas — enfrentadas pelo positivismo 
jurídico. 
 O trabalho vai dividido em três capítulos, 
sendo que no primeiro deles é feita uma análise da crise por 
que tem passado a razão a partir do século XX, o que implicará 
uma breve visita a alguns temas da história da filosofia e a 
situação do pensamento filosófico contemporâneo, em especial 
quanto ao niilismo característico desta era. Também neste 
capítulo serão vistas algumas noções de ceticismo, relativismo 
e pragmatismo, as quais, somadas ao panorama que foi traçado 
acerca do pensamento contemporâneo, servirão de ponte para a 
passagem ao capítulo 2, em que buscar-se-á demonstrar que o 
pensamento jurídico não ficou incólume à mencionada crise da 
razão. 
 No capítulo 2, portanto, será traçado o 
nascimento do positivismo jurídico moderno, em especial a sua 
consolidação que se deu através das escolas da exegese e do 
conceitualismo. Serão abordadas também as principais críticas 
que ao positivismo jurídico foram dirigidas e a reação, já no 
século XX, que o positivismo engendrou contra essas críticas. 
 Serão abordadas, ainda no capítulo 2, as 
influências que as posturas cética e relativista trouxeram ao 
 7
positivismo atual, bem como serão analisados os debates que o 
positivismo têm mantido com HABERMAS e DWORKIN, que trazem à 
discussão questões morais que até então os positivistas 
relutavam em admitir no interior da discussão jurídica. 
 A experiência jurídica, que compreende 
sobretudo a resolução de problemas práticos, não poderia 
obviamente expurgar o problema da justiça. Mas o positivismo 
assim o fez porque no seu entender não se pode, com 
objetividade, apreciar esta questão. Mas essa conclusão cética 
só é atingida se se permanecer numa visão estreita de 
racionalidade:
a da lógica formal. No entanto as decisões 
jurídicas vão além desses limites — e isso será demonstrado na 
parte inicial do capítulo 3 — tornando-se necessário, 
portanto, um alargamento da noção daquilo que se deve entender 
por razão. 
 Esta necessidade de alargamento da noção de 
racionalidade foi, em grande medida, alertada por PERELMAN a 
partir da segunda metade do século XX, daí a importância dada 
ao seu pensamento na parte final do capítulo 3. O pensamento 
de PERELMAN, com efeito, pode ser visto como um dos 
precursores das teorias da argumentação jurídica atualmente em 
voga, daí porque se optou por sua análise. 
 Por fim, será afirmado que o desenvolvimento de 
uma teoria da argumentação jurídica é hoje uma tarefa 
 8
essencial, pois ela poderá auxiliar sobremaneira na busca de 
solução dos problemas que o positivismo jurídico não foi capaz 
de resolver (e que por isso mesmo se rendeu ao ceticismo). 
Além disso será aventada a hipótese de que deva ser ampliado o 
objeto de análise de que tradicionalmente têm se servido as 
teorias da argumentação jurídica existentes, alargando-se o 
seu campo de observação. 
 Três observações de cunho metodológico. No 
decorrer da pesquisa nos deparamos com temas intrigantes e 
que, por vezes, fizeram com que nos sentíssemos tentados a 
alterar mesmo o tema que estava sendo desenvolvido. Em três 
momentos isso se tornou mais agudo: quando fomos apresentados 
ao realismo jurídico norte-americano, quando nos deparamos com 
o pensamento de HABERMAS (que muita coisa tem em comum com o 
problema da argumentação jurídica) e, por fim, quando nos 
confrontamos com as idéias de DWORKIN. 
 Isso talvez tenha feito com que nos 
demorássemos mais na abordagem desses assuntos, que poderiam 
ter sido trabalhados com maior rapidez. Sentimo-nos até mesmo 
tentados a cortar muito daquilo que foi desenvolvido, mas 
optamos por manter na íntegra as abordagens efetuadas em face 
de sua pertinência, em nosso entender, com o tema central do 
trabalho. 
 9
 Estivemos também tentados, por outro lado, a 
deixar de reproduzir uma série de informações complementares, 
temendo que a profusão de notas de rodapé que isso implica 
pudesse ser vista com exagero. Optamos, no entanto, a correr 
esse risco, pois entendemos que aqueles complementos 
contribuirão muito para o enriquecimento dos temas abordados, 
além do risco iminente de aquelas informações, apesar de 
pesquisadas e sistematizadas, perderem-se para sempre, 
desperdício que não gostaríamos que ocorresse. 
 Por fim, todas as citações retiradas de obras 
estrangeiras foram pelo autor livremente vertidas para o 
português, sempre com a preocupação rigorosa de expressar 
fielmente o teor contido nos trechos traduzidos. 
 10
1. A CRISE DA RAZÃO NO SÉCULO XX 
“O homem, por natureza, deseja 
conhecer.” 
Aristóteles 
 
“Deus está morto.” 
Nietzsche 
 
“O homem é a medida de todas as 
coisas.” 
Protágoras 
 
1.1 Razão em Crise 
 Quando se fala em crise da razão logo vem à 
tona, ao menos em meios acadêmicos, a idéia de um fenômeno que 
teve lugar no século XX1, crise essa que tem sido associada 
como uma característica típica — senão a mais importante — da 
pós-modernidade, ainda que até hoje não haja um acordo acerca 
do vem a ser essa pós-modernidade e se os tempos modernos 
efetivamente chegaram ao fim. 
 Sem entrar nessa polêmica, a questão que ora se 
coloca é a de saber o motivo pelo qual se tem dado tanta 
importância aos ataques que a razão sofreu no século que acaba 
de terminar e que parece que continuará sofrendo inclusive 
 
 
1 “A situação filosófica contemporânea (...) tem sido marcada, desde os 
finais do século XIX, pelo estigma da crise e, muito particularmente, da 
crise do sujeito e da razão” (CARRILHO, Manuel Maria. Jogos de 
Racionalidade, p. 9). 
 11
neste novo século, uma vez que desde os primórdios do pensar 
filosófico a razão convive com o incômodo da dúvida cética, 
dúvida essa que em determinado momento (com o racionalismo 
inaugurado por DESCARTES) — paradoxalmente — tornou-se o ponto 
de partida do pensamento filosófico. 
 Por que então somente agora, após séculos de 
ataques constantes, a razão entra em crise? 
 A tentativa de uma resposta a essa questão pode 
ser feita a partir de uma análise do próprio surgimento da 
filosofia, da sua meta e de que forma essas metas foram (se é 
que foram) alcançadas ao longo da história do pensamento. 
 Não se pretende aqui fazer uma análise rigorosa 
e exaustiva do contexto de surgimento e desenvolvimento da 
filosofia, mas sim partir de algumas impressões que, em nosso 
entender, podem levar a uma compreensão da crise sofrida pela 
razão no século XX, em especial. 
 Segundo ARISTÓTELES, a filosofia nasce do 
espanto causado em face dos acontecimentos do mundo, daquilo 
que é imprevisível, do devir. Em um primeiro momento o homem 
cria o mito para que este dê conta do caos existente, buscando 
um sentido de ordem. Porém, os mitos sobrevivem de crenças que 
facilmente podem ser destruídas e não possuem a radicalidade 
que a filosofia, desde o início, propôs-se a buscar, ou seja, 
“a idéia de um saber que seja irrefutável; e que seja 
 12
irrefutável não porque a sociedade e os indivíduos nele tenham 
fé ou vivam sem dele duvidar, mas porque ele próprio é capaz 
de rebater todos os seus adversários. A idéia de um saber que 
não pode ser negado nem por homens nem por deuses, nem por 
mudança dos tempos ou dos costumes. Um saber absoluto, 
definitivo, incontroverso, necessário, indubitável.”2 
 Através da episteme, prevendo e antecipando o 
devir da vida, o homem liberta-se do terror, tornando 
previsível o que antes era imprevisível. A episteme surge como 
o grande remédio contra o terror da vida. 
 Esta tentativa de tornar previsível o 
imprevisível vai culminar na ciência moderna e na organização 
contemporânea científico-tecnológica da experiência, que 
tornou-se um outro grande remédio contra o terror da vida, 
mesmo não tendo a mesma pretensão da episteme, ou seja, um 
conhecimento que dê conta da totalidade, que possua a 
pretensão de verdade incontroversa. 
 Também o cristianismo apresenta-se como um 
remédio contra a infelicidade e a dor, mas um remédio 
ultramundano e transcendente. Daí a capacidade que o 
cristianismo tem de se comunicar com as massas que a filosofia 
não possui. 
 
2 SEVERINO, Emanuele. A filosofia antiga, p. 19. 
 13
 Porém, tanto o cristianismo quanto a tecno-
ciência, ou ainda, toda a civilização ocidental, cresce no 
seio da dimensão aberta, de uma vez por todas, pela filosofia 
grega: a busca de um saber irrefutável que torne possível o 
devir da vida, a episteme. 
 É justamente contra a idéia da filosofia como 
episteme, que desde a antigüidade, passando pela Idade Média e 
pela modernidade, que vão se insurgir os pensadores 
contemporâneos, dentre os quais Friedrich Wilhelm NIETZSCHE 
parece ser o mais radical, razão pela qual nos deteremos nas 
linhas gerais de seu pensamento. 
 Para NIETZSCHE, o gigantesco edifício 
construído pela cultura e pela civilização ocidentais para 
proteger o homem do caos e da irracionalidade do devir 
(edifício este que culmina e se resume no conceito de Deus) 
acabou por sobrecarregar a existência do homem, dotando-a de 
um peso ainda mais insuportável do que aquele que é 
constituído pela própria ameaça do devir. 
 A origem, o sentido, a causa, o fundamento, a 
lei, a realidade imutável e divina evocados pela episteme 
formam o remédio contra o terror provocado pela 
imprevisibilidade do devir, mas por vezes
possuem uma 
aparência terrível, pois prevendo e antecipando o devir, 
 14
acabam por o anular e por anular juntamente com ele a própria 
vida do homem. 
 O homem surge assim perante si próprio como a 
mais inquietante e imprevisível das coisas, mas o remédio que 
ele encontra acaba por lhe surgir como um suicídio. O remédio 
destrói a vida, pois sendo o homem imprevisibilidade, ao 
querer tornar-se previsível, acaba por libertar-se de si 
próprio através da destruição de si mesmo. 
 Daí a afirmação de NIETZSCHE de que foi pior o 
remédio do que o mal, de onde Jean-Paul SARTRE pôde dizer que 
se Deus existe, o homem não pode viver.3 Este é o pensamento 
que pode ilustrar o aspecto mais característico do niilismo 
contemporâneo. 
 O niilismo mostra que estamos aqui, no mundo, 
literalmente abandonados, porém, este niilismo está voltado 
para a realização do homem, para libertá-lo das correntes que 
o impediam de viver, para libertá-lo de Deus. 
 O niilismo é justamente a recusa de resposta 
aos porquês metafísicos, pois percebe que não há um fim a ser 
atingido. Esta falta de resposta é que leva à desvalorização e 
à perda dos valores superiores. 
 
3 Cf. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo, p. 22 e ss. 
 15
 Não podendo haver uma interpretação teleológica 
do mundo, devemos enxergar o fim em nós mesmos, que deve ser 
direcionado à nossa felicidade. Devemos ainda aceitar o 
trágico, ou seja, o mundo, tal qual é, sem começo e sem fim. 
 Segundo NIETZSCHE, todas as grandes construções 
do saber tradicional acerca dos princípios, da metafísica, da 
arte, da moral, dos valores da sociedade, das normas de 
conduta dos indivíduos, permitem tornar suportável a vida. São 
os instrumentos fundamentais com os quais o homem tentou 
atingir o prazer, fugindo à dor, instrumentos estes que 
permitiram também ao homem sobreviver. Mas são uma grande 
simulação, pretendem se passar por verdade, porém nada mais 
são que mentiras e ilusões úteis à sobrevivência, erros vitais 
disfarçados de verdade. 
 A busca de um fim, uma verdade que dá sentido à 
existência, já é o próprio niilismo, por ser esta tarefa 
impossível de ser atingida. Por isso Deus, como criador de um 
sentido, também é desmascarado. Deste modo, o erro vital, o 
nada que move a cultura ocidental, é o próprio Deus. 
 O super-homem é aquele que é consciente da 
existência desses erros vitais e sabe que a verdadeira vida é 
horror e dor e, nem por isso, retrai-se ou foge dela. É 
exatamente em nome da força e da vontade de poder que o super-
homem, completamente desencantado no que diz respeito a todas 
 16
as ilusões, não se afasta, não foge e não se desespera perante 
o devir, identificando-se totalmente com ele. 
 O único mundo é este que se apresenta ameaçador 
e aterrorizante, em que a certeza do homem tem como conteúdo a 
ameaça e a imprevisibilidade caótica e irracional das coisas. 
 A história do Ocidente é a história de um 
grande erro, em que a grande mentira culminou em Deus, à 
medida em que houve a pretensão de afirmá-lo como causa e 
finalidade do mundo. Na origem já se encontra o fim, mas o 
mundo, tal qual é, não tem sentido e nem um fim a ser 
alcançado: 
“ O mundo subsiste; não é nada que venha ser, nada 
que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca 
começou a vir a ser e nunca cessou de perecer, — 
conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus 
excrementos são seu alimento.”4 
 
 Vale dizer que não só o pensamento filosófico 
abalou a auto-estima do homem e a sua razão, mas também 
algumas teorias científicas. Com efeito desde GALILEU, quando 
se revelou que não estávamos no centro do universo como 
imaginávamos, nossa vaidade já ficara abalada. Mas isso foi 
pouco se comparado às teorias de Sigmund FREUD e Charles 
DARWIN que, respectivamente, expulsaram-nos do centro da 
criação e do controle de nossas faculdades mentais. 
 
4 NIETZSCHE, Friedrich. O eterno retorno, § 1066, p. 176. 
 17
 As filosofias da linguagem igualmente abalaram 
o edifício das crenças do homem moderno ao demonstrarem a 
arbitrariedade das mesmas a partir de análises lingüísticas. 
 A menção superficial dos pensamentos acima pode 
ser útil para responder à questão posta no início, ou seja, de 
um certo modo mostra o porquê de uma crise da razão no século 
XX. 
 No entanto isso não quer dizer que foram esses 
pensamentos que geraram a crise. Ao contrário do que se possa 
imaginar, as teorias não surgem do acaso, mas em função de 
circunstâncias historicamente situadas numa área geográfica: o 
Ocidente. 
 O início do século XX foi também o início de 
uma crise entre as potências neocolonialistas, cujas 
conseqüências fizeram daquele século o “...mais assassino de 
que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da 
guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década 
de 1920, como também pelo volume único de catástrofes humanas 
que produziu, desde as maiores fomes da história até o 
genocídio sistemático”.5 
 Certamente o pensamento contemporâneo, que 
afirmava o colapso da razão — ao menos da razão como episteme 
 
5 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914-1991, p. 22. 
 18
— foi condicionado pelo já nascente colapso dos sistemas 
políticos vigentes e conseqüentes crises internacionais. O 
fato é que material e moralmente os grandes Impérios Europeus 
chegaram ao século XX em declínio: 
“ ... Ao contrário do ‘longo século XIX’, que 
pareceu, e na verdade foi, um período de progresso 
material, intelectual e moral quase ininterrupto, quer 
dizer, de melhoria nas condições de vida civilizada, 
houve, a partir de 1914, uma acentuada regressão dos 
padrões então tidos como normais nos países 
desenvolvidos e nos ambientes da classe média e que 
todos acreditavam piamente estivessem se espalhando para 
as regiões mais atrasadas e para as camadas menos 
esclarecidas da população.”6 
 
 HOBSBAWM prossegue: 
“ Ainda mais óbvia que as incertezas da economia e da 
política mundiais era a crise social e moral, refletindo 
as transformações pós-década de 1950 na vida humana, que 
também encontraram expressão generalizada, embora 
confusa, nessas Décadas de Crise. Foi uma crise das 
crenças e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade 
moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa 
batalha contra os Antigos, no início do século XVIII: 
uma crise das teorias racionalistas e humanistas 
abraçadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo 
comunismo e que tornaram possível a breve mas decisiva 
aliança dos dois contra o fascismo, que as rejeitava. 
 (...) 
 Contudo, a crise moral não dizia respeito apenas 
aos supostos da civilização moderna, mas também às 
estruturas históricas das relações humanas que a 
sociedade moderna herdara de um passado pré-industrial e 
pré-capitalista e que, agora vemos, haviam possibilitado 
seu funcionamento. Não era a crise de uma forma de 
organizar sociedades, mas de todas as formas. Os 
estranhos apelos em favor de uma ‘sociedade civil’ não 
especificada, de uma ‘comunidade’, eram as vozes de 
gerações perdidas e à deriva. Elas se faziam ouvir numa 
era em que tais palavras, tendo perdido seus sentidos 
tradicionais, se haviam tornado frases insípidas. Não 
restava outra maneira de definir identidade de grupo 
senão definir os que nele não estavam. 
 
6 HOBSBAWM, E. Idem, ibidem. 
 19
 Para o poeta T. S. Eliot, ‘é assim que o mundo 
acaba — não com uma explosão, mas com uma lamúria’. O 
Breve Século XX se acabou com os dois.”7 
 
 Segundo ZANNONI, a crise que se abateu sobre a 
razão, por outro
lado, também teve bons frutos: 
“ Neste estado de coisas sobrevém (...) a angústia 
que vive o primeiro quarto do século XX com a primeira 
guerra mundial que, na ordem jurídica e filosófica, 
implicou uma revisão profunda das verdades que a razão 
havia pretendido extrair de seu próprio afã dedutivo. 
Contudo, esta mesma razão era impotente para conduzir a 
realidade, a história, a humanidade, pelos caminhos da 
paz, da solidariedade, da justiça. 
Esta angústia será frutífera para o pensamento.”8 
 
 Um dos frutos decorrentes da crise sofrida pela 
razão — sobretudo em face dos acontecimentos históricos acima 
narrados — foi justamente o abandono da defesa da 
possibilidade de uma ciência dogmática encastelada em 
princípios normativos rígidos e inflexíveis, que deveria se 
impor como verdade.9 
 
7 HOBSBAWM, E. Idem, p. 20-21. 
8 ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 76. 
9 Bento PRADO JR. menciona a crise por que passaram as ciências dogmáticas 
ao falar do neopositivismo: “Mas, nos Estados Unidos, pelo menos, que 
acolheu no fim da década de 30 muitos filósofos de língua alemã inspirados 
pelo Círculo de Viena, que fugiam do nazismo, instalou-se uma inegável 
hegemonia do neopositivismo na epistemologia em geral, da física às 
ciências sociais. Mais do que isso, a filosofia importada parecia encontrar 
terreno propício, como se houvesse uma harmonia preestabelecida entre o 
empirismo lógico, de um lado, e, de outro, o behaviorismo de origem norte-
americana ou a prática de uma economia positiva limitada e quantificável. 
Fora dos modelos matemáticos e das evidências empíricas não haveria 
salvação. 
Logo, todavia, o programa neopositivista começou a fazer água por 
todos os cantos, e a exibir suas limitações com a crise dos dogmas da 
imaculada concepção e da imaculada observação. Quine, por exemplo, acerta 
seu tiro no coração, mostrando a impossibilidade de traçar uma linha nítida 
entre proposições analíticas e proposições sintéticas, entre o que é 
 20
1.2 Relativismo e Ceticismo 
 As tentativas dogmáticas de se fundar 
conhecimentos ficaram abaladas. Os dogmáticos passaram a ser 
acusados de absolutistas, fundamentacionistas, objetivistas. 
Em contrapartida os céticos e seu relativismo ganham um novo 
fôlego e passam a resgatar toda a sua tradição milenar. 
 Segundo Osvaldo PORCHAT Pereira, todas as 
tentativas até hoje de se fundar um saber racional em busca da 
verdade nada mais foram que esforços de combate contra o 
ceticismo. Para tanto: 
“ ...a filosofia dogmática inventou a teoria do 
conhecimento: elaborou a temática da verdade, distinguiu 
entre o evidente e o não-evidente e formulou uma noção 
de evidência, introduziu a noção de critério da 
realidade e verdade e distinguiu espécies de critérios, 
construiu uma concepção do ser humano enquanto sujeito 
do conhecimento e procedeu ao estudo de suas faculdades, 
demorou-se na análise da sensibilidade e entendimento 
enquanto fontes privilegiadas do nosso alegado 
conhecimento e apreensão do real, desenvolveu uma 
doutrina da representação e, particularmente, da 
representação ‘apreensiva’, analisou cuidadosamente os 
procedimentos inferenciais que alegadamente nos conduzem 
 
puramente lógico e o que é puramente empírico. Por outro lado, os filósofos 
como N. R. Hanson, uma nova filosofia da ciência caminha na mesma direção, 
insistindo na ‘impregnação teórica’ dos dados observacionais. Na Alemanha a 
querela do positivismo opunha dialética e hermenêutica ao ‘pós-positivismo’ 
de Popper (já que sacrificara o famoso princípio da verificação, 
substituindo-o pelo oblíquo critério da falsificabilidade, que fornece uma 
idéia mais dúctil de demarcação. Nos países de língua inglesa, os filósofos 
da física — recuperando a epistemologia comparada de Duhem e de Alexandre 
Koyré — reintroduzem a história da ciência no coração da epistemologia e, 
com ela, a idéia da multiplicidade dos paradigmas. Em todos os casos, é o 
ideal da unicified science que entra em crise. 
É para uma concepção mais larga da Razão e da Ciência que se voltam 
então os espíritos. Ou, pelo menos, para o reconhecimento do fato 
incontornável de um mínimo de pluralismo ou de perspectivismo metodológico, 
que compromete a hegemonia do ideal de toda a ciência unificada no estilo 
da hard science”(PRADO JR., Bento. Retórica na economia, p. 7-8). Sobre o 
tema, ver ainda CARRILHO, M. M. Obra citada, p. 23 e ss. 
 21
da esfera da evidência comum ao domínio das realidades 
não-evidentes, por meio de signos ou de demonstrações. E 
construiu toda uma teoria dos signos e toda uma lógica 
da demonstração.”10 
 
 Diante das novas circunstâncias históricas que 
caracterizaram o século XX, as filosofias dogmáticas, antes 
prestigiadas, passaram a ser vistas com desconfiança, 
ocorrendo o inverso com o ceticismo. 
 Com efeito, a partir da já mencionada crise de 
auto-estima que afligiu a humanidade em face do impacto 
causado pelas obras de DARWIN, FREUD, NIETZSCHE, bem como 
pelas filosofias da linguagem, crise que se agravou a partir 
das explosões de duas bombas atômicas no Japão em 1945, a 
partir do que a própria tecno-ciência perdeu a credibilidade 
de que dispunha, foi o fundamentacionismo que passou a ser 
visto como uma postura insana (predicado este que 
tradicionalmente era atribuído ao ceticismo), sendo que as 
pretensões de “...querer tudo justificar, tornar-se-ia um 
empreendimento insensato, porque completamente irrealizável, 
não podendo senão levar a uma regressão ao infinito. O 
exercício hiperbólico da crítica é insensato porque, na sua 
ânsia de absoluto, dissocia pensamento e contexto, negligencia 
as exigências da ação no pensamento, as suas interações 
 
10 PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ceticismo e argumentação. In: Vida Comum e 
Ceticismo, p. 224. O mesmo artigo também consta em CARRILHO, M. M. (Org.). 
Retórica e comunicação, p. 123-164. 
 22
constantes e deixa, afinal, escapar a exigência de 
continuidade sem a qual o exercício da razão se tornaria 
incompreensível.”11 
 Conforme mencionado acima, a própria tecno-
ciência, antes vista como um campo dotado de uma saber 
inabalável12, sofreu a interferência desse “...novo terreno 
aberto pela crise do ideal da unified science ou do 
‘modernismo’ (...). Os limites desse novo terreno são bem 
definidos: crítica do positivismo, mas a partir de pontos de 
vista diferentes. Tais pontos são o neopragmatismo de Rorty, a 
teoria crítica na sua versão habermasiana, a integração 
ricoeuriana dos instrumentos da filosofia analítica, da 
 
11 GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 44. 
 
12 Sobretudo com o advento do positivismo filosófico, que se originou no 
século XIX com a obra de Augusto COMTE (1782-1857), a partir do que 
surgiram posteriormente outras vertentes, como por exemplo as de John 
STUART MILL (1806-1873) e Herbert SPENCER (1820-1903). Aqui se torna 
necessário fazer uma advertência: não se pode fazer qualquer analogia entre 
o chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se 
cair em erros grosseiros. Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto 
BOBBIO, a “expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de 
‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido 
uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas 
jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas 
origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o 
positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na 
Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’ 
deriva da locução
direito positivo contraposta àquela de direito natural. 
Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é 
necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo” (BOBBIO, 
Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 15). 
Para Miguel REALE, “diz-se Direito Positivo aquele que tem, já teve, ou 
está em vias de ter vigência e eficácia” (REALE, Miguel. Filosofia do 
direito, p. 601), o que é confirmado por Tércio Sampaio FERRAZ JR., para 
quem “Direito positivo (...) é aquele que vale em virtude de uma decisão e 
que só por força de uma nova decisão pode ser revogado” (FERRAZ JR., Tercio 
Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 157). 
 23
fenomenologia e da hermenêutica, a epistemologia kuhniana, com 
suas idéias de revolução científica e de mudança de 
paradigma.”13 
 Uma vez conhecida a extensão e a força do golpe 
sofrido pela razão, não é difícil concluir que não só a tecno-
ciência foi abalada, mas também outros ramos da cultura humana 
não ficaram incólumes, tais como a religião, a política, a 
moral e o direito. 
 Vale dizer que a relevância do problema do 
relativismo não se restringe aos campi universitários. Com 
efeito, enquanto já na década de 1920 ORTEGA Y GASSET 
costumava dizer que esse é o problema de nosso tempo, nos dias 
correntes, em que os avanços nos transportes e nas 
comunicações nos fazem interagir cada vez mais com pessoas de 
todo o globo, não podemos ignorar que não há consenso no mundo 
senão talvez, paradoxalmente, quanto ao fato de que não há 
consenso. Para um, a verdade absoluta é uma; para outro, 
outra; e para terceiros, cada vez mais numerosos, essa mesma 
divergência indica de forma singela que não há verdade 
absoluta. 
 Assim, a afirmação de que toda a verdade é 
relativa, mesmo não sendo nem de longe consensual, é 
 
13 PRADO JR., Bento. Obra citada, p. 8-9. 
 24
proclamada hoje por qualquer estudante de ensino médio, com ar 
de quem diz uma verdade absoluta. 
 Ora, se tudo é relativo, não há certo ou errado 
absoluto; se tudo é relativo, não há verdade absoluta. O 
“...dogmatismo não se sustenta sem argumentação conclusiva, 
mas o ceticismo mostrou que nenhuma argumentação é 
conclusivamente verdadeira”.14 As conseqüências do relativismo 
são, do ponto de vista ético, o cinismo e, do ponto de vista 
gnoseológico, o ceticismo. 
 Ainda segundo PORCHAT, o dogmático, cuja 
argumentação se atribui uma força de persuasão absoluta, 
“...deveria reconhecer o caráter eminentemente relativo de 
seus argumentos, que persuadem tão-somente alguns poucos 
auditórios particulares. O ideal do consenso universal dos 
homens de razão, obtido por via de argumentos, se revela um 
mito”.15 
 Não há possibilidade de consenso pela via da 
argumentação? Não há verdade? De fato, a aceitação desses 
pontos de vista leva à característica dominante da cultura 
contemporânea: o cinismo e o ceticismo. 
 
14 PEREIRA, O. P. Obra citada, p 226. 
15 PEREIRA, O. P. Idem, ibidem. 
 25
 Talvez por isso o antropólogo Ernest GELLNER 
costumasse afirmar, parodiando Karl MARX16, que “um espectro 
assombra o pensamento humano: o relativismo”.17 
 Esse espectro é justamente a tese de que não há 
verdade absoluta, isto é, de que a verdade de uma proposição é 
relativa às circunstâncias em que esta é formulada. 
 Uma das expressões clássicas do relativismo 
talvez seja a máxima de PROTÁGORAS, para quem “o homem é a 
medida de todas as coisas; das coisas que são enquanto são, 
das coisas que não são enquanto não são”.18 
 Vale dizer que essa postura relativista foi 
sempre muito combatida na antigüidade — talvez a razão de ser 
da filosofia platônica, que se contrapunha aos sofistas — 
porém a disputa era acirrada, vez que os filósofos que punham 
 
16 “Um espectro assombra a Europa: o espectro do Comunismo” (MARX, Karl, 
ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista, p. 7). 
17 Com essa frase GELLNER iniciou, em 17 de maio de 1994, sua palestra 
intitulada “O Relativismo versus Verdade Única”, que teve lugar no ciclo de 
Palestras “O Relativismo Enquanto Visão do Mundo”, promovido pelo Banco 
Nacional entre 17 e 20 de maio de 1994, na cidade de São Paulo-SP. 
18 Pré-Socráticos, in Os Pensadores, p. 32. Segundo Alf ROSS, PROTÁGORAS 
ensinou skepsis (σκεπσισ: percepção sensorial através da visão): “skepsis no 
conhecimento e na moralidade — resumida na fórmula: ‘o ser humano é a 
medida de todas as coisas.’ Porém, é imperioso lembrar que o conhecimento 
em relação ao qual Protágoras era cético era aquele que até então fora a 
meta dos filósofos: a percepção absoluta do imutável; e que a moral em 
relação à qual era cético era a lei absoluta, a validade divina. Protágoras 
se deu conta da inutilidade [e fatuidade] das tentativas dos filósofos de 
conhecer a essência absoluta da existência e das coisas, e ensinou que todo 
conhecimento reside na percepção de nossos sentidos e é, por conseguinte, 
necessariamente relativo e individual. As coisas são tal como as vemos, mas 
os seres humanos as vêem de maneiras diferentes. Mas o homem cuja mente 
esteja sã as vê da mesma maneira que outros que se acham na mesma condição” 
(ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 274-275). 
 26
em suspenso a razão dada a impossibilidade de verdade, eram 
muito populares na época. Há inúmeros exemplos, além de 
PROTÁGORAS, de filósofos da Grécia clássica com posturas 
relativistas, tais como a de XENÓFANES, de Colofão: 
“ Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões 
e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os 
homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois 
semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e 
os corpos fariam tais quais eles próprios têm.”19 
 
 Ou ainda a postura de GÓRGIAS20, que, segundo a 
síntese elaborada por Enrico BERTI, considerava a razão 
incapaz de apreender a verdade: 
“ ... 1) o ser não é; 2) ainda que fosse, não seria 
cognoscível; 3) ainda que fosse cognoscível, não seria 
comunicável. A conseqüência dessas três teses era que o 
lógos, ou seja, o discurso, não tem mais a função de 
tornar possível a comunicação, transmitindo de uma 
pessoa a outra o conhecimento e significando, por meio 
do conhecimento, a realidade. Ele, ao contrário, se 
substitui à realidade, a instaura, por assim dizer, ele 
mesmo, cria-a e, em vez de comunicar pensamentos, produz 
diretamente os efeitos, isto é, causa das paixões, 
dominando assim completamente a pessoa.”21 
 
 Mas nada se compara ao ceticismo que fora 
professado por PIRRO22, cuja crítica é dirigida expressamente 
 
19 XENÓFANES de Colofão. Fragmento 15, Os Pré-Socráticos, in: Os Pensadores, 
p. 70-71. 
20 Apontado por ARISTÓTELES como o descobridor da retórica. 
21 BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 167. 
22 Depois abraçado por SEXTUS EMPIRICUS, cujo pensamento, denominado neo-
pirronismo, ressurgiu revigorado no século XX, inclusive no âmbito 
jurídico. Vale dizer que, segundo PORCHAT, mesmo DESCARTES se utilizou do 
ceticismo pirrônico: “Inaugurando um estilo de filosofar basicamente 
justificacionista e fundamentacionista, que requer, como condição prévia 
para a constituição do saber filosófico, uma tabula rasa de nossas certezas 
comuns, em geral — e de nossas certezas sobre o mundo exterior, em 
 27
contra os que pretendem ter encontrado a verdade. São eles os 
filósofos a quem se convencionou denominar dogmáticos, os que 
pensam ter um conhecimento exato de como as coisas são por 
natureza. Os dogmáticos põem como realmente existentes as 
coisas sobre as quais discorrem; seu discurso se pretende a 
expressão verdadeira de uma realidade como tal conhecida. Esse 
discurso
assume com freqüência a forma de um sistema 
doutrinário que compõe e articula dogmas uns com os outros e 
com os fenômenos que se impõem a nossa aceitação comum.23 
 Contra essas tentativas dogmáticas é que os 
céticos, a partir das mesmas premissas aceitas pelos 
dogmáticos — no interior da lógica destes últimos, vão 
estabelecer uma série impressionante de argumentos contrários: 
“ ...que não existe a verdade, tal qual os dogmáticos 
a conceberam, nem há algo verdadeiro; que não há 
realidade evidente, que nada é evidente; que não há 
critério de verdade, porque nenhuma das espécies de 
critério propostas pelos dogmáticos nos provê de 
conhecimento seguro; que é inconcebível e inapreensível 
o sujeito humano, como o entendem os dogmáticos; que não 
se pode descobrir a verdade nem julgar as coisas pela 
sensibilidade ou pelo entendimento, ou pela operação 
conjunta de uma e outro, isto é, por nenhuma de nossas 
faculdades pretensamente cognitivas; que a representação 
(phantasía) dogmática é inconcebível, inapreensível, nem 
 
particular —, o cartesianismo reservou ao ceticismo um curioso destino. 
Porque, ao utilizar instrumentalmente o ceticismo de que metodologicamente 
se alimenta, ele estranhamente o preserva, embora pretendendo superá-lo. A 
suspensão cética de juízo sobre o mundo exterior converteu-se em 
estratégia-padrão e em preliminar metodológico ao filosofar. Com isso, o 
cartesianismo deu um passo decisivo para a incorporação da mensagem cética 
ao pensamento moderno, o que nos permite mesmo falar adequadamente de um 
modelo cético-cartesiano estabelecido no início das Meditações” (PEREIRA, 
Oswaldo Porchat. Ceticismo e mundo exterior. In Vida Comum e Ceticismo, p. 
124-125). 
23 Cf. PORCHAT, O. P. Obra citada, p. 213-214, em que há a sistematização do 
pensamento de PIRRO a partir de SEXTUS EMPIRICUS. 
 28
se podem julgar por ela os objetos; que o signo, tal 
como o dogmatismo o define, é inconcebível, irreal, não 
existe signo; que argumentos conclusivos são 
inapreensíveis, que não se podem descobrir argumentos 
verdadeiros, nem é possível descobrir um argumento que 
deduza algo ádelon (não-evidente) a partir de premissas 
evidentes, dada a relação mesma que conecta conclusão e 
premissas; que não há realmente demonstrações e as 
demonstrações são portanto irreais, são nada; que a 
demonstração é, de fato, inconcebível, é algo não-
evidente...”24 
 
 Portanto, os céticos questionam: 
“ ...a aceitabilidade das premissas da argumentação 
proposta e das premissas dessas premissas, renovadamente 
exigindo justificação e fundamento, acenando portanto 
com uma regressão ao infinito. Cuidará também de 
prevenir qualquer circularidade dissimulada na 
argumentação adversária, que eventualmente introduza nas 
premissas matéria decorrente da tese a ser provada. E, 
sobretudo, não permitirá que os oponentes se proponham a 
deter o processo de fundamentação, assumido algo ex 
hypothéseos, isto é, à maneira de um ‘princípio’ ou 
axioma, pretextando tratar-se de um enunciado 
indemonstrável e que de si mesmo se impõe à nossa 
apreensão, de uma verdade que por si mesma se faz 
aceitar pela razão e que prescinde de fundamento outro. 
Os dogmáticos, com efeito, pretendem que não somente a 
demonstração, mas toda a filosofia, procede ex 
hypothéseos.”25 
 
 Essa relatividade manifesta de todas as coisas 
sempre foi reconhecida pelos céticos como uma das razões 
determinantes que os induzem a suspender o juízo (a epokhé) 
sobre a verdade e a realidade absoluta delas. A epokhé é, 
 
24 PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 224-225. 
 
25 PEREIRA, O. P. Obra citada, p 222-223. Princípios (arkhé), na noção 
aristotélica, são aquelas proposições que desempenham nos argumentos o 
papel de premissas, sem que sua verdade se tenha estabelecido como 
conclusão de argumentos anteriores. A validade (pelo menos como verdade) de 
tais princípios é incisivamente negada pelos céticos. Adiante se verá que a 
importância da retórica, para ARISTÓTELES, está justamente no seu papel de 
justificar tais princípios. 
 29
portanto, esse “...estado de repouso do entendimento devido ao 
qual nada negamos nem assertamos, impossibilitados de escolher 
algo como verdadeiro ou falso, o equilíbrio das razões 
contrárias incapacitando-nos para dogmatizar”.26 
 A partir da descrição superficial da postura 
cética acima realizada, vê-se que esse tipo de pensamento não 
pode ser negligenciado. Ademais, quanto ao direito, um dos 
debates mais importantes do século XX é o que tem sido travado 
entre o positivismo jurídico — que tem uma postura francamente 
cética nas vertentes de Hans KELSEN e Herbert HART — e as 
várias posturas que não admitem o ceticismo, dentre as quais 
se pode citar o ressurgimento do jusnaturalismo, mas 
principalmente as posições de Ronald DWORKIN contra o 
positivismo jurídico. 
 Para uma melhor compreensão desse debate, serão 
descritas, no próximo capítulo, as principais teorias 
jurídicas dos últimos tempos, da escola da exegese ao realismo 
jurídico norte-americano, do conceitualismo ao positivismo 
jurídico da atualidade. 
 É justamente em meio a essas discussões que 
alguns teóricos começaram a ver na argumentação jurídica e no 
papel por ela desempenhado em seu âmbito de atuação, algo que 
 
26 PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 228. 
 30
merecia maior atenção dada a sua relevância, ocasião em que a 
própria argumentação foi tomada como objeto de estudo, o que 
implicou tentativas — ainda em curso — de se estabelecer uma 
possível teoria geral da argumentação jurídica, que será o 
tema central deste trabalho. 
 31
1.3 Pragmatismo e Direito 
 Uma questão ficou em aberto no item anterior: 
será que, do ponto de vista ético, o relativismo deve 
necessariamente levar ao cinismo? Aqui não se está mais nos 
limites da teoria do conhecimento, mas no âmbito de um 
relativismo cultural que já se pode encontrar em MONTAIGNE, 
quando dá suas impressões com relação às práticas 
antropofágicas dos índios do Brasil: 
“ ...não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que 
dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera 
bárbaro o que não se pratica em sua terra. É natural, 
porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser 
das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes 
do país em que vivemos.”27 
 
 Na sua forma extrema, o relativismo cultural 
significa que os diversos sistemas cognitivos e critérios para 
a determinação da verdade que as diferentes culturas possuem 
são incomensuráveis. Uma pessoa é tanto mais relativista 
quanto mais reconhece a possibilidade de verdades 
incompatíveis com a sua: quanto mais relativiza a sua própria 
verdade. 
 No entanto referida postura leva a alguns 
problemas. Se é certo que o relativismo surge freqüentemente a 
partir de uma atitude de tolerância, em que o relativista se 
 
 
27 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios, p. 195. 
 32
nega a tomar suas próprias convicções como absolutas e dá 
lugar a verdades alheias, certo é também que através dessa 
postura ele acaba por minar com isso a sua própria posição.28 
 Sendo assim, para o relativista a verdade do 
absolutista valeria tanto quanto a sua. Para o absolutista, ao 
contrário, o relativista não tem verdade alguma. Trata-se, 
portanto, de uma luta desigual. Daqui se pode tirar uma nova 
questão: será que as posturas de tolerância devem 
necessariamente implicar fraqueza diante dos absolutistas? 
 Outro problema que pode surgir da postura 
relativista é o de que, do ponto de vista da lógica formal, o 
relativismo pode ser tomado como uma variante do antigo 
paradoxo
do mentiroso.29 
 É certo que, durante muito tempo, semelhantes 
problemas pareciam acadêmicos e formais. Com efeito, logo 
depois de reconhecer que é irrefutável a tese de que o 
ceticismo ou relativismo, à medida em que querem ser 
verdadeiros, derrotam-se a si próprios30, GADAMER pergunta: 
 
28 PLATÃO já apontava essa fraqueza na posição de PROTÁGORAS, com o célebre 
argumento retorsivo que amiúde é utilizado contra os céticos: ora, se todas 
as verdades são relativas, também essa verdade — a de que tudo é relativo — 
é relativa. 
29 Este se dá quando alguém diz por exemplo: minto sempre (tudo o que eu 
digo é mentira). Se esta pessoa estiver dizendo a verdade, está mentindo; e 
se estiver mentindo, está dizendo a verdade. 
30 “É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo 
pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime” (GADAMER, Hans-
Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica 
filosófica, p. 510). 
 33
“ Mas, o que se consegue com isso? O argumento da 
reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia 
contra aquele que o emprega, na medida em que torna 
suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se 
alcança através dessa argumentação não é a realidade do 
ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver 
qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do 
argumentar formal em geral.”31 
 
 Portanto, a pretensão de verdade dogmática, 
tanto quanto o relativismo, saem feridos dessa disputa. No 
entanto uma postura particular do relativismo tem a pretensão 
de não sofrer um arranhão: o pragmatismo anglo-saxão. 
 Com efeito, para um dos maiores expoentes dessa 
filosofia na atualidade, o neopragmático Richard RORTY, a 
discussão sobre uma proposição ser verdadeira ou aparente deve 
ser abandonada em nome do que é mais ou menos útil, cujo 
objetivo é a possibilidade de melhorias na vida em sociedade. 
Sendo assim, não importa saber se a mente humana apreende ou 
não a realidade, mas sim qual o propósito de uma ou outra 
crença. Distinções metafísicas, nessa perspectiva, não fazem 
sentido nenhum.32 
 O ponto de partida de RORTY é o pensamento de 
John DEWEY, de quem se considera discípulo: 
“ O filósofo que mais admiro, e de quem eu mais 
gostaria de ser considerado discípulo, é John Dewey. 
 
31 GADAMER, Hans-Georg. Idem, ibidem. 
32 Posicionamento firmado por RORTY em 19 de maio de 1994, por ocasião de 
sua palestra intitulada Relativismo: Encontrar e Fabricar, que teve lugar 
no ciclo de Palestras O Relativismo Enquanto Visão do Mundo, promovido pelo 
Banco Nacional entre 17 e 20 de maio de 1994, na cidade de São Paulo-SP. 
 34
Dewey foi um dos fundadores do pragmatismo americano, um 
pensador que passou 60 anos tentando nos libertar do 
jugo de Platão e de Kant. Foi muitas vezes tachado de 
relativista, e o mesmo ocorre comigo, mas é claro que 
nós, pragmatistas, jamais nos consideraríamos 
relativistas. Geralmente nos definimos em termos 
negativos: somos antiplatônicos, ou antimetafísicos ou, 
ainda, antifundacionistas. Do mesmo modo, nossos 
oponentes raramente chamam a si mesmos platônicos, 
metafísicos, ou fundacionistas, mas costumam intitular-
se defensores do senso comum, ou da razão. 
 ... Nós, ditos relativistas, nos recusamos, é 
claro, a admitir que somos inimigos da razão...”33 
 
 DEWEY, com efeito, é um dos mais notórios 
representantes, ao lado de Charles S. PEIRCE e William JAMES, 
da corrente denominada pragmatismo dentro da filosofia 
contemporânea. 
 O pragmatismo quer evitar toda a forma de 
absolutismo, juntamente com as conseqüências desastrosas 
decorrentes desta postura dentro da história da humanidade. 
Defende uma tolerância que vai contra todos os determinismos, 
materialismos e idealismos já defendidos e sistematizados na 
filosofia. 
 DEWEY sustenta que quanto mais adversa a 
realidade para o ser humano, maior a tendência deste em 
fantasiar situações, projetar desejos, enfim, realizar 
idealizações. 
 
33 RORTY, Richard. Relativismo: encontrar e fabricar. In: CICERO, Antonio, 
SALOMÃO, Waly (Org.). O relativismo enquanto visão do mundo, p. 116. 
 35
 Porém, “...tais considerações aplicam-se além 
da psicologia pessoal, [pois] são verdades terminantes em um 
dos traços mais marcantes da filosofia clássica: sua concepção 
de uma Realidade Última, Suprema, essencialmente ideal na 
natureza”.34 
 A realidade sempre foi encarada de uma forma 
negativa, como imperfeição. Daí surgiram todos os sistemas 
filosóficos desde PLATÃO e ARISTÓTELES, passando pelos 
períodos Medieval e Moderno, que nos influenciam profundamente 
na atualidade. 
 A concepção que vê na realidade uma imperfeição 
deu vazão a existência do pensamento que busca a verdade, a 
realidade última; estas sim dotadas de perfeição e que podem 
ser atingidas através da contemplação. 
 Daí o motivo de, até aproximadamente três 
séculos atrás, ser dominante a mentalidade da 
“...superioridade do conhecimento contemplativo ao prático, o 
da especulação teórica pura à experimentação e a qualquer 
outro que dependa de mudanças nas coisas ou que induz mudanças 
nelas”.35 
 
34 DEWEY, John. A filosofia em reconstrução, p. 115. 
35 DEWEY, J. Idem, p. 119. 
 36
 A filosofia então era vista como “...o 
conhecimento puro, solitário, e capaz de continuar em completa 
e auto-suficiente independência”.36 
 Ocorre que, com o alvorecer da ciência moderna, 
nasce uma nova concepção de razão e experiência, em que a 
sensação deixa de ser passiva para dar lugar a uma interação 
organismo/meio. O trabalho, que antes era visto como uma 
atividade destituída de qualquer nobreza, passa a ser 
valorizado: 
“ O que há algum tempo era tido como milagre, hoje é 
feito com o vapor, com o carvão, com a eletricidade e o 
ar, com o corpo humano. Contudo são poucas as pessoas 
otimistas, a ponto de proclamarem que temos conseguido 
semelhante domínio das forças que controlam o bem estar 
(...) do homem.”37 
 
 As transformações decorrentes da técno-ciência 
têm demonstrado que o mundo pode, enfim, ser transformado em 
um lar, sendo este um ideal (dentro desta nova concepção) 
encarado como uma alavanca para aquilo que nossos desejos 
planejam, modificando o mundo real. O conhecimento deixa de 
preocupar-se com essências, causas, etc.; que na verdade não 
solucionam nossos problemas. “O conhecimento deixa de ser 
 
36 DEWEY, J. Idem, p. 120. 
37 DEWEY, J. Idem, p. 132. 
 37
contemplativo para se tornar prático”.38 A experimentação 
científica seria o melhor exemplo disto. 
 DEWEY afirma que “...o mais importante papel no 
filosofar histórico [são] as concepções do ideal e do real”.39 
No pragmatismo “...o real deixa de ser alguma coisa com 
existência antecipada e final para tornar-se aquilo que tem de 
ser aceito como material de mudança”40, o mesmo ocorrendo com o 
ideal e o racional. Tais concepções acima “...passam a 
representar possibilidades inteligentemente engendradas do 
mundo real que poderão ser usadas como métodos para modificar 
e aperfeiçoar este mesmo mundo”.41 
 A filosofia passa a ter uma função ativa, ou 
seja, “...a de racionalizar as possibilidades da experiência, 
especialmente as da coletividade humana”.42 Quanto a 
epistemologia e a metafísica, seriam infrutíferas, inúteis, 
pois nada acrescentam na vida prática ou contribuem para o 
bem-estar moral e social do homem. 
 Para DEWEY, há um conflito entre as posturas 
contemplativa e prática. A relação entre ideal e real nunca 
esteve tão distante e esta relação é “o mais sério de todos os
38 DEWEY, J. Idem, p. 125. 
39 DEWEY, J. Idem, p. 130. 
40 DEWEY, J. Idem, ibidem. 
41 DEWEY, J. Idem, ibidem. 
42 DEWEY, J. Idem, ibidem. 
 38
[problemas] da humanidade”.43 Se, por um lado, a tecnologia nos 
trouxe muitas benesses, por outro, a visão excessivamente 
prática do mundo nos afastou de preocupações extremamente 
pertinentes, como, por exemplo, as questões ecológica, social, 
política. O que DEWEY propõe é uma “...reconciliação entre as 
ciências práticas e a apreciação estética contemplativa”.44 
 Também em RORTY há uma recusa em admitir 
problemas que envolvam fundamentos, importando apenas as 
vantagens e desvantagens concretas trazidas pelas crenças. 
 Com efeito, o pragmatismo não está interessado 
na distinção entre verdade e falsidade, pois proclama que 
alguns juízos são melhores que a verdade, posto que funcionam 
melhor. O problema sai do âmbito da verdade para entrar no 
campo da opinião (dóxa), sendo que neste âmbito a escolha 
entre duas ou mais opiniões — que deve ser pela melhor dentre 
elas — é possível (admite-se mesmo a escolha de uma opinião 
que não seja a mais verdadeira). 
 Por isso os neopragmáticos têm sido acusados de 
irracionalistas, principalmente se o que está em questão são 
valores maiores ou mesmo diferentes paradigmas científicos.45 
 
43 DEWEY, J. Idem, p. 135. 
44 DEWEY, J. Idem, p. 134. 
45 Thomas KUHN, em especial com sua obra A Estrutura das Revoluções 
Científicas, instaurou uma perspectiva inédita sobre a atividade científica 
quando traçou a sua noção de paradigma. Distinguindo dois regimes nessa 
atividade, que designou por ciência normal e ciência extraordinária, 
 39
 Ora, uma coisa é considerar relativas opções 
concernentes a preferências estéticas ou gastronômicas, o que 
é aceitável. Coisa bem diferente é relativizar valores morais 
ou científicos. 
 GELLNER, por exemplo, que admite a 
possibilidade de se chegar a uma verdade única46, sustenta que, 
científica e moralmente, entre as diversas verdades uma deverá 
ser a mais forte.47 GELLNER não aceita, portanto, que a todo 
argumento ou opinião se possa sempre opor, à moda de PIRRO, 
outro argumento ou opinião, igualmente possível. Aceitar isso 
implica o reconhecimento da impossibilidade de qualquer 
progresso científico. Para GELLNER, ao contrário: 
“ ...dos velhos sistemas que Descartes e a 
epistemologia moderna puseram a pique, se não resultou 
uma nova embarcação confiável e em boas condições de 
navegabilidade, restos ao menos sobraram dos quais 
‘alguns pedaços são melhores que outros’ e podem, 
convenientemente reunidos e amarrados, compor ‘uma 
jangada passável’. Nas páginas finais de seu livro (pp. 
 
caracterizando a primeira por se reger por um paradigma que orienta toda a 
atividade dos cientistas de cada comunidade disciplinar, e a segunda por 
viver num estado de crise que resulta, numa dada situação, de perda de 
eficiência do paradigma até então vigente, podendo por isso conduzir à 
eclosão de uma revolução científica, ou seja, à instauração de um novo 
paradigma. A ocorrência desta revolução tem como principal conseqüência 
cavar, entre os dois paradigmas, o que KHUN designou como uma 
incomensurabilidade, isto é, um estado de incompreensão ou de conflito não 
só sobre os problemas que devem ser considerados como das soluções que 
devem ser aceitas, situação que é agravada com o uso de conceitos com 
significação diferente pelos partidários dos dois paradigmas. 
46 Verdade aqui não no sentido absoluto do termo, pois GELLNER reconhece o 
caráter relativo dos fundamentos, admitindo ser provavelmente impossível 
que a teoria do conhecimento possa desempenhar com rigor absoluto sua 
tarefa de fundamentação e legitimação do conhecimento sem incorrer na 
circularidade (petição de princípio) ou no regresso ao infinito (cf. 
PORCHAT, O. P. Ceticismo e saber comum. In: Vida Comum e Ceticismo, p. 
114). Nesse ponto GELLNER admite o argumento cético. 
47 Aqui o pensamento de GELLNER se aproxima muito ao de DWORKIN. 
 40
206-208) [Legitimation of Belief], Gellner enumera esses 
elementos que, a seu ver, acabaram sendo destilados por 
um consenso emergente de alguns séculos de reflexão 
filosófica, elaborada sob o impacto da epistemologia 
moderna.”48 
 
 A peculiar idéia de verdade única não deve 
levar, necessariamente, a uma nova espécie de etnocentrismo e 
colonialismo. Segundo GELLNER são os relativismos que, sob o 
manto da tolerância, chegam a admitir absurdos como a 
justificação de opressões existentes em certas culturas, tais 
como torturas e mutilações sistemáticas.49 
 
48 GELLNER, Ernest. Legitimation of belief. Cambridge: Cambridge University 
Press, 1974. Citado por PEREIRA, O. P. Obra citada, nota 79, p. 114. 
49 O biólogo Richard DAWKINS, em recente obra para divulgação da importância 
da ciência, aborda o absurdo a que o discurso tolerante e relativista pode 
levar. Para tanto, cita o seguinte caso: “Uma onda em voga vê a ciência 
apenas como um dentre muitos mitos culturais, nem mais verdadeiro ou válido 
do que os mitos de qualquer outra cultura. Nos Estados Unidos, essa atitude 
é alimentada pela culpa justificada do tratamento histórico conferido aos 
americanos nativos. Mas as conseqüências podem ser risíveis, como no caso 
do Homem de Kennewick. 
O Homem de Kennewick é um esqueleto descoberto no estado de 
Washington em 1996 que, pela datação de carbono, deve ter mais de 9 mil 
anos. Os antropólogos ficaram intrigados com as sugestões anatômicas de que 
talvez não estivesse relacionado com os típicos americanos nativos, podendo 
representar uma outra migração anterior pelo que é agora o estreito de 
Bering ou até originária da Islândia. Eles estavam se preparando para 
realizar os importantíssimos testes de DNA, quando as autoridades legais se 
apoderaram do esqueleto, com a intenção de entregá-lo aos representantes 
das tribos indígenas locais, que propuseram enterrá-lo e proibir todo 
estudo posterior. Houve naturalmente uma ampla oposição da comunidade 
científica e arqueológica. Mesmo se o Homem de Kennewick fosse um tipo de 
índio americano, é altamente improvável que tivesse afinidades com qualquer 
tribo específica que por acaso habitasse a mesma área 9 mil anos mais 
tarde. 
Os americanos nativos têm uma força legal impressionante, e ‘O 
Antigo’ poderia ter sido entregue às tribos, não fosse por um acontecimento 
bizarro. A Assembléia do Povo de Asatro, um grupo de adoradores dos deuses 
nórdicos Thor e Odin, entrou com uma ação legal independente afirmando que 
o Homem de Kennewick era, na verdade, um viking. Essa seita nórdica, cujas 
visões se encontram no número do verão de 1997 de The Runestone, teve 
realmente a permissão de realizar um culto religioso sobre os ossos. Isso 
desagradou à comunidade indígena yacama, cujo porta-voz temia que a 
cerimônia viking pudesse ‘impedir o espírito do Homem de Kennewick de 
 41
 
encontrar o seu corpo’. A disputa entre os indígenas e os nórdicos poderia 
ser resolvida pela comparação do DNA, e os nórdicos estavam bem desejosos 
de passar pelo teste, O estudo científico dos vestígios certamente lançaria 
uma luz fascinante sobre a questão de saber quando os humanos chegaram pela 
primeira vez à América. Mas os líderes indígenas não admitem a simples 
idéia de estudar o assunto, porque acreditam que seus antepassados existem 
na América desde a criação. Como Armand Minthorn, o líder religioso da 
tribo umatilla, se expressou: ‘De nossas histórias orais, sabemos que o 
nosso povo é parte desta terra desde o começo dos tempos. Não acreditamos 
que o nosso povo migrou de outro continente para a América,
como afirmam os 
cientistas’. 
Talvez a melhor atitude para os arqueólogos seja declarar que 
pertencem a uma religião, sendo as impressões digitais do DNA o seu totem 
sacramental. Parece brincadeira, mas é tal o clima nos Estados Unidos no 
final do século XX que possivelmente esse é o único recurso que iria 
funcionar. Se alguém diz: ‘Olha, há evidências esmagadoras, obtidas pela 
datação de carbono, pelo DNA mitocondrial e pelas análises arqueológicas da 
cerâmica, de que x é o caso’, não vai chegar muito longe. Mas, se alguém 
diz: ‘É uma crença fundamental e inquestionável da minha cultura de que x é 
o caso’, vai imediatamente atrair a atenção de um juiz. 
Vai também chamar a atenção de muitos na comunidade acadêmica, que, 
no final do século XX, descobriram uma nova forma de retórica 
anticientífica, às vezes chamada de ‘crítica pós-moderna’ da ciência. 
(...) 
Os promotores do relativismo cultural e da ‘superstição mais elevada’ 
tendem a despejar desprezo na busca da verdade. Isso deriva parcialmente da 
convicção de que as verdades são diferentes em culturas diferentes (esse 
era o argumento da história do Homem de Kennewick) e parcialmente da 
incapacidade de os filósofos da ciência concordarem de algum modo sobre a 
verdade. Há certamente dificuldades filosóficas genuínas. Uma verdade é 
apenas uma hipótese não falsificada até o presente momento? Que status 
possui a verdade no estranho e incerto mundo da teoria quântica? Algo é em 
última análise verdadeiro? Por outro lado, nenhum filósofo encontra 
dificuldade em usar a linguagem da verdade quando é falsamente acusado de 
um crime, ou quando suspeita que sua esposa cometeu adultério. “É verdade?’ 
parece então uma pergunta justa, e poucos dos que a formulam nas suas vidas 
privadas ficariam satisfeitos em ter como resposta um sofisma 
argumentativo. Os experimentadores do pensamento quântico talvez não saibam 
em que sentido é ‘verdade’ que o gato de Schrödinger está morto. Mas todo 
mundo sabe o que é verdadeiro na declaração de que Jane, a gata da minha 
infância, está morta. E, em muitas verdades científicas, o que afirmamos é 
apenas que elas são verdadeiras nesse mesmo sentido comum. Se lhe digo que 
os humanos e os chimpanzés partilham um antepassado comum, você pode 
duvidar da verdade da minha afirmação e procurar (em vão) evidências de que 
ela é falsa. Nós dois sabemos, no entanto, o que significaria se ela fosse 
verdadeira, e o que significaria se ela fosse falsa. Está na mesma 
categoria de: ‘É verdade que você esteve em Oxford na noite do crime?’, e 
não na mesma categoria difícil de: ‘É verdade que um quantum tem posição?’. 
Sim, há dificuldades filosóficas sobre a verdade, mas podemos ir bem longe 
antes de ser preciso que delas nos ocupemos. A criação prematura de 
alegados problemas filosóficos é às vezes uma cortina de fumaça para a 
discórdia” (DAWKINS, Richard. Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e 
encantamento, p 38-42). 
 42
 Daí porque a inadmissibilidade do relativismo 
moral. Segundo GELLNER: 
“ Num mundo como o nosso, a injunção relativista que 
nos diz ‘quando em Roma, aja como os romanos’ se 
descobre vazia de conteúdo, porquanto, simplesmente não 
há ‘Roma’ nem ‘Romanos’, não há mais ‘cidades’ 
identificáveis, isto é, unidades identificáveis, em 
termos dos quais a alegada relatividade possa operar.”50 
 
 Para GELLNER também o relativismo lógico é 
inaceitável, pois “...o que está em jogo aqui não é a 
diferença entre meras teorias rivais mas entre incomensuráveis 
paradigmas rivais — o que pode ser chamado o problema de 
Thomas KHUN. Aqui, dar nota não é inútil mas, ao contrário, 
obrigatório. Inevitavelmente fazemos isso de qualquer modo. Há 
progresso científico, não apenas mudanças insignificantes de 
modas”.51 
 Seja como for, o ponto de partida relativista 
do ceticismo é aceito, porém o que não se admite é uma postura 
passiva proporcionada pela epokhé, vez que, do ponto de vista 
da razão prática proposta por GELLNER, deve-se fugir do 
utilitarismo irracionalista do neopragmatismo e buscar sempre 
a melhor solução.52 
 
50 GELLNER, E. Legitimation of belief, p 48-49, citado por PEREIRA, O. P. 
Obra citada, nota 48, p. 105. 
51 GELLNER, E. Sobre as opções de crença, Folha de São Paulo, 15 de maio de 
1994, p. 6 – 11. 
52 Melhor não no sentido pragmático, em que a melhor solução pode ser a 
menos condizente com a verdade, ou seja, com critérios de racionalidade 
derivados da lógica formal. Uma opção que não se compatibilize com o 
 43
 Vale dizer que a busca da melhor solução vai 
implicar, necessariamente, argumentação. “A filosofia 
dogmática argumenta, ela essencialmente argumenta”53, sobretudo 
para justificar as premissas de onde parte, em especial quanto 
aos seus princípios que são tidos como argumentações que 
ocupam o papel de premissas.54 
 Foi justamente diante dessa constatação que 
ARISTÓTELES acabou por reconhecer a importância da retórica — 
que era muito criticada por PLATÃO — a qual, além de poder 
firmar os princípios através de argumentos honestos, foi 
 
pensamento formal seria inaceitável para GELLNER e aqui o relativismo não 
pode funcionar. É claro que isso é bem diferente de uma disputa entre 
opções diversas, em que todas elas pudessem ser formalmente sustentáveis. 
53 PEREIRA, O. P. Obra citada, p. 214. 
54 Aqui o pragmatismo também pretende atuar, mas igualmente está sujeito a 
críticas, conforme aduz Tércio Sampaio FERRAZ JR.: “Embora não se possa 
negar, conforme é acentuado, sobretudo na literatura norte-americana sobre 
administração pública, que uma decisão procura alcançar, por meio de um 
arranjo de meios e compensações, um máximo de consenso e cooperação 
concreta entre os atingidos por ela, parece-nos que consenso e cooperação 
não constituem nem a finalidade imediata nem a condição primeira da 
decisão. Decidir, nesse sentido, não é, primordialmente, estabelecer uma 
repartição eqüitativa entre as chances de vitória reveladas pela 
justificação das alternativas em conflito numa discussão dada, o que 
pressupõe um critério exterior ao próprio discurso e que defina, a priori, 
o que se entende por repartição eqüitativa. Isso, aliás, exigiria do ato 
decisório um tipo de neutralidade e de distância que o tornariam não 
situacional. Colocar decisão e consenso numa relação imediata significa 
transformar a decisão ‘racional’ num modelo ideal, do qual nos aproximamos 
mais ou menos; na medida que em toda decisão concorrem variáveis nem sempre 
controláveis e previsíveis, toda decisão ‘racional’ seria sempre e apenas 
parcialmente ‘racional’. Essa concepção idealista da decisão, presente na 
‘teoria da otimização’ da decisão, emerge de uma situação discursiva também 
ideal, em que opiniões e contra-opiniões deixam indiferençados os momentos 
da concorrência e da cooperação, sendo possível, então, o aparecimento de 
um critério que ordene as opiniões. Nesta situação, todos os dados 
relevantes seriam conhecidos de início, todas as alternativas poderiam ser 
enumeradas e avaliadas de antemão, restando apenas a escolha. Mas, tão logo 
a situação se complique, tão logo as teorias da decisão cresçam em riqueza 
de sentido e de relacionamento, uma ordem deste gênero perderia em nitidez” 
(FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p. 43). 
 44
concebida como sendo a melhor maneira de se defender do mal 
uso que dela faziam os sofistas. Daí decorrem as seguintes 
conclusões do estagirita: 
“ (1) A retórica é útil, porque, tendo o verdadeiro e 
o justo mais força natural que os seus contrários, se os 
julgamentos não são proferidos como conviria, é 
necessariamente por sua única culpa que os litigantes 
[cuja causa é justa] são derrotados. Sua ignorância
merece, portanto, censura. 
 (2) Ainda mais: conquanto possuíssemos a ciência 
mais exata, há certos homens que não seria fácil 
persuadir fazendo nosso discurso abeberar-se apenas 
nessa fonte; o discurso segundo a ciência pertence ao 
ensino, e é impossível empregá-lo aqui, onde as provas e 
os discursos (logous) devem necessariamente passar pelas 
noções comuns, como vimos em Tópicos, a respeito das 
reuniões com um auditório popular. 
 (3) Ademais, é preciso ser capaz de persuadir dos 
prós e dos contras, como no silogismo dialético. Não 
para pôr os prós e os contras em prática — pois não se 
deve corromper pela persuasão! —, mas para saber 
claramente quais são os fatos e para, caso alguém se 
valha de argumentos desonestos, estar em condições de 
refutá-lo... 
 (4) Além disso, se é vergonhoso não poder defender-
se com o próprio corpo, seria absurdo que não houvesse 
vergonha em não poder defender-se com a palavra, cujo 
uso é mais próprio ao homem que o do corpo. 
 (5) Objetar-se-á que a retórica pode causar sérios 
danos pelo uso desonesto desse poder ambíguo da palavra? 
Mas o mesmo se pode dizer de todos os bens, salvo da 
virtude... 
 (6) Fica claro, pois, que, assim como a dialética, 
a retórica não pertence a um gênero definido de objetos, 
mas é tão universal quanto aquela. Claro também que é 
útil. Claro, por fim, que sua função não é [somente] 
persuadir, mas ver o que cada caso comporta de 
persuasivo. O mesmo se diga de todas as outras artes, 
pois tampouco cabe à medicina dar saúde, porém fazer 
tudo o que for possível para curar o doente.”55 
 
55 ARISTÓTELES. Retórica. Livro I, cap. 2, 1355 a-b, p. 7-9. Daí a utilidade 
da retórica para ARISTÓTELES, assim sintetizada por Enrico BERTI: “Porém, 
vamos às ‘utilidades da retórica’, ou seja, aos motivos pelos quais a 
retórica é ‘útil’ (khrésimos), que são quatro. Em primeiro lugar, a 
retórica é útil porque permite evitar uma coisa reprovável, isto é, perder 
uma causa justa por inferioridade própria, dado que, ‘por natureza’, por si 
mesmas, ‘as coisas verdadeiras e justas são mais fortes que seus 
contrários’ (1355 a 21-24). É evidente a analogia entre esta utilidade e a 
primeira das quatro utilidades da dialética expostas nos Tópicos I 1, 
aquela relativa ao ‘exercício’ mental (pros gymnasían), que nos dá 
condições de argumentar mais facilmente (101 a 28-30). Em segundo lugar, a 
 45
 
retórica é útil porque, para alguns, não basta recorrer à ‘ciência mais 
exata’, que é apropriada para o ensino, na medida que é necessário usar 
argumentos baseados nos lugares-comuns (diá ton Koinón). E aqui é o próprio 
Aristóteles que cita a segunda utilidade da dialética ilustrada nos 
Tópicos, aquela relativa às ‘discussões com a multidão’, nas quais convém 
partir das opiniões que lhes são próprias, isto é, justamente ‘comuns’ 
(1355 a 24-29, cf. Tópicos I 1, 101 a 30-34). 
Em terceiro lugar, é útil porque está em condição de persuadir de 
coisas contrárias, o que serve não para que se façam ações contrárias entre 
si (não se deve, com efeito, persuadir para que se façam ações ruins), mas 
‘para que não se desviem de como as coisas são’ (pos ékhei), e ‘para que 
tenhamos nós mesmos a possibilidade de refutar (lyein) se um outro faz um 
uso injusto dos argumentos’; apenas a retórica e a dialética, com efeito — 
prossegue Aristóteles —, estão em condição de argumentar os contrários, 
porque são (capazes) ambas do mesmo modo, ainda que as ações que 
correspondem a eles não sejam do mesmo modo, mas aquelas verdadeiras e 
melhores por natureza sempre ‘mais fáceis de argumentar e mais persuasivas’ 
(eusyllogistótera kai pithanótera) (1355 a 29-38). Isso corresponde 
perfeitamente à terceira utilidade da dialética, relativa às ‘verdadeiras 
ciências’ (pros tas katá philosophían epistémas), devido ao fato de que, 
‘se estivermos em condição de desenvolver uma aporia em ambas as direções 
(pros amphótera diaporesai), distinguiremos mais facilmente em cada uma o 
verdadeiro e o falso’ (Tópicos I 1, 100 a 34-36). Aqui, como se vê, a 
retórica e a dialética não apenas ensinam, respectivamente, a persuadir e a 
argumentar, mas também fazem ver àquele que as usa ‘como são as coisas’, 
isto é, ‘o verdadeiro e o falso’, o que é, indubitavelmente, uma utilidade 
cognitiva, ou seja, científica. Aliás, ele mesmo diz que esta é a utilidade 
‘científica’ ou ‘filosófica’ (pros tas katá philosophían epistémas) da 
dialética. Ainda por esse caminho, portanto, a analogia estrutural entre 
retórica e dialética é estendida, por meio desta última, à filosofia. 
Em quarto lugar, ela é útil porque saber usar justamente ‘tal 
capacidade de fazer discursos’ (toiáute dynamis ton logon) pode ser 
extremamente proveitoso, enquanto saber usá-la injustamente pode ser 
extremamente danoso, o que é próprio dos bens mais úteis, como o vigor, a 
saúde, a riqueza e a estratégia (apenas que a virtude não admite outro uso, 
apenas o justo) (1355 a 38-b 7). Aqui a analogia com a quarta utilidade da 
dialética — conduzir os princípios de todas as ciências — é mesmo evidente, 
mas talvez consista no fato de que ambas, a retórica e a dialética, sabem 
levar ao que é máximo, o máximo do bem e do mal a primeira, o máximo do 
conhecimento, isto é, o dos princípios, a segunda. A ambigüidade da 
retórica, diga-se, é típica de todas as ‘potências racionais’, que são 
todas potências dos contrários, das quais fazem parte as artes e as 
ciências, por exemplo a medicina, que sabe curar, mas sabe também envenenar 
(cf. Metafísica IX 2), o que constitui uma analogia estrutural posterior 
entre a retórica e a ciência em geral. 
Enfim, a última prova de analogia entre a retórica e filosofia, 
sempre mediada pela dialética, segue-se da distinção entre capacidade e 
escolha. A passagem a respeito é de tal interesse que merece ser traduzida 
integralmente. 
Além disso — diz Aristóteles — [é claro] que é próprio desta 
[capacidade] distinguir seja o persuasivo (to pithanón), seja o 
persuasivo aparente (to phainómenon pithanón), como também no caso da 
dialética [distinguir] seja o silogismo, seja o silogismo aparente; 
com efeito, a sofística [consiste] não na capacidade (dynamis), mas 
na escolha (prohaíresis), salvo aqui um será retor pela ciência e o 
outro pela escolha, enquanto lá um, pela escolha, será sofista, e 
 46
 
 No âmbito da razão prática, a epokhé não pode 
levar à inércia, as argumentações, mesmo não tendo a pretensão 
de ser sustentadas por premissas verdadeiras, devem levar a 
uma ação determinada, conforme aduz Oswaldo PORCHAT Pereira: 
“ Ora, na vida comum, os homens todos argumentam 
sempre, em verdade o fazem a cada passo. A argumentação 
subordina-se com grande freqüência às necessidades da 
ação e serve aos fins práticos da vida; ela serve aos 
propósitos do diálogo e comunicação entre os homens; ela 
contribui para induzir o interlocutor à ação que dele 
esperamos, ou para explicar-lhe nossos pontos de vista, 
ou para levá-lo eventualmente a compartilhá-los. 
 (...) 
 ... Num mundo filosoficamente não-interpretado, 
onde a ameaça da Verdade não paira sobre o horizonte, a 
argumentação desempenha funções importantes e tem um 
lugar privilegiado. 
 A argumentação, sob este prisma fenomênico, 
confessa tranqüilamente sua relatividade, que não é 
estorvo para os fins não-dogmáticos que persegue. (...) 
E a argumentação toda é sempre relativa a uma visão de 
mundo relativamente comum aos interlocutores, que 
fornece pano de fundo e horizonte, mas a base também 
 
outro será dialético não pela escolha, mas pela capacidade (1355 b 
1521). 
Isso significa que quem possui a capacidade de distinguir seja o 
silogismo seja o silogismo aparente é dialético, e quem faz
a escolha de 
usar o silogismo aparente no lugar do autêntico não é dialético, mas 
sofista; ao contrário, quem possui a capacidade de distinguir seja o 
persuasivo seja o persuasivo aparente é retor, mas o é também aquele que 
faz escolha de usar o persuasivo aparente no lugar do autêntico. Denomina-
se retor, em suma, tanto o análogo do dialético como o análogo do sofista. 
Com isso, a analogia entre retórica e dialética, que consiste na capacidade 
de distinguir o autêntico do aparente, é confirmada, com a diferença de 
que, em relação à dialética, a escolha de usar o aparente toma o nome de 
sofística, enquanto em relação à retórica a mesma escolha toma o nome de 
retórica. Em outras palavras, enquanto a dialética, do ponto de vista 
moral, é apenas ‘boa’, a retórica pode ser tanto ‘boa’ como ‘má’. 
 Essa distinção entre o persuasivo autêntico e o persuasivo aparente é 
perfeitamente paralela àquela entre o silogismo e o silogismo aparente 
feita no início dos Tópicos, precisamente onde Aristóteles distingue do 
silogismo demonstrativo, que parte de premissas verdadeiras e primeiras, e 
do silogismo dialético, que parte de éndoxa, o silogismo erístico ou 
sofístico, que parte de éndoxa aparentes ou é um silogismo aparente, isto 
é, um silogismo que parece concluir mas na realidade não conclui, um 
silogismo incorreto (100 a 25-101 4)” (BERTI, Enrico. As razões de 
aristóteles, p. 173-176). 
 47
para a construção de seu diálogo: é sobre essa base que 
um consenso relativo sobre as premissas pode ter lugar, 
é contra esse pano de fundo que as divergências naturais 
e inevitáveis na descrição dos fenômenos da experiência 
comum são suscetíveis de uma eventual conciliação...”56 
 
 Nessa ótica, em que o que se busca é o 
consenso, a argumentação “...deixa de procurar a verdade como 
condição de consenso para procurar o consenso como condição de 
‘verdade’”.57 
 No âmbito jurídico, sem entrar nesse momento na 
questão dos limites externos à argumentação jurídica58, a 
atitude passiva decorrente da epokhé não se sustenta59, uma vez 
que o jurista não pode suspender o juízo de forma indefinida: 
“ Ao expor diversas teorias referentes a um problema 
jurídico qualquer, o jurista não se limita a levantar 
possibilidades e, em certas circunstâncias, suspender o 
juízo, mas é forçado a realizar, por vezes, uma 
verdadeira decisão ou opção decisória. Isso porque sua 
intenção não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em 
vista as condições de aplicabilidade da norma enquanto 
modelo de comportamento obrigatório.”60 
 
 
56 PEREIRA, Oswaldo Porchat. Vida comum e ceticismo, p. 239-241. 
57 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação, p.168. 
58 Como por exemplo a existência de normas que devem ser tomadas como 
premissas verdadeiras e a possibilidade do uso da força para a garantia de 
aplicação, pelo poder, daquelas normas. 
59 A não ser como método processual, em que se suspende provisoriamente o 
juízo — não indefinidamente como pretende o ceticismo no que pertine a 
questões meramente teóricas — a fim de que as partes em litígio possam 
produzir suas provas perante um terceiro (o juiz) que deverá dirimir o 
problema através de uma decisão. Com efeito, assim afirma Tercio Sampaio 
FERRAZ JR.: “...o discurso judicial não pretende conduzir as partes, 
incondicionalmente, a um consenso real, a uma harmonia sobre o Direito e o 
não-Direito, mas criar condições para que as partes possam suportar a 
pressão social, obrigando-as a discutir outras questões que não as 
‘formais’ de Direito, especializando, assim, a sua insatisfação” (FERRAZ 
JR., T. S. Obra citada, p. 84-85). 
60 FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 150. 
 48
 Isso se deve, em grande medida, porque no 
direito o que se pretende é resolver problemas visando uma 
certa pacificação da sociedade61, que de certa forma é obtida a 
partir da idéia de segurança jurídica, a qual na maioria dos 
casos é preferível em relação à verdade, resultando que “...a 
finalidade imediata da decisão está na absorção de 
insegurança”62, muito mais que na busca da verdade.63 
 Posto o problema da crise enfrentada pela razão 
no século XX, bem como a questão do relativismo dos céticos e 
dos pragmáticos em contraposição às necessidades de escolha — 
problema que, evidentemente, também se coloca no âmbito 
jurídico — resta saber se há alguma possibilidade de se 
utilizar a razão na tarefa de escolher, sem que para isso seja 
necessário o recurso a alguma forma de fundamentacionismo, por 
um lado, ou a admissão da total arbitrariedade, por outro. 
 Antecipando uma hipótese, talvez a formulação 
de uma teoria geral da argumentação jurídica seja um grande 
 
61 “A paz é uma condição na qual não há o uso da força. Nesse sentido da 
palavra, o Direito assegura paz apenas relativa, não absoluta, na medida em 
que priva os indivíduos do direito de empregar a força, mas reserva-o à 
comunidade” (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 31). 
62 FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 43. 
63 “Essa peculiaridade, em oposição a outros meios de solução de conflitos 
(sociais, políticos, religiosos etc.), revela-se na sua capacidade de 
terminá-los e não apenas de solucioná-los. Vimos, porém, que decisões não 
eliminam conflitos no sentido de que a questão dúbia jamais perde esse seu 
caráter. Que significa, pois, a afirmação de que as normas terminam 
conflitos? Isso significa, simplesmente, que a norma (a lei, a norma 
consuetudinária, a decisão do juiz etc.) impede a continuação de um 
conflito: ela não o termina por meio de uma solução, mas o soluciona, 
pondo-lhe um fim” (FERRAZ JR., T. S. Obra citada, p. 64-65). 
 49
instrumento de auxílio (no âmbito jurídico, é claro) para a 
resposta a esse problema. Mas antes de chegarmos a esse ponto, 
passemos a uma descrição das principais teorias jurídicas 
formuladas nos últimos tempos. 
 50
2. A FORMAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 
“Não há direito natural: esse termo é 
apenas uma antiga tolice bem digna do 
promotor público que me deu caça 
outro dia, e cujo avô enriqueceu com 
uma confiscação de Luís XIV. Não há 
direito senão quando há uma lei que 
proíbe fazer tal coisa, sob pena de 
punição. Antes da lei, só há de 
natural a força do leão, ou a 
necessidade da criatura que tem fome, 
que tem frio, a necessidade, numa 
palavra...” 
Stendhal 
 
“Se, por um lado, a visão científica 
conquistou o domínio no modo de ver a 
natureza, por outro nas questões 
sociais, morais e jurídicas 
permanecemos encalhados num 
persistente infantilismo. A filosofia 
do direito natural constitui um dos 
seus produtos.” 
Alf Ross 
 
2.1 Direito e Justiça 
 No capítulo anterior foi traçado um panorama 
geral dos embates travados entre aqueles que julgam ser 
possível encontrar a verdade a partir da razão e aqueles que 
reconhecem na razão um caráter limitado e que, por isso mesmo, 
criticam os fundamentacionistas a partir de um ponto de vista 
cético.64 
 
64 Como visto, a oposição profunda surgida desse embate, talvez uma das mais 
irredutíveis da cultura ocidental, teve seu nascedouro na antigüidade, com 
a oposição entre a postura do filósofo e a postura do sofista, “...em que 
ao primeiro é garantido um privilegiado acesso ao reino da verdade enquanto 
o segundo é remetido para o domínio, ontologicamente desvalorizado, da 
utilidade” (CARRILHO, M. M. Jogos de racionalidade, p. 11). 
 51
 Esse debate não tem sido apenas um privilégio 
da filosofia e, mais recentemente, das ciências físicas, 
matemáticas e naturais; pois também as questões jurídicas 
podem ali ser inseridas. Mais que isso, pode-se afirmar que as 
principais teorias jurídicas têm em sua base o modo pelo qual 
cada teórico
se posiciona naquela controvérsia. 
 Das várias discussões existentes quanto aos 
fundamentos do direito, cremos que a maior delas segue sendo a 
das possibilidades ou não de se promover, através do direito, 
a justiça, ou seja, a idéia do direito como instrumento (meio) 
para a realização do valor65 do justo. 
 Mas o que é, afinal, a justiça? Também aqui 
aquele debate se coloca, sendo que talvez nenhum outro tema 
tenha ocupado tanto a filosofia do direito como as relações 
entre o direito e a moral, ou, num sentido mais amplo, as 
relações entre o direito como é (o direito positivo) e o 
direito como deveria ser segundo os postulados da moral e da 
justiça (o direito natural ou racional).66 
 
65 Não se está aqui tratando a justiça em sentido formal, mas sim como uma 
questão moral. 
66 Veja-se por exemplo, a série de questões que Miguel REALE propõe acerca 
do problema da justiça: “Por que o Direito obriga? Quais as razões pelas 
quais nós, que nos temos em conta de seres livres, somos obrigados a nos 
subordinar a leis que não foram postas por nossa inteligência e por nossa 
vontade? É lícito contrariar as leis injustas? Qual o problema que se põe 
para o juiz ou para o estadista, quando uma lei positiva se revela, de 
maneira impressionante, contrária aos ditames do justo? Qual o fundamento 
do Direito na sua universalidade? Repousa ele apenas no fundamento empírico 
da força? Reduz-se o Direito ao valor utilitário do êxito? Brotará a 
 52
 A disputa entre essas duas concepções 
jurídicas, o positivismo e o jusnaturalismo, cobre vários 
séculos da história do direito e, apesar de amiúde ser 
declarada cancelada, revive em cada época sob o manto de novas 
fórmulas. 
 Com efeito, a teoria de Hans KELSEN contra o 
direito natural parecia ter interrompido o velho debate para 
sempre. KELSEN, através de uma bem sucedida demonstração da 
impossibilidade da existência de outras normas jurídicas 
externas à correspondente ordem legal, desloca o problema da 
justiça e do direito natural para a política, ou seja, essas 
questões deixariam de ser um problema jurídico.67 
 Para tanto, após enquadrar o direito natural 
como uma “...doutrina [que] sustenta que há um ordenamento das 
relações humanas diferente do Direito positivo, mais elevado e 
absolutamente válido e justo, pois emana da natureza, da razão 
humana ou da vontade de Deus”68, chegando mesmo a denunciar a 
 
estrutura jurídica, inexoravelmente, dos processos técnicos de produção 
econômica, ou representa algo capaz de se contrapor, muitas vezes, às 
exigências cegas da técnica? Ou o Direito terá fundamento contratual?” 
(REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 308). 
67 “O positivismo jurídico, oposto a qualquer teoria do direito natural, 
associado ao positivismo filosófico, negador de qualquer filosofia dos 
valores, foi a ideologia democrática dominante no Ocidente até o fim da 
Segunda Guerra Mundial. Elimina do direito qualquer referência à idéia de 
justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar 
tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e 
impessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto 
arbitrário” (PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 91). 
68 KELSEN, Hans. Teoría geral do direito e do estado, p. 12. 
 53
relatividade69 dessa doutrina70, KELSEN acusa de dualismo 
platônico a distinção entre direito positivo e direito 
natural: 
“ A doutrina do Direito natural é caracterizada por 
um dualismo fundamental entre Direito positivo e Direito 
natural. Acima do imperfeito Direito positivo existe um 
perfeito — porque absolutamente justo — Direito natural; 
e o Direito positivo é justificado apenas na medida em 
que corresponda ao Direito natural. Nesse aspecto, o 
dualismo entre Direito positivo e Direito natural, tão 
característico da doutrina do Direito natural, lembra o 
dualismo metafísico da realidade e a idéia platônica.”71 
 
 No entanto, ao contrário das leis da natureza 
que são regidas pelo princípio da causalidade (o mundo do 
ser), as normas jurídicas não têm seu cumprimento vinculado a 
 
69 Norberto BOBBIO, por exemplo, define o direito natural como sendo a 
doutrina que “...considera poder estabelecer o que é justo e o que é 
injusto de modo universalmente válido”, questionando logo em seguida as 
possibilidades dessa pretensão: “Mas, tem base esta pretensão? A julgar 
pelos desacordos entre os diferentes seguidores do direito natural sobre o 
que se deve considerar justo ou injusto, a julgar pelo fato de que o que 
era considerado natural para alguns não o era para outros, dever-se-ia 
responder que não” (BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho, p. 28). 
70 “Declarar a propriedade como um direito natural, porque é o único que 
corresponde à natureza, é uma tentativa de tornar absoluto um princípio 
especial que, historicamente, em certo tempo e sob certas condições 
políticas e econômicas, tornou-se Direito positivo. 
... Por esse método sempre é possível sustentar e, pelo menos em 
aparência, provar postulados opostos. Se os princípios do Direito natural 
são apresentados para aprovar ou desaprovar uma ordem jurídica positiva, em 
qualquer dos casos, sua validade repousa em julgamentos de valor que não 
possuem qualquer objetividade. Uma análise crítica sempre demonstra que 
eles são apenas a expressão de certos interesses de grupo ou classe. Dessa 
maneira, a doutrina do Direito natural é às vezes conservadora, às vezes 
reformista ou revolucionária em caráter. Ela ou justifica o Direito 
positivo proclamando sua concordância com a ordem natural, racional ou 
divina, uma concordância afirmada, mas não provada; ou põe em questão a 
validade do Direito positivo sustentando que ele se encontra em contradição 
com algum dos pressupostos absolutos. A doutrina revolucionária do Direito 
natural, assim como a conservadora, preocupa-se não com a cognição do 
Direito positivo, da realidade jurídica, mas com sua defesa ou ataque, com 
uma tarefa política, não científica” (KELSEN, Hans. Obra citada, p. 16-17). 
71 KELSEN, Hans. Obra citada, p. 17. 
 54
determinações fatais e necessárias, vez que estas se regem 
pelo princípio da imputação (o mundo do dever-ser).72 
 Se houvessem normas causais (necessárias) para 
determinar a conduta humana, as normas de direito positivo 
seriam supérfluas: 
“ Caso se pudesse ter conhecimento da ordem 
absolutamente justa, cuja existência é postulada pela 
doutrina do Direito natural, o Direito positivo seria 
supérfluo, ou melhor, desprovido de sentido. Confrontada 
com a existência de uma ordenação justa da sociedade, 
inteligível em termos de natureza, razão ou vontade 
divina, a atividade dos legisladores equivaleria a uma 
tola tentativa de criar iluminação artificial em pleno 
sol.”73 
 
 A separação entre direito e moral decorrente da 
relatividade desta última é um traço característico do 
positivismo jurídico lapidado no século XX. Gustav RADBRUCH, 
que chegou a ser um dos mais ferrenhos defensores do 
positivismo jurídico durante a década de 193074, dava clara 
 
72 Mais adiante voltaremos a tratar deste assunto. 
73 KELSEN, Hans. Obra citada, p. 18-19. KELSEN deu tanta importância ao 
problema da justiça que, além de inúmeros artigos, escreveu várias obras 
sobre o assunto, tais como A Ilusão da Justiça, O que é Justiça, O Problema 
da Justiça (na edição italiana dessa obra há um excelente ensaio de Mário 
LOSANO em que são descritas as principais críticas formuladas contra a 
Teoria Pura do Direito de KELSEN), além de um estudo que foi publicado como 
apêndice à 2ª edição (1960) alemã da Teoria Pura do Direito (Reine 
Rechtslehre)
publicado em separado, na língua portuguesa, com o título A 
Justiça e o Direito Natural. 
74 Depois da 2ª Guerra Mundial, diante das conseqüências funestas que a 
idéia de primazia da lei sobre a moral acarretou, RADBRUCH se converte à 
doutrina do direito natural, conforme salientado por Norberto BOBBIO: “Uma 
formulação recente e exemplar dessa doutrina é oferecida por GUSTAV 
RADBRUCH na seguinte passagem: ‘Quando uma lei nega conscientemente a 
vontade de justiça, por exemplo, quando concede arbitrariamente ou rechaça 
os direitos do homem, adoece de validez (...) os juristas também devem 
levar em conta o valor para negar-lhe o caráter jurídico’, e em outra 
parte: ‘Podem dar-se leis de conteúdo tão injusto e prejudicial que se faça 
 55
preferência ao direito em caso de conflito com a justiça, 
“...pois é mais importante a existência da ordem jurídica que 
a sua justiça, já que a justiça é a segunda grande missão do 
direito, sendo a primeira, a segurança jurídica, a paz”.75 
 No entanto, a barbárie do nacional-socialismo, 
feita em nome da lei, levou a um sério questionamento da tese 
positivista por ocasião do restabelecimento da ordem 
 
necessário negar-lhes seu caráter jurídico (...) posto que há princípios 
jurídicos fundamentais que são mais fortes que qualquer normatividade 
jurídica até o ponto que uma lei que os contradiga venha a carecer de 
validez’; e mais ainda, ‘quando a justiça não é aplicada, quando a 
igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada 
pelas normas do direito positivo, a lei não somente é direito injusto mas 
sim, em geral, carece de juridicidade’ (Rechtsphilosophie, 4ª ed., 1950, 
págs. 336-353)” (BOBBIO, Norberto. Obra citada, p. 27-28). 
75 RABDRUCH, Gustav. Introducción a la ciencia del derecho, p. 34. Vale 
dizer que nesse período RADBRUCH via no relativismo a razão mesma de ser do 
direito, conforme se depreende das seguintes passagens da sua obra que 
talvez mais influências tenha causado nos juristas, a qual, aliás, tem 
vários pontos convergentes com o pensamento de KELSEN: “O relativismo não é 
um simples e puro agnosticismo, é algo mais: uma fonte fecunda de 
conhecimento objetivo. Sobretudo, é o relativismo a única base possível 
para a força vinculante do direito positivo. Se existir um direito natural, 
uma verdade jurídica unívoca, reconhecível e comprovável, não seria 
possível ver de nenhuma maneira a razão da força vinculante do direito 
positivo, que apareceria em contradição com essa verdade absoluta. Deveria 
então desaparecer como o erro desmascarado ante à verdade desvelada. A 
força obrigatória do direito positivo somente pode fundar-se precisamente 
no fato de que o direito justo não é nem reconhecível nem demonstrável. 
Porque um juízo sobre a verdade ou falsidade das diferentes convicções 
jurídicas é impossível; posto que, de outra parte, se se requer um direito 
único para todos os sujeitos de direito, o legislador se vê desafiado à 
necessidade de cortar em um golpe o nó górdio que a ciência não consegue 
desatar. Posto que é impossível verificar o que é justo, deve-se 
estabelecer o que deve ser jurídico. Em vez de um ato de verdade, que é 
impossível, é necessário um ato de autoridade. O relativismo desemboca no 
positivismo. 
...a decisão do legislador não é um ato de verdade, mas sim um ato de 
vontade, de autoridade. Este pode conferir a uma determinada opinião força 
obrigatória, porém nunca força convincente. (...) O relativismo desemboca 
no liberalismo. 
(...) 
O relativismo é a tolerância geral. Somente não é tolerância frente à 
intolerância” (RADBRUCH, Gustav. Relativismo y derecho, p. 3-8). 
 56
democrática e do Estado de Direito em face da derrotada do 
fascismo.76 
 A idéia Kelseniana de que toda a norma legal é 
direito, sem consideração de seu conteúdo77, foi duramente 
combatida no pós-guerra, tendo sido atacada como responsável 
pela legitimação da ditadura. 
 Essa circunstância trouxe novamente à tona 
aquilo que a teoria de KELSEN tinha posto em estado de 
 
76 Com relação a essa reação contra as teses positivistas, ver a seguinte 
obra de François RIGAUX, em que o autor trata dos mais variados problemas 
de interpretação e aplicação das leis típicos do século XX: RIGAUX, 
François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio, São Paulo: Martins 
Fontes, 2000. 
77 Para KELSEN a única possibilidade de se falar objetivamente em justiça 
seria equiparando justiça a legalidade: “Nesse sentido, a ‘justiça’ 
significa legalidade”, retirando-se a partir daí a regra formal da justiça, 
segundo a qual é “‘justo’ que uma regra geral seja aplicada em todos os 
casos em que, de acordo com seu conteúdo, esta regra deva ser aplicada. É 
‘injusto’ que ela seja aplicada em um caso, mas não em outro caso similar. 
E isso parece ‘injusto’ sem levar em conta o valor da regra geral em si, 
sendo a aplicação desta o ponto em questão aqui. A justiça, no sentido de 
legalidade, é uma qualidade que se relaciona não com o conteúdo de uma 
ordem jurídica, mas com sua aplicação” (KELSEN, Hans. Obra citada, p. 20). 
Veja-se que o que se denomina igualdade na lei não significa outra coisa 
senão a aplicação da lei em conformidade consigo mesma, quer dizer, 
“...aplicação correta, qualquer que seja o conteúdo dessa lei. A igualdade 
na lei não é, pois, igualdade, senão conformidade à norma” (ABELLÁN, Marina 
Gascón. La técnica del precedente y la argumentación racional, p. 57). Essa 
interpretação do pensamento de KELSEN também é dada por Celso Antônio 
BANDEIRA DE MELLO: ”Com efeito, Kelsen bem demonstrou que a igualdade 
perante a lei não possuiria significação peculiar alguma. O sentido 
relevante do princípio isonômico está na obrigação da igualdade na própria 
lei, vale dizer, entendida como limite para a lei. Por isso averbou o que 
segue: ‘Colocar (o problema) da igualdade perante a lei, é colocar 
simplesmente que os órgãos de aplicação do direito não têm o direito de 
tomar em consideração senão as distinções feitas nas próprias leis a 
aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da regularidade 
da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem 
jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente 
a todas as leis — em outros termos, o princípio de que as normas devem ser 
aplicadas conforme as normas.’ (Teoria Pura do Direito, tradução francesa 
da 2a edição alemã, por Ch. Einsenmann, Paris, Dalloz, 1962, p.190)” 
(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da 
igualdade, nota 2, p. 10). 
 57
latência:78 as relações entre moral e direito, e o 
comprometimento deste com a realização da justiça. 
 A saída daquele estado de latência provoca uma 
efervescência no debate jurídico, dando fôlego ao 
ressurgimento de algumas formas de jusnaturalismo79, exigindo a 
formulação de alguns conceitos por aqueles que se mantiveram 
no positivismo80, permitindo, enfim, o surgimento de novas 
 
78 Não se pode afirmar, no entanto, que essas preocupações haviam se 
extinguido durante a primeira metade do século XX. No Brasil, por exemplo, 
mesmo na época de maior esplendor da teoria pura do direito, Miguel REALE 
não admitia o que chamou de divórcio entre direito e justiça: ”...não, a 
norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um 
caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o 
ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, 
pela primeira vez, em meu livro ‘Fundamentos do Direito’ eu comecei a 
elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen, 
Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, 
porque Direito não é economia.
Direito não é produção econômica, mas 
envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é 
principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, 
por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor” 
(REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito, p. 118-119). 
79 Como, por exemplo, a nova postura de RADBRUCH, anteriormente citada; ou a 
retomada do pensamento patrístico segundo o qual uma lei injusta não é lei: 
“non videtur esse lex quae non fuerit” — Santo AGOSTINHO I, De Libero 
Arbitrio, 5; Santo TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, Qual, XCX, ARTS. 2, 
4, citados por HART, Herbert. O conceito de direito, nota 1, p. 12), cuja 
aplicação se faz sentir, por exemplo, em algumas teorias de uso alternativo 
do direito. Ainda quanto a esse renascimento do direito natural, vale 
mencionar a seguinte constatação de Alf ROSS: “...não é de se surpreender 
que o direito natural tenha voltado a prosperar em princípios do século XX 
e que tenha, desde então, se expandido em tal medida que é comum falar-se 
de um renascimento do direito natural. Os abalos tremendos da política e da 
economia que caracterizam este século [século XX] têm fomentado a ânsia de 
descobrir algo absoluto num mundo em dissolução e mergulhado no caos” 
(ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 296). 
80 Norberto BOBBIO e Herbert HART são bons exemplos de autores que podem 
aqui ser enquadrados. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem em que 
BOBBIO admite ao intérprete a possibilidade de considerar o valor do justo, 
em alguns casos, quando da aplicação da norma: “A jurisprudência, por outro 
lado, enquanto coloca como objeto próprio proposições normativas já dadas 
(resultado elas mesmas de um estudo empírico precedente que o jurista deve 
respeitar até o limite do absurdo manifesto ou da injustiça escandalosa), 
consta exclusivamente da parte crítica própria de todo sistema científico, 
quer dizer, da construção de uma linguagem rigorosa com fins de plena 
comunicabilidade das experiências fixadas de antemão” (BOBBIO, Norberto. El 
 58
propostas81 que têm demonstrado, mais do que nunca, a 
importância do debate filosófico na atualidade, debate este 
que não é e não pode ser meramente acadêmico no sentido 
pejorativo do termo, mas que está comprometido a encontrar 
soluções — ou pelo menos a questionar com a radicalidade 
própria da filosofia os modelos jurídicos postos — para que o 
direito possa se aproximar da justiça. 
 
objeto de la jurisprudencia y la jurisprudencia como análisis del lenguaje. 
In Contribuición a la Teoría del Derecho, p. 181-184). 
 
81 Como, por exemplo, o que se tem denominado por alguns como o pós-
positivismo de DWORKIN; o agir comunicativo de HABERMAS; a nova retórica de 
PERELMAN. 
 59
2.2 Positivismo Jurídico no Século XIX 
 No item anterior foi mencionada a tentativa 
frustrada de separação entre direito e moral. A escolha pela 
apresentação da teoria de KELSEN no início deste capítulo — ao 
invés de seguir uma ordem cronológica das várias teorias que 
serão mencionadas — está longe de ser casual. 
 A opção se deve ao fato de considerarmos a 
teoria de KELSEN como sendo um marco (um ponto obrigatório de 
referência) no pensamento jurídico ocidental, para onde 
convergem tanto os jusnaturalismos quanto os positivismos que 
o precederam e de onde partem as novas propostas, pois ainda 
que estas lhe sejam totalmente opostas, o mesmo não pode ser, 
e nem tem sido, negligenciado. 
 Do ponto de vista kelseniano, direito e moral 
pertencem a dois sistemas normativos distintos, separação essa 
que já está presente na obra de Immanuel KANT. Com efeito, 
para KANT a legalidade se constitui pela simples conformidade 
da ação com a legislação externa. É dentro dessa definição de 
legalidade que se fundamenta o direito. Este se refere ao 
mundo dos deveres externos, impostos por uma legislação 
jurídica, em que não se exige que a idéia interna do dever 
(moral) seja o motivo determinante da vontade. O direito 
considera as relações externas de uma pessoa no que diz 
respeito aos efeitos que venham a causar no mundo exterior 
 60
(jurídico). É o conjunto de condições nas quais a vontade de 
um concorda com a de outro segundo uma lei de liberdade. Daí 
extrai-se o princípio geral de direito, a saber: “Aja de tal 
modo que o livre exercício do teu arbítrio possa estar em 
conformidade com a liberdade de todos segundo uma lei 
universal”.82 Então, toda ação que não é um obstáculo ao acordo 
do arbítrio de todos com a liberdade de todos segundo uma lei 
universal é considerada justa. 
 Assim, o direito surge como “...o conjunto das 
condições através das quais o arbítrio de um pode concordar 
com o arbítrio de outrem, segundo uma lei universal de 
liberdade”, em que é “...considerada justa toda a ação que por 
si (...) não é um obstáculo à conformidade da liberdade do 
arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis 
universais”.83 
 A coação é uma característica inseparável do 
direito, devendo eliminar a resistência e o obstáculo opostos 
à liberdade de todos. Por isso a coação é necessária, pois 
estabelece o acordo das liberdades segundo a lei universal. 
 Enquanto a moral é uma coação interna ao 
indivíduo (a moral é autônoma), o direito encontra-se na 
legalidade exterior das ações com a força coativa da lei (o 
 
82 KANT, Immanuel. Fundamentación de la metafísica de las costumbres, p. 72. 
 61
direito é heterônomo). Trata-se da regulamentação coativa das 
liberdades externas a fim de assegurar a ordem social, sem 
qualquer intenção moral, pois o direito deve estar separado 
desta (que diz respeito aos deveres internos). O direito puro 
se obtém do mundo exterior, assim como a moral pura se obtém 
do foro íntimo: 
“ Numa acepção puramente kantiana, a heteronomia só 
pode ser determinada pela oposição à noção de autonomia, 
qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma. A 
vontade jurídica é heterônoma porque busca a lei que 
deve determiná-la num outro lugar: na vontade anônima 
dos costumes ou na vontade institucionalizada dos órgãos 
estatais. No âmbito legal obedecemos a regras que foram 
postas por outros ou pela sociedade, ou seja, não é pelo 
conteúdo que o Direito se distingue da moral, mas pela 
maneira de se tornar obrigatório. É pela diversidade da 
legislação que une um e outro impulso à lei, que 
determinamos se estamos no âmbito da legalidade ou da 
moralidade. 
 O Direito como liberdade externa gera a 
responsabilidade frente aos outros, que podem exigir de 
nós o cumprimento das obrigações.”84 
 
 Como conseqüência dessa concepção de direito 
puro teremos o positivismo jurídico, que é uma convenção de 
direito fundada na força e não na consciência ética. 
 O direito pode ser subdividido em direito 
natural e direito positivo (adquirido), donde o primeiro é 
inato a cada indivíduo e o segundo provém da vontade do 
legislador. Para KANT o único direito natural é a liberdade, 
 
83 ZANNONI, Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 32-33. 
 
84 BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha. O significado perdido da função de 
julgar, p. 31-32. 
 62
que tem seus limites até o ponto de interferir na liberdade 
dos outros (deve-se entender a liberdade como gênero que 
engloba a igualdade, a livre expressão das idéias, etc.). 
 Há no pensamento de KANT uma forte relação com 
o pensamento de ROUSSEAU no que diz respeito à teoria do 
contrato social. 
 O direito é entendido como o conjunto de leis 
fornecido a um povo, exigida, para tanto, uma promulgação para 
que se produza um
estado jurídico. Essa promulgação nasce do 
seguinte postulado: Tu deves sair do estado de natureza para, 
juntamente com todos os outros e dentro de relações de 
coexistência necessária, entrar em um estado de direito, quer 
dizer, numa justiça distributiva (com efeito erga omnes). 
 O homem deve sair do estado de natureza (em que 
reina a violência) a fim de constituir o estado civil, ou 
seja, o estado de direito em que todos os homens abdicam de 
parte de suas liberdades para submeterem-se a uma imposição 
exterior publicamente decretada. É nesse contexto que nasce a 
sociedade civil, formalmente constituída em um Estado de 
Direito. 
 Assim como ROUSSEAU, KANT aceita a constituição 
da sociedade civil como o contrato primitivo segundo o qual 
todos cedem sua liberdade exterior para recobrá-la novamente 
como membros de uma república. “A simples consciência das 
 63
vantagens que o estado acarreta estimula o ato de renúncia da 
liberdade selvagem: o que se perde é logo compensado pela 
aquisição da liberdade civil.”85 
 A partir desses pressupostos, KANT aceita a 
distinção tripartida do poder elaborada por MONTESQUIEU; 
porém, uma vez constituído o poder soberano em sua tríplice 
forma, este deve ser irrepreensível, irresistível e sem 
apelação. O povo deve obedecer sempre o poder estabelecido, 
não podendo julgar ou contestar sua validade qualquer que seja 
a sua origem (não revogando o seu mandato e nem resistindo 
ativamente). Qualquer mudança na constituição pública, se 
necessária, deve ser realizada pelo soberano e não pelo povo. 
 É justamente nesse ponto que KANT se afasta do 
liberalismo político rousseauniano, ou seja, negando a 
rebelião do povo contra o soberano e condenando as revoluções 
inglesa e francesa (que processaram e executaram seus 
soberanos, respectivamente). Deve existir uma obediência 
incondicional às leis do Estado. 
 A ótica normativa que afirma que direito e 
moral são sistemas distintos, a exemplo do pensamento kantiano 
acima mencionado, permite o enquadramento das mais variadas 
teorias jurídicas nas três seguintes posições: a) predomínio 
 
85 GIANNOTTI, José Arthur. Kant e o espaço da história universal, p. 125. 
 64
da moral sobre o direito86; b) prevalência do direito sobre a 
moral87; e c) tentativas de buscar um suporte ao direito, por 
fora do próprio ordenamento jurídico, sem ter que recorrer ao 
direito natural.88 
 A concepção de PERELMAN divide as várias 
escolas jurídicas, enquadrando-as em períodos distintos, de 
forma semelhante à divisão acima: 
“ Podemos distinguir, a este respeito, três grandes 
períodos, o da escola da exegese, que termina por volta 
de 1880, o segundo o da escola funcional e sociológica, 
que vai até 1945, e o terceiro, que, influenciado pelos 
excessos do regime nacional-socialista e pelo processo 
de Nuremberg, se caracteriza por uma concepção utópica 
do raciocínio judiciário.”89 
 
 O ponto de vista de PERELMAN, na síntese acima, 
não enquadra o pensamento que defende o predomínio da moral 
sobre o direito, em que podem ser incluídas várias doutrinas 
de direito natural. No entanto cabe situar historicamente 
algumas dessas doutrinas, já que foi justamente da ruptura com 
elas e a conseqüente centralização do direito nas mãos de um 
poder soberano, que faz do uso da força o seu monopólio, que 
levou ao surgimento do positivismo jurídico contemporâneo. 
 
86 Aqui podem ser inseridas as várias doutrinas de direito natural. 
87 Aqui se enquadra o positivismo jurídico e seus desdobramentos, que 
acabaram por culminar no normativismo jurídico de Hans KELSEN. 
88 Aqui têm sido enquadradas teorias como as de HABERMAS, DWORKIN e 
PERELMAN, se bem que o pensamento de DWORKIN pretende, em verdade, a busca 
de uma moral dentro, ou seja, imanente ao sistema, aspecto que o aproxima 
mais do positivismo. 
89 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p.29. 
 65
 A prevalência da moral sobre o direito só é 
possível em sociedades que comungam (ou pensam comungar 
impondo essa comunhão) de ideais comuns sobre moral e direito, 
como por exemplo a ordem da Idade Média, que era unificada 
pela concepção religiosa cristã da vida. Trata-se aqui da 
tradição escolástica do jusnaturalismo, que tem na tradição 
patrística/escolástica desde SANTO AGOSTINHO até Santo TOMÁS 
DE AQUINO seus principais formuladores. 
 O pensamento escolástico afirmava a existência 
de uma ordem natural90 que está submetida à lei eterna que 
dirige todos os seus movimentos, sendo que é a razão de Deus a 
criadora dessa ordem natural. Ao homem, por ser uma criatura 
racional, é dado participar da lei eterna, cujo conhecimento 
lhe permite formular os princípios da lei natural.91 
 
90 Aqui não uma ordem social deduzida da razão, mas sim uma ordem natural 
que a ela se impõe. 
91 Alf ROSS demonstra a forma pela qual, segundo o pensamento escolástico 
sobretudo de Santo Tomás de AQUINO, era possível apreender as leis 
naturais: “Qual é, então, a lei que a razão seguirá a fim de guiar a 
vontade para o verdadeiro bem? Em sua perfeição é a lei eterna, idêntica à 
razão soberana de Deus, a sabedoria divina, que governa todos os seres 
criados, que rege todos os movimentos da natureza e todas as ações. As leis 
restantes extraem sua força dessa lei. Porém, a lei eterna não pode ser 
captada em sua perfeição pelo ser humano. Na medida em que pode ser 
apreendida pelo ser humano com o auxílio exclusivo da luz natural (razão) 
chama-se direito natural. Mas isto não é o bastante para capacitar o ser 
humano a alcançar seu propósito divino. E, conseqüentemente, Deus, por 
revelação, concedeu ao ser humano, a título de orientação adicional, uma 
participação na lei eterna: tal é a lei divina (a lei mosaica e o 
Evangelho). Finalmente, há a lei humana estabelecida pelo ser humano com a 
ajuda da razão e necessária para permitir a concreta aplicação daqueles 
princípios básicos que estão expressos na lei divina e na lei natural” 
(ROSS, A. Obra citada, p. 285). 
 66
 Dada a concepção escolástica de que o homem tem 
consciência da lei natural, direito natural é aquilo que é 
justo. É por isso que para o jusnaturalismo escolástico 
somente merece a denominação de lei aquilo que a razão 
discerne como sendo o bem comum. Assim, as legislações 
positivas, contanto que não contrariassem as leis naturais92, 
eram tidas como perfeitamente legítimas. Portanto o direito 
natural não tinha pretensões de substituir o direito positivo, 
mas sim de limitar, quando fosse o caso, as conseqüências 
injustas de sua aplicação. 
 Porém, com o advento do racionalismo nos 
séculos XVII e XVIII, nasce a ambição de se elaborar um 
sistema de direito justo, “...uma jurisprudência universal, 
inteiramente fundada em princípios racionais, independentes em 
sua formulação e em sua validade do meio, tanto social quanto 
cultural, que os viu nascer e daquele que deveriam reger. Um 
sistema assim é que deveria ser ensinado nas Faculdades de 
Direito, na esperança de que aqueles a quem caberia elaborar e 
 
92 Assim, admite-se a existência de uma legislação positiva fruto da vontade 
humana, desde que não se choque com a lei natural: lei injusta não é lei. 
Esta concepção é afinada com as idéias de ARISTÓTELES, para quem a 
“...justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as 
coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as 
aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado 
indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já 
não é indiferente...” (ARISTÓTELES. Ética a nicômacos, p. 103). Porém os 
escolásticos já
não admitiam que as leis postas pudessem ser indiferentes à 
lei natural, que neste momento passa a ter a primazia. 
 67
promulgar as leis positivas se afastassem o menos possível do 
modelo ideal que lhes era ensinado”.93 
 Houve, portanto, tentativas de laicizar o 
direito natural, que passava a ser concebido como um sistema 
de direito puramente racional:94 
“ Daí resultava a pouca importância atribuída, no 
continente europeu, nas Faculdades de Direito do Antigo 
Regime, ao Direito positivo, que não passava, na melhor 
das hipóteses, de uma imitação imperfeita do direito 
ideal e que, como a sombra do Justo, na caverna de 
Platão, só podia ser uma pálida e imperfeita imitação da 
idéia da própria Justiça. A idéia de que o direito 
justo, da mesma forma que as leis da natureza, fosse 
apenas a expressão de uma razão universal, reflexo 
direto ou indireto (através da natureza criada) da razão 
divina, desenvolvera-se em duas tradições opostas, ambas 
de origem religiosa, a tradição racionalista e a 
tradição empirista. Fossem as leis naturais e aquelas 
que devem reger as relações entre os homens encontradas 
a priori ou a posteriori, graças às idéias evidentes ou 
graças à experiência, o papel dos homens deveria 
limitar-se a descobrí-las ou registrá-las, pois toda a 
 
93 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 17. 
94 Foi esse o ideal de GROTIUS, PUFENDORF, LEIBNIZ e CHRISTIAN WOLFF. Tal 
concepção vê a possibilidade de enunciar o direito a partir de um sistema 
dedutivo, sendo que em “...tal acepção diz-se que um dado ordenamento é um 
sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são 
deriváveis de alguns princípios gerais (ditos ‘princípios gerais do 
Direito’), considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema 
científico. Essa acepção muito trabalhada do termo ‘sistema’ foi referida 
historicamente somente ao ordenamento do Direito natural. Uma das mais 
constantes pretensões dos jusnaturalistas modernos, pertencentes à escola 
racionalista, foi a de construir o Direito natural como um sistema 
dedutivo. E uma vez que o exemplo clássico do sistema dedutivo era a 
geometria de Euclides, a pretensão dos jusnaturalistas resolvia-se na 
tentativa (verdadeiramente desesperada) de elaborar um sistema jurídico 
geometrico more demonstratum. Citemos um trecho muito significativo de 
Leibniz: ‘De qualquer definição podem-se tirar conseqüências seguras, 
empregando as incontestáveis regras da lógica. Isso é precisamente o que se 
faz construindo as ciências necessárias e demonstrativas, que não dependem 
dos fatos mas unicamente da razão, como a lógica, a metafísica, a 
geometria, a ciência do movimento, a Ciência do Direito, as quais não são 
de modo nenhum fundadas na experiência e nos fatos, mas servem para dar a 
razão dos fatos e regulá-los por antecipação: isso valeria para o Direito 
ainda que não houvesse no mundo uma só lei’. ‘A Teoria do Direito faz parte 
do número daquelas que não dependem de experiências, mas de definições: não 
do que mostram os sentidos, mas do que demonstra a razão” (BOBBIO, 
Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 77-78). 
 68
iniciativa humana neste terreno só pode levar ao erro e 
à arbitrariedade. Que a principal virtude do sábio 
cristão fosse a humildade, a submissão ao pensamento e à 
vontade divinos, essa é uma idéia sobre a qual insistem 
tanto Santo Agostinho quanto o chanceler Francis 
Bacon.”95 
 
 PERELMAN sustenta que contra esse ideal de 
jurisprudência96 universal elaborada por várias gerações de 
juristas se opuseram três teses, “...às quais estão ligados os 
nomes de Hobbes, Montesquieu e Rousseau”97, a partir das quais 
será desenvolvido o positivismo jurídico cuja característica é 
o predomínio do direito sobre a moral. É justamente a partir 
desses pensamentos que vão estar presentes as idéias 
contratualistas e a teoria da soberania estatal, em que o 
direito positivo deve sua obrigatoriedade à imposição do poder 
do Estado e não à sua concordância com um direito supostamente 
anterior, no caso o direito natural. 
 A doutrina política de Thomas HOBBES não 
compactua com a idéia jusnaturalista de que pode ser derivada 
da razão uma jurisprudência de caráter universal, pois para 
esse autor “...o direito não é a expressão da razão mas uma 
manifestação da vontade do Soberano”.98 
 
95 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 17-18. 
96 Jurisprudência entendida aqui no seu sentido primordial, ou seja, como 
ciência do direito. 
97 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 18. 
98 PERELMAN, Chaïm. Idem, ibidem. 
 69
 Segundo BOBBIO a doutrina política de HOBBES 
talvez seja a teoria mais completa e conseqüente do 
positivismo jurídico.99 Para HOBBES, com efeito, não há outro 
critério do justo ou do injusto senão a lei positiva, ou seja, 
somente o que for ordenado pelo soberano é tido como justo, 
pelo simples fato de ter sido ordenado; e só é injusto aquilo 
que é proibido, só pelo fato de estar proibido.100 
 
99 “Se quisermos encontrar uma teoria completa e conseqüente do positivismo 
jurídico, devemos nos remeter à doutrina política de THOMAS HOBBES, cuja 
característica fundamental, no meu entender, na verdade consiste em lhe ter 
dado um golpe fatal no jusnaturalismo clássico” (BOBBIO, Norberto. Teoría 
general del derecho, p. 31). 
100 BOBBIO apresenta uma boa descrição dos passos que permitiram a HOBBES 
chegar a uma conclusão tão radical como a acima descrita, em que inclusive 
o conteúdo dos valores morais e da justiça são tidos como convencionais 
(portanto contingentes) e não pré-existentes ou decorrentes da razão 
(eternos e necessários), como sustentavam os jusnaturalistas: “Como chega 
HOBBES a esta conclusão tão radical? HOBBES é um dedutivo e, como todos os 
dedutivos, para ele o que conta é que a conclusão se desprenda 
rigorosamente das premissas. (...) 
Ora, o direito fundamental que assiste aos homens no estado de 
natureza é o de decidir, cada um segundo seus próprios desejos e 
interesses, sobre o que é justo ou injusto, o que faz com que no estado de 
natureza não exista critério algum para fazer esta distinção, a não ser o 
arbítrio e o poder do indivíduo. Na passagem do estado de natureza para o 
estado civil, os indivíduos transferem todos os seus direitos naturais ao 
soberano, inclusive o direito de decidir o que é justo ou injusto e, 
portanto, desde o momento em que se constitui o estado civil, o único 
critério do justo e do injusto é a vontade do soberano. Esta doutrina 
hobbesiana está ligada à concepção da pura convencionalidade dos valores 
morais e portanto da justiça, segundo a qual não existe o justo por 
natureza, mas sim unicamente o justo de maneira convencional (também por 
este aspecto a doutrina hobbesiana é a antítese da doutrina 
jusnaturalista). No estado de natureza não existe o justo nem o injusto 
porque não existem convenções válidas. No estado civil o justo e o injusto 
residem no acordo comum dos indivíduos de atribuírem ao soberano o poder de 
decidir sobre o justo e o injusto. Portanto para HOBBES a validade de uma 
norma jurídica e de sua justiça não se diferenciam, porque a justiça e a 
injustiça nascem juntas com o direito positivo, ou seja, concomitantemente 
com a validade. Enquanto se permanece em estado de natureza não há direito 
válido, como tampouco há justiça; quando surge o Estado nasce a justiça, 
mas nasce concomitantemente com o direito positivo, por isso que onde não 
há direito tampouco há justiça e onde há justiça é porque há um sistema 
constituído de direito positivo” (BOBBIO, Norberto. Obra citada, p. 31-32). 
 70
 Essas conclusões decorrem da idéia de um estado 
de natureza inicial, em que todos estariam a mercê de seus 
próprios instintos, sem que houvessem leis prescrevendo
os 
direitos de cada um, o que implica dizer que todos teriam 
direito a todas as coisas, decorrendo daí uma guerra de todos 
contra todos. Do estado de natureza só se pode dizer que é 
intolerável e que é preciso superá-lo: 
“ Mas este estado de guerra de todos contra todos 
torna-se, com o passar do tempo, insuportável para seres 
humanos que, dispondo de forças mais ou menos 
equivalentes, jamais estarão seguros de que outro homem 
não será capaz de matá-los ou de escravizá-los. Para 
evitar os inconvenientes da guerra permanente, eles 
concordam em estabelecer um pacto, no qual decidem, ao 
mesmo tempo, criar um Estado e pôr suas forças reunidas 
à disposição do Soberano, encarregado de manter a paz 
entre os cidadãos e de protegê-los contra os ataques do 
exterior. Renunciam, conseqüentemente, a solucionar suas 
divergências pelas armas e aceitam conformar-se às leis 
que o Soberano estabelecerá e fará respeitar com todos 
os meios em seu poder.”101 
 
 Com efeito, a primeira lei da razão para HOBBES 
é a que prescreve a busca pela paz (pax est quaerenda). Para 
sair do estado de natureza de maneira definitiva e estável, os 
homens pactuam entre si a renúncia recíproca dos direitos que 
possuíam no estado de natureza e o cedem ao Soberano (pactum 
sobiectionis), o que se dá através de: 
“ ...um pacto de cada homem com todos os homens, de 
um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: 
Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo 
a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a 
condição de tranferires a ele teu direito, autorizando 
de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à 
 
101 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 18-19. 
 71
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em 
latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, 
ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele 
Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, 
nossa paz e defesa.”102 
 
 O soberano, portanto, terá à sua disposição um 
poder quase absoluto sobre os súditos, o que lhe permitirá a 
elaboração das normas como melhor lhe aprouver, “...desde que 
não atente sem razão válida contra a vida dos súditos, pois o 
medo da morte é a própria razão do pacto social constitutivo 
do Estado”.103 
 Outro autor já mencionado acima que atacou a 
idéia de uma jurisprudência universal foi MONTESQUIEU.104 
Apesar de ser contrário a idéia de jurisprudência universal, 
“...não rejeita a idéia de uma justiça objetiva”105, conforme 
se pode verificar da seguinte passagem contida no Livro 
Primeiro de O Espírito da Leis: 
“ Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão 
o que as leis positivas ordenam ou proíbem, é dizer que 
antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não 
eram iguais.”106 
 
 Para MONTESQUIEU, caberia ao legislador a 
tarefa de tornar positivas, promulgando-as, as relações de 
justiça que cada um não poderia deixar de perceber não fossem 
 
102 HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 144. 
103 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 19. 
104 Charles Louis de Serondat, Barão de Bredo e de Montesquieu. 
105 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 20. 
 72
os interesses particulares suscetíveis de confundir tal 
percepção. 
 Nessa perspectiva, nada seria mais danoso do 
que a concentração de todos os poderes nas mãos de um só (como 
sustenta HOBBES), “...pois haveria o risco de ele impor leis 
que visassem essencialmente não a proclamar o que é justo, mas 
a considerar como legal o que favorece seu próprio interesse, 
o que lhe reforça o próprio poder”.107 
 Justamente para evitar tais abusos é que 
MONTESQUIEU sustentará como ideal político a doutrina da 
separação dos poderes. Mas o que interessa neste momento é o 
fato de MONTESQUIEU não admitir a idéia de jurisprudência 
universal.108 
 Outro traço característico desse pensamento — e 
que muita influência causou nas escolas jurídicas futuras — 
diz respeito à tarefa limitada dos aplicadores das normas, 
pois quanto “...mais o governo se aproxima da república, tanto 
mais rígida se torna a maneira de julgar”109, pois nos 
 
106 MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 3. 
107 PEREMAN, Chaïm. Obra citada, p. 21. 
108 A inexistência de uma jurisprudência universal é constatada por 
MONTESQUIEU a partir das comparações que fez entre os sistemas normativos 
de vários povos, em que se revelaram imperfeições no trabalho do 
legislador, que deve se adaptar às sociedades em que atua. 
109 MONTESQUIEU. Obra citada, p. 57. 
 73
“...governos republicanos é da natureza da constituição que os 
juízes observem literalmente a lei”110: 
“ Quanto aos juízes, eles serão apenas ‘a boca que 
profere as palavras da lei; seres inanimados que não 
podem moderar-lhe nem a força nem o rigor’. Essa é a 
condição da segurança jurídica, pois, escreve ele 
[MONTESQUIEU], ‘se os tribunais não devem ser fixos, os 
julgamentos devem sê-lo a tal ponto que sejam sempre 
apenas um texto preciso da lei. Se fossem uma opinião 
particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber 
precisamente quais compromissos contraímos.”111 
 
 Essa forte sujeição dos juízes à literalidade 
da lei é decorrência direta do princípio da separação dos 
poderes, que impede a delegação do poder legislativo ao 
executivo, “...que dele poderia aproveitar-se para contrariar 
seus adversários”112, bem como tal delegação não pode ser 
conferida ao judiciário, “...que, por ocasião dos litígios, 
poderiam formular regulamentos que favorecessem, por razões 
muitas vezes inconfessáveis, alguma das partes”.113 
 O último dos três teóricos mencionados acima — 
cuja doutrina também rompe com a idéia de estabelecimento de 
uma jurisprudência universal — é Jean Jacques ROUSSEAU. Suas 
idéias contidas no Contrato Social (1762), foram melhor 
recebidas que as de HOBBES. Com efeito, embora inspirando-se 
neste último autor, para quem o direito é apenas a expressão 
 
110 MONTESQUIEU. Idem, ibidem. 
111 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 21-22. 
112 PERELMAN, Chaïm. Idem, p. 21. 
113 PERELMAN, Chaïm. Idem, ibidem. 
 74
da vontade do soberano, com uma conseqüente redução da justiça 
à força, ROUSSEAU assevera: 
“ ... A força é um poder físico; não imagino que 
moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder à força 
constitui ato de necessidade, não de vontade; quando 
muito, ato de prudência. Em que sentido poderá 
representar um dever? 
 Suponhamos, por um momento, esse pretenso direito. 
Afirmo que ele só redundará em inexplicável galimatias, 
pois, desde que a força faz o direito, o efeito toma 
lugar da causa — toda a força que sobrepujar a primeira, 
sucedê-la-á nesse direito. Desde que se pode desobedecer 
impunemente, torna-se legítimo fazê-lo e, visto que o 
mais forte tem sempre razão, basta somente agir de modo 
a ser o mais forte. Ora, que direito será esse, que 
perece quando cessa a força? Se se impõe obedecer pela 
força, não se tem necessidade de obedecer por dever, e, 
se não se for mais forçado a obedecer, já não se estará 
mais obrigado a fazê-lo.”114 
 
 Contrapondo-se à idéia de um direito 
equivalente à força, ROUSSEAU não identificou o soberano com 
um monarca todo-poderoso, mas com a nação, com a sociedade 
política organizada, cuja vontade geral, oposta às vontades 
particulares dos cidadãos, decide do justo e do injusto, 
promulga leis do Estado e designa aqueles que, em conformidade 
com estas leis, executarão as vontades da nação, administrarão 
o Estado e distribuirão a justiça. 
 Portanto, quem detém o poder é a própria 
sociedade civil, cujo exercício é soberano e exprime a vontade 
do povo, não podendo esta
ser limitada, desde que respeite uma 
dupla condição: a) que não haja sociedade parcial dentro do 
 
114 ROSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social, p. 59-60. 
 75
Estado e cada cidadão opine apenas por si próprio; e b) que 
essa vontade não se reporte a interesses particulares, mas 
seja movida pelo interesse geral: acordo admirável entre o 
interesse e a justiça que dá às deliberações comuns um caráter 
de eqüidade, que vemos desaparecer na discussão nas questões 
particulares, na ausência de um interesse comum que una e 
identifique a regra do juiz com a da parte115. Com essas 
condições, a lei será a expressão da justiça. 
 Será justamente a partir da combinação das 
teorias de HOBBES, MONTESQUIEU e ROUSSEAU, mencionadas acima, 
que a Revolução Francesa “...chegará a identificar o direito 
com o conjunto das leis, expressão da soberania nacional, 
sendo reduzido ao mínimo o papel dos juízes, em virtude do 
princípio da separação dos poderes. O poder de julgar será 
apenas o de aplicar o texto da lei às situações particulares, 
graças a uma dedução correta e sem recorrer a interpretações 
que poderiam deformar a vontade do legislador”.116 
 Cabe dizer ainda, e isso é importante, que essa 
tarefa do aplicador da lei desde então tinha que ser motivada, 
as decisões tomadas deveriam ser justificadas. 
 
 
115 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Idem, p. 92. 
116 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 23. 
 76
 É nesse contexto que vai surgir a escola da 
exegese, em que “...a interpretação da lei passou a ser objeto 
de estudos sistemáticos de notável finura, correspondentes a 
uma atitude analítica perante os textos segundo certos 
princípios e diretrizes...”117 
 Segundo Miguel REALE, portanto, sob “...o nome 
‘Escola da Exegese’ entende-se aquele grande movimento que, no 
transcurso do século XIX, sustentou que na lei positiva, e de 
maneira especial no Código Civil, já se encontra a 
possibilidade de uma solução para todos os eventuais casos ou 
ocorrências da vida social. Tudo está em saber interpretar o 
Direito. Dizia, por exemplo, Demolombe que a lei era tudo, de 
tal modo que a função do jurista não consistia senão em 
extrair e desenvolver o sentido pleno dos textos, para 
apreender-lhes o significado, ordenar as conclusões parciais 
e, afinal, atingir as grandes sistematizações.”118 
 Se a Declaração dos Direitos do Homem e do 
Cidadão de 1789 já dava importantes indícios de que as 
práticas sociais do Ancien Régime enfim chegaram ao ocaso, a 
grande consagração dos princípios do liberalismo se deu mesmo 
com o Código Civil Francês de 1804, que a partir da segunda 
 
117 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 280. 
118 REALE, Miguel. Idem, ibidem. 
 77
edição (1807) passou a ser denominado Code Napoléon, em cujo 
início estava estampada a célebre sentença: 
“ Existe um direito universal e imutável, fonte de 
todas as leis positivas; é a razão natural que governa a 
todos os homens.”119 
 
 A partir de então a atitude metodológica do 
intérprete e aplicador do direito se limitava ao 
estabelecimento dos fatos e à sua subsunção sob os termos da 
lei, no caso a lei escrita a que o direito se viu reduzido, 
conforme já confirmava o decano AUBRY, em 1857, “...em um 
relatório oficial sobre o espírito do ensino da Faculdade de 
Direito de Paris: ‘toda a lei, tanto no espírito quanto na 
letra, com uma ampla aplicação de seus princípios e o mais 
completo desenvolvimento das conseqüências que dela decorrem, 
porém nada mais que a lei, tal foi a divisa dos professores do 
Código de Napoleão’.”120 
 A lei positiva será, portanto, a fonte única e 
exclusiva do direito, representando mesmo o direito natural, 
eterno e imutável deduzido pela razão. 
 O positivismo de quase todo o século XIX tentou 
fazer da ciência do direito e da interpretação uma tarefa 
 
119 “Il existe un droit universel et inmuable, source de toutes les lois 
positives; il n’est que la raison naturalle en tant qu’elle gouverne tous 
les hommes” (citado por ROSS, A. Obra citada, p. 287). Ver também ZANNONI, 
Eduardo A. Crisis de la razón jurídica, p. 27-28. 
120 PERELMAN, Chaïm. Obra citada, p. 31. 
 78
mecânica de hermenêutica exegética, já que o código não 
deixaria nada ao arbítrio do intérprete, o qual não teria por 
missão criar o direito, uma vez que todo o direito já estava 
feito. 
 A lei era tida como a própria razão escrita, o 
que tornou desnecessárias preocupações com o direito natural, 
a justiça ou a moral, já que a lei já era o todo. 
 Mas logo começaram a surgir tensões entre a lei 
escrita, por um lado, e a realidade em transformação, por 
outro.121 
 As grandes transformações que se deram no 
decorrer do século XIX, sobretudo nas relações entre capital e 
trabalho, levaram a um desajuste entre a lei que havia sido 
codificada no início daquele século e a vida com novas 
tendências. Nesse contexto: 
“ ... As pretensões de ‘plenitude legal’ da Escola de 
Exegese pareceram pretensiosas. A todo instante 
apareciam problemas de que os legisladores do Código 
Civil não haviam cogitado. Por mais que os intérpretes 
forcejassem em extrair dos textos uma solução para a 
vida, a vida sempre deixava um resto. Foi preciso, 
então, excogitar outras formas de adequação da lei à 
existência concreta.”122 
 
 
121 “É preciso lembrar que, quando foi promulgado o Código de Napoleão, a 
França ainda era um país agrícola por excelência, e a Inglaterra apenas 
ensaiava os primeiros passos na mecanização indispensável ao capitalismo 
industrial” (REALE, Miguel. Obra citada, p. 283). 
122 REALE, Miguel. Obra citada, p. 283. 
 79
 Nasce assim a denominada Escola Histórica e seu 
método, que busca na consciência jurídica popular a única 
verdade do direito positivo. Friedrich Carl Von SAVIGNY foi um 
dos grandes teóricos dessa corrente, o qual sustentava que o 
direito positivo emana do espírito geral que anima a todos os 
membros de uma nação, onde cada direito é a síntese de forças, 
crenças, sentimentos e atividades do seu povo: sua unidade não 
é produto casual, pois responde à sua própria história. 
 A tese básica dessa nova corrente, que segundo 
Alf ROSS é caracterizada por uma filosofia da história 
romântico-conservadora, “...constitui em afirmar que o direito 
não é criado conscientemente por deliberações racionais, 
desenvolvendo-se, sim, de forma cega e orgânica como uma 
expressão do espírito do povo e da consciência jurídica 
popular. O costume, e não as leis, é, portanto, a fonte 
suprema do direito”.123 
 Daí decorrem as propostas da Escola Histórica: 
“ ...a repulsa à codificação, dada a consciência 
empírica de que codificar era, inevitavelmente, 
naufragar nas águas do racionalismo do Código de 
Napoleão; negação do direito natural, para evitar a 
submissão ao jusnaturalismo racionalista e sua 
pretendida universalidade e imutabilidade; exaltação do 
direito consuetudinário, a despeito do ideal positivista 
que aspirava plasmar na lei a razão escrita.”124 
 
 
123 ROSS, A. Obra citada, p. 291. 
124 ZANNONI, Eduardo A. Obra citada, p. 62. 
 80
 Buscava-se, portanto, construir um sistema da 
razão que se realiza na história, a partir do que IHERING (que 
militara na escola histórica de SAVIGNY antes de alterar seu 
posicionamento), vai fundar a “...escola conhecida como a da 
jurisprudência de conceitos que reduz o direito a categorias 
racionais”125, a qual, a diferença do positivismo racionalista 
exegético (submissão à lei escrita), constrói um sistema 
conceitual (racional) a partir do
direito positivo. “Para 
ambos o direito positivo é um prius, mas enquanto o 
positivismo explica a lei, o conceitualismo constrói os 
conceitos jurídicos pretensamente universais a partir dela”.126 
Para o conceitualismo a ciência jurídica é dogmática, sendo 
que dogmática jurídica “...é lógica e tem por objetivo 
integrar o material positivo a partir do qual opera — o 
direito positivo — em conceitos jurídicos...”127 para depois 
fixar os princípios gerais (dogmas) que formam as linhas 
dominantes do conjunto. 
 Portanto, o conceitualismo pretende formular os 
conceitos jurídicos universais: a propriedade, o contrato, o 
vínculo obrigacional, o direito real; que são noções que se 
obtêm mediante uma reflexão lógica, e por abstração, que vão 
separando os elementos particulares dos gerais. Nessa 
 
125 ZANNONI, E. A. Idem, p. 64. 
126 ZANNONI, E. A. Idem, p. 65. 
127 ZANNONI, E. A. Idem, ibidem. 
 81
perspectiva, resulta que os conceitos jurídicos não estão 
divorciados da realidade, vez que na verdade “...a realidade 
constitui uma realização da razão: todo o real é racional e 
todo o racional é real, como propunha HEGEL”.128 
 
128 Cf. ZANNONI, E. A. Idem, p. 65-66. BOBBIO enquadra o conceitualismo — 
que, como visto, é fruto da escola histórica que tem em SAVIGNY um de seus 
maiores expoentes — num segundo significado de sistema, diverso do dedutivo 
anteriormente descrito: “Um segundo significado de sistema, que não tem 
nada a ver com o que foi ilustrado, encontramo-lo na ciência do Direito 
moderno, que nasce, pelo menos no Continente, da pandectista alemã, e vem 
de Savigny, que é o autor, não por acaso, do célebre Sistema do Direito 
romano atual. É muito freqüente entre os juristas a opinião de que a 
ciência jurídica moderna nasceu da passagem da jurisprudência exegética à 
jurisprudência sistemática ou, em outras palavras, que a jurisprudência se 
elevou ao nível de ciência tornando-se ‘sistemática’. Parece quase se 
querer dizer que a jurisprudência não merece o nome de ciência enquanto não 
chega a sistema, mas que é somente arte hermenêutica, técnica, comentário a 
textos legislativos. Muitos tratados de juristas são intitulados Sistema, 
evidentemente para indicar que se desenvolveu ali um estudo científico. O 
que significa nesta acepção ‘sistema’? Os juristas não pretendem certamente 
dizer que a jurisprudência sistemática consista na dedução de todo o 
Direito de alguns princípios gerais, como queria Leibniz. Aqui o termo 
‘sistema’ é usado, ao contrário, para indicar um ordenamento da matéria, 
realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das 
simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais, 
e classificações ou divisões da matéria inteira: a conseqüência destas 
operações será o ordenamento do material jurídico do mesmo modo que as 
laboriosas classificações do zoólogo dão um ordenamento ao reino animal. Na 
expressão ‘jurisprudência sistemática’ usa-se a palavra ‘sistema’ não no 
sentido das ciências dedutivas, mas no das ciências empíricas ou naturais, 
isto é, como ordenamento desde baixo, do mesmo modo com que se fala de uma 
zoologia sistemática. O procedimento típico dessa forma de sistema não é a 
dedução, mas a classificação. A sua finalidade não é mais a de desenvolver 
analiticamente, mediante regras preestabelecidas, alguns postulados 
iniciais, mas a de reunir os dados fornecidos pela experiência, com base 
nas semelhanças, para formar conceitos sempre mais gerais até alcançar 
aqueles conceitos ‘generalíssimos’ que permitam unificar todo o material 
dado. Teremos plena consciência do significado de sistema como ordenamento 
desde baixo, próprio da jurisprudência sistemática, se levarmos em conta 
que uma das maiores conquistas de que se orgulha essa jurisprudência foi a 
teoria do negócio jurídico. O conceito de negócio jurídico é manifestamente 
o resultado de um esforço construtivo e sistemático no sentido do sistema 
empírico que ordena generalizando e classificando. Surgiu da reunião de 
fenômenos vários e talvez aparentemente distantes, mas que tinham em comum 
a característica de serem manifestações de vontades com conseqüências 
jurídicas. O conceito mais geral elaborado pela jurisprudência sistemática 
é muito provavelmente o do relacionamento jurídico: é um conceito que 
permite a redução de todos os fenômenos jurídicos a um esquema único, e 
favorece portanto a construção de um sistema no sentido de sistema empírico 
ou indutivo. O conceito de relacionamento jurídico é o conceito sistemático 
 82
 A escola da exegese e o conceitualismo, que 
surgiram, respectivamente, em momentos sucessivos e que 
tiveram lugar em praticamente todo o século XIX, constituem 
autênticas etapas de consolidação do positivismo jurídico.129 
 Em ambas as correntes, é bom que se diga, “...o 
intérprete sempre se situava no âmbito da lei, não se 
admitindo interpretação criadora, à margem da lei ou a 
despeito dela”.130 
 Mas então começa a surgir uma questão: o que 
ocorre, porém, quando as possibilidades de integração do texto 
 
por excelência da ciência jurídica moderna. Mas é claro que a sua função 
não é a de iniciar um processo de dedução, mas a de permitir um melhor 
ordenamento da matéria” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 
p. 78-79). 
129 “O positivismo, na primeira etapa, recebeu do jusnaturalismo 
racionalista, radicalmente empirista, seu conteúdo filosófico. 
Politicamente implicou a institucionalização de uma nova ordem social que 
conjugou seus princípios e que pretendeu enquadrá-los, de uma vez por 
todas, na lei escrita. Daí a submissão à lei escrita que positivou os 
conteúdos racionais dessa nova ordem. O conceitualismo — a 
Begriffjurisprudenz, ou jurisprudência dos conceitos — é a segunda etapa 
construtiva e supõe a superação do racionalismo empirista. Não deprecia a 
lei, mas aspirou construir a autêntica superestrutura ideológico-jurídica 
do direito moderno. Essa superestrutura condiciona a interpretação da lei e 
faz do jurista um dogmático, que, conseqüentemente, apreende categorias 
obtidas mediante a simplificação qualitativa da construção jurídica” 
(ZANNONI, E. A. Obra citada, p. 67-68). Entendimento diverso é defendido 
por Alf ROSS, para quem essa complementaridade entre escola da exegese e 
conceitualismo não passa de jusnaturalismo disfarçado, já que, segundo ele, 
“...a idéia de que o direito natural se converteu em coisa do passado é 
errônea, a menos que restrinjamos esse conceito às teorias racionalistas 
dos séculos XVII e XVIII. Se incluirmos sob o rótulo de direito natural, 
como aqui fizemos, todas as teorias jurídicas metafísicas que são também 
político-jurídicas, quer dizer, que suprem um critério para a retidão ou 
justiça do direito, então o direito natural, ainda que com outro nome, 
sobreviveu e prosperou ao longo do século XIX; dever-se-ia chamá-lo, 
realmente, de direito natural disfarçado” (ROSS, A. Obra citada, p. 292). 
130 REALE, M. Obra citada, p. 286. 
 83
legal não comportam um atendimento a contento de novos fatos 
emergentes? 
 Surgem então correntes jurídicas menos voltadas 
às normas e seus sistemas, cuja atenção principal passou a ser 
dada à questão dos fatos sociais, ao problema das lacunas do 
direito, enfim, à questão da efetividade das normas.131 
 Tais correntes, de cunho predominantemente 
sociológico (escolas de livre pesquisa do direito, do direito 
livre, da livre indagação do direito, como passaram a ser 
denominadas), passam a reduzir a dimensão do direito aos 
fatos, de forma semelhante ao que a escola da exegese fizera 
com o direito em relação à lei escrita. 
 Para os adeptos dessas correntes, “...o juiz é
como que legislador num pequenino domínio, o domínio do caso 
concreto”132, porém aqui as leis não têm mais aquele caráter 
perene, pois devendo se adaptar aos novos fatos sociais que 
surgem, por vezes se tornam obsoletas diante da incapacidade 
de atender novas demandas. 
 Daí a postura de KIRCHMANN, por exemplo, ao 
afirmar — com um duro golpe contra o positivismo dos 
 
131 O próprio IHERING, antes conceitualista, passou a ser um dos críticos 
mais ferrenhos daquela postura. 
132 REALE, M. Obra citada, p. 291. 
 84
conceitos, que “três palavras do legislador e bibliotecas 
inteiras se convertem em papéis inúteis”.133 
 Das posturas sociológicas — em que predominam 
as análises fáticas na interpretação das normas — certamente é 
a crítica de Karl MARX aquela que mais gerou influências no 
século XX, ainda que o objeto central da análise marxiana não 
tenha sido propriamente o direito. 
 A postura sociológica vê no direito “...muito 
mais a expressão de realidades sociais, econômicas e 
políticas, do que como a expressão de uma vontade de dirigir e 
orientar estas mesmas realidades”.134 
 Ainda segundo PERELMAN, a postura que reduz o 
direito à sociologia, segundo a qual as regras de direito 
decorrem de fenômenos naturais alheios à vontade dos homens, 
traz como inconvenientes, dada a separação rígida entre 
direito e fato, as excessivas concessões ao arbítrio do juiz, 
além do desprezo da regra formal de justiça135, e, ainda, a 
recusa de toda referência a juízos de valor.136 
 Os sociologismos não admitem, por exemplo, que 
 
133 “Drei berichtigende Worte des Gesetzgelbers und ganze Bibliotheken 
werden zu Makulatur” (“três palavras corretoras do legislador e bibliotecas 
inteiras tornam-se maculatura”), citado por FERRAZ JR., Tercio Sampaio. 
Obra citada, p. 151-152. 
134 PERELMAN, C. Obra citada, p. 94. 
 
135 Essa regra requer um tratamento igual para situações semelhantes. 
136 Cf. PERELMAN, C. Obra citada, p. 94. 
 85
a opção por normatizar este ou aquele comportamento está 
revestido de um caráter voluntário, pois as opções são 
determinadas de antemão por fatores sociais alheios à vontade 
dos homens. 
 Assim, as valorações, inclusive aquelas 
universalizadas no processo de criação de normas, estariam 
dissociadas da vida cotidiana, entendida aqui como Lebenswelt 
ou mundo da vida comum, de acordo com a filosofia de HUSSERL 
que, conforme aduz Miguel REALE, é assim definida: 
“ Por Lebenswelt, inspirando-me em Husserl, entendo o 
complexo das formas de ser, de pensar e de agir não 
categorizadas (isto é, não estadeadas em formas 
objetivas, como as das artes e das ciências) que 
condiciona, como consciência histórico-transcendental, a 
vida comunitária e a vigência de suas valorações, muitas 
delas devidas ao refluxo ou reflexo das formas objetivas 
no plano da vivência coletiva. Não se trata, note-se 
bem, de um estágio larvar ou incipiente destinado a 
evoluir para formas categorizadas superiores, mas sim de 
uma condição existencial constante, a qual varia 
incessantemente de conteúdo, mas nunca deixa de existir 
como o grande envolvente social, no qual acham-se 
imersos os indivíduos com suas obras e instituições.”137 
 
 Para HUSSERL, ao contrário dos sociologismos, 
todo valor implica uma tomada de posição do espírito, levando 
a uma nossa atitude positiva ou negativa que implicará a 
“...noção de dever (...) e a razão legitimadora do ato”.138 
Essa concepção Husserliana é sintetizada por Antonio PAIM da 
seguinte forma: 
“ A intencionalidade da consciência significa que 
 
137 REALE, Miguel. O Direito como experiência, p. XXVII. 
138 REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 543. 
 86
conhecer é sempre conhecer algo. Não cabe, portanto, 
nenhum dualismo abstrato entre natureza e espírito, como 
se fossem duas instâncias em si conclusas, quando o 
estabelecimento da correlação transcendental sujeito-
objeto impede se reduza a natureza ao espírito e vice-
versa. Algo haverá sempre a ser convertido em objeto, 
alguma coisa haverá sempre além do que recebeu doação de 
sentido de parte do espírito. Nem se exaure em qualquer 
experiência particular o poder constitutivo de sínteses 
doadoras de sentido.”139 
 
 Para a filosofia de MARX, o ponto de vista 
acima seria apenas uma construção mental que se limita a 
interpretar a realidade sem no entanto ter a capacidade de 
transformá-la, ou seja, o estado de dominação persistiria sem 
alterações. 
 Neste sentido vale aqui a apropriação do mesmo 
raciocínio utilizado por MARX na sua undécima crítica a 
FEUERBACH: os críticos limitaram-se a interpretar o direito de 
diferentes formas, mas o que interessa mesmo é dotá-lo de 
instrumentos capazes de transformar a realidade. 
 Enquanto para FEUERBACH basta uma modificação e 
correção no interior de nossa consciência para a eliminação do 
erro provocado pela alienação, em que a libertação do homem 
consistiria simplesmente na crítica da religião, MARX 
demonstra que essa atitude se limita a interpretar o mundo de 
um modo diferente, o qual continuaria a subsistir tal como é 
na sua efetiva realidade. 
 MARX não abandona a observação empírica, ao 
 
139 PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no brasil, p. 421-422. 
 87
contrário, pretende exercê-la do modo mais rigoroso possível. 
Daí distingue os homens dos animais, por serem aqueles 
produtores dos seus meios de subsistência nos aspectos 
materiais da vida e por ser esta social e não isolada. 
Verifica também que as relações de produção exprimem-se de 
modo mais perceptível nas relações de propriedade. 
 O conjunto das relações de produção constitui a 
estrutura econômica de cada uma das diferentes sociedades, 
sendo que a produção passa a ser considerada a essência do 
homem e, exatamente por isso, a essência do homem é histórica. 
 A estrutura econômica da sociedade, que é 
constituída pelas relações de produção, é a base real sobre a 
qual é construída a superestrutura da consciência.140 
 O homem produz e transforma os próprios 
pensamentos acerca do mundo e da história real relativamente 
ao modo como, na sua atividade prática, transforma o mundo. 
Daí a ideologia, que está inserida na moral, na religião, na 
metafísica, na filosofia, no direito, na política e em todas 
as superestruturas em geral. 
 O cerne da questão não está na forma, 
equivocada ou não, de interpretar as coisas, mas na capacidade 
de transformar a realidade. 
 
 
140 Para MARX, não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, 
pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência. 
 88
 Para MARX, que pretendia fazer ver que as 
concepções de mundo existentes eram determinadas pelo conjunto 
das relações de produção material, a crítica deveria ser 
transformadora, pois a mesma “...não arranca as flores 
imaginárias dos grilhões para que o homem não suporte os 
grilhões sem fantasias e consolo, mas para que se livre delas 
e possam brotar as flores vivas. Não podereis superar a 
filosofia sem realizá-la”.141 
 A interpretação jurídica surgida a partir do 
iluminismo teria contribuído para que a história do direito se 
confundisse com a história da dominação e, por isso mesmo, 
teria estado distante do ideal de justiça.142 Vale dizer que, 
em virtude disso, as ideologias teriam sido bem sucedidas ao 
incutirem na sociedade que a realização do direito implica a 
realização da justiça. Assim a dominação se justifica. Neste 
sentido, veja-se o que diz Marilena CHAUI: 
“ A divisão social do trabalho, ao separar os homens 
em proprietários e não proprietários,
dá aos primeiros 
poder sobre os segundos. Estes são explorados 
economicamente e dominados politicamente. Estamos diante 
de classes sociais e da dominação de uma classe por 
outra. Ora, a classe que explora economicamente só 
poderá manter seus privilégios se dominar politicamente 
e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa 
dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a 
ideologia. 
 Através do Estado, a classe dominante monta um 
aparelho de coerção e de repressão social que lhe 
permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-
a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento 
 
141 MARX, Karl. Contribuição à crítica da filosofia do direito de hegel, p. 
78. 
142 Aqui não se trata de justiça formal, mas material. 
 89
do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das 
leis que regulam as relações sociais em proveito dos 
dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como 
legal, ou seja, como ‘Estado de direito’. O papel do 
Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não 
seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser 
legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito 
para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o 
Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade 
real, isto é, como instrumentos para o exercício 
consentido da violência, evidentemente ambos não seriam 
respeitados e os dominados se revoltariam. A função da 
ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com 
que o legal apareça para os homens como legítimo, isto 
é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a 
realidade do Estado pela idéia do Estado — ou seja, a 
dominação de uma classe é substituída pela idéia de 
interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a 
realidade do Direito pela idéia do Direito — ou seja, a 
dominação de uma classe por meio das leis é substituída 
pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, 
justas, boas e válidas para todos.”143 
 
 Com efeito, o direito, como instrumento de 
dominação que é, tem sido posto como um ente desprendido da 
realidade, sagrado, o qual deveria ser respeitado cegamente e 
sem a possibilidade de mudanças. 
 Quando uma sociedade admite como corretas as 
normas vigentes, as quais são invariavelmente mantenedoras do 
estado de dominação de uns poucos sobre muitos, tem-se que o 
controle social exercido sobre essa sociedade é eficaz, a 
ponto de as contradições existentes serem ocultadas, de modo 
bem sucedido, pela ideologia que teoricamente justifica a 
 
143 CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia, p. 90-91. Posição 
semelhante já era adotada pelos sofistas que, segundo noticia Alf ROSS, 
entendiam que as “...leis humanas são a corporificação do poder arbitrário 
dos governantes. Todo governante produz leis que lhe são proveitosas e 
chama de justo aquilo que serve aos seus próprios interesses. A doutrina da 
justiça imanente às leis não passa de uma capa astuciosa que encobre o 
predomínio da força” (ROSS, A. Obra citada, p. 275). 
 90
dominação. 
 E, por controle social deve-se entender o 
conjunto de meios de intervenção, quer positivos quer 
negativos, acionados em cada sociedade ou grupo social a fim 
de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que 
a caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos 
contrários às mencionadas normas, de restabelecer condições de 
conformação, também em relação a uma mudança do sistema 
normativo. 
 Com efeito, enquanto os homens forem incapazes 
de resolver as contradições existentes na prática, tenderão a 
projetá-las nas formas ideológicas de consciência, isto é, em 
soluções puramente intelectuais que ocultam efetivamente a 
existência e o caráter dessas contradições. “Não é a 
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a 
consciência”144, ou melhor, não é a consciência dos homens que 
determina a sua existência social, mas esta é que determina a 
consciência do modo como concebem a realidade. A consciência e 
o pensar são produzidos pelas interpretações dadas pelo 
processo histórico. Não é o pensar que determina o processo 
histórico, mas este é que determina o pensar. 
 Os homens são produtores dos seus meios de 
subsistência nos aspectos materiais da vida, por isso não 
 
144 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, p. 193. 
 91
estão isolados e interagem socialmente. Em todas as sociedades 
o conjunto das relações de produção constitui a sua estrutura 
econômica. As condições de subsistência são determinadas pelo 
modo como o homem produz seus meios de vida que, por sua vez, 
condicionam a produção intelectual. 
 Porém, em determinado momento histórico os 
meios de subsistência passaram a ser controlados por alguns, 
sendo que os demais foram alienados do processo produtivo à 
medida em que foram dissociados do produto de seu trabalho, o 
qual passou a pertencer à classe dominante. Dessa contradição 
surge a propriedade privada dos meios de produção, a qual é a 
base da dominação de uma classe sobre outra. 
 No plano intelectual, essa contradição é 
ocultada pela ideologia e sustentada pelas superestruturas, 
dentre as quais o direito. Essa uma breve descrição do 
pensamento de MARX, em que se vê claramente uma forma de 
sociologismo, eis que os fatos sociais, e somente eles, é que 
importam para a compreensão do fenômeno jurídico. 
 Enfim, ao positivismo jurídico que tentava se 
consolidar no século XIX foram contrapostas críticas dos mais 
diversos matizes. O efeito disso foi o de o século XX ter 
recebido como herança as mais variadas teorias jurídicas, as 
quais estavam fortemente impregnadas de ingredientes 
 92
políticos, religiosos e morais145, fruto da incessante 
tentativa de se atingir a justiça através do direito. Ademais 
disso, o relativismo cético finalmente estava se sobrepondo ao 
longo reinado das metafísicas, conforme visto no capítulo 1. 
 
145 “...um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como 
se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe 
ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente 
acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a 
sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura 
explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que 
indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito” (KELSEN, Hans. 
Teoria pura do direito, p. 1). 
 93
2.3 Direito e Ceticismo: o Realismo Jurídico 
 A sobreposição do relativismo cético às 
filosofias absolutistas se fez sentir sobremaneira no 
positivismo jurídico que iria se formar no século XX. Tal 
circunstância, no entanto, não influenciou somente os 
positivistas. 
 Com efeito, quanto ao ceticismo gnoseológico, é 
importante salientar que o mesmo também foi um dos grandes 
responsáveis pelo surgimento de outra escola: a do realismo 
jurídico que teve lugar nos Estados Unidos da América. 
 Segundo BOBBIO, o “...pai intelectual das 
correntes realistas modernas é um grande jurista, por muitos 
anos juiz da Suprema Corte, OLIVER WENDELL HOLMES, que foi o 
primeiro, precisamente no exercício das suas funções de juiz, 
a desclassificar o tradicionalismo jurídico das cortes, e a 
introduzir uma interpretação evolutiva do direito, quer dizer, 
mais sensível às mudanças da consciência social”.146 
 Em 08 de janeiro de 1897, HOLMES fez uma 
conferência, intitulada The Path of the Law, junto à Escola de 
Direito da Universidade de Boston, cuja repercussão provocou 
uma profunda renovação dos estudos jurídicos nos Estado Unidos 
da América.
146 BOBBIO, Norberto. Teoría general del derecho, p. 36. 
 94
 O novo enfoque acerca dos fenômenos jurídicos 
proposto por HOLMES é o de adotar o ponto de vista do bad man 
ao meditar sobre as conseqüências prováveis de uma determinada 
conduta. Para o bad man o importante é saber se a ação 
programada ocasionará a reação positiva de um órgão do Estado. 
A predição dessa reação é o direito: 
“ No famoso artigo ‘The Path of the Law’, ele 
[HOLMES] explica: ‘As pessoas querem saber sob que 
circunstâncias e até que ponto correrão o risco de ir 
contra o que é tão mais forte que elas mesmas, e, 
portanto, torna-se um objetivo descobrir quando esse 
perigo deve ser temido. O objeto de nosso estudo, então, 
é previsão, a previsão da incidência da força pública 
através do instrumento dos tribunais.’ Assim, a sua 
definição de Direito, que é verdadeiramente uma 
definição da ciência do Direito, é: ‘As profecias do que 
os tribunais farão, de fato, e nada de mais pretensioso, 
são o que quero designar como Direito.’ Em conformidade 
com essa visão, ele define os conceitos de dever e 
Direito do seguinte modo: ‘Os direitos e deveres 
primários com os quais se ocupa a jurisprudência, 
novamente, nada mais são que profecias.’ ‘Um dever 
jurídico propriamente dito nada mais é que uma previsão 
do que, se um homem fizer ou se abstiver de certas 
coisas, ele terá de sofrer, dessa ou daquela maneira, 
por meio do tribunal; e um direito jurídico pode ser 
definido de modo semelhante.’ ‘O dever de manter um 
contrato no Direito comum significa uma previsão de que 
você terá de pagar os danos caso não o mantenha, e nada 
mais’.”147 
 
 Se o direito só é a predição da provável 
conduta judicial frente a um determinado curso de conduta, em 
que dados se apoiariam os advogados para efetuarem suas 
predições? 
 
147 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 241. 
 95
 HOLMES considera que os advogados encontram as 
respostas às dúvidas do futuro nos repertórios judiciais, nos 
repositórios das sentenças proferidas no passado por outros 
juízes. O comportamento dos juízes no passado permite predizer 
qual será seu comportamento no futuro, de modo que as coleções 
jurisprudenciais seriam oráculos do direito. 
 Mas HOLMES não pára por aí. Acredita que as 
considerações verbais efetuadas pelos juízes ao ditar suas 
sentenças e dar razão às mesmas não correspondem habitualmente 
às motivações reais, aos verdadeiros fatores que determinaram 
seu ânimo em uma determinada direção. Tais razões 
permaneceriam ocultas. 
 Assim se inicia a etapa da jurisprudência 
sociológica e o realismo jurídico norte-americano. 
 A partir das considerações feitas por HOLMES, 
em especial quanto as razões ocultas nas decisões judiciais, o 
realismo norte-americano assume, com Jerome FRANK, a sua forma 
mais radical: 
“ ...a escola realista, cujo principal impulsionador 
foi JEROME FRANK, foi bem mais adiante dos princípios 
que podem ser deduzidos de HOLMES e POUND. A tese 
principal da escola realista é esta: não existe direito 
objetivo, no sentido de objetivamente dedutível de fatos 
reais, oferecidos pelo costume, pela lei ou pelos 
antecedentes judiciais; o direito é uma permanente 
criação do juiz no momento em que decide uma 
controvérsia. Assim se derruba o princípio tradicional 
da certeza do direito; pois qual pode ser a 
possibilidade de prever as conseqüências de um 
comportamento? — e nisto consiste a certeza — se o 
direito é uma permanente criação do juiz? Para FRANK, 
 96
com efeito, a certeza, um dos pilares dos ordenamentos 
jurídicos continentais, é um mito derivado de uma 
espécie de aceitação infantil frente ao princípio de 
autoridade (esta tese foi sustentada em um livro escrito 
em 1930, Law and Modern Mind): um mito que deve acabar 
para levantar sobre suas ruínas o direito como criação 
permanente e imprevisível.”148 
 
 FRANK entende que as sentenças judiciais são 
desenvolvidas retrospectivamente a partir de conclusões 
previamente formuladas149; que não se pode aceitar a tese que 
representa o juiz “...aplicando leis e princípios aos fatos, 
isto é, tomando alguma regra ou princípio (...) como premissa 
maior, empregando os fatos do caso como premissa menor e então 
chegando à sua resolução mediante processos de puro 
raciocínio”150; e que, definitivamente, as “decisões estão 
baseadas nos impulsos do juiz”151, o qual extrai esses impulsos 
fundamentalmente não das leis e dos princípios gerais de 
direito, mas sobretudo de fatores individuais que todavia são 
“...mais importantes do que qualquer coisa que pudesse ser 
descrita como pré-juízos políticos, econômicos, ou morais”.152 
 Para FRANK foi: 
“ ...o resultado dessas falibilidades o que induziu a 
Learned Hand, o mais sábio dos nossos juízes, a afirmar, 
depois de muitos anos de atuação como juiz de primeira 
instância: ‘Devo dizer que se eu fosse um litigante 
 
148 BOBBIO, N. Obra citada, p. 36. 
149 Cf. FRANK, Jerome. Law and the modern mind, p. 109. 
150 FRANK, J. Idem, p. 111. 
151 FRANK, J. Idem, p. 112. 
152 FRANK, J. Idem, p. 114. 
 97
temeria a um pleito além de todas as demais coisas, 
salvo a enfermidade e a morte.”153 
 
 Resta abordar ainda um problema levantado pela 
obra de Jerome FRANK que, apesar de sua importância, não tem 
recebido a devida atenção pelos juristas. 
 Para FRANK os problemas de interpretação de 
normas, de se saber quais delas são ou não válidas, de como se 
resolvem eventuais incompatibilidades entre elas, enfim, os 
problemas dogmáticos de que se ocupam os tribunais superiores 
(que não se prendem às questões de fato) e a maioria dos 
juristas, são os que na verdade menos importam. 
 
153 FRANK, Jerome. Derecho e incertidumbre, p. 27. DWORKIN, que é um cruel 
opositor do realismo jurídico, inicia sua obra Law’s Empire retomando os 
dizeres de LEARNED HAND: “Learned Hand, que foi um dos melhores e mais 
famosos juízes dos Estados Unidos, dizia ter mais medo de um processo 
judicial que da morte ou dos impostos. Os processos criminais são os mais 
temidos de todos, e também os mais fascinantes para o público. Mas os 
processos civis, nos quais uma pessoa pede que outra a indenize ou ampare 
por causa de algum dano causado no passado ou ameaça de dano, têm às vezes 
conseqüências muito mais amplas que a maioria dos processos criminais. A 
diferença entre dignidade e ruína pode depender de um simples argumento que 
talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo o mesmo 
juiz no dia seguinte. As pessoas freqüentemente se vêem na iminência de 
ganhar ou perder muito mais em decorrência de um aceno de cabeça do juiz do 
que de qualquer norma geral que provenha do legislativo. 
Os processos judiciais são importantes em outro aspecto que não pode 
ser avaliado em termos de dinheiro, nem mesmo de liberdade. Há, 
inevitavelmente, uma dimensão moral associada a um processo judicial legal 
e, portanto, um risco permanente de uma forma inequívoca de injustiça 
pública. Um juiz deve decidir não simplesmente quem vai ter o quê, mas quem 
agiu bem, quem cumpriu com suas responsabilidades de cidadão, e quem, de 
propósito, por cobiça ou insensibilidade, ignorou suas próprias 
responsabilidades para com os outros, ou exagerou as responsabilidades dos 
outros para consigo mesmo. Se esse julgamento for injusto, então a 
comunidade terá infligido um dano moral a um de seus membros por tê-lo 
estigmatizado, em certo grau ou medida, como fora-da-lei. O dano é mais 
grave quando se condena um inocente por um crime, mas já é bastante 
considerável quando um queixoso com uma alegação bem fundamentada não é 
ouvido pelo tribunal, ou quando um réu dele sai com um estigma
imerecido” 
(DWORKIN, Ronald. O império do direito. p. 3-4). 
 98
 Com efeito, FRANK pouco se preocupou com as 
questões normativas vinculadas com as suas interpretações, ou 
com a criação de novas normas quando assim exigia a novidade 
do caso ou a inexistência de adequados critérios normativos 
anteriores. Estas matérias, segundo ele, só ocupam uma parte 
mínima da atividade judicial. Concentram a atenção dos 
tribunais superiores, dedicados a decidir questões de direito, 
quer dizer, a dirimir as disputas dos advogados acerca do 
alcance das normas em relação a um caso concreto. Mas a 
verdade é que os litígios, em sua grande maioria, não surgem 
porque as partes não estão de acordo quanto ao significado das 
normas. Eles têm sua origem em divergências acerca dos fatos: 
“ Habitualmente, ambas as partes concedem que, se 
ocorrido o fato ‘A’, deve ser aplicada a norma ‘alfa’, 
que imputa como devida a conseqüência ‘beta’. Elas não 
estão de acordo é no que se refere ao acontecimento do 
fato ‘A’. Uma parte o afirma. A outra o nega. A sorte do 
litígio gira, portanto, ao redor da prova do fato 
discutido. Se se acreditar naquilo que pretende o autor, 
resultará a aplicação da norma ‘alfa’ e ele terá direito 
a perceber a prestação ‘beta’. Em caso contrário, é o 
demandado que se verá beneficiado, pois se declarará 
improcedente a pretensão dos autos. Como se vê, não 
estava em jogo a aplicabilidade ou o alcance da norma 
‘alfa’. Estava em questão, ao contrário, a realidade do 
fato ‘A’, de cuja prova dependia a aplicabilidade da 
norma ‘alfa’.”154 
 
 Daí a preocupação de FRANK com as questões de 
prova. Dedicando-se ao exame dos meios judiciais de prova dos 
fatos, teve particularmente em conta as modalidades dos juízos 
 
154 FRANK, Jerome. Derecho e incertidumbre, p. 12. 
 99
cíveis e criminais nos Estados Unidos. A instituição do júri 
impôs um caráter oral à sustentação e recepção da prova. 
Assim, os peritos são testemunhas, especialmente qualificadas, 
que depõem ante o juiz e o júri. Os documentos e demais peças 
probatórias, como coisas e peças materiais, devem ser exibidos 
em audiência para que sejam vistas, e ainda ouvidas, conforme 
o caso, tanto pelo juiz quanto pelos integrantes do júri. O 
juiz e os membros do júri vêm a ser, por sua vez, testemunhas 
do que acontece em audiência. Decidirão sobre os fatos em 
função da atenção que prestam aos diversos testemunhos e às 
exibições de objetos na sala de audiências do tribunal, e à 
credibilidade que atribuem aos diversos meios probatórios 
utilizados pelas partes. 
 Na prova dos fatos, pois, estaríamos ante a uma 
dupla série de testemunhos: os trazidos pelas partes e os 
testemunhos dos testemunhos, quer dizer, os juízes e os 
jurados. Esta dupla série testemunhal, segundo FRANK, está 
longe de garantir objetividade e previsibilidade na fixação 
dos fatos do caso. 
 Essa falta de objetividade, para FRANK, é a 
origem de grande parte dos erros judiciais: 
“ Quando, faz uns vinte anos, um promotor disse, 
muito seguro, que os homens inocentes nunca eram 
condenados como criminosos, Borchard replicou, em 1932, 
com a publicação de seu grande livro Convicting the 
Innocent, em que revelou que muitos homens foram ao 
cárcere por delitos que não haviam cometido, devido ao 
fato de que os tribunais de primeira instância [trial 
 100
courts] haviam incorrido em erros na apreciação dos 
fatos. Como tais erros se devem a defeitos judiciais na 
determinação dos fatos — defeitos presentes tanto em 
litígios civis quanto penais — resulta que os homens não 
só perdem sua liberdade como também amiúde sua 
propriedade, seus bens, seu trabalho ou sua reputação 
por causa de sentenças fundadas em presunção judicial de 
fatos que nunca tenham ocorrido realmente. Há aqui um 
problema moral de primeira magnitude. 
 O problema existe por essas razões: a decisão de um 
pleito, sabe-se, requer a subsunção de uma norma 
jurídica aos fatos do caso. Na maioria dos juízos os 
litigantes disputam somente sobre fatos como, por 
exemplo, se em certo dia Gross fez uma promessa a 
Gentle, ou se Tit golpeou a Tat. Como, no momento de se 
produzirem as provas, estes são fatos passados, o 
tribunal de primeira instância — um juiz (em um caso sem 
júri) ou um júri — não pode observá-los. Tudo o que o 
juiz e o júri podem fazer é formar uma convicção sobre 
esses casos passados. Essa crença se forma depois de 
ouvidas as declarações das testemunhas que haviam 
observado (ou pretendem ter observado) esses 
acontecimentos. Na maioria dos pleitos, as testemunhas 
declaram em audiência pública e suas declarações são 
discrepantes. Os fatos, para os fins da sentença, não 
são necessariamente os fatos reais. Eles são, no melhor 
dos casos, as convicções do juiz de primeira instância 
ou do júri sobre esses fatos reais passados. Para os 
fins práticos da sentença de um tribunal não importa 
quais foram os fatos reais. O que importa é esta crença. 
Ela é, em síntese, uma conjetura fundada em uma crença — 
outra conjetura — sobre o maior grau de fé que merecem 
uns testemunhos em relação a outros. 
 Não há segurança alguma de que essa crença do juiz 
ou do júri — que, repetimos, é tudo o quanto 
judicialmente constitui os fatos do caso — seja igual ou 
sequer se aproxime dos acontecimentos reais passados, 
devido ao seguinte: 1) o testemunho é notoriamente 
falível: as testemunhas mentem às vezes e, ainda, as 
testemunhas honestas erram com freqüência, a) ao 
observar os acontecimentos, b) ao recordar suas 
observações e c) ao transmitir estas lembranças na sala 
do júri; 2) os juízes e os júris são falíveis ao 
determinar (conjeturando) qual (se alguma) das 
testemunhas discrepantes relatou fielmente os fatos 
reais. Estas falibilidades causam os dramáticos erros 
descritos por Borchard, e também os que abordamos sobre 
os pleitos civis.”155 
 
 
 
155 FRANK, J. Idem, p. 25-27. 
 101
 A partir de tais considerações FRANK invoca 
sete grandes razões em virtude das quais a comprovação dos 
fatos é problemática: a) as testemunhas não raciocinam 
uniformemente ante os fatos passados objeto de seu testemunho; 
b) habitualmente as testemunhas dão ao tribunal versões 
contraditórias sobre esses acontecimentos; c) os fatos de um 
caso são declarados tais pelos juízes de primeira instância ou 
pelo júri, em função da credibilidade que concedem a alguns 
testemunhos e que negam a outros; d) há pouca uniformidade na 
formação dessas crenças de juízes ou júris; e) essas crenças 
determinam a sorte da maioria dos litigantes porque: quando se 
apela das decisões, os tribunais superiores aceitam usualmente 
as crenças dos tribunais de primeira instância; f) essas 
crenças são, amiúde, as crenças dos juízes e dos júris, pois 
as convicções reais permanecem ocultas sob a intuição integral 
e indiferenciada dos diversos testemunhos produzidos ante os 
juízes e os júris; e g) por último, as sentenças não enunciam 
explicitamente em seu corpo, ou seja, a ninguém é dado 
conhecer, as crenças, reais ou aparentes, que determinaram a 
decisão. Isso coloca o tribunal na completa tarefa de 
adivinhar as razões pelas quais os juízes e os júris deram 
credibilidade a alguns testemunhos e a negaram a outros. Disso 
decorre sua renúncia em revisar os fatos declarados pelo 
tribunal inferior, limitando-se a efetuar um exame do direito 
 102
aplicável aos fatos do caso, declarados tais pelo juízo de 
primeiro grau. 
 Daí FRANK conclui que o juízo verdadeiramente 
importante é o dos fatos, o juízo de primeira instância e não 
o de direito, o tribunal de segunda instância. 
 Apesar da insistência de FRANK na necessidade 
de que a teoria do direito
considere não só o que ocorre nos 
tribunais de apelação, mas principalmente o que acontece nos 
juízos de primeira instância, posto que são estes últimos que 
vão determinar os fatos do caso mediante a recepção e 
valoração das provas produzidas, esse problema, que não parece 
ter nada de trivial, não tem sido objeto de preocupação dos 
pensadores do direito, incluídos aí os representantes do 
positivismo jurídico atual, tais como KELSEN, BOBBIO e HART; o 
pensamento de DWORKIN156; a nova retórica de PERELMAN que 
receberá uma análise especial no decorrer deste trabalho; o 
próprio HABERMAS; enfim, pode-se dizer que essa é uma questão 
que, apesar de ter sido levantada, permanece em aberto no 
âmbito do pensamento jurídico. 
 
156 Que inclusive é um dos maiores críticos do realismo. 
 103
2.4 Legalidade e Legitimidade: a Crítica de Habermas 
 Voltando ao positivismo jurídico, que chega ao 
século XX quase que desfigurado, coube a KELSEN a tarefa de 
purificar o objeto da ciência do direito de tudo aquilo que a 
ela fosse considerado estranho, pois uma “...das tarefas mais 
importantes de uma teoria geral do Direito é determinar a 
realidade específica do seu objeto”.157 
 Daí por que os seus esforços para a separação 
de direito e moral já referida no início deste capítulo. O 
positivismo de Hans KELSEN, segundo PERELMAN: 
“ ...apresenta o direito como um sistema 
hierarquizado de normas, que difere de um sistema 
puramente formal pelo fato de a norma inferior não ser 
deduzida da norma superior mediante transformações 
puramente formais, como na lógica ou nas matemáticas, 
mas mediante a determinação das condições segundo as 
quais poderá ser autorizada a criação de normas 
inferiores, dependendo a eficácia do sistema da adesão 
pressuposta a uma norma fundamental, a Grundnorm, que 
será a Constituição original. 
 Contrariamente a um sistema formal, que é puramente 
estático, o direito será concebido como um sistema 
dinâmico, a norma superior que determina o quadro em que 
aquele a quem é conferida a autoridade de exercer um 
poder legal, legislativo, executivo ou judiciário pode 
escolher livremente uma linha de conduta, desde que não 
saia dos limites fixados pela norma superior”.158 
 
 Quanto a este aspecto, em que se tem a norma 
fundamental como “...o fundamento de validade e o princípio 
unificador das normas de um ordenamento”159 atuando num sistema 
 
157 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, prefácio, p. XXIX. 
158 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 91-92. 
159 BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. p. 62. 
 104
dinâmico, as normas serão consideradas válidas desde que 
provenientes de uma autoridade competente (indicada pelo 
próprio ordenamento) e que retirem seu fundamento de validade 
de uma norma superior, obedecendo aos procedimentos (também 
indicados pelo sistema). A validade das normas, portanto, 
independe do seu conteúdo, fato esse que, após a 2ª Guerra 
Mundial, trouxe novamente à tona a questão da legitimidade160 
do poder fundante de um ordenamento, que volta a ser também um 
problema jurídico. 
 O ceticismo (relativismo) não trouxe 
conseqüências apenas à referida corrente do realismo jurídico, 
pois também a teoria de KELSEN sofreu suas influências. Assim, 
além do relativismo moral que gerou as já descritas críticas 
dirigidas ao direito natural, o ceticismo influenciou na 
aceitação da tese que admite, quando há a possibilidade de 
interpretações divergentes de uma mesma norma, o uso da 
 
160 Por legitimidade adotamos a mesma noção concebida por Maria Celeste dos 
SANTOS, que aduz: “Na linguagem jurídica usual, as palavras legalidade e 
legitimidade não têm um significado claramente definido e diferenciado; 
fala-se indiscriminadamente de legalidade e de legitimidade para assinalar 
a conformidade de determinadas atividades do Estado com as normas vigentes 
do ordenamento jurídico. Para evitar equívocos usamos a expressão 
legitimidade para indicar, em termos gerais, o critério de justificação do 
poder, o ‘título’ em virtude do qual este dita seus comandos e exige a 
obediência por parte daqueles a quem se dirige e que, por sua vez, se 
consideram ‘obrigados’ por ele. 
Nesse sentido, a legitimidade se transforma em questão de legitimação 
e pressupõe a legalidade, isto é, a existência de um ordenamento jurídico e 
de um poder que dita comandos de conformidade com suas próprias 
disposições. A legitimidade, portanto, justifica a legalidade, posto que 
confere ao poder o carisma de autoridade: é um signo que se acresce à 
denominação, a força que o Estado exerce em ‘nome da lei’” (SANTOS, Maria 
Celeste Cordeiro Leite. Poder jurídico e violência simbólica, p. 111-112). 
 105
discricionariedade para a escolha do modo pelo qual a norma 
deve ser aplicada. Com efeito, estando: 
“ ...qualificado para agir legalmente, e na medida em 
que se conforma às regras prescritas, o legislador, o 
administrador público ou o juiz têm liberdade de ação, o 
legislador tem liberdade para votar qualquer lei que não 
seja contrária às normas superiores, o juiz, encarregado 
de dizer o direito nos casos particulares, tem liberdade 
de escolher como melhor lhe pareça entre as 
interpretações admissíveis de um dado texto. 
 A teoria pura do direito, tal como Kelsen a 
elaborou, deveria, para permanecer científica, eliminar 
de seu campo de investigação qualquer referência a 
juízos de valor, a idéia da justiça, ao direito natural, 
e a tudo o que concerne à moral, à política ou à 
ideologia. A ciência do direito se preocupará com 
condições de legalidade, de validade dos atos jurídicos, 
com sua conformidade às normas que os autoriza. Kelsen 
reconhecia, sem dúvida, que o juiz não é um mero 
autômato, na medida em que as leis que aplica, 
permitindo diversas interpretações, dão-lhe certa 
latitude, mas a escolha entre essas interpretações 
depende, não da ciência do direito nem do conhecimento, 
mas de uma vontade livre e arbitrária, que uma pesquisa 
científica, que se quer objetiva e alheia a qualquer 
juízo de valor, não pode guiar de modo algum.”161 
 
 Os dois problemas do positivismo jurídico 
postos acima (que não se restringem à teoria de KELSEN, mas 
também englobam à de BOBBIO e, principalmente, à de HART): o 
da legitimidade em relação à legalidade; e o da 
discricionariedade em relação à legalidade, têm gerado os mais 
interessantes, e quiçá mais importantes, debates 
jusfilosóficos da atualidade.162 
 
161 PERELMAN, C. Obra citada, p. 92-93. 
162 Chega-se então a um terceiro momento, qual seja a tentativa de superação 
do ponto de vista positivista em que o direito prevalece sobre a moral. 
Pretende-se encontrar um fundamento (moral) ao direito sem recorrer, no 
entanto, ao direito natural. 
 106
 Quanto ao problema da legitimidade, vamos 
trazer algumas posições de HABERMAS; e quanto à questão da 
discricionariedade, vamos mencionar o debate que tem sido 
liderado por DWORKIN a esse respeito.163 
 Passemos, portanto, à análise da crítica de 
HABERMAS ao conceito positivista de legalidade, com ênfase no 
problema da legitimidade do direito positivo moderno.164 
 Para tanto, serão confrontados ao pensamento de 
HABERMAS os pensamentos de Max WEBER e de KELSEN. A escolha 
não é, de forma alguma, aleatória. WEBER construiu um conceito 
positivista de legitimidade que permeia todas as discussões 
sobre o tema até os dias de hoje. Com efeito, é com base nele 
que Hans KELSEN examina a legitimidade na sua teoria pura do 
direito. HABERMAS, a seu turno, buscando reafirmar as conexões 
entre direito, moral e política, representa o contraponto 
daqueles pensamentos, à medida
em que busca abrir a cela 
 
163 Não se pretende aqui aprofundar esses temas, esgotando-os, mas tão-
somente situá-los no contexto contemporâneo de discussão. O panorama, ainda 
que superficial, dessas análises que agora serão efetuadas, somado aos 
dados histórico-filosóficos trazidos até aqui, são essenciais para a 
compreensão dos problemas jurídicos da atualidade, inclusive no que se 
refere ao papel que uma teoria da argumentação jurídica possa exercer nesse 
contexto, conforme será debatido no próximo capítulo. 
164 A análise terá como guia a comunicação que foi apresentada em 04 de 
setembro de 1995 por Caio Mário da Silva PEREIRA NETO; intitulada “Alguns 
Apontamentos sobre a Crítica de Habermas ao Conceito Positivista de 
Legitimidade”, que foi seguida de intensos debates na seção reservada aos 
estudantes pelo V Congresso Brasileiro de Filosofia, presidido por Miguel 
REALE entre os dias 03 e 08 de setembro de 1995 na Faculdade de Direito do 
Largo São Francisco (Universidade de São Paulo - USP). A comunicação acima 
referida foi posteriormente publicada nos anais do Congresso, cf. A 
Filosofia, Hoje: Anais do V Congresso Brasileiro de Filosofia, p. 677-692. 
 107
hermética em que WEBER e KELSEN haviam trancado o sistema 
jurídico ao se utilizarem de um conceito positivista de 
legitimidade. 
 Sendo assim, a análise estará centrada nos 
seguintes pontos: a) no conceito de legitimidade que Max WEBER 
desenvolve na sua tipologia da dominação legítima e de sua 
aplicação no que diz respeito à dominação legal-racional; b) 
na utilização dada por KELSEN àquele conceito; e c) por fim, 
na crítica central que HABERMAS desenvolve, ainda acerca do 
conceito de legitimidade, na sua teoria da ação comunicativa. 
 Em sua obra Economia e Sociedade165, Max WEBER 
se utiliza do conceito de legitimidade para diferenciar os 
tipos puros de dominação. Para tanto, WEBER parte da premissa 
de que, em função da classe de legitimidade em que se funda 
uma determinada dominação, as suas características básicas, 
como o seu quadro administrativo e o seu próprio modo de 
exercício, alteram-se. Vê-se então que a legitimidade é tomada 
como um critério chave para diferenciar os tipos puros de 
dominação. 
 Entendendo por dominação a “...probabilidade de 
obediência a um determinado mandato”166, WEBER chega ao 
 
165 WEBER, Max. Economia y sociedad. 2. ed. Traduzido por José Medina 
Echavarría et alii, México: Fondo de Cultura Econômica, 11. 
Reimpressão, 1997. 
166 WEBER, M. Economia y sociedad, p. 171. 
 108
seguinte conceito de legitimidade: “probabilidade [de uma 
dominação] ser tratada praticamente como tal e mantida em uma 
proporção importante”.167 Portanto, é pela crença na sua 
legitimidade que uma dominação se mantém independentemente do 
motivo específico e subjetivo de cada um dos dominados para 
obedecer aos mandatos que lhes são impostos, é na crença 
genérica em sua legitimidade que repousa a estabilidade de uma 
dominação. 
 WEBER, ao desenvolver a sua tipologia, 
identifica três possíveis fundamentos para a legitimidade da 
dominação política: a) fundamento racional que descansa na 
crença na legalidade; b) fundamento tradicional que repousa na 
crença na tradição; e c) fundamento carismático que se baseia 
na crença em qualidades especiais de uma pessoa. 
 O fundamento racional identificado por WEBER é 
de especial importância, pois é nele que, para o autor, reside 
a estabilidade da dominação legal característica de nosso 
tempo. Seria a crença na legalidade que levaria à submissão 
dos dominados a esta forma de dominação caracterizada pela 
positivação do direito e por um quadro administrativo 
predominantemente burocrático. 
 
167 WEBER, M. Idem, ibidem. 
 109
 Com efeito, a idéia básica da dominação legal-
racional é a de que “...qualquer direito pode ser criado e 
modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto 
à forma”.168 
 Vê-se aqui que WEBER, ao fundar a legitimidade 
da dominação legal na crença na legalidade e, portanto, na 
possibilidade de criação e modificação do direito, está nos 
remetendo a um novo problema: o que é legal? Ora, esta questão 
de reconhecimento do que seja ou não legal se torna a chave 
para a legitimidade de fundamento racional. 
 Com isso WEBER desloca o problema da 
legitimidade do direito positivo para a questão do 
procedimento pelo qual o direito é produzido e modificado. É o 
procedimento formal concreto que vai permitir uma 
identificação do que é ou não legal e, por sua vez, é a crença 
naquilo identificado como legal que residirá a legitimidade 
desse tipo de dominação. Portanto, em última análise, a pedra 
fundamental da legitimidade do edifício jurídico moderno, no 
pensamento weberiano, passa a ser a crença em um determinado 
procedimento que permita a identificação do direito. 
 Cabe observar que a construção descrita acima 
traz a legitimidade para o interior da legalidade. Ora, à 
 
168 WEBER, M., Idem, p. 174. 
 110
medida em que o direito se auto-legitima por um procedimento 
jurídico formal próprio, dispensa qualquer fundamentação 
externa a ele próprio. É exatamente essa construção que vai 
permitir a afirmação da autonomia do direito, que está 
subjacente à toda discussão jusfilosófica desde HOBBES, se 
quisermos tomar algum autor como referencial. De fato, é essa 
autonomia que é muitas vezes invocada para diferenciar o 
direito moderno do direito antigo e é ela também que pode ser 
apontada como uma das diferenças primordiais entre a dominação 
legal-racional e os outros dois tipos de dominação, 
tradicional e carismática, ambas dependentes de fatores 
externos ao direito: a tradição e o carisma, respectivamente. 
 Justamente essa transformação do problema da 
legitimidade em um problema de procedimento e a conseqüente 
absorção da legitimidade pela legalidade é que vão dar a base 
teórica para que Hans KELSEN dê uma roupagem mais acabada à 
teoria weberiana. Vejamos como isso ocorre. 
 KELSEN procura, com a teoria pura do direito, 
desenvolver uma teoria jurídica “...purificada de toda a 
ideologia política e de todos os elementos de ciência 
 111
natural”169 e elevar a jurisprudência a uma “...genuína 
ciência, de uma ciência do espírito”.170 
 Nesta sua busca de uma ciência pura, 
circunscreve o seu objeto de estudo, qual seja o direito, 
isolando-o de quaisquer influências externas. O direito que 
Hans KELSEN analisa é então um direito completamente separado 
da moral e da política e, portanto, clama por uma autonomia 
absoluta. 
 Assim o conceito de legitimidade construído por 
WEBER é facilmente absorvido pela teoria pura do direito, 
conferindo autonomia ao seu objeto de estudo (o direito) e 
possibilitando a explicação e justificação do seu dinamismo. A 
teoria positivista de KELSEN leva ao extremo a proposta 
weberiana, acabando por demostrar algumas distorções. 
 KELSEN define o princípio da legitimidade como 
o “...princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida 
até a sua validade terminar por um modo determinado através 
desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela 
validade de uma outra norma desta ordem jurídica...”171 
 Assim, vê-se novamente que o problema da 
legitimidade de um ordenamento jurídico se coloca na questão 
 
169 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, prefácio à 1 ed., p. XI. 
170 KELSEN, H. Idem, ibidem. 
171 KELSEN, H. Obra citada, p. 233. 
 112
do procedimento. Mais ainda, na definição de KELSEN o 
procedimento encontra-se claramente no interior da ordem 
jurídica, pois
ele deve necessariamente ser determinando por 
ela própria. Observa-se que a legitimidade fica equiparada à 
legalidade: tudo que é legal, isto é, que cumpre o 
procedimento determinado pela ordem jurídica, é também 
legítimo. 
 KELSEN percebe, contudo, que esse conceito de 
legitimidade só se aplica em uma ordem jurídica estável172, o 
que o leva a examinar a situação limite de uma revolução, em 
que o poder instituído é subjugado e substituído pelo poder 
revolucionário, podendo este modificar a constituição, ou 
mesmo substituí-la. 
 Nesta situação, observa o autor, a norma 
fundamental, que serve de fundamento de validade para todas as 
outras é substituída por uma nova, modificando portanto o 
fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Se a nova 
constituição modifica o procedimento pelo qual se dá a 
produção de normas válidas, surge então a questão das normas 
que haviam sido produzidas sob a égide da antiga constituição, 
 
172 Deve-se observar aqui uma inversão do problema inicial que WEBER se 
propunha a resolver ao definir a legitimidade como a probabilidade de 
conservação de um determinado tipo de dominação. Com o deslocamento do 
problema para a questão do procedimento, KELSEN acaba sendo levado a 
afirmar que o seu conceito de legitimidade só se aplica a uma ordem 
jurídica estável. Vê-se assim que o conceito weberiano começa a enfrentar 
problemas. 
 113
mas continuam sendo válidas, pois, como acontece em geral 
nessas revoluções, grande parte do edifício jurídico fica 
intacto. 
 A resposta a essa pergunta é dada da seguinte 
forma: há apenas uma mudança no fundamento de validade, as 
normas antigas continuam com o mesmo conteúdo mas sob um 
fundamento de validade novo, a nova constituição. 
 Ao constatar a possibilidade de coexistirem 
normas produzidas sob procedimentos diferentes (sob 
fundamentos de validade distintos) e a possibilidade de 
extinção de normas pelo modo determinado por uma ordem 
jurídica diversa da que havia instituído as mesmas normas, 
torna-se impossível sustentar que a legitimidade está 
exclusivamente ligada ao procedimento. 
 KELSEN acaba então se vendo obrigado a 
introduzir um elemento novo, limitativo do princípio da 
legitimidade acima descrito: a efetividade do governo. Daí a 
afirmação de que “...o governo efetivo, que, com base numa 
Constituição eficaz, estabelece normas gerais e individuais 
eficazes, é o governo legítimo do Estado”.173 
 
173 KELSEN, H. Obra citada, p. 234. Este é um dos pontos da teoria de KELSEN 
que sofreram as críticas mais contundentes, as quais foram denominadas por 
LOSANO como críticas imanentes (cf. LOSANO, Mario G. In prefácio à edição 
italiana de KELSEN, Hans. O problema da justiça, p. VII-XXXIII). 
 114
 A dominação legítima, nesta concepção, passa 
então a ser aquela efetiva e, conseqüentemente, o procedimento 
só vai exercer o seu papel legitimador da ordem jurídica a 
partir do momento em que estiver fundado em um poder efetivo 
(legítimo e eficaz). 
 O que se pode constatar da construção 
Kelseniana do conceito de legitimidade é uma inversão do 
problema proposto por WEBER. Este propunha uma tipologia da 
dominação que utilizava como critério básico as diferentes 
classes de legitimidade, sendo esta a probabilidade de 
manutenção de um determinado tipo de dominação. 
 No caso da dominação legal, o fundamento da 
legitimidade é apontado como sendo de ordem racional e 
identificado como a crença na legalidade. Para que exista essa 
crença é necessário, por sua vez, um procedimento que 
identifique o que é e o que não é legal. A partir de então o 
problema do que é legítimo é deslocado para a questão do 
procedimento que permite fazer esta identificação. 
 KELSEN parte dessa noção para poder afirmar a 
legitimidade de um sistema jurídico autônomo. Contudo, quando 
leva este raciocínio a uma situação limite (uma revolução), o 
procedimento não serve mais como fator de legitimação. 
 Neste exato momento o fator de legitimação 
passa a ser a efetividade do poder fundante e é desta 
 115
efetividade que decorre a legitimidade do novo poder e a 
posterior restauração da legalidade174. É importante notar que 
a legitimidade, no sentido procedimental formal que lhe dá 
WEBER, deixa de ser o fator gerador de estabilidade da 
dominação para ser uma conseqüência dessa estabilidade que, em 
última instância, é fruto da efetividade do poder político. 
 Com essa distorção o conceito de legitimidade 
concebido por WEBER e reafirmado por KELSEN torna-se por 
demais estreito para compreender o fenômeno jurídico que 
caracteriza a modernidade. 
 É preciso buscar um conceito mais largo que 
seja capaz de realizar essa tarefa. É exatamente isso que 
busca HABERMAS, conforme se depreende da sua crítica ao 
conceito weberiano, cujos contornos podem ser localizados na 
Teoria da Ação Comunicativa.175 
 HABERMAS, em sua Teoria da Ação Comunicativa, 
faz uma análise do pensamento weberiano, abordando a obra de 
WEBER como um todo e tendo como fio condutor a teoria da 
 
174 Tercio Sampaio FERRAZ JR. assume, na sua teoria pragmática da validade, 
uma mudança do padrão de validade descrevendo uma oscilação entre o padrão-
legalidade e o padrão-efetividade: “... O padrão-efetividade está em uso no 
momento em que aparece uma nova norma-origem. Daí para a frente, volta o 
padrão-legalidade” (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do 
direito: técnica, decisão, dominação, p. 192). Esta mudança de padrão é 
análoga à questão levantada por KELSEN, acima mencionada. Contudo, KELSEN 
não admite uma mudança de padrão, apenas uma limitação do princípio de 
legitimidade. 
175 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 
1987. 
 116
racionalização social. Mais que uma análise, o capítulo 
dedicado ao pensamento de Max WEBER é um diálogo em que 
HABERMAS identifica no seu interlocutor certas deficiências e 
incongruências. Dentro desse diálogo HABERMAS faz uma crítica 
veemente ao conceito de legitimidade que WEBER atribui à 
dominação legal. 
 Este conceito que, conforme abordado acima, é 
fundamental para a crença na legalidade, acaba dando origem à 
concepção de que a legitimação do direito moderno se dá 
mediante o procedimento. HABERMAS aponta um paradoxo nessa 
concepção: “A fé na legalidade só pode criar legitimidade se 
se supõe de antemão a legitimidade da ordem jurídica que 
determina o que é legal”.176 
 Ao apontar esta contradição, HABERMAS está 
questionando a legitimidade do próprio procedimento, pois a 
“...fé na legalidade de um procedimento não pode engendrar 
legitimidade per se, isto é, pela simples virtude da correção 
procedimental do próprio ordenamento positivo”.177 
 Ora, assentar a legitimidade do direito no 
procedimento não resolve o problema, apenas desloca-o para o 
próprio procedimento. Persiste então a indagação do que 
 
176 HABERMAS, J. Obra citada, p. 343. 
177 HABERMAS, J. Idem, p. 344. 
 117
confere a legitimidade ao procedimento legitimador178. Eis aí a 
questão com que se depara HABERMAS ao pretender analisar a 
questão da legitimidade do direito moderno. 
 Tentando identificar o que leva WEBER a cometer 
este equívoco, HABERMAS só encontra uma possibilidade: WEBER 
apela para uma tradicionalização secundária do procedimento, 
desconsiderando os pressupostos racionais materializados nas 
instituições. Apesar de ter consciência de que existam 
fundamentos racionais na instituição do procedimento, WEBER 
põe esses fundamentos em suspensão, acreditando que, uma vez 
existente o procedimento,
as pessoas não mais se preocupam com 
o seu fundamento racional e ele se transforma então numa 
espécie de tradição. 
 Para HABERMAS, mesmo nestes casos em que o 
procedimento sofre um efeito de tradicionalização, o que dá o 
caráter legítimo a uma decisão legal é a confiança nos 
fundamentos racionais subjacentes ao ordenamento jurídico como 
um todo. Assim, permanece a questão da fundamentação racional 
que, para o teórico da ação comunicativa, permeia todo o 
direito moderno. 
 
178 Na realidade este é o problema enfrentado por KELSEN na situação limite 
exposta acima. Numa revolução, o que se coloca em cheque é o próprio 
procedimento. A questão aí é a mesma: o que legitima o procedimento? Ou, se 
se formular de outra forma: qual procedimento pode ser considerado 
legítimo? KELSEN não responde a esta pergunta. Ao invés disso ele introduz 
o princípio da efetividade como limitante do princípio da legitimidade. 
Assim, o problema continua sem resposta. 
 118
 É justamente repensando a questão da 
fundamentação racional que HABERMAS vai tentar construir um 
novo conceito de legitimidade. Um conceito mais largo, capaz 
de compreender a totalidade do fenômeno, deixando de lado os 
vícios e preconceitos positivistas que acabaram levando, 
segundo ele, a interpretações equivocadas que os 
justificassem. 
 HABERMAS esboça o seu conceito de legitimidade, 
ainda que de forma inacabada, num trabalho intitulado ¿Como es 
Posible la Legitimidad por Via de la Legalidad?179, em que 
defende a tese de que o direito moderno não se encontra 
desconectado da moral e da política. Ao revés, é na relação 
com a moral, limitada pela sua relação com a política, que 
reside a legitimidade do direito positivo característico da 
nossa sociedade. 
 Para construir esse complexo de relações, 
HABERMAS parte de uma análise do direito pré-moderno, em que 
identifica a coexistência de um direito sacro com um direito 
profano. O direito sacro é o fator que legitima as decisões. 
Portanto, o príncipe só pode agir dentro do âmbito em que está 
legitimado pelo direito sacro. Este, por sua vez, era 
incondicionado e baseado na crença em imagens religiosas do 
 
179 HABERMAS, Jürgen. ¿Como es posible la legitimidad por via de la 
legalidad? In: Revista Doxa nº 5, 1988. 
 119
mundo, as quais dominavam as estruturas de consciência pré-
modernas. 
 Esta coexistência do direito profano com o 
direito sagrado demostra uma tensão interna ao direito: aquela 
entre o seu caráter instrumental e o seu caráter não 
instrumental. O caráter instrumental do direito dizia respeito 
ao direito profano, burocrático e utilizado como meio para 
atingir objetivos políticos. Já o caráter não instrumental era 
encontrado na incondicionalidade do direito sacro, pressuposto 
na regulação judicial dos conflitos pelo direito burocrático. 
 Contudo, no momento em que ocorre o fenômeno da 
positivação do direito, as imagens religiosas do mundo já 
estão reduzidas a convicções de ordem subjetiva. Isso faz com 
que o direito sacro não mais sirva como suporte de um direito 
profano, cada vez mais complexo e, a partir de então, em 
constante mutação. O direito fica desprovido daquele caráter 
de incondicionalidade que conferia legitimidade ao poder 
político responsável por instituí-lo. 
 Nesta situação, para que o direito não fique 
reduzido à imposição de mandatos de um soberano (redução 
defendida por todos os seguidores de HOBBES), o que levaria a 
sua absorção pela política e a conseqüente decomposição do 
próprio conceito de política, cumpre buscar um outro 
fundamento de legitimidade que seja capaz de assegurar aquele 
 120
momento de incondicionalidade antes existente. Essa é a busca 
que HABERMAS se propõe a fazer. Só assim o direito pode manter 
o caráter de obrigação que antes lhe era conferido pela 
autoridade do direito sacro. 
 HABERMAS começa a sua busca de um fundamento 
para o direito moderno observando que, só no momento em que 
surge uma moral convencional (em que as normas jurídicas são 
prévias, independentes da situação e vinculantes para todos), 
torna-se possível o surgimento de um poder político organizado 
por meio de um direito coercitivo. Isso porque, sustenta 
HABERMAS, só no momento em que o poder de fato recebe uma 
autoridade normativa conferida por uma norma jurídica e que 
tenha este caráter moral e convencional (e é neste momento que 
passa a ser legítimo) pode impor politicamente normas 
jurídicas. 
 Essa constatação leva HABERMAS a concluir que o 
fundamento do direito moderno só pode estar na sua relação com 
a moral: “...aquele momento de incondicionalidade que 
inclusive no direito moderno constitui um contrapeso à 
instrumentalização política do meio que é o direito, deve-se 
ao entrelaçamento da política e do direito com a moral”.180 Não 
se trata aqui de uma moral tradicional, fundada em uma 
 
180 HABERMAS, J. Idem, p. 25. 
 121
interpretação mítica do mundo, mas de uma moral convencional, 
autônoma, que apresenta uma racionalidade própria. 
 Nesse sentido, o direito natural racional, 
superado no século XIX devido à tamanha complexidade que a 
sociedade moderna atingiu, foi a primeira tentativa de 
construir este entrelaçamento entre uma moral pós-
tradicional181 e o direito, ligando este a princípios daquela e 
colocando-o sobre o pano de fundo de uma racionalidade 
procedimental (o contrato social nada mais é que um 
procedimento hipotético que justifica moralmente o poder 
exercido através do direito positivo). 
 Aí reside a chave do conceito de legitimidade 
habermasiano na racionalidade procedimental de uma razão 
prático-moral: “Esta exige que distingamos entre normas e 
princípios e procedimentos justificatórios, procedimentos 
conforme os quais possamos examinar se as normas, à luz dos 
princípios válidos, podem contar com o assentimento de 
todos”.182 
 
181 O que HABERMAS considera como moral pós-tradicional é a moral autônoma, 
regida por um critério de racionalidade próprio e fruto do desencantamento 
das imagens do mundo descrito na teoria da racionalização social de WEBER. 
Segundo este autor a evolução das imagens religiosas do mundo leva à 
autonomização de três esferas de racionalidade regidas por critérios 
independentes: a esfera cognitivo-instrumental, a esfera prático-moral e a 
esfera estético-expressiva. Sobre isso ver a análise que HABERMAS faz 
acerca do pensamento de WEBER na teoria da ação comunicativa. 
182 HABERMAS, J. Obra citada, p. 29. 
 122
 Esta razão prática tem como núcleo a idéia de 
imparcialidade. Desta forma, a legitimidade do direito só pode 
ser obtida por meio de procedimentos que assegurem a 
imparcialidade dos juízos (no caso da aplicação das normas) e 
da vontade (no caso da sua produção) por via de uma 
argumentação que justifique e fundamente as normas.183 Esses 
procedimentos devem ser institucionalizados dentro do direito 
positivo, permitindo que este comporte discursos morais. 
 Cabe nesse ponto a seguinte questão: supondo a 
aplicação dessa justiça procedimental para que haja a produção 
de normas segundo o critério da imparcialidade, por que então 
estas normas precisam ser institucionalizadas na forma de 
normas jurídicas? Não bastaria que elas fossem apenas normas 
morais? HABERMAS responde a esta pergunta com a afirmação de 
que a moral pós-tradicional possui um déficit motivacional, ou 
seja, a moral autônoma carece daquela conexão com a eticidade 
concreta característica da moral tradicional. 
 Assim, os agentes de uma dada sociedade podem 
identificar racionalmente (sempre
segundo uma razão prática) 
as normas que seguem o procedimento, mas estas não têm aquela 
 
 
183 Cf. HABERMAS, J. Idem, p. 39, em que são abordadas as teorias da justiça 
de John RAWLS, de KOHLBER e de K. O. APEL — denominadas teorias 
procedimentais da justiça — as quais, ao tratarem o tema da elaboração do 
procedimento como fundamento de imparcialidade das normas, representam, 
segundo HABERMAS, propostas sérias que permitem analisar questões práticas 
de um ponto de vista moral. 
 123
força motivacional de outrora que os impelia a realizar na 
prática os seus juízos morais. As normas passam a ser 
exigíveis somente à medida em que aqueles que as cumpram 
possam esperar que todos os outros também ajam na sua 
conformidade. 
 Aí reside a necessidade da institucionalização 
jurídica. Para garantir a aplicação geral e num prazo fixo das 
normas relativas a problemas funcionais importantes, resolução 
de conflitos e matérias de maior importância social, faz-se 
necessária a positivação desta norma por um poder político 
capaz de assegurá-la coercitivamente. Só por essa via pode-se 
evitar os problemas de insegurança gerados num complexo de 
normas puramente morais. Neste sentido, o direito complementa 
a moral, corrigindo a sua debilidade motivacional por meio da 
coerção. 
 Exigindo um poder político que o institua, o 
direito mostra a sua outra face: o seu caráter instrumental. O 
poder político se utiliza de normas jurídicas, justificadas e 
fundamentadas por meio de um discurso que mescla argumentos 
morais e políticos, para atingir objetivos políticos. Por 
isso, HABERMAS afirma que “...o direito se situa entre a 
política e a moral”.184 
 
184 HABERMAS, J. Idem, p. 42. 
 124
 Como já ficou esboçado, mais que uma mera 
complementação da moral com o direito, HABERMAS defende um 
entrelaçamento entre os dois. Este se verifica pela observação 
de que existe uma abertura do direito positivo para 
argumentações morais que o justifique e fundamente. Há aí a 
migração de uma moral puramente procedimental (despida de 
conteúdo normativo) para o interior do direito. 
 Nesse contexto, ambos (direito e moral) se 
limitam por meio de procedimentos mútuos. Os procedimentos 
jurídicos deixam um certo espaço para que seja realizado o 
discurso moral (efetuado à luz de princípios válidos que 
justificam e fundamentam as normas), fundamental para a sua 
legitimação. Contudo, este espaço é modelado pela política. 
São as lutas políticas que determinam quanto deste espaço é 
ocupado por um discurso moral e quanto é ocupado por 
imperativos funcionais que põem em suspenso os princípios 
morais. Enfim, a relação legitimadora entre direito e moral é 
regulada pela política, que, por sua vez, acaba também 
dependendo dessa relação, pois é dela que o poder político 
extrai a sua legitimidade. 
 Com essa intrincada relação entre moral, 
direito e política, HABERMAS chega à “...idéia de um Estado de 
Direito, com divisão de poderes, que extrai sua legitimidade 
de uma racionalidade que garanta a imparcialidade dos 
 125
procedimentos legislativos e judiciais”.185 Esta idéia funciona 
como um standard crítico que permite avaliar a realidade 
constitucional, já que ela “...não se limita a se opor 
abstratamente (em um impotente dever-ser) a uma realidade que 
tampouco lhe corresponda. Antes de tudo a racionalidade 
procedimental (...) constitui (...) a única dimensão que resta 
em que se pode assegurar ao direito positivo um momento de 
incondicionalidade e uma estrutura imune de ataques 
contingentes.”186 
 Ao encarar o direito como um sistema aberto a 
questões procedimentais de cunho moral e influenciado 
profundamente pela política, HABERMAS traz para o centro da 
problemática jurídica questões que os juristas positivistas 
acreditavam não ser da sua alçada. E ainda vai além, recoloca 
questões que os positivistas pensavam ter resolvido. HABERMAS 
traz à tona, portanto: a questão da justiça, a questão da 
democracia e a questão da autonomia do direito. 
 A questão da justiça, desde o advento do 
positivismo jurídico, foi relegada à filosofia moral, mas com 
HABERMAS é trazida para o seio da questão da legitimidade. É 
por meio de uma justiça procedimental de caráter moral, com o 
seu núcleo fundado na idéia de imparcialidade, que HABERMAS 
 
185 HABERMAS, J. Idem, p. 37. 
186 HABERMAS, J. Idem, ibidem. 
 126
acredita ser possível garantir ao direito moderno a sua 
autoridade e, conseqüentemente, o seu caráter de obrigação. 
 Assim sendo, o jurista moderno, ao estar 
envolvido com a aplicação e produção de normas deverá, sob 
pena de tornar o direito suscetível a ataques contingentes, 
estar sempre preocupado com a realização deste procedimento de 
tomada imparcial de decisões coletivas. Tendo em vista as 
dificuldades, num primeiro plano, de conceber teoricamente um 
procedimento que assegure essa imparcialidade nas sociedades 
complexas atuais e, num segundo plano, de aplicá-lo nessas 
mesmas sociedades, está aí um grande desafio para o jurista de 
hoje: estar sempre questionando o procedimento racional pelo 
qual se dá a fundamentação e justificação das normas. Este 
procedimento permanece sempre aberto a uma crítica racional 
por meio do discurso e, portanto, ele está continuamente sendo 
reconstruído pelos participantes do discurso. 
 Aqui se apresenta uma segunda questão para a 
qual HABERMAS chama a atenção: quem são os participantes do 
discurso? Essa é a questão da democracia. Quando o teórico da 
ação comunicativa coloca numa moral procedimental o fundamento 
da legitimidade moderna, exige conseqüentemente a 
participação, de alguma forma a ser definida pelo 
procedimento, daqueles que serão atingidos pelas normas 
criadas ou aplicadas. Mas não há critérios prévios, de modo 
 127
que só com a participação de todos no discurso poderá ser 
garantida a imparcialidade que a razão prática exige.187 
 Sob esse enfoque cabe então a seguinte questão: 
até que ponto o procedimento democrático moderno, fundado em 
pilares como a regra da maioria e a representação política, 
consegue cumprir o pressuposto de legitimidade apresentado por 
WEBER? Isso faz repensar a forma de participação dos 
indivíduos em uma democracia. Como garantir essa formação 
discursiva da vontade coletiva? 
 Estas duas primeiras questões representam bem 
uma gama de problemas muito complexos que surgem ao se 
estabelecer uma conexão entre direito, política e moral. Além 
disso, elas recolocam o problema da autonomia do direito em 
outros termos. Se não se pode mais caracterizar o direito como 
um sistema fechado, fica abalado o conceito de autonomia do 
sistema jurídico defendido pelos positivistas, que estipula 
uma independência do direito a qualquer fator que lhe for 
externo. Onde está então a autonomia do direito? Ou deixaria 
ele de ser autônomo? 
 
187 “A fundamentação do sistema de direitos (direitos fundamentais e 
direitos positivos), com o auxílio do princípio do discurso, pode ser 
esclarecida a partir do princípio da democracia, forma que assume a 
intersubjetividade argumentativa, no discurso de legitimação de direitos, 
assim expresso: ‘D: são válidas as normas de ação às quais todos os 
possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de 
participantes de discursos racionais” (LUDWIG, Celso Luiz. Razão 
comunicativa e direito em habermas, p. 10-11, grifos no original). 
 128
 A proposta de HABERMAS é a de que a autonomia 
do direito está justamente no seu entrelaçamento com a moral e 
a política. É essa relação entre
os três campos que confere ao 
direito a possibilidade de ser autônomo. É ela que impede que 
o fenômeno jurídico se dissolva ou em puras considerações 
morais, ou em pura imposição política. Por isso, diz HABERMAS, 
“...autônomo é um sistema jurídico, só à medida em que os 
procedimentos institucionalizados para a legislação e a 
administração da justiça garantam uma formação imparcial da 
vontade e do juízo e por essa via permitam que se introduza, 
tanto no direito quanto na moral, uma racionalidade 
instrumental de tipo ético. Não pode haver direito autônomo 
sem democracia realizada”.188 
 Com essas considerações acerca do pensamento de 
HABERMAS sobre o fenômeno da legitimidade, vê-se pois que o 
problema da moral está longe de ser algo que não mereça a 
preocupação dos juristas, como pretende — ou pretendia — o 
positivismo jurídico. 
 
188 HABERMAS, J. Obra citada. p. 45. 
 129
2.5 Legalidade e Discricionariedade: Hart X Dworkin 
 Cabe agora fixar o olhar sobre o outro problema 
mencionado anteriormente: o da discricionariedade do 
intérprete. Para tanto será analisado o debate travado entre 
HART e DWORKIN, que talvez seja a melhor forma de situar o 
problema. 
 A consolidação do positivismo jurídico que teve 
lugar no século XIX mediante a junção dos métodos da exegese e 
do conceitualismo dava ao intérprete — em especial ao juiz — 
uma tarefa neutra em relação à lei. 
 Com efeito, a atitude do intérprete seria 
apenas a de subsumir fatos às normas, como num silogismo189, o 
que tornava mecânica (ou lógico-mecânica) a função do 
aplicador das normas. 
 Cedo surgiram os problemas daquela ambição 
racionalista — pois a teoria não acompanhava as novas demandas 
impostas por uma realidade social em constante mutação — e 
também cedo surgiram teorias que se contrapunham ao ideal 
racional-legalista do positivismo de então, que entrou em 
crise. 
 
189 Em que a lei funcionaria como premissa maior, o fato ficaria na posição 
da premissa menor e a inevitável conclusão seria a norma a ser aplicada ao 
caso particular. 
 130
 Das várias correntes jurídicas surgidas desde 
então, ainda que opostas entre si — como por exemplo as 
escolas sociológicas e o normativismo — num ponto ao menos, 
segundo ALEXY, estão de acordo: 
“ ...um dos poucos pontos em que existe acordo na 
discussão metodológica-jurídica contemporânea é o de que 
a decisão jurídica (...) exprimível em um enunciado 
normativo singular não se segue logicamente, em muitos 
casos, das formulações das normas que deve pressupor 
como vigentes.”190 
 
 Desse ponto comum surgiram duas grandes 
tendências teóricas que vão se desenvolver no século XX: a) 
uma primeira, aparentemente mais fiel à tradição positivista 
que, tendo verificado as possibilidades da lógica no 
raciocínio jurídico, chega à conclusão de que, naqueles casos 
em que a lógica não fosse apta para fundamentar uma decisão 
jurídica, o intérprete estaria autorizado a se valer de 
discricionariedade, tornando-se então um sujeito político 
criador de direito; e b) uma segunda, pelo contrário, tentando 
evitar aquela conclusão — que afinal de contas atingia os 
alicerces do Estado liberal forjado pelo iluminismo — tentou 
construir uma nova lógica que pudesse compensar o déficit de 
racionalidade que caracterizava a argumentação jurídica, ou 
seja, um método jurídico alternativo que conduzisse o processo 
 
 
190 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica: la teoría del 
discurso racional como teoría de la fundamentación jurídica, p. 23. 
 131
de decisão quando o direito escrito e a lógica se mostrassem 
insuficientes ou conduzissem de qualquer modo a resultados 
insatisfatórios. 
 Na primeira das tendências acima referida podem 
ser enquadrados KELSEN, BOBBIO e HART; e é justamente a tese 
cética que admite a discricionariedade do intérprete em 
algumas situações que se tornou o principal objeto de crítica 
no pensamento de DWORKIN, conforme se verá ainda neste 
capítulo. 
 Na segunda das tendências em questão enquadram-
se VIEHWEG e PERELMAN que, respectivamente, trouxeram ao 
debate contemporâneo, a partir da segunda metade do século XX, 
a possibilidade de se utilizar, como forma de raciocínio 
jurídico, as velhas formulações de ARISTÓTELES sobre a tópica 
e a retórica, temas esses que serão objeto de análise do 
capítulo subseqüente, através da descrição do pensamento 
específico de PERELMAN.191 
 
191 Cada uma dessas duas tendências, à primeira vista contraditórias e que 
de fato entraram várias vezes em aberta polêmica, certamente ofereceram 
perspectivas originais e valiosas. Assim, o positivismo de KELSEN, BOBBIO 
ou HART talvez tenha sido um dos grandes responsáveis pelo estímulo a uma 
análise mais rigorosa da linguagem jurídica e do alcance da lógica no 
direito, mas, sobretudo, permitiu o desenvolvimento de uma redefinição das 
atribuições do juiz e de seus modelos de conduta, vez que se o intérprete 
já não era mais hermeticamente circunscrito às disposições literais da lei 
— como queria MONTESQUIEU — mas sim um ativo criador de direito, tornaram-
se prementes reflexões quanto à sua legitimidade e quanto às melhores 
formas de fiscalização dessa atividade de criação judicial (o debate 
iniciado por DWORKIN, como veremos, tem sido um bom exemplo disso). De 
outro lado, os expoentes da tópica, da hermenêutica ou da retórica 
 132
 A separação radical entre direito e moral 
promovida pelo positivismo jurídico é rechaçada por DWORKIN, 
que procura restabelecer essa relação a partir de uma teoria 
que vê nos princípios192 jurídicos um status lógico distinto 
daquele que se refere às regras. Quanto a estas, ou se aplicam 
no todo ou não se aplicam, enquanto os princípios fornecem 
razões para que se tomem decisões em um determinado sentido, 
mas seus enunciados, ao contrário das regras — não determinam 
as condições de sua aplicação: 
“ A diferença entre regras e princípios não é 
simplesmente uma diferença de grau, mas sim de tipo 
qualitativo ou conceitual. As regras são normas que 
exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem 
somente ser cumpridas ou descumpridas. Se uma regra é 
válida, então é obrigatório fazer precisamente o que 
ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso 
determinações no campo do possível fática e 
juridicamente. A forma característica de aplicação das 
regras é, por isso, a subsunção. Os princípios, no 
entanto, são normas que ordenam que se realize algo na 
maior medida possível, em relação às possibilidades 
jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, 
 
permitiram o rompimento daquilo que para KELSEN, a teor do que costuma 
dizer VERNENGO em suas conferências e obras, era uma caixa preta (Cf. 
VERNENGO, Roberto José. Curso de teoría general del derecho; e, ainda, La 
interpretación literal de la ley, entre outros escritos), ou seja, os 
complexos processos que conduzem desde a norma (também os fatos) até à 
decisão judicial; em suma, a busca de regras e técnicas de argumentação 
para guiar o raciocínio jurídico é em boa medida tributária dessa segunda 
tendência de pensamento. 
192 A discussão acerca dos princípios jurídicos toma fôlego, na teoria do 
direito dos últimos anos, a partir de um famoso artigo de Ronald DWORKIN 
publicado em 1967 com o título “É o Direito um Sistema de Regras?” (que foi 
incorporado ao capítulo 2 da obra Taking Rights Seriously). A pretensão 
fundamental de dito artigo era a de impugnar o que o próprio DWORKIN 
denominava “...a versão mais poderosa do positivismo jurídico, isto é, a 
teoria do
Direito de H. L. A. Hart. Entre os defeitos capitais de dita 
teoria estaria, segundo Dworkin, sua incapacidade para dar conta da 
presença no Direito de normas distintas das regras — isto é, de princípios 
— o que privaria também a construção de Hart da possibilidade de 
compreender aspectos essenciais do raciocínio judicial nos denominados 
casos difíceis” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza, MANERO, Juan Ruiz. Las piezas 
del derecho: teoría de los enunciados jurídicos, p. 1). 
 133
mandatos de otimização que se caracterizam porque podem 
ser cumpridos em diversos graus.”193 
 
 Os princípios, que são normas a ser avaliadas 
em cada caso particular, são medidos a partir dos seus 
conteúdos, fazendo “...referência à justiça e à eqüidade 
(fairness)”194, sendo que com isso se procura demonstrar que a 
moral não pode ser negligenciada.195 Daí decorre uma das 
 
193 RODRIGUEZ. Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la 
argumentación jurídica, p. 204. Esta obra, que será muitas vezes citada no 
decorrer deste trabalho, foi recentemente traduzida para o português (cf. 
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. 
Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino, São Paulo: Landy, 2000). É 
a partir dessa distinção entre norma-regra/norma-princípio que, por 
exemplo, Robert ALEXY vai elaborar a noção de ponderação como 
característica da aplicação de princípios, critério que mais tarde será 
utilizado na formulação de sua célebre teoria dos direitos fundamentais 
(cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Traduzido por 
Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1. 
Reimpressão, 1997). Quanto a esse tópico, vê-se ainda que: “Para ALEXY, os 
princípios são obrigações de otimização, enquanto as regras têm um caráter 
de obrigação definitiva. Assim, para os princípios a ponderação é a forma 
característica da aplicação do direito, ao passo que, para as normas, é 
aplicada a subsunção” (MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. O uso criativo 
dos paradoxos do direito: a aplicação dos princípios gerais do direito pela 
corte de justiça européia, p. 102). 
194 CALSAMIGLIA, A. Ensayo sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los derechos 
en serio, prólogo, p. 9. 
 
195 Com efeito, será o conteúdo material do princípio — seu peso específico 
— que determinará como e de que forma deverá o mesmo ser aplicado em um 
caso concreto. Veja-se o que diz DWORKIN acerca da distinção entre regras e 
princípios e a forma de se aplicar estes últimos: “... Ambos os conjuntos 
de pautas [standards] apontam a determinadas decisões sobre a obrigação 
jurídica em circunstâncias determinadas, mas uns e outros diferem no 
caráter da orientação que fornecem. As regras são aplicadas sob a forma do 
tudo ou nada. Se ocorrem os fatos que estipula uma regra, então ou a regra 
é válida, em cujo caso a resposta que fornece deve ser aceita, ou então ela 
não é, em cujo caso não contribui em nada à decisão. 
(...) 
Mas não é desta maneira que operam os princípios (...) Nem sequer 
aqueles que mais se parecem com as regras estabelecem conseqüências 
jurídicas que decorrem automaticamente quando as condições previstas 
estiverem satisfeitas. 
(...) 
Os princípios têm uma dimensão que as regras não têm: a dimensão de 
peso ou importância. Quando há uma tensão entre princípios (...) aquele que 
 134
principais debilidades do positivismo, pois a distinção entre 
direito e moral não é tão clara; e se os positivistas caíram 
nesse equívoco é porque seu âmbito de análise é estritamente 
normativo, pois não leva em consideração a distinção entre 
regras e princípios196 acima aduzida: 
“ Esta imagem do direito, como sendo parcialmente 
indeterminado ou incompleto, e a do juiz, enquanto 
preenche as lacunas através do exercício de um poder 
discricionário limitadamente criador de direito, são 
rejeitadas por Dworkin, com fundamento em que se trata 
de uma concepção enganadora, não só do direito, como 
também do raciocínio judicial. Ele pretende, com efeito, 
que o que é incompleto não é o direito, mas antes a 
imagem dele aceite pelo positivista, e que a 
circunstância, de isto assim ser emergirá da sua própria 
concepção ‘interpretativa’ do direito, enquanto inclui, 
além do direito estabelecido explícito, identificado por 
referência às suas fontes sociais, princípios jurídicos 
implícitos, que são aqueles princípios que melhor se 
ajustam ao direito explícito ou com ele mantêm 
coerência, e também conferem a melhor justificação moral 
dele. Neste ponto de vista interpretativo, o direito 
nunca é incompleto ou indeterminado, e, por isso, o juiz 
nunca tem oportunidade de sair do direito e de exercer 
um poder de criação do direito, para proferir uma 
decisão. 
 É, por isso, para esses princípios implícitos, com 
as suas dimensões morais, que os tribunais se deviam 
voltar nesses ‘casos difíceis’, em que as fontes sociais 
do direito não conseguem determinar a decisão sobre 
certo ponto de direito.”197 
 
 
deve resolver o conflito deve ter em conta o peso relativo de cada um. 
(...) 
As regras não têm essa dimensão” (DWORKIN, Ronald. Los derechos en 
serio, p. 75-78). 
196 Na terminologia adotada aqui regras e princípios são espécies que estão 
contidas no gênero norma: “A teoria da metodologia jurídica tradicional 
distinguia entre normas e princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm 
und Grundsatz). Abandonar-se-á aqui essa distinção para, em sua 
substituição, se sugerir: (1) as regras e princípios são duas espécies de 
normas; (2) a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre 
duas espécies de normas” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e 
teoria da constituição, p. 1.034). 
197 HART, Herbert L.A. O conceito de direito, p. 335-336. 
 135
 Com efeito, DWORKIN pensa que a reduzida 
perspectiva positivista que se situa apenas no âmbito das 
normas-regra é que levará os positivistas, em determinados 
casos, a aceitarem a discricionariedade do intérprete. Se 
acaso levassem também em consideração os princípios que 
informam as normas jurídicas concretas (regras), seria 
possível que a sua literalidade fosse desatendida pelo juiz 
quando em desconformidade com algum princípio que se revelasse 
relevante no respectivo caso concreto. Não haveria 
discricionariedade e nem criação de Direito ex post facto. 
 Segundo HART é exatamente no que tange à 
discricionariedade ou não do intérprete que reside o maior 
conflito entre ele e DWORKIN: 
“ O conflito direto mais agudo entre a teoria 
jurídica deste livro e a teoria de Dworkin é suscitado 
pela minha afirmação de que, em qualquer sistema 
jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente não 
regulados em que, relativamente a determinado ponto, 
nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo 
direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se 
como parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em 
tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez 
de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar 
privado de jurisdição, ou remeter os pontos não 
regulados pelo direito existente para a decisão do órgão 
legislativo, então deve exercer o seu poder 
discricionário e criar direito para o caso, em vez de 
aplicar meramente o direito estabelecido pré-existente. 
Assim, em tais casos juridicamente não previstos ou não 
regulados, o juiz cria direito novo e aplica o direito 
estabelecido que não só confere, mas também restringe, 
os seus poderes de criação do direito.”198 
 
 
198 HART, H. L. A. Idem, p. 335. 
 136
 O uso da discricionariedade nas decisões 
judiciais teria lugar sobretudo nos denominados casos 
difíceis199, isto é, aqueles casos em que
há incertezas, seja 
porque existem várias normas que determinariam sentenças 
distintas — no caso de normas contraditórias (incompatíveis) — 
seja porque não existe nenhuma norma exatamente aplicável. 
Neste sentido, segundo Vera KARAM Chueiri: 
“ O positivismo de HART cria artifícios – em face da 
sua estreita concepção do direito – dentre os quais 
destaca-se a idéia da discricionariedade. Sua ocorrência 
diz respeito à imprecisão que determinadas regras 
apresentam, de forma que as mesmas não são suficientes à 
descrição dos fatos, ou ainda, diz respeito à 
inexistência de regras próprias a esta descrição. Essa 
textura aberta da regra permite entenda-se o sistema 
como aberto, apesar da sua autoregulamentação. Há, aqui, 
 
199 Vale dizer que HART admite mesmo que a interpretação de todas as regras, 
dada a textura aberta característica das mesmas, demandam um certo grau de 
discricionariedade; e que nos casos mais importantes o seu uso é 
inevitável: “... Não restam dúvidas de que os tribunais proferem os seus 
julgamentos de forma a dar a impressão de que as suas decisões são a 
conseqüência necessária de regras predeterminadas cujo sentido é fixo e 
claro. Em casos muitos simples, tal pode ser assim; mas na larga maioria 
dos casos que preocupam os tribunais, nem as leis, nem os precedentes em 
que as regras estão alegadamente contidas admitem apenas um resultado. Nos 
casos mais importantes, há sempre uma escolha. O juiz tem de escolher entre 
sentidos alternativos a dar às palavras de uma lei ou entre interpretações 
conflitantes do que um precedente ‘significa’. É só a tradição de que os 
juízes ‘descobrem’ o direito e não o ‘fazem’ que esconde isto e apresenta 
as suas decisões como se fossem deduções feitas com toda a facilidade de 
regras claras preexistentes, sem intromissão da escolha do juiz. As regras 
jurídicas podem ter um núcleo central de sentido indiscutível, e em alguns 
casos pode parecer difícil imaginar que surja uma discussão acerca do 
sentido de uma regra. A previsão do art. 9o da Lei dos Testamentos de 1837, 
que estabelece que deve haver duas testemunhas em cada testamento, pode 
razoavelmente parecer que não dará origem a problemas de interpretação. 
Contudo, todas as regras têm uma penumbra de incerteza em que o juiz tem de 
escolher entre alternativas. Mesmo o sentido da previsão aparentemente 
inocente da Lei dos Testamentos de que o testador deve assinar o testamento 
pode revelar-se duvidosa em certas circunstâncias. E se o testador usou um 
pseudônimo? Ou se alguém pegou na mão dele para fazer a assinatura? Ou se 
ele escreveu apenas as suas iniciais? Ou se ele pôs o seu nome completo, 
correto e sem auxílio, mas no princípio da primeira página, em vez de no 
fim da última? Poderiam ser todos estes casos considerados como ‘assinar’, 
no sentido da regra jurídica?” (HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito, 
p. 16-17). 
 137
duas questões insurgentes: a primeira, relativamente às 
lacunas existentes no direito e à inexistência de uma 
resposta (certa) a pretensão de um direito. A segunda, 
relativamente ao poder discricionário do juiz de criar o 
direito.”200 
 
 Para o positivismo de HART, portanto, nas 
ocasiões em que não exista uma norma exatamente aplicável o 
juiz deve decidir com discricionariedade pois, considerando 
que o direito não pode oferecer respostas a todos os casos que 
aparecem, não se pode falar na existência prévia de uma 
solução correta. DWORKIN, ao contrário, sustentará que os 
casos difíceis têm sim uma resposta correta. 
 E é na tentativa de demonstrar essa 
possibilidade que estará centrada toda a sua obra até então 
existente. Uma vez ciente da diferença entre regras e 
princípios e o papel que estas duas classes de norma 
desempenham, o intérprete (para essa função DWORKIN propõe um 
modelo de juiz ideal: Hércules) deverá encontrar a melhor 
perspectiva de interpretação do objeto analisado dadas 
determinadas circunstâncias201, sendo que a cada caso novo os 
princípios invocados poderão receber diferentes medidas. 
 Para DWORKIN a atitude interpretativa de 
Hércules — que conduz a uma busca incessante de critérios 
 
200 CHUEIRI, Vera Karam. Filosofia do direito e modernidade: dworkin e a 
possibilidade de um discurso instituinte de direitos, p. 93. 
201 Não se trata aqui, portanto, de descobrir os motivos e intenções do 
autor (do legislador). 
 138
decisórios — deve se desenvolver em três etapas202, cuja base 
teórica é retirada sobretudo, conforme aduz ATIENZA, a partir 
do pensamento de GADAMER: 
“ ... A primeira, que Dworkin denomina pré-
interpretativa, consiste na identificação dessa prática 
e tem basicamente, mas não exclusivamente, caráter 
descritivo. A segunda — a fase interpretativa — centra-
se no estabelecimento de um valor a esta prática: 
consiste, pois, em apresentar uma justificação geral dos 
princípios que se ajustem à prática em questão de 
maneira que seja uma interpretação e não uma invenção. E 
a terceira é a fase pós-interpretativa ou reformadora, 
na qual se trata de modificar ou reformular a prática 
para que satisfaça melhor seu sentido, isto é, para que 
se ajuste melhor à justificação geral estabelecida na 
etapa anterior.”203 
 
 Vale dizer que a análise e avaliação dos 
princípios se dará através de uma argumentação racional em que 
critérios morais também atuarão, assim como são morais os 
argumentos de repúdio à tese da discricionariedade, cuja 
admissão resultaria em conseqüências inaceitáveis e odiosas. 
Com efeito, a sua admissão levaria à subversão do princípio da 
tripartição dos poderes204; na aplicação de lei com efeitos 
 
202 Essas etapas estão descritas no capítulo II da obra Law’s Empire 
(DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo, 
São Paulo: Martins Fontes, 1999) e, mais detalhadamente, na Parte Dois da 
obra A Matter of Principle (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 
Tradução de Luís Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 2000). 
203 RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Derecho y argumentación, p. 121. 
204 “O modelo de Dworkin evita vários problemas importantes: o primeiro, que 
o juiz não se constitua em legislador, o que significa que o poder 
judiciário tem como função garantir direitos pré-estabelecidos. 
Em segundo lugar: a tese de Dworkin é compatível com o postulado da 
separação dos poderes, posto que o juiz está subordinado à lei e ao 
direito. O poder judiciário é ‘nulo’ — como afirmava Montesquieu — porque 
sua função é garantir direitos. 
Em terceiro lugar: o modelo da resposta correta rechaça a teoria do 
silogismo, mas aceita seu princípio político básico: o juiz não tem e nem 
 139
retroativos205; e no reconhecimento, ao menos em alguns casos 
(logo os mais importantes), da incapacidade da razão (o 
positivismo aqui é acusado de irracionalismo).206 
 A partir dessas críticas se seguiu um grande 
debate entre DWORKIN e HART que, por sua vez, estendeu-se à 
comunidade jurídica internacional, sendo este também um dos 
debates mais em voga na atualidade. 
 Limitemo-nos a apresentar as objeções feitas 
por HART contra as principais críticas que lhe foram dirigidas 
por DWORKIN.207 
 
 
pode ter poder político. A função do juiz é garantir os direitos 
individuais e não indicar objetivos sociais. A função judicial é distinta 
da legislativa e da executiva. 
Em quarto lugar: nos casos difíceis os juízes não baseiam suas 
decisões em objetivos sociais ou diretrizes políticas. Os casos difíceis se 
resolvem com base em princípios que fundamentam direitos.” (CALSAMIGLIA, A. 
Ensayo sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio, prólogo, 
p. 21). 
205 Já que
o direito novo criado pelo juiz estaria sendo aplicado a fatos 
pretéritos. 
 
206 “O positivismo jurídico, conforme já foi mencionado, parte do 
pressuposto de que pode haver uma zona de imprecisão no direito, 
relativamente à vagueza que uma determinada regra positiva apresenta e por 
isso deve o juiz lançar mão da sua discricionariedade, resolvendo acerca 
dos direitos das partes como bem lhe aprouver” (CHUEIRI, Vera Karam. Obra 
citada, p. 94). Quanto à defesa de uma postura irracionalista nas ocasiões 
em que surgem essas zonas de imprecisão, de penumbra, enfim, os chamados 
casos limítrofes em que geralmente estão contidos os casos difíceis que 
justificariam o uso da discricionariedade pelos juízes, DWORKIN faz 
surpreendentes acusações dirigidas ao positivismo: “Além do mais, a tese do 
caso limítrofe é pior que um insulto (...) ...se trata de uma piada 
grotesca” (DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 50-54). 
207 Essas objeções foram publicadas em forma de pós-escrito na 2ª edição da 
obra The Concept of Law”, constante da edição portuguesa de 1994 (HART, 
Herbert L. A. O conceito de direito. 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes, 
Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 1994). 
 140
 
 Para DWORKIN, como visto, a discrição judicial 
que tem lugar na interpretação de casos difíceis, em que o 
juiz atuaria como quase-legislador, é insustentável. Veja-se 
que DWORKIN usa o termo discrição em seu sentido mais forte, 
ou seja, entendendo que nos casos difíceis o juiz teria total 
liberdade para criar direito. HART repudia essa interpretação, 
vez que nunca advogou, segundo ele, essa tal liberdade sem 
freios. Deixemos HART falar: 
“ É importante que os poderes de criação que eu 
atribuo aos juízes, para resolverem os casos 
parcialmente deixados por regular pelo direito, sejam 
diferentes dos de um órgão legislativo: não só os 
poderes do juiz são objeto de muitos constrangimentos 
que estreitam a sua escolha, de que um órgão legislativo 
pode estar consideravelmente liberto, mas, uma vez que 
os poderes do juiz são exercidos apenas para ele se 
libertar de casos concretos que urge resolver, ele não 
pode usá-los para introduzir reformas de larga escala ou 
novos códigos. Por isso, os seus poderes são 
intersticiais, e também estão sujeitos a muitos 
constrangimentos substantivos. Apesar disso, haverá 
pontos em que o direito existente não consegue ditar 
qualquer decisão que seja correta e, para decidir os 
casos em que tal ocorra, o juiz deve exercer os seus 
poderes de criação do direito. Mas não deve fazer isso 
de forma arbitrária: isto é, ele deve sempre ter certas 
razões gerais para justificar a sua decisão e deve agir 
como um legislador consciencioso agiria, decidindo de 
acordo com as suas próprias crenças e valores. Mas se 
ele satisfizer estas condições, tem o direito de 
observar padrões e razões para a decisão, que não são 
ditadas pelo direito e podem diferir dos seguidos por 
outros juízes confrontados com casos difíceis 
semelhantes.”208 
 
 
208 HART, Herbert L. A. Obra citada, p. 336. 
 141
 Portanto, frente aos casos difíceis os juízes 
não gozam, definitivamente, de discrição em sentido forte, nem 
suas decisões podem ser arbitrárias, pois deverão sempre 
justificar suas razões e observar certos padrões dogmáticos, 
bem como estar alinhados com postulados de racionalidade 
prática, tais como os princípios de universalidade, 
consistência, coerência e aceitabilidade das conseqüências.209 
 Ademais, outro aspecto que parece ter sido 
omitido pela crítica de DWORKIN é o fato de que, em muitos 
casos, os juízes fazem uso da analogia:210 
“ Uma consideração principal ajuda a explicar a 
resistência à pretensão de que os juízes, por vezes, não 
só criam, como aplicam direito, elucida também os 
principais aspectos que distinguem a criação do direito 
judicial da criação pelo órgão legislativo. Trata-se da 
importância caracteristicamente ligada pelos tribunais, 
quando decidem casos não regulados, ao procedimento por 
analogia, de forma a assegurarem que o novo direito que 
criam, embora seja direito novo, está em conformidade 
com os princípios ou razões subjacentes, reconhecidos 
como tendo já uma base no direito existente.”211 
 
209 Manuel ATIENZA assim descreve alguns desses princípios de racionalidade 
prática: “...o princípio de universalidade ou de justiça formal que 
estabelece que os casos iguais devem ser tratados da mesma maneira; o 
princípio de consistência, segundo o qual as decisões devem se basear em 
premissas normativas e fáticas que não entrem em contradição com normas 
validamente estabelecidas ou com a informação fática disponível; e o 
princípio de coerência, segundo o qual as normas devem poder ser subsumidas 
sob princípios gerais ou valores que resultem aceitáveis, no sentido de que 
configurem uma forma de vida satisfatória (coerência normativa), enquanto 
os fatos não comprovados mediante prova direta devem resultar compatíveis 
com os demais fatos tidos como provados, e devem poder ser explicados em 
conformidade com os princípios e leis que regem o mundo fenomênico 
(coerência narrativa)” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Tras la justicia: una 
introducción al derecho y al razonamiento jurídico, p. 137). 
210 Parece que neste ponto até mesmo aquela idéia de que as regras ou se 
aplicam totalmente ou não se aplicam, fica comprometida, vez que o juízo 
por analogia é um caso típico de utilização/invocação da norma geral 
inclusiva, conforme aduz BOBBIO em seus ensinamentos (ver BOBBIO, Norberto. 
Teoria do ordenamento jurídico, capítulo 4). 
211 HART, H. L. A. Obra citada, p. 337. 
 142
 
 Tentando demonstrar que talvez o positivismo 
jurídico não seja — e talvez nunca tenha sido — incompatível 
com a teoria de DWORKIN — e que as críticas formuladas por 
este último são até mesmo despropositadas — HART afirma que a 
atitude interpretativa propugnada por aquele autor nunca 
deixou de ser observada pelos positivistas: 
“ ... É verdade que, quando certas leis ou 
precedentes concretos se revelam indeterminados, ou 
quando o direito explícito é omisso, os juízes não 
repudiam os seus livros de direito e desatam a legislar, 
sem a subseqüente orientação do direito. Muito 
freqüentemente, ao decidirem tais casos, os juízes citam 
qualquer princípio geral, ou qualquer objetivo ou 
propósito geral, que se pode considerar que determinada 
área relevante do direito exemplifica ou preconiza, e 
que aponta para determinada resposta ao caso difícil que 
urge resolver. Isto, na verdade, constitui o próprio 
núcleo da ‘interpretação construtiva’ que assume uma 
afeição tão proeminente na teoria do julgamento de 
Dworkin.”212 
 
 Porém HART, que não admite que em todos os 
casos se possa chegar com certeza a uma decisão correta (ou 
afirmar qual das decisões possíveis é a mais correta), mantém 
sua posição de que, nestes casos, o juiz é e pode ser criador 
de direito: 
“ ... Mas embora este último processo, seguramente, o 
retarde, a verdade é que não elimina o momento de 
criação judicial de direito, uma vez que, em qualquer 
caso difícil, podem apresentar-se diferentes princípios 
que apóiam analogias concorrentes, e um juiz terá 
freqüentemente de escolher entre eles, confiando, como 
um legislador consciencioso, no seu sentido sobre aquilo 
que é melhor, e não em qualquer ordem de prioridades já 
 
212 HART, H. L. A. Obra citada, p. 337-338. 
 143
estabelecida e prescrita pelo direito relativamente a 
ele, juiz. Só se, para tais casos, houvesse sempre de se 
encontrar no direito existente um determinado conjunto 
de princípios de ordem superior atribuindo ponderações 
ou prioridades relativas a tais princípios concorrentes 
de ordem inferior, é que o momento de
criação judicial 
de direito não seria meramente diferido, mas 
eliminado.”213 
 
 Ora, há a possibilidade de que dois princípios 
contraditórios se revelem de igual envergadura na apreciação 
de uma caso concreto, o que demandará uma opção. Tal opção, 
apesar do dever de justificação, implicará discricionariedade, 
pois não existe um critério seguro que possa medir o peso dos 
princípios em cada caso. 
 A existência de um critério tal só poderia ser 
viável se supuséssemos a crença em uma homogeneidade de 
princípios e valores (tanto sociais quanto jurídicos). Mas a 
defesa de um objetivismo moral, segundo ABELLÁN, parece 
inaceitável, vez que: 
“ ...todos os sistemas jurídicos contemporâneos, sem 
exceção, são o resultado de uma produção normativa muito 
dilatada no tempo, são fruto não de uma, mas de muitas 
políticas jurídicas contrastantes entre si; tendo 
incorporado, por isso, uma grande quantidade de 
princípios e regras incompatíveis. É sustentável que 
uma, e só uma, doutrina política (que se supõe 
internamente coerente), seja idônea para justificar todo 
princípio e toda regra do sistema?”214 
 
 
213 HART, H. L. A. Obra citada, p. 338. 
214 ABELLÁN, Marina Gascón. La técnica del precedente y la argumentación 
racional, p. 25. 
 144
 Dada a heterogeneidade dos valores, poder-se-ia 
mesmo imaginar a existência de dois juízes Hércules, 
igualmente racionais e que certamente chegariam à conclusão — 
diante de certas decisões não convergentes tomadas por eles em 
algumas situações — de que “...muitos casos podiam ser 
decididos num sentido ou noutro”.215 
 Quanto à acusação de que o ato criativo do juiz 
implica efeitos retroativos à norma, também parece 
desarrazoada: 
“ Dworkin formula uma outra acusação de que a criação 
judicial do direito é injusta e condena-a como uma forma 
de legislação retroativa ou de criação de direito ex 
post facto, a qual é, com certeza, considerada, de forma 
geral, como injusta. Mas a razão para considerar injusta 
a criação de direito reside em que desaponta as 
expectativas justificadas dos que, ao agirem, confiaram 
no princípio de que as conseqüências jurídicas dos seus 
atos seriam determinadas pelo estado conhecido do 
direito estabelecido, ao tempo dos seus atos. Esta 
objeção, todavia, mesmo que valha contra uma alteração 
retroativa do direito por um tribunal, ou contra um 
afastamento do direito estabelecido, parece bastante 
irrelevante nos casos difíceis, uma vez que se trata de 
casos que o direito deixou regulados de forma incompleta 
e em que não há um estado conhecido do direito, 
claramente estabelecido, que justifique expectativas.”216 
 
 Ademais, a resolução de um conflito entre 
princípios não supõe a criação de um novo direito nem a 
aplicação de uma norma retroativa, pois aqui se trata 
simplesmente de uma eleição entre direitos. 
 
215 HART, H. L. A. Obra citada, p. 337. 
216 HART, H. L. A. Idem, p. 339. 
 145
 Quanto à crítica de que a discricionariedade do 
juiz subverte os princípios democráticos originários de 
“...uma longa tradição européia e uma doutrina de divisão de 
poderes que dramatizam a distinção entre o Legislador e o Juiz 
e insistem em que o Juiz deve aparecer, em qualquer caso, como 
sendo aquilo que é, quando o direito existente é claro, ou 
seja, um mero ‘porta-voz’ do direito, que ele não cria ou 
molda”217, HART a rebate com uma mescla entre os denominados 
argumento pelo sacrifício218 e argumento pragmático:219 
“ As outras críticas de Dworkin à minha concepção de 
poder discricionário judicial condenam esta última, não 
por ser descritivamente falsa, mas por dar apoio a uma 
forma de criação de direito que é antidemocrática e 
injusta. Os juízes não são, em regra, eleitos e, numa 
democracia, segundo se alega, só os representantes 
eleitos do povo deveriam ter poderes de criação do 
direito. Existem muitas respostas a esta crítica. Que 
aos juízes devem ser confiados poderes de criação do 
 
217 HART, H. L. A. Idem, p. 337. 
218 Sobre o argumento pelo sacrifício, afirma PERELMAN: “Um dos argumentos 
de comparação utilizados com mais freqüência é o que alega o sacrifício a 
que se está disposto a sujeitar-se para obter certo resultado. 
 (...) 
Na argumentação pelo sacrifício, este deve medir o valor atribuído 
àquilo por que se faz o sacrifício” (PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, 
Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. 281-282). 
219 Ainda segundo os autores do Tratado: “Denominamos argumento pragmático 
aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas 
conseqüências favoráveis ou desfavoráveis. (...) 
Para os utilitaristas, como Bentham, não há outra forma satisfatória 
de argumentar: 
Que é dar uma boa razão em matéria de lei? É alegar bens ou 
males que essa lei tende a produzir... Que é dar uma falsa razão? É 
alegar, pró ou contra uma lei, qualquer outra coisa que não seus 
efeitos, seja em bem, seja em mal. 
O argumento pragmático parece desenvolver-se sem grande dificuldade, 
pois a transferência para a causa, do valor das conseqüências, ocorre mesmo 
sem ser pretendido. Entretanto, quem é acusado de ter cometido uma má ação 
pode esforçar-se por romper o vínculo causal e por lançar a culpabilidade 
em outra pessoa ou nas circunstâncias. Se conseguir inocentar-se terá, por 
esse próprio fato, transferido o juízo desfavorável para o que parecerá, 
nesse momento, a causa da ação” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra 
citada, p. 303). 
 146
direito para resolver litígios que o direito não 
consegue regular, pode ser encarado como o preço 
necessário que se tem de pagar para evitar o 
inconveniente de métodos alternativos de regulamentação 
desses litígios, tal como o reenvio da questão ao órgão 
legislativo, e o preço pode parecer baixo se os juízes 
forem limitados no exercício destes poderes e não 
puderem modelar códigos ou amplas reformas, mas apenas 
regras para resolver as questões específicas suscitadas 
por casos concretos. Em segundo lugar, a delegação de 
poderes legislativos limitados ao Executivo constitui um 
traço familiar das democracias modernas e tal delegação 
ao Poder Judiciário não parece constituir uma ameaça 
mais séria à democracia. Em ambas as formas de 
delegação, um órgão legislativo eleito terá normalmente 
um controle residual e poderá revogar ou alterar 
quaisquer leis autorizadas que considere inaceitáveis. É 
verdade que quando, como nos E.U.A., os poderes do órgão 
legislativo são limitados por uma constituição escrita e 
os tribunais dispõem de amplos poderes de fiscalização 
da constitucionalidade das leis, um órgão legislativo 
democraticamente eleito pode encontrar-se na situação de 
não poder modificar um ato de legislação judicial. 
Então, o controle democrático em última instância só 
pode ser assegurado através do dispositivo complexo da 
revisão constitucional. Isso é o preço que tem de pagar-
se pela consagração de limites jurídicos ao poder 
político.”220 
 
 
220 HART, Herbert L. A. Obra citada, p. 338-339. Como o próprio PERELMAN 
diz, “...em geral, o argumento pragmático só pode desenvolver-se a partir 
do acordo sobre o valor das conseqüências” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, 
L. Obra citada, p. 304). No caso específico de que se trata acima, dada a 
constatação, que já vem de longe, de que “...as tentativas da Escola da 
Exegese na França e da Jurisprudência conceitual na Alemanha para manter a 
idolatria da lei não obtiveram êxito [vez que] o pensamento formal, 
manifestado por cláusulas gerais e métodos silogísticos, foi insuficiente 
para vincular o juiz à lei, no sentido estreito formulado pelos teóricos” 
(BOITEUX, Elza Antônia Pereira Cunha. O significado perdido da função
de 
julgar, p. 23), muitos estudos têm sido realizados, com grande aceitação, 
propugnando pela revisão da noção ortodoxa do princípio da legalidade, como 
demonstra Clèmerson Merlin CLÈVE ao afirmar que “...a missão dos juristas, 
hoje, é de adaptar a idéia de Montesquieu à realidade constitucional de 
nosso tempo. Nesse sentido, cumpre aparelhar o Executivo, sim, para que ele 
possa, afinal, responder às crescentes e exigentes demandas sociais. Mas 
cumpre, por outro lado, aprimorar os mecanismos de controle de sua ação, 
para o fim de torná-los (os tais mecanismos) mais seguros e eficazes” 
(CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo no 
estado contemporâneo e na constituição de 1988, p. 42). Há fortes razões 
que indicam, portanto, que a argumentação de HART acima transcrita tem 
consistência e que, por isso mesmo, não pode ser negligenciada. 
 147
 De todas as considerações feitas até aqui sobre 
o pensamento de DWORKIN, uma coisa não se pode negar: as 
justificações nos casos difíceis têm sempre um forte 
componente moral; e que talvez por isso DWORKIN esteja certo 
ao dizer que o divórcio entre direito e moral não seja mesmo 
tão claro como sustentam os positivistas. Seja como for, sob a 
ótica interna221 ao sistema — e fora dos casos difíceis — não 
há razões para que o positivismo jurídico abandone a tese da 
separação entre direito e moral, pois os princípios jurídicos 
não precisam coincidir necessariamente com enunciados morais 
ou políticos. A moral certamente entrará em cena quando o 
problema em questão envolva a opção entre dois ou mais 
princípios jurídicos. 
 Mas ao menos sob outro aspecto — que não nos 
casos difíceis — razões morais, ainda que implicitamente, são 
aplicadas pelo juiz. Para HART o ponto de vista interno é 
suficiente para dar conta das normas, mas aqui o autor só 
presta atenção ao aspecto cognoscitivo e não ao aspecto 
volitivo, conforme aduz ATIENZA: 
 
221 Aproveitando a noção de HART quanto ao ponto de vista do observador: 
“... À primeira destas formas de expressão chamaremos uma afirmação 
interna, porque manifesta o ponto de vista interno e é naturalmente usada 
por quem, aceitando a regra de reconhecimento e sem declarar o fato de que 
é aceite, aplica a regra, ao reconhecer uma qualquer regra concreta do 
sistema como válida. À segunda forma de expressão chamaremos afirmação 
externa, porque é a linguagem natural de um observador externo ao sistema 
que, sem aceitar ele próprio a regra de reconhecimento desse sistema, 
enuncia o fato de que outros a aceitam” (HART, Herbert L.A. Obra citada, p. 
114). 
 148
“ ... O componente cognoscitivo do ponto de vista 
interno consiste em valorar e compreender a conduta em 
termos de standards que devem ser usados pelo agente 
como guia de sua conduta. Mas, também, existe um 
componente volitivo que consiste no fato de o agente, em 
algum grau, e por razões que a ele parecem boas, admitir 
um compromisso de se submeter a um modelo de conduta 
dado como um standard para ele, para outra pessoa ou 
para ambos. Este último aspecto é de grande importância 
na relação de aceitação da regra de conhecimento que, 
efetivamente, leva consigo um compromisso consciente com 
os princípios políticos subjacentes ao ordenamento 
jurídico. Para os juízes, definitivamente, a aceitação 
da regra de reconhecimento e da obrigação de aplicar o 
Direito válido se baseia em razões desse segundo tipo 
[volitivas], que não podem ser outra coisa senão razões 
morais.”222 
 
 Portanto, o simples fato de o intérprete tomar 
uma norma do sistema, após submetê-la ao teste do seu pedigree 
ou de sua origem frente à regra de reconhecimento223, aceitar a 
sua autoridade e aplicá-la, já representa em si mesmo a 
interferência de uma regra moral, conforme aduz L. S. SOUZA: 
“ A primeira regra do jogo dogmático é a aceitação 
acrítica do ordenamento vigente. Mas qual seria o 
pressuposto teórico desta aceitação? Sem dúvida, a 
crença num princípio de autoridade. Isto nos conduz a 
 
222 RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la 
argumentación jurídica, p. 154. 
223 As doutrinas positivistas mais desenvolvidas utilizam como critério de 
identificação do sistema jurídico uma norma chave. Tal é o caso da norma 
fundamental de KELSEN ou a regra de reconhecimento de HART. A regra de 
reconhecimento de HART consiste em uma prática social que estabelece que as 
normas que satisfazem certa condição são válidas. Cada sistema normativo 
tem sua própria regra de reconhecimento e seu conteúdo varia e é uma 
questão empírica. Há sistemas normativos que reconhecem como fonte do 
direito um livro sagrado, ou a lei, ou os costumes, ou várias fontes ao 
mesmo tempo. A regra de reconhecimento é o critério utilizado por HART para 
identificar um sistema jurídico e fundamentar a validade de todas as regras 
dela derivadas. O teste de pedigree consiste exatamente em verificar se uma 
regra existe, se ela é válida perante a regra de reconhecimento, pois, 
repita-se, é dela que todas as regras devem retirar seu fundamento de 
validade. Ainda sobre o teste de pedigree, segundo DWORKIN as 
normas/princípio não estariam sujeitas a este exame, já que elas não se 
sujeitariam ao tudo ou nada e nem poderiam ser identificadas por sua 
origem, mas sim por seu conteúdo ou força argumentativa. 
 149
uma segunda regra, da qual advém importantes 
conseqüências, qual seja, a crença na racionalidade do 
legislador. Em nome desta premissa, o estudioso do 
direito abandona uma posição de simples descrição do 
ordenamento, a fim de justificar o ponto de partida 
dogmático.”224 
 
 Neste ponto chega-se ao problema, já explanado 
anteriormente, da legitimidade. 
 Em suas críticas ao positivismo, DWORKIN tem o 
mérito de recolocar o problema da moral — ou de desvelar o que 
se tentou ocultar — em dois momentos importantes da aplicação 
da norma: a) com sua teoria que distingue as normas entre 
regras e princípios, pode-se perceber mais claramente que, nos 
casos difíceis, em que geralmente estarão em conflito 
princípios jurídicos aceitos no sistema, a justificação da 
escolha implicará, ainda que não isoladamente, a invocação de 
critérios morais (justiça, eqüidade, etc); e b) a aceitação 
(numa perspectiva volitiva) da regra de reconhecimento, do 
ponto de vista interno ao sistema, também implica questões 
morais, que neste ponto estão diretamente ligadas ao problema 
da legitimidade. 
 A exceção da insistência de DWORKIN de que se 
pode chegar sempre a uma solução correta em todos os casos225, 
 
224 SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento 
das lacunas no direito, p. 56. 
225 O que ensejou o surgimento de alguns autores que interpretaram a sua 
obra como uma nova versão do jusnaturalismo (cf. CALSAMIGLIA, A. Ensayo 
sobre dworkin. In: DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio, prólogo, p. 11). 
 150
a sua teoria em nenhum outro aspecto é incompatível com o 
positivismo jurídico. Talvez se dê exatamente o contrário. 
Considerando os seus preciosos estudos sobre o tema da 
interpretação e suas etapas; a sua elaboração do critério que 
distingue as normas entre regras e princípios; e o seu 
reconhecimento de que as questões de integridade e coerência 
(o que implica a submissão ao sistema normativo reconhecido) 
devem ter um peso decisivo226 arriscamos mesmo a dizer que a 
teoria de DWORKIN seja um aperfeiçoamento do próprio 
positivismo jurídico que, paradoxalmente, ele próprio tentou 
fulminar. 
 Com DWORKIN o positivismo ressurge das cinzas 
que ele (DWORKIN) mesmo ajudara a produzir; tal qual Fênix o 
positivismo reaparece mais vivo do que nunca, revigorado por 
um refinamento
sem precedentes, tributário da obra de DWORKIN. 
 
 “Significa alguma coisa afirmar que os juízes devem aplicar a lei, ao 
invés de ignorá-la, que o cidadão deve obedecer à lei, a não ser em casos 
muito raros, e que os funcionários públicos são regidos por suas normas. 
Parece estúpido negar tudo isso simplesmente porque às vezes divergimos 
sobre o verdadeiro conteúdo do direito” (DWORKIN, Ronald. O império do 
direito, p. 54). Ver, ainda, os capítulos VI e VII da mesma obra. Enfim, 
como diz Vera KARAM: “Dworkin é um moderno; sua desobediência sempre 
civil!” (CHUEIRI, Vera Karam. Obra citada, p. 65). 
226
 151
 
3. A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN COMO PRECURSORA DE UMA 
TEORIA GERAL DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 
 
“Por isso poderá ser vantajoso 
dissimular algumas de nossas armas. 
Pois o adversário as reclama com 
insistência e amiúde faz com que 
delas dependa o desfecho da causa, 
crendo que não as temos; reclamando 
nossas provas, confere-lhes autorida-
de.” 
Quintiliano 
 
“A conciliação do irreconciliável, a 
mescla das antíteses, a síntese das 
oposições, eis os grandes problemas 
do direito.” 
Benjamin N. Cardozo 
 
“A filosofia constitui o domínio, não 
da verdade, mas da tolerância. Nada 
há mais intolerante do que a 
verdade.” 
Perelman 
 
 
3.1 Lógica Formal e Argumentação Jurídica 
 A análise histórico-crítica contida nos dois 
primeiros capítulos deste trabalho poderá eventualmente ser 
acusada de não ter acrescido muito — ou quase nada — àquilo 
que se conhece e que até mesmo já se tornou senso comum em 
Teoria Geral do Direito. 
 152
 Mas ao menos dois motivos, em nosso entender, 
justificam a presença de ambos nessa empreitada: o primeiro, 
de caráter formal, é que o tema a ser tratado neste capítulo 
estará melhor situado e seu ponto de partida justificado, 
evitando-se assim a proliferação de notas de rodapé para 
infindáveis contextualizações e, o que seria mais grave, 
eventuais acusações de petitio principii; o segundo, de 
caráter material, e que para nós é mais importante, é o fato 
de que, ao menos, uma premissa pode ser estabelecida: o velho 
tema das relações entre a moral e o direito permanece estando 
no fundo de todo grande debate sobre a teoria do direito. 
 Isso não significa dizer, contudo, que o 
positivismo jurídico, na sua forma atual, saiu derrotado de 
seus esforços de estabelecer a divisão do direito e da moral, 
que se tenha que retroceder, voltando ao realismo jurídico, a 
alguma postura sociológica ou econômica (os sociologismos),e 
até mesmo, o que seria pior, a alguma forma de jusnaturalismo. 
 Na verdade, ainda que a metodologia jurídica 
não possa se valer de elementos externos ao sistema (inclusive 
morais) para fundar decisões, permanecendo aqui a divisão, não 
se pode negar que a admissão mesma da autoridade de um sistema 
 153
normativo já implica uma valoração moral, que neste aspecto é 
imanente ao próprio sistema.227 
 Também na valoração dos princípios jurídicos 
que servirão de apoio a uma decisão — e aqui isso é evidente — 
não se pode negar o forte componente moral subjacente. Até 
mesmo nos problemas jurídicos mais banais, em que não há 
dúvidas quanto aos fatos e nem quanto à qualificação da norma 
aplicável, não estará ausente algum critério, ainda que 
mínimo, moral. Para Karl LARENZ “...a isso subjaz a 
constatação de que na apreciação jurídica — v.g., considerar 
determinado comportamento como ‘negligente’ — se insinuam 
sempre e permanentemente valorações”228, pois “...nenhum 
procedimento dedutivo logicamente correto garante resultados 
intrinsecamente adequados, quando na cadeia dedutiva se 
introduzem premissas assentes em valorações”.229 
 A dedução judicial se dá no âmbito de uma 
racionalidade prática, informal, já que “...o discurso 
jurídico é um ‘caso particular do discurso prático geral’”.230 
 
227 Não se afirma, contudo, um retorno daquelas teorias partidárias de que 
as obrigações jurídicas devem necessariamente se conformar com a moral, 
como, por exemplo, a teoria do mínimo ético descrita por REALE, “...a 
‘teoria do mínimo ético’ pode ser reproduzida através da imagem de dois 
círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor 
o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o 
Direito envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem, 
que ‘tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico’” 
(REALE, Miguel. Lições preliminares de direito 42). , p.
228 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 2. 
229 LARENZ, K. Idem, ibidem. 
230 LARENZ, K. Idem, p. 212-213. 
 154
Indo adiante, numa comparação entre discurso moral — que 
também faz parte do discurso prático geral — e discurso 
jurídico, alguns já inferem que “...o raciocínio moral não é 
um caso empobrecido do raciocínio jurídico, posto que este 
último [o raciocínio jurídico] é ‘um caso especial, altamente 
institucionalizado e formalizado, de raciocínio moral’”.231 
 Diga-se desde de logo que o raciocínio jurídico 
não é só governado pela razão prática geral, já que sofre 
limitações internas: 
“ ...‘pois que a argumentação jurídica tem lugar sob 
uma série de condições limitativas’. Estas condições 
seriam: ‘a vinculação à lei, a consideração que se exige 
pelos precedentes, a chancela da dogmática resultante da 
ciência jurídica institucionalmente cultivada’, bem 
como, excetuando o discurso juscientífico, ‘as 
restrições decorrentes das regras dos códigos de 
processo’. E sendo assim, também é mais restrita a 
pretensão de justeza que suscitam as asserções jurídicas 
face às do ‘discurso prático geral’. ‘Não se pretende 
dizer, de modo puro e simples, que o enunciado normativo 
que se afirma, que se propõe ou que se expressa num ato 
de julgar é racional, mas que só pode ser racionalmente 
fundamentado nos quadros da ordem jurídica vigente’.”232 
 
 As limitações internas da racionalidade prática 
jurídica não se restringem apenas a isso, já que a 
racionalidade jurídica, ainda que naturalmente comprometida 
com a otimização dos procedimentos destinados à resolução 
 
231 RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Las razones del derecho: teorías de la 
argumentación jurídica, p. 157. Tal pensamento, que é inspirado em 
HABERMAS, tem sido adotado por ALEXY e MACCORMICK em suas respectivas 
teorias da argumentação jurídica. 
232 LARENZ, K. Obra citada. p. 213. 
 155
prática dos conflitos sociais, não deixa de se valer do uso da 
força. 
 Com efeito, “...o Direito não é só razão, ou 
argumentação: é também burocracia e, sobretudo, violência 
institucionalizada, em doses variáveis, porém nunca 
desprezíveis”.233 
 Além do mais, “...a racionalidade jurídica — 
inclusive a do direito do estado democrático — não é só uma 
racionalidade em si mesma limitada — posto que o Direito não 
pode deixar de fazer uso da força — mas também está 
condicionado, desde fora, pelos pressupostos econômicos, 
culturais, políticos, ideológicos, etc. que tornam possível 
esse tipo de Direito”.234 
 Não se pretende afirmar, no entanto, que essas 
limitações — externas ou internas — escapam totalmente à 
crítica, que os modelos jurídicos existentes não possam se 
questionados no âmbito de uma discussão racional, em que os 
próprios fins perseguidos e a utilização de determinados meios 
sejam colocados em cheque (pelos participantes do discurso). 
 
233 RODRIGUEZ, M. A. Derecho y argumentación, p. 15. 
234 RODRIGUEZ, M. A. Idem, p. 16-17. 
 156
 Mas que âmbito é este em que se opera uma 
discussão racional, ou melhor, em que sentido se pode falar em
racionalidade jurídica e qual o seu alcance?235 
 Uma resposta a essa pergunta não pode 
prescindir, antes de tudo, de uma análise das práticas 
jurídicas existentes, da forma como têm sido efetivamente 
solucionados seus problemas, enfim, quais os modelos básicos 
do pensar jurídico na atualidade. A análise estará centrada, 
portanto, no positivismo jurídico atual e os problemas que tem 
enfrentado. 
 A prática jurídica consiste, fundamentalmente, 
em argumentar. O trabalho dos órgãos jurisdicionais e, em 
geral, dos aplicadores do direito, como o dos doutrinadores, 
consiste principalmente em produzir argumentos para a 
resolução de casos, sejam eles concretos (individuais) ou 
genéricos, reais ou fictícios: 
“ ... Argumentar constitui, definitivamente, a 
atividade central dos juristas e se pode dizer inclusive 
que há muito poucas profissões — se é que há alguma — em 
 
235 Não se pode olvidar da já abordada crise por que tem passado a razão no 
século XX, cujos reflexos, evidentemente, estão se fazendo sentir também no 
âmbito jurídico. Com efeito, a admissão por si só da pergunta acima como 
algo que se deva levar a sério já é um forte indício da existência de uma 
crise. São vários os autores que tomam essa crise como ponto de partida em 
seus trabalhos. Por exemplo LARENZ, que já no início de uma de suas 
principais obras admite: “Fala-se de ‘perdas de certeza no pensamento 
jurídico’, considera-se a opção metódica como arbitrária, propende-se a 
aceitar como satisfatórias não já as soluções reconhecidamente adequadas 
mas apenas ‘plausíveis’ ou ‘suscetíveis de consenso’, ou remetem-se os 
juristas para as ciências sociais como as únicas donde poderiam esperar 
conhecimentos relevantes” (LARENZ, Karl. Obra citada, p. 1-2). 
 157
que a argumentação tenha um papel mais importante que no 
Direito.”236 
 
 Em princípio, podem ser apontadas três áreas 
distintas em que se efetuam argumentações jurídicas: a) na 
produção de normas jurídicas; b) na aplicação das normas 
jurídicas; e c) na dogmática jurídica.237 
 O campo da argumentação na produção das normas 
jurídicas pode ser subdividido em dois momentos: as 
argumentações que têm lugar numa fase pré-legislativa e as que 
são produzidas numa fase propriamente legislativa. As 
primeiras delas se efetuam como conseqüência do surgimento de 
um problema social cuja solução — no todo ou em parte — possa 
ser a adoção de uma medida legislativa. 
 Por exemplo, frente ao problema das drogas ou 
da responsabilidade política se pode reagir, respectivamente, 
endurecendo as penas para os narcotraficantes (ou, o que dá no 
mesmo, exigindo-se que eles cumpram integralmente suas 
condenações) e introduzindo novos tipos penais, como ocorrido 
recentemente com a introdução de sanções criminais àqueles 
 
236 RODRIGUEZ, M. A. Tras la justicia: una introducción al derecho y al 
razonamiento jurídico, p. 120. 
237 Segundo ATIENZA, “... A dogmática é, desde logo, uma atividade complexa, 
cabendo distinguir essencialmente estas três funções: 1) desenvolver 
critérios para a produção do Direito nas diversas instâncias em que isso se 
fizer necessário; 2) desenvolver critérios para a aplicação do Direito; 3) 
ordenar e sistematizar um setor do ordenamento jurídico” (RODRIGUEZ, Manuel 
Atienza. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica, p. 
20-21). 
 158
administradores públicos que, nos temos da lei, são 
considerados irresponsáveis.238 
 Essas propostas de solução não são, contudo, 
indiscutíveis: a melhor forma de combater o tráfico de drogas 
poderia consistir em liberar o comércio das denominadas drogas 
brandas. Exigir o cumprimento íntegro das penas para 
narcotraficantes pode gerar inconstitucionalidade frente ao 
princípio da igualdade, ou mesmo atentar contra a finalidade 
de ressocialização que deve guiar a execução das penas 
mediante, por exemplo, a adoção do regime de progressividade. 
E a melhor forma — a mais eficaz — de combater a 
irresponsabilidade administrativa poderia não ser a 
criminalização, mas uma introdução de melhores mecanismos de 
controle. 
 Seja como for, o que se quer mostrar é que 
quaisquer das soluções que foram contrapostas são plausíveis e 
que, portanto, são perfeitamente sustentáveis através de 
argumentações. O que não seria admissível, pelo contrário, é 
que uma decisão fosse tomada sem razão. 
 
 
 
238 Ver Lei Federal nº 10.028, de 19.out.2000, em que se demonstra o esforço 
que tem sido feito atualmente no Brasil para o estabelecimento de uma 
legislação que atribui maior responsabilidade aos administradores no que 
tange à fixação de despesas públicas, que não podem exceder as receitas, 
sob pena de prisão. 
 159
 
 Veja-se como Miguel REALE descreve os processos 
de discussão que podem se dar na fase pré-legislativa: 
“ É evidente que (...) o ponto de vista de um 
comunista não coincide com o de um liberal clássico, ou 
de um socialista, mas, no nível das composições fáticas, 
podem comunistas, socialistas ou democratas cristãos 
convir numa solução de compromisso, dando força de 
modelo jurídico a uma dentre as várias soluções 
normativas logicamente viáveis. Escolhida, aliás, uma 
linha mestra comum, não faltarão divergências de outra 
ordem, consubstanciadas em substitutivos ao projeto de 
lei, por motivos formais, ou representadas por emendas, 
subemendas, etc., espelhando-se nessa gama de 
proposições parlamentares a multiplicidade de variantes 
de uma estrutura jurídica in fieri. É só o ato 
decisório, final, por conseguinte, que põe termo ao 
flutuar das tensões fático-axiológicas, permitindo que a 
norma de direito se aperfeiçoe como modelo vigente.”239 
 
 A partir do momento em que se decide qual a 
norma que deverá ser produzida (aqui os argumentos têm mais um 
caráter moral e político que propriamente jurídico), entra-se 
na fase legislativa, ocasião em que questões de tipo técnico-
jurídico entram em primeiro plano. Aqui não será suficiente a 
justificação, por si só, da necessidade de se regular uma 
matéria de uma determinada forma, vez que se deve saber se a 
autoridade respectiva tem competência para regular aquele 
conteúdo, se o conteúdo é compatível com a ordem jurídica, 
enfim, deve-se submeter a norma que se pretende estabelecer a 
um teste prévio de pedigree. 
 
239 REALE, Miguel. O direito como experiência, p. 195. 
 160
 O segundo campo em que se efetuam argumentos 
jurídicos é o da aplicação de normas jurídicas na resolução de 
casos, seja através da atividade dos juízes em sentido 
estrito, seja por órgãos administrativos no mais amplo sentido 
da expressão, seja por particulares. 
 Aqui podem surgir argumentações em relação a 
problemas decorrentes por um lado, de fatos; e por outro, de 
direito (sua interpretação). 
 Finalmente há o campo da dogmática, cujos 
argumentos produzidos neste âmbito não chegam a ser muito 
diferentes daqueles produzidos pelos órgãos aplicadores, uma 
vez que aqui a tarefa é a de fornecer àqueles órgãos critérios 
(argumentos) que visam facilitar a tomada de uma decisão 
jurídica consistente na aplicação de uma norma a um caso 
concreto: 
“ ... A diferença que, não obstante, existe entre 
ambos os processos de argumentação podia sintetizar-se 
assim: enquanto os órgãos aplicadores têm que resolver 
casos concretos, (...) o dogmático do Direito se ocupa 
de casos abstratos.”240 
 
 O direito, portanto, faz parte de um âmbito 
muito complexo de decisões vinculadas com a resolução de 
certos problemas práticos.241 Na base dessas decisões podem 
 
240 RODRIGUEZ, M. A. Obra citada, p. 21. 
241
Não se deve confundir decisão com argumentação, pois os raciocínios, os 
argumentos, não são as decisões, mas sim as razões que as sustentam. 
 161
geralmente ser encontrados dois tipos de razões: explicativas 
e justificativas: 
“ As razões explicativas se identificam com os 
motivos. Elas estão constituídas por estados mentais que 
são antecedentes causais de certas ações. O caso central 
de razão explicativa ou motivo é dado por uma combinação 
de crenças e desejos. (...) 
 As razões justificativas ou objetivas não servem 
para entender o porquê se realizou uma ação ou 
eventualmente para predizer a execução de uma ação, mas 
sim para valorá-la, para determinar se foi boa ou má a 
partir de distintos pontos de vista.”242 
 
 Razões explicativas, portanto, são aquelas que 
tentam dar conta dos motivos pelos quais uma decisão foi 
tomada, qual foi sua causa, para quê, qual era a finalidade 
perseguida, cuja resposta pode ser procurada em motivos 
psicológicos, contexto social, circunstâncias ideológicas, 
entre outros. Já as razões justificativas estão relacionadas à 
aceitabilidade ou correção da decisão: 
 
242 NINO, Carlos Santiago. La validez del derecho, p. 126. Segundo Manuel 
ATIENZA a distinção entre argumentos explicativos e justificativos tem sua 
origem na filosofia da ciência, onde primeiramente se fez uma diferenciação 
entre “...o contexto de descobrimento e o contexto de justificação das 
teorias científicas. Assim, por um lado, está a atividade consistente em 
descobrir ou enunciar uma teoria e que, segundo a opinião generalizada, não 
é suscetível de uma análise de tipo lógico; a única coisa que cabe aqui é 
mostrar como se gera e se desenvolve o conhecimento científico, o que 
constitui uma tarefa que compete ao sociólogo e ao historiador da ciência. 
Porém, por outro lado, está o procedimento que consiste em justificar e 
validar a teoria, isto é, confrontá-la com os fatos a fim de demonstrar a 
sua validade; esta última tarefa requer uma análise de tipo lógico (ainda 
que não só lógico) e está regida pelas regras do método científico (que 
portanto não são de aplicação no contexto de descobrimento). A distinção 
pode ser transportada também ao campo da argumentação em geral, e ao da 
argumentação jurídica em particular. (...) Assim, uma coisa é o 
procedimento mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou 
conclusão, e outra coisa é o procedimento consistente em justificar dita 
premissa ou conclusão” (RODRIGUEZ, Manuel Atienza. Obra citada, p. 22). 
 162
“ Saliente-se que, em geral, os órgãos jurisdicionais 
não têm que explicar os motivos pelos quais decidiram 
dessa ou daquela forma, devendo apenas justificar suas 
decisões. (...) Dizer que o juiz tomou sua decisão 
devido a fortes crenças religiosas ou por razões 
políticas e ideológicas significa enunciar uma razão 
explicativa, ao passo que dizer que o juiz se baseou em 
determinada interpretação de um dispositivo legal 
significa enunciar uma razão justificativa.”243 
 
 A tarefa de enunciar razões justificativas 
implica a de estabelecer como alguém deve se comportar, tem 
uma função eminentemente prescritiva. Nesse aspecto o 
raciocínio justificativo está contido na racionalidade 
prática, que é aquela que não se limita a uma tarefa meramente 
descritiva (como a das ciências naturais), donde se pode 
inferir que a argumentação nas decisões jurídicas não se 
limita a deduções meramente formais, mas abrange 
principalmente um uso prático da razão, conforme atesta 
PERELMAN: 
“ ...admitir a possibilidade de uma justificação 
racional significa admitir ao mesmo tempo um uso prático 
da razão, não limitando esta à faculdade de discernir 
relações necessárias, nem sequer relações referentes ao 
verdadeiro ou ao falso. Isso porque toda justificação 
racional supõe que raciocinar não é somente demonstrar e 
calcular, é também deliberar, criar e refutar, é 
apresentar razões pró e contra, é, numa palavra, 
argumentar. A idéia de justificação racional e, de fato, 
inseparável da idéia de argumentação racional.”244 
 
 
243 SERBENA, Cesar Antonio, CELLA, José Renato Gaziero. A lógica deôntica 
paraconsistente e os problemas jurídicos complexos, p. 123. 
244 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito, p. 344. Ver também PERELMAN, C. Idem, 
p. 186. 
 163
 Segundo PERELMAN, a “ ...argumentação é uma 
ação que tende sempre a modificar um estado de coisas pré-
existente”245 e que, por isso mesmo, toda a argumentação não é 
concebível senão em função da ação que prepara ou determina, 
sendo impossível considerá-la como um exercício inteiramente 
desligado de toda a preocupação prática246, da mesma forma 
“...o problema da justificação só surge na área prática quando 
se trata de decisão, de ação, de escolha, fora da experiência, 
que suprime toda possibilidade de decisão e de escolha”.247 
Considerando, além do mais, que “...o objeto da justificação é 
de ordem prática: justifica-se um ato, um comportamento, uma 
disposição a agir, uma pretensão, uma escolha, uma decisão”248, 
há que referir que “...apenas a argumentação (...) permite 
compreender nossas decisões.”249 
 Foi dito que as decisões proferidas pelos 
órgãos jurisdicionais (em sentido amplo) só precisam conter 
razões justificativas. Mas isso não quer dizer, contudo, que 
uma análise do discurso jurídico deva excluir do seu campo de 
observação o contexto de descobrimento, uma vez que também a 
 
245 PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a 
nova retórica, p. 61. 
246 Cf. PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Idem, p. 60 e 66. 
247 PERELMAN, C. Ética e direito, p. 186-187. 
248 PERELMAN, C. Idem, p. 185. 
249 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova 
retórica, p. 53. 
 164
partir de razões explicativas se pode adotar uma atitude 
prescritiva: 
“ A distinção entre contexto de descobrimento e 
contexto de justificação não coincide com a distinção 
entre discurso descritivo e prescritivo, posto que tanto 
em relação a um quanto ao outro contexto se pode adotar 
uma atitude descritiva ou prescritiva. Por exemplo, 
pode-se decidir quais são os motivos que levaram o juiz 
a ditar uma resolução no sentido indicado (o que 
significaria explicar sua conduta), porém também se pode 
prescrever ou recomendar determinadas mudanças 
processuais para evitar que as ideologias dos juízes (ou 
dos júris) tenham um peso excessivo nas decisões a tomar 
(por exemplo, fazendo que tenham mais relevância outros 
elementos que moldam parte da decisão, ou propondo 
ampliar as causas de recusa de juízes ou júris). E, por 
outro lado, pode-se descrever como de fato o juiz em 
questão fundamentou a sua decisão (se baseou-se no 
argumento de que — de acordo com a Constituição — o 
valor da vida humana deve prevalecer sobre o valor da 
liberdade pessoal); ou se pode prescrever ou sugerir — o 
que exige por sua vez uma justificação — como o juiz 
deveria ter fundamentado sua decisão (a sua 
fundamentação deveria ter se baseado noutra 
interpretação da Constituição que subordina o valor da 
vida humana ao valor da liberdade pessoal).”250 
 
 Trata-se, portanto, de analisar não unicamente 
como se justificam de fato as decisões jurídicas (caráter 
descritivo), mas também de como elas deveriam ser justificadas 
(caráter prescritivo). Resta saber se é possível sempre 
justificar racionalmente uma decisão jurídica, retornando à 
pergunta formulada no início deste capítulo. 
 
250 RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de la argumentación 
jurídica, p. 23. 
 165
 Contra essa possibilidade se opõem tanto o 
determinismo metodológico251 quanto o decisionismo 
metodológico.252
O determinismo metodológico não se sustenta 
mais no contexto do direito moderno, em que as decisões devem 
ser motivadas. Além do mais, conforme se pode inferir dos 
resultados trazidos pelo debate entre HART e DWORKIN, 
justificar uma decisão, em um caso difícil, significa algo 
mais do que efetuar uma operação dedutiva consistente em 
extrair uma conclusão a partir de premissas normativas e 
fáticas. 
 Quanto ao decisionismo metodológico, nele pode 
ser enquadrado o realismo norte-americano descrito no capítulo 
anterior, em especial o pensamento de Jerome FRANK, para quem: 
“ O juiz não parte de alguma regra ou princípio como 
sua premissa maior, toma logo os fatos do caso como 
premissa menor e chega a sua resolução mediante um puro 
processo de raciocínio. O juiz — ou o júri — toma suas 
decisões de forma irracional — ou, pelo menos, 
arracional — e posteriormente as submetem a um processo 
de racionalização. A decisão, portanto, não se baseia na 
lógica, mas nos impulsos do juiz que estão determinados 
por fatores políticos, econômicos, sociais e, sobretudo, 
por sua própria idiossincrasia.”253 
 
 
251 Para essa postura as decisões jurídicas não necessitam ser justificadas 
porque procedem de uma autoridade legítima e/ou são o resultado de simples 
aplicações de normas gerais. 
252 Segundo essa postura as decisões jurídicas não podem ser justificadas 
porque são puros atos de vontade. 
253 FRANK, Jerome. Law and the modern mind, p. 23. 
 166
 O pensamento realista, ao banalizar o contexto 
da justificação, comete um grande erro, que consiste, 
precisamente, em haver “...confundido o contexto de 
descobrimento e o contexto de justificação. É muito possível 
que, de fato, as decisões se tomem precisamente como eles [os 
críticos] sugerem, isto é, que o processo mental do juiz vá da 
conclusão às premissas e não ao revés, e inclusive cabe pensar 
que a decisão (ao menos em alguns casos) é, sobretudo, fruto 
de juízos prévios; mas isso não anula a necessidade de 
justificar a decisão, nem tampouco converte essa tarefa em 
algo impossível”.254 
 Este mesmo entendimento é confirmado por Chaïm 
PERELMAN, para quem, mesmo que as decisões decorram de 
processos mentais não dedutivos que, posteriormente, são 
reduzidos à forma de dedução, a justificação sempre se fará 
presente: 
“ ... Acontece, muito amiúde aliás, não sendo isso 
necessariamente deplorável, que mesmo um magistrado 
conhecedor do direito formule seu julgamento em dois 
tempos, sendo as conclusões a princípio inspiradas pelo 
que lhe parece ser mais conforme a seu senso de 
eqüidade, vindo a motivação técnica apenas como 
acréscimo. Há que se concluir, nesse caso, que a decisão 
foi tomada sem nenhuma deliberação prévia? De modo 
algum, pois os prós e os contras poderiam ter sido 
pesados com o maior cuidado, mas fora de considerações 
de técnica jurídica. 
 (...) 
 ...o valor retórico de um enunciado não poderia ser 
anulado pelo fato de que se trataria de uma argumentação 
 
254 SERBENA, C. A., CELLA, J. R. G. Obra citada, nota 7, p. 132. 
 167
que se julga construída a posteriori, depois que a 
decisão íntima estava tomada...”255 
 
 O nível mais básico de justificação de uma 
decisão é o da racionalidade lógico-formal, a qual se predica, 
essencialmente, neste âmbito, de proposições (enunciados), ou 
melhor, da passagem de alguma proposição a outra, isto é, 
através da inferência. 
 O que interessa aqui é a correção formal dos 
argumentos.256 Mas como se pode verificar esse tipo de 
correção? Para responder a esta questão, partiremos de um 
exemplo retirado do gênero literário policial257 e que é assim 
narrada por Manuel ATIENZA (trata-se do conto A Carta Roubada, 
de Edgard Allan POE): 
“ Auguste Dupin (...) recebe um dia a visita do 
comissário de polícia de Paris que lhe consulta sobre o 
seguinte problema. Um documento da maior importância 
havia sido roubado nos palácios reais. Sabe-se que o 
autor do roubo é o ministro D., que usa a carta como um 
instrumento de chantagem contra uma dama da realeza. O 
ministro deve ter a carta escondida em algum lugar de 
sua casa, porém o comissário de polícia, apesar de ter 
efetuado uma minuciosa e sistemática busca, não 
conseguiu encontrá-la. Dupin consegue encontrar a carta 
 
255 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova 
retórica, p. 48-49. 
256 Mesmo sob o ponto de vista psicológico do realismo jurídico, em que o 
juiz parte primeiro da conclusão e só então, mediante um mecanismo de 
racionalização a posteriori, formula as premissas, não fica prejudicada a 
questão de a inferência estar ou não justificada logicamente, já que a 
justificação lógica, que é de caráter puramente formal, deve estar presente 
em qualquer decisão. 
257 Há outras obras ilustradas com numerosos exemplos de argumentos 
dedutivos, a exemplo de WESTON, em especial a análise que é feita, passo a 
passo, das “deduções”, encontradas na obra de Sir Arthur Conan DOYLE, 
protagonizadas por Sherlock Holmes (Cf. WESTON, Anthony. La claves de la 
argumentación, p. 92-96). 
 168
através de um processo de raciocínio que, grosso modo, é 
o seguinte: Se a carta estivesse ao alcance dos 
trabalhos de busca, os agentes a teriam descoberto, e 
como a carta deve estar no domicílio do ministro, isso 
quer dizer que a polícia agiu mal na busca. Dupin sabe 
que o ministro é uma pessoa audaz e inteligente e que 
ademais possui não somente uma inteligência matemática, 
como também — se se pode chamar assim — uma inteligência 
poética. O ministro pôde prever, portanto, que a sua 
casa seria revistada pela polícia e que os homens do 
comissário buscariam em todos aqueles lugares em que se 
poderia supor que alguém pudesse deixar um objeto que se 
deseja ocultar. Dupin infere daí que o ministro teve que 
deixar a carta em um lugar muito visível mas, 
precisamente por isso, inesperado. Com efeito, Dupin 
encontra a carta em um porta-cartões fixado em uma fita 
azul sobre a chaminé, amarrotada e manchada (como se 
tratasse de algo sem importância) e exibindo um tipo de 
letra e um selo de características opostas às da cata 
roubada (...) Dupin explica assim o fracasso do 
comissário: a causa remota de seu fracasso é a suposição 
de que o ministro é um imbecil porque obteve fama de 
poeta. Todos os imbecis são poetas; assim entende o 
prefeito e, por isso, incorre em uma non distributiu 
medii ao inferir que todos os poetas são imbecis.”258 
 
 De acordo com essa narrativa, vê-se pois que o 
erro do comissário consistiu em ter inferido da proposição 
todos os imbecis são poetas, a conclusão de que todos os 
poetas são imbecis. 
 Do relato se pode verificar que o comissário 
efetuou um argumento logicamente válido, mas partindo de uma 
premissa falsa: 
Todos os poetas são imbecis. 
O ministro é um poeta. 
Logo, o ministro é um imbecil. 
 
 
258 RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de la argumentación 
jurídica, p. 26-27. 
 169
 Vertendo o silogismo para a forma simbólica: 
∆x Px → Qx 
 Pa 
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ 
 Qa 
 
 O argumento em questão é logicamente válido 
porque a conclusão se infere necessariamente das premissas.259 
 Num silogismo a conclusão já é incluída nas 
premissas, pois a passagem destas àquela é necessária, ou 
seja, não é possível que as premissas sejam verdadeiras e não 
o seja a conclusão. 
 Portanto, no exemplo acima temos um argumento 
válido logicamente, mas com uma premissa falsa. Prosseguindo a 
análise a partir da narrativa de ATIENZA sobre a obra de POE, 
imaginemos um caso quase que oposto ao do primeiro exemplo, 
mas que parte de premissas verdadeiras (em relação,
evidentemente, à narrativa), só que se vale de um argumento 
logicamente inválido: 
Todos os imbecis são poetas. 
O ministro é um poeta. 
 
259 Olivier REBOUL traz alguns exemplos nos quais o silogismo é valido, mas 
em que a conclusão resulta absurda em face da falsidade das premissas: 
“’Tudo o que é raro é caro; ora, um bom cavalo barato é raro; logo, um bom 
cavalo barato é caro.’ [Trata-se de] um verdadeiro silogismo, perfeitamente 
válido. Donde vem então o absurdo de conclusão? Do fato de que as premissas 
são falsas, e de que o raciocínio prova isso pelo absurdo. Prova que o que 
é raro nem sempre é caro; ou ainda que um bom cavalo barato nem sempre é 
raro (em caso de má venda, por exemplo). Em suma, não há sofisma no sentido 
estrito, mas um erro que consiste em transformar o provável em certo” 
(REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p. 100). 
 170
Logo, o ministro é um imbecil.260 
 
 Em notação simbólica: 
∆x Px → Qx 
 Qa 
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ 
 Pa 
 
 No caso, a classe dos imbecis está contida na 
classe dos poetas, mas disso não decorre que, necessariamente, 
sendo o ministro um poeta, tenha que estar também contido na 
classe dos imbecis. Ele poderia muito bem ser um poeta que não 
é imbecil. Assim, no exemplo as premissas são verdadeiras, mas 
a conclusão é falsa. 
 Os dois exemplos acima, conforme dito, são 
quase opostos. Não são totalmente opostos porque em ambos a 
conclusão, que é a mesma, é falsa. No próximo exemplo, tanto 
as premissas quanto a conclusão são verdadeiras, só que no 
entanto não se trata de um argumento logicamente válido: 
Todos os imbecis são poetas. 
O ministro é um poeta. 
Logo, o ministro não é um imbecil. 
 
 
260 Este silogismo pode ser enquadrado na falácia denominada afirmação do 
conseqüente, que pode ser ilustrada com o seguinte exemplo trazido por 
WESTON: Afirmar o conseqüente. Uma falácia dedutiva da forma: Se p então q; 
q; logo, p. Por exemplo: Se as ruas estão geladas, o correio se demora; o 
correio se demora; logo, as ruas estão geladas. Ambas as premissas podem 
ser verdadeiras, e a conclusão ser todavia falsa. Ainda que o correio 
chegue tarde quando as ruas estão geladas, pode chegar tarde também por 
outras razões” (WESTON, Anthony. Obra citada, p. 128). 
 171
 
 Em notação simbólica: 
∆x Px → Qx 
 Qa 
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ 
 —Pa 
 
 No caso, a classe dos imbecis, tal qual no 
exemplo anterior, está contida na classe dos poetas, mas disso 
não decorre que, necessariamente, o ministro seja um poeta que 
não é imbecil. Ele poderia muito bem ser um poeta enquadrado 
na categoria dos imbecis, resultado que invalidaria a 
conclusão do caso acima. 
 Vejamos agora um exemplo de argumento válido 
logicamente e cujas premissas são verdadeiras (e, portanto, 
também sua conclusão): 
 
Os ministros que são poetas não são imbecis. 
O ministro é um poeta. 
Logo, o ministro não é um imbecil. 
 
 Em linguagem simbólica: 
∆x Px ∧ Qx → —Rx 
 Pa ∧ Qa 
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ 
 —Ra 
 
 172
 Neste caso, qualquer possível representação das 
premissas conteria também a conclusão. 
 Esta primeira abordagem acerca do raciocínio 
lógico-dedutivo já permite a verificação de que, quando 
passamos para o campo das argumentações, muitas insatisfações 
podem surgir. Após definir o que vem a ser um argumento 
lógico, ATIENZA faz algumas considerações: 
“ ... Temos uma implicação ou uma inferência lógica 
ou uma argumentação válida (dedutivamente), quando a 
conclusão necessariamente é verdadeira se as premissas 
são verdadeiras. A lógica, a lógica dedutiva, pode se 
apresentar em forma axiomática ou como um sistema de 
regras de inferência, mas esta segunda forma de 
apresentação é a que melhor se ajusta à maneira natural 
de raciocinar. Isso é assim porque enquanto no modo 
axiomático de deduzir se parte de enunciados formalmente 
verdadeiros (tautologias) e se chega, ao término da 
dedução, a enunciados também formalmente verdadeiros, no 
modo natural de fazer inferências dedutivas se pode 
partir — e isso é o mais freqüente — de enunciados 
indeterminados em seu valor de verdade ou inclusive 
declaradamente falsos e se chegar a enunciados que podem 
ser verdadeiros ou falsos. A única coisa que determina 
uma regra de inferência é que se as premissas são 
verdadeiras, então necessariamente a conclusão também 
será verdadeira.”261 
 
 A lógica dedutiva só fornece critérios de 
correção formais, mas passa ao largo das questões materiais ou 
de conteúdo que, naturalmente, são relevantes quando se 
argumenta em contextos que não sejam os das ciências formais 
(lógica e matemática). 
 
261 RODRIGUEZ, M. A. Obra citada, p. 31. 
 173
 A incapacidade que a lógica formal possui de 
fornecer critérios que determinem a correção material dos 
argumentos pode levar a algumas situações peculiares: a partir 
de premissas falsas se pode argumentar corretamente do ponto 
de vista lógico e, por outro lado, é possível que um argumento 
seja incorreto do ponto de vista lógico, ainda que a conclusão 
e as premissas sejam verdadeiras ou altamente plausíveis. 
 Em alguns casos, portanto, a lógica surge como 
um instrumento necessário mas insuficiente para o controle dos 
argumentos.262 Há casos, no entanto, em que é possível que a 
lógica (a lógica dedutiva) não permita sequer o 
estabelecimento de requisitos necessários em relação ao que 
deve ser um bom argumento. 
 Todas essas observações fazem ver que o 
problema da correção ou não dos argumentos implica o problema 
de como distinguir os argumentos corretos dos incorretos, os 
válidos dos inválidos. 
 Quanto à validade ou não dos argumentos, a 
questão mais importante é a de distinguir os argumentos 
manifestamente inválidos de outros que, embora pareçam 
válidos, não o são: as falácias. 
 
262 “...um bom argumento deve sê-lo tanto do ponto de vista formal quanto do 
material” (RODRIGUEZ, M. A., Obra citada, p. 32). 
 174
 Com efeito, os argumentos que são 
manifestamente inválidos não geram maiores problemas, posto 
que não podem levar a confusões. Já quanto às falácias o 
raciocínio lógico apresenta deficiências. Com efeito, pode-se 
encontrar dois tipos de falácias: as formais263 e as não 
formais. Estas últimas podem, ainda, ser subdivididas em 
falácias de atinência e de ambigüidade. 
 Nas falácias de atinência as premissas carecem 
de referibilidade em relação às suas conclusões, sendo 
portanto incapazes de estabelecer sua verdade. Aqui podem ser 
enquadradas as falácias que se baseiam em argumentos ad 
ignorantiam264, em argumentos ad personam265, ou com a petição 
de princípio.266 
 
263 Em que estaria enquadrada a afirmação do conseqüente, anteriormente 
exemplificada. 
264 “Ad ignorantiam (apelar à ignorância). Argüir que uma afirmação é 
verdadeira somente porque não foi demonstrado que é falsa. Um exemplo 
clássico é constituído pela seguinte declaração do Senador Joseph McCarty 
quando interrogado da prova que sustentava sua acusação de que certa pessoa 
era comunista: ‘Não tenho muita informação sobre isto, exceto a declaração 
geral da Comissão de que nada existe para refutar suas conexões 
comunistas’” (WESTON, Anthony. Obra citada, p. 127). 
265 A lógica clássica denomina esses argumentos como sendo ad hominem, 
consistentes em atacar a pessoa do orador ao invés de atacar suas 
qualificações. Optou-se por usar o temo ad persona para evitar confusões 
com o pensamento de PERELMAN, para quem as “...possibilidades de 
argumentação dependem do que cada qual está disposto a conceder, dos 
valores que reconhece, dos fatos sobre os quais
expressa seu acordo; por 
isso, toda argumentação é uma argumentação ad hominem ou ex concessis. 
(...) 
Não se deve confundir o argumento ad hominem com o argumento ad 
personam, ou seja, com um ataque contra a pessoa do adversário, que visa, 
essencialmente, a desqualificá-lo. A confusão pode estabelecer-se porque as 
duas espécies de argumentação costumam interagir. Aquele cuja tese foi 
refutada graças a uma argumentação ad hominem vê seu prestígio diminuído, 
mas não esqueçamos que esta é uma conseqüência de qualquer refutação, seja 
qual for a técnica utilizada: ‘um erro fatual’ (...) ‘lança um homem sábio 
 175
 Já as falácias de ambigüidade surgem em 
raciocínios cuja formulação contém palavras ambíguas, cujos 
significados são alterados de maneira mais ou menos sutil no 
curso da argumentação.267 
 Vale dizer que a lógica formal só fornece 
critérios para desmascarar as denominadas falácias formais. 
 Outro aspecto que gera insatisfação é o de que 
a definição de argumento válido dedutivamente se refere a 
proposições que se submetem ao critério de verdade e 
falsidade. 
 Ocorre que, sob um determinado ponto de vista 
não faz sentido argüir a verdade ou falsidade de uma norma, 
seja ela jurídica ou moral. KELSEN, por exemplo, afirma que a 
inferência silogística não se aplica às normas: 
“ O pressuposto fundamental dos princípios da Lógica 
tradicional aplicados à verdade de enunciados é que 
 
no ridículo’” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: 
a nova retórica, p. 125-126). 
 
266 A petitio principii consiste no fato de se postular o que se quer 
provar, “...supõe que o interlocutor já aderiu a uma tese que o orador 
justamente se esforça por fazê-lo admitir” (PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, 
L. Obra citada, p. 127), como por exemplo quando se afirma que Deus existe 
porque é isso que diz a bíblia; sendo a bíblia verdadeira exatamente pelo 
fato de ter sido escrita por Deus: “a bíblia é verdade porque Deus a 
escreveu; a bíblia diz que Deus existe; logo, Deus existe” (WESTON, 
Anthony. Obra citada, p. 132). 
267 Veja-se o exemplo dado por Anthony WESTON: “A: Todo estudo é uma 
tortura; B: Mas e estudar para argumentar? Tu gostas tanto!; A: Bem, isso 
não é realmente estudar. Aqui ‘estudar’ é a palavra equívoca. A resposta de 
A à objeção de B altera de fato o significado de estudar para o de estudar 
que é uma tortura. Desse modo, a primeira afirmação de A permanece 
verdadeira, mas só ao custo de torná-la trivial” (WESTON, A. Obra citada, 
p. 132). 
 176
existem enunciados verdadeiros e falsos, quer dizer: há 
enunciados que têm a qualidade de ser verdadeiros ou 
falsos. 
 Enunciados que são verdadeiros ou falsos são o 
sentido de atos de pensamento. Normas são, porém, o 
sentido de atos da vontade dirigidos à conduta de outrem 
e, como tais, nem são verdadeiras nem falsas e, por 
conseguinte, não subordinadas aos princípios da Lógica 
tradicional, contanto que estes sejam relacionados com 
verdade ou falsidade. 
 A expressão lingüística de uma norma é um 
imperativo ou uma proposição de dever-ser; e se a 
aplicabilidade dos princípios lógicos de não-contradição 
e da conclusão é adotada para normas, então isto, via de 
regra, acontece com relação a proposições de dever-ser. 
Diz-se, porventura: entre ambas as proposições de dever-
ser: ’um médico deve dizer a verdade a seu paciente, à 
pergunta deste se sua doença, que o médico considera 
incurável, é incurável’, e ‘o médico não deve dizer a 
verdade a seu paciente, à pergunta deste se sua doença, 
que o médico considera incurável, é curável’, existe uma 
contradição lógica. E da proposição: ‘Todas as pessoas 
devem cumprir sua promessa feita a uma outra pessoa’ 
segue-se logicamente a proposição: ‘o homem Meier deve 
cumprir a promessa feita à senhora Schulze de com ela 
casar’. Mas, não se toma em consideração que estas 
proposições de dever-ser 1) são normas válidas de uma 
Moral positiva, ou seja, de um Direito positivo ou 2) 
são enunciados sobre a validade de tais normas, ou se em 
geral são proposições de dever-ser, nas quais o dever-
ser é o sentido de um ato de vontade dirigido à conduta 
de outrem, ou proposições de dever-ser que são 
enunciados sobre um tal sentido de atos de vontade. Quer 
dizer, opera-se 3) com proposições de dever-ser, as 
quais nem são uma nem são outra. 
 (...) 
 Se se acredita poder aplicar os princípios lógicos 
de não-contradição e da conclusão a normas, embora estas 
nem sejam verdadeiras nem falsas, então não pode haver a 
relação com a verdade que serve de base a essa 
aplicação; tem de haver a relação com uma outra 
qualidade da norma. Precisa haver normas que tenham esta 
específica qualidade, e normas que não tenham esta 
qualidade. E esta qualidade das normas precisaria ser 
análoga à verdade dos enunciados. 
 Os princípios da Lógica do Enunciado, a saber: o 
princípio de não-contradição e a regra da conclusão 
dizem respeito a relações entre enunciados. O problema 
de uma Lógica das Normas é, portanto, o problema da 
aplicação de princípios (os quais são análogos aos 
princípios da Lógica do Enunciado) à relação entre 
normas. Assim como na hipótese de uma contradição lógica 
entre dois enunciados somente um pode ser verdadeiro, e 
o outro tem de ser falso, então precisaria haver uma 
relação entre duas normas, na qual, se uma tem qualidade 
análoga à verdade, a outra não pode ter esta qualidade. 
Assim como da verdade de um enunciado pode ser 
logicamente resultada a verdade de um outro enunciado, 
 177
então da qualidade de uma norma análoga à verdade teria 
de resultar esta qualidade de uma outra norma. 
 Nas diferentes tentativas para provar a 
aplicabilidade de princípios lógicos a normas — como 
anteriormente mostrado — foram seguidos dois caminhos 
para colocar em analogia com a verdade do enunciado: um 
é a validade da norma; o outro o cumprimento da norma. 
 Com relação ao que diz respeito ao primeiro 
caminho, já foi aqui afirmado que não existe uma 
analogia entre verdade de um enunciado e validade de uma 
norma, porque validade ou não-validade de uma norma não 
é qualidade de uma norma, assim como verdade ou 
falsidade é qualidade de um enunciado. A validade de uma 
norma é sua específica existência ideal, e uma norma 
não-válida, uma norma nula, é uma norma não existente; 
enquanto um enunciado falso é um enunciado existente.”268 
 
 Neste sentido a lógica não se aplica às 
relações entre normas, pois as suas regras (da lógica) se 
aplicam ao silogismo teórico que se baseia em um ato de 
pensamento, mas não ao silogismo prático ou normativo (o 
silogismo em que ao menos uma das premissas e a conclusão são 
normas) que se baseia em um ato de vontade (em uma norma).269 
 A idéia de que a inferência lógico-dedutiva não 
se aplica às normas pode levar a resultados estranhos. Veja-
se, por exemplo, o seguinte silogismo (que pode ser retirado 
de um dos exemplos trazidos por KELSEN no texto acima 
transcrito): 
Deves manter suas promessas. 
Esta é uma de suas promessas. 
Logo, deve manter esta promessa. 
 
268 KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 263-266. 
269 Segundo KELSEN: “A palavra ‘norma’ procede do latim: norma, e na língua 
alemã tomou o caráter de uma palavra de origem estrangeira — se bem que não 
em caráter exclusivo, todavia primacial. Com o termo se designa um 
mandamento, uma prescrição, uma ordem” (KELSEN, H. Obra citada, p. 1). 
 178
 Dizer que esta inferência carece de validade 
lógica efetivamente não é algo de fácil assimilação, pois na 
vida cotidiana geralmente atribuímos às inferências práticas a 
mesma validade que teriam as inferência teóricas. 
 Com efeito, se a partir do exemplo acima, A 
aceita como moralmente
obrigatória a regra de que se devem 
manter as promessas (todas as promessas e em qualquer 
circunstância) e aceita como verdadeiro o fato de que prometeu 
a B que iria levá-lo ao cinema na tarde de domingo, e no 
entanto sustenta também que, apesar disso, não considera que 
deva levar a B ao cinema no dia prometido, estaríamos forçados 
a concluir que seu comportamento seria tão irracional quanto o 
de quem considera como enunciados verdadeiros o seguinte: os 
ministros que são poetas não são imbecis; X é um ministro que 
é poeta; mas que no entanto não está disposto a aceitar que X 
não é imbecil. Naturalmente, é possível que estas duas 
situações (inclusive a segunda) se dêem de fato, mas isso não 
parece ter nenhuma relação com a lógica que, como na 
gramática, é uma disciplina prescritiva: não diz como os 
homens pensam ou raciocinam de fato, mas sim como deveriam 
fazê-lo.270 
 
270 Vale dizer que desde ARISTÓTELES até RUSSEL e o primeiro WITTGENSTEIN, a 
lógica tinha um sentido eminentemente prescritivo, o que deixou de ser 
regra a partir do desenvolvimento do infindável número de sistemas lógicos 
ou diversas lógicas existentes atualmente. 
 179
 De fato, os enunciados prescritivos referem-se 
ao âmbito do dever-ser; não tendo, portanto, nenhum 
compromisso com a realidade. É precisamente neste aspecto em 
que se diferenciam o princípio da causalidade (em que pode 
atuar a lógica dedutiva) e o princípio da imputação 
(causalidade jurídica) de que fala KELSEN em suas obras: 
“ ... A lei da natureza estabelece que, se A é, B é 
(ou será). A regra de Direito diz: se A é, B deve ser. A 
regra de Direito é uma norma (no sentido descritivo do 
termo). O significado da conexão estabelecida pela lei 
da natureza entre dois elementos é o ‘é’, ao passo que o 
significado da conexão estabelecida entre dois elementos 
pela regra do Direito é o ‘deve ser’. O princípio 
segundo o qual a ciência natural descreve seus objetos é 
o da causalidade; o princípio segundo o qual a ciência 
jurídica descreve seu objetivo é o da imputação. 
 ... A regra normativa ‘se alguém roubar, deve ser 
punido’ permanece válida mesmo se, num dado caso, um 
ladrão não for punido.(...) Como a norma não é um 
enunciado de realidade, nenhum enunciado de um fato real 
pode estar em contradição com a norma.”271 
 
 No entanto, os autores que sustentam a tese de 
que a lógica não se aplica às normas não levam em conta que 
há, na verdade, dois aspectos em torno dessa questão. 
 Por um lado está a questão de se a relação que 
as normas válidas (aquelas que passaram pelo teste de 
pedigree) guardam entre si são de tipo lógico. É claro que 
neste ponto têm razão aqueles autores, pois obviamente é 
possível que hajam, num sistema, normas contraditórias 
(incompatíveis) entre si: 
 
271 KELSEN, Hans Teoria geral do direito e do estado, p. 64-65. 
 180
“ ... Diz-se que um ordenamento jurídico constitui um 
sistema porque não podem coexistir nele normas 
incompatíveis. Aqui, ‘sistema’ equivale à validade do 
princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se 
num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma 
das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é 
verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm 
um certo relacionamento entre si, e esse relacionamento 
é o relacionamento de compatibilidade, que implica a 
exclusão da incompatibilidade. Note-se porém que dizer 
que as normas devam ser compatíveis não quer dizer que 
se encaixem umas nas outras, isto é, que constituam um 
sistema dedutivo perfeito. Nesse terceiro sentido de 
sistema, o sistema jurídico não é um sentido dedutivo, 
como no primeiro sentido: é um sistema num sentido menos 
incisivo, se se quiser, num sentido negativo, isto é, 
uma ordem que exclui a incompatibilidade das suas partes 
simples. Duas proposições como: ‘O quadro negro é negro’ 
e ‘O café é amargo’ são compatíveis, mas não se encaixam 
uma na outra. Portanto, não é exato falar, como se faz 
freqüentemente, de coerência do ordenamento jurídico, no 
seu conjunto; pode-se falar de exigência de coerência 
somente entre suas partes simples. Num sistema dedutivo, 
se aparecer uma contradição, todo o sistema ruirá. Num 
sistema jurídico, a admissão do princípio que exclui a 
incompatibilidade tem por conseqüência, em caso de 
incompatibilidade de duas normas, não mais a queda de 
todo o sistema, mas somente de uma das duas normas ou no 
máximo das duas.”272 
 
 Com efeito, ainda que não seja desejável, 
normas incompatíveis entre si podem coexistir num mesmo 
sistema normativo sem que isso implique o colapso do sistema. 
Assim, tanto a norma que afirma que se devam cumprir todas as 
promessas quanto a norma que diz que não há porque cumprir a 
promessa efetuada a B são absorvíveis no sistema. 
 Portanto, no que tange à relação entre normas, 
não há dúvidas de que a lógica formal não se aplica. 
 
272 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 80. 
 181
 Mas existe ainda uma outra questão: é possível 
inferir validamente uma norma de outra? A resposta a esta 
pergunta independe da anterior e aqui a resposta pode ser 
afirmativa, desde que se faça uma pequena correção na noção do 
que vem a ser um argumento dedutivo válido.273 
 Ora, o problema em que nos deparamos residia na 
definição de argumento dedutivo antes adotada, a qual se 
chocava com a opinião generalizada — ainda que não unânime — 
de que as normas jurídicas não podem ser submetidas a 
critérios de verdade ou falsidade. 
 Sendo assim, cabe fazer uma correção no 
conceito de argumento dedutivo, que poderá ser enunciado pela 
forma que segue: teremos uma implicação ou uma inferência 
lógica ou uma argumentação válida (dedutivamente) quando a 
conclusão necessariamente é verdadeira274 se as premissas são 
verdadeiras.275 
 Mas ainda com esta nova definição os problemas 
não são todos resolvidos. Já foi mencionado que a lógica está 
limitada ao seu caráter formal.276 Há ainda um outro aspecto, o 
 
273 Que, segundo a definição exposta acima, seriam os argumentos referentes 
a proposições (premissas e conclusões) que podem ser verdadeiras ou falsas. 
274 Se se quiser correta, justa, válida, etc. 
275 Se se quiser corretas, justas, válidas, etc. 
276 Não dá conta, por exemplo, das falácias materiais; e pode haver um 
raciocínio logicamente válido, ainda que suas premissas sejam falsas. 
 182
qual está vinculado ao caráter dedutivo da lógica277, ou seja, 
o caráter de necessidade inerente à passagem das premissas à 
conclusão. 
 Voltando ao exemplo do documento roubado, 
poderíamos sintetizar assim os argumentos que permitiram ao 
Sr. Dupin solucionar o mistério: 
O ministro é um homem audaz e inteligente. 
O ministro sabia que sua casa seria revistada. 
O ministro sabia que a polícia daria busca em todos os 
lugares em que a carta pudesse ter sido ocultada. 
Logo, o ministro deve ter deixado a carta em um lugar 
tão visível que, precisamente por isso, a mesma passou 
despercebida aos homens do comissário. 
 
 Ora, este último não é, obviamente, um 
argumento dedutivo, já que a passagem das premissas à 
conclusão não é necessária, mas tão-somente provável ou 
plausível. 
 Podia ser que o ministro deixasse, por exemplo, 
a carta com um de seus amigos ou, ainda, que ela tivesse sido 
mesmo bem escondida a ponto de a polícia não ter a capacidade 
de encontrá-la, e por aí afora. A este tipo de argumentos, em 
que a passagem das premissas à conclusão não se produz 
necessariamente, são comumente denominados argumentos 
 
 
277 A dedução não é uma característica necessária da lógica, pois além dela
existem ainda as lógicas indutivas, que têm a mesma importância que as 
lógicas dedutivas. 
 183
indutivos e não dedutivos. Porém, neste caso específico não se 
está diante da passagem do particular para o geral, mas sim de 
uma indução em que se dá a passagem de um particular a outro. 
Nem por isso o argumento deixa de ser bom, pois há muitas 
ocasiões em que surge a necessidade de argumentar (inclusive 
na esfera do direito), sem que no entanto se possa recorrer a 
argumentos de tipo dedutivo. 
 Imagine-se o seguinte exemplo:278 A e B são 
acusados pela prática de tráfico de entorpecentes, tipificado 
no artigo x do Código Penal, tendo sido condenados à pena de 
oito anos de reclusão. Vejamos os fatos: A droga que foi 
localizada pela polícia estava escondida no colchão de uma 
cama de casal. A e B (um homem e uma mulher, respectivamente), 
estavam presentes na casa por ocasião da diligência de busca 
que fora efetuada pela polícia. Os indiciados A e B sustentam 
que, embora vivam juntos na mesma residência, só têm entre si 
uma relação de amizade e, além do mais, utilizam-se de quartos 
distintos, de modo que B não tinha conhecimento da existência 
da droga que fora encontrada. Como conseqüência, o advogado de 
defesa pede a absolvição da mulher. A sentença, no entanto, 
durante a sua fundamentação, considera como fato provado que A 
 
 
278 O exemplo é colhido, ainda que não de forma literal, da sentença número 
477/89 proferida pela Audiência Provincial de Alicante (Catalunha, 
Espanha), citada por RODRIGUEZ, M. A. Las razones del derecho: teorías de 
la argumentación jurídica, p. 37-42. 
 184
e B compartilhavam do mesmo quarto e que, em conseqüência, B 
tinha conhecimento e participara sim da atividade de tráfico 
de drogas que estava sendo imputada a ambos. A justificativa 
da sentença é esta: os acusados (A e B) compartilhavam o 
quarto referido, como demonstra — e apesar das alegações em 
contrário dos acusados durante o inquérito, em que alegaram 
que não passavam de simples amigos — o testemunho dos 
policiais que efetuaram a busca, os quais declararam que havia 
uma única cama desfeita (diga-se que a busca teve lugar às 
seis horas da manhã) e em cujo quarto estavam todos os objetos 
pessoais dos acusados; além do que, quando A estava sob regime 
de prisão preventiva, em um escrito dirigido ao promotor e 
juntado aos autos, referia-se a B como sendo sua mulher. O 
caso pode ser assim esquematizado: 
Só havia uma cama desfeita na casa. 
Eram seis horas da manhã quando ocorreu a busca. 
Toda a roupa e objetos pessoais de A e B estavam no 
mesmo quarto em que se encontrava a cama. 
Meses depois A se refere a B como minha mulher. 
Logo, na época em que se efetuou a busca, A e B 
mantinham relações íntimas (e, em conseqüência, B 
conhecia a existência da droga). 
 
 Da mesma forma que no argumento do Sr. Dupin, o 
argumento acima não tem caráter dedutivo, pois a passagem das 
premissas à conclusão não é necessária, ainda que altamente 
provável. Se se aceita a verdade das premissas, então há uma 
forte razão para aceitar também a conclusão, apesar de não se 
 185
poder afirmá-la com certeza absoluta: teoricamente, é possível 
que B tivesse acabado de chegar em cada às seis horas da 
manhã, que seus objetos pessoais estivessem no quarto de A 
porque se preparava para limpar seus armários e que, somente 
após a detenção de ambos é que sua amizade se transformara 
numa relação mais íntima. 
 Certamente, o argumento guarda uma grande 
semelhança com aquele efetuado por Dupin. Mas não são de todo 
semelhantes, se pensarmos no seguinte: É certo que tanto Dupin 
quanto o juiz da sentença se guiam, em sua argumentação, a 
partir do que se pode denominar como regras de experiência (as 
quais têm um papel semelhante às regras de inferência dos 
argumentos dedutivos). No entanto, os magistrados não podem se 
servir, para estes casos, unicamente das regras de 
experiência, pois eles estão também vinculadas (à diferença do 
detetive Dupin) pelas regras processuais de valoração da 
prova. Por exemplo, um juiz pode estar pessoalmente convencido 
de que também B conhecia a existência da droga (da mesma forma 
que Dupin estava convencido de onde deveria estar a carta 
roubada) e, no entanto, não considerar isto como um fato 
provado, pois o princípio de presunção de inocência (tal e 
qual ele o interpreta) exige que a certeza sobre os fatos seja 
absoluta, não se admitindo que sejam apenas altamente 
prováveis. E mesmo que hajam razões para não interpretar assim 
 186
o princípio de presunção de inocência (pois, em outro caso, 
seriam realmente muito poucos os atos delituosos que pudessem 
ser considerado provados), o que interessa aqui é mostrar uma 
peculiaridade do raciocínio jurídico, que é o seu caráter 
altamente institucionalizado. 
 Se agora quiséssemos demonstrar 
esquematicamente o tipo de raciocínio utilizado na sentença 
acima exemplificada, poderíamos propor a seguinte formulação: 
Aqueles que realizarem atos de tráfico de drogas deverão 
ser punidos, de acordo com a lei penal, com a pena de 
reclusão 
A e B efetuaram este tipo de ação. 
Logo, A e B devem ser punidos com a pena de reclusão. 
 
 Em linguagem simbólica: 
∆x Px ∧ Qx → ORx 
Pa ∧ Qa ∧ Pb ∧ Qb 
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ 
 Ora ∧ ORb 
 
 Pode-se simplificá-la ainda: 
∆x Px → OQx 
 Pa 
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ 
 OQa 
 
 A este tipo de esquema lógico se denomina 
usualmente de silogismo judicial ou silogismo jurídico. Ele 
serve como esquema, também, para os chamados silogismos 
práticos ou normativos. 
 187
 A primeira premissa enuncia uma norma geral e 
abstrata em que uma hipótese de fato (x é uma variável de 
indivíduo e P uma letra predicativa) aparece como condição 
para uma conseqüência jurídica; o símbolo O indica que a 
conseqüência (R) deve em geral (pode tratar-se de uma 
obrigação, de uma proibição ou de uma permissão) se seguir 
quando se realiza a hipótese de fato, ainda que seja possível 
que na realidade isso não se dê. 
 A segunda premissa representa a situação em que 
se produziu um determinado fato (a é um indivíduo concreto 
donde se predica a propriedade P), que se subsume à hipótese 
da norma. E a conclusão estabelece que a a se deve aplicar a 
conseqüência jurídica prevista pela norma. 
 O esquema em questão traz alguns 
inconvenientes. O primeiro deles é que há hipóteses (como no 
exemplo acima) em que a conclusão do silogismo não representa 
a conclusão ou a parte dispositiva da sentença, mas sim uma 
etapa prévia para que se chegue à decisão. 
 Na sentença do caso hipotético tomado como 
exemplo, a parte dispositiva não estabelece simplesmente que A 
e B devem ser condenados à pena de reclusão, mas também 
especifica a pena concreta: oito anos de reclusão. Assim, o 
argumento anterior pode ser completado com o seguinte: 
 
 188
A e B devem ser condenados à pena de reclusão. 
Na prática de referido delito, não ocorreram 
circunstâncias modificativas da responsabilidade 
criminal. 
Quando não concorrem circunstâncias modificativas da 
responsabilidade criminal, os tribunais impõem (em 
conformidade com a lei) a pena em grau mínimo ou médio, 
dada a gravidade do fato e a personalidade do 
delinqüente. 
Logo, A e B devem ser condenados à pena de oito anos de 
reclusão (que seria o mínimo da pena permitido por lei). 
 
 Este tipo de raciocínio não é dedutivo, pois a 
passagem das premissas à conclusão não tem caráter necessário 
(o tribunal poderia ter imposto uma pena de até doze anos, por 
exemplo, sem infringir a lei, isto é, sem contradizer as 
premissas; no caso de a pena
máxima para este tipo de crime 
ser de doze anos).279 
 Poderia se considerar, entretanto, como 
dedutivo (todo argumento indutivo pode se converter em 
 
 
279 Trata-se portanto de uma racionalidade prática — que afinal se dá tanto 
nas decisões judiciais quanto naqueles casos em que se discute a 
implantação de uma lei, entre outros — conforme aduz PERELMAN: “Se 
procurarmos um exemplo patente de raciocínio prático, nós o encontraremos 
na sentença ou no aresto de um tribunal, que indica, além do decisório (o 
dispositivo), os motivos que justificam o dispositivo adotado pelo juiz, os 
considerandos, que indicam as razões pelas quais o julgado não é ilegal nem 
arbitrário, devendo também descartar as objeções apresentadas contra esta 
ou aquela premissa do raciocínio... Outro exemplo de raciocínio prático é 
fornecido por um projeto de lei precedido de um preâmbulo, pois este não 
fornece as premissas a partir das quais ele teria sido inferido, mas sim as 
razões que militam em favor de sua adoção. 
 Vê-se que o raciocínio prático pode redundar, quer numa decisão 
referente a uma única situação concreta (o caso do juiz), quer numa decisão 
de princípio, que regulamenta grande número de situações (caso do 
legislador)” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 279). 
 189
dedutivo se invocar as premissas adequadas) se se tomar como 
incorporada, na argumentação anterior, a seguinte premissa: 
A escassa gravidade do fato e a personalidade não 
especialmente perigosa do delinqüente impõem a 
necessidade de aplicação da pena mínima permitida por 
lei. 
 
 Esta última premissa não enuncia mais uma norma 
do direito vigente, não supõe tampouco a constatação de que se 
tenha produzido um determinado fato, mas sim que o fundamento 
da mesma é na verdade derivado de juízos de valor, pois 
gravidade do fato e personalidade do delinqüente não são 
termos que se referem a fatos objetivos ou verificáveis de 
alguma maneira. No estabelecimento desta premissa poder-se-ia 
dizer que o arbítrio do juiz tem um papel fundamental. 
 Isso demonstra que o silogismo judicial não 
permite a reconstrução satisfatória da argumentação jurídica, 
pois a) as premissas de que se parte — como neste caso — podem 
necessitar, por sua vez, de justificação; e b) porque a 
argumentação jurídica parte normalmente de entimemas.280 Um 
 
 
280 Segundo ARISTÓTELES, há duas estruturas argumentativas: o exemplo, que 
vai do particular ao geral, do fato à regra, sendo, portanto uma indução; e 
o entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma dedução. Os 
entimemas são silogismos que partem, no entanto, de opiniões geralmente 
aceitas, os éndoxa: “O raciocínio é uma ‘demonstração’ quando as premissas 
das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que 
delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras: e, 
por outro lado, o raciocínio é ‘dialético’ quando parte de opiniões 
geralmente aceitas (éndoxa). São ‘verdadeiras’ e ‘primeiras’ aquelas coisas 
nas quais acreditamos (pistin) em virtude de nenhuma outra coisa que não 
 190
argumento entimemático pode ser posto sempre em forma 
dedutiva, mas isso supõe a introdução de novas premissas às 
explicitamente formuladas, o que significa reconstruir, não 
reproduzir, um processo argumentativo. 
 Outro aspecto a ser considerado é que, enquanto 
a conclusão do silogismo judicial se dá pela expressão de um 
enunciado normativo que estabelece, por exemplo, que A e B 
 
seja elas próprias; pois, no tocante aos primeiros princípios da ciência, é 
descabido buscar mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um dos 
primeiros princípios deve impor a convicção da sua verdade em si mesmo e 
por si mesmo. São, por outro lado, opiniões ‘geralmente aceitas’ (éndoxa) 
aquelas que todo mundo admite (ta dokoúnta), ou a maioria das pessoas, ou 
os filósofos — em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis 
e eminentes (éndoxoi)” (ARISTÓTELES. Tópicos, citado por BERTI, Enrico. As 
razões de aristóteles, p. 24). Vejam-se ainda os seguintes exemplos 
trazidos por REBOUL: “... As premissas prováveis dos entimemas são: ou 
verossimilhanças (eikota), como por exemplo que um filho ama o pai, ou 
indícios seguros, como por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, 
ou indícios simples, como por exemplo que a presença de cinza indica que 
houve fogo” (REBOUL, Olivier. Obra citada, p. 49). Vale dizer, a esse 
respeito, que não é em todos os casos de entimemas, na filosofia de 
ARISTÓTELES, que das premissas seguem necessariamente a conclusão, conforme 
salientado por BERTI: “Entre as premissas dos entimemas há, pois, algumas, 
poucas na verdade, das quais a conclusão se segue necessariamente, e 
outras, a maior parte, das quais a conclusão se segue apenas geralmente. As 
primeiras são os ‘signos’ (seméia), as segundas são os ‘prováveis’ 
(eikóta); mas, a rigor, a conclusão não se segue de todos os signos, mas 
apenas de alguns, que tomam o nome de ‘provas’ (tekméria): por exemplo, o 
fato de que alguém tenha febre é um signo do qual se segue necessariamente 
que está doente, ou o fato de que uma mulher tenha leite é um signo do qual 
se segue necessariamente que ela deu à luz. Ao contrário, os signos dos 
quais a conclusão não se segue necessariamente não têm um nome particular, 
mas dividem-se naqueles que vão do particular ao universal (por exemplo, o 
fato de que Sócrates era sábio e também justo é um signo do qual não se 
segue necessariamente que todos os sábios são justos). As provas são 
irrefutáveis (ályta), enquanto os outros signos são refutáveis (lytá), 
inclusive no caso de a conclusão que se extrai delas ser verdadeira” 
(BERTI, Enrico. Obra citada, p. 182). Enfim, segundo WARAT, “o pensamento 
argumentativo organiza-se a partir de entimemas e, portanto, não permite o 
controle lógico das evidências que postula. Para os aristotélicos, o 
entimema é um silogismo fundamentado a partir da verossimilhança, ou seja, 
uma afirmação das verdades desenvolvida à margem das demonstrações lógicas 
e apoiada unicamente ao nível do pensamento popular, das crenças 
socialmente estereotipadas” (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua 
linguagem, p. 87). 
 191
devem ser condenados, a parte dispositiva da sentença não só 
chega a essa conclusão, mas daí passa à ação, condenando 
efetivamente A e B. 
 Esta distinção entre o enunciado normativo e o 
enunciado performático (o ato lingüístico da condenação em que 
consiste propriamente a decisão), implica a passagem do plano 
do discurso para o plano da ação, ou seja, é dado um salto que 
extrapola a competência da lógica. 
 Passemos agora a outras características da 
argumentação jurídica. Conforme visto anteriormente, o 
estabelecimento da premissa menor do silogismo judicial, a 
premissa fática, pode ser o resultado de um raciocínio de tipo 
não dedutivo. O mesmo pode ocorrer em relação ao 
estabelecimento da premissa maior, a premissa normativa. Um 
bom exemplo disto é a utilização do raciocínio por analogia, 
cuja utilização pode ser retratada a partir do caso concreto 
que será narrado na seqüência. 
 Em um Acórdão de 21 de junho de 2000281, o 
Supremo Tribunal Federal - STF, entendeu que o princípio 
 
281 No Recurso Extraordinário - RE 251.445-GO, julgado em 21.jun.2000, 
relatado pelo Ministro Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça da 
União de 3.ago.2000, o Supremo Tribunal Federal - STF proferiu acórdão com 
a seguinte ementa: “PROVA ILÍCITA. MATERIAL FOTOGRÁFICO QUE COMPROVARIA A 
PRÁTICA DELITUOSA (LEI Nº 8.069/90, ART. 241). FOTOS QUE FORAM FURTADAS DO 
CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DO RÉU E QUE, ENTREGUES À POLÍCIA
PELO AUTOR DO 
FURTO, FORAM UTILIZADAS CONTRA O ACUSADO, PARA INCRIMINÁ-LO. 
INADMISSIBILIDADE (CF, ART. 5º, LVI).” 
 192
constitucional de inviolabilidade de domicílio se estende 
também ao consultório profissional de cirurgião-dentista. 
 O consultório de um profissional liberal é 
inviolável da mesma forma que o é a residência de uma pessoa 
física. Em conseqüência, o acusado foi absolvido do crime a 
ele imputado sob o fundamento de que as provas obtidas 
ilicitamente não poderiam ter sido utilizadas para incriminá-
lo. 
 No caso em questão, as provas que incriminavam 
o dentista haviam sido obtidas a partir do arrombamento de um 
cofre situado no interior de seu consultório, violando assim o 
preceito constitucional que garante a inviolabilidade do 
domicílio, pois, segundo o STF, “para os fins da proteção 
constitucional a que se refere o art. 5o, XI, da Carta 
Política, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente 
e, por estender-se a qualquer compartimento privado onde 
alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4o, III), 
compreende os consultórios profissionais dos cirurgiões-
dentistas”. Vejamos a esquema do argumento por analogia 
contido no Acórdão: 
A residência de uma pessoa física é inviolável. 
O consultório profissional de um cirurgião-dentista (ou 
estabelecimentos de profissionais liberais) é semelhante 
à residência de uma pessoa física. 
Logo, o consultório profissional de um cirurgião-
dentista é inviolável. 
 
 193
 Em linguagem simbólica: 
∆x Px → OQx 
∆x Rx → P’x 
¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯¯ 
∆x Rx → OQx 
 
 A conclusão não se segue dedutivamente das 
premissas (P’= semelhante a P), mas o argumento pode se fazer 
dedutivo se se introduz uma nova premissa que estabeleça que 
tanto a residência de uma pessoa física quanto os locais a ela 
semelhantes são invioláveis (∆x Px ∨ P’x → OQx), isto é, dá-se 
um passo no sentido de generalizar ou de estender uma norma 
legalmente estabelecida a casos não expressamente previstos.282 
 Outro dos argumentos que se utiliza com certa 
freqüência para estabelecer a premissa normativa — nos casos 
em que não se pode partir simplesmente das normas legalmente 
fixadas — é a redução ao absurdo. 
 Este argumento tem, em princípio, uma forma 
dedutiva, mas a redução ao absurdo, tal qual é comumente 
utilizada pelos juristas, vai além de uma simples dedução, por 
duas razões: em primeiro lugar porque, com freqüência, deve-se 
entender que determinadas premissas estão implícitas (e sem 
 
282 Outro exemplo de raciocínio por analogia, com a correspondente análise 
lógico-simbólica, pode ser encontrado em RODRIGUEZ, Atienza. Obra citada, 
p. 43-44. 
 194
elas não teríamos a forma dedutiva do argumento)283; e, em 
segundo lugar, porque a noção de absurdo utilizada pelos 
juristas não coincide exatamente com a de contradição lógica, 
mas sim com a idéia de conseqüência inaceitável. 
 Pois bem, nas páginas antecedentes foram vistos 
alguns exemplos de raciocínios jurídicos que trazem consigo 
esquemas de justificação (argumentos dedutivos e indutivos, 
silogismo judicial, raciocínio por analogia, etc.), além de 
ter sido analisado como se dá uma inferência lógica num 
silogismo prático, ou seja, como se justifica dedutivamente a 
passagem que vai de uma premissa normativa e uma premissa 
fática a uma conclusão normativa (com a correção do conceito 
formal de argumento dedutivo). 
 Todos esses esquemas mostram como o nível de 
racionalidade lógico-formal, que é o mais básico no âmbito da 
argumentação (conforme dito anteriormente), é operado no 
contexto de aplicação do direito. A esse nível básico de 
racionalidade devem convergir todas as decisões judiciais, 
pois uma sentença não estará justificada — posto que 
irracional — se não tiver uma forma dedutiva. 
 
283 Para provar p; assume-se ~p (ou seja, que p é falso, sendo essa a 
premissa que estaria implícita); daí se deriva uma implicação q; demonstra-
se então que q é falso (contraditório, estúpido, absurdo); e se conclui: p. 
Segundo WESTON: “Os argumentos mediante reductio (...) estabelecem, pois, 
suas conclusões mostrando que a negação da conclusão conduz ao absurdo. Não 
se pode fazer outra coisa senão aceitar a conclusão, sugere o argumento” 
(WESTON, A. Obra citada, p. 90). 
 195
 Nos casos rotineiros, considerados fáceis284, o 
trabalho argumentativo do juiz se reduz a efetuar uma 
inferência de tipo dedutivo.285 Porém há também casos difíceis, 
cuja solução não depende só da justificação de tipo dedutivo, 
que nestes casos se revela insuficiente. 
 Ora, quem tiver a pretensão de se valer apenas 
da lógica dedutiva para raciocinar juridicamente, ou que veja 
nela o único mecanismo de controle racional, ficará 
vulnerável, pelo menos, aos seguintes problemas:286 a lógica 
dedutiva a) não diz nada sobre como devem ser estabelecidas as 
premissas, isto é, parte-se delas como algo já dado; b) também 
não diz nada sobre o modo através do qual se deve passar das 
premissas à conclusão, sendo que se limita unicamente a dar 
critérios que digam se uma determinada passagem está ou não 
autorizada287; c) é duvidoso — ou ao menos, muitas vezes se 
duvidou288 — que haja uma inferência normativa, isto é, uma 
 
284 Recordemos o debate entre HART e DWORKIN, em que há a distinção entre 
casos fáceis e difíceis, sendo que sobre estes últimos é que as 
preocupações deveriam se voltar: há aí discricionariedade do juiz ou é 
sempre possível chegar a uma solução correta? 
285 Não que nestes casos a tarefa seja simples, pois na realidade podem 
ocorrer mais complicações que o esquema sugere. Segundo ALEXY: “... 
Enquanto no silogismo a passagem das premissas à conclusão é necessária, o 
mesmo não ocorre quando se trata de passar de um argumento a uma decisão. 
Esta passagem não pode ser de modo algum necessária, pois, se o fosse, não 
nos encontraríamos de modo algum frente a uma decisão, que supõe sempre a 
possibilidade de decidir de outra maneira ou de não tomar nenhuma decisão” 
(ALEXY, Robert. Teoría del discurso y derechos humanos, p. 26). 
286 Na verdade os limites não estão na lógica, mas no uso que se quer fazer 
dela (ou nos objetivos ou alcance que se espera que ela atinja). 
287 Portanto, sem valor heurístico, senão de prova, de modo que não opera no 
contexto do descobrimento, limitando-se ao de justificação. 
288 Segundo KELSEN: “Na literatura jurídica, de vez em quando defende-se a 
 196
inferência em que ao menos uma das premissas e a conclusão 
sejam normas, como ocorre com o silogismo judicial (ou, em 
geral, com o silogismo prático-normativo); d) só fornece 
critérios formais de correção: um juiz que utilize como 
premissas, por um lado, uma norma manifestamente inválida e, 
por outro, um relato de fatos que contradiz frontalmente a 
realidade, não estaria atentando contra a lógica; e) não 
permite considerar como válidos os argumentos fundados em 
hipóteses em que a passagem das premissas à conclusão não 
tenha caráter necessário, ainda que seja altamente plausível; 
f) não dá conta de uma das formas mais típicas de argumentar 
em direito (e fora dele também): a analogia289; e g) não 
determina, na melhor das hipóteses, a decisão enquanto tal290, 
mas tão somente o enunciado normativo que é a conclusão do 
 
opinião de que a Lógica usada na Ciência do Direito — especialmente para as 
normas jurídicas — não é a Lógica Formal Geral, mas uma desta diferente, 
especificamente uma Lógica ‘Jurídica’. A opinião é contestada. O logicista 
polonês, Kalinowski, recusa-a decididamente. O filósofo belga, Ch. Perelman
intervém, resoluto, em favor dela. Para a existência de uma lógica 
especificamente jurídica argumenta-se, sobretudo, com a chamada conclusão 
analógica, usada por juristas, e o por eles repetidamente empregado 
argumentum a maiore ad minus. 
(...) 
...não se pode falar, especificamente, de uma Lógica ‘Jurídica’. É a 
Lógica Geral que tem aplicação tanto às proposições descritivas da Ciência 
do Direito — até onde a Lógica Geral é aqui aplicável — quanto às 
prescribentes normas do Direito. (...) ‘Lógica Jurídica, como eu a entendo, 
é Lógica Formal empregada no raciocínio jurídico. — Não constitui um ramo 
especial, mas é uma das aplicações especiais da Lógica Formal” (KELSEN, 
Hans. Teoria geral das normas, p. 344 e 349). 
289 Cf. o uso da lógica formal nos raciocínios por analogia em ALCHOURRON, 
Carlos E., BULYGIN, Eugenio. Análisis lógico y derecho. Madrid: Centro de 
Estudios Constitucionales, 1991. 
290 Por exemplo, condeno x a uma pena y. 
 197
silogismo judicial:291 a hipótese de um enunciado em que se 
infere que “devo condenar x a uma pena y, mas não o condeno”, 
não traduz nenhuma contradição lógica, mas somente pragmática 
(performática). 
 Essas limitações do método dedutivo não 
passaram despercebidas por Karl ENGISH, que no entanto 
reconhece, citando Ülrich KLUG, a sua importância necessária e 
insubstituível: 
“ ... Relativamente a este silogismo vale aquilo que 
KLUG diz com inteira razão da tarefa da lógica formal 
relativamente ao conhecimento jurídico: que ela tem ‘uma 
importância necessária e, portanto, insubstituível, no 
entanto não tem ao mesmo tempo uma importância 
bastante’. Em particular deve insistente e expressamente 
acentuar-se que a ‘trivial’ dedução a partir da premissa 
maior e da premissa menor não diz absolutamente nada 
sobre a dificuldade e a sutileza da elaboração daquelas 
mesmas premissas.”292 
 
 Conhecidas, portanto, as insuficiências da 
justificação de tipo dedutivo, conclui-se que “...nos casos 
difíceis o estabelecimento da premissa normativa e/ou da 
premissa fática implica uma questão problemática, fazendo-se 
necessários argumentos adicionais em favor das premissas que 
se pretenda utilizar, argumentos estes que provavelmente não 
serão puramente dedutivos”.293 A fim de diferenciar as 
justificações de primeiro tipo (inferências dedutivas) destas 
 
291 Por exemplo, devo condenar x a uma pena y. 
292 ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 383. 
293 SERBENA, C. A., CELLA, J. R. G. Obra citada, p. 124. 
 198
últimas (que necessitam de razões adicionais que vão além da 
lógica em sentido estrito), Jerzy WRÓBLEWSKI as separou em 
justificação interna e justificação externa, respectivamente. 
Segundo WRÓBLEWSKI: 
“ A justificação em forma silogística é uma 
justificação interna porque nela a fortaleza das 
premissas não é submetida à prova. O papel da 
justificação externa é, naturalmente, enorme, mas este 
não pode se realizar com instrumentos lógico-formais. O 
papel da lógica informal ou da argumentação não está 
limitado ao uso da justificação silogística. Ao 
contrário, esta justificação poderá servir como 
argumento a favor do papel decisivo das valorações e das 
eleições na determinação das premissas da decisão 
judicial.”294 
 
 A justificação interna, portanto, está 
relacionada a questões como a de se uma decisão foi 
corretamente inferida das premissas (parte, portanto, de 
premissas já dadas ou aceitas. Nenhuma decisão, depois de 
fixadas as suas premissas, pode prescindir desse tipo de 
justificação), e a justificação externa diz respeito à correta 
adoção das premissas (a justificação de seu estabelecimento ou 
de sua escolha). 
 
294 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Il sillogismo giuridico e la razionalità della 
decisione giudiziale, citado por COMANDUCCI, Paolo Comanducci. Razonamiento 
jurídico: elementos para um modelo, nota 21, p. 84. 
 199
3.2 Chaïm Perelman e a Nova Retórica 
 Volta-se agora àqueles questionamentos postos 
no início deste capítulo: em que sentido se pode falar em 
racionalidade jurídica e qual o seu alcance? 
 Para a análise de tais questões usaremos como 
pano de fundo o pensamento de Chaïm PERELMAN, a partir do qual 
esperamos revelar a importância que representa a teoria da 
argumentação jurídica para o auxílio na resolução de problemas 
que continuam a deixar perplexos todos aqueles que ainda vêem 
no direito um bom instrumento para o aprimoramento de nossas 
relações sociais. 
 Considerando aquelas duas perguntas iniciais, 
pode-se ainda delas derivar os seguintes questionamentos: o 
que significa argumentar juridicamente? Até que ponto a 
argumentação jurídica se diferencia da argumentação ética, da 
argumentação política ou, inclusive, das argumentações que têm 
lugar na vida cotidiana e até mesmo na ciência? Como se 
justificam racionalmente as decisões jurídicas? Qual é o 
critério de correção dos argumentos jurídicos? O direito 
fornece uma única resposta correta para cada caso? Quais são, 
definitivamente, as razões do direito: não a razão de ser do 
direito, mas sim as razões jurídicas que servem de 
justificação para uma determinada decisão? 
 200
 Levando-se em conta que as teorias da 
argumentação jurídica têm fixado suas preocupações na forma 
pela qual os casos difíceis podem ser justificados, o que não 
significa dizer que seu objeto deva ficar restrito a estes 
casos. 
 As reflexões serão iniciadas a partir da 
indagação de se é mesmo possível a justificação externa de 
decisões jurídicas, ou seja, se a tarefa de escolha das 
premissas — ou mesmo o seu estabelecimento (criação) — que 
orientarão aquelas decisões pode ou não ser submetida a algum 
critério de racionalidade, o que permitiria enfim o controle 
dos processos decisórios e, por conseqüência, a exclusão das 
arbitrariedades ainda existentes. Façamos, então, uma 
delimitação do problema. 
 A tradição racionalista da modernidade foi, 
durante muito tempo, o modelo dominante da atividade 
argumentativa, que no domínio lógico tem a pretensão de 
estabelecer a verdade a partir de seus operadores, que têm 
natureza dedutiva e cujo critério de avaliação é fornecido 
pela validade formal. 
 Essa tradição se fez sentir também no âmbito 
jurídico, até porque, como visto, a racionalidade lógica é o 
nível mais básico do pensar jurídico: nenhuma decisão jurídica 
pode relevar da justificação interna. 
 201
 
 No entanto, as limitações inerentes à 
racionalidade formal — que já se fizeram sentir desde a origem 
do positivismo jurídico moderno295 — mostram que há casos 
difíceis em que a justificação interna, por si só, não é 
suficiente, fazendo-se necessária a justificação externa que 
escapa do rigor lógico-formal. 
 O positivismo jurídico atual, que não conseguiu 
ainda se desvencilhar por completo do peso da tradição, diante 
dos casos difíceis assume a impossibilidade lógica e remete a 
tarefa da decisão para a discricionariedade do intérprete. Por 
isso o positivismo tem sido acusado de irracionalista, sendo 
precisamente neste ponto que se desenrola um dos maiores 
debates jusfilosóficos da atualidade. 
 Parece, no entanto, que o problema todo reside 
na circunstância de se ter sobrevalorizado o raciocínio 
formal, de se ter pedido mais do que ele pode oferecer. 
 Com efeito, as várias limitações da lógica 
dedutiva que foram apontadas acima não constituem, por si só, 
nenhum defeito. O problema não é da lógica, mas do ideal — que 
 
295 O que provocou, como visto, o surgimento de uma série de posturas 
críticas em relação ao positivismo. 
 202
perpassa o pensamento ocidental — que faz
dela o centro de 
toda a racionalidade.296 
 Nessas condições, qualquer teoria que estivesse 
comprometida com o resgate da razão — ou, se se preferir, com 
a defesa da possibilidade do uso da razão — para além dos 
limites estreitos da lógica, o primeiro passo deveria ser, de 
um certo modo, o rompimento com a tradição. 
 Não é de surpreender, portanto, que as 
tentativas de recuperação do domínio argumentativo viessem 
acompanhadas de uma crítica do pensamento que levou ao 
pedestal o raciocínio lógico-formal. Foi isso que ocorreu, na 
década de 1950, quando despontou o pensamento original de 
Chaïm PERELMAN, que ao mesmo tempo em que era recuperada a 
tradição tópica e retórica da antigüidade, declarava o seu 
rompimento com a tradição racionalista moderna que, desde 
DESCARTES, conduziu precisamente à entronização da lógica e à 
uniformização da argumentação. Destarte, no início do 
Tratado297, PERELMAN afirma que: 
 
296 GALILEU afirmava, por exemplo, que “...não existe caminho do meio [meio 
termo] entre a verdade e o falso, assim nas demonstrações necessárias ou 
aceitamos conclusões indubitáveis ou silogiza-se sem desculpa, sem ter a 
possibilidade, mesmo limitadamente, com distinções distorcendo as palavras 
ou com outros recursos, sustentar-se em pé, mas é necessário, com palavras 
breves, e na primeira vez, permanecer César ou nada” (GALILEU. O ensaiador, 
p. 73). Ver nota de rodapé número 286, supra. 
297 La nouvelle rhetorique. Traite de L’argumentation, escrito em 
colaboração com Lucie OLBRECHTS-TYTECA, cuja primeira edição foi publicada 
em 1958. 
 203
“ ... A própria natureza da deliberação e da 
argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois 
não se delibera quando a solução é necessária e não se 
argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é 
o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em 
que este último escapa às certezas do cálculo.”298 
 
 Ao delimitar o campo da argumentação ao 
verossímil, ao plausível e ao provável, é para um fenômeno 
particular que se está a apontar, sendo que daí PERELMAN 
identificará o essencial da teoria da argumentação: a adesão. 
Assim, “...o objeto dessa teoria é o estudo das técnicas 
discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos 
espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”.299 
 É por isso que esta teoria se caracteriza como 
uma nova retórica.300 Ao incidir sobre o fenômeno da adesão a 
sua atenção recai não sobre o valor formal dos argumentos mas 
sobre as suas características operatórias e sobre o espaço da 
sua recepção, isto é, sobre os esquemas argumentativos 
utilizados e o auditório visado numa dada argumentação, uma 
 
298 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova 
retórica, p. 1. Entra-se no domínio daquilo que, já para ARISTÓTELES, era 
tido como o âmbito da racionalidade prática, onde “...deliberar e calcular 
são a mesma coisa, mas ninguém delibera sobre coisas invariáveis [que não 
podem ser diferentemente]” (ARISTÓTELES, Ética a nicômacos, p. 114). Ver 
também BERTI, Enrico. Obra citada, p. 143-145. 
299 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova 
retórica, p. 4. 
300 “... Com efeito, a área cujo estudo teórico queríamos fazer reviver é a 
das provas que Aristóteles chamava dialéticas e que, por causa do sentido 
específico que é associado à palavra ‘dialética’ no pensamento 
contemporâneo, preferimos qualificar de retóricas” (PERELMAN, C. Retóricas, 
p. 268). 
 204
vez que “...é em função de um auditório que qualquer 
argumentação se desenvolve”.301 
 Em PERELMAN é conferida uma primazia às 
questões da razão prática e ao raciocínio prático302 — que 
implica valores — o que o conduz à elaboração de uma teoria da 
argumentação que, conforme visto, somente será possível pela 
crítica e abandono da noção de evidência como marca distintiva 
da razão, culminando numa proposta de alargamento da própria 
noção da razão, conforme aduz GRÁCIO: 
“ ... Nasce então a teoria da argumentação, 
empreendida para fazer estourar a tradicional conexão do 
racional e do necessário, do não-necessário e do 
irracional, e encaminhar-se para uma concepção alargada 
da razão, integrando a argumentação ao lado da 
demonstração. A razão não serve apenas para descobrir a 
verdade e o erro, mas também para justificar e 
argumentar, para organizar o jogo movente das 
preferências: não apenas para decretar e para 
constranger, mas, também, para operar e para generalizar 
inversões de hierarquias, para ordenar estruturas que, 
longe de pretenderem ser eternas e absolutas, são 
solidárias de todo o sistema das significações práticas 
existentes.”303 
 
 
301 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Obra citada, p. 6. 
302 PERELMAN define o raciocínio prático como sendo aquele “...que justifica 
uma decisão. Falaremos de raciocínio prático toda vez que a decisão depende 
de quem a toma, sem que ela decorra de premissas consoantes a regras de 
inferência incontestes, independentemente da intervenção de qualquer 
vontade humana. 
(...) 
“... O raciocínio prático, em contrapartida, por recorrer a técnicas 
da argumentação (...) implica um poder de decisão (...), a liberdade de 
quem julga. Sua meta é mostrar, conforme o caso, que a decisão não é 
arbitrária, ilegal, imoral ou inoportuna, mas é motivada pelas razões 
indicadas” (PERELMAN, C. Ética e direito, p. 278 e 280). 
 
303 GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 33-34. 
 205
 A teoria da argumentação de PERELMAN, segundo 
MENDONÇA, “...coloca em xeque todo um paradigma de estudo das 
ciências humanas e sociais, fundado em uma lógica matemática 
de fundo demonstrativo”304, constituindo, segundo José Américo 
Motta PESSANHA, “...uma das mais importantes contribuições, em 
nosso século, à revisão do conceito de Razão, incidindo 
particularmente sobre a questão da cientificidade no campo das 
ciências humanas ou sociais”.305 
 Com efeito, conceber a racionalidade a partir 
das exigências da ação faz com que a razão seja vista não mais 
sob uma ótica de contemplação da verdade, mas da 
justificação306 das nossas convicções e opiniões: 
“ Apenas a existência de uma argumentação, que não 
seja nem coerciva nem arbitrária, confere um sentido à 
liberdade humana, condição de exercício de uma escolha 
racional. Se a liberdade fosse apenas adesão necessária 
a uma ordem natural previamente dada, excluiria qualquer 
 
304 MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais, 
p. 86. 
305 PESSANHA, José Américo Motta. A teoria da argumentação ou nova retórica, 
p. 221. 
306 Segundo Tércio Sampaio FERRAZ JR., “... É nessa situação que o discurso 
se dá como discussão fundamentante, onde aparece a finalidade do 
entendimento e, eventualmente, da persuasão e convencimento, o que 
significa que nem todo discurso implica uma justificação argumentada 
efetivamente realizada, significando, porém, que uma tal justificação pode 
sempre ser exigida, desde que aquele que fala pretenda aparecer com 
autoridade, e aquele que ouve a ponha em dúvida. Nesses termos, todo 
discurso, toda ação lingüística envolve uma regra fundamental, que 
denominamos dever de prova. Esse dever, que se manifesta na reflexividade 
da discussão, é sua regra básica, constituindo o centro ético e lógico da 
discussão, a partir do qual é possível conceber a discussão, tendo em vista 
os seus diferentes componentes, como uma unidade estruturada. Não há 
discussão sem onus probandi; se há um dever de dizer, há também um dever de 
provar o que se diz. Centro ético da discussão, esse dever estabelece, 
também, uma relação entre os componentes da discussão, permitindo-lhe,
assim, uma estrutura” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e 
comunicação, p. 7-8). 
 206
possibilidade de escolha; se o exercício da liberdade 
não fosse fundamentado em razões, toda escolha seria 
irracional e se reduziria a uma decisão arbitrária 
atuando num vazio intelectual. Graças à possibilidade de 
uma argumentação que forneça razões, mas razões não-
coercivas, é que é possível escapar ao dilema: adesão a 
uma verdade objetiva e universalmente válida, ou recurso 
à sugestão e à violência para fazer que se admitam suas 
opiniões e decisões.”307 
 
 A possibilidade de se tomar decisões nos traz a 
noção de liberdade que, segundo PERELMAN, só pode se dar num 
ambiente pluralista, posto que apenas o pluralismo confere 
“...o sentido da responsabilidade e da liberdade nas relações 
humanas. Quando não há nem possibilidade de escolha nem 
alternativa, não exercemos a nossa liberdade. A deliberação é 
que distingue o homem do autômato”.308 A liberdade implica a 
possibilidade de inventar e a possibilidade de aderir, 
capacidades estas que não têm lugar nem numa filosofia 
puramente analítica e nem numa filosofia apenas preocupada com 
a verdade, já que, no primeiro caso, “...a invenção vale 
apenas como descoberta”309 e, no segundo, “...a adesão 
desaparece ante a verdade”.310 
 Nesse sentido, com o rompimento das barreiras 
impostas pelo dogmatismo, a razão não obriga à unidade e ao 
 
307 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova 
retórica, p. 581. 
308 PERELMAN, Chaïm. Retóricas, p. 90. 
309 PERELMAN. C. Idem, p. 250. 
310 PERELMAN. C. Idem, ibidem. 
 207
consenso; nem a falta de acordo deve ser encarada como 
sinônimo de irracionalidade.311 
 Feitas estas considerações iniciais, cabe agora 
mencionar os pontos de partida da nova retórica de PERELMAN, 
que, segundo GRÁCIO, são os seguintes: 
“ ... 1) os homens têm que organizar-se entre si; 2) 
esta organização, para evitar soluções de pura 
violência, implica a capacidade para se estabelecerem 
acordos e partilharem convicções; 3) é na adesão 
coletiva, explícita ou implícita, a valores que se funda 
a vida social; 4) a razão intervém quando a ordem 
estabelecida necessita de renovação ou se verificam 
transformações que há que justificar. Destes pontos 
decorre, naturalmente, uma conclusão: aquilo a que se 
possa chamar razão e aquilo que se possa considerar 
racional deve ser procurado a partir de uma análise do 
modo como, na prática, se procuram estabelecer soluções 
de continuidade relativamente a mudanças — numa palavra, 
justificar — que, segundo as exigências da própria ação, 
se têm que operar nos quadros de referência a partir dos 
quais os homens, aderindo a valores, convicções e 
normas, se organizam em sociedade.”312 
 
 
311 “... O que é essencial é que, sejam quais forem os motivos do início da 
reflexão filosófica, ela não se concebe, a meu ver, sem uma ruptura da 
comunhão do homem com o seu meio, sem os primeiros questionamentos daquilo 
que, até então, era óbvio, tanto na visão do mundo como naquela do lugar 
que nele ocupamos; primeiros questionamentos tanto de nossas crenças como 
de nossas modalidades de ação. Ora, do questionamento ao desacordo, e do 
desacordo ao uso da força para restabelecer a unanimidade, a passagem é tão 
normal que quase não necessita de comentários. O que é excepcional, em 
contrapartida, e constituiu uma data na história da humanidade, é que se 
tenha permitido que, em matérias fundamentais, reservadas à tradição 
religiosa e aos seus porta-vozes, o uso da força possa ser substituído pelo 
da persuasão, que se possam formular questões e receber explicações, 
avançar opiniões e submetê-las à crítica alheia. O recurso ao logos, cuja 
força convincente dispensaria o recurso à força física e permitiria trocar 
a submissão pelo acordo, constitui o ideal secular da filosofia desde 
Sócrates. Esse ideal de racionalidade foi associado, desde então, à busca 
individual da sabedoria e à comunhão das mentes fundamentada no saber. 
Como, graças à razão, dominar as paixões e evitar a violência? Quais são as 
verdades e os valores sobre os quais seria possível esperar o acordo de 
todos os seres dotados de razão? Eis o ideal confesso de todos os 
pensadores da grande tradição filosófica do Ocidente”(PERELMAN, C. Ética e 
direito, p. 96). 
312 GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa, p. 24. 
 208
 A nova retórica, ao contrário da razão prática 
(moral) de KANT, não parte portanto de idéias que caracterizam 
e configuram a priori a razão, em que, por um lado, o homem é 
um fim em si mesmo, e de que, por outro, todos os fins e 
projetos individuais podem concordar, que a moralidade pode 
coincidir com o fim natural, podendo as suas regras ser 
universalizadas sem contradizerem.313 
 Vale dizer que o modelo da filosofia 
cartesiana, segundo PERELMAN, é que foi o grande responsável 
pela depreciação de uma tradição secular aberta ao diálogo: a 
tradição da retórica. Com efeito, o modelo cartesiano que 
busca conceber: 
“ ...todo progresso do conhecimento unicamente como 
uma extensão do campo aberto por esses elementos claros 
e distintos, chegar mesmo a imaginar que, no limite, num 
pensamento perfeito, que imita o pensamento divino, 
poderíamos eliminar do conhecimento tudo o que não se 
conformasse com esse ideal de clareza e de distinção, 
seria querer reduzir progressivamente o recurso à 
argumentação até o momento em que seu uso se tornaria 
completamente supérfluo. Provisoriamente, sua utilização 
estigmatizaria os ramos do saber que dela se servem, 
como áreas imperfeitamente constituídas, ainda em busca 
de seu método e não merecedoras do nome de ciência. Não 
é de espantar que esse estado de espírito tenha desviado 
os lógicos e os filósofos do estudo da argumentação, 
considerada indigna de suas preocupações, deixando-o por 
conta dos especialistas da publicidade e da propaganda, 
que caracterizavam sua falta de escrúpulos e sua 
oposição constante a qualquer busca sincera da 
verdade.”314 
 
313 Neste aspecto a moral Kantiana seria utópica à medida em que, 
apresentando uma hierarquização de deveres, nega a possibilidade de um 
conflito de deveres, ou seja, o imperativo categórico descrito no capítulo 
anterior não poderia ser estabelecido a priori. 
 
314 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumantação: a nova 
retórica, p. 577. 
 209
 Essa depreciação da retórica promovida, 
sobretudo pelo racionalismo315, será combatida por PERELMAN 
através da elaboração de uma teoria da argumentação que faça 
“...reviver uma tradição gloriosa e secular”.316 
 Esse resgate da tradição retórica estará 
centrado precisamente na forma de racionalidade que 
ARISTÓTELES317 chamava de dialética, cuja “...primeira 
 
315 Note-se que, para que PERELMAN, é a perda das ilusões do racionalismo 
clássico e a necessidade de romper definitivamente com o positivismo que 
torna oportuna a reabilitação da tradição retórica. Reabilitar a retórica 
significa libertá-la de todo um conjunto de conotações pejorativas que se 
associaram ao próprio termo retórica e que conduziram à sua desvalorização 
e depreciação. As idéias segundo as quais a retórica é um conjunto de 
procedimentos para enganar ignorantes, que o seu domínio de estudo é o das 
figuras de estilo ou dos ornamentos do discurso, que nela o que interessa é 
a forma e não o conteúdo, de que nela o que conta é fazer prevalecer os 
interesses pessoais e não dar realmente resposta aos verdadeiros problemas, 
procedem, no fundo, do triunfo do dogmatismo que elege, para a resolução 
dos problemas, instâncias últimas de soberania — sejam elas a razão, a 
experiência ou a revelação — que
asseguram, contra o vago e o confuso, 
contra o ambíguo e o incerto, numa palavra, contra o problemático e o 
controverso, um espaço de aproblematicidade em que o plano das hipóteses e 
da plausibilidade é descartado em detrimento de um plano an-hipotético em 
que a solução se impõe como única solução; é que o dogmatismo é solidário 
do monismo axiológico, que transforma os problemas de valor em problemas de 
verdade. Reabilitar a retórica é, por isso, mostrar a fecundidade do que, 
de um ponto de vista dogmático, sempre se considerou como defeito: mostrar 
a importância das noções confusas e dos juízos de valor; mostrar como a 
controvérsia e o debate não são desprovidos de razão; mostrar como, aí, a 
razão se exerce; mostrar que a redução dos meios de provas às provas 
formais ou experimentais deixa de fora todo um campo que diretamente diz 
respeitos às coisas humanas e ao real humano (Cf. PERELMAN. C. Retóricas, 
p. 180-184). 
316 PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova 
retórica, p. 5. 
317 BERTI assim justifica o por quê da escolha de ARISTÓTELES e não de 
outros pensadores clássicos que também trataram da retórica: “O que mais 
interessa na polêmica de Aristóteles contra Isócrates e, portanto, contra a 
retórica de tipo gorgiano é a nova concepção de retórica como arte da 
comunicação, não mais do puro encantamento ou da pura sugestão emotiva: por 
esse motivo a retórica de Aristóteles atraiu o interesse dos filósofos 
contemporâneos, seja como possível lógica do discurso político ou 
judiciário, seja como ocasião de recuperação da dimensão comunicativa da 
linguagem, para além daquela dimensão puramente instrumental própria da 
ciência e da técnica modernas” (BERTI, Enrico. As razões de aristóteles, p. 
170). 
 210
caracterização, extremamente densa de significado, que 
Aristóteles nos oferece da dialética é exatamente o exórdio 
dos Tópicos: ‘nosso tratado se propõe encontrar um método 
(méthodos) de investigação graças ao qual possamos raciocinar, 
partindo de opiniões geralmente aceitas (éndoxa), sobre 
qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também 
capazes, quando replicamos a algum argumento, de evitar dizer 
alguma coisa que nos causa embaraços (I 1, 100 a 18-21)’.”318 
 Neste sentido, “...dialética significa discurso 
ou intercâmbio entre dois ou mais oradores que expressam 
opiniões diversas, tendo, assim, a conotação de um pensar 
baseado na oposição interpessoal”319, sendo, portanto, “...a 
arte das contradições”320, noção esta que se confirma a partir 
do que BERTI fala a esse respeito: 
 
318 BERTI, Enrico. Obra citada, p. 19. Segundo REBOUL: “A dialética é, pois, 
um jogo cujo objetivo consiste em provar ou refutar uma tese respeitando-se 
as regras do raciocínio. O papel do inquiridor ‘é concluir a discussão de 
modo que o defensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como 
conseqüências necessárias de sua tese’ (...). Ao outro, em contrapartida, 
cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial é que cada um mostre 
que raciocinou bem e utilizou todos os argumentos a seu alcance. E esse 
‘mostrar’ já não é simples aparência; é o sofista que raciocina na 
aparência, exatamente como o trapaceiro, que faz de conta que está jogando. 
Quanto à dialética, é uma argumentação que vai da aparência à aparência, 
mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o que reforça ainda 
mais a idéia de jogo é a afirmação de Aristóteles: quando um dos dois 
adversários raciocina mal, a discussão vira chicana, e o faltoso ‘impede o 
bom cumprimento da obra comum’ (...); como em todo jogo, cada parceiro 
persegue seu próprio objetivo, porém ambos perseguem um objetivo comum, que 
é chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas ambos querem levar a 
bom termo ‘a obra comum’” (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p. 32). 
319 PRADO, Lidia Reis de Almeida. A lógica do razoável na teoria da 
interpretação do direito. p. 36. 
320 ASSIS, Olney Queiroz. Interpretação do direito sob o enfoque tópico-
retórico: uma contraposição ao método sistemático, p. 20. 
 211
“ A discussão dialética supõe, portanto, que os dois 
interlocutores discutam na presença de um público (de 
ouvintes, mas hoje dir-se-ia leitores), o qual, em certo 
sentido, faz as vezes de árbitro, e decide qual dos dois 
teve sucesso, isto é, conseguiu refutar o outro ou não 
fazer-se refutar pelo outro. As premissas ‘conhecidas’, 
que de agora em diante denominaremos, por brevidade, 
pelo nome grego éndoxa, são partilhadas por todos os 
ouvintes, por isso servem como ponto de referência comum 
para a discussão. Do mesmo modo é partilhada pelos 
ouvintes a regra segundo a qual a contradição é signo da 
falsidade de uma tese, e, portanto, aquele que nela 
incorre deve ser considerado perdedor. Aquele que 
pergunta, por conseguinte, caso queira obter de seu 
interlocutor certa resposta, que lhe permita refutá-lo, 
deverá formular sua pergunta de modo que o outro seja 
quase obrigado a dar-lhe certa resposta, e isso 
acontecerá se a resposta for conforme a alguma coisa 
‘conhecida’, isto é, éndoxon. A habilidade de cada um 
consistirá em chegar ao resultado por ele desejado, e 
temido pelo outro, mesmo atendo-se aos éndoxa, isto é, 
não se pondo em contradição com o público, que é o 
árbitro. Para o público, com efeito, o que é éndoxon 
deve ser aceito, enquanto o que é contraditório deve ser 
refutado.”321 
 
 Quanto à noção de dialética322, cumpre alertar 
para um aspecto importante que, segundo BERTI, tem sido a 
origem de muitos equívocos na interpretação do pensamento 
aristotélico. É que o termo éndoxa (opiniões geralmente 
aceitas) tem sido traduzido por premissas prováveis ou, ainda, 
por premissas verossímeis. No entanto, para BERTI, a diferença 
entre premissas verdadeiras (que operam nos raciocínios por 
demonstração) e premissas éndoxa não é de grau: 
“ ...como fazem pensar aqueles que traduzem éndoxa 
por ‘premissas prováveis’, dando a impressão de que se 
 
321 BERTI, E. Obra citada, p. 23. 
322 Como visto, PERELMAN preferiu denominá-la de retórica em face da 
polissemia que o termo dialética foi acumulando através dos tempos. Com 
efeito, segundo BERTI: “O que Perelman denomina ‘retórica’, portanto, não é 
senão o que Aristóteles denominava dialética” (BERTI, Enrico. Aristóteles 
no século xx, p. 287). 
 212
trata de uma aproximação à verdade de tipo estatístico 
(isto é, de premissas com um grau de verdade superior a 
50%), nem se trata da diferença entre realidade e 
aparência, como fazem pensar aqueles que traduzem éndoxa 
por ‘premissas verossímeis’, dando a impressão de que 
não são verdadeiras.”323 
 
 Com efeito, segundo BERTI, quem “...conhece a 
dialética de Aristóteles sabe que isso não é verdade, e que as 
premissas das argumentações dialéticas, isto é, os éndoxa, 
distinguem-se das premissas da argumentação científica, isto 
é, das definições e dos axiomas, não porque sejam somente 
verossímeis, mas exatamente porque devem receber a adesão de 
todos os interlocutores, sendo professados por todos ou pelos 
sophói, isto é, pelos ‘especialistas’, pelos ‘competentes’.”324 
 Portanto, o que se pretende esclarecer é que, 
para ARISTÓTELES, a dialética (retórica, para PERELMAN) não 
renuncia à verdade e nem se contenta com um grau de verdade 
inferior ao da ciência, “...porque a dialética simplesmente 
não se preocupa com a verdade, mas apenas com a discussão, 
isto é, com a refutação e, portanto, com o consenso que a esta 
é indispensável”.325 
 Mas, na transposição do pensamento de 
ARISTÓTELES para a teoria da argumentação de PERELMAN os 
éndoxa poderão, em alguns casos, fugir à noção ortodoxa do 
 
323 BERTI, E. As razões de aristóteles, p. 24-25.

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