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INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ANDRÉ FRANCO MONTORO INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO © desta edição: 2000 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. Diretor Responsável: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800112433 Rua Tabatinguera, 140, Térreo, Loja 1 • Caixa Postal 678 Tel. (011) 31152433 • Fax (011) 3106 3772 CEP 01020901 São Paulo, SP, Brasil Aos meus alunos com a esperança de que, bem conhecendo o Direito, melhor possam servir à Justiça. "Teu dever é lutar pelo direito, mas no dia em que encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça" (Dos mandamentos do advogado redigidos por EDUARDO COUTURE) "O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Todos os direitos da humanidade foram conseguidos na luta. O direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos, mas da nação inteira" (A luta pelo direito, IHERING) Ao concluir o presente volume, escrito simultaneamente ao exercício do magistério e ao desempenho do mandato parlamentar, pareceume de justiça dedicálo: a meus pais, de quem recebi a lição simples do amor ao trabalho; à minha mulher, que me ajudou e estimulou a seguir essa lição; a meus filhos e netos, a quem espero deixar a mesma mensagem. Brasília, julho de 1971. "O moderno é ler Platão." Umberto Eco "Enquanto na Europa Moderna os filósofos idealistas constroem cada um seu sistema pessoal, a filosofia de Aristóteles, descrição e visão do real, tornouse um bem comum da humanidade. Os juristas não têm o direito de ignorar essa filosofia." Michel Villey "Para certo público universitário S. Tomás seria um símbolo do `obscurantismo medieval', ultrapassado pela ciência moderna. É suficiente lêlo para mudar de opinião." Michel Villey "Recriminaramme, com razão, a ignorância das idéias de S. Tomás. Quantos erros teriam sido evitados se houvéssemos conservado com fidelidade as suas doutrinas! Quanto a mim, creio que se as houvesse conhecido antes, não teria escrito o meu livro. As idéias fundamentais que desejava publicar já se acham expressas, com clareza perfeita e notável profundidade, por esse pensador vigoroso." lhering "A análise do sentimento de justiça foi feita por S. Tomás em termos que nunca foram ultrapassados." L. Duguit SUMÁRIO Prefácio à 25.' edição 1 Prefácio à 23.' edição: "Nova Visão do Desenvolvimento" 3 Prefácio à 21.' edição: "Novos Direitos da Pessoa Humana" 7 1. Direito ao ambiente sadio (9); 2. Direito ao trabalho (12); 3. Direitos do Consumidor (13); 4. Direito de participação (15); 5. Direito ao desenvolvimento (19) Prefácios anteriores 21 Plano de trabalho 25 1 PRIMEIRA PARTE O DIREITO COMO CIÊNCIA 29 (Epistemologia Jurídica) O CONCEITO DE DIREITO 2 1. Origens do vocábulo (29); 2. Pluralidade de significações do direito 61 Cinco realidades fundamentais (33); 3. Direitoconceito análogo (42); 4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do direito (44); 5. Outras formulações (53); 6. Bibliografia (59). O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 1. O direito como ciência (61); 2. Classificação das ciências de Augusto Cocote e de Dilthey (62); 3. A ordem universal (65); 4. A classificação de Aristóteles e suas modificações (70); 5. Outras formulações (77); 6. Bibliografia (81). 3 O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 83 1. A teoria no direito (83); 2. A técnica no direito (89); 3. A ética e o direito O direito como ciência normativa ética (94); 4. Outras formulações (98); 5. Bibliografia (103). 4 VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 105 5 1. As diversas ciências jurídicas (105); 2. A divisão do direito em público 121 e privado (110); 3. Outras formulações (113); 4. Bibliografia (117). SEGUNDA PARTE O DIREITO COMO JUSTO (Axiologia Jurídica) O CONCEITO DE JUSTIÇA 1. O Direito como exigência da justiça (/21); 2. Acepção subjetiva e objetiva da justiça (125); 3. Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça (128); 4. Características essenciais da justiça (130); 5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social (138); 6. Virtudes anexas à justiça (140); 7. Outras formulações (142); 8. Bibliografia (147). XII INTRODUÇÃO À CIÊNCIA ~O DIREITO 6 A JUSTIÇA COMUTATIVA 149 7 1. Conceito de justiça comutativa (149); 2 A "alteridade" na justiça 173 comutativa (151); 3. O "devido" na justi~a comutativa (152); 4. A "igualdade" na justiça comutativa (159); 5. Aplicações da justiça comutativa (160); 6. Outras formulações (154); 7. Bibliografia (171). A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 8 1. O conceito de justiça distributiva (173); Z A "alteridade" na justiça distributiva (176); 3. O "devido" na justiça distributiva (182); 4. A "igualdade" na justiça distributiva (189); 5. Aplicações da justiça distributiva (192); 6. Outras formulações (2'5); 7. Bibliografia (210). A JUSTIÇA SOCIAL 212 9 _ 1. Conceito de justiça social (212); 2. A "alteridade" na justiça social (215); 3. O "devido" na justiça social (217); 9. A "igualdade" na justiça social (225); 5. Aplicações da justiça social (227); 6. Outras formulações (231); 7. Bibliografia (240). SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 242 1. Concepção positivista e concepção ética do direito (243); 2. O positivismo filosófico (244); 3. O positivismo t;ientífico no direito (247); 4. O positivismo jurídico (252); 5. Doutrina clássica do direito natural (257); 6. Doutrina racionalista ou do direito NaturalI abstrato (272); 7. Doutrina dos valores ou da cultura (275); 8. Conclusões (279); 9. Outras formulações (282); 10. Bibliografia (289). 10 TERCEIRA PARTE O DIREITO CbMO NORMA 293 (Teoria da norma jurígica) CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 11 1. Etimologia e diversidade de significação do vocábulo "lei" (293); 321 2. A lei universal ou cósmica (296); 3. A lei humana, ética ou moral (300); 4. A lei jurídica (305); 5. Outras formulações (314); 6. Bibliografia (320). ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais. Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica (321); 2. Importância e conceito de lei: elemento formal, material e inttrumental (327); 3. As diversas espécies de lei (333);.4. Os costumes jurídicos: denominações, conceito, importância, espécies (347); 5. A jurisbrudência. Seu conceito e importância como fonte do direito (352); 6. A doutrina como fonte do direito. Conceito e importância (356); 7. O problema das fontes não estatais (358); 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores jurídicos (361); 9. Outras formulações (365); 1O. Bibliografia (367). 12 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS 1. Interpretação e hermenêutica: conceito (369); Espécies de interpretação: quanto à origem, ao método e aos efeitos (372); 3. Sistemas ou escolas de interpretação: sistemas tradicionais oti legalistas e sistemas SUMÁRIO XIII l03 modernos (375); 4. Novas correntes (379); 5. A integração jurídica e o problema das lacunas da lei (380); 6. Outras formulações (382); 7. Bibliografia (386). APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS NO ESPAÇO E NO TEMPO 388 114 1. Limites ao campo de aplicação das normas jurídicas (388); 2. Vigência 403 das leis no tempo (389); 3. Vigência da lei no espaço (396); 4. Outras formulações (398); 5. Bibliografia (402). DIVISÃO DO DIREITO EM PÚBLICO E PRIVADO 1. Histórico e critérios da givisão do direito em público e privado (403); 2. Ramos do direito público: direito constitucional, administrativo, fiscal, judiciário, penal, internacional público (406); 3. Ramos do direito privado: direito civil, direito comercial, direito do consumidor, direito do trabalho e direito internacional privado (420); 4. Outras formulações (429); 5. Bibliografia (433). QUARTA PARTE O DIREITO COMO FACULDADE (Teoriy dos Direitos subjetivos) 15 CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO : 1. Noções preliminares: denominações e problemas (437); 2. Teorias negadoras do direito subjetivo: teoria objetiva ou realista de Duguit e teoria formalista de Kelseq (438): 3. Teorias sobre a natureza do direito 1. Análise do direito subjetivo em seus elementos (454); 2. O sujeito do direito. Sujeito ativo e sujeito passivo. O problema dos direitos sem sujeito. O dever jurídico. A prestação (455); 3. Objeto do direito: objeto imediato; prestação; objeto mediato; coisas, pessoas ou ações (460); 4. A relação jurídica. Seu elemento gerador: o fato jurídico (fatos naturais, atos jurídicos e atos ilícitos) (465); 5. A proteção jurídica: a sanção, a coação e a coerção. Espécies de sanção. A ação jurídica e o direito de ação (467); 6. Outras forr>hulações (472); 7. Bibliografia (475). 17 CLASSIFICAÇÃO DOSA DIREITOS SUBJETIVOS 477 1. Critérios de classificaçN0 (477); 2. Classificação fundada no sujeito passivo: direitos relativos ee absolutos (478); 3. Classificação fundada no sujeito ativo: direitos próprios aos indivíduos, próprios às instituições e comuns a indivíduos e instituições (479); 4. Classificação fundada no objeto do direito: direitos da personalidade, direitos reais, direitos obrigacionais (480); 5. Clzassificação fundada na finalidade do direito: direitointeresse e direitoft nção (484); 6. Outras formulações (485); 7. Bibliografia (488). 437 subjetivo: doutrinas da vontade (Windscheid), do interesse (Ihenng) e mistas (Jellinek, Salleiles Michoud) (443); 4. Conclusões. Tríplice aspecto do direito subjetivo: direito interesse, direitopoder e direito relação (447); 5. Outras formulações (449); 6. Bibliografia (452). 16 ELEMENTOS DO DIREITO SUBJETIVO 454 369 XII INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 6 A JUSTIÇA COMUTATIVA 149 7 1. Conceito de justiça comutativa (149); 2. A "alteridade" na justiça 173 comutativa (151); 3. O "devido" na justiça comutativa (152); 4. A "igualdade" na justiça comutativa (159); 5. Aplicações da justiça comutativa (160); 6. Outras formulações (164); 7. Bibliografia (171). A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 8 1. O conceito de justiça distributiva (173); 2. A "alteridade" na justiça 212 distributiva (176); 3. O "devido" na justiça distributiva (182); 4. A "igualdade" na justiça distributiva (189); 5. Aplicações da justiça distributiva (192); 6. Outras formulações (205); 7. Bibliografia (210). A JUSTIÇA SOCIAL 9 _ 1. Conceito de justiça social (212); 2. A "alteridade" na justiça social 242 (215); 3. O "devido" na justiça social (217); 4. A "igualdade" na justiça social (225); 5. Aplicações da justiça social (227); 6. Outras formulações (231); 7. Bibliografia (240). SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 1. Concepção positivista e concepção ética do direito (243); 2. O positivismo filosófico (244); 3. O positivismo científico no direito (247); 4. O positivismo jurídico (252); 5. Doutrina clássica do direito natural (257); 6. Doutrina racionalista ou do direito natural abstrato (272); 7. Doutrina dos valores ou da cultura (275); 8. Conclusões (279); 9. Outras formulações (282); 10. Bibliografia (289). TERCEIRA PARTE O DIREITO COMO NORMA (Teoria da norma jurídica) 10 CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 293 11 1. Etimologia e diversidade de significação do vocábulo "lei" (293); 321 2. A lei universal ou cósmica (296); 3. A lei humana, ética ou moral (300); 4. A lei jurídica (305); 5. Outras formulações (314); 6. Bibliografia (320). ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais. Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica (321); 2. Importância e conceito de lei: elemento formal, material e instrumental (327); 3. As diversas espécies de lei (333);.4. Os costumes jurídicos: denominações, conceito, importância, espécies (347); 5. A jurisprudência. Seu conceito e importância como fonte do direito (352); 6. A doutrina como fonte do direito. Conceito e importância (356); 7. O problema das fontes não estatais (358); 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores jurídicos (361); 9. Outras formulações (365); 10. Bibliografia (367). modernos (375); 4. Novas correntes (379); 5. A integração jurídica e o problema das lacunas da lei (380); 6. Outras formulações (382); 7. Bibliografia (386). 13 APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS NO ESPAÇO E NO TEMPO 388 ........................................... 1. Limites ao campo de aplicação das normas jurídicas (388); 2. Vigência das leis no tempo (389); 3. Vigência da lei no espaço (396); 4. Outras formulações (398); 5. Bibliografia (402). 14 DIVISÃO DO DIREITO EM PÚBLICO E PRIVADO 403 1. Histórico e critérios da divisão do direito em público e privado (403); 2. Ramos do direito público: direito constitucional, administrativo, fiscal, judiciário, penal, internacional público (406); 3. Ramos do direito privado: direito civil, direito comercial, direito do consumidor, direito do trabalho e direito internacional privado (420); 4. Outras formulações (429); 5. Bibliografia (433). QUARTA PARTE O DIREITO COMO FACULDADE (Teoria dos Direitos Subjetivos) 15 CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO 437 1. Noções preliminares: denominações e problemas (437); 2. Teorias negadoras do direito subjetivo: teoria objetiva ou realista de Duguit e teoria formalista de Kelsen (438); 3. Teorias sobre a natureza do direito subjetivo: doutrinas da vontade (Windscheid), do interesse (Ihering) e mistas (Jellinek, Salleiles, Michoud) (443); 4. Conclusões. Tríplice aspecto do direito subjetivo: direito interesse, direitopoder e direitorelação (447); 5. Outras formulações (449); 6. Bibliografia (452). 16 ELEMENTOS DO DIREITO SUBJETIVO 454 1. Análise do direito subjetivo em seus elementos (454); 2. O sujeito do direito. Sujeito ativo e sujeito passivo. O problema dos direitos sem sujeito. O dever jurídico. A prestação (455); 3. Objeto do direito: objeto imediato; prestação; objeto mediato; coisas, pessoas ou ações (460); 4. A relação jurídica. Seu elemento gerador: o fato jurídico (fatos naturais, atos jurídicos e atos ilícitos) (465); 5. A proteção jurídica: a sanção, a coação e a coerção. Espécies de sanção. A ação jurídica e o direito de ação (467); 6. Outras formulações (472); 7. Bibliografia (475). 17 CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS SUBJETIVOS 1. Critérios de classificação (477); 2. Classificação fundada no sujeito passivo: direitos relativos e absolutos (478); 3. Classificação fundada no sujeito ativo: direitos próprios aos indivíduos, próprios às instituições e comuns a indivíduos e instituições (479); 4. Classificação fundada no objeto do direito: direitos da personalidade, direitos reais, direitos obrigacionais (480); 5. Classificação fundada na finalidade do direito: direitointeresse e direitofunção (484); 6. Outras formulações (485); 7. Bibliografia (488). SUMÁRIO XIII 12 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS ........................... 1. Interpretação e hermenêutica: conceito (369); 2. Espécies de interpretação: quanto à origem, ao método e aos efeitos (372); 3. Sistemas ou escolas de interpretação: sistemas tradicionais ou legalistas e sistemas 369 477 XIV INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 18 A PESSOA FÍSICA 490 1. Conceito de pessoa física. Denominações. Conceito filosófico, psicológico e jurídico de pessoa (490); 2. A capacidade da pessoa física (491); 3. Começo e fim da personalidade (494); 4. Outras formulações (497); 5. Bibliografia (498). 19 A PESSOA JURÍDICA 1. Conceito de pessoa jurídica. Denominações. Teoria sobre a natureza da pessoa jurídica (500); 2. Classificação das pessoas jurídicas (502); 3. Capacidade da pessoa jurídica (504); 4. Começo e fim da pessoa jurídica (505); 5. Outras formulações (506); 6. Bibliografia (509). QUINTA PARTE O DIREITO COMO FATO SOCIAL (Sociologia do Direito) 20 CONCEITO DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 1. Precursores, fundadores e cultores da sociologia jurídica (513); 2. Distinção entre filosofia do direito, ciência do direito e sociologia do direito (518); 3. Os grandes problemas da sociologia jurídica (520); 4. Outras formulações (523); 5. Bibliografia (525). 21 MICROSSOCIOLOGIA JURÍDICA 1. Conceito de microssociologia. Espécies jurídicas fundamentais: relações jurídicas e sedimentos jurídicos (527); 2. As relações jurídicas fundamentais: direito social e direito interindividual (530); 3. Os sedimentos jurídicos de profundidade. Direito organizado e direito espontâneo (535); 4. Outras formulações (540); 5. Bibliografia (542). 22 SOCIOLOGIA JURÍDICA DIFERENCIAL OU TIPOLÓGICA.. 1. Objeto da sociologia jurídica diferencial ou tipológica (544); 2. Ordenamentos jurídicos dos grupos particulares. Direito estatal e direito social. Direito social comum, do trabalho, do esporte, da igreja, internacional. Conclusões (545); 3. Sistemas jurídicos das sociedades globais, Tipologia de Max Weber e Gurvitch. Sistemas contemporâneos. O sistema jurídico brasileiro (558); 4. Outras formulações (576); 5. Bibliografia (579). 23 SOCIOLOGIA GENÉTICA DO DIREITO 580 1. Os temas da Sociologia Genética do Direito (580); 2. Influência da sociedade sobre o direito (581); 3. Influência do direito sobre a sociedade (592); 4. Outras formulações (596); 5. Bibliografia (600). PREFÁCIO À 25.a EDIÇÃO Em suas sucessivas edições, a presente Introdução à Ciência do Direito tem recebido diferentes prefácios. Eles vêm sendo mantidos por uma preocupação pedagógica: mostrar o direito vivo. Por isso, são indicados pontos atuais na evolução histórica do direito, como os novos direitos do meio ambiente, do consumidor, do desenvolvimento, da participação da sociedade civil. A esses direitos que vêm sendo consagrados é oportuno acrescentar um novo tipo de direito que se desenvolve paralelamente ao atual processo de integração de países em grandes comunidades regionais. Tratase do "direito comunitário", elaborado, notadamente, no processo da União Européia e na formação do Mercosul. Esse direito comunitário, distinto do direito nacional e do direito internacional clássico, é uma nova realidade jurídica que vem se formando com normas próprias leis ou normas comunitárias e até tribunais específicos, com competência jurisdicional, como o Tribunal de Luxemburgo na Comunidade Européia. Essa referência aos novos direitos mostra, em oposição às concepções estáticas e ultraconservadoras, o sentido dinâmico e transformador do direito. São Paulo, junho de 1998 ANDRÉ FRANCO MONTORO PREFÁCIO À 23. EDIÇÃO NOVA VISÃO DO DESENVOLVIMENTO "Mais grave do que o sofrimento dos famintos é a inconsciência dos fartos." Depois de sucessivas assembléias mundiais dedicadas ao "desenvolvimento econômico", a ONU, por iniciativa do ExPresidente do Chile, Patricio Aylwin, tomou a decisão histórica de convocar uma reunião de Chefes de Estado e de Governo de todos os países do mundo para debater os problemas do atual modelo de desenvolvimento e abrir caminhos para um novo "desenvolvimento social". A Conferência Cúpula Mundial pelo Desenvolvimento Social, Copenhague, 6 a 12.03.1995 teve o sentido de grave advertência sobre os rumos do desenvolvimento econômico mundial. Mostrou a face injusta e insustentável do atual progresso e indicou novos caminhos para um desenvolvimento mais humano, que não pode se limitar aos aspectos econômicos e financeiros. A reunião de Copenhague abriu, em escala mundial, uma nova visão do desenvolvimento. Três questões fundamentais integraram a ordem do dia da Conferência: 1. a luta contra a pobreza; 2. o apoio à integração social dos grupos marginalizados; 3. a criação de empregos e oportunidades de trabalho. O quadro da pobreza A mundialização da economia e o progresso das tecnologias aumentam a cada dia a interdependência entre as nações. Caminhamos para um mundo só. Chegouse a admitir que essa mundialização beneficiaria a todos. Mas a presente realidade mundial oferece contrastes gritantes. Ao lado das conquistas e avanços do desenvolvimento econômico, cresce e se agrava continuamente um quadro de miséria, desemprego, marginalização e desigualdades inadmissíveis. 4 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Os dados são estarrecedores. Enquanto avança o progresso econômico e a riqueza das nações: mais de 1 bilhão de pessoas, isto é, uma quinta parte da população mundial, passa fome e vive em condições de extrema pobreza; 30% de toda população em idade economicamente ativa está desempregada; em países altamente industrializados, e não apenas nos demais, o desemprego e a exclusão social tornaramse endêmicos. "Tanto nos Estados Unidos como na Comunidade Européia cerca de 15% da população vive abaixo do limiar da pobreza", diz textualmente o Documento de Antecedentes da Reunião de Copenhague. Pobres, desempregados, semteto, trabalhadores migrantes, meninos de rua, periferias das grandes cidades, minorias marginalizadas, constituem em todo o mundo grupos carentes, vítimas de discriminações de toda ordem. Em lugar da igualdade desejada existe o progressivo agravamento das desigualdades. "Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres", enfatizou o SecretárioGeral das Nações Unidas, Sr. . A persistência e o contínuo agravamento dessa realidade mostram que não se trata de uma situação conjuntural, mas de um quadro de pobreza estrutural grave e ameaçadora. É urgente modificar esse quadro. Como disse o Presidente da França, Mitterrand, "não podemos deixar que o mundo se transforme num mercado global, sem outra lei que a do mais forte. Precisamos repensar esse mundo e introduzir o social entre os pontos maiores de nossas preocupações". Integração dos marginalizados Para enfrentar a situação de pobreza e dos grupos marginalizados, não bastam os tradicionais programas de socorro e assistência. Impõese o esforço pela adoção de uma nova política de integração social. • preciso incluir os excluídos. • desenvolvimento social, centrado na dignidade das pessoas humanas e no reconhecimento da cidadania, exige não apenas medidas emergenciais de alívio à pobreza, mas políticas que elevem os marginalizados à condição não de objeto, mas de agentes do seu próprio desenvolvimento. Essa integração dos excluídos e sua participação nos programas de desenvolvimento só são possíveis em nível local. Documentos preparatórios da Conferência indicaram a necessidade de "acolher PREFÁCIO À 233 a EDIÇAO 5 formas descentralizadas de gestão da coisa pública" e de "políticas sociais descentralizadas", longe das custosas centralizações burocráticas • mais perto das populações locais. Os debates mostraram a importância e o sucesso de programas descentralizados e iniciativas locais, ao lado do fracasso de grandes programas centralizados, de custos elevados, geradores de corrupção • ineficiência. Exemplos dessa ineficiência encontramse em todas as partes do mundo. O Relatório Nacional Brasileiro, com base nos cálculos do Banco Mundial, reconheceu que "somente 10% dos recursos empregados em programas sociais atingem seu públicoalvo", isto é, 90% dos recursos disponíveis são absorvidos pela burocracia e por medidas • contratos de seriedade discutível. Até mesmo na Dinamarca, uma gigantesca rede de assistência pública criou uma camada de parasitas sociais, para quem mais vale a pena viver do seguro desemprego concedido pelo Estado do que trabalhar. Cálculos do próprio Governo indicam que existem cerca de 200 mil assistidos no país. Criação de empregos O grande caminho para a integração dos marginalizados é a criação de novos empregos. A maior parte da população em estado de pobreza não possui emprego. Como escreveu Ignácio Sachs, o progresso dos dois primeiros objetivos da Conferência combate à miséria e integração social dependerá em grande parte dos resultados alcançados na criação de empregos, pois "a integração produtiva é a única forma de atacar as raízes da exclusão social". E, em linguagem mais simples, o Presidente do Chile, Eduardo Frei, e o PrimeiroMinistro Felipe Gonzalez, da Espanha, disseram com palavras semelhantes: "O melhor caminho para sair da pobreza é o trabalho". Os Estados, os organismos internacionais e a sociedade civil dispõem de meios e possibilidades de executar uma ampla política de emprego, através de investimentos em infra estrutura e projetos geradores de emprego, ação descentralizada e participativa, incentivo as economias locais. Lugar destacado nesses programas deve ocupar o apoio às pequenas empresas e cooperativas, que são os principais geradores de trabalho e renda. No Brasil existem hoje cadastradas mais de 4 milhões de pequenas empresas. E as não cadastradas são em número bem maior, gerando oportunidades de trabalho para milhões de brasileiros. Existem hoje, em todo o mundo, milhares de experiências, exemplos e possibilidades de multiplicação de pequenos empreen 8 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 9 Ao lado dos técnicos da administração, da economia, da informática e das demais especializações, os homens do direito têm a missão específica de atuar no sentido de que o desenvolvimento da vida social se processe em termos de justiça, isto é, que se assegure a cada homem e a todos os homens o respeito que lhes é devido, a partir de sua dignidade fundamental de pessoa. A justiça é o valor que deve iluminar todo o campo do direito. Não se trata de contrapor a realidade a um modelo idealista e absoluto que "fica longe numa caverna platônica". É na planície em que vivemos, no processo históricosocial da luta entre liberdade e opressão, minorias dominadoras e maiorias sacrificadas, manifestações de violência ou movimentos de solidariedade, que se há de exercer, com espírito crítico e independente, a tarefa de construção dos homens do direito. Nessa luta pela vigência concreta e viva da justiça é que se realiza a razão de ser do direito. Não podemos limitar o estudo do direito ao conhecimento pretensamente "neutro", "puro" e "objetivo" da norma estabelecida, para sua "cega" aplicação. A realidade social e a justiça, como valor fundamental, estão presentes em todos os momentos da vida do direito: na elaboração de normas, na sua interpretação e aplicação, nas sentenças, pareceres, petições e recursos. Aceitar as normas jurídicas estabelecidas como inexorável imposição dos detentores do poder e negar ao jurista outra tarefa que não seja a de executor mecânico das mesmas significa desnaturar o direito e, mais do que isso, traílo. É certo que forças poderosas atuam continuamente, com habilidade e competência, no sentido de impor à sociedade normas que atendem a seus interesses e objetivos, muitas vezes contrários ao bem comum. É certo também que vivemos em uma sociedade marcada pela injustiça. Mas essa situação, em lugar de diminuir, só pode aumentar a importância e a responsabilidade dos cultores do direito. Ela nos obriga a rejeitar, com maior veemência, o papel que se pretende impor ao jurista: o de instrumento insensível destinado à defesa de um sistema de interesses estabelecidos. A certas concepções formalistas e normativistas, é preciso opor uma visão humanista e humanizadora do direito. Formalismo jurídico ou humanisno jurídico? A resposta que decorre da própria natureza do direito e está contida em um dos mandamentos do advogado, redigidos por Eduardo Couture, é clara e imperativa: "Teu dever é lutar pelo direito, mas, no dia em que encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça!" Como adverte Stammler: "Todo direito deve ser uma tentativa de um direito justo". A fonte das fontes do direito é a pessoa humana. NOVOS DIREITOS De uma forma geral, todo sistema jurídico moderno reconhece a pessoa humana como valor supremo do direito. Os Códigos e as Constituições definem, com a possível precisão e crescente abrangência, os direitos básicos da pessoa humana. E essa uma tendência universal. Após longa tradição de solenes documentos nacionais e internacionais, a partir da Magna Carta (1.215), passando pelo Bill of Rights inglês de 1699, a Declaração da Independência dos Estados Unidos (04.07.1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 26.08.1789), vigora hoje, com a aprovação da AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 10.12.1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, "como ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as Nações". A Declaração Universal proclama, em seu primeiro "considerando', que o "reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos gerais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade da justiça e da paz do mundo". Todos reconhecem que não existe um número fechado desses direitos. A dinâmica da vida econômica e social e as transformações que se operam especialmente no campo de novas tecnologias fazem surgir novas realidades e situações que repercutem sobre as pessoas e sua relações. Essas situações geram novos problemas e a necessidade da formulação de novos direitos. Entre os novos direitos da pessoa humana que passam a ser reconhecidos pelos sistemas jurídicos contemporâneos, podem ser destacados: I. direito ao ambiente sadio; 2. direito ao trabalho; 3. direitos do consumidor; 4. direito de participação; 5. direito ao desenvolvimento. 1. DIREITO AO AMBIENTE SADIO A questão ecológica é um dos temas mais importantes de nosso século. O desenvolvimento científico e tecnológico deu aos homens enorme poder de destruição, que atinge a qualidade de vida de milhões de pessoas. Como defesa da sociedade, diante dos males e ameaças provocados pelas diversas modalidades de poluição do ar, das águas, do solo, da flora e da fauna, estão sendo elaboradas novas normas em quase todos os campos do direito. Em seu conjunto, essas normas de direito constitucional, administrativo, penal, internacional, civil, 10 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO processual e outros constituem o que se poderia chamar o moderno direito ecológico. Entre essas normas, ocupam lugar destacado aquelas que definem o direito das pessoas a um ambiente sadio. A nova Constituição do Brasil afirma expressamente esse direito nos termos seguintes: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preserválo para as presentes e futuras gerações" (art. 225). Outras Constituições recentes, como as da Espanha e Portugal, contêm disposição semelhante.' Para a garantia desse direito, diversas normas estão sendo incorporadas à legislação, como a definição do "crime ecológico", imputável aos responsáveis pela poluição, ou a exigência do estudo do "impacto ambiental" provocado por qualquer projeto de obra pública ou privada capaz de alterar o meio ambiente. Muitas legislações dispõem amplamente sobre o dever do Estado no sentido de proteger Constituição da Espanha, de 1978: "Art. 45. 1. Todos têm direito a desfrutar de um meio ambiente adequado ao desenvolvimento da pessoa, assim como o dever de o conservar. Os Poderes Públicos velarão pela utilização racional de todos os recursos naturais, com o fim de preservar e melhorar a qualidade de vida e defender e restaurar e meio ambiente, apoiandose na indispensável solidariedade coletiva. Contra os que violarem o disposto no número anterior nos termos que a lei fixar serão estabelecidas sanções penais ou, se for caso, sanções administrativas, bem como a obrigação de reparar o dano causado". Constituição de Portugal de 1982: "Art. 66 (Ambiente e qualidade de vida). Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. Incumbe ao Estado por meio de organismos próprios e por apelo e apoio a iniciativas populações: a) prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão; b) ordenar o espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas; c) criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico; d) promover o aproveitamento nacional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica. E conferido a todos o direito de promover, nos termos da lei, a prevenção ou a cessação dos fatores de degradação do ambiente, bem como, em caso de lesão direta, o direito à correspondente indenização. O Estado deve promover a melhoria progressiva e acelerada da qualidade de vida de todos os portugueses". Por sua originalidade, é interessante reproduzir o texto adotado pela Constituição das Filipinas de 1986. Art. II, Seção 16: "O Estado protegerá e promoverá o direito do povo a uma ecologia equilibrada e saudável de acordo com o ritmo e a harmonia da natureza". PREFÁCIO À 211 a EDIÇÃO 11 o meio ambiente, criam organismos administrativos destinados a essa proteção ou instituem processos de "consulta obrigatória" à população interessada. Dentro dessa linha e para assegurar a efetividade desse direito das pessoas a Conciliação Brasileira impõe ao Poder Público, entre outras, as seguintes obrigações: preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. 4. exigir, na forma de lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; 5. controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; 6. promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; 7. proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em riscos sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (art. 225). E um amplo conjunto de leis, decretos, portarias, resoluções, sentenças judiciais e decisões administrativas dispõem sobre diferentes aspectos da proteção ambiental."' 1. 2. 3. Código de Águas (Dec. 24.643, de 10.07.1934), Convenção para proteção da flora, fauna e belezas naturais dos países da América (Dec. Legislativo 3, de 13.02.1948), Código Nacional de Saúde (Lei 2.312, de 03.09.1954, e Dec. 49.974A, de 21.01.1961), normas sobre o lançamento de resíduos tóxicos ou oleosos nas águas interiores ou litorâneas (Dec. 50.877, de 29.06.1961, e Lei 5.357, de 17.11.1967), normas determinando a arborização das margens das rodovias do Nordeste e a construção de aterros e barragens para represamento de águas (Dec. 4.466, de 12.11.1964), Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30.11.1964), novo Código Florestal (Lei 4.775, de 15.09.1965), promulgação do tratado de proscrição de experiências com armas nucleares na atmosfera, no espaço cósmico e sob a água (Dec. 58.380 de 26.04.1966), Lei de proteção 12 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 2. DIREITO AO TRABALHO O desemprego e o subemprego de milhões de trabalhadores, em todo o mundo, constituem hoje uma das maiores ameaças ao desenvolvimento das nações e à sua convivência no plano internacional Razões de ordem tecnológica, como a automação e práticas comerciais, financeiras e monetárias, na economia mundial e nacional, vêm contribuindo para o agravamento do problema, considerado um dos mais dramáticos de nossa época. Diante da gravidade da situação, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) decidiu, em 1984, convidar os representantes dos governos, dos trabalhadores e dos empregadores e os demais órgãos ou autoridades responsáveis pelo planejamento para examinar as repercussões das práticas comerciais, financeiras e monetárias internacionais sobre o desemprego e a pobreza. Esse apelo foi reiterado na Conferência da OIT, em 1986. E finalmente, em novembro de 1987, foi realizada em Genebra a reunião extraordinária de alto nível destinada a debater esse problema, com a participação de representantes, no plano mundial, de empregados, de empregadores, governos e entidades internacionais como o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, FAO, UNESCO, Organização Mundial de Saúde e outros. No Documento de Base, preparado pela OIT, são lembradas as disposições da Declaração de Filadelfia, em que se afirma: "Todos os seres humanos, sem distinção de raça, credo ou sexo, têm o direit de promover seu bemestar material e seu desenvolvimento espiritual em condições de liberdade e dignidade, de segurança econômica e e igualdade de oportunidades". à fauna (Lei 5.197, de 03.01.1967), Lei de proteção e estímulos à pesca (Dec. lei 221, de 28.02.1967), criação do Instituto Brasileiro de Desenvolviment Florestal (Dec. lei 289, de 28.02.1967), instituição da Política Nacional d Saneamento (Lei 5.318, de 26.09.1967), criação da Secretaria Especial do Mei Ambiente SEMA (Dec. 73.030, de 30.10.1973), medidas de prevenção controle da poluição industrial (Dec.lei 1.413, de 14.08.1975 e Dec. 76.389 de 03.10.1975), convenção relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (Dec. Legislativo de aprovação 74, de 30.06.1997), instituição d Sistema de Proteção ao Programa Nuclear Brasileiro SIPRON (Dec.lei 1.809, de 07.10.1980), política nacional do meio ambiente (Lei 6.938, de 31.08.1981, e Dec. 88.351, de 01.06.1983), normas sobre distribuição e comercialização de produtos agrotóxicos (Lei estadual de São Paulo 4.002, de 05.01.1984), ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente (Lei 7.347, de 24.07.1985), medidas para proteção de florestas existentes nas nascentes dos rios (Lei 7.754, de 14.04.1989), normas sobre criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental e sobre Política Nacional do Meio Ambiente (Dec. 99.274, de 06.06.1990, e Lei 7.804, de 18.07.1989), fixação de padrões de qualidade do ar (Resolução CONAMA 3, de 28.06.1990). PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 13 Estão aí as raízes de um novo direito da pessoa humana que começa a ser definido nas constituições, na legislação, em acordos coletivos e na vida do direito em todo o mundo: o direito ao trabalho. Entre os direitos sociais, consagrados na Declaração Universal de 1948, está afirmado expressamente o direito ao emprego ou ao trabalho nos termos seguintes: "Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de seu emprego, a condições justas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego" (art. 23, n. 1). A Constituição do Brasil, de 1988, afirma esse direito: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" (art. 6.°). E no artigo seguinte determina: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: 1 relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa; II segurodesemprego em caso de desemprego involuntário". Na mesma linha, esse direito é assegurado em Constituições recentes. Assim dispõe a Constituição de Portugal: "Art. 51. Incumbe ao Estado através de planos de política econômica e social garantir o direito ao trabalho assegurado: a) a execução de política de pleno emprego, e o direito à assistência material dos que involuntariamente se encontrem em situação de desemprego; b) a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos". Constituição do Uruguai: "Art. 53. O trabalho está sob a proteção especial da lei". Constituição da Venezuela: "Art. 84. A lei adotará medidas tendentes a garantir a estabilidade no trabalho, estabelecerá as prestações que recompensem à antigüidade do trabalhador nos serviços e o protejam quando este cessar". Constituição da Itália: "Art. 4. A República reconhece a todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que o tornam efetivo". 3. DIREITOS DO CONSUMIDOR Os direitos do consumidor começam a ser assegurados no sistema jurídico de todas as nações. O consumo é uma parte essencial do diaadia do ser humano. 0 consumidor é o sujeito em que se encerra todo ciclo econômico. Daí a importância de se dar ao consumidor poderes que o capacitem para exercer com eficiência o papel de fiscal e agente regulador do 14 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO mercado. Essa atribuição é particularmente importante nos regimes democráticos. Poucos atos de governo podem caracterizar melhor a preocupação efetiva pelos direitos da pessoa humana e pela justiça social como a instituição de mecanismos de defesa da população consumidora. Dado o caráter universal da questão, a Organização das Nações Unidas (Resolução ONU 39/248/85) recomenda aos governos "que devem estabelecer e manter uma infra estrutura adequada que permita formular, aplicar e vigiar o funcionamento das políticas de proteção ao consumidor". E, entre os direitos que recomenda sejam assegurados ao consumidor, inscrevemse os seguintes: 1. segurança física dos consumidores; 2. a proteção dos interesses econômicos dos consumidores; 3. acesso a informações necessárias aos consumidores para que façam escolhas acertadas; 4. medidas que permitam aos consumidores obter ressarcimento; 5. a distribuição de bens e serviços essenciais para o consumidor; 6. produção satisfatória e padronização de execução; 7. práticas comerciais adequadas e informações precisas quanto às mercadorias; e 8. propostas de cooperação internacional na área de proteção ao consumidor. Como órgão consultivo da ONU, constituise a International Organization of Consumers Unions (IOCU), que congrega centenas de entidades de defesa do consumidor de diferentes países. Essa entidade assim definiu os "direitos fundamentais e universais do consumidor": 1. Direito à segurança. Garantia contra produtos ou serviços que possam ser nocivos à vida ou à saúde. 2. Direito à escolha. Opção entre vários produtos e serviços com qualidade satisfatória e preços competitivos. 3. Direito sobre a informação. Conhecimento dos dados indis pensáveis sobre produtos ou serviços para uma decisão consciente. 4. Direito a ser ouvido. Os interesses dos consumidores devem ser levados em conta pelos governos no planejamento e execução das políticas econômicas. 5. Direito à indenização. Reparação financeira por danos causados por produtos ou serviços. PREFÁCIO À 21. a EDIÇÃO 15 Direito à educação para o consumo. Meios para o cidadão exercitar conscientemente sua função no mercado. Direito a um meio ambiente saudável. Defesa do equilíbrio ecológico para melhorar a qualidade de vida agora e preservála para o futuro. A defesa dos direitos do consumidor está expressamente assegurada nas Constituições modernas, como as da Espanha, Portugal e outras. A Constituição do Brasil de 1988 incluiu no Título II, entre os "Direitos e garantias fundamentais", o seguinte preceito: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" (art. 5.°). E, no art. 78 das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou: "O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação, elaborará código de defesa do consumidor. • Código de Defesa do Consumidor foi instituído pela Lei 8.078, de 11.09.1990, que define como consumidor "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". Basicamente, o Código estabelece como direitos do consumidor: 1. a proteção à vida, à saúde, à dignidade e à segurança contra riscos decorrentes de produtos e serviços; 2. informação adequada e clara sobre produtos e serviços; 3. proteção contra publicidade enganosa e abusiva; 4. reparação de danos patrimoniais e morais; 5. acesso à Justiça e garantia da defesa desses direitos. 4. DIREITO DE PARTICIPAÇÃO • despertar da sociedade civil e a participação ativa de todos os seus setores no processo de desenvolvimento da sociedade constitui um dos fenômenos marcantes da história atual. • a substituição dos antigos processos paternalistas e autoritários pela prática de métodos democráticos em que as pessoas passam a atuar, fiscalizar e tomar iniciativas através de comunidades, grupos de múltipla atuação e movimentos sociais. Dentro dessa realidade e com base no texto da Declaração Universal de 1948, podemos fixar as linhas de um novo direito social em formação, representado pelo direito que tem cada homem de participar ativamente no processo de desenvolvimento de sua comunidade. Não se trata apenas de receber os benefícios do progresso, mas de "tomar parte" nas decisões e no esforço para a sua realização. Em lugar de ser tratado como "objeto" das atenções paternalistas dos 6. 7. 16 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO dententores do Poder, o homem passa a ser reconhecido como "sujeito" e "agente" no processo do desenvolvimento. Tratase de uma exigência decorrente da natureza inteligente e responsável da pessoa humana. Esse ponto foi assim fixado por João XXIII, na famosa Encíclica Mater et Magistra: "Quando as estruturas e o funcionamento de um sistema comprometem a dignidade humana dos que nele trabalham, enfraquecem o sentido de sua responsabilidade ou impedem seu poder de iniciativa, esse sistema é injusto ainda mesmo que a produção atinja altos níveis (desenvolvimento econômico) e seja distribuída conforme as normas da justiça e da eqüidade (desenvolvimento social)". Daí a necessidade de "dar às instituições sociais a forma e a natureza de autênticas comunidades (...), o que só acontecerá se os seus membros forem sempre considerados como pessoas e chamados a participar da vida e das atividades sociais". E, entre outras aplicações, lembra que na vida econômica os empregados "não podem ser tratados como simples executores silenciosos, completamente passivos, sem possibilidade de dar sua opinião e sugestões e de influir nas decisões que dizem respeito a seu trabalho". "Quanto à nação, muito importa que os cidadãos, em todos os setores, se sintam cada vez mais responsáveis pelo bem comum." A substituição do "paternalismo" pela "participação" é um imperativo da moderna política social. Na medida em que se queira respeitar a dignidade da pessoa humana, é preciso assegurarlhe o direito de participar ativamente na solução dos problemas que lhe dizem respeito. Como primeiras manifestações desse reconhecimento, já econtramos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) a formulação específica de alguns direitos. Assim, o art. 21 afirma: "Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. A vontade do povo será a base da autoridade do governo". Na mesma linha, no campo do trabalho, estabelece o art. 23: "Todo homem tem direito de organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses". E o art. 27 dispõe que: "Todo homem tem direito de participar da vida cultural da comunidade". Mas outras modalidades de participação vêm sendo praticadas e reconhecidas, como a dos moradores, dos jovens, dos consumidores, dos defensores do meio ambiente etc. A importância desse comportamento social, humano e democrático de participação dos membros da comunidade foi destacada em documento oficial da ONU: "A necessidade de os membros de um grupo, classe ou organização participarem no planejamento dos seus PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 17 próprios programas é básica em qualquer tipo de projeto e confundese com a própria maneira democrática de viver". Com esse fundamento, as legislações começam a definir e assegurar o novo direito das pessoas à participação ativa no processo de desenvolvimento da respectiva comunidade. O regime representativo tradicional reduz a participação do cidadão à formalidade do voto. Mas as novas condições de vida coletiva exigem novas soluções. Camadas cada vez mais amplas da população tomam consciência do caráter meramente formal e aparente de antigas fórmulas democráticas, em que a participação do povo é mais simbólica do que real. O homem contemporâneo começa a tomar consciência de que não é apenas um "espectador" da história, mas seu "agente". O homem já não se contenta em suportar passivamente os acontecimentos. Já não acredita na fatalidade, mas toma em suas mãos a própria história, procurando fazêla e dominála. É nisso, sobretudo, que a história se tomou consciente. Essa consciência não se limita a algumas elites, mas se amplia progressivamente a todos os setores da vida social. O sentimento de participação é um dos mais poderosos elementos propulsores da atividade humana. É ele que entusiasma e anima a ação dos construtores de uma obra coletiva, seja uma casa, uma represa, uma catedral, um bairro ou uma cidade. Dentro desse quadro, a nova Constituição do Brasil abriu novos caminhos à participação das pessoas ao declarar, em seu art. 1.°, que o poder será exercido pelo povo, "por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição". E estabelece em seu contexto diferentes modalidades de participação dos cidadãos, como a iniciativa de projetos de lei, o referendo, o plebiscito e instituições semelhantes. Consagrou, assim, o princípio de que o regime político brasileiro é não apenas representativo, mas também participativo. Além do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular de projetos de lei (art. 14), a Constituição consagrou outras formas de participação, especialmente relacionadas com os empregados e trabalhadores, que constituem a parcela mais ampla da população. Assim, assegura "plena liberdade de associação para fins lícitos" (art. 5.°, XVII) e, em relação aos sindicatos e associações de trabalhadores, estabelece: "É livre a associação profissional ou sindical. A lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de Sindicato, ressalvado o registro do órgão competente vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical" (art. 8.°, 1 e III). 0 direito de sindicalização foi estendido aos funcionários públicos: "E garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical" (art. 37, VI). 18 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Foi concedida aos sindicatos e aos partidos políticos a prerrogativa de impetrar mandado de segurança "coletivo" (art. 5.°, LXX). A participação através da negociação coletiva é assegurada aos trabalhadores pelo "reconhecimento das convenções e acordos coletivos do trabalho" (art. 7.°, XXVI). A _ Constituição define como direito dos trabalhadores "a participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei" (art. 7.°, XI). Estabeleceu, também, o princípio da participação de trabalhadores • empregadores nos conselhos dos órgãos públicos, nos termos seguintes: "É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação" (art. 10). Na mesma linha, a Constituição estabeleceu a, figura do representante dos empregados nas empresas, dentro da seguinte norma: "Nas empresas de mais de duzentos empregados é assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promoverlhes • entendimento direto com os empregadores" (art. 11). Foi mantida a representação paritária de trabalhadores e empregadores na composição dos órgãos da justiça do trabalho (art. 111, § 1.°, art. 115, parágrafo único, e art. 116, parágrafo único). Em relação às ações governamentais na área da assistência social, a Constituição determina: "A participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis" (art. 204, II). O direito à informação participação na informação foi estabelecido na forma seguinte: "Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob a pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado" (art. 5.°, XXXIII). A ação popular foi também assegurada: "Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico • cultural, ficando o autor, salvo comprovada máfé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência" (art. 5.°, LXXIII). A Constituição abriu, assim, instrumentos institucionais que permitem a participação cada vez mais ampla da população no conhecimento, fiscalização e controle dos negócios públicos. Assegurou, ainda, aos diversos setores da sociedade o direito de atuar na defesa e promoção dos interesses coletivos. PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 19 5. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO "Desenvolvimento é o novo nome da paz." (Paulo VI, Encíclica Populorum Progressio) Entre os novos direitos que começam a ser reconhecidos universalmente destacase o "direito ao desenvolvimento". A AssembléiaGeral das Nações Unidas (ONU), reunida em 04.12.1986, decidiu aprovar a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, que pode ser assim sintetizada: "A AssembléiaGeral das Nações Unidas, Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante incremento do bemestar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes; Considerando que a eliminação das violações maciças e flagrantes dos direitos humanos dos povos e indivíduos afetados por situações tais como as resultantes do colonialismo, neocolonialismo, apartheid, racismo e discriminação racial, dominação estrangeira, ocupação, agressão e ameaças contra a soberania nacional, • ameaças de guerra contribuiria para o estabelecimento de condições propícias para o desenvolvimento de grande parte da humanidade; Reafirmando que existe uma relação íntima entre desarmamento e desenvolvimento e que o progresso no campo do desarmamento promoveria consideravelmente • progresso no campo de desenvolvimento, e que os recursos liberados pelas medidas de desarmamento deveriam dedicarse ao desenvolvimento econômico e social e ao bem estar de todos os povos e, em particular, daqueles dos países em desenvolvimento; Reconhecendo que a pessoa humana é o sujeito central do processo de desenvolvimento e que a política de desenvolvimento deveria fazer do ser humano • principal participante e beneficiário do desenvolvimento; Confirmando que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidades para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações quanto dos indivíduos que as compõem; Proclama a seguinte Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento: Artigo 1.° 1. O direito ao desenvolvimento é um inalienável direito humano, em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos têm reconhecido seu direito de participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir • dele desfrutar; e no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. 2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos à autodeterminação, que inclui o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais. 20 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Artigo 2.° 1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. 2. Todos os seres humanos têm responsabilidades pelo desenvolvimento, individual e coletivamente. 3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento que visem o constante aprimoramento do bemestar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição eqüitativa dos benefícios resultantes. Seguemse outras considerações e definições destinadas a precisar e apoiar a realização desse direito. Em janeiro de 1990, como novo passo no processo histórico do reconhecimento e implantação desse direito, a ONU realizou em Genebra uma reunião com a participação de 150 representantes de todo o mundo, denominada `Consultas Mundiais sobre a Realização do Direito ao Desenvolvimento como um Direito Humano'. Os trabalhos da reunião focalizaram três pontos centrais: 1. problemas; 2. critérios; e 3. mecanismos de implementação e cumprimento do direito ao desenvolvimento, como um direito humano. Como se vê, tratase de um processo em marcha para a afirmação de um novo direito. Para identificar o caráter de luta desse processo é oportuno lembrar que a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento foi aprovada pela AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 1968, pelo voto de 160 países, com a abstenção da Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Israel, Japão e Inglaterra, a ausência da Albânia, S. Domingos e Vanatu, e o único voto contrário dos Estados Unidos. A evolução dos trabalhos da ONU mostra um avanço: nos anos 60 e 70 discutiase o direito à autodeterminação dos povos, que passaram a se constituir em Estados independentes. Hoje o debate avançou para o problema dos direitos da pessoa e das coletividades humanas no âmbito de estruturas globais de dominação, exploração ou indiferença e se afirma, implícita ou explicitamente, o dever de solidariedade. Como observou o representante do Brasil na reunião de Genebra, Professor Cançado Trindade, Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores: "A consagração do direito ao desenvolvimento como um direito humano introduz um forte componente ético na avaliação e condução das relações internacionais contemporâneas". "Não se pode falar de uma Agenda para a paz, sem se falar de uma Agenda para o desenvolvimento", afirmou, na mesma linha, o SecretárioGeral das Nações Unidas, Perez de Cuellar. E, assim, através da história, enfrentando injustiças, opressões e violências, o direito vai abrindo caminhos para que o desenvolvimento da sociedade se realize dentro do respeito à igual dignidade de todos os homens. Como lembra LevyUllmann, "a idéia de justiça se encontra em todas as leis, mas não se esgota em nenhuma; é ela, entretanto, que dá sentido e significação a todo o direito positivo". São Paulo, março de 1993. PREFÁCIOS ANTERIORES PREFÁCIO À 9.a EDIÇÃO Desde 1972, quando foi publicada a 3.' edição deste livro, várias edições se sucederam rapidamente, sem que tivéssemos a oportunidade de fazer a atualização e as revisões que nos parecem convenientes. A premência de novas tiragens cinco edições em pouco mais de seis anos e a intensidade da vida parlamentar não nos permitiram realizar, de uma só vez, a revisão do texto integral, como havíamos planejado. Decidimos, por isso, fazer esse trabalho por partes, a partir de agora. Nesta 9.' edição, começamos por rever o Capítulo I da Primeira Parte e introduzir pequenas alterações ou correções no restante da obra. É nossa intenção proceder da mesma forma nas próximas edições, até que tenhamos a obra inteiramente revista. Ao agradecer a crescente acolhida que professores e alunos têm dispensado a este livro, de clara orientação humanista, é oportuno lembrar o papel histórico que, no processo de desenvolvimento nacional, cabe à luta pelo direito. Talvez em nenhuma época, como hoje, o estudo e a prática do direito tenham se identificado tanto com a própria defesa da civilização e do humano. Em qualquer das modalidades de sua atuação, como juiz, promotor, consultor, advogado, administrador ou legislador, cabe ao jurista trabalhar permanentemente para assegurar a cada homem o respeito que lhe é devido: suum cuique tribuere. E defender, assim, aquela realidade fundamental que é a fonte das fontes do direito: a pessoa humana. Ao lado dos técnicos da administração, da economia ou da cibernética, os homens do direito têm a missão insubstituível de fazer com que o desenvolvimento da sociedade se processe em termos de justiça, isto é, que se assegure a cada homem e a todos os homens o respeito aos direitos que lhe são devidos. Por isso, a Nação entrega às Faculdades de Direito a tarefa humanizadora, essencial ao desenvolvimento, de formar cidadãos que serão, na vida nacional, os lutadores permanentes da justiça e da liberdade. São Paulo, janeiro de 1980 ANDRÉ FRANCO MONTORO A disciplina tradicionalmente denominada Introdução à Ciência do Direito recebe hoje nova designação oficial: Introdução ao Estudo do Direito, por iniciativa do Conselho Federal de Educação, que, em 28.01.1972, aprovou o currículo mínimo para os cursos de Direito. O conteúdo da presente obra corresponde, com exatidão, à nova denominação oficial. Como se verifica pelo Plano de Trabalho (p. 25), este livro não se limita ao estudo de direito como ciência. Seu conteúdo é, na realidade, uma introdução ao estudo do direito em suas diversas perspectivas fundamentais, como ciência, justiça, norma, direito subjetivo e fato social. Além dos naturais acréscimos, atualizações e melhor esclarecimento de alguns textos, sai a presente edição com duas modificações mais importantes: A primeira decorrente de solicitação generalizada dos alunos é a tradução dos textos de autores estrangeiros citados no parágrafo dedicado a Outras Formulações, que se encontra no fim de cada capítulo. A segunda que atende também a sugestões de alunos e professores consiste na inclusão, no fim de cada volume, de um índice alfabético de assuntos tratados e o outro de autores citados. Com essa providência, temos em vista facilitar o trabalho de pesquisa e consulta dos que se utilizarem desta obra. Agradecemos, mais uma vez, a acolhida que tem recebido o presente trabalho e as sugestões e críticas, que muito têm contribuído para seu aperfeiçoamento. São Paulo, janeiro de 1972 PREFÁCIO À 2." EDIÇÃO Publicado o 1.° volume da presente obra (1968), a edição esgotouse antes de ser feita a publicação do 2.° volume. Essa circunstância permitiunos realizar um remanejamento da matéria e acrescentar alguns elementos, que contribuirão para melhor distribuição e aperfeiçoamento do texto. Essas modificações, aconselhadas pela experiência e estimuladas pela contribuição de professores, alunos e críticos especializados, acentuam o caráter experimental e dinâmico que pretendemos dar a esta Introdução à Ciência do Direito. Quais os objetivos de um curso de Introdução ao Direito? Essa pergunta é fundamental, se quisermos examinar criticamente os atuais cursos e introduzir nos mesmo modificações que correspondam às expectativas e necessidades de um estudante que inicia o estudo do Direito. Sem a fixação dos objetivos, é impossível avaliar a eficiência de qualquer curso. No caso do curso de Introdução à Ciência do Direito, pensamos que os principais objetivos podem ser assim indicados: 1. Proporcionar aos alunos uma visão geral do campo do direito, o que se desdobra naturalmente no conhecimento: da posição do direito no conjunto dos conhecimentos humanos; dos ramos do direito público e privado; das disciplinas jurídicas fundamentais. 2. Introduzir os estudantes no conhecimento da terminologia jurídica e das categorias fundamentais do direito, tais como a norma jurídica, suas espécies e interpretação, o direito subjetivo e o dever jurídico, a relação jurídica, o sujeito ativo e passivo e o objeto do direito, a prestação jurídica, a pessoa física e a jurídica, a sanção e a ação judicial, a estrutura e os poderes do Estado etc. 3. Conduzir a uma tomada de consciência sobre a importância e o significado do direito na promoção do desenvolvimento nacional, em termos de justiça, isto é, com o respeito à dignidade pessoal de todos os homens. A esse tríplice objetivo procura atender o presente estudo, como se pode verificar pela distribuição de suas partes e especialmente pela leitura dos n. 1, 2, 63 e 69. 24 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO É oportuna uma palavra sobre os métodos no ensino do Direito. A reforma universitária, que se processa no país, tem uma de suas justificativas na necessidade de ser assegurada ao estudante uma participação ativa no desenvolvimento dos cursos. O aluno não pode continuar a ser simples ouvinte de preleções dos professores. Sua participação deve ser promovida pelo exame e discussão de textos, casos de jurisprudência e questões de interesse real. A divisão da turma em grupos, para a pesquisa e debate de tais problemas, com a apresentação dos resultados perante a classe, tem sido adotada com sucesso e servido de base para exposição posterior e explicações do professor. A realização de trabalho pessoal e escrito pelos alunos sobre temas relativos ao programa é outra forma de participação ativa do estudante. Com o propósito de facilitar essas e outras modalidades de participação e trabalho dos alunos no desenvolvimento do curso, incluímos no fim de cada capítulo um parágrafo dedicado a Outras Formulações, onde são transcritos textos divergentes de diversos autores, casos julgados pelos tribunais ou documentos semelhantes, e outro dedicado à Bibliografia especializada. Como o mesmo objetivo, incluímos, no fim do volume, um índice geral das matérias tratadas e outro índice de autores. Agradecemos, antecipadamente, as sugestões e críticas que possam contribuir para que este livro seja um instrumento cada vez mais útil aos que devem auxiliar as novas gerações na Introdução à Ciência do Direito. São Paulo, fevereiro de 1970 PLANO DE TRABALHO 1. O direito pode ser encarado sob duas perspectivas diferentes: como elemento de conservação das estruturas sociais, ou como instrumento de promoção das transformações da sociedade. Para os que defendem a função conservadora do direito, a concepção mais adequada a essa missão é a identificação do direito com a lei, e, por extensão, ao contrato, como lei entre as partes. Nesse sentido, é significativa a advertência com que famoso professor de Paris iniciativa seu curso: "Não vim ensinar o direito, vim expor o Código Civil". Mas, principalmente nos países em desenvolvimento, o erro dessa posição é patente. Fazer do direito uma força conservadora é perpetuar • subdesenvolvimento e o atraso. Identificar o direito com a lei é errar duplamente, porque significa desconhecer seu verdadeiro fundamento • condenálo à estagnação. Para fundamentar a missão renovadora e dinâmica do direito é preciso rever certos conceitos de base e afirmar, na sua plenitude, o valor fundamental, que dá ao direito seu sentido e dignidade: a justiça. Não se trata de um conceito novo, mas permanente, que deve ser afirmado, estudado e efetivamente aplicado, se quisermos dar ao direito sua destinação verdadeira, que é a de ordenar a convivência • o desenvolvimento dos povos. Nos textos clássicos de Aristóteles, Ulpiano, Cícero, S. Tomás • outros, encontramos formulada a doutrina básica da justiça, mas adaptada a uma realidade profundamente diferente da atual. Encontramse aí as sementes para a elaboração ulterior de um pensamento jurídicofilosófico, que precisa ser desenvolvido e aplicado às novas condições da sociedade e ao direito moderno. A esse respeito, dois erros, a nosso ver, precisam ser evitados. Primeiro, a simples repetição daquele pensamento, como se o mundo não houvesse mudado. Segundo, a rejeição pura e simples dessa doutrina, como se a mudança das condições sociais destruísse as exigências fundamentais do respeito à pessoa humana. 26 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 2. Que é direito? Na linguagem comum e na linguagem científica, o vocábulo direito é empregado com significações diferentes. Ele tem sentido nitidamente diverso nas seguintes expressões: 1. o direito brasileiro proíbe o duelo; 2. o Estado tem direito de cobrar impostos; 3. o salário é direito do trabalhador; 4. o direito é um setor da realidade social; 5. o estudo do direito requer métodos próprios. Cada uma dessas frases emprega uma das significações fundamentais do direito. Na primeira, direito significa a lei ou norma jurídica (direitonorma). Na segunda, direito tem o sentido de faculdade ou poder de agir (direitofaculdade ou direitopoder). Na terceira, indica o que é devido por justiça (direitojusto). Na quarta, o direito é considerado como fenômeno social (direitofato social). Na última, ele é referido como disciplina científica (direitociência). São cinco realidades distintas. E, se quisermos saber o que é o direito, precisamos estudar o conteúdo essencial de cada uma dessas significações. Esse é o plano do presente trabalho. Consta ele de cinco partes: 1.8 parte O direito como ciência (Epistemologia Jurídica); 2.' parte O direito como justo (Axiologia Jurídica); 3.' parte O direito como norma (Teoria da norma jurídica); 4.' parte O direito como faculdade (Teoria dos direitos sub jetivos); 5.' parte 0 direito como fato social (Sociologia do Direito). Primeira Parte O DIREITO COMO CIÊNCIA (Epistemologia Jurídica) 1 O CONCEITO DE DIREITO SUMÁRIO: 1. Origens do vocábulo: 1.1 Problemas de epistemologia jurídica; 1.2 Definição nominal e real; 1.3 Origem dos vocábulos "direito" e "jurídico" 2. Pluralidade de significações do direito Cinco realidades fundamentais: 2.1 Direitonorma: 2.1.1 Direito positivo e Direito natural; 2.1.2 Direito estatal e nãoestatal; 2.2 Direitofaculdade; 2.3 Direito justo; 2.4 Direitociência; 2.5 Direito fato social; 2.6 Outras acepções 3. Direitoconceito análogo: 3.1 Conclusões; 3.2 Analogia: 3.2.1 Analogia intrínseca 'ou de proporção; 3.2.2 Analogia extrínseca ou de relação; 3.2.3 Analogia metafórica 4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do direito: 4.1 Analogia de relação: 4.1.1 Analogia entre as significações fundamentais do direito. Primado da Lei ou da Justiça? Formalismo jurídico e humanismo jurídico; 4.1.2 Outra analogia: Direito positivo e Direito natural; 4.2 Analogia intrínseca: Direito estatal e Direito nãoestatal 5. Outras formulações: 5.1 "Conceito de direito", João Mendes; 5.2 "Uma concepção sociológica do direito", LévyBruhl; 5.3 "Justo, conteúdo essencial da norma jurídica", F. Geny; 5.4 "O Direito e o materialismo histórico e dialético", K. Marx; 5.5 "Concepção quântica do direito", Goffredo Telles Júnior 6. Bibliografia. 1. Origens do vocábulo 1.1 Problemas de epistemologia jurídica Ao estudar o direito como ciência, devemos naturalmente examinar sua definição, assim como o lugar que ele ocupa no conjunto das ciências e a natureza de seu objeto. Tais problemas pertencem ao campo da Epistemologia Jurídica. Epistemologia, do grego epistême (ciência) e logos (estudo), significa etimologicamente "teoria da ciência". Nesse sentido, podemos 30 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO dizer, com Machado Neto, que "tratar da ciência do direito, ainda que para o mister elementar de definilo, é fazer Epistemologia".' Há, entretanto, na linguagem filosófica, certa imprecisão e diversidade de conceitos sobre a exata significação do vocábulo. Assim, Lalande define Epistemologia como "o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados de cada ciência" (Vocabulaire technique et critique de la Philosophie, verbete "epistemologie"). E, em nota, esclarece que a palavra inglesa epistemulogy é freqüentemente empregada para designar toda a "teoria do conhecimento" ou "gnosiologia". Da mesma forma, os italianos, em geral, não costumam distinguir epistemologia e teoria do conhecimento. De qualquer forma, os problemas citados: definição de direito, sua posição no quadro das ciências, a natureza de seu objeto constituem inquestionavelmente temas de Epistemologia do Direito. 1.2 Definição nominal e real Conceituar o direito é definilo. E há duas espécies de definição: a) nominal, que consiste em dizer o que uma palavra ou nome significa; b) real, que consiste em dizer o que uma coisa ou realidade é. Em obediência à recomendação da lógica, é o que vamos fazer em relação ao direito. Estudaremos, primeiramente, a significação da palavra. Examinaremos, em seguida, a realidade ou realidades que constituem o direito. O estudo das palavras e da linguagem em geral é da maior importância. Quando um vocábulo é empregado durante várias gerações para designar uma realidade, ele se apresenta cheio de conteúdo e significação. O nome é a experiência acumulada e constitui, de certa forma, o limiar da ciência.' 1.3 Origem dos vocábulos "direito" e "jurídico" Que significa a palavra "direito"? Qual a sua origem? Nas línguas modernas encontramos dois Direito conjuntos de termos utilizados para exprimir a idéia de direito. Um primeiro conjunto ligase ao vocábulo "direito", que encontra similar em todas as línguas neolatinas e, de forma geral, nas línguas ocidentais modernas: Droit (francês); Diritto (italiano); Derecho (espanhol); Recht (alemão); Right (inglês); Dreptu (romeno). ~" A. L. Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo, Saraiva, 1969, p. 7. 2' É hoje geralmente reconhecido que a linguagem é elemento fundamental no estudo de ciências humanas, como o direito e a filosofia. V. "Filosofia da linguagem" e a "Doutrina de linguagem jurídica", no item 4.2.4, Capítulo 9 do presente volume. CONCEITO DE DIREITO 31 Essas palavras têm sua origem num vocábulo do baixo latim: directum ou rectum, que significa "direito" ou "reto". Rectum ou directum é o que é conforme "Directum" a uma régua. Mas, ao lado desse, existe outro conjunto de palavras que, nas línguas modernas, ligase à noção de direito. Esse conjunto é representado pelos vocábulos: "jurídico", "jurisconsulto", "judicial", "judiciário', "jurisprudência" etc., que encontram, também, similar em quase todas as línguas modernas. Qual a origem desses vocábulos? É visível que a etimologia dessas palavras encontrase no termo latino jus Guris), que sig "Jus" nifica "direito". Mas, se remontarmos um pouco além e formos investigar a significação originária do vocábulo jus, encontraremos, pelo menos, duas origens diferentes indicadas pelos filósofos. Alguns pretendem que jus se tenha constituído no idioma latino, como derivado de jussum, particípio passado do verbo jubere, que significa mandar, ordenar. "Jussum" E apontam, nesse sentido, certas fórmulas que eram usadas nas Assembléias Curiais em Roma, nas quais os cidadãos, depois de discutirem as leis, decidiam sobre a sua promulgação. A fórmula usada, então, para encerramento da discussão, era a seguinte: jubeate quirites (mandai cidadãos); ou então, adsentite jubere quirites (concordai em mandar, cidadãos). Outros preferem ver no vocábulo jus uma derivação de justum, isto é, aquilo que é justo ou conforme à justiça. "Jus dictum est quia est justum", diz Isidoro de "Justum" Sevilha (Etymol., cap. 3): Como confirmação dessas hipóteses são indicadas vocábulos de uma tradição ainda mais antiga. Assim, ligado à noção de jussum (mandado), indicam alguns autores, como radical remoto de jus, o vocábulo sânscrito yú, que significa vínculo de onde derivam palavras como: jugo, jungido, cônjuge (cumyú, vínculo comum). Os que pretendem ver, no vocábulo jus, uma derivação da idéia de justiça ou de santidade (justum), encontram, por sua vez, como raiz remota, o vocábulo do idioma védico yós, que significa bom, santo, divino, de onde parece terem sido originadas as expressões Zeus (Deus ou o pai dos deuses, no grego) e Jovis (Júpiter, no latim). "Yú" "Yós" 32 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 33 Assim, para citar alguns autores que mais diretamente estudaram • problema, podemos mencionar, entre os defensores da primeira hipótese, Ihering, que afirma: "Jus significa `vínculo', da raiz sânscrita Yú (ligar), de onde derivam: jugo, jungir e outras inúmeras palavras".3 No mesmo sentido é a opinião de Pott, Meringer e outros.' Mas, de outro lado, ilustres autores, como Schrader, Mommsen • Breal,5 adotam a tese de que a palavra jus ligase ao que é justo, santo, puro. Para Mommsen, jus aproximase de jurare. E Breal, no estudo sobre a "Origem das palavras que designam o direito e a lei no latim", afirma que o vocábulo jus encontrase ligado às palavras jaus ou jous, nos povos da Itália, Pérsia e índia, e exprimiria uma idéia correspondente às noções mais elevadas que possa conceber o espírito do homem. O pensamento ancestralmente contido nessa palavra seria o da vontade ou do poder divino.' Evidentemente, a esta segunda acepção também se ligam famosos textos de Direito Romano, como aquele em que se define o direito como "a arte do bem e do justo", ars boni et aequi (Celso), ou a jurisprudência como "o conhecimento das coisas divinas e humanas • a ciência do justo e do injusto", ` jursprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia" (Ulpiano, Dig., 1, 1). Segundo Lachance, é ainda possível que o vocábulo jus proceda de juvo, juvare, ajudar, proteger. O direito seria, nesse sentido, uma proteção destinada a defender os homens contra qualquer violência.' Para completar a indicação das origens do vocábulo "direito", convém citar, também, a palavra grega correspon"Diké" dente. Tratase do vocábulo diké (direito), por sua vez ligado à raiz indoeuropéia dik, que significa indicar. Não há, entretanto, nas línguas modernas palavras vinculadas ao diké grego. Apenas nos trabalhos eruditos esse termo é mencionado. Esse fato confirma um dos aspectos conhecidos da história da cultura. Quase todas as palavras ligadas ao direito são de origem latina, • que revela a influência poderosa do direito romano sobre o direito moderno, ao lado da influência quase nula da cultura grega, nesse particular. Ihering, R. von, Espírito del derecho romano, § 165. Ver F. Senn, De Ia justice et du droit, Sirey, cap. II, p. 25, n. 1. cs~ F. Senn, loc. cit. V. L. Lachance, "Définition nominale du droit", in Le concept de droit en Aristote et S. Thomas, § 2. (6) Michel Breal, "L'origine des mots désignant le droit et Ia loi en latin", i Nouv. Rev. Historique de Droit, 1883, p. 603. " Loc. cit. Em outros setores, como na filosofia, nas artes e nas ciências especulativas, foi profunda a influência da cultura helênica. Mas, no campo do direito, quase nada Grécia encontramos que nos ligue à Grécia. A influência e Roma decisiva nesse campo foi de Roma. O gênio prático dos romanos contrasta com a sabedoria teórica dos gregos. No campo do pensamento puro os gregos foram notáveis. Pode dizerse que não houve em Roma filósofo que mereça ser posto ao lado de Sócrates, Platão ou Aristóteles. Mas, do ponto de vista prático e • direito se situa nesse campo , os romanos foram insuperáveis. E • monumento jurídico que eles deixaram à humanidade, o Direito Romano, comunicouse até nós e ainda influi poderosamente no direito contemporâneo. 2. Pluralidade de significações do direito Cinco realidades fundamentais Não podemos nos limitar ao estudo do vocábulo. Devemos passar do plano das palavras para o das realidades. Consideremos as expressões seguintes: 1 o direito não permite o duelo; 2 o Estado tem o direito de legislar; 3 a educação é direito da criança; 4 cabe ao direito estudar a criminalidade; 5 o direito constitui um setor da vida social. Se atentarmos para a significação do vocábulo "direito", nessas diversas expressões, verificaremos que, em cada uma, ele significa coisa diferente. Assim, no primeiro caso ` o direito não permite o duelo" "direito" significa a norma, Norma a lei, a regra social obrigatória. Na segunda expressão "o Estado tem o direito de legislar" "direito" significa a facul Faculdade dade, o poder, a prerrogativa que o Estado tem de criar leis. Na terceira expressão "a educação é direito da criança" "direito" significa o que é devido Justo por justiça. Na quarta expressão "cabe ao direito estudar a criminalidade" "direito" significa Ciência ciência, ou, mais exatamente, a ciência do direito. 34 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Na última expressão "o direito constitui um setor da vida social" "direito" é considerado como fenômeno da vida coletiva. Ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos etc., também o direito é um fato social. Temos, assim, cinco realidades diferentes a que correspondem as acepções fundamentais do direito. Um estudo mais detido nos revela que, partindo destas, podemos chegar, ainda, a outras significações, de menor importância. Façamos um exame rápido dessas significações. 2.1 Direitonorma Direito, no sentido de lei ou norma, é uma das acepções mais comuns do vocábulo. Muitos autores o denominam "direito objetivo", em oposição ao "direito subjetivo" ou "direito faculdade", que é sempre uma prerrogativa do sujeito (subjectum). Essa denominação, no entanto, é imprópria, porque outras acepções do direito, como justo ou fato social, são, também, objetivas. Direito objetivo não é apenas a lei. Inúmeras definições correntes referemse à acepção do direito como lei. Assim, por exemplo, a de Clóvis Beviláqua, que, em sua Teoria Geral do Direito Civil, conceitua o Direito como "uma regra social obrigatória". Ou a de Aubry e Rau: "O Direito é o conjunto de preceitos ou regras, a cuja observância podemos obrigar o homem, por uma coerção exterior ou física".' É esse, também, o 'caso da definição de Ihering, que considera o direito como "um conjunto de normas, coativamente garantidas pelo poder público".9 Mas, direito, na acepção de norma ou lei, indica realidades diferentes, quando se refere: a) ao direito positivo e ao direito natural; b) ao direito estatal e ao direito não estatal (ou social). 2.1.1 Direito positivo e Direito natural O Direito positivo é constituído pelo conjunto de normas elaboradas por uma sociedade determinada, para reger sua vida interna, com a proteção da força social. Direito natural significa coisa diferente. E constituído pelos princípios que servem de fundamento ao Direito positivo. A palavra "direito" indica realidades diferentes num e noutro caso. Inúmeras interpretações inexatas do Direito natural decorrem, (e' C. Aubry; C. Rau, Cours de Droit Civil français, Paris, 1936, § 1.°. (9) Ihering, Zweck im Recht, 1, § 18. CONCEITO DE DIREITO 35 exatamente, do fato de se atribuir significação unívoca, isto é, uma única significação ao vocábulo "direito" em ambos os casos. É, por exemplo, famoso o ponto de vista de Oudot,10 jurista francês, para quem o Direito positivo e o Direito natural constituiriam dois Códigos paralelos. Teríamos, ao lado de cada norma do Direito positivo, uma correspondente de Direito natural. Na concepção de Oudot e dos chamados "jusnaturalistas racionalistas", o vocábulo "direito", aplicado ao Direito natural e ao Direito positivo, teria a mesma significação. Seria unívoco. Ora, essa concepção do Direito natural é inaceitável. O Direito natural, na sua formulação clássica, não é um conjunto de normas paralelas e semelhantes às do Direito positivo. Mas é o fundamento do Direito positivo. É constituído por aquelas normas que servem de fundamento a este, tais como: "deve se fazer o bem", "dar a cada um o que lhe é devido", "a vida social deve ser conservada", "os contratos devem ser observados" etc., normas essas que são de outra natureza e de estrutura diferente das do Direito positivo." 2.1.2 Direito estatal e nãoestatal Distinção semelhante devemos estabelecer entre o direito estatal e o direito nãoestatal, também chamado direito grupal ou direito social, por Gurvitch,12, LéviBruhl,l3 Geny 14 e outros. A palavra "direito" aplicase geralmente às normas jurídicas elaboradas pelo Estado, para reger a vida social, como por exemplo o Código Civil, a Constituição, o Código Comercial, as demais leis federais, estaduais e municipais, os decretos etc. Mas, ao lado do direito estatal, existem outras normas obrigatórias, elaboradas por diferentes grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses grupos. Estão nesse caso, pelo menos em grande Fato Social "Le droit naturel est Ia collection des règles du just e de l'injuste qu'iI est souhaitable de voir immediatement transformer en lois positives", Oudot, Premiers éssais de philosophie du droit, 1846, § 67. As normas do direito positivo, diz Kelsen, têm a estrutura de uma proposição hipotética condicional: Se o inquilino não pagar o aluguel, ele estará sujeito a uma ação de despejo; se o eleitor não votar, estará sujeito a uma multa. As normas de Direito natural são proposições diferentes: o bem deve ser feito, a pessoa humana deve ser respeitada, a sociedade deve ser conservada. G. Gurvitch, Le temps présent et l'idée du droit social, Paris, J. Vrin, 1932. Ver Capítulo 11, n. 7, da Terceira Parte (p. 358), e, Capítulo 22, n. 2, da Quinta Parte (p. 545). LévyBruhl, "Les sources du droit", in Introduction à l'étude du droit, I, p. 257 e ss. F. Geny, Science et technique en droit privé positif, § 19. parte, o direito universitário, o direito esportivo, o direito religioso (canônico, muçulmano etc.), os usos e costumes internacionais etc. o mesmo ocorre com as normas trabalhistas derivadas de convenções coletivas, acordos e outras fontes não estatais. Os estatutos, regulamentos e demais normas que regulamentam a vida de uma universidade, quando elaborados por esta, constituem um direito autônomo: o direito universitário. O direito que vigora dentro da comunidade esportiva constitui outro exemplo. A atividade esportiva está, entre nós, como em outros países, regulamentada não pelo Estado, mas pelas próprias organizações do esporte. Estas elaboram normas e até mesmo códigos que regulam, com força obrigatória, a atividade esportiva. Existem, inclusive, tribunais esportivos, incumbidos da aplicação de tais normas. Grande parte do moderno Direito do trabalho, que regula as relações de emprego, foi, principalmente nos países da Europa, elaborada pelas próprias organizações interessadas. Os sindicatos e outras organizações operárias e patronais, através de usos e contratos coletivos, foram estabelecendo normas, que passaram a regular, com força obrigatória, as relações de trabalho em cada categoria profissional. Não foi o Estado que elaborou essas normas. Foram os próprios interessados. No Brasil o processo foi diferente. O estatuto básico dos direitos dos trabalhadores, a CLT Consolidação das Leis do Trabalho foi outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas (Dec.lei 5.452 de 01.05.1943). Entretanto, ao lado das leis e decretos estatais, grande parte das normas que regem as relações de trabalho decorre de acordos coletivos e entendimentos realizados diretamente pelas organizações representativas de empregados e empregadores. Ocorreu, assim, fenômeno semelhante ao europeu, como demonstra Oliveira Viana, no estudo sobre instituições políticas brasileiras.` Do direito religioso são exemplos o direito canônico, o direito muçulmano, o judeu, o budista, elaborados pelas próprias comunidades e disciplinando, com normas precisas, a atividade espiritual de milhões de criaturas. As regras editadas pelos organismos internacionais, que se multiplicam, e os usos e costumes internacionais, com força obrigatória, foram amplamente estudados por Gurvitch, Geny, LévyBruhl, Le Fur, nas obras citadas, e constituem outras tantas manifestações do direito nãoestatal ou social. 051 V. Oliveira Viana, Instituições políticas brasileiras, J. Olímpio, 1949; Maxime Leroy, "Le droit proletarien", introdução a La coutume ouvrière, 2 v., Paris, 1900; Gurvitch, "Droit ouvrier", in ob. cit., cap. 1; S. Panunzio, Le droit sindical et Ia notion d'autorité; Dolléans, Histoire du mouvement ouvrier, Paris, Colin, 1953. Como observa Gurvitch, esse direito social ou nãoestatal pode existir dentro do Estado, ao lado do Estado e acima do Estado. Dentro do Estado, como o direito universitário ou o direito operário. Ao lado do Estado, como o direito canônico, que dispõe sobre matéria religiosa, enquanto o Estado regula outras atividades. Acima do Estado, como os usos e costumes internacionais. Teremos oportunidade de voltar ao exame desse problema, que é amplamente estudado pela Sociologia jurídica e pelo Direito moderno.' Mas, por ora, importa esclarecer que o vocábulo direito, aplicado ao direito estatal e ao direito nãoestatal, tem significação diversa e não unívoca. E por isso que muitos autores não admitem que se denomine "direito" a esses ordenamentos jurídicos nãoestatais. Tais autores defendem a tese do "monismo jurídico". Negam caráter jurídico aos ordenamentos nãoestatais. Afirmam, como Kelsen, que só há um ordenamento jurídico: o estatal. Recusam o "pluralismo jurídico". O que revela que não é no mesmo sentido que se emprega a palavra "direito", num e noutro caso. É por só admitirem o sentido estrito de "direito" que muitos autores negam o caráter jurídico dos ordenamentos nãoestatais. 2.2 Direito faculdade Passemos à segunda das acepções fundamentais que enumeramos: o direitofaculdade ou direito poder. O vocábulo direito, com freqüência, é empregado para designar o poder de uma pessoa individual ou coletiva, em relação a determinado objeto. O direito de usar um imóvel, cobrar uma dívida, propor uma ação são exemplos de direitofaculdade ou direito subjetivo. Nesse caso, também, o direito de legislar ou de punir, de que o Estado é titular, o pátriopoder do chefe de família etc. Cada um desses direitos é uma prerrogativa ou faculdade de agir. Uma facultas agendi, em oposição ao direitolei, que é uma norma agendi. E nesse sentido que Meyer define o direito como "o poder moral de fazer, exigir ou possuir alguma coisa"." E Ortolan, como "a G. Gurvitch, Sociologia jurídica, Rio, Kosmos, 1964, cap. II; Le temps présent et l'idée de droit social, Paris, J. Vrin, 1932; F. Geny, Science et technique en droit privé positif, § 19; H. LévyBruhl, Introduction à l'étude du droit (em colaboração), Paris, Ed. Rousseau, 1951, v. 1.°, p. 257 e ss.; G. Del Vecchio, "A propos de Ia conception étatique du droit", in Justice, Droit, État, Sirey, 1938, p. 282 e ss.; Maxime Leroy, Le Code civil et le droit nouveau, Paris; G. Morin, La révolte des faits contre le Code, Paris, Sirey; P. Bonnet, Le droit en retard sur les faits (1930), Paris, Droit et jurisprudence; G. Renard, la theorie de l'institution, Paris, Sirey, 1930. M. E. Meyer, Filosofia del derecho, Ed. Labor, 1937. 38 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 39 faculdade de exigir dos outros uma ação ou inação". Kant, por sua vez, referese a este sentido ao definir o direito como "a faculdade de exercer aqueles atos, cuja realização universalizada não impeça a coexistência dos homens"." Esse é também o aspecto focalizado por Ihering ao propor a seguinte definição de direito: "é o interesse protegido pela lei".19 A expressão "direito subjetivo" explicase e se justifica porque o direito nessa acepção é realmente um poder do sujeito. E uma faculdade reconhecida ao sujeito ou titular do direito. Devemos, entretanto, distinguir duas acepções nitidamente diferentes de direito subjetivo: a) o direitointeresse; b) o direitofunção. Muitos direitos são concedidos ou reconhecidos no interesse de seu titular como meios de permitir lhe a satisfação de suas necessidades materiais ou espirituais. E o caso do direito à vida, à integridade física ou à liberdade, o direito de usar um imóvel ou reivindicar uma propriedade. A esse tipo de direito subjetivo dáse a denominação de direitointeresse. Mas, ao lado do direitointeresse, instituído em benefício de seu titular, há outra categoria de direitos subjetivos, instituídos em benefício de outras pessoas. É o direito função, como o pátrio poder do chefe de família, que é conferido ao pai no interesse do filho. O mesmo ocorre com o direito de julgar ou de legislar, atribuídos ao juiz ou a legislador, em benefício da coletividade. 2.3 Direito justo A palavra "direito", como dissemos, é ainda suscetível de outra significação, claramente distinta das anteriores, que coloca o direito em outra perspectiva e o relaciona com o conceito de justiça. Tratase do direito na acepção de justo. Dentro dessa acepção, devemos distinguir, também, dois sentidos diferentes. a) Umas vezes "direito", na acepção de justo, designa o bem "devido" por injustiça. Por exemplo, quando dizemos que "o salário De acordo com o pensamento de Kant, o direito tem por finalidade garantir a coexistência das liberdades. Seu princípio fundamental pode ser assim formulado; age segundo uma norma que possa ser praticada universalmente. Por exemplo: é possível erigir o furto em regra universal? Não, porque tornarseia impraticável a coexistência entre os homens. Como não é possível esta universalização, o furto é contrário ao direito. Inversamente, o respeito à propriedade é uma norma que pode ser universalizada. O direito de exigir a devolução de um objeto emprestado, o direito de exigir o pagamento do salário etc. são normas que podem ser universalizadas e, por isso, jurídicas. Ihering, Espírito do direito romano, § 70. é direito do trabalhador", a palavra "direito" significa "aquilo que é devido por justiça". b) Outras vezes "justo" significa a "conformidade" com a justiça. Por exemplo: quando digo que "não é direito condenar um anormal", quero dizer não é conforme à justiça. São duas acepções diferentes, se bem que ambas relacionadas com o conceito de justiça. A primeira acepção pode ser denominada `justo objetivo", porque direito, nesse caso, é aquele bem que é devido a uma pessoa por uma exigência da justiça. Nesse sentido o respeito à vida é devido a todo homem, o pagamento é devido ao vendedor, a aposentadoria é devida ao empregado, o imposto é devido ao Estado etc. A esse sentido é que se refere a definição de S. Tomás, segundo a qual "direito é o que é devido a outrem, segundo uma igualdade"." É, também, a essa acepção do direito que se refere o famoso conceito de Ulpiano: "Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito"." Definição que remonta aos mais antigos estudos sobre o direito e a justiça. Em Aristóteles e Platão, por exemplo, encontramos a mesma definição com pequenas variações. A palavra "direito" é aí empregada no sentido de "justo objetivo". E o bem devido a outrem, segundo uma igualdade. E o objeto da justiça. Acepção fundamental, como veremos, que é retomada hoje por ilustres juristas, como Karl Engisch, Michel Villey e outros.22 A ela corresponde, com exatidão, o vocábulo jus. E significa o que é devido por justiça. É esse o significado da palavra "direito" na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A segunda acepção ligada ao conceito de justiça é, como vimos, a conformidade com a justiça. No exemplo visto "não é direito condenar um anormal" direito é sinônimo de justo, mas justo aí significa um qualificativo. Indica a conformidade com as exigências da justiça. (20) S. Tomás, De justitia, II, q. 80, c. (Z' "Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi", "Regras de Ulpiano", livro 1, constante do Digesto, livro 1. "De justitia et jure", fr. 10 pr. Esse texto é reproduzido nas Institutas, de Justiniano, livro 1, tit. 1, "De justitia et jure, principium", em termos quase idênticos: "justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuens". É freqüente traduzir perpetua por permanente, contínua, o que não é rigorosamente certo. Como observa F. Senn, "perpétuo" significa ` o que dura tanto tempo quanto a pessoa. Assim, a virtude da justiça no homem deve durar sua vida inteira" (De Ia Justice et du droit, p. 2, n. 2). (22) Ver Karl Engisch. Introdução ao pensamento jurídico, trad. J. B. Machado, Lisboa, Gulbenkian, 1972; Michel Villey, Seize essais de Philosophie du Droit, cap. li. 40 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Encontramos definições de direito que se referem a esta acepção. Entre outras, podemos citar a de Liberatore: "Direito é tudo o que é reto, na ordem dos costumes",23 onde está claramente indicada a conformidade com regra de conduta. 2.4 Direitociência Num plano inteiramente diferente dos anteriores, a palavra direito é, com freqüência, empregada para designar a "ciência do direito". Quando falamos em estudar "direito", formarse em direito, doutor ou bacharel em direito, método ou objeto de direito, é no sentido de "ciência" que empregamos a palavra. Entre as definições de direito que o consideram sob este prisma, podemos citar o clássico conceito de Celso: "Direito é a arte do bom e do justo" ("jus est ars boni et aequi"), ou a definição de Hermann Post: "Direito é a exposição sistematizada de todos os fenômenos da vida jurídica e a determinação de suas causas" .24 2.5 Direito fato social Finalmente, numa perspectiva distinta das anteriores, a palavra direito é empregada principalmente pelos sociólogos, mas também pelos juristas, no sentido de fato social. El hecho del derecho (O fato do direito) é o título de obra coletiva de Cabral Moncada e outros (Ed. Losada, 1956), na qual Olivecrona estuda "o direito como fato". Ao realizar o estudo de qualquer coletividade, a sociologia distingue diversas espécies de fenômenos sociais. Considera os fatos religiosos, econômicos, culturais e, entre eles, o direito. O direito é, então, considerado um setor da vida social, independentemente de sua acepção como norma, faculdade, ciência ou justo. EJ como setor da vida social, deve ser estudado sociologicamente. E dentro dessa perspectiva que se situa a Sociologia do Direito. Sob esse aspecto, Gurvitch define o direito como "uma tentativa para realizar, num dado meio social, a idéia de justiça, através de um sistema de normas imperativo atributivas" .25 É essa, também, a perspetiva em que se coloca Tobias Barreto, ao definir o direito como "o conjunto das condições existenciais e evolucionais da sociedade, coativamente asseguradas 26 ou em fórmula CONCEITO DE DIREITO 41 mais atual, o conjunto das condições de existência e desenvolvimento da sociedade, coativamente asseguradas". Na mesma linha está situada a obra de Olivecrona Law as fact, 1980. 2.6 Outras acepções As acepções fundamentais que acabamos de examinar são as que mais interessam ao estudo jurídico. Entretanto, podemos acrescentar ainda outras menos importantes, que são de uso corrente. Assim, a palavra direito é usada, muitas vezes, no sentido de tributo ou taxa, por exemplo, quando se fala em "direitos" alfandegários ou aduaneiros. Direito é ainda empregado com o significado de "reto", no sentido geométrico. Por exemplo, um "segmento direito", isto é, geometricamente reto. É, ainda, usado para indicar uma operação certa: "Este cálculo está direito". Isto é, aritmeticamente certo. Podese usar a palavra para designar um "homem direito", no sentido de ter uma conduta moralmente correta. Direito pode significar, finalmente, oposto a esquerdo: lado "direito". Evidentemente, essas últimas acepções não apresentam interesse jurídico. São mencionadas apenas como objetivo de fazer, na medida do possível, uma análise exaustiva das significações do direito, que podem ser assim sintetizadas: ACEPÇÕES DIREITONORMA DIREITOFACULDADE DIREITOJUSTO DIREITOCIÊNCIA DIREITO FATOSOCIAL FUNDAMENTAIS DIREITO POSITIVO DIREITO NATURAL DIREITO ESTATAL DIREITO NÃOESTATAL 1 DIREITOINTERESSE DIREITOFUNÇÃO DEVIDO POR JUSTIÇA CONFORME A JUSTIÇA (23) Liberatore, Comp. di Filosofia del Diritto, Pádua, Cedam. X20' In C. Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, § 1.°. G. Gurvitch, Sociologia jurídica, Kosmos, 1946, introd., § V. (26) Introdução ao estudo de Direito, cap. V, em Obras completas de Tobias Barreto, Inst. Nac. do Livro, 1966, Estudo de Filosofia, t. 2, p. 143. Tobias Barreto adota, com modificações, a definição de lhering: "O direito é o conjunto de condições de vida da sociedade, coativamente asseguradas pelo poder público'. Tobias Barreto acrescenta às condições de vida as de desenvolvimento (evolucionais) e dispensa a referência ao poder público. Ambos consideram o direito como fenômeno social, criado pela própria sociedade, para assegurar a sua vida e desenvolvimento. 42 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ACEPÇÕES SECUNDÁRIAS DIREITO COMO TRIBUTO (direitos alfandegários) DIREITO COMO RETO (segmento direito) DIREITO COMO CERTO (cálculo direito) DIREITO COMO CORRETO (homem direito) DIREITO COMO OPOSTO A ESQUERDA (lado direito) 3. Direitoconceito análogo 3.1 Conclusões Do exame que acabamos de fazer decorrem algumas conclusões, que devem se explicitadas: a) a palavra "direito" não designa apenas uma, mas várias realidades distintas; b) em conseqüência, não é possível formular uma definição única do direito; devem ser formuladas diferentes definições, correspondentes às diversas realidades; c) o estudo feito demonstra que o vocábulo "direito" não é unívoco, nem equívoco, mas análogo. 3.2 Analogia Como sabemos, a lógica divide os termos em unívocos, equívocos e análogos. Unívoco é o termo que se aplica a uma única realidade. Exemplo: livro, homem, vegetal. Equívoco é o que se aplica a duas ou mais realidades radicalmente diversas. Exemplo: o termo "lente", aplicado ao professor e ao vidro refrativo. Análogo é o termo que se aplica a diversas realidades que apresentam entre si certa semelhança. O termo análogo é, assim, intermediário entre o unívoco e o equívoco. Exemplo: o vocábulo "direito", que designa a lei, a faculdade, a ciência, o justo, o fato social. Os termos análogos, por sua vez, podem ser classificados em três categorias diferentes, correspondentes às diversas espécies de analogia: a) analogia intrínseca ou de proporção própria; b) analogia extrínseca, de relação ou de atribuição; c) analogia metafórica ou de proporção imprópria ou figurada. 3.2.1 Analogia intrínseca ou de proporção Dáse a analogia intrínseca, ou de proporção, quando o vocábulo é aplicado a diversas realidades, entre as quais existe uma relação de proporcionalidade. Exemplo: o vocábulo "princípio" aplicase ao princípio (começo) do dia, ao princípio (início) de uma estrada, aos princípios da ciência, aos princípios morais. Estas diversas acepções são diferentes. "Princípio" não significa a mesma coisa nesses diversos casos. Mas existe entre eles uma proporção que se poderia assim enunciar: os princípios da ciência estão para a ciência, assim como o princípio do dia está para o dia, assim como o princípio da estrada está para a estrada, assim como os princípios morais estão para a conduta. Em todas essas acepções, "princípio" significa aquilo de que alguma coisa, de qualquer forma, depende. Há aí uma analogia de proporção, que é intrínseca, porque o termo "princípio" encerra, em si mesmo, essa analogia. Não se pode dizer, por exemplo, que os fundamentos da ciência tenham mais a natureza de "princípio" do que o começo do dia. Todos são "princípios" em sentido próprio. Todos são aquilo de que alguma coisa, de qualquer forma, depende. Esse aditivo "de qualquer forma" indica normalmente a existência de uma analogia intrínseca. 3.2.2 Analogia extrínseca ou de relação Outra vezes, os termos apresentam outra espécie de analogia: é a chamada analogia extrínseca, de relação ou de atribuição. Realizase esta analogia quando o termo se aplica, em sentido direto e próprio, a uma realidade. Mas se aplica, também, por extensão, a outra realidade ou realidades, que mantêm com a anterior relações de dependência, geralmente causais. Neste caso, o primeiro objeto, aquele a que o termo se aplica em sentido direto e próprio, é chamado "analogado principal". E o objeto ou objetos a que o termo se aplica por extensão denominamse "analogados secundários" ou derivados. Exemplo típico de analogia de relação ou extrínseca é o que se dá com o vocábulo "sadio". Esse termo se aplica ao "homem sadio", ao "clima sadio", ao "alimento sadio" e à "cor sadia". Se prestarmos atenção ao significado da palavra "sadio", em suas diversas acepções, verificaremos que o vocábulo não tem a mesma significação em todos os casos. Dá se aí uma analogia extrínseca ou de relação. Qual dentre essas realidades é aquela que, com propriedade, pode ser denominada sadia? Quem é propriamente sadio? O clima? O alimento? O homem? A cor? Na linguagem comum, o homem é que é sadio. O alimento é chamado sadio, porque é uma das causas do homem sadio. O clima está no mesmo caso. A cor é sadia, porque é efeito ou manifestação da saúde. O vocábulo sadio aplicase, assim, diretamente ao homem e, por extensão, a outras realidades, que mantêm com ele relações de dependência (causa, efeito ou manifestação do homem sadio). Percebese claramente que há diferenças entre a estrutura desta analogia e a que mencionamos no caso anterior. CONCEITO DE DIREITO 43 3.2.3 Analogia metafórica Há, ainda, um terceiro caso de analogia: metafórica, imprópria ou figurada. Nesta espécie de analogia o termo tem uma significação direta e própria, mas se aplica também a outras realidades, em sentido figurado, em virtude de uma proporção imprópria que se estabelece com a significação originária. Está no caso o termo "rei", que se aplica diretamente ao monarca na sociedade política, mas se estende também ao leão, "rei" dos animais, ao "rei" do aço ou do café, em acepção evidentemente metafórica ou figurada. Entre essas significações há uma proporção figurada: o monarca está para o Estado, assim como o leão está para os animais, o rei do aço para os produtores de aço etc. Com essas considerações, podemos passar ao exame do tipo ou tipos de analogia existentes entre as diversas significações do direito. Esse exame nos mostrará casos de analogia de relação, analogia de proporção e até mesmo de analogia metafórica (v. nota 65). Do tema ocupouse largamente G. Renard, na segunda lição de sua Philosophie de l'institution, dedicada ao estudo do "papel da analogia na ciência jurídica". 4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do direito 4.1 Analogia de relação Examinaremos dois casos de analogia de relação: 1. a analogia entre as significações fundamentais do vocábulo "direito"; 2. a analogia existente entre as significações do Direito positivo e Direito natural. 4.1.1 Analogia entre as significações fundamentais do direito. Primado da Lei ou da Justiça? Formalismo jurídico e humanismo jurídico Qual a analogia existente entre as acepções fundamentais do direito? Sabemos que essas acepções fundamentais são o direitonorma, o direito faculdade, o direito justo, o direitociência e o direitofato social. Há entre essas diferentes significações uma clara analogia de relação, isto é, o vocábulo "direito" aplicase de forma principal a uma dessas acepções e estendese às demais, em virtude das relações reais e não apenas metafóricas que existem entre essas expressões. Mas qual é o sentido principal? Ou, em termos lógicos, qual o primeiro analogado? CONCEITO DE DIREITO 45 Situase aí um dos problemas que divide autores e correntes jurídicas. Para grande número de juristas como Planiol, Ripert, Colin, Capitant, De Ruggiero, Kelsen, Clóvis Beviláqua etc. o direito é, em primeiro lugar, um conjunto Primado de normas, leis ou regras jurídicas, "Direito do direitonorma" seria o analogado principal. É sob esse norma aspecto que o direito é estudado pela maioria dos autores modernos. "A palavra direito designa o conjunto de leis ou regras jurídicas aplicáveis à atividade dos homens", diz Planiol.27 "O direito é a norma das ações humanas na vida social, estabelecida por uma organização soberana e imposta coativamente à observância de todos", escreve De Ruggiero.28 Na mesma lista, Kelsen define o direito como "um sistema de normas que regulam o comportamento humano"29 e acrescenta: "O direito é a norma primária, que estabelece a sanção".30 Outros preferem ver no "direitofaculdade" ou direito subjetivo o significado fundamental. "O direito considerado na vida real (...) nos aparece como um poder do Primado indivíduo", escreve Savigny.31 Como observa do direito Carlos Campos,32 o Código de Napoleão foi subjetivo construído sobre o conceito do direito subjetivo. Os jurisconsultos romanos fizeram uma teoria sólida com ele. Foi retomado pelos grandes juristas dos séculos XVI e XVII. Sob certo aspecto, está no fundamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos e das demais Declarações de Direitos. Constitui a base de todo o direito privado e o ponto de partida das modernas construções do direito público. E esse, também, o ponto de vista em que se colocam, entre outros, Ihering, ao estudar "a luta pelo direito", Jayme de Altavila, ao pesquisar a Origem dos direitos dos povos,33 assim como o de Kant, Hegel e demais autores para quem o direito é fundamentalmente liberdade. Dessa posição aproximase também a doutrina egológica do direito, formulada pelo jurista argentino Carlos Cóssio.34 A conclusão 44 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA PO DIREITO (27) 28) (29) (30) (31) (32) (33) Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit Civil, V. 1, p. 1. R. de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, Saraiva, v. 1, § 2.°. Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, trad. de J. B. Machado, Coimbra, Arménio Amado, 1974, p. 21. Idem, General theory of law and State, 1949, p. 61. Savigny, Sistema del Derecho Romano, v. 1, § 4.°, p. 25. Carlos Campos, Sociologia e filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Revista Forense, 1943, p. 59. Jayme de Altavila, Origem dos direitos dos povos, São Paulo, Melhoramentos, 1964. Carlos Cóssio, La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad, Abeledo Perrot, 1964. 46 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 47 básica da teoria egológica é que "o direito é conduta e não norma", escreve um dos autorizados seguidores da doutrina de Cóssio no Brasil, o professor Machado Neto, da Universidade da Bahia." Para a concepção egológica, o direito não é forma, mas "conduta humana em interferência intersubjetiva" (relacionamento entre sujeitos ou "egos", daí a designação da doutrina "egológica"). E entre as modalidades fundamentais desse relacionamento intersubjetivo que caracteriza o direito está a "faculdade" ao lado da "prestação", do "ilícito" e da "sanção" que com ela se relacionam. A moderna sociologia jurídica considera o direito sob outra perspectiva. "O direito é o fenômeno social por Primado excelência", escreveu H. LévyBruhl, "mais do do direito que a religião, mais do que a língua, mais do que fato a arte, ele revela a natureza íntima do grupo social social".36 Roscoe Pound define o direito como: "O controle exercido pela aplicação da força de que dispõe uma sociedade politicamente organizada".37 É interessante observar que a tendência ao sociologismo jurídico ` predomina hoje de certa forma nos Estados Unidos e na União Soviética. Nos Estados Unidos essa orientação é representada pela escola da jurisprudência sociológica de Benjamin Cardozo, Roscoe Pound, Gray, Llevelyn e outros. Na antiga URSS o sociologismo era de vinculação marxista; o jurista soviético Stuchka define o direito como "um sistema de relações sociais que corresponde aos interesses da classe dominante e está defendido pela força organizada dessa classe" .38 De outra parte, muitos juristas vêem no direito, em primeiro lugar, uma ciência. "A previsão do que os tribunais Primado decidirão é o que eu entendo por direito", escreveu do direito Holmes.39 Previsão é conhecimento, estudo, ciên' ciencia cia. Já Ulpiano definira o direito como "a ciência. do justo e do injusto";40 e Celso como a ars boni) et aequi. Na mesma linha situamse, em geral, os mestres que consideram naturalmente o direito como disciplina a ser estudada e transmitida às novas gerações. Ao lado das diferentes perspectivas que acabam de ser examinadas colocase a dos que vêem no direito, fundamentalmente, o justum, isto é, o "justoobjetivo" Primado ou o "devido por justiça". É essa a concepção do direitotradicional que nos vem do Direito Romano e é justo modernamente reafirmada por ilustres juristas, ou devido como Geny, Villey, Engisch e outros. A função do juiz e do jurista, em suas diversas atividades, consiste sempre em descobrir "o direito", isto é, ` o justo" e assegurálo. A lei (lex) não se confunde com o direito (jus). A lei (direitonorma) não é propriamente "o direito", mas uma de suas fontes.` O "direito subjetivo" também não é a rigor o direito, mas o poder de exigilo ou o seu reconhecimento. Da mesma forma, o direitofato social e o direitociência são claramente acepções derivadas, vinculadas ao justum.42 A norma ou lei é chamada "direito", porque ela estabelece ou deve estabelecer o que é justo. A faculdade é denominada "direito" porque ela é, de certa forma, o poder de exigir o justo ou o seu reconhecimento. Da mesma forma, a Ciência do Direito é assim chamada porque ela é o conjunto de conhecimentos que tem por objeto o justo e suas manifestações. E o direito como fato social é, também, uma acepção derivada. Ele é o setor da realidade social que tende para a realização da justiça .43 Essa interpretação corresponde à natureza fundamental do direito e ao ensinamento de grandes mestres. "Não é da regra que emana o direito, mas do direito (jus) é que se faz a regra", diz o velho brocardo de Justiniano: "Non ut ex regula jus sumatur, sed ex jure, quod Justiniano est, regula fiat". No mesmo sentido é a lição contida na clássica definição de justiça de Ulpiano: "Vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu direito (jus suum Ulpiano cuique)". Qual o sentido da palavra jus nessa (35) A. L. Machado Neto, Teoria da ciência jurídica, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 157. A revalorização do direito subjetivo na doutrina de Cóssio é salientada por Machado Neto, nos seguintes termos: "Outra parte em que a teoria egológica reforma a teoria pura (de Kelsen) é na revalorização do Direito subjetivo, que o conceito de direito como conduta vem acarretar. A liberdade é, nessa perspectiva, um prius de onde se há de partir" (ob. cit., p. 151). H. LévyBruhl, "Aspectes sociologiques du droit", em Petit bibliothèque sociologique internationale, Sirey, 1955. Roscoe Pound, em La sociologie au XX siècle, Paris, PU, 1947, p. 306. In Kelsen, Teoria comunista del derecho y del estado, B. Aires, Emecé, 1957, p. 95. O. W. Holmes, The path of the law, 1920, p. 173. Ulpiano, Digesto, 1, 1. (36) (41) (42) (37) (38) (43) (39) (40) Sobre a lei como fonte de direito, v. adiante Capítulo 11. Nesse sentido, é esclarecedora a citada definição do direitofato social, proposta por Gurvitch: "Tentativa para realizar, num dado meio social, a idéia de justiça, através de um sistema de normas". Igualmente esclarecedora é a definição do direitociência formulada por Ulpiano: "ciência do justo". E interessante observar que, em grego, o justo objetivo, dikaion, e a norma, pomos, são designados por palavras diferentes. Em latim, ambos podem ser designados pelo termo jus, se bem que, em sentido estrito, jus e lex não se confundem. Em inglês, o vocábulo law indica tanto o "direito" como a "lei". 48 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO definição? É precisamente o justo objetivo, isto é, aquilo que é devido a cada um. Modernamente François Geny conclui seu estudo sobre "a ciência e a técnica no direito privado positivo", com o Geny reconhecimento de que "no fundo de todo o conteúdo do direito, encontrase, como noção fundamental, a de justo", que inclui em si não apenas preceitos de justiça particular, distributiva ou comutativa, mas também as exigências do bem comum e da justiça social, "com a finalidade de assegurar a ordem essencial à manutenção e ao progresso da sociedade humana" .44 E Engisch, depois de observar que o pensamento jurídico moderno se orienta em primeira linha pela lei, afirma que Engisch ao lidar com a lei percebese claramente "algo que está por detrás da lei e que nós nos propomos chamar simplesmente DIREITO" .45 Essa é, também, a lição contemporânea de Bobbio, ao lembrar que a "teoria da justiça" concerne ao fundo do direito e a "teoria do direitonorma" concerne à forma do direito.` De Del Vecchio, ao afirmar que a noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico .47 De Catherin,48 G. Burdeau,49 Lachance,50 Olgiati,51 Dabin,52 Villey 53 e inúmeros outros .54 F. Geny, Science et technique en droit privé positif, v. 1, § 16. Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, trad. de J. B. Machado, Lisboa, Gulbenkian, 1964, p. 308. N. Bobbio, "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", in Archives de Philosophie du Droit, Sirey, 1962, v. 7, n. 8. G. Del Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938, Prefácio. Cathrein ensina que o justo ou jus o devido a alguém segundo certa igualdade ou proporção é o direito originário (Recht, Naturrecht und positives Recht, ed. Herber. Trad. espanhola Filosofia del Derecho, II parte, § 1.°). G. Burdeau, nos Archives de Philosophie du Droit et Sociologie juridique (1937, n. 3 e 4, p. 58 a 88), depois de numerar como fatores da norma jurídica: a) princípio afirmado pela regra; b) a obrigação que ela impõe; c) o fim que a justifica; conclui: "A norma não vale por si mesma, mas apenas em consideração a um fim situado fora dela" (p. 66). Lachance dedica o 1.° parágrafo de sua "Análise da noção do Direito" à demonstração de que o direito é um "devido": "Le droit est un du" (Le concept de droit selon Aristote et S. Thomas, liv. II, § 1.°). F. Olgiati, La riduzione del concetto filosofico di diritto al concetto di giustizia, Milão, Giuffrè, 1932. J. Dabin, "La justice est Ia matière naturelle du sistème juridique a plusieurs titres" (Téorie générale du droit, Bruxelas, Bruylant, 1944, n. 253, p. 257). Michel Villey, Seize essais de Philosophie du Droit, Paris, Dalloz, 1969. V. Capítulo 5, n. 8. Nesse sentido, o justo objetivo é a acepção fundamental do direito. Entretanto, no direito moderno, essa noção vem sendo muitas vezes esquecida e substituída pela preeminência do direitonorma. Considerase, de preferência, não o conteúdo ou matéria do direito, mas seu aspecto formal ou obrigatoriedade. Essa orientação deve ser atribuída à influência do positivismo jurídico e a certo fetichismo pela lei e pelo Orientação contrato. Uma das grandes tendências do direito positivista no século XIX foi a de endeusamento da lei e do contrato, como manifestações da vontade individual. Ligase essa tendência ao voluntarismo ético e jurídico, cujas raízes, no mundo moderno, vamos encontrar principalmente em Grotius,55 Rousseau,56 e Kant.57 Para esses autores, a vontade subjetiva, e não a realidade objetiva, é o princípio fundamental da moral e do direito. Dentro dessa concepção, a lei, como "vontade" geral, é que tem importância básica. Esse primado da lei ou norma tem recuado diante da realidade jurídica e social. Demonstrouo, entre outros, Gaston Morin, em dois estudos: A lei e o contrato: a decadência de sua soberania e A revolta do direito contra o Código." O direito não tem seu fundamento último na lei ou no contrato. O direito é fundamentalmente o justo. É o que é "devido" a cada um, indivíduo ou sociedade, segundo um princípio fundamental de igualdade, simples, ou proporcional.` A lei é um instrumento para a realização desse direito. Ela deve servir de guia ao jurista e ser interpretada, sempre, em função de seu objetivo essencial, que é o de assegurar a cada um indivíduo, Estado ou outras instituições o direito que lhe é devido: "jus suum cuique tribuere". Essa consideração não diminui a importância da lei. Pelo contrário, a valoriza. Nesse sentido é oportuna de Villey, professor da Faculdade de Direito de Paris: "Se sou juiz e procuro a solução justa, sem ser escravo das leis, tenho duas razões para as levar em conta. Em primeiro lugar, porque elas são o resultado, a realização de longos esforços da doutrina Grotius, H., De jure belli ac pacis, Lausane, 1751. Rousseau, J. J., "Du contrat social", "Discours sur 1'origine et les fondements de l'egalité parmi les hommes" in Oeuvres completes. Kant, especialmente Crítica da razão prática e Metafísica dos costumes. Gaston Morin, La loi et le contrat La decadence de leur souveraineté, Paris, Alcan, 1927, e La revolte du droit contre le Code, Paris, Sirey, 1945. V. "Características e espécies da justiça", adiante, Segunda Parte, Capítulos 5 a 9 (p. 121 a 290). CONCEITO DE DIREITO 49 Formalismo jurídico Justiça: Humanismo Jurídico (44) (45) (46) (47) (48) (49) (50) (52) (55) (56) (53) (54) (57) (58) (59) 50 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 51 para encontrar as regras do justo. Nossas leis resumem o estado atual da ciência do justo. A esse título elas nos servem de guia. E, de outro lado, já que o meu dever é equilibrar e pesar todos os interesses presentes, não posso esquecer que o interesse comum exige determinações fixas, que a lei procura estabelecer". E acrescenta: "A nossa filosofia do direito não ignora as leis, pelo contrário, demonstra e delimita a sua autoridade".60 No mesmo sentido é a observação de Rodriguez Aguilera: "A lei pode ser justa ou injusta. O mesmo ocorre com a sentença, embora seu destino natural seja sempre a justiça. A dependência entretanto não é necessária. De uma lei injusta pode surgir, na sua aplicação, uma sentença justa, ou que se aproxime da justiça, por haver o juiz superado a letra da lei, mediante uma interpretação orientada pela justiça" .61 4.1.2 Outra analogia: Direito positivo e Direito natural, Passemos a outra aplicação dos princípios da analogia. Ela pode ser feita em relação ao Direito positivo e ao Direito natural. A palavra "direito" não tem a mesma significação quando aplicada à lei natural e à lei positiva. Alguns autores empregam em sentido unívoco posição de Oudot e dos jusnaturalistas de orientação racionalista, que conceituam o, Direito natural como um "direito" no mesmo plano de Direito positivo.? Para estes, como vimos, o Direito natural é um código paralelo aos códigos positivos. Ao lado de cada norma de Direito positivo, teríamos uma de Direito natural. Essa concepção, entretanto, é inadmissível. E, pelo menos em parte, é responsável pelo descrédito em que ficou o Direito natural, em certos setores científicos. Se analisarmos o pensamento de muitos autores que negam o Direito natural, veremos que na realidade eles negam essa concepção de um Direito natural paralelo a Direito positivo. Negam que o Direito natural seja "direito", em sentido unívoco, isto é, no mesmo sentido em que se fala do Direito positivo. E têm razão. Na realidade, esse, Direito natural não existe. E pura imaginação. O Direito natural é constituído não por um conjunto de preceitos paralelos ao Direito positivo, mas pelos princípios fundamentais do Direito positivo. 1601 Michel Villey, "Une definition du droit", in Seize essais de Philosophie da Droit, p. 32. (61) C. Rodriguez Aguillera, La Sentencia, Barcelona, Bosch, 1975, p. 94. A palavra "direito", aplicada a um e a outro desses direitos, tem significação análoga. E a analogia que aí se realiza é a de relação. Em sentido direto e imediato, a palavra direito se aplica ao Direito positivo, à lei positiva. Mas se estende também ao Direito positivo. Entre ambos existe uma relação de dependência, uma relação causal: um é fundamento do outro. Os princípios que constituem o Direito natural são, entre outros: bonum faciendum (o bem deve ser feito), neminem laedere (não lesar a outrem), suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), respeitar a personalidade do próximo, as leis da natureza etc. Qualquer norma do Direito positivo, qualquer artigo do Código Civil, Comercial ou Penal fundase necessariamente nesses princípios. Mas é evidente que as normas do Direito positivo apresentam uma formulação, estrutura e natureza diferentes dos princípios do Direito natural (v. nota 11 do presente capítulo). Poderíamos dizer, com Aristóteles e S. Tomás, que o Direito natural está para o Direito positivo, assim como os princípios da razão estão para a ordem especulativa. Na ordem especulativa as proposições e os raciocínios científicos também se fundam em certos princípios básicos, que são o fundamento de toda a ciência." 4.2 Analogia intrínseca: Direito estatal e Direito nãoestatal Passemos ao exame do direito nãoestatal. Direito designa, em geral, as normas elaboradas pelo Estado. Mas se aplica, também, aos ordenamentos existentes no seio de outras comunidades: esportivas, religiosas, econômicas, universitárias etc. Aplicase, assim, o vocábulo "direito" ao ordenamento jurídicoestatal, elaborado pelo Estado, e, ao mesmo tempo, aos ordenamentos jurídicos elaborados pelos grupos sociais. Falase em direito esportivo, direito universitário, direito canônico etc. Estamos, novamente, em face de um problema de importância para a ciência jurídica, decorrente de uma compreensão ambígua do significado do vocábulo "direito", aplicado a esses diversos ordenamentos. Grande parte dessas dificuldades tem origem no fato de se considerar, no caso, o termo "direito" unívoco. (62) Sobre os primeiros princípios na ordem especulativa e na ordem prática v. André Franco Montoro, Os princípios fundamentais do método no direito, Martins, 1942, § 16 e ss. "Praecepta legis naturae hoc modo se habent ad rationem practicam sicut principia prima demonstrationum se habent ad rationem speculativam: utraque sunta quaedam principia per se nota" (S. Tomás, 1, 11, q. 94, a. 2). Sobre a doutrina clássica do Direito natural, ver Capítulo 9, n. 5 (p. 257). 52 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 53 Muitos autores negam o Direito nãoestatal, porque este não tem a mesma estrutura, a mesma natureza e a mesma força do Direito estatal., O estatuto de uma universidade, por exemplo, não pode ser chamado "direito", no mesmo sentido em que a Constituição ou o Código Civil sã designados como partes do "direito" nacional. O mesmo se pode dizer d Direito esportivo, do Direito estatuário e do Direito canônico. Na realidade, estamos em presença de mais um caso de analogia O vocábulo "direito" não significa a mesma coisa, nos diverso exemplos mencionados, mas apresenta significação analógica. Qual o tipo de analogia que aí se realiza? A analogia existente no caso é intrínseca ou de proporção. E pod ser enunciada da seguinte forma: o Direito estatal está para o Estado assim como o Direito universitário está para a universidade, assi como o Direito esportivo está para a coletividade esportiva; ou Direito religioso, para a comunidade religiosa. Em todos esses casos, direito significa o ordenamento que reg a vida dessas coletividades. No caso do Direito estatal, esse ordenamento apresentase mai técnico, é realizado através de normas formuladas com certa solenidad e garantidas pela força coercitiva do Estado. No caso dos demal ordenamentos, as normas apresentam características diferentes, m constituem, igualmente, regras sociais obrigatórias, com eficácia muit vezes maior que a das normas estatais." Em virtude de sua importância menor para a ciência jurídic dispensamonos de examinar outras aplicações de analogia às demai acepções do direito." Ao final desse estudo podemos formular as seguintes conclusõe a) o direito pode ser considerado com Conclusões norma, como faculdade, como justo, como ciênci ou como fato social; b) essas diferentes perspectivas revelam o caráter analógico conceito de direito; V. Gurvitch, "Dans 'L'idée du droit social', nous avons différencié le dr social pur et indépendant, équivalent ou supérireur au droit étatique; le dr social pur, mais soumis à Ia tutelle do droit de 1'Etat et range dans le dr privé; et le droit social annexé par 1'État et élevé au rang de droit publi (in Le temps present et l'idée du droit social, Avant propos, p. 10). Poderseia perguntar se, entre as acepções do direito, existe algum caso de analo metafórica. A resposta é afirmativa. E essa a analogia existente entre "direito", sentido jurídico, e "direito", no sentido geométrico (segmento "direito", ângul "direito"). Podese dizer que o direito jurídico está para a ordem social, assim com o direito geométrico está para a ordem geométrica. Ambos significam a conformi dade com uma regra: com a regra ou norma social, no primeiro caso; com a reg ou régua geométrica, no segundo. O mesmo ocorre com a significação aritméti (cálculo "direito"), moral (homem "direito") e acepções semelhantes. c) muitos autores modernos (Planiol, Kelsen) utilizam, de preferência, o vocábulo "direito" para indicar o direitonorma;" d) outros preferem ver no direito, em primeiro lugar, o direitofaculdade (Cóssio), o direitofato social (LévyBruhl) ou o direitociência (Holmes); e) a doutrina clássica e muitos juristas contemporâneos (Villey, Engisch) consideram que o direito justo (o que é devido a uma pessoa ou instituição) é o significado fundamental do direito; nesse sentido, direito é, fundamentalmente, o "devido por justiça". Essas diferentes posições não são contraditórias. Representam pontos de vista sobre aspectos diferentes de um mesmo objeto. Mas revelam, muitas vezes, a orientação doutrinária ou filosófica de cada autor e de sua época. Hoje, a trágica experiência dos Estados totalitários e dos regimes de força, ao lado de uma reflexão mais atenta sobre o direito vivo presente nas sentenças, nas decisões administrativas e nos demais atos jurídicos tem levado grandes setores do atual pensamento jurídico a reconhecer que o sentido fundamental do direito, em qualquer de seus aspectos, consiste sempre em estar a serviço da justiça, isto é, em assegurar a cada um aquilo que lhe é devido, segundo uma relação proporcional, fundada na igual dignidade de todos os homens. Nesse sentido, podemos aplicar a qualquer dos aspectos do direito a observação de Gurvitch:66 as normas jurídicas podem ser mais ou menos perfeitas, mas não serão "direito" se não estiverem orientadas no sentido da realização da justiça. Presente em todos os momentos da existência do direito, a justiça se encontra em todas as leis, mas não se esgota em nenhuma. ó7 5. Outras formulações 5.1 Conceito de direito João Mendes (de Almeida Júnior), Direito judiciário brasileiro, Freitas Bastos, 1940, p. 2 e ss. Nós concebemos o direito como atributo da pessoa, como fenômeno na vida social, como norma de agir ou lei. "Le droit est dans le genre 'rélation'. Cherchons à quelle espéce de rélation il peut appartenir ... Le droit est une rélation d'égalité fondée sur 1'equivalence des quantités... II va de soi que Ia quantité dom il s'agit dans de droit est morales: et le rapport qui lui fait suite est un rapport d'égalité morale" (Lachance, Le concept de droit en Aristote et S. Thomas, liv. II, § III, p. 281 e ss.). "Jus, sive justum, est aliquod opus adequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modum" (S. Tomás, Suma, II, q. 57, a 2). G. Gurvitch, Sociologia jurídica, "Introdução". Del Vecchio, Justice, Droit, Etat, § 14. (63) (64) (65) (66) (67) 54 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Como atributo da pessoa, o direito é a faculdade de agir moralmente inviolável. Neste sentido chamase Direito subjetivo porque é considerado como "atributo de um sujeito" que é pessoa. Pessoa é uma substância individual de natureza racional, a quem o direito é atribuído como uma faculdade de agir, cuja atividade pode e deve ser sancionada e garantida pela força do Estado, que é o organismo do corpo social. Como fenômeno, isto é, tal como nos aparece no mundo sensível, o direito é uma relação da vida social. Nesse sentido, chamase Direito objetivo material porque o direito é objeto da nossa percepção com todas as notas sensíveis, isto é, percebemos o direito como uma relação da vida, em que aparece um sujeito, um termo, uma matéria ou objeto, e um fundamento ou título. Sujeito, por excelência chamado "sujeito ativo", como já vimos, é a pessoa a quem se atribui o direito; Termo, também chamado "sujeito passivo", é a pessoa obrigada; matéria ou Objeto é a coisa sobre que recai o direito; fundamento ou Título é o fato que, considerado na ordem moral, produz, no sujeito, o direito e, no termo, a obrigação. O direito é concebido também sob um terceiro aspecto, isto é, como norma de agir ou lei. Todos os efeitos dos títulos de direito são reconhecidos e definidos pela soberania nacional, por meio da lei. É o chamado Direito objetivo formal, porque, nesse sentido, o direito é objeto da nossa percepção como forma genérica e obrigatória da ordem social. A lei, tornada assim positiva, dividese em lei civil, lei comercial, lei criminal. As leis, determinando os efeitos dos fatos jurídicos em espécie, têm de ser aplicadas a fatos individuados. Vamos, pois, contemplar o modo e a forma de aplicar a lei aos fenômenos jurídicos da vida, quer nas relações extrajudiciais, estipuladas entre os indivíduos, quer nas relações litigiosas, que os indivíduos sujeitam ao juízo do Poder Judiciário. 5.2 Uma concepção sociológica do direito H. LévyBruhl, "Les sources du droit. Les Méthodes. Les Instruments du travail", in Introduction a 1'étude du droit, em colaboração com outros professores da Faculdade de Direito de Paris, Paris, ed. Rousseau, 1951, 1.° v., p. 253. Minha concepção de direito é decididamente sociológica. O direito não existe a não ser para os homens vivendo em sociedade, e não se pode conceber uma sociedade humana em que não haja ordem jurídica, mesmo em se tratando de um estado rudimentar. Isto se exprime em latim pelo adágio conhecido Ubi societasr ibi jus (Onde há sociedade, há direito). Insistamos um momento sobre esta idéia: É exato dizer que as sociedade&, arcaicas e rudimentares, que conhecemos pela etnografia ou pela tradição, têm, na verdade, instituições jurídicas? Alguns o contestam. Todos sabem que, nes estágio de civilização, as instituições são em grande parte indiferenciadas mergulham numa atmosfera mística. Mas o fato de se apresentarem sob um aspec sobrenatural não retira das regras sociais o seu caráter jurídico, seja qual for importância do processo de secularização de que elas serão objeto. O seu traÇ essencial é a obrigação que a sociedade impõe a seus membros. E é neste element obrigatório que consiste, em última análise, a natureza própria do direito. Tod sociedade, ainda que seja primitiva, comporta pois uma ordem jurídica. Isto é tão verdadeiro que se pode, na minha opinião, inferir da existência de instituições jurídicas a existência de uma sociedade humana. E, invertendo os termos da equação que acabo de citar, afirmar com igual certeza Ubi jus, ibi societas (Onde há direito, há sociedade). As sociedades não são puras construções do espírito. Elas possuem bases naturais solidamente estabelecidas, das quais as mais caraterísticas são as instituições jurídicas. Onde instituições deste gênero existem podese tranqüilamente afirmar que há um vínculo entre os homens. E assim que as organizações internacionais, que vemos surgir de todas as partes ao redor de nós e das quais uma das mais significativas foi, depois da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg, que julgou e condenou os principais criminosos de guerra, são igualmente manifestações irrecusáveis da existência de uma sociedade humana, à qual talvez falte apenas tomar consciência de si mesma. É certo que estas primeiras aproximações não nos esclarecem muito sobre a natureza do direito. Limitamse a nos indicar o quadro em que se desenvolvem instituições jurídicas. Para precisar o que elas são, eu me contentarei com breves indicações. Proponho a seguinte definição: "O Direito é um conjunto de regras obrigatórias, que determinam as relações sociais, tal como a consciência coletiva do grupo as representa a cada momento". Esta definição exigiria longas explicações, porque ela se refere a noções como "consciência de grupo" ou "representações coletivas", que eu considero pessoalmente como definitivamente estabelecidas pela sociologia contemporânea, mas que ainda são discutidas. Peço aos leitores que as aceitem, ao menos como hipóteses de trabalho, que serão confirmadas pela seqüência de minhas considerações. Chamo a atenção para as últimas palavras da definição que propus, em que declaro que o direito é tal como a consciência coletiva do grupo, representa as relações sociais "a cada momento". Essa precisão é da mais alta importância e requer algumas explicações. O meio social não pode ser concebido como fixo e imóvel. Pelo contrário, ele está em transformação perpétua. Submetido a influências de toda espécie, ele é essencialmente mutável. Por definição, um grupo é diferente hoje do que foi ontem e do que será amanhã. Antes de mais nada, seus elementos constituintes quero dizer os homens e as mulheres que o compõem não serão mais os mesmos: alguns terão desaparecido, outros terão aparecido. Mas, até mesmo supondo que sejam as mesmas pessoas físicas, os seus sentimentos e pensamentos terão sofrido necessariamente algumas mudanças. O direito, que é a expressão destes pensamentos e destes sentimentos, está, portanto, ele também, submetido a uma transformação perpétua. Se nos compenetrarmos desta verdade incontestável, estaremos imediatamente em presença de um dos problemas mais importantes do direito. Este, acabamos de ver, está perpetuamente em mudança. Mas, por outro lado, esta mobilidade é, em larga medida, incompatível com as exigências da vida social. Os homens têm necessidade de saber como se comportar uns em relação aos outros, mas como saberão, se as regras imperativas a que eles devem ser submetidos variam de um momento para o outro? Sem dúvida eles têm a intuição de que essas regras não lhes são estranhas, mas emanam deles próprios e é essa, aliás, a razão profunda do adágio, segundo o qual "presumese que ninguém ignora a lei". Mas este sentimento geral e vago não basta para guiar os homens no seu comportamento cotidiano. As regras de direito devem ter um mínimo de precisão e de rigidez indispensável à segurança das relações sociais. Elas o adquirem pelo fato de se expressarem em palavras e, nas sociedades modernas, através de fórmula escrita. Mas daí surge um inevitável conflito entre o caráter estático das normas e o dinamismo da vida. E este conflito dá ao direito, que parece ao profano tão frio e austero, um aspecto dramático e, algumas vezes, até mesmo patético. É CONCEITO DE DIREITO 55 56 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 57 apaixonante acompanhar o esforço dos homens para alcançar a justiça, através de fórmulas que, por definição, não poderão realizar plenamente. Ao mesmo tempo que sociológica, a concepção do direito a que me filio é realista. E essa palavra tem para mim dois sentidos precisos. A atitude realista consiste em considerar as regras jurídicas como fatos, ou mesmo como coisas. Esta atitude se impõe a quem se preocupa em estudar o direito cientificamente, pois a ciência do direito não é uma ciência normativa (expressão que contém em si uma contradição), mas uma ciência das normas, o que é completamente diferente. Ela se impõe também a todo jurista que, elevandose acima da pura técnica, dirige suas reflexões para o direito. Ela permite eliminar, como destituídas de significação, os falsos problemas como o de procurar o fim do direito. O direito não tem finalidade, como a religião ou a arte. Como elas, e talvez com mais intensidade, ele exprime a vontade e as aspirações eminen temente mutáveis do corpo social. De outra parte este realismo não deve ser confundido com um positivismo estreito. Ele procura, ao contrário, atingir todos os fenômenos jurídicos, mesmo os que não estejam oficialmente catalogados como tal. Ele atribui uma importância apenas relativa aos critérios formais. Por isso eu não hesito em considerar como regras de direito as prescrições obrigatórias observadas de fato e em eliminar as regras que existem apenas no papel, convencido de que apenas um esforço deste gênero permite apreender a realidade jurídica. 5.3 Justo, conteúdo essencial da norma jurídica François Geny, Science et technique en droit pri positif, 1.° v., n.16, p. 49. Na própria noção do conteúdo do direito, encontramos um elemento específico, que é tirado da experiência. Tal elemento decorre da finalidade de toda organização jurídica, que não: é outra senão o justo. As regras do direito visam necessariamente, e, segundo penso, exclusivamente, a realizar a justiça que nós concebemos sob a forma de uma idéi.., a idéia do `justo'. Para especificar o direito segundo seu conteúdo próprio, não podemos n, contentar com a observação de que ele só impõe suas regras aos homens em su. relações recíprocas e não prescreve nada ao homem em relação a si mesmo o em relação à divindade. Não há aí mais do que uma diferença quantitativa e não qualitativa, em relação à moral e à religião. Pois se elas ampliassem a área dos deveres que impõe nem por isso entrariam na esfera do Direito. E, da mesma forma, essa pretendi especificação não separaria o domínio do direito do campo dos costum Ficaremos, também, longe de atingir o fundo das coisas, se aceitarmos a definiç: célebre de Jellinek, de que direito é ` o mínimo ético" (das ethische minimum ainda mesmo que acrescentemos com este jurisconsulto que o direito tende a mantum dado estado social e que ele consiste na realização, pela vontade humana, d. condições de existência da sociedade. No fundo, o direito não encontra seu conteúdo próprio e específico, sen:' no conceito de "justo", noção primária irredutível e indefinível que impli essencialmente não apenas os preceitos elementares de não fazer mal a ningué (neminem laedere) e dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), mas pensamento mais profundo de um equilíbrio a estabelecer entre os interesses e conflito, em vista a assegurar a ordem essencial à conservação e ao progresso sociedade humana. Ora, essa noção se distingue facilmente tanto das noções de "belo" e do "verdadeiro" que correspondem a conceitos totalmente diferentes como, ainda, das noções de "divino" e de "bem", que sugerem as regras da religião ou da moral. Ela é talvez mais dificilmente separável da idéia de "utilidade", que, inspirando completamente as regras dos costumes, parece intervir também na realização da idéia de justiça, ao dirigir a avaliação recíproca dos interesses, que o direito tem por missão conciliar. Para falar claramente, quando consideramos o direito, nós incluímos a "utilidade" na "justiça", no sentido de que ligamos a um ideal superior o princípio de solução dos conflitos de interesse. E parece preferível, se quisermos manter este ideal em sua pura integridade, deixar à idéia de `justo' o privilégio de preencher, com exclusividade, o conteúdo de direito. 5.4 O Direito e o materialismo histórico e dialético Karl Marx, Prefácio à Critica da economia política. O primeiro trabalho que empreendi para resolver as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Minhas pesquisas me conduziram à conclusão de que as relações jurídicas, assim como as formas de Estado, não podem ser compreendidas, nem por elas próprias, nem pela suposta evolução geral do espírito humano, mas que elas têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais da existência, que Hegel, a exemplo dos ingleses • dos franceses do século XVIII, abrange no seu todo sob o nome de "sociedade civil"; mas que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política. O resultado a que cheguei e que, uma vez adquirido, serviume de fio condutor nos meus estudos pode brevemente ser formulado assim: Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a certo grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se forma uma superestrutura jurídica e política • à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina • seu ser; mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência. Em determinado estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de Propriedade no interior das quais elas estavam se desenvolvendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações tornamse entraves. Iniciase, então, uma época de revolução social. A mudança na base econômica subverte, mais ou menos lentamente, toda a enorme superestrutura. Quando se consideram tais transformações, devese sempre distinguir entre a transformação material das condições de produção econômica, que se pode constatar fielmente por meio das ciências da natureza, e as formas jurídicas, Políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, as formas ideológicas, através das quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim. 58 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 59 Assim como não se julga t3m indivíduo pela idéia que ele faz de si mesmo, não se poderá julgar uma época de mudança profunda pelo conhecimento que ela tenha de si própria; é preciso ao contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção... A grande idéia básica é a de que o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos, em que as coisas em aparência estáveis tanto como os seus reflexos intelectuais em nossa mente, as idéias, passam por urna transformação ininterrupta de viraser e de superação, em que, finalmente, =a despeito de todos os acasos aparentes e todos os retornos momentâneos para trás, um desenvolvimento progressivo termina acontecendo. Esta grande idéia ffundamental penetrou, notadamente desde Hegel, tão profundamente na consciência comum que ela não encontra sob esta forma geral quase mais nenhuma contradição. Mas reconhecêla em frases e aplicála na realidade, a cada domínio subnYetido a investigação, são coisas diferentes... Não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado diante da filosofia dialética. Ela mostra a caducidade de todas as coisas e em todas as coisas nada mais existe para ela que o processo ininterrupto de viraser e do transitório, da ascensão sem fim do inferior ao superior, do qual ela própria não é mais do que o reflexo dentro da mente pensante. 5.5 Concepção quântica dc direito Goffredo Telles Júnior, O Direito quântico, Ensaio sobre o fundamento da Ordem Jurídica, Max Limonad, 1971, p. 910, 284286. O advento do ser humano se prende à evolução da matéria cósmica. E seu comportamento é o requinte a qule chegou o movimento que anima, desde sempre, todas as coisas do universo. O Mundo Ético, dentro doo qual o Direito se situa, não é um mundo de natureza especial, mas um estágio da natureza única. Nas propriedades ondulatóri as submersas, das partículas elementares da matéria, encontramse as raízes do movimento universal, as primeiras manifestações de extraordinárias potências, cuja plena atualização se observa no comportamento dos seres muito evoluídos, dos seres extremamente complexos, entre os quais avulta o ser humano. A revelação científica de como se comportam as partículas no âmago da matéria e as moléculas dentro de célula invalida conceitos clássicos, que pareciam: definitivos, sobre a divisão do universo em Mundo Físico e Mundo Etico. A unidade da Substâncias Universal, que é um princípio filósofico de civilizações antiqüíssimas, hoje se patenteia nos laboratórios da Física Moderna. Este livro é uma singela demonstração de que a ordenação jurídica é a própria ordenação universal: é a ordenaação universal no setor humano; a ordenação da natureza única, no mundo em que é promovida a ordenação cultural. A Teoria Quântica do Direi to, o Quantismo Jurídico, é a tese de que o Direito se insere na harmonia do universo e, ao mesmo tempo, dela emerge, como requintada elaboração do mais evoluído dos seres. (... ) Uma. relação jurídica é sempre uma interação "quântica". Em cada relação jurídica, movimentos comedidos de uns propiciam movimentos comedidos de outros. Esses movimentos são comedidos em razão de dois fatores. Primeiro, porque são, somente, os movimentos autorizados pelas normas jurídicas. São, apenas, os movimentos produzidos por quem tem o Direito Subjetivo de produzilos. Segundo, porque em cada relação jurídica direitos subjetivos de uns e de outros se confrontam e, depois, se compõem, limitandose reciprocamente, a fim de que deles resultem movimentos convenientes para uns e outros. As interações, nas relações jurídicas, são "quânticas", porque as ações correlatas, de que elas se constituem, não são quaisquer ações, mas, precisamente, as ações que as normas jurídicas autorizam e "quantificam". O Direito Objetivo é a ordenação de determinadas espécies de interações humanas. É a ordenação que quantifica a liberação das energias humanas, para assegurar o equilíbrio das forças, e para garantir que a cada direito corresponda uma obrigação. É a ordenação que delimita a liberação da energia, nos "campos" dos homens, para que a sociedade seja efetivamente o que ela precisa ser, isto é, um "meio" a serviço dos "fins" humanos. Pelo prisma do Direito, os homens são partículas delimitadas de energia. São objetos quânticos ou quanta. As interações dos homens dos homens considerados como quanta (quantidades discretas de energia) são regulamentadas por uma "ordenação quântica". O Direito é a ordenação quântica das sociedades humanas. Mas, em matéria de ordenação, por meio do Direito, tudo é possível. Assim como a proteína reguladora deve ser considerada como um produto especializado em engineering molecular, assim também o Direito deve ser considerado como um produto de uma inteligência especializada em engineering social. Assim como nenhuma imposição química decide da atuação das referidas proteínas, assim também nenhuma imposição absoluta determina o Direito. Assim como essas proteínas se dirigem com autonomia, em conformidade com os interesses fisiológicos da célula, também o Direito, livre de imposições "absolutas", se pode dirigir pelos interesses reais da sociedade, de acordo com os sistemas de referência efetivamente vigorantes. O direito não pode se sujeitar a não ser aos fins que a sociedade almeja. A Ciência do Direito não anunciará jamais que um homem, ou um determinado grupo de homens, poderá desta ou daquela maneira, como a Física não pode, prever o percurso que um eléctron ou um grupo de eléctrons irá fazer. A Ciência do Direito dirá, isto sim, que não sabe como um homem, ou um determinado grupo de homens, irá proceder, mas que esse homem, ou esse grupo de homens, tem mais probabilidade de proceder de maneira X, do que da maneira Y. A maneira X de proceder é a que é mais conforme ao sistema ético de referência, dentro do qual age esse homem ou esse grupo de homens. É a maneira de proceder que o Direito Objetivo deve preconizar. As leis humanas são, portanto, leis de probabilidade, como as demais leis da Sociedade Cósmica. A ordenação jurídica é a própria ordenação universal. É a ordenação universal no setor humano. 6. Bibliografia ALTAVILA, J. Origem dos direitos dos povos. São Paulo : Melhoramentos, 1964. BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. 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A classificação de Aristóteles e suas modificações: 4.1 A ciência teórica: 4.1.1 Ciências físicas ou naturais; 4.1.2 Ciências culturais; 4.1.3 Ciências de tipo matemático; 4.1.4 Ciências de tipo metafísico; 4.2 Ciência prática ou normativa: 4.2.1 As ciências morais, humanas ou ativas; 4.2.2 Ciências artísticas e técnicas; 4.3 Conclusões 5. Outras formulações: 5.1 "Direito e ordem", E. Bodenheimer; 5.2 "Ciências humanas e ciências naturais", W. Dilthey; 5.3 "Ciências especulativas e operativas", L. Van Acker; 5.4 "Ciência normativa, expressão contraditória", H. LévyBruhl 6. Bibliografia, 1. O Direito como ciência Como vimos, o vocábulo "direito", em uma de sua acepções fundamentais, designa a "ciência do direito" "ciência jurídica", ou "jurisprudência".' Nesse sentido, Justiniano definiu o direito como "a ciência do justo e do injusto";' Leibniz, como "a ciência das ações enquanto justas ou injustas",' e Hermann Post, como "a exposição sistematizada dos fenômenos da vida jurídica e a determinação de suas causas", (1) O termo `jurisprudência" tem, na linguagem jurídica, duas acepções diferentes. Pode significar: a) "ciência do Direito", como ocorre no texto de Justiniano acima citado; foi o sentido clássico do vocábulo e é, ainda hoje, de uso freqüente nos autores de língua inglesa; b) a decisão constante dos tribunais em determinada matéria; nesse sentido, falamos em "jurisprudência" do Supremo Tribunal, dos Tribunais do Trabalho etc. "Jurisprudentia est justi atque injusti scientia", Institutas, livro 1, tít. 1, § 1.°. "Jurisprudentia est scientia actionum quatenus justae vel injustae dicuntur", Leibniz. Nova methodus discendae docendaeque jurisprudentia, p. 11, § 14. Essa colocação levanta naturalmente um problema fundamental: que espécie de ciência é o direito? Ciência puramente teórica, pois "a moral e o direito não se podem dizer ciências práticas, aplicadas ou normativas Ciência pela simples razão de que não há nem pode haver teórica ciências práticas, aplicadas ou normativas",4 como ou prática diz Pedro Lessa? Ciência prática ou "arte do bom e do justo", "ars boni et aequi",5 conforme a elegante definição de Celso? Ou, ainda, "ciência especulativa (ou teórica), quanto ao modo de saber, e prática, quanto ao fim",6 como afirma João Mendes? E, em outro plano, ciência natural, como proclama Pontes de Miranda' e, em geral, os autores de inspiração Ciência positivista? Ciência estritamente formal, tal como natural, a define a Teoria Pura do Direito, de Kelsen? Ou formal ciência cultural, como vem sendo afirmado pelas ou cultural principais direções s do pensamento jurídico con temporâneo? Essas interrogações nos levam a considerar o problema da classificação das ciências, na formulação de alguns pensadores mais representativos. 2. Classificação das ciências de Augusto Cocote e de Dilthey 2.1 É conhecida a classificação das ciências proposta por Augusto Cocote (1798 1857), na II lição de seu Curso de Filosofia Positiva: Pedro Lessa, Estudos de Philosophia do Direito, Ed. Jornal do Comércio, 1912, p. 75. (5' Digesto, 1, 1, 1, 1, pr. (6) João Mendes de Almeida Júnior, Direito Judiciário Brasileiro, São Paulo, Freitas Bastos, tít. 1, cap. 1. "' "Para ser ciência, o direito tem de ser natural, porque todas o são", Pontes de Miranda, Sistema da ciência positiva do direito, v. 2, p. 28. V. Recaséns Siches, Direcciones contemporâneas del pensamiento jurídico, Barcelona, Labor, 1936; G. Radbruch, Filosofia do Direito, Saraiva, 1940, especialmente o Prefácio de Cabral Moncada; Miguel Reale, Filosofia do direito, Saraiva, 1969; Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do direito, Saraiva, 1969; A. Torré, lntroducción al derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957; G. Dei Vecchio, Filosofia del Diritto, Milão, Giuffrè, 1946; Carlos Cóssio, Panorama de Ia teoría egológica del Derecho, Buenos Aires, 1949. O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 63 3. Física 4. Química 5. Biologia 6. Sociologia O critério dessa classificação é a complexidade crescente e a generalidade decrescente de cada ciência. A matemática é a menos complexa, porque se ocupa apenas com as relações de quantidade. É, ao mesmo tempo, a mais geral, porque pode ser aplicada a todas as espécies de fenômenos. A mecânica universal é mais complexa do que a matemática, porque tem por objeto o estudo do "movimento" e suas relações de "quantidade". É, ao mesmo tempo, menos geral do que a matemática, porque só se ocupa dos fenômenos em que há movimento. Da mesma forma, a física é ainda mais complexa porque seu objeto inclui "fenômeno físicos", como a luz, o som, o calor, além de "movimento" e de "quantidade". Mas é menos geral ou abrangente, porque seu campo de estudo se limita ao mundo dos fenômenos físicos. A química se ocupa de fenômenos que são ainda mais complexos: os fenômenos químicos, que incluem "fenômenos físicos", "movimento" e "quantidades". Mas seu campo é menor. Limitase ao mundo dos fenômenos químicos. A biologia é ainda mais complexa, porque os fenômenos biológicos incluem aspectos "químicos", "físicos", "mecânicos" e "quantitativos". É, ao mesmo tempo, menos geral, porque se estende apenas aos seres vivos. E, finalmente, a sociologia é a mais complexa das ciências, pois o fato social inclui, de certa forma, fatos biológicos, conseqüentemente, fenômenos químicos, físicos, mecânicos e relações matemáticas. E é, ao mesmo tempo, a menos geral, pois só se aplica à vida social. 2.2 Modernamente generalizase o emprego de outra classificação, inspirada na divisão proposta por Ampère (17751836) e desenvolvida por Dilthey (1833 Classificação 1911). Distingue Dilthey 9 duas espécies fundamentais de ciências: 1. ciências da natureza ("Naturwissenschaften"); v' W. Dilthey, Introduction à l'étude des sciences humaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1942, livro 1.°. 1. Matemática 2. Astronomia (Mecânica universal) de Dilthey I ItODUÇpO A CIÊNCIA Do DIREITO e denomina 64 culturais" , o espírito ("Ge1stswisse ' nschoute"Ciências ê h2 ciências d «ciências humanas referentemente icas, que consideram das P em: etivo ou psicológ subdivididas do espírito subjetivo, o espírito humano a) ciências no próprio sujeito; culturais frito humano etivo, que consideram ciências o espírito es frito obj e constituem o direito. b) ciências do P culturais sociais, inclusive ológicas têm etos ou Produtos morais, cosm g nos obj ditas: históricas, naturais ou propriamente e natureza, ciências por objeto ° As ciências da físico. têm P o mundo humanas ou culturais, considerado, no por objeto do espírito, do espírito, roduto das ações As ciências ento, da cultura ou e social, P mundo do pensam histórica elo homem de em ou na realidade transformada P um diferença próprio homem natureza corresponde das ciências Cultura é a «explicação ,, no caso humanas. diversidade de A natureza A essa de cada ciência: culturais. " métodos no estudo compreensão " no caso das ciências ondem compreende", diz Dilthey• corresp Dilthey naturais; cultura Seto Comte e de a us se eXAsca' ões de Aug físicomate classificaç diferentes. lano ções filosóficass as ciências ao pdireção naturalis concep todaa duas reduzindo ti icamente a natural ou físico A de Comte, representa P do tipo e a precisão mático, com ° rigor ta Todas as ciências são nificativo . Naturalismo e devem ser estudadas E sig ao de matemáticos. Classifica dos métodos aç e Culturalismo em sentido estrito, a sociologia, sociologia, e da física, natural, como icá , temática ísico ,física biolog além de m ente ciências de ti a°biologia, pQ °,física celeste". Comte inclui som ,física social", ão . stronomia, Ou ele denomina , e a a lassificaç , direito nessa considerad que ,físico4 do química ou da ciência ia ou física socipa ciênci Qual o lugar sociolog a qual seriam artes a e5, ente, dentro da eral, ia etc. 6, Evidentem a ciência social g e, ogia a econoin natur P fenômeno a por Comte com° olítica, 110. Ia do direito, a ciência P o direito é considerado da natureza. físco erspeCtiva, demais fenômenos menos dessa p dos feno vinc semelhante natureza e estrutura. filosófica se ou físico, mesma ianda cuja posção r, jurídico e da M diz pontes de naturais,10 ositivista. Jacinto, 1922, ao naturalismo P positiva do Direito, atmosfér Sistema de Ciência onde há espaço .n uand como' 26)• Q direito, oo» pontes de Miranda, o social há o ocupam (P• o `nos 26. "Onde há espaç gasosos que se não ° é 2, p. sólidos, liqurdOS °U certo ritmo, que, corgos cristaliza em p oliedros, ha o ele"' (P• 84). mineral deve ser alvo de vivo natural com direito, O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 65 De outra parte, a classificação de Dilthey representa a direção culturalista, que se recusa a reduzir o Direito, a História, a Pedagogia e as demais ciências humanas ou "ciências da cultura" à categoria de "ciências físicas ou naturais". "O humano diz Recasens Siches a cuja área pertencem os fenômenos sociais, constitui um mundo completamente diverso do reino da natureza física e biológica, embora se encontre apoiado e inserido nesta. O humano não pode ser captado pela pura categoria da causalidade física, nem reduzido a mera expressão quantitativa, pois, além dos elementos apreensíveis por tais processos, o fato social tem algo que escapa a estes métodos: possui sentido ou significação"." Dentro dessa perspectiva, o direito se situa evidentemente entre as ciências humanas. Mas há outros aspectos do problema. As ciências físicomatemáticas e as culturais não esgotam o quadro dos conhecimentos humanos. Em sentido amplo, além das ciências do "ser", existem ciências do "dever ser". Ao lado das ciências do simples "conhecer", existem ciências do "agir", ciências do "fazer", ciências "artísticas", ciências "técnicas", ciências "normativas" etc., o que nos leva a uma pesquisa mais ampla sobre os quadros da ciência. Se quisermos, numa perspectiva mais ampla, situar o direito conjunto dos conhecimentos humanos e fixar sua posição dentro realidade universal, devemos recorrer à noção de ordem. A "ordem" é uma das idéias primárias do pensamento e, ao mo tempo, uma das realidades fundamentais da atureza. O problema capital da teoria do conheimento, escreveu Bergson, consiste em saber orno a ciência é possível, isto é, porque há ordem" nas coisas. A existência da ordem poderá r um mistério a esclarecer ou um problema istência da ordem é um fato." no da mes (7) E di di 19 có Noção e realidade fundamental a colocar. Mas a (6) Recaséns Siches, Tratado de sociologia, Globo, 1968, p. 83 e 87. H. Bergson, L'évolution créatrice, Paris, Presses Universitaires de France, 1948, cap. III, p. 232. J. Leclerq, em Les grandes lignes de Ia Philosophie Morale: "O problema da vida é para o homem, em todos os setores, um problema de ordem. A vida física é uma questão de ordem. A vida intelectual o é da mesma forma. A vida moral também. O vício é uma desordem, como a doença e o erro. O homem deve tomar seu lugar na ordem universal e desempenhar o papel que lhe cabe na história do mundo" (4.° parte, cap. 15, p. 437 e ss.). 66 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 67 No mesmo sentido é a observação de Hegel: inicialmente, só existem, na superfície terrestre, minerais, em seguida, vegetais, depois, animais. Não se tem a impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no universo? O Espírito, inicialmente adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo, "alienado" no universo, apresentase, cada vez mais manifestamente, como ordem, como liberdade, logo como consciência. Encontramos ordem em todos os movimentos e setores da natureza. Existe ordem no movimento dos astros, no crescimento de um vegetal, na estrutura de um organismo vivo. As reações químicas se operam segundo uma ordem determinada. Existe ordem na vida social, manifestada na divisão do trabalho e na distribuição das funções sociais. "O direito escreveu Planio113 tem por objeto a realização da ordem na vida social". As obras de arte, as demonstrações da matemática, os raciocínios da lógica, as conquistas da técnica, as sinfonias musicais são manifestações diferentes dessa ordem. Em suma, a noção de ordem é transcendental, isto é, passa através de todos os setores da realidade. Impressionados por essa ordem universal, os Cosmos gregos chamaram o mundo de "cosmos" (Kósmos), e caos que significa ordem, beleza. E ao "cosmos" opuseram o "caos" (Káos), que significa desor dem, confusão. A ordem pode ser definida como "a unidade na multiplicidade". Supõe sempre dois elementos. Não há ordem sem Unidade na unidade ou sem multiplicidade. Se algumas cores multiplicidade forem atiradas ao acaso sobre uma tela, não haverá ordem, por falta de unidade. Da mesma forma, não se perceberá ordem numa tela de uma só cor, por falta de multiplicidade. Ordem não se confunde com estabilidade. Modernamente, a ciência abandona cada vez mais a noção estática de ordem, para substituíla por uma visão dinâmica e concreta." 3.2 Fundamento das ciências A noção de ordem é fundamental a todas as ciências. Podemos dizer que o objeto da ciência consiste, precisamenFundamento te, em investigar os diversos aspectos dessa ordem das ciências universal. A astronomia procura fixar a ordem que rege o movimento dos astros. A biologia tem por objeto determinar as leis que regem a ordem existente na estrutura Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit Civil, t. 1, § l.°. V. Vicente Eco, Obra Aberta, Zahar, 1968, p. 56. e na atividade do organismo vivo. A física e a química, em qualquer dos seus capítulos, procuram descobrir e fixar aspectos especiais dessa ordem universal. As leis, que as diversas ciências formulam, nada mais são do que enunciados parciais dessa ordem. Devemos examinar a posição do Direito, dentro da ordem e das leis universal. Mas, para isso, precisamos começar por distinguir as diversas espécies ou tipos de "ordem" que encontramos no universo. Pois, evidentemente, a ordem que rege os movimentos dos astros e a que existe na vida social não são da mesma natureza. 3.3 Espécies de ordem Podemos distinguir duas espécies fundamentais de ordem: a) teórica ou especulativa; b) prática ou normativa. Essa divisão tem por fundamento a atitude da razão humana em face da ordem. A razão muitas vezes se limita a considerar ou contemplar a ordem existente, outras vezes influi na ordem, e, de certa forma, a realiza. Ordem teórica ou especulativa é aquela que a razão apenas considera ou contempla. Por exemplo, a ordem existente no movimento dos astros ou na estrutura de um vegetal. Ordem prática ou normativa é aquela que a razão não apenas considera, mas também realiza. Por exemplo, a ordem existente numa obra de arte, num raciocínio lógico ou na estrutura de um edifício. A etimologia das palavras "teórico" ou "especulativo" e "prático" ou "normativo" confirma e esclarece esses conceitos. A palavra "teórico', como as expressões correlatas, "teoria", "teorema" e outras, provém do verbo grego theorein, que significa "ver". Ciência teórica é a Ordem que se limita a ver a realidade, a contemplar ou teórica considerar a ordem existente. É aquela em que a razão "vê". "Especulativo" vem do vocábulo latino speculum, que significa "espelho". Denominação também adequada, porque, na ordem especulativa, a razão exerce o papel de um espelho: limitase a reproduzir a realidade, refletindo aquilo que existe. A palavra "prática" provém do vocábulo grego praxis, que significa praxe, costume. Indica Ordem o agir humano. E a ordem é chamada "prática", prática porque depende, de qualquer modo, da atividade do homem. E8 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 69 "Normativo" provém do vocábulo latino norma, que encontra similar perfeito na língua portuguesa. Ordem normativa é a que obedece a normas estabelecidas pela razão humana. É a que é regulada pelo homem. Esses dois grandes setores são suscetíveis, ainda, de subdivisão. A ordem teórica consta de três espécies fundamentais: a) ordem física ou natural; b) ordem matemática; c) ordem metafísica ou ontológica. Ordem física é a que se refere aos seres da natureza, considerados em sua realidade qualitativa e quantitativa. É o caso da ordem existente numa célula viva, na estrutura da matéria ou na anatomia de uma espécie animal. Ordem matemática é a existente no mundo Ordem das quantidades. Por exemplo, 10 vezes 10 igual matemática a 100. Referese fundamentalmente ao número e à extensão. Ordem metafísica é a relativa ao ser considerado apenas como ser. Referese às noções de causa e efeito, essência Ordem e existência, substância e acidente, e outras, que metaf isica se aplicam ao ser, considerado em si mesmo. É também chamada ordem ontológica (do vocábulo grego ontos, que significa "ser"). A ordem prática, por sua vez, pode ser assim subdividida: a) ordem lógica; b) ordem moral; c) ordem artística. Como vimos, ordem prática é aquela que a razão, de certa forma, realiza. E a razão pode realizar ordem, na própria razão, na vontade, ou nas coisas exteriores. A ordem que a razão realiza no próprio raciocínio chamase ordem lógica. A ordem que a razão realiza na vontade ou na atividade humana chamase ordem moral. E a que o homem realiza nas coisas exteriores é ordem artística ou técnica. Consideremos cada uma delas em particular. Podemos raciocinar "ordenada" ou desordenadamente. Se disser mos: todo mineiro é brasileiro; todo paulista é Ordem brasileiro; logo, todo mineiro é paulista, estaremos lógica praticando uma "desordem" lógica. E inversamente, estaremos raciocinando com "ordem", se dissermos: todo mineiro é brasileiro; Fulano é mineiro; logo, Fulano é brasileiro. Assim, ordem lógica é aquela que a razão realiza na própria razão. É a ordem no raciocínio. Como dissemos, ordem moral é a que regula a atividade humana ou a atividade da vontade. E, como a característica essencial da vontade é a liberdade, podemos dizer que esta é a ordem no mundo da liberdade. De acordo com a forma por que o indivíduo agir, ordenada ou desordenadamente, estará ele observando ou não a ordem moral. Quem pratica um furto, uma injustiça, uma desonestidade, está violando a ordem moral. Está abusando da sua liberdade. Quem cumpre seu dever e respeita a personalidade e os direitos dos demais age ordenadamente. Ordem artística é a que o espírito humano realiza nas coisas exteriores. E, por exemplo, a ordem existente numa escultura ou na construção de um edifício. Ordem Ao agir sobre o mundo externo, o homem pode artística ter em vista a beleza: temos então a ordem estética propriamente dita; ou pode ter em vista a utilidade; temos, nesse caso, a ordem técnica. Essas considerações podem ser resumidas no quadro seguinte: No passado, a ordem foi considerada principalmente sob o aspecto teórico, como ordem cósmica, diante da qual o homem assumia atitude meramente passiva. Modernamente, a ordem é considerada sobretudo em seu aspecto prático e dinâmico, como ação transformadora do homem sobre a natureza. A ordem existente no mundo é, cada vez mais a realizada pelo homem nos múltiplos campos da "cultura", que não se limita ao plano estritamente espiritual, moral ou social, mas se estende a todo o universo, incluindo, desde as manifestações sempre mais amplas e aperfeiçoadas do cultivo da terra ou do aproveitamento de suas riquezas, até as conquistas revolucionárias da tecnologia, representadas pela industrialização, a cibernética, os computadores eletrônicos, os satélites artificiais ou as astronaves. Nesse sentido, podemos dizer que, graças ao espírito do homem e sua atividade transformadora, a ordem no universo se amplia e se aperfeiçoa permanentemente. Dentro desse quadro, onde se situa a ordem jurídica? Ordem moral Ordem natural ORDEM Natural í TEÓRICA Matemática Metafísica Lógica PRÁTICA Moral Artística Estética Técnica 70 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Para encaminhar a solução do problema, devemos dar mais um passo a examinar a classificação das ciências, fundada na ordem universal. 4. A classificação de Aristóteles e suas modificações A esses aspectos fundamentais da ordem universal corresponde a famosa classificação das ciências de Aristóteles, que, com as modificações introduzidas pelo pensamento filosófico e científico posterior,15 passamos a apresentar. Essa classificação distingue, inicialmente, duas espécies fundamentais de ciência: a) ciência teórica ou especulativa; b) ciência prática ou normativa. Essa divisão fundase na finalidade ou função de cada ciência. Ciência teórica é a que tem por finalidade o próprio conhecimento. Ciência prática é a que tem por finalidade a ação. 4.1 A ciência teórica Podemos dizer que a ciência teórica conhece por conhecer. Por isso, as ciências desse tipo são chamadas ciências puras. É o caso da física, da anatomia, da geometria e outras. As ciências teóricas ou especulativas podem ser subdivididas em três espécies fundamentais, essencialmente distintas: a) ciências físicas ou naturais; b) ciências de tipo matemático; c) ciências de tipo metafísico. Essa divisão se fundamenta no grau de abstração de cada uma dessas ciências. Assim, as ciências físicas ou naturais têm um grau de abstração mínimo. Fazem abstração das diferenças individuais e estudam as propriedades comuns a uma espécie de seres de realidade, por exemplo, a célula animal. A abstração maior dáse nas ciências matemáticas, que fazem abstração das diferenças individuais e das qualidades dos seres para ficar apenas com a quantidade. A abstração é máxima na metafísica ou ontologia, que estuda o ser enquanto ser. 4.1.1 Ciências físicas ou naturais Como sabemos, toda ciência é abstrata, isto é, faz uma certa abstração, sem o que ela não será ciência. Quando a física diz que todo corpo tende para o centro da terra, ela está fazendo uma abstração. Nunca vimos nem podemos ver "o corpo" de que fala a física. Vemos este ou aquele corpo concreto, que é de madeira, de pedra ou de metal, que tem esta ou aquela cor, que possui determinado peso, tamanho e temperatura. Mas "o corpo" (universal), de que fala a física, ao enunciar, por exemplo, a lei da gravidade, não existe concretamente; não existe, como tal, no mundo real. Tratase de uma abstração; como abstrato é, também, "o hidrogênio", da química, "a célula", de que fala a biologia, "o animal", da zoologia, "o homem", da antropologia, " o índio", da etnologia, ou o "trabalhador urbano" da sociologia. Todas as ciências fazem abstração das diferenças individuais e só consideram as propriedades comuns a todos os seres da mesma espécie. Esse é o primeiro grau de abstração, comum a todas as ciências da natureza. 4.1.2 Ciências culturais Modernamente, com o desenvolvimento dos estudos relativos ao mundo "da cultura", em oposição ao mundo "da natureza",16 devemse distinguir, explicitamente, entre as ciências teóricas naturais, em sentido amplo: a) as ciências naturais, propriamente ditas, que se ocupam do mundo físico natural; b) as ciências culturais, que estudam a natureza transformada pelo homem. É assim, enriquecida a antiga classificação de Aristóteles, que conceitua genericamente a ciência natural como o estudo de ser móvel." V. Wilhelm Dilthey, Introduction à 1'étude des sciences humaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1942; G. Vico, Scienza nuova, Pádua, Cedam, 1943; M. Reale, Filosofia do Direito, cap. 17. '"' Para apreender com exatidão o conceito de ciência física ou natural, no pensamento de Aristóteles, é necessário remontar à significação do vocábulo grego physis e ao latino natura, que correspondem ao conceito de natureza em seu sentido mais amplo. Ao estudar a obra de Aristóteles, observou Ross: "La Physique" fait 1'objet d'une longue série d'oeuvres d'Aristote: De Meteorologica, De Physica, De Coelo, De generatione et corruptione, De partibus animalium, De anima etc. La Physique est distince d'une étude qui concentre toute son attention sur Ia matière, qui réduit un corps vivant par exemple, ou un composé chimique inanimé, à ses élements, sans tenis compte de Ia structure qui fait du corps vivant ou du composé ce qui'il est. Aristote se prononce en fait en faveur, de Ia teléologie et contre le pur mécanisme, en faveur de l'étude des parties à la Iumière du tout au lieu de traiter le tout simplement comme une somme de parties. La Physique est I'étude non de Ia forme seule ni de Ia matiére seule, mais de Ia matière informée ou de Ia forme dans une matière; W. D. Ross, Aristote, Paris, Payot, 1930, cap. 111. O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇAO DAS CIÊNCIAS 71 Historicamente, a classificação proposta por Aristóteles divide as ciências em teóricas, práticas e produtivas: "Todo conhecimento é prático ou produtivo ou teórico" ("metafísica", 1025b, 25). O objetivo de toda ciência é conhecer, mas os objetivos finais são diferentes. A ciência teórica procura o "conhecimento" por si mesma. As ciências práticas têm por objeto o conhecimento para que esse sirva de guia à "conduta ou ação". E as ciências produtivas procuram o conhecimento para utilizálo na "fabricação" de coisas úteis ou belas. W. D. Ross, Aristote, Payot, Paris, 1930, p. 34 e 91. 72 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Em sentido amplo, a natureza inclui o mundo da cultura. Este é, na realidade, a própria natureza transformada e aperfeiçoada pelo espírito humano. 4.1.3 Ciências de tipo matemático As ciências matemáticas se situam num plano de abstração mais elevado. Não apenas separam ou abstraem as diferenças individuais, mas fazem, também, abstração das "qualidades sensíveis", para considerar apenas a "quantidade" do ser. Por exemplo, o número 8 ou fração 5/9 são o resultado de uma abstração, em que foram deixadas de lado diferenças individuais e qualidades sensíveis. São puras relações quantitativas. Abstrações, portanto. Na realidade, não existe 8 simplesmente, e sim 8 homens, 8 máquinas etc. A matemática não considera a matéria ou conteúdo desses elementos. Fica apenas com seu aspecto quantitativo. O mesmo ocorre com outras ciências que, desprezando o conteúdo material dos objetos, limitam se à consideração de seus aspectos formais, como a estrutura lógica, a simples relação com outros objetos etc. São as ciências lógicomatemáticas ou, simplesmente, ciências formais. 4.1.4 Ciências de tipo metafísico A metafísica representa mais um passo nos graus de abstração. O filósofo faz abstração das diferenças individuais, das qualidades sensíveis e dos aspectos formais, para ficar apenas com o "ser". A metafísica é pura e simplesmente a ciência do ser. Por isso é, também, chamada ontologia (ciência do ser). Estuda o ser, enquanto ser, Mas, que pode dizer a ciência a esse respeito? Há muitos problemas ligados ao ser, considerado em si mesmo. E tais problemas são fundamentais. Por exemplo, todas as ciências • todos os raciocínios fundamse num princípio primeiro, que se enuncia assim: uma coisa não pode ser e nãoser, ao mesmo tempo • sob o mesmo aspecto. É o chamado princípio de identidade ou de não contradição, que é fundamental a todas as ciências e a todos os conhecimentos. Quando uma experiência num laboratório é feita por um físico, quando o matemático demonstra um teorema de geometria, quando o astrônomo faz o estudo dos movimentos dos astros, estão todos admitindo esse princípio. E se esse princípio não for verdadeiro, todos os raciocínios que o homem fizer serão inseguros. Ruirá toda a ciência. Nesse princípio se assentam todos os demais. Ao ser e a qualquer ser podemos aplicar as noções de substância ou acidente, essência e existência, matéria e forma, unidade, verdade, bondade etc. A metafísica realiza, assim, um supremo grau de abstração. Separa todas as "qualidades sensíveis" e "quantidades", para ficar apenas com o "ser". 4.2 Ciência prática ou normativa Ciências práticas são as que conhecem para dirigir a ação. São ciências que têm uma finalidade ulterior, além do conhecimento. É o caso da medicina, da engenharia ou da arquitetura, cujo objetivo é curar, construir ou planejar. É, também, o caso da política, da pedagogia ou da moral, cuja finalidade é orientar a conduta individual ou social do homem. As ciências práticas ou normativas se subdividem em: a) ciências morais, humanas ou ativas; b) ciências artísticas ou factivas. As ciências morais ou ativas têm por finalidade dar normas ao agir. Ciências artísticas ou factivas são as que têm por finalidade dar normas ao fazer. O objeto da moral é o agir. O objeto da arte é o fazer. Podemos dizer que, considerados em sua acepção ampla, a moral é ciência do agir e a arte é a ciência do fazer. Qual a diferença entre o "agir" e o "fazer"? A atividade humana, num sentido amplo, pode ser realizada de duas maneiras: como atividade produtiva ou como atividade moral. 4.2.1 As ciências morais, humanas ou ativas A atividade produtiva ou factiva tem por objeto o que os antigos chamavam o factibile, isto é, uma obra a ser feita ou produzida. Dizemos que o engenheiro "fez" uma ponte, o escultor "fez" uma estátua. A atividade moral ou ética tem por objeto o agibile, isto é, uma ação a ser praticada. De um homem que cumpriu o seu dever dizemos que ele "agiu" bem. • "fazer" é transitivo, exige um objeto exterior. Quem faz, faz alguma coisa. • "agir" pelo contrário, é intransitivo; é imanente (do latim Fnanet, permanece); e indica, fundamentalmente, a atividade interna e pessoal do homem. Assim, podemos dizer que ciências morais são as que dirigem a atividade humana propriamente dita. E ciências artísticas são as que dirigem a produção de coisas exteriores. O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 73 74 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 75 4.2.2 Ciências artísticas e técnicas As ciências artísticas, por sua vez, podem ser divididas em: 1. artes propriamente ditas que visam à produção do "belo", como a música, a escultura, a poesia; 2. técnicas, que têm por objeto a produção do "útil", como a engenharia (arte de construir), a medicina (arte de curar), e as técnicas em geral. Em síntese, temos o seguinte esquema: NATURAL Í NATURAL PROPRIAMENTE DITA CULTURAL LÓGICOMATEMÁTICA OU FORMAL METAFÍSICA OU ONTOLÓGICA 4.3 Conclusões Essa classificação sugere algumas observações, que passamos a indicar. 4.3.1 Primeiro: a divisão das ciências teóricas em: naturais, culturais, formais e metafísicas (ou ontológicas), Objetos: aproximase da moderna classificação dos objetos naturais ou regiões ônticas, proposta por Husserl e aplicada culturais por Cóssio ao campo de direito." Essa classifiideais cação distribui a universalidade dos objetos nas e metafísicos seguintes categorias: objetos naturais, culturais, ideais (ou formais) e metafísicos. 4.3.2 Segunda observação: a classificação de Aristóteles nos permite distinguir diversas acepções do vocábulo "ciência", que é usado, pelo menos, em três de ciência sentidos diferentes, todos contidos na classifica ção. Numa primeira acepção, latíssima, ciência significa o conheci mento certo pelas causas ("scientia est cognitio certa Conhecimento per causas"). Sempre que tivermos um conhecimento pelas causas que chegue às causas dos fenômenos ou às razões qu o demonstram, ele é científico. Carlos Cóssio, La teoria egológica del Derecho y el concepto jurídico d lihertad. Bueno Aires, Losada, 1944, p. 28 e ss. Nesse primeiro sentido, "ciência" se aplica a todos os conhecimentos pelas causas, a todos os conhecimentos "demonstrados" e se opõe a "conhecimento vulgar". É esse o sentido da palavra "ciência", na classificação apresentada. Ele abrange tanto as ciências teóricas como as práticas. Mas a palavra "ciência" é empregada, com freqüência, numa segunda acepção, estrita, refe Conhecimento rindose apenas às ciências teóricas ou puras. Isto teórico é, às ciências naturais (físicas ou culturais), às ciências formais e à metafísica. Nesse sentido, a palavra "ciência" se opõe à "arte" e às ciências práticas em geral, também chamadas "ciências aplicadas". É nesse sentido que se formula a pergunta: tal disciplina é ciência ou arte? É ciência pura ou aplicada? E ciência teórica ou prática? Num terceiro sentido, estritíssimo, a palavra "ciência" estendese apenas às ciências teóricas de tipo natural e matemático, isto é, às ciências particulares, em Conhecimento oposição à metafísica ou à filosofia, que é ciência físicogeral. matemático E nesse sentido, por exemplo, que se emprega vocábulo "ciência", quando se fala em Faculdade de Filosofia e Ciências. A classificação das ciências de Augusto Cocote, por exemplo, referese à ciência nesse terceiro sentido. Inclui apenas as ciências físicas e matemáticas, a saber: matemática; astronomia (física celeste); física (físicomecânica); química (físicoquímica); biologia (física biológica); sociologia (física social). Como vemos, quando Augusto Cocote fala de ciência, ele tem presente apenas as ciências especulativas de tipo físico e matemático. 4.3.3 Uma terceira observação deve ser feita. A classificação de Aristóteles referese a "tipos" de ciências, a tipos de conhecimento científico e não a uma enumera Tipos ção de ciências individualmente consideradas. de ciência Assim, ciência física, nessa classificação, não significa uma disciplina particular, como a Física propriamente dita, mas, sim, qualquer ciência de tipo natural. Tratase de espécie ou categoria de conhecimento científico, e inclui a física (em sentido estrito), a química, a mineralogia, a biologia etc. Como essa classificação referese a tipos de ciência e não a ciências individualmente consideradas, podemos incluir na mesma as diversas ciências que estão se constituindo modernamente. Assim, a genética, que é uma ciência relativamente nova, cabe perfeitamente na classificação. É uma ciência natural ou física. Da mesma forma, CIÊNCIA TEÓRICA ou ESPECULATIVA PRÁTICA ou MORAL OU ÉTICA NORMATIVA ARTÍSTICA DCIAMENTE D ITE TA TÉCNICA Três sentidos 76 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 77 a aeronáutica ou a moderníssima astronáutica cabem, também, na classificação, como ciências técnicas. O mesmo se dá com outras disciplinas especializadas. 4.3.4 Uma quarta e última observação a Valores respeito da classificação em causa: a cada um desses tipos ou categorias de ciência corresponde um critério ou valor fundamental. Assim, à técnica, corresponde o valor "utilidade". As artes, propriamente ditas, têm como valor fundamental Verdade o "belo". As ciências morais, o "bem". As ciências especulativas, a "verdade". Em linguagem filosófica, esses valores representam o objeto formal dessas ciências, isto é, são o aspecto pelo qual essas diversas disciplinas consideram a sua matéria. A moral estuda a atividade humana sob o aspecto do bem. A arte se ocupa das coisas exteriores sob o aspecto da beleza. A técnica considera as coisas exteriores, que constituem a sua matéria, sob o aspecto da utilidade. Essa distinção é de grande importância para que se respeitem a formalidade e o critério próprio de cada ciência. O cientista propriamente dito, homem de ciência teórica ou pura, tem ou deve ter como preocupação fundamental a verdade. O artista, a beleza. O técnico, a utilidade. O homem de qualquer ciência moral, o bem. O político, legislador ou administrador, o "bem" comum. Esses critérios ou valores não se opõem. Como mostra a Filosofia, "verdade", "beleza", "bem" são aspectos fundamentais do "ser" e se correspondem. Assim, o belo pode ser definido como o "esplendor da verdade". E o "bem", como a verdade enquanto fim para a ação.'9 Ou, como diz Sorokin, a verdade genuína é sempre boa e bela; a beleza genuína é invariavelmente verdadeira e boa, e o amor genuíno é sempre verdadeiro e belo.` 5. Outras formulações 5.1 Direito e ordem Edgard Bodenheimer, Ciência do direito, Rio, Forense, 1966, p. 185 e ss. Onde quer que tenham criado unidades de organização social, os homens têm procurado evitar o caos, estabelecendo em seu lugar uma forma qualquer de ordem em que se possa viver. Esse anseio por padrões de ordem na coexistência humana não representa um traço arbitrário ou dispensável dos seres humanos. Dele está profundamente impregnada toda a matéria de que se compõe a natureza, e da qual faz parte a própria vida humana. A natureza nos desvenda uniformidades aproximadas, seqüências repetidas, associações de acontecimentos que se reproduzem. Pelo menos naquelas manifestações da natureza externa, que se refletem mais significante e decisivamente na vida humana neste planeta, a ordem parece prevalecer sobre a desordem, a regularidade sobre a irregularidade, a regra sobre a exceção. A terra segue o seu curso em redor do Sol numa órbita fixa, e em condições que permitiram a existência da vida durante milhões de anos. Há uma alternação de estações em que se pode confiar, e que permite aos homens, durante aquelas em que se produzem os alimentos, proveremse e armazenarem para as outras, em que o solo se mostra estéril. Os elementos do universo físico, como a água, o fogo e as substâncias químicas, têm características mais ou menos invariáveis, que nos permitem confiar nas suas propriedades permanentes e predizerlhes os efeitos ao utilizá los para fins humanos. Todo o nosso controle da natureza pressupõe a existência de numerosas leis físicas, precisas, não raro matematicamente calculáveis, em cuja atuação uniforme confiamos, na abertura de túneis, na navegação marítima ou aérea, no controle das inundações e no domínio da energia elétrica para fins industriais e outros. Os processos físicos dos seres vivos são igualmente sujeitos a determinadas leis. Como na natureza, a ordem representa importante papel na vida dos seres humanos. A sociedade em geral, dependendo da coexistência e da cooperação, manifesta forte tendência para a adoção de formas ordeiras de organização. Observouse, por exemplo, que prisioneiros de guerra estabelecem rapidamente certas normas de conduta para o ordenamento da existência no campo de concentração, às vezes sem qualquer iniciativa da parte dos dirigentes do campo. Náufragos atirados à costa de uma ilha deserta quase imediatamente começarão a adotar um sistema improvisado qualquer de "governo" e "regulamentação". A sociedade em geral, dependendo da coexistência e da cooperação de muitos indivíduos e grupos diversos, tem ainda maior necessidade de organização e de ,,normas". fundamentais Bem Belo útil "Le bien est une propriété transcendantale de 1'être, comme le vrai et le beau. Les propriétés transcendantales correspondent à des vues de l'esprit. Le bien, c'est I'être vu du point de vue de l'action en tant que réalisant une fin, I'être consideré comme s'il avait une fin, un but, comme s'il existait pour réalisez quelque chose, comme s'il tendait vers cette fim raison de son existence. Le vrai, c'est le même être en tant qu'objet de connaissance. D'après Ia définition, traditionelle, Ia vérité est adaequatio rei et intellectus, l'accord de Ia chose, avec l'intelligence; en d'autres termes, le vrai, c'est l'être en tant que connu, c'estàdire, en tant qu'il se manifeste à un esprit". "Le beau est encore 1'être; mais en tant que source de jouissance pour I'esprit. Pour I'opposer à I& jouissance sensible, on qualifie cette jouissance d'esthétique. Lã jouissance esthétique résulte de Ia vue de Ia perfection de 1'être et le beau est une propriét~ transcendantale de 1'être au même titre que le vrai et le bein. Le vrai est 1'e en tant que connu, le bien en tant que fin, le beau en tant qu'objet de jouissancf Quod visum placet, dit Saint Thomas, ce qui plait à Ia vue. Tout perfectio tout bien plaêt à celui qui le connaft, done tout vérité. Tout être est bea comme il est vrai, comme il est bon en luimême. 11 y a une beauté en tout etre, et cette beauté est proportionnée à sã perfection' ; J. Leclerq. Les grandes lignes de Ia philosophie morale, ed. citada, p. 233 e ss. (20) Tendências básicas de nossa época, Zahar, 1966, p. 161. 78 INTRODUÇAO À CIÊNCIA DO DIREITO Há dois tipos de estrutura social que se caracterizam pela ausência de meios institucionais para a criação e manutenção da ordem na vida social. Esses dois tipos são o anarquismo e o despotismo, nas suas formas puras e não diluídas. Embora seja difícil encontrar sociedades que tenham praticado (ao menos por um período de tempo apreciável) uma forma de governo puramente anárquica ou totalmente despótica, o exame dessas formas extremas, ou "marginais", de existência política e social, é útil para uma compreensão da natureza e das funções do direito, como instrumento da ordem social. O anarquismo representa uma condição social em que se confere poder ilimitado a todos os membros da comunidade. Onde reina a anarquia, não existem regras obrigatórias e que se imponham ao reconhecimento de todos e que por todos devam ser obedecidas. Todos têm a liberdade de satisfazer aos próprios impulsos e de fazer o que lhes venha à mente, seja o que for. Nem Estado, nem Governo impõem limites ao exercício arbitrário do poder privado. As opiniões divergem quanto a saber como procederiam realmente os homens se os estados e governos fossem abolidos, e em seu lugar se entronizasse a anarquia, como forma legítima de vida social e política. Homens como Bakunin e Kropotkin, adeptos de um credo de anarquismo coletivista, convenceramse de que o ser humano é por natureza essencialmente bom, e de que só o Estado e as suas instituições o corrompem. Acreditavam eles que os homens são dotados de um poderoso instinto de solidariedade, e que, após a necessária destruição dos governos organizados, eles seriam capazes de viver unidos em um perfeito sistema de liberdade, paz, harmonia e cooperação. Em lugar do estado coercitivo, haveria uma livre associação de grupos livres; todo mundo poderia integrarse no grupo de sua preferência e dele retirarse quando lhe aprouvesse. Leão Tolstoi acreditou também na possibilidade de uma sociedade não coercitiva, cujos componentes se uniriam por laços de amor recíproco. A cooperação e a ajuda mútua, ocupando o lugar da competição desenfreada, passariam a ser as leis supremas de tal sociedade. E, porém, extremamente improvável que a total eliminação do Estado e de outras formas de constrangimento governamental pudesse gerar uma associação harmoniosa e imperturbável entre os homens. Embora admitindo que a maioria das pessoas é por natureza boa e sociável, restará sempre uma minoria avessa à cooperação, contra a qual será preciso usar de coação. Uns poucos elementos desequilibrados ou delinqüentes podem com facilidade perturbar uma comunidade. Estatísticas recentes demonstraram, por outro lado, que uma grande prosperidade econômica como a que objetivam os anarquistas como base de sua sociedade ideal por si só não soluciona o problema da criminalidade. Independentemente da sua situação econômica, "os homens são fatalmente sujeitos a paixões" e até mesmo um homem normalmente racional pode, dominado por um impulso incontrolável, praticar um ato que a sociedade não tolerará. Por essas razões, uma sociedade completamente livre, não regulamentada, sem sanções comunais, parece impossível. Por nossa infelicidade, a ordem nas coisas humanas não se impõe por si mesma. O extremo oposto do anarquismo na vida social seria um sistema político em que um só homem exercesse um poder tirânico e ilimitado sobre os seus semelhantes. Quando o poder desse homem se exerce de maneira totalmente arbitrária e caprichosa, estamos diante do fenômeno do despotismo na sua forma pura. O verdadeiro déspota dá as suas ordens e estabelece as suas proibições de acordo com a sua vontade livre e irrestrita, ou satisfazendo os seus caprichos ocasionais ou as suas disposições de momento. Um dia, ele condenará alguém à morte por haver furtado um cavalo; no dia seguinte talvez absolva outro ladrão de cavalos por lhe ter este, ao ser submetido a julgamento, contado uma história divertida. 0 cortesão favorito pode verse de súbito encarcerado, por ter vencido O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS um paxá numa partida de xadrez, e um escritor influente pode sofrer o castigo imprevisível de ser queimado vivo só por ter escrito algumas linhas que desagradaram ao tirano. Os atos do déspota puro são imprevisíveis porque não obedecem a qualquer padrão racional e não são pautados por normas ou por uma política identificáveis. Situações de poder arbitrário, encontradas em maior ou menor grau em todos os estados totalitários, despertam no povo um sentimento de perigo e insegurança. Mas existe um meio de evitar isso. Esse meio é o direito. 5.2 Ciências humanas e ciências naturais W. Dilthey, Introd. à l'étude des sciences humaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1942, cap. II. O conjunto das ciências que tem por objeto a realidade histórica e social será designado nesta obra pelo nome de ciências humanas, ou ciências noológicas ("Geisteswissenschaft"). O conjunto dos fatos que ocupam nosso espírito e que se incluem no conceito da ciência é, habitualmente, separado em dois grupos, dos quais um é designado pelo nome de "ciências naturais". E muito curioso que não exista, para designar o outro grupo, denominação pacificamente admitida. Adotarei o uso dos pensadores que designam este setor pelo termo "ciências humanas" ou "ciências do espírito" ("Geisteswissenschaft"). De um lado a expressão "ciências humanas", que foi grandemente divulgada pela lógica de Stuart Mill, pareceme que entrou em uso e tem significado geralmente compreendido. Ademais, se eu a comparo com outras denominações que não correspondem exatamente à idéia em questão, pareceme que é a denominação mais aproximada. Evidentemente ela exprime de uma maneira imperfeita o objeto do presente estudo. Com efeito, aqui, eu não separarei os fatos da vida do espírito da entidade psicofísica que é a natureza humana. Uma teoria que deseja descrever e analisar os fatos históricos e sociais não pode fazer abstração do caráter total da natureza humana e se limitar apenas aos fatos do espírito. Mas a denominação que proponho tem o mesmo defeito de todas as que se pretenderam empregar. "Ciências sociais", "sociologia", "ciências morais", `ciências históricas", "ciências culturais", todas essas denominações padecem do mesmo vício: elas são muito estreitas em relação ao objeto que pretendem exprimir. Quanto ao nome que escolho, ele tem pelo menos a vantagem de exprimir fortemente a natureza do grupo central de fatos e de que é preciso partir para ver realmente a unidade destas ciências, para determinar sua extensão, e para traçar, ainda que de forma imperfeita, o limite que as separa das ciências naturais. Os motivos pelos quais adquiriuse o hábito de separar estas ciências das ciências da natureza e de fazer delas um todo à parte, brotam das profundezas da consciência que o homem tem de si mesmo e do sentimento do caráter total desta consciência. Antes que aflore o desejo de procurar a origem do espiritual, o homem encontra, nesta consciência de si mesmo, o sentimento de que sua vontade e soberana, que ele é responsável por seus atos, que ele pode submeter tudo ao seu pensamento e pode resistir a tudo, desde que se entrincheire na fortaleza de sua pessoa, e que essas faculdades o coloquem à parte do resto da natureza. De fato, ele se descobre no meio desta natureza, para retomar uma expressão de SPinoza, como imperium in imperio. E, como não existe para ele senão o que é um fato em sua consciência, acontece que todos os valores, todas as finalidades 79 80 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO da vida estão fechados neste mundo espiritual, que age dentro dele de modo independente, e que seus atos não têm outro propósito senão o de criar coisas novas na ordem dos fatos do espírito. Assim se esboça uma demarcação entre o reino da natureza e um reino da história, e, no interior deste último reino, no meio de um conjunto construído pela necessidade objetiva que é a natureza, vêse em mais de um ponto, como num relâmpago, luzir a liberdade. Neste reino da história, os atos da vontade ao contrário das mudanças que se operam na natureza, segundo uma ordem mecânica e que desde o princípio contêm em si todas as conseqüências que se seguirão , graças a um dispêndio de energia e a sacrifícios, cuja importância permanece sempre presente ao indivíduo como um fato de experiência, acabam por produzir coisas novas e sua ação provoca uma evolução tanto da pessoa como da humanidade. Eles ultrapassam, aos olhos de nossa consciência, a repetição automática dos fatos naturais, repetição esta que alguns entendem como o ideal do progresso histórico, e diante do qual se pasmam, como diante de um ídolo, os adoradores da evolução intelectual. 5.3 Ciências especulativas e operativas L. Van Acker, Introdução à Filosofia e Lógica, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 28 e ss. Toda ciência implica certo processo ou movimento da razão para um fim ou objeto. Este último pode ser tão puramente científico que só se preste à especulação do saber ordenado, por exemplo: a quantidade abstrata. Neste caso temos ciências especulativas ou puramente científicas. Mas há outros objetos que, além de suscetíveis de conhecimento certo pelas causas, são naturalmente ordenados a certa execução ou obra, por exemplo: uma lei, as dimensões de um edifício etc. Neste caso temos ciências operativas ou analogicamente científicas em razão do objeto. No sentido largo, a especulação é sem dúvida operação ou ação, mas, no sentido estrito e etimológico, operação supõe a influência moral ou mecânica no efeito, ao passo que especulação lembra o espelho que reflete fielmente o objeto sem intervir na sua produção ou mudança (speculum aspectus). Por sua vez a operação estrita e a obra correspondente podem ser de ordem moral ou técnica. Donde as ciências ativas e produtivas. A divisão escolástica em ciências especulativas e operativas é, portanto, análoga, isto é, os membros da divisão não têm o mesmo valor nem pertencem ao mesmo gênero. Para os escolásticos como para os positivistas, o conhecimento certo racional é ciência na medida em que é especulativo. Mas como é variável essa medida, igualmente variável há de ser a noção de ciência. Contra os fatos é, portanto, o proceder dos positivistas recusando a existência das ciências práticas e querendo estabelecer homogeneidade ou univocidade exclusiva no conceito e na divisão das ciências. Tanto mais que os mesmos admitem que todas as artes são aplicações das ciências, participando, portanto, do seu caráter científico e merecendo, em parte, o título de ciência. A esse propósito, escreveu Pedro Lessa: "As ciências que Ihering e seus discípulos denominam `especulativas', em oposição ao que chamam `ciências práticas', reproduzem uma errônea classificação, que vem de Aristóteles, quando a verdade é que há somente ciências (todas da mesma natureza) e artes, ou conjuntos de preceitos de utilidade prática baseados nos conhecimentos científicos; as ciências têm por missão o estudo das leis, a que estio subordinadas as várias classes de fenômenos". O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 81 5.4 Ciência normativa, expressão contraditória H. LévyBruhl, "Les sources du droit les méthodes et les instruments de travail", Introduction à l'étude du droit, J. de Ia Morandière e outros, Paris, Rousseau, 1951, v. 1, 3.' parte, p. 256. A atitude realista consiste em considerar as regras jurídicas como fatos, ou, se preferirmos, como coisas. Essa atitude se impõe a quem se preocupa em estudar o direito cientificamente, pois a ciência do direito não é uma ciência normativa (expressão que contém em si uma contradição), mas uma ciência de normas, o que é completamente diferente. É preciso insistir sobre este ponto, que se presta a confusões intermináveis. Para as dissipar, basta precisar a competência de cada ciência. O cientista do direito aquele que podemos denominar de juristacientista é estranho, por definição, a toda ação prática; o jurista prático, o jurisconsulto, o advogado, o procurador, o notário etc. poderão ser levados a dar conselhos dentro dos quadros do direito existente e, eventualmente, a formular sugestões de lege ferenda. O moralista poderá e deverá apreciar a lei tomando por critério o seu ideal de justiça. Por conseguinte se propusermos uma questão como esta: "Tal lei parece iníqua; podemos deixar de obedecêla?" O jurista cientista se declará incompetente. Ele observará apenas se ela é ou não aplicada de fato. O jurista prático não poderá aconselhar a sua violação; quando muito fornecer argumentos que permitam contorná la, emendála, ou anulála. Apenas o moralista, colocandose sob o ponto de vista da sua consciência, poderá eventualmente aconselhar a desobediência a uma ordem emanada do legislador ou da autoridade legítima. Em certos casos, esta revolta consciente e refletida é fecunda; e a ilegalidade de hoje prefigura o direito do futuro. Outras vezes ela permanece esporádica e não chega a se impor à consciência social do grupo. 6. Bibliografia BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BRETHE DE LA GRESSAY e LABORDELACOSTE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Recueil Sirey, 1947. BERGSON, H. L'évolution creatrice. Paris : Presses Universitaires de France, 1948. CAVALCANTI FILHO, Theofilo. O problema da segurança no direito. São Paulo RT, 1964. COMTE. A. Cours de philosophie positive. Larousse, s/d. 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Rio de Janeiro Jacinto, 1922. v. 2. R,ADBRUCH, G. Filosofia do direito. São Paulo : Saraiva, 1940. R,AEYMAEKER, L. Introdução à filosofia. São Paulo : Herder, 1966. RALE, M. Filosofia do direito. São Paulo : Saraiva, 1932. , fCASÉNS SICHES, L. Filosofia del derecho. Barcelona : Bosch, 1936. f. Direcciones contemporâneas dei pensamiento jurídico. Barcelona : Labor, 1936. s. Tratado de sociologia. Globo, 1968. TfLLES JR., Goffredo. Filosofia do direito. São Paulo : Max Limonad, 1965. . O direito quântico. São Paulo : Max Limonad, 1971. VAN ACKER, L. Introdução à filosofia e lógica. São Paulo : Saraiva, 1932. s. Curso de filosofia do direito. Ed. Universidade Católica de São Paulo, 1968. VICO. G. B. Scienza nuova. Pádua : Cedam, 1943. 3 O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS SUMÁRIO: 1. A teoria no direito: 1.1 Posição do direito no quadro das ciências; 1.2 A teoria do direito: 1.2.1 O naturalismo jurídico; 1.2.2 O formalismo jurídico; 1.2.3 O culturalismo jurídico 2. A técnica no direito: 2.1 Existirão no campo do direito elementos de ordem técnica? Será o direito uma técnica?; 2.2 Tecnicismo, utilitarismo, pragmatismo; 2.3 Arte e direito 3. A ética e o direito O direito como ciência normativa ética: 3.1 A posição do direito no quadro das ciências; 3.2 O objeto da ciência do direito; 3.3 Ciência da liberdade 4. Outras formulações: 4.1 "Uma concepção naturalista do direito", Pontes de Miranda; 4.2 "0 caráter puramente formal da norma jurídica", H. Kelsen; 4.3 "O egologismo como concepção cultural do direito", Machado Netto; 4.4 "Normas de técnica legislativa"Lei Complementar 60, de 10.07.19725. Bibliografia. 1. A teoria no direito.J 1.1 Posição do direito no quadro das ciências De forma sintética, podemos formular as seguintes afirmações, que antecipam as conclusões do presente capítulo: a) existe inegavelmente uma TEORIA do direito, constituída por todos os estudos que se limitam ao conhecimento do que "é" a realidade jurídica; nesse sentido, o naturalismo, o formalismo e o culturalismo jurídico representam hoje as grandes direções teóricas da ciência do direito; b) existe, também, uma TÉCNICA do direito, que não se limita ao conhecimento do que é, mas dá normas ao "fazer"; indica como fazer uma petição, uma sentença, um recurso, um contrato, uma lei; c) nesse plano podemos falar, ainda, em uma ARTE ou ESTÉ TICA do direito, na medida em que os aspectos estéticos, como o estilo da lei, a eloqüência judiciária, os símbolos e as vestes talares interferem na vida jurídica; d) mas o direito é, essencialmente, uma ciência NORMATIVA HUMANA, MORAL; sua finalidade específica é ordenar a conduta social dos homens, no sentido da justiça. 84 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 85 1.2 A teoria do direito Existe inegavelmente uma "teoria" do direito. Quaisquer inst$_ tuições jurídicas podem ser estudadas teoricamente. Há uma teoria CL,, Estado, dos contratos, da propriedade, da empresa etc. Há, igualmente a teoria do Direito Civil, do Direito Comercial, uma Teoria Geral cI. Direito etc. São dessa natureza, também, os estudos sobre o homet e seu comportamento no meio social, os estudos do meio físico geográfico, da história, dos costumes, das instituições. Com razão escreveu Brethe de Ia Gressaye: "O jurista deve levam em conta os fatos resultantes das relações sociais, que são a próprria matéria do Direito. Essa realidade é essencialmente concreta e, pvr conseqüência, contingente e variável. Sob esse aspecto os fatos sociaús se aproximam dos fatos físicos. Têm causas e estão sujeitos a te is semelhantes às causas e às leis da ordem física. Esse elemento experimental constitui o objeto de uma ciência positiva, a Sociologia jurídica, que estuda a realidade social do `Direito.' E a Sociologi a, que Augusto Cocote preferia denominar Física Social é uma ciêne ia teórica, no sentido em que a definimos. De ordem teórica ou especulativa são, também, os estudos sobwe a estrutura social e os diversos institutos que constituem a realida¢le social do "Direito". A teoria do direito, diz Kelsen, quer única e exclusivamerkte conhecer seu objeto. Procura responder à pergunta: que é e como o direito, mas não à questão de como deve ser ou como convém elaborálo. É ciência do Direito (em sentido estrito) e não política d Direito.' Mas, enquanto teoria, que espécie de ciência é o direito? Ciênci natural, cultural, formal, metafísica? Sob esse aspecto, podemos distinguir, entre as grandes orienita ções teóricas sobre a natureza do direito: o naturalismo jurídico, formalismo jurídico e o culturalismo jurídico. 1.2.1 O naturalismo jurídico No estudo teórico do direito, as concepções naturalistas reduzem a uma realidade exclusivamente natural ou física. É sig ficativa a expressão de Pontes de Miranda: "O direito não é fenôme peculiar ao homem, nem mesmo ao mundo orgânico. Podemos most lo entre os sólidos inorgânicos, bem como no mundo das figu bidimensionais".' (" Introduction générale à l'étude du droit, n. 70, p. 62. z' Teoria pura do direito, cap. 1. (') Pontes de Miranda. Sistema de ciência positiva do Direito. Rio, Jacinto, v. 2, p. 26. Dentro de sua concepção geral redução do direito a simples fenômeno natural as correntes naturalistas apresentam diferentes tendências, que divergem na caracterização da realidade jurídica e social: a) as correntes "fisicistas" reduzem essa realidade a fenômenos propriamente físicos e mecânicos; na mesma linha do pensamento de Pontes de Miranda, podem ser Correntes citados: fisicistas os ensaios de "Mecânica social", de Haret, Portuondo y Barcelo e outros que pretendem aplicar aos fatos sociais as leis da mecânica racional;4 os trabalhos de "Energética social", de Ostwald ou de Solvay, que opõem ao mecanismo outra concepção naturalista: a energia, sujeita aos princípios fundamentais da termodinâmica, constitui a verdadeira substância da matéria, da alma e da vida social;' b) as correntes biologistas procuram reduzir a realidade social a elementos de ordem biológica; estão nesse caso: a teoria organicista, que assimila a sociedade Correntes a um organismo vivo ou hiperorganismo: Lilienfeld, biologistas Schaffle, De Greef, Espinas, René Worms e, de certa forma, Spencer;b o "darwinismo" social, ligado ao evolucionismo mecanicista de Darwin, que transporta para o plano da sociedade o princípio da luta pela vida (struggle for life); a história é o resultado de luta de raças (Gumplovicz) ou de povos (Oppenheimer);7 as concepções racistas de Gobineau, Chamberlain, Lapouge e outros;' a escola antropológica de direito penal: o crime é uma fatalidade biológica e os indivíduos nascem delinqüentes, como nascem idiotas, cegos ou surdos; é o pensamento de Lombroso, que teve continuadores em Ferri, Garofalo;9 Sobre a concepção fisicista, ver Pontes de Miranda, ob. cit.; A. Cuvillier, Manuel de sociologie, Paris, PU, 1967, § 28 e ss.; Gilberto Freyre. Sociologia, José Olímpio. 1945; Machado Netto, Introdução à ciência do Direito, v. 2 ("Sociologia jurídica"), São Paulo, Saraiva, 1963. Bibliografia citada. V., ainda, Recaséns Siches, Tratado de sociologia, Globo, 1968, v. 1, p. 78. Sobre o organicismo, v. Cuvillier, ob. cit., §§ 15 e 31; Recaséns Siches. ob. Obras citadas. Cuvll erl §§ 15 ar32; Recaséns Siches, p. 1, p. 80 e 392; Gilberto Freyre, v. 2, p. 295. Bibliografia citada. V. "Escola Positiva do Direito Penal", no item 3.3 do cap. 9, na segunda parte deste livro, além da bibliografia citada. (4) (5) (6) (7) (e) (9) 8C INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO c) as correntes psicológicas, cuja tendência é explicar a vida social através de fenômenos psicológicos, como: a teoria da imitação de Gabriel Tarde: as ciências sociais nada devem esperar da biologia; na realidade elas constituem uma "Psicologia intermental" ou uma "interpsicologia"; para Tarde, o fenômeno social fundamental é a imitação, em sentido amplo; e o método social básico é a introspecção; invenção e imitação explicam toda a vida social; a psicologia social, de MacDougall e a psicologia das multidões, representada por Gustave Le Bon, Wundt, Lazarus, Sighele e outros, que sustentam a existência de leis próprias do psiquismo coletivo; a extensão da teoria psicanalítica de Freud ao plano social, de que é exemplo seu livro Totem e tabu, que se apresenta como uma interpretação da vida dos povos primitivos pela Psicanálise e das normas sociais por elementos de ordem sexual; a psicossociologia americana e, especialmente, a "teoria social do espírito", de George Mead, autor de O espírito, eu e a sociedade (Mind, self and society): que define a realidade social como um "conjunto dinâmico de respostas e comportamentos diante de estímulos diferenciados";10 d) as correntes do naturalismo sociológico ou "sociologistas" afirmam: a especificidade do social: o fato social não se reduz a fatos correntes sociologistas, psicológicos, biológicos, ou químicos; os fatos sociais, diz Durkheim, não são simples produtos de consciências individuais, mas o resultado de uma "consciência coletiva"," distinta das consciências subjetivas, síntese original em relação a estas, tal como a célula viva é uma síntese original em relação aos átomos que a compõem; tais fatos os fenômenos sociais , como os fenômenos biológicos, químicos ou físicos, são simples fenômenos naturais, regidos pelo mesmo princípio determinista, que rege aqueles setores da natureza, e devem ser estudados por uma ciência natural, que A. Cocote denomina "física social" ou "sociologia"; essa é a única ciência geral da sociedade; o Direito, a Política, a História são ciências sociais especializadas. (10' Sobre as diversas correntes psicológicas, v. obras citadas: Gilberto Freyre, v. 2, p. 331; Cuvillier, §§ 16 a 42; Recaséns Siches, v. 1, p. 363. Jung afirma existir um inconsciente coletivo de cujo conteúdo os seres individuais sofrem influências. O eu e o inconsciente, 6.' ed., Rio, Vozes, p. 3 a 13. Entre as escolas representativas da corrente sociologista, podem ser indicadas: a Escola Sociológica francesa, inspirada no pensamento de A. Cocote, fundada por E. Durkheim e desenvolvida por LévyBruhl, Georges Davy e outros; a doutrina sociológicojurídica de L. Duguit e na Alemanha a sociologia jurídica de Niklas Luhmann; a corrente da jurisprudência sociológica, de Holmes, Cardozo e Roscoe Pound, nos Estados Unidos; o sociologismo economicista de inspiração marxista, sustentado na Rússia por Pashukanis, Stuchka e outros. 12 1.2.2 O formalismo jurídico Com o objetivo de fazer uma "Teoria Pura do Direito", Kelsen elimina do campo da ciência jurídica propriamente dita: a) todos os elementos sociológicos ou dados da realidade social, que constituem objeto da "Sociologia do Direito"; b) todas as considerações sobre valores, como a justiça, a segurança, o bem comum, ou outros, cujo estudo cabe à Filosofia do Direito. Feitas essas duas "purificações", resta para a ciência jurídica a consideração do direito como pura norma. O objeto da ciência jurídica é conhecer normas e não prescrevêlas. Ao jurista propriamente dito, ao contrário do sociólogo ou do filósofo do direito, não interessa o conteúdo ou o valor das normas, mas apenas sua vinculação formal ao sistema normativo. Direito é norma. E norma é uma proposição hipotética (condicional), cuja estrutura é a seguinte: "Se A é, deve ser B".13 Em que A é a condição jurídica (por exemplo, um furto) e B a conseqüência jurídica (no caso, a pena de prisão). Ou, de outra forma, dada a não prestação, deve ser a sanção: "Dada a não P, deve ser S". Se o cidadão não votou, deve ser multado; se o inquilino não pagou o aluguel, deve ser despejado; se o contrato não respeitar Sobre as correntes sociológicas, v. E. Durkheim, As regras do método sociológico, São Paulo, Melhoramentos; L. Duguit, Traité de Droit Constitutionne1, Paris, 1921, v. 1, cap. 1.°, § 3.° e ss., além das obras citadas. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, Coimbra, Arménio Amado, 1962, p. 49 e ss. O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 87 Correntes psicológicas 88 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 89 condição essencial, deve ser anulado; dessa categoria são todas as normas de que se ocupa o direito. E, como diz Kelsen, "essa categoria do direito tem caráter puramente formal"." Dessa norma, formalmente considerada, e não de seu conteúdo é que se ocupa a ciência ou a teoria pura do direito. Ao formalismo jurídico correspondem, no plano geral das ciências sociais, as diversas tendências da sociologia formalista, representadas pelas doutrinas de Simmel, Wiese e outros." 1.2.3 O culturalismo jurídico Outra é a perspectiva em que se colocam as concepções culturalistas. Para estas, a ciência do direito deve partir de uma distinção preliminar entre "natureza" e "cultura" e conseqüentemente entre: "ciências naturais", como a física, a química, a biologia etc., que se ocupam da natureza física ou material e; ciências culturais ou humanas, como a história, a economia, a sociologia e outras que se ocupam do espírito humano e das transformações que ele introduz na natureza. Essas transformações ou realizações do espírito humano constituem os "objetos culturais". Nestes podem distinguirse dois elementos: o suporte ou substrato; o sentido ou significado. Num utensílio, num gesto, num escrito pouco adianta conhecer ou descrever a realidade física, que é apenas o "suporte" de um "sentido". O importante é "compreender" esse "sentido' ou significação, que está sempre ligado a um valor, porque o homem sempre age em função de valores. Assim, o direito não é uma simples realidade física ou natural (naturalismo), nem um esquema meramente formal (formalismo), mas um objeto cultural, isto é, uma realização do espírito humano, com um suporte (ou substrato) e uma significação. Segundo Carlos Cóssio, esse suporte ou substrato pode ser: um objeto "físico", como o mármore, o papel, a tela, e teremos então objetos culturais "mundanais" e objetivos;' (141 H. Kelsen, loc. cit. 1151 Sobre G. Simmel, Von Wiese e a Sociologia formal, ver, além das obras citadas, N. Timasheff, Teoria sociológica, Zahar, 1965, p. 137 e ss. e 374 e ss.; T. B. Bottomore, Introd. à sociologia, Zahar, p. 57. "" Aos objetos culturais "objetivos" ou "mundanais" corresponde o "espírito objetivo", de Hegel, e a "vida humana objetivada", de Recaséns Siches. i ou a própria "conduta humana" subjetiva, pois é inegável que a vida humana "biográfica" distinta da "biológica" é também uma realidade ou objeto feito pelo homem: a vida humana não nos é dada feita, nós é que a fazemos no esforço de cada dia; em oposição aos objetos culturais "mundanais", diz Cóssio, a conduta humana é um objeto cultural "egológico" (de "ego") ou subjetivo. Essa distinção nos permite fixar as duas orientações em que se dividem as correntes culturalistas: a teoria cultural objetiva, de que são representantes, entre outros, Dilthey, Spranger, Schmidt, Ortega y Gasset, Recaséns Siches; a teoria "egológica" do direito, representada por Carlos Cóssio, Aftalion e outros, para quem o objeto da ciência do direito não é a "norma" objetiva, mas a "conduta em interferência intersubjetiva".'7 2. A técnica no direito 2.1 Existirão no campo do direito elementos de ordem técnica? Será o direito uma técnica? Como vimos, a técnica "ciência técnica", em sentido amplo é um dos ramos da ciência prática ou normativa. Seu objeto é o estudo ou o conhecimento das "normas" para "fazer" corretamente alguma coisa. Nesse sentido, a arquitetura, a cirurgia ou a contabilidade, como técnicas, consistem fundamentalmente no conhecimento das "normas" para "fazer" corretamente planejamentos, operações cirúrgicas ou escriturações de contas. Os antigos definiam a técnica como a recta ratio factibilium, em oposição à ciência moral, definida como recta ratio agibilium. A ciência técnica e a ciência moral consistem sempre em saber: "fazer" corretamente, no primeiro caso, saber "agir", no segundo." Nesses termos, existirá uma técnica jurídica? Qual o seu alcance? É inegável a existência de aspectos técnicos no campo do direito: técnica processual, técnica na interpretação das leis, técnica na formulação da sentença etc. Alguns autores, como Garcia Maynez, reduzem o campo da técnica jurídica ao da "aplicação do direito objetivo a casos concretos"." 071 Sobre as correntes culturalistas, ver, além da bibliografia citada, Miguel Reale, Filosofia de Direito, Saraiva, 1987, v. 1; Machado Netto, ob. cit., p. 37 e ss.; Carlos Cóssio, Panorama de la teoria egológica del Derecho, Buenos Aires, 1949. Sobre a distinção entre o "agir" e o "fazer", ver Capítulo 2, item 4.2. Garcia Maynez, Introducción al estudio del derecho, México, Porrúa, 1949, ri. 65 e 161. Direito e técnica 90 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 91 Mas este é apenas um setor da técnica jurídica. Esta abrange, na realidade, múltiplos setores, que, em síntese, podem ser assim indicados: a) há uma técnica de elaboração das normas jurídicas; é a técnica legislativa, que inclui todo o processo de feitura Técnica das leis, desde a apresentação do projeto: sua legislativa redação, discussão, aprovação etc. até sua sanção e publicação;20 b) há uma técnica de interpretação das leis, chamase hermenêutica jurídica, definida por Carlos Maximiliano, como Técnica de ` o estudo e a sistematização dos processos apliinterpretação cáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito";21 c) há uma técnica de aplicação das normas jurídicas, aos casos concretos; essa aplicação pressupõe a interpretaTécnica ção, mas não se confunde com ela; "aplicar o de aplicação direito" significa enquadrar um caso concreto na do direito regra ou norma jurídica adequada,22 o que pres supõe o conhecimento do sentido e alcance da norma jurídica e, portanto, sua interpretação; a "aplicação" é a operação final, posterior ao exame do "significado" da norma; é nessa acepção que os vocábulos figuram no título da obra clássica de Carlos Maximiliano: Hermenêutica e Aplicação do Direito; é preciso lembrar, ainda, que a aplicação do direito aos casos concretos não é feita apenas pelos juízes, em suas decisões ou sentenças, mas por quaisquer autoridades ou particulares sempre que estejam enquadrando casos concretos nas leis ou outras regras jurídicas vigentes: aplicação de multas, celebração de contratos, registros de documentos etc. d) há uma técnica processual, que consiste no conjunto de meios adequados para conduzir uma ação em juízo: Técnica "processo", define Chiovenda, é o "complexo dos processual atos coordenados ao objetivo da atuação da von tade da lei (com respeito a um bem que se pretende garantido por ela) por parte dos órgãos da jurisdição ordinária";23 entre nós, o Código de Processo Civil fixa rigorosamente as normas disciplinares de todo o processo civil e comercial: desde a petição inicial, as citações, notificações e intimações, a contestação, a reconvenção, os despachos do juiz, as provas, a audiência, a sentença, até os recursos e a execução das sentenças; paralelamente, o Código de Processo Penal estabelece as normas que regem os processos em matéria penal, em todo o território brasileiro, regulando o inquérito policial, a denúncia pelo Ministério Público, as provas, o exame do corpo de delito, as perícias, o interrogatório do culpado, das testemunhas, a prisão em flagrante, a prisão preventiva, o julgamento, a sentença, os recursos, a execução das penas, o livramento condicional, a graça, o indulto, a anistia, a reabilitação; o mesmo ocorre com o processo trabalhista, fiscal, administrativo etc. 2.2 Tecnicismo, utilitarismo, pragmatismo Em todos esses aspectos, a técnica jurídica se caracteriza como um conjunto de normas destinadas à efetiva realização do direito em determinado meio social. Ou, como diz Pontes de Miranda, o "conjunto de meios para procurar e fixar as regras jurídicas (técnica legislativa) ou interpretálas e aplicálas (técnica exegéticoexecutória)".24 Ou ainda, no dizer de Kohler, "técnica jurídica é o processo de pesquisa do justo, segundo o direito vigente".25 São tão amplos os aspectos técnicos no campo do direito que alguns autores pretendem reduzir todo o direito a uma técnica. Para esses autores, como diz um de seus representantes, Adolfo Ravá: o direito é • meio para a manutenção da sociedade. É significativo, nesse sentido, • título de seu trabalho: "O direito como norma técnica". Considerar • direito como norma técnica, diz Ravá, embora possa, à primeira vista, parecer um paradoxo, não está muito longe do conceito que dele fazem comumente os juristas e os leigos. As normas jurídicas são consideradas e tratadas pelos legisladores e pelo povo como "meios" para obter determinados "efeitos" e alcançar determinados "fins", isto palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente (23, um interesse humano", Carlos Maximiliano, ob. cit., n. 8, p. 19. Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, Saraiva, 1942, v. 1, p. 71. V. tb. a respeito Arruda Alvim, Manual de Direito Processual Civil, Ed. RT, 1977, v. 1, p. 4 e 5, e Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas (24 de Direito Processual Civil, 5.' ed., Saraiva, v. 1, p. 8 e 9. 25) Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do Direito, 1922, v. 2, p. 238. Apud Pontes de Miranda, loc. cit. Tecnicismo 20) (22) Sobre a técnica legislativa, ver Lei Complementar 60, de 10.07.1972, que "fixa normas técnicas a serem observadas na elaboração de Leis e decretos"; A. Torré, Técnica legislativa, n. 19 a 24, p. 255256, da Introducción al Derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957; Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do Direito, Saraiva, 1969, p. 185 a 188. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, Freitas Bastos, 1947, n. 1, p. 13: "Interpretar é determinar o sentido, e o alcance das expressões do direito". O problema da interpretação das normas jurídicas é examinado na terceira parte, Capítulo 12, do presente trabalho. "A aplicação do Direito submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras 92 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 93 é, normas de caráter "instrumental", meios adequados para chegar a determinados fins .26 O tecnicismo de Ravá, que ele próprio aproxima do pensamento de Fichte, insere, de modo original, o direito dentro de uma elevada concepção ética.` Outros autores consideram também o direito como simples instrumento para a manutenção da sociedade, mas concebem a moral igualmente como simples meio, dentro de uma concepção utilitária da vida. As doutrinas utilitaristas negam ao direito um fundamento ético ou moral, e reduzem a justiça à utilidade. Suas origens históricas podem ser encontradas na escola hedonista ou cirenaica, de Aristipo, cujas idéias foram desenvolvidas em Atenas, por Epicuro. Nos tempos modernos, o utilitarismo foi retomado, principalmente na filosofia inglesa, por Jeremias Bentham (17481832), J. Stuart Mill (18061837) e H. Spencer (18201903).28 Na mesma linha, deve ser mencionada a concepção pragmatista e, especialmente, o pragmatismo jurídico. Partindo de uma teoria do conhecimento, a doutrina prag mática pode resumirse nisto, disse Duguit: "A verdade de uma afirmação se julga pelo valor de suas conseqüências ou resultados". A eficácia é o critério da validade de qualquer conhecimento. O pragmatismo desenvolveuse principalmente nos Estados Unidos, com Ch. Pierce (18931914), William James (1842 1910), John Dewey (18591928) e outros, que o aplicaram ao campo da educação, da política, do direito e das demais ciências humanas. Do pragmatismo jurídico que foi uma das concepções da moda na primeira parte deste século, até as duas guerras mundiais ocuparamse, entre outros, Duguit 29 e Quintiliano Saldana.3o De qualquer forma deixando de lado as concepções que exageram sua importância é inegável que a técnica ocupa importante setor no campo do direito. É ela o instrumento que o especialista deve utilizar com perfeição para alcançar os resultados que constituem a finalidade, a razão de ser do direito, isto é, a justiça. (26) Adolfo Ravá, Diritto e Stato nella morale idealista. 1 "Diritto come norma tecnica". II "Lo Stato come organismo ético", Pádua, Cedam, 1950, p. 31 a 33. 121' O Estado é um organismo ético. O direito é uma norma técnica. V. ob. cit., p. 5 a 9. ¢8' V. "O utilitarismo", em Ciência do Direito, E. Bodenheimer, p. 101 a 107. "Teoria de l'utilitarismo", Del Vecchio, em Filosofia dei Diritto, p. 334 e ss. (29) L. Duguit, El pragmatismo jurídico, Madri, Beltran, 1924, p. 65. 10' Teoria dei derecho eficaz pragmatismo jurídico; Teoria programática dei derecho penal, Madri, 1923, além de um estudo crítico sobre El pragmatismo jurídico de Duguit. 2.3 Arte e direito Cabem aqui algumas considerações sobre o que se poderá chamar a arte ou estética do direito. Em sentido lato, "técnica" e "arte" se identificam. Etimologicamente, o vocábulo "técnica" provém do grego techné, que significa "arte". Nesse sentido a medicina é "arte" de curar e a engenharia "arte" de construir. Entretanto, em sentido estrito, a arte, propriamente dita, ou estética, referese à produção do "belo". Distinguese, por aí, da técnica, cujo objeto é o "útil". Sob esse aspecto, haverá no direito elementos de ordem artística? Existirá uma estética do direito? Observou Radbruch 3i que, como toda manifestação da cultura, o direito carece também de meios materiais de expressão. Exemplos: a linguagem, os trajes, os símbolos, os edifícios. E, como todos os meios de expressão material, também aqueles que o direito utiliza são suscetíveis de uma valoração estética. Mais ainda, como todos os fenômenos que conhecemos, o direito pode ser também matéria de arte e entrar deste modo no domínio da estética. Podemos, assim, falar de uma estética do direito, embora até hoje não se tenham tentado, neste capítulo, mais do que simples aproximações e fragmentos. O estilo do direito, observa o mesmo autor, é uma linguagem fria. Renuncia a toda nota sentimental. E áspera. Dispensa, também, toda indicação de motivos. É sóbria e concisa, renunciando igualmente a toda doutrinação das pessoas a quem se dirige. Assim se explica a pobreza intencional do chamado "estilo lapidar" da lei, que serve para exprimir, com uma clareza inexcedível, a forte consciência que o Estado tem de si mesmo quando ordena. Linguagem que, na sua minuciosa exatidão, pôde servir de modelo estilístico a um escritor como Stendhal, que lia diariamente uma página do Código Civil, Aliás, os Códigos mais importantes de cada país representam, ao mesmo tempo, os grandes monumentos do respectivo idioma. O Brasil não fugiu à regra. A propósito da redação do Código Civil brasileiro, travaramse, entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro, as discussões mais profundas sobre a língua portuguesa." A oratória forense, os símbolos do direito, a toga do magistrado, a beca do advogado, constituem outros tantos elementos estéticos que encontramos a cada passo na vida do direito. G. Radbruch, Filosofia do direito, § 14. 32j V. "Parecer sobre a redação do Código Civil". Senador Rui Barbosa, 03.04.1902; "Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa, feitas à redação do Projeto do Código Civil", E. Carneiro Ribeiro, 25.09.1902; "Réplica às defesas da redação do projeto da Câmara", Rui Barbosa, 31.12.1902; "Tréplica" ("A redação do Projeto de Código Civil e a Réplica Utilitarismo Pragmatismo 94 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 95 À "Arte del diritto", dedicou Camelutti 33 uma de suas famosas monografias. E outros juristas têm igualmente se ocupado do tema. 3. A ética e o direito O direito como ciência normativa ética 3.1 A posição do direito no quadro das ciências Vimos que, se considerarmos as ciências em sua acepção mais ampla, podemos classificálas em três modalidades fundamentais: a) algumas se limitam a conhecer "o que é"; são as ciências teóricas ou especulativas; b) outras procuram orientar a conduta dos homens, indicandolhes "como agir"; são as ciências éticas ou morais; c) outras, finalmente, orientam a atividade produtiva ou as realizações externas do homem, indicandolhe "como fazer"; são as ciências técnicas ou artísticas. Qual a posição do direito, dentro desse quadro? É este um dos problemas centrais da epistemologia jurídica. E sobre ele dividem se autores e correntes. Como vimos, alguns tendem a reduzir o direito a uma "teoria" pura. Outros, a uma simples "técnica". Outros, ainda, a mero capítulo da "moral". Na realidade os aspectos teóricos, técnicos e éticos do direito não se excluem, mas se completam. O direito pode ser considerado sob a tríplice perspectiva de teoria, técnica e ética. A divergência entre as escolas situase principalmente na preeminência atribuída a esses diferentes aspectos. Resumindo nosso pensamento sobre o assunto, diremos que é inegável a existência de uma "tecnica" e uma "técnica" e uma "estética" no direito. E cada uma tem sua função, como mostramos nos parágrafos anteriores. Mas o direito é, essencialmente, uma ciência "ética", moral ou humana. Ou, de forma mais precisa, uma ciência normativa ética. A finalidade do direito não é o simples conhecimento "teórico" da realidade jurídica, embora esse conhecimento seja importante. Não do Dr. Rui Barbosa"), E. Carneiro Ribeiro. Pormenores da histórica polêmica poderão ser encontrados no Código Civil Comentado, de Clóvis Beviláqua, v. 1, n. 39 e ss., e nas seguintes publicações da Casa de Rui Barbosa: Rui e a Réplica, Américo de Moura, 1949; Rui e o Código Civil, San Tiago Dantas, 1949; Repertório da Réplica, M. S. Mendes de Morais. "' F. Carnelutti, Arte del diritto, Pádua, Cedam, 1949. é também a formulação de quaisquer regras "técnicas", eficazes e úteis, apesar da grande importância da técnica jurídica. A finalidade do direito é dirigir a conduta humana na vida social. É ordenar a convivência de pessoas humanas. É dar normas ao "agir", para que cada pessoa tenha o que lhe é devido. É, em suma, dirigir a liberdade, no sentido da justiça. Inserese, portanto, na categoria das ciências normativas do agir, também denominadas ciências éticas ou morais, em sentido amplo. Para evitar confusões, é preciso lembrar que o vocábulo "moral" pode ser empregado em duas acepções diferentes. Uma, estrita e hoje mais corrente, que identifica moral com a disciplina dos atos humanos, fundada na consciência. E outra, mais ampla, abrangendo todas as ciências normativas do agir humano; pedagogia, política, direito moral em sentido estrito etc. Muitos preferem reservar a palavra "ética" para essa acepção ampla. Teríamos, assim, o esquema seguinte: MORAL (sentido estrito) DIREITO POLÍTICA PEDAGOGIA ETC. Nesse sentido, podemos dizer, com Vicente Ráo, que "Moral e Direito têm um fundamento ético comum".34 Ou, com Jellinek, que o direito é o "mínimo ético", isto é, o estritamente necessário para a convivência social. 3.2 O objeto da ciência do direito Essa caracterização do direito como ciência ética não mas essencial, porque decorre de seu próprio objeto. Toda ciência se caracteriza essencialmente por seu objeto. E este se divide em material e formal. Objeto material é o setor da realidade de que se ocupa cada ciência. Objeto formal é o aspecto pelo qual a ciência considera ou estuda esse setor da realidade. O objeto material das ciências éticas é, como vimos, a atividade humana. O objeto formal é o bem. Elas têm por objeto ordenar ou dirigir a atividade humana no sentido de bem, seja o bem pessoal, seja o bem comum. Qual o objeto do direito? (74' Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, v. 1, n. 21, p. 68. Perspectiva teórica ética e técnica do direito ÉTICA (ou MORAL em sentido amplo) Direito ciência normativa ética é acessória, Objeto da ciência elemento essencial 96 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 97 Atividade humana social (objeto material) Fundamentalmente, o objeto material do direito é o homem vivendo em sociedade. E a atividade social do homem, ou, como diz Cóssio, é a "conduta humana em interferência intersubjetiva".35 O homem vive em sociedade, e esta implica necessariamente relações de família, relações econômicas, políticas, profissionais etc. Essas relações consti tuem a matéria do direito. Não podemos sequer pensar os predicados de "justo" ou "injusto", "direito" ou "crime" senão aplicandoos a uma atividade humana, lembra Del Vecchio.3ó Os puros fenômenos naturais (astronômicos, atmosféricos etc.) recusam tais atributos, são estranhos à perspectiva do direito, que não tem sentido para eles. O direito se refere sempre a ações humanas. Mas o direito se ocupa dessa matéria sob um aspecto especial: o da justiça. Importa fundamentalmente ao direito que, nas relações sociais, uma ordem seja observada: que seja assegurada a cada um aquilo que lhe é devido, isto é, que a justiça seja realizada. Podemos dizer que o objeto formal do direito é a justiça. reúne, assim, as duas características de uma ciência normativa ética: a) tem por objeto material a "atividade humana" (social); b) e por objeto formal o "bem", em um de seus aspectos fundamentais, que é a justiça; a justiça é o "bem em relação a outrem", definiu Platão. Donde se conclui que o direito é fundamentalmente uma ciência normativa ética. Ou, como diz Dei Vecchio, o Direito direito é a coordenação objetiva das ações posclencla síveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ética ético que a determina." 3.3 Ciência da liberdade Mas essa conclusão precisa ser bem entendida. Afirmamos que o direito pertence à categoria geral das ciências morais ou humanas. Ciência moral é tomada aqui, como vimos, no sentido lato e se refere a toda ciência que tenha por objeto ordenar a atividade ou o (33) Carlos Cóssio, Panorama de Ia teoria egológica dei Derecho, Buenos Aires, 1949. 36) Dei Vecchio, Filosofia dei diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. 197. (37) Ob. cit., p. 207. A definição do direito de Dei Vecchio é mais extensa: "Possiamo definire el diritto come il coordinamento objetivo delle azione possibili ira piìr soggetti, secondo un principio etico che le determina, escludendone 1'impedimento" (Filosofia dei Diritto, p. 207). comportamento humano. E não o sentido estrito e limitado de moral individual ou pessoal. E, como a característica fundamental da atividade humana é a liberdade, podemos dizer que o direito é ciência da liberdade. Nesse sentido o direito é uma das ciências éticas, ao lado da moral (em sentido estrito) e das demais ciências normativas da conduta. Sob esse aspecto, colocase o problema da distinção entre o "direito" e a moral (em sentido estrito). Essa distinção processouse historicamente, desde as Direito normas indiferenciadas dos povos primitivos até e moral os códigos modernos, através de lento desenvolvimento, que tem sido estudado por etnólogos, filósofos e historiadores do direito.` De uma forma geral, nem mesmo os juristas romanos fizeram, com clareza, essa distinção. A afirmação de Paulo: "Nem tudo que é lícito é honesto" ("non omne quod licet honestum est"), mostra um aspecto prático dessa distinção entre direito (lícito) e moral (honesto), mas não apresenta nenhum critério objetivo para distinguilos. Só em época relativamente recente, no início do séc. XVIII, surge com Cristiano Tomasio uma explicação fundamentada dessa distinção: a moral se refere só ao foro interno (forum internum) e o direito ao foro externo (forum externum), conseqüentemente a moral não é coercível, mas o direito é.39 Esse é, também, de certa forma, o pensamento de Kant e de outros autores. E, apesar das restrições que podem ser feitas a essa concepção, ela contém em germe os elementos fundamentais para a distinção entre o direito e moral, que Del Vecchio sintetizou em fórmula lapidar: o Direito constitui a ética objetiva e a moral, a ética subjetiva .4o Afirmamos que a justiça representa o valor fundamental ou o objeto formal do direito. Como disse Brunschvicg: "Em cada um dos juízos do direito, é a justiça justiça em que está em causa" .41 sua acepção Mas é preciso ter presente que a palavra ampla "justiça" é aí empregada em sua acepção mais Sob aspecto da justiça (objeto formal) O direito (38) (39) (40) 4)) V. "Direito" e "Moral" em Dicionário de Etnologia e Sociologia, Herbert Baldus e Emilio Willems, São Paulo, Ed. Nacional; "Derecho y Moral" (Estudo sistemático da distinção entre direito e moral), in Introducción ai derecho, A. Torré, Buenos Aires, Perrot, 1957, p. 120 a 130; Machado Neto, "Moral e direito", em Introdução à Ciência do Direito, v. 2, p. 201 a 205; "Relazioni ira diritto e morale", G. Dei Vecchio, in Filosofia dei diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. 204 a 215. Cristiano Tomasio, Fundamenta Juris Naturae et Gentium, obra publicada em 1705. Dei Vecchio, Filosofia dei Diritto, p. 205. L. Brunschvicg: "Dans chacun des jugements du droit Ia justice est toute entière en cause". La modalité du jugement. O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 99 ampla. Estendese não apenas à justiça particular (comutativa e distributiva), mas também à justiça social ou geral, que tem por objeto o bem comum. De modo que as noções de ordem pública, segurança, interesse social e outras semelhantes, contidas na noção de bem comum, estão também contidas no conceito de "justiça". Esse mesmo pensamento é assim exposto por Geny: "No fundo, o Direito não encontra seu conteúdo próprio e específico senão na noção de 'justo', noção primária, irredutível e indefinível, que implica, essencialmente, não apenas os preceitos elementares de não prejudicar a ninguém (neminem laedere) e de dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), mas também o pensamento mais profundo de um equilíbrio a estabelecer entre os interesses em conflito, com a finalidade de assegurar a 'ordem' essencial à manutenção e ao progresso da sociedade humana".42 Nessa perspectiva, a ordem jurídica nada tem de imobilizadora. Pelo contrário, ciência prática, orientada permanentemente no sentido da realização da justiça, o direito só se realiza plenamente na medida em que respeita seu caráter dinâmico, como elemento da ação transformadora do homem na história. O direito não é uma ciência natural, a estudar as manifestações da vida social e humana como se fossem "coisas" ou simples fenômenos físicos. O homem não é um "objeto" passivo, nem mero espectador da realidade. Dentro de certos limites, é ele que imprime ordem no mundo. E o direito é, de certa forma, instrumento dessa ação transformadora do homem. 4. Outras formulações 4.1 Uma concepção naturalista do direito Pontes de Miranda, Systema de Sciencia Positiva do Direito, Rio, Ed. Jacinto, 1922, v. II, p. 83 a 85 e ss. Afirmar que o direito é produto exclusivo do meio humano equivale a pregar filosofia em que o homem ocupa todo o espaço, em vez do simples lugar, realmente importante, que lhe cabe, no meio da série animal. Onde há coexistência, há direito. Quando o mineral se cristaliza em poliedros há certo ritmo que, se não é o "nosso" direito, deve ser algo de vivo e de natural como ele. E a vontade? E a consciência?, perguntarse á. Mas nada importa isto; quando o homem constrói casa, também parece que é voluntariamente que o faz e, todavia, no essencial, o que determina é a mesma necessidade que leva o pássaro aos esforços da nidificação. Distinguir do necessário o voluntário e querer traçar raias entre eles é retomar o fio dos problemas metafísicos insolúveis. O que há de menos livre no homem é justamente 42' F. Geny, Sclence et technique en droit privé positif, Paris, Recueil Sirey, 1922, 1, v. 1, n. 16, p. 50. a vontade, forma "imperativa" de circunstâncias inferiores. É a responsabilidade um dos elementos que nos dão a idéia da natureza humana do direito; mas a própria responsabilidade, que passa por fundamento da repressão e da restituição, nada mais é que um dos processos necessários ao desenvolvimento da vida humana, um dos meios psicológicos para corrigir defeitos mais ou menos graves de adaptação à vida em comum, à coexistência. Entre os outros animais, não será ele preciso; mas o homem pensa e é de mister a noção de responsabilidade, único conetivo que as energias vitais dele encontraram para combater os efeitos e as causas dos defeitos da adaptação resultante da convivência de seres pensantes, como o homem. Assim, facilmente se compreenderá a razão da interdição dos loucos e deficientes. A noção de responsabilidade serve de coordenador entre os homens, processo de solução biológica, tão natural como outros que no mundo animal se encontram e até entre homens; e, puro expediente criado pela coexistência de seres pensantes, pela sociedade, deixa de existir onde não há, entre homens, a elaboração de processos atinentes a remover obstáculos à adaptação social: indígenas antropófagos não poderiam nunca comer indivíduos da mesma tribo sem a "motivação jurídica", que é o corolário da responsabilidade. O interdito não tem mais, em condições da função normal, o aparelho para o qual criou a natureza humana a noção de responsabilidade. Esta somente existe porque é preciso disciplinar a atividade psíquica; se não houvesse o aparelho do espírito humano, no que ele tem "acima" dos outros animais, não seriam necessários "outros" processos de adaptação social, senão os vigentes entre os demais seres; não haveria a noção de responsabilidade, nem, pois, interditos (anormais civis), nem irresponsáveis (anormais do direito repressivo). Na ciência, não há, portanto, nenhum lugar para a questão do livre arbítrio: nem a cor das flores, nem a medida regular dos ângulos do cristal, nem o vôo dos pássaros, nem o instinto de nidificação precisam de explicativa lógica; tampouco a responsabilidade: é determinada a mínima vontade do homem, mas a noção de responsabilidade é necessária à adaptação do homem à vida social e tão imprescindível à vida comum como os órgãos humanos se fizeram necessários às funções que lhes cabem. Se algum dia se deparar com a vida social outro processo mais eficaz, pôrseá de lado o antigo e será possível a adaptação do homem à sociedade, à coexistência, sem a noção de responsabilidade: outra ilusão poderá ser o novo processo ou fundarse em verdade colhida na exata e positiva ciência das organizações humanas. Hoje não há muita diferença entre a faca do homem que sacrifica o boi, o porco ou o carneiro, para viver, e a pena do magistrado que decreta a prisão do criminoso ou a reparação dos danos. Entre os dois há a mesma idade de fim, a adaptação; aquele, a adaptação à vida animal, e esse, à vida social: ali, necessidade biológica, aqui, sociológica. 4.2 O caráter puramente formal da norma jurídica H. Kelsen, Teoria pura do direito, parágrafo 11, O deverser como categoria do direito, Ed. Novada, 1941. O sentido da norma jurídica, como o da norma moral, é expresso num dever ser. Por isso ao conceito da "norma" jurídica e ao deverser jurídico há de ficar ligado algo do valor absoluto que é próprio da Moral. O que é estabelecido por uma "norma" jurídica ou "devido" por causa do Direito nunca está de todo livre da representação mental de que isso é bom, reto ou justo. 100 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Neste sentido, a definição conceptual do Direito como "norma" ou deverser pela jurisprudência positivista do século XIX, não está isenta de certo elemento ideológico. Liberar a definição do direito desse elemento ideológico é o empenho da teoria pura do Direito, que desliga por completo o conceito de norma jurídica do da norma moral, de que ele proveio; e assegura, assim, a legalidade própria do Direito diante da lei moral. Isso ocorre porque a norma jurídica não é compreendida como um "imperativo", à semelhança da norma moral, tal como o faz, quase sempre, a doutrina tradicional. Mas, como um "juízo hipotético", que expressa a relação específica de uma situação de fato condicionante com uma conseqüência jurídica condicionada (se A, deve ser B, ou se houver tal fato por exemplo, um crime deve ser tal conseqüência no exemplo dado, a condenação). A norma jurídica se transforma assim em "proposição" jurídica, que revela a forma fundamental da lei. Assim como as "leis naturais" relacionam uma determinada situação de fato, como causa, com outra, como efeito, a "lei jurídica" relaciona a condição jurídica com a conseqüência jurídica (isto é, com a chamada conseqüência do antijurídico). No primeiro caso, a forma da relação entre os fatos é a causalidade. No outro, é a imputação, que é conhecida pela teoria pura do Direito como a legalidade particular do Direito. Assim como o efeito é atribuído à sua causa, a conseqüência jurídica é atribuída à sua condição jurídica. Entretanto, a conseqüência jurídica não pode ser considerada como causalmente produzida pela respectiva condição. Mas dizemos que a conseqüência jurídica é imputada à condição jurídica. Esse é o sentido das expressões: alguém será castigado "por causa" de um delito, haverá execução contra determinado patrimônio "por causa" de uma dívida não paga etc. A relação da pena ao delito, da execução ao nãopagamento da dívida etc., não tem significado causal, mas, sim, significado normativo (dever ser). Portanto, a expressão específica do Direito é o deverser com que a teoria pura do Direito apresenta o Direito positivo. Assim como a expressão das leis causais é o será (ou haverá). A lei natural diz: "Se A é, será B" (ou, se houver A, haverá B). A lei jurídica diz: "Se A é, deve ser B", sem dizer com isso qualquer coisa sobre o valor moral ou político dessa conexão. O "deveiser" limitase a existir como categoria relativamente apriorística para a apreensão do material jurídico empírico. E, sob esse aspecto, é imprescindível para conceituar e expressar o modo específico com que o Direito positivo relaciona um fator com outros. Pois é notório que essa relação não é a de causa e feito. A pena é aplicada ao delito não como efeito de uma causa. O que o legislador estabelece entre esses fatores é um encadeamento bem diferente da causalidade (da natureza). Completamente diferente, mas tão inviolável como ela. Pois, no "sistema do Direito", isto é, por causa do Direito, a pena segue o delito sempre e sem exceção, se bem que, "no sistema da natureza", a pena pode faltar por qualquer razão. E quando a pena se verifica, isso acontece não precisamente como "efeito" do delito. Se dizemos: quando ocorre o antíjurídico (antecedente) "deve" ocorrer a conseqüência jurídica, esse "deverser" significa apenas como categoria do Direito que a condição jurídica e a conseqüência jurídica se correspondem na proposição jurídica. Essa categoria do direito tem caráter puramente formal, e, por isso, se distingue principalmente de uma idéia transcendente do Direito. Ela é aplicável, seja qual for o conteúdo que tenham os fatos aí relacionados. A nenhuma realidade social pode negarse compatibilidade com essa categoria jurídica por causa da natureza de seu conteúdo. Tratase de categoria gnosiológicotranscendental, no sentido da filosofia kantiana e não metafísicotranscendental. Justamente por isso conserva sua tendência radicalmente antiideológica. E, por isso também, precisamente neste ponto, manifestase a mais violenta resistência da parte da doutrina jurídica tradicional, que dificilmente pode suportar que a ordem da antiga República Soviética devesse ser conceituada como ordem jurídica, do mesmo modo que a da Itália fascista ou a da França democráticocapitalista. 4.3 O egologismo como concepção cultural do direito A. L. Machado Netto, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, São Paulo, Ed. Saraiva, 1969, p. 69 e ss. Como um importante marco do grande movimento filosófico jurídico que caracteriza a presente centúria, temos, na Argentina, o esplendoroso florescimento jurisfilosófico que a escola egológica representa. É valendose da teoria dos objetos que Cóssio parte para a fundamentação de sua ontologia jurídica, em que nos presenteia com a descoberta do direito como conduta em interferência intersubjetiva. Tal teoria dos objetos reconhece quatro regiões ônticas ou quatro ontologias regionais, a saber: a) os objetos ideais, que se caracterizam por serem irreais, não se darem na experiência e serem neutros de valor, e cujo processo cognoscitivo é a intelecção, que se realiza através do método racionaldedutivo; b) os objetos naturais, reais, que se dão na experiência, são neutros ao valor e cujo processo de conhecimento é a explicação, realizável por meio do método empíritoindutivo; c) os objetos culturais, que são reais, estão na experiência, são positiva ou negativamente valiosos e são conhecidos mediante o processo gnosiológico da compreensão, por meio do método empírito dialético; d) os objetos metafísicos, que têm existência real, não estão na experiência sensível e são valiosos positiva ou negativamente. A cada uma dessas regiões de objetos, por suas especiais características, corresponde um determinado tipo de ciência, salvo a última, região própria da metafísica, que a unânime opinião filosófica apresenta como o terreno extracientífico por excelência. Assim é que aos objetos ideais correspondem as ciências formais como as matemáticas e a lógica; aos objetos naturais, as ciências experimentais ou ciências naturais; e aos objetos da cultura, as chamadas ciências humanas, sociais ou culturais. O direito, estando situado nesta última região, é, pois, um objeto cultural, a ciência do direito sendo, assim, uma ciência da cultura. Mas, nos objetos culturais, Cóssio distingue um suporte fáctico ou substrato e um sentido sustentado por esse suporte, e que é onde reside o caráter valioso ou desvalioso do bem cultural, qualquer que seja ele. Conforme esse suporte seja um objeto físico, corno o mármore numa estátua, ou uma conduta humana, como num ato moral, teremos os objetos culturais divididos em mundanais e egológicos, respectivamente. O direito, por inexistir, no caso, um objeto físico que lhe constitua o suporte, e um objeto egológico, por consistir em conduta, conduta humana em interferência intersubjetiva, que é o que o distingue da moral, segundo a famosa distinção de Dei Vecchio, que Cóssio transporta do plano lógico para o ontológico. O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 101 102 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 103 4.4 Normas de técnica legislativa Lei Complementar 60, de 10.07.1972. Fixa normas técnicas a serem observadas na elaboração de Leis e decretos. O Governador do Estado de São Paulo: Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei complementar: Art. 1.° As leis e decretos serão enumerados em séries distintas, sem renovação anual. § 1.° As leis complementares terão numeração própria. § 2.° O decreto não articulado, cujo cumprimento lhe exaura a finalidade específica, não será numerado, identificandose pela data. Art. 2.° Nenhuma lei ou decreto conterá matéria estranha ao seu objeto, ou que não lhe seja conexa. Art. 3.° A alteração de lei ou decreto, por substituição ou supressão do artigo, ou acréscimo de dispositivo novo, obedecerá às seguintes normas: 1 será mantida a numeração dos artigos da lei ou do decreto alterado; II ao artigo novo atribuirseá o mesmo número do que o anteceder, seguido de letras maiúsculas em ordem alfabética. Parágrafo único. Quando a modificação atingir a maioria dos artigos, ou quando tenha havido sucessivas alterações no texto, a lei ou o decreto serão refundidos por inteiro. Art. 4.° A elaboração das leis e decretos atenderá aos seguintes princípios: I os textos serão precedidos de ementa enunciativa do seu objeto e divididos em artigos; II a numeração dos artigos será ordinal até o nono e, a seguir, cardinal; III os artigos desdobrarseão em parágrafos, em incisos (algarismos romanos) ou em parágrafos e incisos; os parágrafos em itens (algarismos arábicos); e os incisos e itens em alíneas (letras minúsculas); IV os parágrafos serão representados pelo sinal §, salvo o parágrafo único, que será grafado por extenso; V o agrupamento de artigos constituirá a Seção, que poderá desdobrarse em Subseções; o de seções, o Capítulo; o de capítulo, o Título; o de títulos, o Livro; e o de livros, a Parte, que poderá desdobrarse em Geral e Especial ou consistir simplesmente em Parte seguida de numeração ordinal, grafada por extenso; VI os grupos a que se refere o inciso anterior poderão compreender os subgrupos Disposições Preliminares e Disposições Gerais; VII as disposições que, pelo seu sentido, não couberem em qualquer dos grupos, serão incluídas em Disposições Finais; e as que não tiverem caráter permanente constituirão as Disposições Transitórias, com numeração própria. VIII no mesmo artigo que fixar a data da vigência da lei ou decreto, ser4 declarada, quando possível especificamente, a legislação anterior revogada. Art. 5.° A partir da vigência desta lei complementar será iniciada nova numeração das leis e decretos. Art. 6.° Esta lei complementar entrará em vigor na data de sua publicação, revogado o Dec.lei Complementar 1, de 11.08.1969. Palácio dos Bandeirantes, 10 de julho de 1972 LAUDO NATEL. 5. Bibliografia AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil. 5. ed. Saraiva, 1977. v. 1. ARRUDA ALVIM. Manual de direito processual civil. RT, 1977. v. 1. BALDUS, Herbert e WILLEMS, Emílio. Dicionário de etnologia e sociologia. São Paulo : Nacional, s/d. BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDELACOSTE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Recueil Sirey, 1947. CARNELUTTI, F. Arte del diritto. Pádua : Cedam, 1949. . Teoria geral do direito. São Paulo : Saraiva, 1942. . Metodologia del diritto. Pádua : Cedam, 1939. CATHERIN. 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As diversas ciências jurídicas: 1.1 Visão conjunta da ordem jurídica: 1.1.1 Epistemologia jurídica; 1.1.2 Axiologia jurídica; 1.1.3 Dogmática jurídica; 1.1.4 Teoria dos direitos subjetivos; 1.1.5 Sociologia jurídica; 1.2 O conteúdo do curso de introdução à ciência do direito 2. A divisão do direito em público e privado: 2.1 Visão geral do campo do direito: 2.2 Quadro geral; 2.3 Novos ramos 3. Outras formulações: 3.1 "Direito público e direito privado", R. de Ruggiero: 3.2 "A tendência moderna de publicização do direito", Vicente Ráo; 3.3 "A divisão do direito em público e privado: uma intromissão da política no direito", H. Kelsen; 3.4 "As disciplinas jurídicas", A. Torré 4. Bibliografia. 1. As diversas ciências jurídicas 1.1 Visão conjunta da ordem jurídica Situado o direito no conjunto dos conhecimentos humanos, devemos, em seguida, procurar ter uma visão conjunta da ordem jurídica. Para isso, podemos percorrer dois caminhos: a) examinar o quadro atual das diversas ciências jurídicas, especialmente: a Epistemologia Jurídica a Axiologia Jurídica a Dogmática Jurídica a Sociologia Jurídica outras ciências jurídicas b) focalizar a tradicional divisão do direito em público e privado e sua ramificação atual que, com ligeiras diferenças entre os juristas, apresenta o seguinte quadro: Direito Público: interno Direito Constitucional Direito Administrativo Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Freitas Bastos, 106 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 107 Direito Direito Direito Direito externo Direito Direito Privado: comum Direito Civil especial Direito Comercial Direito do Trabalho Direito Internacional Privado Com o objetivo de apresentar uma primeira visão conjunta do direito, procuraremos dar algumas indicações sumárias sobre essas duas perspectivas: as diversas disciplinas jurídicas e a divisão do direito em público e privado. Tomando a expressão "ciência do direito" em sua acepção mais ampla incluindo os aspectos teóricos e práticos, Quadro filosóficos, sociológicos e técnicos podemos das ciências indicar o seguinte quadro das principais disciplina jurídicas jurídicas: a) a epistemologia jurídica, que é a teoria do conhecimento científico do direito; b) a axiologia jurídica ou teoria dos valores jurídicos e especialmente da justiça; c) a dogmática jurídica ou teoria do direito como norma; que inclui a técnica jurídica; d) a teoria dos direitos subjetivos ou teoria do direito como poder, que alguns autores incluem na dogmática jurídica; e) a sociologia jurídica, que é o estudo do direito como fenômeno social. 1.1.1 Epistemologia jurídica Epistomologia do grego episteme (ciência) e logo (estudo) é a teoria da ciência. Cabelhe estudar as características próprias do objeto e do método de cada ciência, investigando suas relações e os princípios comuns ou diferenciais. Esse o sentido estrito. Muitos autores, entretanto, dão ao termo "epistemologia" o sentido amplo de teoria do conhecimento em geral e não apenas o de teoria da ciência. Identificam assim epistemologia e gnosiologia (do grego gnósis, conhecimento). O vocábulo inglês epistemology, observa Lalande,' é "0 Lalande, Vocabulaire technique et critique de Ia Philosophie, verbete "Êpistémologie". com freqüência empregado (contrariamente à sua etimologia) para designar o que chamamos "teoria do conhecimento" ou gnosiologia.2 Epistemologia jurídica, conseqüentemente, será, em sentido estrito, a teoria da ciência do direito. Isto é, o estudo das características relativas ao objeto e aos métodos das diversas ciências jurídicas a dogmática jurídica, a sociologia do Direito, a técnica jurídica etc. , sua posição no quadro das ciências e suas relações com as ciências afins. E, em sentido amplo, epistemologia do Direito é a teoria do conhecimento jurídico em todas as suas modalidades: os "conceitos" jurídicos, as "proposições" ou juízos do direito, o "raciocínio" jurídico, a "ciência" ou ciências do direito etc. Neste último sentido o vocábulo é empregado no "Ensaio de Epistemologia Jurídica", um dos capítulos da obra de Geny, Science et technique en droit privé positif, em que o consagrado jurista afirma: "Tratase de uma espécie de teoria do conhecimento, aplicada às coisas do direito, ou, se a expressão não parecer muito ambiciosa, de uma espécie de epistemologia jurídica estudada não apenas para orientar o pensamento do jurista, mas também para inspirar sua ação".3 1.1.2 Axiologia jurídica Como sabemos, a axiologia do grego, axiós, apreciação, estimativa é a parte da filosofia que se ocupa do problema dos valores, tais como o bem, o belo, o verdadeiro etc. Em síntese: é a teoria dos valores. Axiologia jurídica é, naturalmente, o estudo dos valores jurídicos, na base dos quais está a justiça. Recebe, por isso, também as denominações de Teoria dos valores jurídicos, Teoria do direito justo, Estimativa jurídica, Teoria da justiça e outras. Del Vecchio prefere denominála Deontologia jurídica etimologicamente: ciência do que deve ser (do grego, deontós, que significa "dever"), porque lhe compete investigar o que "deve" ou "deveria" ser o direito, diante do que "é" na realidade. O espírito humano nunca permanece passivo diante do direito, da lei, da decisão judicial ou administrativa; nunca aceita calmamente o fato consumado, como se ele fosse um limite insuperável. Todo homem sente em si a faculdade de julgar e avaliar o direito existente: há em cada um de nós o sentimento da justiça. "Epistemologia" recebe, ainda, uma terceira significação empregada por alguns autores, que a identificam com a "filosofia da ciência", isto é, o estudo crítico de todos os pressupostos ou postulados de cada ciência. V. Lalande, loc. cit. François Geny, ob. cit., parte 1, cap. 4.°. Judiciário Penal Financeiro Tributário Internacional Público i 108 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 109 Daí a possibilidade de uma investigação totalmente distinta da que é feita pelas ciências jurídicas, em sentido estrito.' 1.1.3 Dogmática jurídica A dogmática jurídica é o estudo do sistema de normas jurídicas vigentes em determinada época e local. Seu objetivo é conhecer as normas, interpretálas, integrálas no sistema, aplicálas aos casos concretos. É chamada "dogmática" porque a situação do jurista seja ele advogado, juiz, escrivão, promotor perante a norma jurídica é semelhante à do fiel diante dos dogmas. Deve aceitar a norma vigente como ponto de partida inatacável. Muitos preferem denominála Teoria do Direito Positivo ou Ciência do Direito em sentido estrito ou, ainda, Jurisprudência, Jurisprudência dogmática, Jurisprudência técnica etc.5 Com o reconhecido espírito prático dos americanos, o juiz Holmes (18411936) definiua como "o prognóstico do que os tribunais farão no caso concreto". 1.1.4 Teoria dos direitos subjetivos Do campo da dogmática jurídica pode ser destacada a "Teoria dos direitos subjetivos", que muitos autores, como Brethe De La Gressaye e LabordeLacoste, estudam sob a designação de "Teoria do direito como poder", em oposição ao "Direito como regra". A regra do direito constitui apenas um primeiro aspecto da realidade jurídica. Toda "regra" se traduz, na prática, pelo "poder" reconhecido a uma pessoa (privada ou pública) para agir em determinado sentido nas relações sociais. Este segundo aspecto é, na realidade, conseqüência do primeiro. Trata se, entretanto, de colocálo em plena luz, a fim de conhecer os meios que o direito oferece às partes, como decorrência da norma.' 1.1.5 Sociologia jurídica A sociologia do Direito é a disciplina que tem por objeto o estudo do fenômeno jurídico, considerado como fato social. É ciência teórica (4) G. Del Vecchio, Lezioni di Filosofia del Diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. a 4. À mal denominada "Ciência positiva do Direito" ou "Ciência do Direito propriamente dita", melhor seria chamar "Ciência do Direito vigente", T. Sternberg, Introducción a Ia ciência del derecho, Labor, 1930, p. 12. Sobre outras denominações, v. A. Torré, ob. cit., p. 49. Brethe De La Gressaye e LabordeLacoste, Introduction générale à l'étude du droit, Paris, Sirey, 1947, n. 351, p. 326 e ss. "L'expression de 'pouvoir de droit' nous parait celle qui rend le mieux cet aspect du droit. Cependant, nous conformerons à Ia langue scit;ntifique qui parle de 'droit subjectif', envisageant le droit dans Ia personne de son suje[". ou especulativa, no sentido de que estuda o direito, não como um deverser, mas como um "ser" ou fenômeno social, considerandoo em si mesmo, em sua evolução e em suas relações com os demais setores da vida social, tais como a economia, a arte, a técnica, a moral, a religião etc. Apesar de possuir raízes antigas em Aristóteles (385322 a.C.), Hobbes (1588 1679), Espinoza (16321677), Montesquieu (16891755) e outros, a sociologia jurídica é ciência de constituição recente, ou "ainda em pleno período de formação", como diz Gurvitch,7 que aponta entre seus fundadores europeus: E. Durkheim (18581917), L. Duguit (18591928), E. Levy (18801943), M. Hauriou (18561929), Max Weber (18641920), Ehrlich (18621922) e os americanos O. W. Holmes (18411936), Roscoe Pound e Benjamin Cardozo (18701938). 1.2 O conteúdo do curso de introdução à ciência do direito A epistemologia jurídica e a axiologia jurídica pertencem ao campo da filosofia do direito, que, em sua acepção mais ampla, pode ser caracterizada como o estudo Filosofia dos princípios ou pressupostos fundamentais do do direito direito.' A dogmática jurídica que a rigor inclui a Ciência Teoria dos direitos subjetivos constitui, como do direito vimos, a ciência do direito, em sentido estrito. A sociologia jurídica que se vem constituindo modernamente e apresenta importância cada vez maior para o conhecimento objetivo do direito como realidade Sociologia social possui caráter mais sociológico do que do direito jurídico propriamente dito. Qual desses aspectos interessa a um curso de introdução à ciência do direito? (7) 8) (5) (6) Georges Gurvitch, Sociologia jurídica, Rio, Kosmos, 1946, p. 23. Esses pressupostos ou princípios fundamentais são estudados, principalmente, pelas seguintes partes da Filosofia do direito: a) pela teoria do conhecimento jurídico (Gnosiologia, Epistemologia ou Lógica do Direito), que estuda o conceito de direito e as estruturas lógicas que permitem ao jurista realizar sua tarefa científica: os conceitos jurídicos, as proposições ou juízos jurídicos, o raciocínio jurídico, as ciências jurídicas; b) pela teoria dos valores jurídicos (Axiologia Jurídica), especialmente pela teoria da justiça, cuja investigação, adverte Bobbio ("Nature et fonction de Ia philosophie du droit", em Archives de Philosophie du droit, Sirey, 1962, n. 7, dedicado ao tema: "Qu'estce que Ia Philosophie du Droit?"), "tem sido negligenciada pelos atuais filósofos do direito". Entretanto, acrescenta: "é importante lembrar que a `teoria da justiça' é um estudo que concerne ao fundo ou fundamento do direito e a `teoria do conhecimento jurídico' (ou `teoria do direito') é um estudo que concerne à forma, isto é, às diversas estruturas 110 INTRODUÇAO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 113 É inegável que, do ponto de vista prático, o interesse maior se concentra na dogmática jurídica, em seu duplo Introdução aspecto de estudo das normas e dos direitos à ciência subjetivos. do direito Mas não conhecerá o direito, em todas as suas dimensões reais, quem se limitar à consideração desses aspectos. Ao verdadeiro jurista não pode faltar conhecimento da natureza de sua ciência (epistemologia) e dos valores fundamentais (axiologia) que dão sentido e significação à qualquer instituição jurídica. Não lhe poderá faltar, também, o conhecimento da realidade jurídicosocial que é a própria vida do direito. Daí o tríplice aspecto: jurídico (estrito senso), filosófico e sociológico, que deve ter o curso de introdução à ciência do direito. Ou esquematicamente: EPISTEMOLOGIA JURÍDICA } FILOSOFIA DO DIREITO AXIOLOGIA JURÍDICA TEORIA DA NORMA JURÍDICA CIÊNCIA DO DIREITO TEORIA DOS DIREITOS SUBJETIVOS SOCIOLOGIA JURÍDICA ou SOCIOLOGIA DO DIREITO 2. A divisão do direito em público e privado 2.1 Visão geral do campo do direito Entre as possibilidades que existem de apresentar globalmente a ordem jurídica, destacase a tradicional divisão do direito em púbico e privado. Esta divisão tem acompanhado a formação histórica do direito v e dela nos ocuparemos mais amplamente na terceira parte deste livro. No mo mento, interessanos apenas uma visão do campo do direito. Dentre os inúmeros critérios propostos para estabelecer a distinção entre esses dois ramos, está o que se fundamenta no objeto material da destinadas a acolher o fruto dos estudos e trabalhos da outra" (p. 8); c) pela Ontologia jurídica, que estuda o "ser" ou a natureza fundamental do direito, procurando responder à pergunta: que espécie de "ser" é o direito? Já diziam os romanos (Ulpiano, Digesto, 1, 1, 1, 2, e Justiniano, Instituías, 1, 1, 4) que dois são os aspectos do direito: o público e o privado. O direito público versa sobre o modo de ser do Estado romano; o privado, sobre o interesse dos particulares. Com efeito, algumas coisas são úteis publicamente, outras privadamente ("Hujus studii duae sunt posiciones, publicum et privatum. Publicum jus est, quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim"). ciência jurídica. O direito tem por matéria as relações sociais. Seu obJramos é a ordenação da vida social. E esta consta de duas espécies de relaç&dia a) relações em que a própria sociedade, representada pelo Estadod, é parte; b) relações dos participantes entre si. Em síntese, podemos dizer que as relações sociais em que o Estado, como tal,10 é parte, são reguladas pelo Direito público. As relações dos particulares entre si são reguladas pelo Direito privado. O Direito público regula a organização e a atividade do estado considerado: em si mesmo; em suas relações com os particulares; em suas relações com outros Estados. Assim, o Direito Constitucional, ao regular a divisão dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, dispõe sobre a organização do Estado, considerado em si mesmo. O Direito Tributário, ao fixar os tributos, regula relações entre o Estado e os particulares. O Direito Internacional Público regula as relações dos Estados entre si. Por "Estado", tomado aqui em sentido amplo, devemos entender: a) o Poder Público representado, no Brasil, pela União, os estados e os municípios, com todas as suas ramificações: ministérios, secretarias, departamentos etc.; b) as autarquias e outros órgãos, que têm personalidade jurídica distinta da do Estado, mas que a ele se ligam intimamente, por serem por ele criados e exercerem funções públicas; é o caso do Instituto de Arrecadação Previdenciária e Assistência Social (LAPAS), Instituto do Café, Ordem dos Advogados do Brasil, Banco Central etc.; c) as organizações como a ONU, UNESCO, FAO etc., que são órgãos supracionais reconhecidos pelos Estados e que mantêm relações jurídicas com organismos governamentais e não governamentais. O Direito privado regula as relações dos particulares entre si. Por particulares devemos entender no caso: a) os indivíduos, também chamados pessoas físicas ou naturais; b) as instituições ou entidades particulares, como as associações, as fundações, as sociedades civis ou comerciais etc., também chamadas pessoas jurídicas de direito privado; O "poder de império", isto é, o poder de impor sua vontade através de leis, decretos, atos administrativos, decisões judiciais, cobrança de tributos etc. é característica do Estado como poder público. Conforme a lição de Ferrara: "A distinção entre direito público e privado tem seu fundamento na posição diferente dos sujeitos nas relações jurídicas. Há relação de direito público quando o sujeito intervém como portador de prerrogativas supremas, investido de poder de império, enquanto nas relações de direito privado os sujeitos se contrapõem em condições de paridade, em pé de igualdade" (Teoria das pessoas jurídicas, Reus, Madri, 1929, p. 692). V. F. Geny, Science et technique en droit privé positif, 1.' parte, n. 20, p. 64. Direito público e privado (9) 112 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO c) o próprio Estado, em condições especiais, quando participa de uma transação jurídica, não na qualidade de Poder Público, mas na de simples particular, como no caso em que, locatário de um prédio, ele figura na condição de inquilino, sujeito, como os demais, à lei do inquilinato. As relações jurídicas entre essas pessoas ou entidades são regidas pelo Direito privado. 2.2 Quadro geral Essas noções nos permitem apresentar o seguinte quadro geral do direito, incluindo suas divisões e subdivisões mais importantes, que serão examinadas separadamente na terceira parte do presente trabalho: Direito Constitucional Direito Administrativo Direito Financeiro Direito Tributário Direito Judiciário Direito Penal De uma forma geral, que exige explicações posteriores, podemos dizer que o Direito Constitucional fixa as bases do Direito Estado. O Administrativo regula a atividade do público Poder Executivo. O Direito Financeiro e o Tribu tário têm por objeto as finanças públicas e os tributos em geral. O Judiciário disciplina a organização do Poder Judiciário e o processo a ser observado nas ações submetidas à Justiça. O Direito Penal define os crimes e estabelece as penas a serem aplicadas pelo Poder Público. O Direito Internacional Público regula as relações entre os Estados e a atividade dos organismos internacionais. O Direito Civil é considerado Direito privado comum, porque rege as relações entre particulares, considerandoos simplesmente como homens e não como membros de uma profissão ou nacionalidade. Regula os direitos das pessoas, enquanto tais, em suas relações de família e em suas relações patrimoniais. VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 113 Do Direito Civil, como tronco comum, nasceram os ramos especiais do Direito privado. No passado, o Direito Civil compreendia toda a área do Direito privado. Só posteriormente, em virtude do desenvolvimento da atividade comercial, da Revolução Industrial e dos movimentos migratórios e de intercâmbio no plano internacional, é que foram se constituindo, como ramos autônomos, o Direito Comercial, o Direito do Trabalho e o Internacional Privado. O primeiro estabelece normas especiais disciplinando a atividade comercial. O Direito do Trabalho regula as relações de emprego e a proteção à pessoa e aos direitos do trabalhador. Em virtude da forte atuação do Estado nessa proteção, o Direito de Trabalho pode ser também considerado como um ramo do Direito público. O Direito Internacional Privado rege as relações entre particulares no seio da sociedade internacional. 2.3 Novos ramos A divisão que acabamos de apresentar não é rígida nem definitiva. Pelo contrário, diversos ramos novos continuam a se constituir, passando a figurar como direitos autônomos. É o caso do Direito Financeiro e do Direito Tributário, que já se destacaram do Direito Administrativo, ou o do Direito Rural e do Direito Econômico, que estão em processo de formação. Mais recentemente, estão se formando, entre outros, o Direito Ambiental (v. p. 9 a 11) e o Direito do Consumidor (v. p. 13 a 15 e 424). Como veremos na terceira parte da presente obra, essa classificação dos ramos do direito não apresenta caráter rigorosamente lógico, mas sobretudo prático e histórico. Muitos autores a rejeitam, mas essa divisão acompanhou a evolução do direito desde Roma, e, apesar das críticas que tem recebido, não foi, até hoje, substituída com vantagem por qualquer outra. 3• Outras formulações 3.1 Direito público e direito privado R. de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 1934, v. I, parágrafo 8.° A divisão do direito objetivo em público e privado fora já estabelecida pela ciência jurídica romana • e romana é também a mais antiga definição dos dois Sobre o processo histórico pelo qual em Roma o direito público se diferenciou do Privado, cf. o douto trabalho de Bonfante: La progressiva div. dei diritto publ. e pr. in Roma. DIREITO PÚBLICO PRIVADO Direito Internacional Público Comum { Direito Civil Direito Com Direito do Trabalho Direito Internacional Privado Especial ercial Direito privado 114 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 115 ramos: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim" (L. 1, § 2 D. L. L. = § 4 Inst. L. L.), definição que por muito tempo se utilizou e reproduziu, quase sem modificação, no campo do direito moderno. É todavia inadequada para exprimir o conteúdo próprio e verdadeiro dos dois grandes ramos de direito e mais ainda para designar os caracteres diferenciais. É certo que o critério do interesse e da utilidade é um elemento de distinção entre umas e outras normas: há nas de direito público uma preponderância da utilidade pública do Estado e, nas de direito privado, prevalecimento da utilidade dos particulares, mas a distinção não pode fundarse exclusivamente na utilidade da norma. É preciso ter em atenção os sujeitos a que as normas se referem e o fim que elas têm em vista. Ora, sob este duplo aspecto, é fácil descobrir como algumas normas têm por sujeito o Estado e outras os simples particulares; como umas têm por fim relações políticas, a organização dos poderes do Estado e a explicação da atividade dos seus órgãos para conseguir os fins que esse Estado se propõe, • outras, pelo contrário, as relações jurídicas dos indivíduos, a atividade dos cidadãos como particulares. Nessa diversidade, dada quer pela diferença de sujeitos, quer pela dos fins, reside a razão da distinção de que tratamos: formam o direito público as normas da primeira espécie e o direito privado as da segunda. No entanto, isto não basta para dar o conceito integral dum e doutro ramo • para lhes marcar os confins. Deve, antes de mais, terse presente que a norma não adquire caráter de direito público apenas e exclusivamente quando o seu sujeito é o Estado e o seu fim a organização do mesmo. Há ao lado do Estado, e a ele subordinados, outros agregados políticos menores, entre os quais se reparte o poder soberano e aos quais correspondem determinadas circunscrições territoriais: agregados políticos que exercem funções públicas especiais e levam a cabo, no território que lhes está designado, a obra do Estado, que, não podendo sempre atuar diretamente para conseguir os seus fins, lhes confere as funções que mais diretamente se referem aos fins particulares e locais. O Município, a Província e outras circunscrições constituem organizações menores de caráter político. Ora, quando os sujeitos da norma sejam essas entidades, ou o seu fim seja o fim que elas se propõem, o direito continua a ser público. Em segundo lugar e pelo contrário, não basta que o Estado e essas organizações supracitadas apareçam como sujeitos duma relação, para concluir sem mais nada que se trata duma norma pertencente ao direito político. O Estado e com ele os demais organismos menores referidos, se normalmente atuam como poder político e soberano que exerce funções de governação e de império, assumem também e pela própria necessidade dos fins de caráter público que se propõem funções que não são de soberania ou de governação. Sobretudo na gestão do seu patrimônio pode o Estado ser titular de direitos a exercitar faculdades ou contrair obrigações que não são diferentes das que se verificam nos particulares ou nalguma daquelas coletividades (pessoas jurídicas) que, propondose fins privados, não são nem podiam ser investidas de poderes políticos ou soberanos. Ora, quando o Estado, a Província ou a Comuna agem nessa qualidade, aplicamselhes as mesmas normas que se aplicam às relações entr os particulares, quer dizer: normas de direito privado, que nem por esta aplicaçã se transformam em públicas. Precisando, pois, o conceito mais atrás exposto, pode dizerse que: a) é direito público o complexo das normas que regulam a organização • a atividade do Estado e dos outros agregados políticos menores, ou que disciplinam as relações entre os cidadãos e essas organizações políticas; b) é direito privado o complexo das normas que regulam as relações dos particulares entre si ou as relações entre eles, o Estado e os agregados referidos, desde que estes não figurem nessa relação como exercendo funções de poder político ou soberano. 3.2 A tendência moderna de publicização do direito Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, n. 155 a 157. Invocando este sábio conceito de Montesquieu, consoante o qual não se devem regular segundo os princípios do direito político as coisas que dependem dos princípios do direito civil, Georges Ripert assinala e repele a tendência moderna de se transformar o direito privado em direito público. E lembra que, para designar a nova corrente de idéias, criouse o neologismo "publicização" do direito, que os políticos substituem por denominação outra, tal a de "socialização do direito", como se o direito somente agora se revelasse uma ciência social. É a seguinte a técnica usada pelos inovadores: "O direito social designa o conjunto de regras que asseguram a igualdade das situações apesar das diferenças de fortunas, regras que socorrem os mais fracos, desarmam os mais poderosos • organizam a vida econômica segundo os princípios da justiça distributiva. Ora, para se alcançar esse resultado, preciso é recorrerse a uma força superior a todos, ou seja, à força do Estado; e se esta força intervém nas relações privadas, o direito privado não pode deixar de ceder o passo às regras do direito público. A publicização é, pois, o meio de tomar social o direito". Partidários menos ortodoxos desses conceitos chegaram a propor uma terceira designação para as relações civis assim submetidas à intervenção do Estado: tais relações formariam um direito semipúblico. E autores existem, como Donnedieu de Vabres, que nos convidam, sem mais, a apagar toda a distinção entre o direito público e o direito privado, qualificando esta velha e sábia distinção de meramente pedagógica. Muito a propósito Ripert se reporta à observação sensata de Portalis, um dos autores do Código Civil francês: "Em tempo de revolução, se tudo se transforma em direito público, assim sucede pelo desejo exaltado de sacrificar todos os direitos a um fim político e de não admitir consideração outra senão a de um misterioso • variável interesse do Estado (Georges Ripert: Le Déclin du Droit, cap. II). Sobre a intervenção desordenada do Estado nas relações civis já nos manifestamos; aqui volvemos ao assunto, tãosó para acentuar as dificuldades crescentes que se antepõem a qualquer tentativa de distinção perfeita entre esses dois ramos do direito objetivo, o público e o privado. Causas e extensão dessa tendência Não é só nas leis comuns que a confusão se revela. As próprias Constituições políticas consagram, hoje, normas que, em rigor, só no direito privado poderiam ser incluídas. Apontamse, geralmente, como causas da redução da esfera do direito Privado: a) o desenvolvimento das formas de proteção dos menos favorecidos, ou dos indivíduos reputados socialmente fracos; j 114 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 115 ramos: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim" (L. 1, § 2 D. L. L. = § 4 Inst. L. L.), definição que por muito tempo se utilizou e reproduziu, quase sem modificação, no campo do direito moderno. É todavia inadequada para exprimir o conteúdo próprio e verdadeiro dos dois grandes ramos de direito e mais ainda para designar os caracteres diferenciais. É certo que o critério do interesse e da utilidade é um elemento de distinção entre umas e outras normas: há nas de direito público uma preponderância da utilidade pública do Estado e, nas de direito privado, prevalecimento da utilidade dos particulares, mas a distinção não pode fundarse exclusivamente na utilidade da norma. É preciso ter em atenção os sujeitos a que as normas se referem e o fim que elas têm em vista. Ora, sob este duplo aspecto, é fácil descobrir como algumas normas têm por sujeito o Estado e outras os simples particulares; como umas têm por fim relações políticas, a organização dos poderes do Estado e a explicação da atividade dos seus órgãos para conseguir os fins que esse Estado se propõe, e outras, pelo contrário, as relações jurídicas dos indivíduos, a atividade dos cidadãos como particulares. Nessa diversidade, dada quer pela diferença de sujeitos, quer pela dos fins, reside a razão da distinção de que tratamos: formam o direito público as normas da primeira espécie e o direito privado as da segunda. No entanto, isto não basta para dar o conceito integral dum e doutro ramo e para lhes marcar os confins. Deve, antes de mais, terse presente que a norma não adquire caráter de direito público apenas e exclusivamente quando o seu sujeito é o Estado e o seu fim a organização do mesmo. Há ao lado do Estado, e a ele subordinados, outros agregados políticos menores, entre os quais se reparte o poder soberano e aos quais correspondem determinadas circunscrições territoriais: agregados políticos que exercem funções públicas especiais e levam a cabo, no território que lhes está designado, a obra do Estado, que, não podendo sempre atuar diretamente para conseguir os seus fins, lhes confere as funções que mais diretamente se referem aos fins particulares e locais. O Município, a Província e outras circunscrições constituem organizações menores de caráter político. Ora, quando os sujeitos da norma sejam essas entidades, ou o seu fim seja o fim que elas se propõem, o direito continua a ser público. Em segundo lugar e pelo contrário, não basta que o Estado e essas organizações supracitadas apareçam como sujeitos duma relação, para concluir sem mais nada que se trata duma norma pertencente ao direito político. O Estado e com ele os demais organismos menores referidos, se normalmente atuam como poder político e soberano que exerce funções de governação e de império, assumem também e pela própria necessidade dos fins de caráter público que se propõem funções que não são de soberania ou de governação. Sobretudo na gestão do seu patrimônio pode o Estado ser titular de direitos a exercitar faculdades ou contrair obrigações que não são diferentes das que se verificam nos particulares ou nalguma daquelas coletividades (pessoas jurídicas) que, propondose fins privados, não são nem podiam ser investidas de poderes políticos ou soberanos. Ora, quando o Estado, a Província ou a Comuna agem ness qualidade, aplicamselhes as mesmas normas que se aplicam às relações entr os particulares, quer dizer: normas de direito privado, que nem por esta aplicaçã se transformam em públicas. Precisando, pois, o conceito mais atrás exposto, pode dizerse que: a) é direito público o complexo das normas que regulam a organização e a atividade do Estado e dos outros agregados políticos menores, ou que disciplinam as relações entre os cidadãos e essas organizações políticas; b) é direito privado o complexo das normas que regulam as relações dos particulares entre si ou as relações entre eles, o Estado e os agregados referidos, desde que estes não figurem nessa relação como exercendo funções de poder político ou soberano. 3.2 A tendência moderna de publicização do direito Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, n. 155 a 157. Invocando este sábio conceito de Montesquieu, consoante o qual não se devem regular segundo os princípios do direito político as coisas que dependem dos princípios do direito civil, Georges Ripert assinala e repele a tendência moderna de se transformar o direito privado em direito público. E lembra que, para designar a nova corrente de idéias, criouse o neologismo " publicização" do direito, que os políticos substituem por denominação outra, tal a de "socialização do direito", como se o direito somente agora se revelasse uma ciência social. É a seguinte a técnica usada pelos inovadores: "O direito social designa o conjunto de regras que asseguram a igualdade das situações apesar das diferenças de fortunas, regras que socorrem os mais fracos, desarmam os mais poderosos e organizam a vida econômica segundo os princípios da justiça distributiva. Ora, para se alcançar esse resultado, preciso é recorrerse a uma força superior a todos, ou seja, à força do Estado; e se esta força intervém nas relações privadas, o direito privado não pode deixar de ceder o passo às regras do direito público. A publicização é, pois, o meio de tornar social o direito". Partidários menos ortodoxos desses conceitos chegaram a propor uma terceira designação para as relações civis assim submetidas à intervenção do Estado: tais relações formariam um direito semipúblico. E autores existem, como Donnedieu de Vabres, que nos convidam, sem mais, a apagar toda a distinção entre o direito público e o direito privado, qualificando esta velha e sábia distinção de meramente pedagógica. Muito a propósito Ripert se reporta à observação sensata de Portalis, um dos autores do Código Civil francês: "Em tempo de revolução, se tudo se transforma em direito público, assim sucede pelo desejo exaltado de sacrificar todos os direitos a um fim político e de não admitir consideração outra senão a de um misterioso e variável interesse do Estado (Georges Ripert: Le Déclin du Droit, cap. II). Sobre a intervenção desordenada do Estado nas relações civis já nos manifestamos; aqui volvemos ao assunto, tãosó para acentuar as dificuldades crescentes que se antepõem a qualquer tentativa de distinção perfeita entre esses dois ramos do direito objetivo, o público e o privado. Causas e extensão dessa tendência Não é só nas leis comuns que a confusão se revela. As próprias Constituições políticas consagram, hoje, normas que, em rigor, só no direito privado poderiam ser incluídas. Apontamse, geralmente, como causas da redução da esfera do direito Privado: a) o desenvolvimento das formas de proteção dos menos favorecidos, ou dos indivíduos reputados socialmente fracos; 116 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 117 b) a concentração progressiva dos homens e dos capitais, que caracteriza a época contemporânea, criando problemas pessoais e patrimoniais de crescente interesse social; c) a ascendente "padronização dos meios materiais de vida, e, conseqüentemente, da própria vida, a transformar em problema coletivo o que antes constituía problema individual. Contudo, reconhecendose, embora, a existência dessas causas e de seus resultantes problemas, não se poderia admitir a existência de uma livre vontade individual, como se pretende, aplicada tãosomente ao setor dos direitos não patrimoniais, pois é exatamente nos direitos pessoais puros e de família que o indivíduo sofre e deve sofrer sensíveis restrições a bem da comunidade. Ensaio de distinção Reportandose aos princípios e conceitos acima expostos, distinguimos o direito público do direito privado nos seguintes termos: "Direito Público" é o conjunto de princípios e de normas que disciplinam a organização e a atividade política e jurisdicional do Estado e das entidades políticas ou administrativas por ele criadas, bem como as suas relações, de igual caráter, mantidas com os indivíduos, regulando, ademais, os meios tendentes a assegurar a defesa da ordem jurídica, dentro da comunhão social. "Direito Privado" é o conjunto sistemático de princípios e de normas que disciplinam as relações, desprovidas de natureza política ou jurisdicional, que os indivíduos mantêm entre si, ou com o Estado, ou com as entidades por ele criadas para a realização de seus fins próprios. No conceito de Organização se enquadra o Direito Constitucional; no de atividade, o Direito Internacional (atividade externa) e o Direito Administrativo (atividade interna); no de segurança da ordem jurídica, o Direito Penal e o Direito Judiciário, com seus ramos de Organização Judiciária e Direito Processual. 3.3 A divisão do direito em público e privado: uma intromissão da política no direito H. Kelsen, Teoria geral do Estado, parágrafo VI. A intromissão da política na teoria do Direito achase favorecida por uma funestíssima distinção que hoje constitui um dos mais fundamentais princípios da moderna ciência jurídica. Tratase da distinção entre direito público e privado. Embora esta antítese constitua a medula de toda a sistemática teóricojurídica, é simplesmente impossível determinar, com alguma fixidez, o que se quer dizer efetivamente, quando se distingue entre o direito público e o direito privado. certo que se devem destacar determinados domínios jurídicos, qualificados por seu conteúdo especial, os quais se contrapõem convencionalmente ao direito privado na qualidade de direito público. Assim, no direito público se incluem o direito político, o direito administrativo, o processual, o penal e o canônico (este enquanto se refira predominantemente aos demais); todo o direito restante é direito privado. Mas, se se perguntar qual o fundamento desta divisão, entrase, em cheio, no caos das opiniões contraditórias. De início, não há segurança no objeto da divisão: a qualidade de público e privado se atribui indistintamente ao direito objetivo, às normas, ao direito subjetivo e às faculdades e deveres que constituem a relação jurídica. Se ao direito objetivo se reduzir o direito subjetivo, uma divisão deste importará, ao mesmo tempo, a divisão daquele. Acrescentese que à dualidade do objeto da divisão prendese uma antítese dos critérios segundo os quais a divisão é feita. 3.4 As disciplinas jurídicas A. Torré, Inaoducción al Derecho, Buenos Aires, Ed. Perrot, 1957.. n. 22 e ss. Apesar de não haver uniformidade a respeito, são muitos os autores que consideram como disciplinas jurídicas fundamentais as seguintes: Ciência do Direito, História do Direito, Sociologia do Direito, Filosofia do Direito. A "Ciência do Direito" tem por objeto o estudo, ou melhor, a interpretação e integração e a sistematização de um ordenamento jurídico determinado, para sua justa aplicação. Garcia Maynez, por sua vez, a define amo a ciência que "tem por objeto a exposição ordenada e coerente dos preceitos jurídicos que estejam em vigor em uma época e um lugar determinados, e o estudo dos problemas relativos à sua interpretação e aplicação". Chamase também: Dogmática Jurídica, Ciência Dogmática, Teoria do Direito Positivo, Sistemática Jurídica, Jurisprudência Técnica, Jurisprudência Dogmática, simplesmente Jurisprudência etc. Conforme o ramo do direito positivo a que se refira, distinguemse: Ciência do Direito Constitucional, Ciência do Direito Administrativo, Ciência do Direito Penal, Ciência do Direito Processual etc. ` "História do Direito" é o ramo ou especialidade da História Geral que estuda o desenvolvimento do direito, explicandoo em função das respectivas causas, com o alcance individualizador próprio da História. "Sociologia do Direito". E. Garcia Maynez a define como "disciplina que tem por objeto a explicação do fenômeno jurídico, considerado como fato social". De nossa parte, e com o fim de facilitar a compreensão do conceito desta disciplina, daremos uma noção mais analítica, a saber: é o ramo da Sociologia Geral que focaliza o direito como fenômeno social, com o objetivo de explicar seus caracteres e função na sociedade, as relações e influências recíprocas entre esses fenômenos sociais, assim como as transformações do direito, com um alcance "geral". A "Filosofia do Direito" é um ramo da Filosofia Geral, razão pela qual apresenta os mesmos caracteres que esta. Encara, pois, as questões mais profundas e gerais do direito, situando seu estudo em urna sistematização geral dos conhecimentos humanos, o que nos permite compreender não somente o sentido, ou a significação da realidade jurídica em uma concepção total do mundo e da vida, mas também o caráter e a fundamentação das disciplinas que têm por objeto essa realidade. Percebemse aí, claramente, os dois caracteres básicos do conhecimento filosófico: o de ser "pantônomo", pois abrange direito em sua totalidade, e o de ser "autônomo", pois, apesar de constituir o fundamento das diversas ciências jurídicas, a Filosofia do Direito é, em si mesma, um saber sem pressupostos. Atualmente, a Filosofia do Direito é dividida pela maioria dos autores em três ramos: Ontologia, Lógica e Axiologia Jurídicas. 4. Bibliografia BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE•LACOSTE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Sirey, 1947. CAVALCANTI FILHO, Theophilo. O problema da segurança no direito. São Paulo : RT, 1964. 118 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO DEL VECCHIO, G. Filosofia del diritto. Milão : Giuffrè, 1946. FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de direito. São Paulo : RT, 1970. GENY, F. Science et technique en droit privé positif. 4. v. Paris : Recueil Sirey, 1922. GURVITCH, G. Sociologia jurídica. Rio de Janeiro : Kosmos, 1946. KELSEN, H. A teoria pura do direito. Coimbra : Arménio Amado, 1962. LIMA, H. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1954. MACHADO NETO, A. L. Compêndio de introdução à ciência do direito. Saraiva, 1969. NÓBREGA, J. Flóscolo. Introdução ao direito. Rio de Janeiro : Konfino, 1969. PASQUIER, C. Introduction à Ia théorie générale et à la philosophie du droit. Paris : Delachaux et Niestlé, 1948. RÁO, Vicente, O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Max Limonad, 1952, n. 155 a 157. RAVÁ, A. Diritto e Stato nella morale idealistica. Pádua : Cedam, 1943. REALE. M. Filosofia do direito. São Paulo : Saraiva, 1968. RUGGIERO, R. Instituições de Direito civil. São Paulo : Saraiva, 1934. TORRÉ, A. Introducción al derecho. Buenos Aires : Perrot, 1957, n. 22 e ss. VAN ACKER, L. Curso de filosofia do direito. 2 v. Ed. Universidade Católica de São Paulo, 1962. Segunda Parte O DIREITO COMO JUSTO (Axiologia Jurídica) 5 O CONCEITO DE JUSTIÇA SUMÁRIO: 1.O Direito como exigência da justiça: 1.1 A teoria da justiça; 1.2 Perspectivas diferentes; 1.3 Devido por justiça; 1.4 Direito e justiça 2. Acepção subjetiva e objetiva da justiça: 2.1 Justiça, conceito análogo; 2.2 Analogia de relação; 2.3 Histórico do conceito 3. Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça: 3.1 Sentido latíssimo; 3.2 Sentido lato; 3.3 Sentido estrito 4. Características essenciais da justiça: 4.1 A alteridade; 4.2 O devido; 4.3 A igualdade: 4.3.1 Em que consiste a igualdade?; 4.3.2 Igualdade simples ou proporcional; 4.3.3 Igualdade fundamental dos homens5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social 6. Virtudes anexas à justiça 7. Outras formulações: 7.1 "Duas definições clássicas de justiça: Ulpiano e Cícero", Félix Senn; 7.2 "Lei positiva e justiça", H. Kelsen; 7.3 "Pensamentos sobre a justiça", B. Pascal; 7.4 "Justiça civil e justiça penal", G. Del Vecchio 8. Bibliografia. 1. O Direito como exigência da justiça 1.1 A teoria da justiça A teoria da justiça é um dos capítulos fundamentais da ciência jurídica.' (1) Em sentido amplo, a expressão "Ciência do Direito" abrange todas as disciplinas jurídicas, inclusive a Filosofia do Direito. Sobre a importância da "teoria da justiça" é oportuno transcrever a seguinte observação de N. Bobbio: "La philosophie du droit se compose de trois parties: a) théorie du droit (notion du droit ou norme); b) théorie de Ia justice; c) théorie da Ia science juridique. Pendant que l'étude de Ia théorie du droit a fait ces demières années de notables progrés, Ia théorie de Ia justice a été négligée. Et encore, si de ce côté quelque étude valable a été entreprise, c'est uniquement quant à Ia définition de Ia justice (Perelman, puis Kelsen): l'on n'est pas passé de Ia théorie analytique à Ia phénoménologie, c'estàdire, à l'exploitation a travers le droit comparé des critères reçus tour a dans les diverses civilisations et époques, pour déterminer le juste et 1'injuste. Le critére directif de cette recherche devrait etre Ia notion de 'justice', comprise comme I'ensemble des valeurs, biens, ou intérêts, pour Ia protection ou le progrés desqueis, les hommes ont créé une technique organisant Ia vie en commun que nous avons accepté de nommer 122 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Se o direito é essencialmente uma ciência "normativa" e a estrutura lógica de toda proposição jurídica é um deverser, colocamse naturalmente as perguntas: Qual a direção ou o ideal visado pela "norma"? Qual o valor fundamental que orienta esse deverser? Basicamente, a sentença deve ser "justa", a lei deve ser "justa", a obrigação e a indenização devem ser "justas", Valor o salário e o preço devem ser "justos". Com razão fundamental escreveu Del Vecchio: "A noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico".' Além disso, a noção de "princípios gerais do direito" a que devem, a cada momento, recorrer o juiz e os demais aplicadores da lei 3 corresponde fundamentalmente aos princípios de "justiça", como procuramos mostrar no Capítulo II da terceira parte do presente trabalho. "Principios generales del derecho, es decir, principios de justicia".° Mas, que é a justiça? Quais as suas características, sua natureza, suas espécies, seu fundamento? E os demais valores jurídicos a segurança, o interesse social, a ordem, o bem comum são opostos, redutíveis ou irredutíveis à justiça? E esse um velho tema. Seu estudo recebe Axiologia modernamente os nomes de axiologia jurídica, jurídica teoria dos valores jurídicos, deontologia jurídica, estimativa jurídica etc.5 droit. Il me semble toujours éclairant de considérer que Ia théorie de Ia justice est une étude qui concerne le fond du droit et Ia théorie du droit une étude qui concerne Ia forme: cette dernière, en fait, elabore les diverses structures destinées à accueillir le fruit des études et travaux de l'autre". "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", en Archives de Philosophie du Droit, Paris, Sirey, v. 7, 1962. (2' G. Del Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938, § 1, p. 4. (" A Lei de Introdução ao Código Civil, que é, no Brasil, a lei geral de aplicação das normas jurídicas, dispõe, no art. 4.°: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". A lei é sempre uma formulação geral e abstrata; não pode, por isso, prever toda a complexidade dos casos reais. Daí a necessidade contínua de sua interpretação e do recurso aos "princípios gerais do direito", que nos fornecem o sentido fundamental de qualquer norma jurídica. "Comunmente, en ausencia de un precepto expreso o de leyes análogas, Ias legislaciones remitem a los principios generales del derecho es decir, principios de justicia como última fuente a Ia que debe recurrirse para intergrar el ordenamiento jurídico (p. ej. nuestro Cód. Civil, en el ya citado art. 16)." A. Torré, /ntroducción ai Derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957, cap. XV, p. 367. (5' "El problema axiológico y los valores jurídicos", A. Torré, em Introducción ai derecho, Perrot, 1957, cap. VIII, p. 220 e ss.; "Deontologia jurídica é a teoria da justiça e dos valores fundamentais do direito", Miguel Reale, Filosofia do Direito, Saraiva, 1969, v. 2, n. 125; "La teoria de Ia justicia como estimativa jurídica", Recaséns Siches, em Estudios de Filosofia dei derecho, cap. XXIV, n. 1. 1.2 Perspectivas diferentes Como vimos na primeira parte deste livro,' o direito pode ser estudado sob perspectivas diversas. Alguns o analisam simplesmente como um sistema de normas positivas que regem a vida de determinada comunidade. É esse o ponto de vista de Kelsen, em sua Teoria pura do direito.' Outros, como LévyBruhl, colocandose no campo da sociologia, consideram o direito ou as regras jurídicas como fatos sociais ou, até mesmo, como coisas.8 Certos autores preferem estudálo sob o prisma dos direitos subjetivos através das Declarações de Direitos e do reconhecimento histórico das prerrogativas da pessoa humana. É o caso, entre outros, do estudo de Jayme de Altavila sobre a Origem dos direitos dos povos.9 E modernamente, A theorie de justice de J. Rawls.10 Pode, ainda, o direito ser considerado não como lei positiva, fato social ou direito subjetivo, mas como ciência. E a perspectiva em que se colocam, em geral, os tratados e as introduções ao estudo do direito, à frente dos quais, por sua importância histórica, é de justiça colocar as Institutas de Justiniano, destinadas a ser "os primeiros elementos de toda a ciência das leis". 1.3 Devido por justiça Há, finalmente, outra modalidade de focalizar o direito, que é a de considerálo como exigência da justiça. Esse, como vimos, é o significado fundamental do vocábulo direito. Os latinos o chamavam CONCEITO DE JUSTIÇA 123 (6) (7) (8) (9) 1.° Parte, cap. 1, item 4.1. "The Pure Theory of Law restricts itself to a structural analysis of positive law based on a comparative study of the social orders which actually exist and existed in history under the narre of law" (H. Kelsen, What is justice?, University of California Press, Califórnia, 1957, p. 293). "En même temps que sociologique, Ia conception du droit à laquelle je me rattache est réaliste. Elle consiste à considerer les règles juridiques comme des faits, ou, si l'on préfère, comme des choses. Cette attitude s'impose à celui qui se préoccupe d'étudier le droit scientifiquement. Ce realisme cherche a déceler tous les phénomènes juridiques, même s'ils ne sont pas officielement catalogués comme tels" (LévyBruhl, "Les sources du droit", in Introduction à 1'étude du droit, em colaboração, Paris, Rousseau, 1951, p. 256). "Historiar o que foi a lenta caminhada de milênios, que o homem teve de perfazer na conquista da eqüidade de situações e tratamentos, desde as Leis Mosaicas à Declaração Universal dos Direitos do Homem, eis o conteúdo desta Origem dos direitos dos povos" (Jayme de Altavila, Origem dos direitos dos Povos, São Paulo, Melhoramentos, 1964, Introdução). É essa, também, a perspectiva em que se situa lhering, ao estudar A luta pelo direito. E a de Kant, Hegel e demais autores para quem o direito é fundamentalmente liberdade. Uma teoria de justiça, trad. UnB, Brasília, 1981. 124 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 125 jus e não o confundiam com a lex." Nesse sentido, direito é propriamente aquilo que é "devido" por justiça a uma pessoa ou a uma comunidade: o respeito à vida é direito de todo homem, a educação é direito da criança, o salário é direito do empregado, a habitação é direito da família, o imposto é direito do Estado. A essa acepção corresponde a expressão clássica "dar a cada um o seu direito". 1.4 Direito e justiça Mas até que ponto o direito se identifica com o justo? Poderseá sustentar que todas as exigências do direito são baseadas na justiça? Alguns autores afirmam que o direito nada tem a ver com a justiça. E simples convenção, como afirmaram Carnéades ou Epicuro, no passado,12e de certa forma reafirmam certas correntes do liberalismo moderno ao admitir que "quem diz contratual diz justo"." Para a generalidade dos seguidores do positivismo jurídico, o direito se reduz a uma imposição da força social, e a justiça é considerada um elemento estranho à sua formação e validade." Para alguns, como Kelsen, os critérios da justiça são simplesmente emocionais e subjetivos e sua determinação deve ser deixada à religião ou à metafísica. 15 Outros autores, como Renard, pretendem que apenas uma parte das instituições jurídicas se fundamente na justiça; outra parte teria seu fundamento na segurança ou na ordem social. 16 De Outra parte, escreveu um dos grandes estudiosos do direito contemporâneo, Gurvitch: "É preciso reconhecer, como fazem R. Os gregos também faziam essa distinção. Ao direito, no sentido de "devido" ou `justo", chamavam dikaion, e à lei, nómos. Carnéades. "Justo é o convencional". V. Félix Senn, De la justice et du droit, Paris, Sirey, 1927, p. 4, nota 1. G. Dei Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938. Fouillée, [,a science sociale contemporaine. V. G. Ripert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, § 15 e ss. V. Capítulo 5, item 4 infra. "There is not, and cannot be, an objective criterion of justice because the statement: something is just or unjust, is a judgment of value refering to an ultimate end, and these value judgments are by their very nature subjective in character, because based on emotional elements of our mind, on our feelings and wishes." "The Pure Theory of Law renounces any justification of positive law by a kind of superlaw, leaving that problematical task to religion or social metaphysics" (H. Kelsen, What is justice?, p. 295 e 302). G. Renard, "Le droit n'est pas seulement facteur de justice, il est facteur de sécurité. La justice n'est que Ia moitié du droit; Ia grosse moitié, si vous vouiez" (La theorie de l'institution, p. 49). pound, B. Cardozo, F. Geny, M. Hauriou, G. Radbruch e outros, que um elemento constitutivo de todo direito é um elemento ideal, a JUSTIÇA". E, ao prefaciar a tradução francesa da obra de Del Vecchio, escreveu LévyUllmann: "Direito e Estado serão criações ininteligíveis, arbitrárias e inoperantes, se não houver um princípio ideal que legitime sua existência, organização e conteúdo. Esse princípio é a justiça. A noção de justo é fundamental ao direito. Daí a necessidade de um exame a que a nossa consciência não pode se subtrair e que constitui a tarefa suprema da filosofia de direito." Para a aceitação ou a recusa dessas opiniões e o encaminhamento dos problemas referidos que são básicos para a vida do direito é necessário examinar o conceito de justiça. Esse é o objeto do presente capítulo. 2. Acepção subjetiva e objetiva da justiça 2.1 Justiça, conceito análogo Uma característica, ligada a todas as noções fundamentais, dá ao conceito de justiça certa variedade de significações. Como as noções de ser, verdade, instituição ou direito, o conceito de justiça é análogo. Entre as múltiplas significações de justiça, podemos assinalar duas fundamentais: uma subjetiva e outra objetiva. Muitas vezes falamos da justiça como uma qualidade da pessoa, como virtude ou perfeição subjetiva. Fulano é um homem justo. O senso de justiça é fundamental no magistrado. É nesse sentido que nos referimos à "justiça", à prudência, à temperança e à coragem como virtudes humanas. Outras vezes empregamos a palavra justiça para designar objetivamente uma qualidade da ordem social. Nesse sentido, falamos da justiça de uma lei ou instituição. A circunstância de ser o conceito de justiça utilizado por juristas e moralistas explica essa diferença. Ocupandose da atividade pessoal do homem, o moralista vê na justiça uma qualidade subjetiva do indivíduo, o exercício de sua vontade, uma virtude. O jurista tem outras preocupações; interessalhe fundamentalmente a ordem social objetiva. Por isso, ele vê na justiça, em primeiro lugar, uma exigência da vida social. Radbruch chega a afirmar que ao jurista só interessa a justiça, considerada em sentido objetivo.'$ No mesmo sentido escreve Hauriou: "Nous prenons 1'orde social et Ia justice dans leur qualité d'idées "' G. Gurvitch, Sociologia Jurídica, Introd., § II, p. 34. LévyUlimann, Prefácio a Justice, Droit, Etat, de G. Dei Vecchio. V. Capítulo 2, n. 4, p. 130. 1 "' Filosofia do Direito, § 4, n. 22, p. 46. 126 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 127 objetives, comine faits".19 Considerada sob esse aspecto, a justiça é um princípio superior da ordem social.20 Ao estudar a justiça conceito, modalidades e aplicações , procuraremos situá la dentro da realidade jurídica contemporânea. Por extensão a palavra justiça é também empregada para designar o Poder Judiciário e seus órgãos, incumbidos de dar solução justa aos casos que lhe são submetidos. É esse o sentido do vocábulo quando falamos em recorrer à "Justiça" ou quando nos referimos ao Diário da Justiça, Palácio da Justiça, Tribunal de Justiça etc.21 2.2 Analogia de relação Qual o sentido fundamental? "Justiça" é conceito análogo, por analogia de relação ou atribuição. Em sentido direto e próprio, significa "a virtude" ou a vontade constante de dar a cada um o seu direito. A rigor só podem ser "justas" ou "injustas" as ações humanas. Por extensão é que a justiça se aplica aos princípios da ordem social, porque esta será justa na medida em que assegurar a cada um o seu direito (jus suum cuique). Da mesma forma, em plano evidentemente menos importante, o conceito de justiça se estende: 1. à legislação, porque esta deve assegurar o direito de cada um; 2. aos órgãos ou ao Poder encarregados da aplicação da justiça. Mas o sentido fundamental é o de virtude. E a razão é importante. A justiça, como o direito, não é uma simples técnica da igualdade, da utilidade ou da ordem social .22 Muito mais do que isso, ela é virtude da convivência humana. E significa, fundamental mente, uma atitude subjetiva de respeito à dig nidade de todos os homens. Nas relações com outros homens, podemos ter uma atitude de "dominação", como fazemos com os animais e demais seres inferiores, ou de "respeito", como se impõe entre pessoas humanas. Esta última é a que caracteriza a justiça. Com razão, observa Bodenheimer 23 que o elemento subjetivo nas definições de justiça, "de tão extraordinária importância, nem sempre tem recebido a atenção que merece. Definida como vontade ou disposição do espírito, a justiça exige uma atitude de respeito para com os outros, uma Atitude presteza em dar ou deixar aos outros aquilo que de respeito tenham o direito de receber ou conservar. "Este às outras elemento intersubjetivo na idéia de justiça é de pessoas caráter verdadeiramente universal e válido de humanas modo geral. Falhando ele, a justiça não pode florescer numa sociedade. Para funcionar eficazmente, a justiça requer a libertação dos impulsos exclusivamente egoísticos. O egoísta reivindica direitos sobre os bens do mundo, sem considerar as razoáveis reivindicações dos outros. A justiça se opõe a essa tendência, exigindo que se respeitem os direitos e as pretensões das demais. Sem uma atitude pessoal de "preocupação com os outros", e sem a vontade de ser equânime, os fins da justiça não podem ser normalmente atingidos. E esse um aspecto fundamental do problema. A justiça não é o sentimento que cada um tem de seu próprio bemestar ou felicidade, como pretendem alguns .24 Mas, pelo contrário, é o reconhecimento de que cada um deve respeitar o bem e a dignidade dos outros. Como disse Dabin, esse reconhecimento implica sem dúvida uma metafísica: a do valor absoluto da pessoa humana." 2.3 Histórico do conceito É importante notar que toda a tradição filosófica, ética e jurídica da humanidade empregou a palavra justiça no sentido subjetivo e pessoal. Podemos fixar alguns pontos dessa tradição muitas vezes milenar. A Bíblia identifica, freqüentemente, justiça e virtude, como no Livro dos Provérbios: "A justiça do simples dirige o seu caminho".26 E, em sentido mais estrito, no Livro da Sabedoria: "A sabedoria ensina a temperança, a prudência, a justiça e a fortaleza".27 Entre os orientais, a palavra justiça é empregada quase sempre no sentido de "sabedoria". Virtude da justiça, sentido fundamental (19) Aux sources du droit, 1. ère partie, § 2, p. 44. (23) Ciência do direito, n. 45, p. 210. (20) "La justice est Ia loi primordiale des rélations de personne a personne" (G. Renard, La théorie de l'institution, Introd. 1, III, p. 25). "Justitia ea ratio est (24) "The longing for justice is men's eternal longing for happiness". H. Kelsen, quae societas hominum inter ipsos et vitae communiter continetur" (Cícero, What is justice?, p. 2. De officis, 1, cap. VII). (25) J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, n. 81, nota 2, p. 320. (21) Aristóteles, na Política, ao referirse às funções do Estado, enumera a E a lição de Platão: "a justiça é o bem do próximo". "Alienum bonum a Legislação, a Jurisdição (ou "Justiça") e a Administração (ou esfera executiva). Philosopho appelatur, quasi ad alterum utilitatem ordinatum", S. Tomás, De "Justiça indica, no caso, o Poder Judiciário, ou a Justiça. Ainda hoje, falamos justitia, II 11, q. 80. em Tribunal de Justiça, Palácio da Justiça, Oficial de Justiça. (26) "Livro dos Provérbios", XI, 5. (22) V. 1.' parte, Capítulo 3, sobre a natureza científica do Direito. (27) "Livro da Sabedoria", VIII, 7. 128 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 129 Aristóteles e os pensadores representativos da cultura grega consideram a justiça como "hábito" .28 Em Roma, Ulpiano e Justiniano falam da justiça como uma constans et perpetua voluntas. Para Cícero, justitia est habitus animi.29 A tradição patrística e medieval representada, entre outros, por Santo Agostinho,30 Isidoro de Sevilha 31 e S. Tomás,` considera a justiça como uma virtus (virtude, força da vontade). No mesmo sentido, Leibniz, que se ocupou aprofundadamente do tema, define a justiça como um hábito de amizade em relação ao próximo habitus amandi alioS.33 Entretanto, na moderna linguagem jurídica, como vimos, é usada preferencialmente a acepção objetiva da justiça. Esta diversidade não significa que exista uma oposição entre o sentido subjetivo e objetivo da justiça. Estamos na presença de dois aspectos de uma mesma realidade. Justiça, no sentido subjetivo, é a virtude pela qual damos a cada um o que lhe é devido. No sentido objetivo, justiça aplicase à ordem social que garante a cada um o que lhe é devido. Tratase de um caso de analogia. O que se disser da justiça como virtude aplicarseá, também, analogicamente, à ordem social e às demais acepções do vocábulo. Na filosofia estóica predominou, também, esse sentido amplo da justiça. E como o estoicismo exerceu poderosa influência sobre o Direito Romano, nos textos do Digesto vamos encontrar o mesmo conceito: "Direito é a arte do bem e do eqüitativo" (Jus est ars boni et aequi). E entre os precepta juris, de Ulpiano, vem, em primeiro lugar, o "viver honestamente" (honeste vivere).34 Ora, é esse um preceito de moral geral. Justiça se identifica, aí, com a virtude em geral ou o conjunto de todas as virtudes. No mesmo sentido S. João Crisóstomo definiu a justiça como o cumprimento dos mandamentos ou das obrigações em geral." 3.2 Sentido lato Numa acepção menos ampla, "justiça" significa não a virtude em geral, mas apenas o conjunto das virtudes sociais ou virtudes de relação e convivência humana. Virtude Nesse sentido é empregada a palavra justiça social quando a consideramos uma das quatro virtudes cardiais. As demais virtudes: prudência, temperança ou coragem, podem ser exercidas pelo homem isoladamente. Mas a justiça supõe a existência de outras pessoas. Regula as relações de pessoa a pessoa. Justiça, em sentido lato, significa o conjunto das virtudes que regulam as relações entre os homens. Inclui, portanto, além dos deveres de justiça estrita, as virtudes da amizade, da veracidade, do respeito filial etc. 3.3 Sentido estrito Mas, em sentido estrito e próprio, a justiça designa uma virtude com objeto especial. Nesse sentido, "a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é Outrem devido, segundo uma igualdade" (simples ou devido proporcional), conforme a definição lapidar de S. igualdade Tomás." Só é justiça propriamente dita a relação que tem por objeto: dar a outrem; o que lhe é devido; segundo uma igualdade. 3. Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça A justiça, em sua acepção subjetiva, apresenta três de extensão diferente: a) sentido latíssimo; b) sentido lato; c) sentido próprio ou estrito. significações 3.1 Sentido latíssimo No primeiro caso, justiça significa a virtude em geral. O conjunto de todas as virtudes. O justo é o virtuoso. Justiça significa nesse caso santidade. E esta a acepção do vocábulo em diversas passagens da Bíblia, em que o justo é equiparado ao santo. É o caso da Virtude em geral expressão citada: "A justiça do simples dirige o seu caminho". (28) Aristóteles, Ética a Nicômaco, v. 1. `34) (29) Cícero, De inventione, 2, 53, 160. 35) (30) S. Agostinho, De civitate Dei, XIX, 21. (71) "Etymologiae", 1. X. (32) S. Tomás, De justitia, li 11, q. 58, a. 3. (36) (33) Leibniz, Juris et aequi elementa, Leipzig, 1893. Ulpiano, Libro primo regularum, D., 1, 1, "De justitia et jure" 10, 1: "Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere". "Justitia est mandatorum observatio" (In Matheum Homil., XII). S. Tomás: 'Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei debetur secundum aequalitatem". De justitiae II li, q. 80, c. 130 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO A essas três notas correspondem as características essenciais da justiça, em sentido estrito: a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteritas, de alter); o devido (debitum); a igualdade (aequalitas). 4. Características essenciais da justiça 4.1 A alteridade A justiça consiste fundamentalmente na disposição permanente de respeitar a pessoa do próximo. Por isso, a Pluralidade primeira condição para que ela se realize é a de pessoas existência de uma pluralidade de pessoas ou pelo menos uma outra pessoa (alteritas). Em sentido próprio, ninguém pode ser justo ou injusto para consigo mesmo. Essa pluralidade de pessoas é o que distingue a justiça das outras virtudes morais. E a caracteriza como virtude social. As demais podem ser exercidas pelo homem, individualmente. O indivíduo isolado, como Robinson em sua ilha, poderá ser temperante ou intemperante, corajoso ou não, prudente ou imprudente, mas não poderá ser justo ou injusto. Porque falta outro homem, em relação ao qual ele possa cumprir ou faltar com os deveres de justiça. Essa pluralidade deve ser necessariamente de pessoas? Ou pode referirse, também, a outros seres vivos; os animais, por exemplo? Podese falar de uma justiça na vida animal? Spencer, em seu estudo sobre a `justiça",37 dedicou alguns capítulos à consideração "da justiça na vida animal". Aponta aí diversas relações que apresentam certas semelhanças com a justiça e a atividade moral. É inegável que existem semelhanças e aproximações entre a atividade dos homens e a dos animais. Entretanto, se considerarmos a justiça em sentido próprio, e respeitarmos sua natureza, devemos afirmar que é impossível uma justiça na vida animal, porque sua realização supõe conhecimento de princípios e liberdade de decisão. A justiça é uma virtude moral. Ora, na vida animal não encontramos nem o conhecimento intelectual, capaz de atingir os princípios, nem essa liberdade de determinação, que é prerrogativa da vontade humana. Em sentido próprio, não tem sentido falarse em valores morais em relação aos animais. Os conceitos de bem, justiça e dignidade escapam à vida animal. (37) H. Spencer, A justiça, Lisbòa, AillandAlves, caps. 1 e II. CONCEITO DE JUSTIÇA 131 Problema semelhante é o da existência ou não de relações de justiça entre o homem e o animal. As leis de proteção aos animais e certos atos, Justiça ditos de ingratidão ou injustiça em relação a cães, em relação cavalos e outros seres, parecem justificar uma aos animais resposta afirmativa. Mas tal não se dá. Tais ações podem revelar maus sentimentos e, como tal, ser reprimidas no interesse social. Entretanto, como seres de natureza diferente, o homem e o animal não podem estar sujeitos a uma relação de justiça propriamente dita, porque esta supõe uma igualdade fundamental. A noção de justiça é inaplicável às relações entre o homem e seres que não tenham natureza racional. Não se poderá dizer que o homem é injusto por retirar da colmeia o mel elaborado pela abelha, sem dar a esta uma retribuição pelo serviço prestado. Do mesmo modo, ninguém dirá que o homem pratica uma injustiça pelo fato de nada dar à árvore em troca dos frutos que dela recebe. A justiça exige sempre uma pluralidade de "pessoas". E aí reside uma de suas características fundamentais. Renard sintetizou essa idéia numa fórmula feliz, ao definir a justiça como "a lei primordial das relações de pessoa a pessoa".38 Cícero, no De Officis, afirma o mesmo conceito, ao atribuir à justiça a função de dirigir a "sociedade dos homens".39 E Dante, que, além de poeta, foi autor do tratado jurídico De Monarchia, define a justiça como uma relação proporcional de homem a homem: hominis ad hominem proportio.40 A justiça consiste essencialmente no reconhecimento prático que o homem faz da dignidade dos demais homens. O que há de fundamental em toda espécie de justiça, escreveu Del Vecchio, é esse elemento de "intersubjetividade" ou de correspondência nas relações entre pessoas.41 4.2 O devido A obrigatoriedade ou exigibilidade debitum é uma segunda nota que integra o conceito de justiça. Vimos que justiça supõe a existência de pelo "Devido" ou menos duas pessoas. Por exemplo, A paga a B exigibilidade determinada quantia. Mas, para que se realize a noção de justiça, outro elemento é necessário: esse c3s> G Renard, Théorie de l'institution, p. 25. (39) Cícero, De Officis, I, VII. 140 Dante, De Monarchia, liv. II, cap. 5, n. 3. (41) Del Vecchio, De Ia justice, § 6. Relação de pessoa a pessoa Justiça na vida animal ato deve ter o 132 caráter de rigorosa obrigatoriedade. Da parte de A deve existir um dever estrito (debitum), e da parte de B o direito de exigir esse ato (exigibilidade). O ato de justiça consiste em dar o que é "devido". "Actus justitiae est reddere debitum", doutrina S. Tomás (1, q. 21, a. 1, ad 3). Mas há certo dever ou debitum em outras virtudes sociais, além da justiça. Há, por exemplo, um dever na virtude da gratidão, da amizade ou da veracidade, e, no entanto, elas não constituem espécies de justiça, em sentido próprio. É que existem, na realidade, dois tipos de débito ou obrigação. Há um dever simplesmente moral, menos rigoroso, que não pode ser imposto por lei ou exigido pelo interessado (debitum morale ou debitum mere morale). E outro, estrito e rigoroso, que pode ser exigido • legalmente imposto (debitum legale). No caso da gratidão, da amizade ou da veracidade existe apenas um debitum morale. Na justiça, o débito é rigoroso, estrito, legal. Pode ser exigido. Assim, o devedor tem o dever estrito ou legal de efetuar • pagamento da dívida e o credor, o direito de exigilo. Há no caso rigorosa relação de justiça: um homem dá a outro o que lhe é "devido". No caso da gratidão a situação é diferente. 0 benfeitor não pode exigir o reconhecimento do beneficiário. Há apenas um dever moral • não uma estrita relação de justiça. A violação desse dever constituirá uma ingratidão, mas não uma injustiça propriamente dita. Compreendese, por aí, a expressão de Lachance: "O devido legal é necessário à existência (ad esse) da vida política, Devido enquanto o devido moral apenas contribui para a moral perfeição dessa vida (ad tnelius esse) .42 • devido Quando o respeito a determinado dever é legal necessário ao bem comum, a lei o toma exigível, isto é, atribui ao credor o poder de exigilo. É o que modernamente se denomina "atributividade". Essa distinção entre o debitum meramente moral e o debitum legal ou jurídico corresponde à diferença entre "normas Atributividade de aperfeiçoamento" e "normas de garantia", utilizada, entre outros juristas, por Goffredo Telles Júnior para caracterizar as normas jurídicas: "Em todo grupo social, existem duas espécies de normas: normas de garantia e normas de aperfeiçoamento. As normas de garantia são as que visam a conferir ao grupo social a forma condizente com sua razão de ser. São as qu garantem a ordem necessária à consecução dos objetivos sociais. As normas contidas num Código Civil, as de um estatuto de sociedad (42) Lachance, Le concept du droit selon Aristote et St. Thomas, liv. Il, cap. 1; § 1.°. CONCEITO DE JUSTIÇA 133 anônima, ou as de um contrato antenupcial são exemplos de normas de garantia. As normas de aperfeiçoamento são as que visam a aprimorar a comunhão humana de um grupo social, grupo este já ordenado pelas normas de garantia. São exemplos destas normas: `Amarás teu próximo como um ser igual a ti', `Praticarás a caridade' etc. É claro que a obediência às normas de aperfeiçoamento não é essencial à preservação da sociedade. O grupo social não deixará de existir só pelo fato de não serem tais normas seguidas. Mas o que devemos assinalar, com máximo destaque, é que a violação sistemática das normas de garantia acarretaria a decomposição e o aniquilamento do grupo social. Em conseqüência, pelo simples fato de viverem em sociedade e de desejarem continuar a servirse dela, os homens em conjunto e tacitamente, conferem às normas de garantia uma qualidade que as outras normas não têm. Que qualidade será esta? Uma vez estabelecido que a norma de garantia precisa ser cumprida, ela adquire, por este fato, a qualidade denominada atributividade. Atributividade é a qualidade, inerente à norma de garantia, de atribuir, a quem seria lesado pela violação dessa norma, a faculdade de exigir do violador, por meio do poder público, o cumprimento dela, ou a reparação do mal sofrido. Logo, a norma de garantia, além de ser imperativa, como todas as normas, é também atributiva. A norma atributiva se chama norma jurídica ou norma de Direito. Definese a norma jurídica: um imperativo. Por que é imperativa a norma jurídica? Precisamente porque ela é norma. Por que é atributiva? Porque, diferentemente de todas as outras normas, a norma jurídica atribui, a quem seria lesado pela sua violação, a faculdade de fazêla cumprir pelo violador, ou de exigir deste a reparação do mal por ele causado".43 No mesmo sentido é a lição de Dabin, em sua Philosophie del'ordre juridique positif: o traço característico da justiça e do direito é a exigibilidade. Em lugar de estabelecer o dever e deixar à consciência do devedor o seu cumprimento efetivo, a justiça quer ser respeitada. Ela reclama, exige, opondose à violação do direito, perseguindo o devedor faltoso, impondo reparação, não apenas em palavras, mas em atos, pela utilização de todos os meios proporcionados, inclusive a coação material." INTRODUÇÃO À CIÊNCIA po DIREITO (43) (44) Goffredo Telles J., Filosofia do Direito, § 105. J. Dabin, Philosophie de l'ordre juridique positif, n. 94. "Si l'on cherche maintenant Ia raison qui rend compte de l'exigibilité du devoir de justice, on Ia trouvera dans l'objet même de ce devoir: ce quest dú, en l'espèce, c'est une chose qui appartient à autrui, qui lui est propre et 'siéne' (cuique suum). Et c'est parce que Ia chose lui est propre et 'siénne' à l'un ou à l'autre titre (comme homme, comme membre d'une famille, ou comme citoyen) que le titulaire du droit peut I'exiger et même, pour l'obtenir user de Ia contraente". V. também, n. 99 e 124. 134 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA^ DO DIREITO 4.3 A igualdade A "pluralidade" de pessoas e 40 "devido" (exigibilidade ou atributividade) são elementos neeessários, mas não suficientes para caracterizar uma relação de justiça Utrfa terceiro elemento é essencial: a "igualdade". A dá a B (alteritgs) c, que lhe é devido (debitum), segundo uma igualdade (aequalitg5) ets a estrutura elementar de um ato de justiça. A igualdade é elemento essencial e básico. "A justiça é uma igualdade e 4 injustiça uma desigualdade", afirElemento mou AristótejeS.4s "A essência da justiça é a essencial igualdade", aCresc,enta S. Tomás.46 E, mestre em tirar das pala\,ras toda a riqueza que elas encerram, mostra que a noção de igualdadfi está contida no próprio nome dessa virtude, pois, das coisas 9Ue estão adequadas ou igualadas, dizemos comumente que estão ` ajustadas".47 Da noção de "igualdade" podt mos fazer derivar as de "pluralidade" e "devido". A de pluralidade, Aorq,,je toda igualdade supõe, pelo menos, dois termos "Aequalitas ad alteram est".48 E, também, a de obrigatoriedade ou "devido": nuga relação de justiça, a prestação é "devida", porque ela representa uma ',,igualdade" ou proporção, e não viceversa. Como diz Lachance,4i a matéria de justiça não é proporcionada a outrem porque lhe é devida, mas, inversamente, ela lhe devida, porque lhe é igual ou de Oada proporcionalmente. A igualdade da justiça nas é um dado subjetivo, mas u exigência que pode ser fixada Objetfvamente.5o Aristóteles, Ética a Nicômaco, lis I cap. III. S. Tomás, "Forma generalis justiti;,ae ' t aequalitas", De justitia, II II, q. 61, a. 2, ad 2. Observa Lachance (loa cit.) que, ao tratar da justiça, S. Tomãi, emprega 19 vezes expressões como ,.. Yualdade", "proporção", "adequação . "Dicuntur vulgariter et quae adeq ~uant,1r, justari", S. Tomás, De justitia, II, q. 57, a. 1. Ibidem. Lachance, Le concept du droit se,_lori Aristote et S. Thomas, liv. II, § 3. NO mesmo sentido é a lição de S. T . "Unicuique debetur quod suum est . "Dicitur esse suum ali ujus, uo 1 ad i sum ordinatur". "Suum unicuigoà ersonae (est) quod ei secundam~ d d P proportlonis aequalitatem debetur" (q. 21 p , a. 1.°). A igualdade é o meio termo na N"virtude da justiça, diz S. Tomás, repetindo velho ensinamento. E o meio term%no, ern qualquer virtude é o que se encontnt entre o excesso e a falta. Se apenas a tazao fixa esse justomeio, levando e conta considerações individuais, teremos um meio termo interior ou subjetivo É o caso das virtudes individuais,', em que o meio termo, entre o excesso a falta, é fixado subjetivamente e ~ oÚe variar de pessoa a pessoa. Se, contrário, o justomeio se estabeleci P la comparação de uma coisa com o ou pela adequação proporcional ~e pE ide u(na coisa a determinada pessoa, te CONCEITO DE JUSTIÇA 135 4.3.1 Em que consiste a igualdade? Em sua realidade fundamental, a igualdade é uma relação. Mas, que espécie de relação? A filosofia distingue as relações em: causais e nãocausais. E, entre estas, coloca as de conformidade ou adequação, que podem se apresentar sob três modalidades: a) a identidade, que é a relação de conformidade quanto à essência; b) a semelhança, que é a relação de conformidade quanto à qualidade; c) a igualdade, que é a relação de conformidade quanto à quantidade. Duas realidades são idênticas quando têm a mesma essência. Semelhantes, quando têm as mesmas qualidades. Iguais, quando têm a mesma quantidade. "Idem est unum in substancia, simile unum in qualitate, aequale, vero unum in quantiate".51 Um homem é "idêntico" apenas a si mesmo. De duas pessoas que têm os mesmos traços dizemos que são "semelhantes". Vinte é "igual" a 10 mais 10. A igualdade é, pois, uma equivalência de quantidades. Na justiça, de forma analógica e adaptada à natureza moral das relações humanas, é essa também a significação da igualdade. Com razão, observou Recaséns Siches,52 na justiça não se trata de estabelecer "identidade", como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto. Isso não teria sentido. Não se trata, também, de receber um objeto "semelhante" ou parecido. Mas de estabelecer uma equivalência ou "igualdade". No mesmo sentido é a lição de Lachance ao estudar a "igualdade" como característica essencial do direito." Lembrando que a igualdade é a equivalência de quantidades, pergunta o ilustre professor: devemos entender essas expressões em sentido estritamente material? É claro que não. Tratase então de simples metáfora? Também não. Entre os dois extremos há muitas significações analógicas. S. Tomás, que apreendia o sentido da palavra em toda sua extensão, não recua diante do termo "igualdade". Mas tem o cuidado de acrescentar "algum modo o justomeio objetivo. Esse é o caso da justiça. Pela compra de um objeto que vale 100, a justiça exige que se pague essa importância, independentemente de considerações subjetivas (S. Tomás, li II, q. 58, a. 10. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, §§ 36 e 37. Faidherbe, La justice distributive, (52 Sa Tomás, Comm. Met. s) L. Recaséns Siches, Estudios de filosofia del derecho, XXIV, 3, p. 388. (53) Lachance, ob. cit., liv. II, § 3, p. 280. (45) (46) (47) (48) (49) (50) r 136 INTRODUÇÃO À CIÉNCIA DO D1TRED de igualdade" (aliquem aequalitatís modum). Am da igeal e~n da massas, há igualdades de outra ordem, como sãoas que natureza das pessoas, como a iguaidade de diireiios. A quanti Jadee de que se trata no direito é moral. P a relaçãoo correspondente e uma relação de igualdade moral. 4.3.2 Igualdade simples ou piroporcionóal A igualdade da justiça pode Irealizarse de duas formas d IlUas: a) igualdade simples ou absoluta é a egeivalência entre dois objetos, que se verifica nas relações de troca: o comprados um objeto que vale 1.000 dever efetuar um p~aganento de igi01 valor (1.000 = 1.000); b) igualdade proporcional ou relativa é a que se rédea na distribuição dos benefícios e encargos entre os membros de uma CoItibui comunidade: se A, que contribui com 50, re~cete 5, B, que com 80, receberá 8 (5/50 = 8/80)• Aristóteles chamou à primeira igualdade de `aritmética'' segunda "geométrica"sa Em qualquer caso, a justiça procura realüar uma igualaadP nas relações entre os homens. Ou, corno diz Lachance,55 na justiça de erros nos igualar ao próximo por um ato. Se A recebe de B um objeto ou serviço que vale 100 paga 100, a igualdade inicial foi mantida. A ação foijusta. Se pag~li senos de 100, violará a justiça. Se der mais, praticará uma líber `tde e não, simplesmente, um ato de justiça. De modo semelhante, na distribuição dos lucros de Um" sociedade, se A, que contribuiu com 100, recebeu 10, e B, que ~JDI'ibui com 50, recebeu 5, foi respeitada uma igualdade básica. 4.3.3 Igualdade fundamental dos homens Essas considerações nos levam ao fundamento da justi(a• que é a igualdade essencial de todos os homens. Socais? Por que exige a justiça ess ~ánigá a dédma natureza ee Jigtidade Porque todos os homens PIES instN fundamentais. Nenhum homem pode ser considerado sim coro diz mento e ser usado como tal. A finalidade de justiça, 16 Vermeersch, é assegurar a igualdade pessoal dos homens: `54' Aristóteles, Ética a Nicômano, liv. V, cap. 4. ss Lachance, Le concept du droit, soe. cit. A. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, v. 1, p. 39. CONCEITO DE JUSTIÇA 137 "Fundamental é o princípio de que cada ser humano é pessoa, isto é, uma natureza dotada de inteligência e vontade livre", diz João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris. São, por isso, incompatíveis com uma exata concepção da justiça todas as doutrinas que negam a igualdade de natureza e dignidade de todo o gênero humano. O que se deu, de forma geral na Antiguidade, com as concepções de desprezo ao estrangeiro, considerado como ser inferior, e o regime de escravidão, geralmente admitido, e justificado por muitos, com a negação da igualdade de natureza entre o senhor • o escravo. Está nesse caso a famosa teoria de Aristóteles, que considerava o escravo um "instrumento vivo". Doutrina que, apesar das atenuações salientadas por Ross,51 Lachance e outros, afirma claramente a distinção de natureza entre o escravo e o homem livre: "Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros, como o corpo o é em relação à alma, ou o animal em relação ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém...; tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão." É comum, por isso, dizerse que a verdadeira noção de justiça só penetrou no mundo com o Cristianismo, que proclamou, de maneira • com amplitude e convicção até então desconhecidas, a igualdade fundamental e a universal fraternidade de todos os homens, de qualquer raça e condição. Pela mesma razão, é incompatível com a verdadeira noção de justiça toda doutrina que, negando essa igualdade de natureza, pretenda estabelecer raças de senhores e raças de servos. Violam, ainda, o princípio fundamental da justiça todos aqueles que, na expressão candente da Rerum Novarum, "tratam o trabalhador como escravo, quando é de justiça que se respeite nele a dignidade do homem". "E vergonhoso e desumano", continua o mesmo documento, "usar do homem como de simples instrumento de lucro, e não • considerar senão em proporção ao vigor de seus músculos".59 X51 "On doit remarquer que l'esclavage chez les Grecs était en grande partie exemple des abus qui l'ont déshonore chez les Romains et sauvent aussi dans les temps modernes. L'approbation qu'Aristote donne à l'esclavage présent un certain nombre de caractères qui doivent être signalés: 1) L'enfant d'un esclave par nature, n'est pas necessairement, lui même, esclave par nature. 2) L'esclavage par sinple droit de conquête dans Ia guerre ne doit pas être approuvé. Une pui,sance supérieure ne signifie pas toujours une excellence supeneure. 3) Les intérets du maitre et de l'esclave sont les mêmes. Le maitre ne noit donc pas abuser de son autorité. Il doit être l'ami de son esclave. ss II ne doit pas simplement lui commander, mais raisonner avec lui. 4) Les esclaves doivent poivoir espérer être un jour émancipés". Aristote, W. D. Ross, Paris, Payot, 1930, cap. VIII, p. 334 e 335. Aristóteles, Política Leão XIII, EncíicQ liv. l.° e 2.°, § 13. a Rerum Novarum, 1891. à t 138 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 139 Esse princípio foi proclamado expressamente na Declaração Uni versal dos Direitos do Homem, em 1946, nos Princípio da termos seguintes: "O reconhecimento da dignidaigualdade de inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo". "Todos são iguais perante a lei" é a fórmula comum do princípio de igualdade nas Constituições modernas." Esse respeito à dignidade fundamental da pessoa humana, que constitui a base da justiça, não pode ser considerado apenas abstratamente. É na realidade histórica, concreta e variável, em que as relações sociais se desenvolvem, que a justiça e suas exigências devem ser atendidas. É aí que se situa o trabalho e a luta permanente pela justiça, que dá sentido e grandeza à tarefa dos juízes, promotores, advogados e demais servidores do direito. Como observou Del Vecchio,6' foi por não haver feito essa distinção, entre a pessoa humana em sua essência e em sua existência histórica, que se cometeram os erros característicos da abstração política, ao mesmo tempo que a reação unilateral contra tais erros conduziu outras escolas, como por exemplo o historicismo, a erros contrários, isto é, a desconhecer o critério absoluto da justiça, que decorre da consideração da natureza humana. 5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social Grande número de opiniões pode ser encontrado a respeito das espécies de justiça. Deixando de lado discussões intermináveis," que, freqüentemente, se fundam em aspectos secundários do problema, podemos dizer que há: a) uma justiça particular, cujo objeto é o bem do particular; b) uma justiça geral, também chamada legal ou social, cujo objeto é o bem comum. Sobre o princípio da igualdade, V. Anacleto de Oliveira Faria, Do princípio da igualdade. Teoria e prática, São Paulo, 1967. J. Maritain, "L'égalité humaine", cap. III de Principes d'une politique humaniste, Nova York, Maison Française, 1944. Yves Simon, "Igualdade democrática", cap. IV de Filosofia do governo democrático, Rio, Agir, 1955. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Celso Antônio Bandeira de Mello, Ed. RT; v. Constituição Federal, art. 5.°. Dei Vecchio, Justice, Droit, État, § 12. V. A. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, §§ 23 a 26. E. Lustosa, Justitia socialis, Rio, 1936. G. Renard, La théorie de 1'institution, p. 27, nota 2. Dei Vecchio, ob. cit., § 6, especialmente, p. 32, nota 3. A justiça particular, por sua vez, pode se realizar de duas formas: a) um particular dá a outro particular o bem que lhe é devido; chamase, então, justiça comutativa; b) a sociedade dá a cada particular o bem que lhe é devido; chamase, nesse caso, justiça distributiva. Na justiça geral, social ou legal são as partes da sociedade isto é, governantes e governados, indivíduos e grupos que dão à comunidade o bem que lhe é devido. Em esquema: GERAL, SOCIAL ou LEGAL Temos, assim, três espécies fundamentais de justiça: a comutativa, a distributiva e a social, que serão estudadas separadamente nos capítulos seguintes. Essa divisão tem sua origem nos estudos de Aristóteles, foi desenvolvida por longa elaboração histórica e é defendida modernamente por Duguit, Dabin, Lachance e outros. No mesmo sentido, é a classificação proposta por Renard, ao dividir a justiça em: a) "justiça individual", que preside à trocas e demais relações interindividuais e corresponde à justiça comutativa; b) "justiça institucional", que preside à atividade social dos homens em relação às comunidades, como a nação, a família, a universidade etc.; neste caso, se a justiça institucional desce da autoridade aos membros da comunidade, ela constitui a justiça distributiva; se ela sobe destes para a comunidade, temos a justiça geral, legal ou social." Como dissemos, a matéria comporta grandes discussões. Alguns autores sustentam que só a comutativa realiza a noção perfeita de justiça e, por isso, Pontos só ela pode ser chamada justiça propriamente controvertidos dita." G. Renard, La théorie de l'institution, p. 24 e ss. V. adiante Cap. 6, item 1; Faidherbe, La justice distributive, cap. II, p. 22 e ss.: Qualques auteurs récentes (Waffelaert, Pottier, l'école de Malines, Cathrein, à Ia suite de De Lugo), considèrent seule Ia justice commutative comine justice proprement dite. Les autres sont appelées justices para analogie; Ia justice légale et Ia justice distributive ne sont pas ordonnées à un autre parfaitement distinct. Le R. P. Merkelbach, cependant, juge qu'il faut, avec Saint Thomas, recconaitre en ces vertus Ia vraie notion de Ia justice: Ia société est, en effet, une personne morale distincte des personnes privés qui sont ses membres (B. H. Merkelbach, O. P., Summa Theologia e Moralis, II, p. 256). Vermeersch, ob. cit., § 21. JUSTIÇA PARTICULAR COMUTATIVA DISTRIBUTIVA (60) (61) (62) (63) (6a) 140 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Outros pretendem acrescentar às três espécies mencionadas a "justiça vindicativa", que exige a punição dos culpados,ó5 a "justiça familiar ou doméstica", que tem por objeto as relações de famílias" ou, ainda, outras virtudes. Mas, como veremos nos Capítulos 2, 3 e 4, todas são afinal redutíveis à justiça comutativa, distributiva ou social. 6. Virtudes anexas à justiça Gravitando em torno da justiça e participando de algumas de suas características, encontramos o conjunto das chaJustiça por madas virtudes anexas, tais como a gratidão, a aproximação veracidade, a liberdade, o respeito filial, a eqüi dade e outras. As virtudes anexas, que os antigos denominavam "partes potenciais" das diversas virtudes cardeais, assemelhamse a estas, aproximamse das virtudes principais, mas não se identificam com as mesmas. Encerram apenas, de modo deficiente ou imperfeito, o conceito da virtude principal. No caso da justiça que consiste essencialmente em dar a "outrem" o que lhe é "devido", segundo uma "igualdade" , são virtudes anexas todas as que dizem respeito "a outrem", isto é, todas as virtudes sociais, em que não existe um "devido" estrito ou não se realiza verdadeira "igualdade". A primeira condição da justiça, diz Sertillanges,ó7 é dizer respeito a outrem. Toda virtude que estiver nesse caso poderá ser chamada, de certo modo, "justiça". Mas, a rigor, essa denominação não lhe será adequada, se a essa virtude faltar alguma das demais condições, a saber, se ela não puder realizar uma verdadeira "igualdade" ou não se referir a um "devido" rigoroso, legal, exigível, mas apenas a um dever moral. de igualdade a) o respeito filial ou piedade filial (pietas), virtude pela qual o filho dá aos pais a consideração que lhes é devida; a igualdade no caso é impossível porque o filho nunca pode, a rigor, saldar sua dívida e considerarse quite, pois, entre outras coisas, recebeu dos pais a própria vida; b) o respeito público (observantia), virtude que leva os cidadãos a dar aos homens eminentes, por alguma grande obra ou ação, a consideração que lhes é devida; no caso é também impossível realizar a igualdade exigida pela justiça; c) a virtude da religião (religio), que leva a criatura a dar ao Criador o reconhecimento ou culto que lhe é devido; aí, com maior razão, é impossível a realização de uma verdadeira igualdade. Outro grupo de virtudes anexas à justiça é constituído pelas virtudes ad alterum, em que não há um "devido" rigoroso ou exigibilidade possível: São elas, entre outras: a) a amizade, virtude que consiste em querer o bem do próximo; todos os homens têm direito à amizade de seu semelhante; mas a amizade, por sua própria natureza, não pode ser exigida coativamente; b) a veracidade, que consiste na virtude de dizer a verdade, de expressar o que se pensa; mas, como não se pode entrar no pensamento de outra pessoa, não se pode também exigir a verdade por meio legal, faltalhe a nota da exigibilidade rigorosa; c) a gratidão, virtude pela qual o indivíduo se mostra agradecido a outrem pelo benefício recebido; como "memória dos serviços de outrem e disposição de retribuílos", conforme a definição de Cícero, a gratidão também não pode ser legalmente exigível; d) eqüidade (epiekeia), que Aristóteles definiu como "uma adaptação da lei quando ela é deficiente por causa de sua universalidade", 69 implica sempre uma moderação das palavras da lei, em casos particulares, para atender melhor à sua finalidade e ao seu espírito; `68) "Dupliciter aliqua virtus ad alterum a ratione justitiae deficit: uno quidem modo, in quantum deficit a ratione aequalis; alio modo in quantum deficit a ratione debiti". S. Tomás, 11 11, q. 80, a. único. 69 Aristóteles, Ética a Nicômano, liv. V, cap. X. CONCEITO DE JUSTIÇA 141 Daí, dois grupos naturais de virtudes anexas à justiça .68 Em primeiro lugar, as virtudes ad alterum em que não se realiza uma "igualdade" perfeita. Estão nesse caso: Falta Falta de exigibilidade é espontânea, (65) (66) (67) "Muchos autores, siguiendo a Schalzgrueber (Jus ecclesiasticum, § 11) anaden una cuarta especie de justicia, Ia vindicativa, que es Ia virtud que exige Ia pena a los culpables, por amor al recto orden." Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, § 21. Sobre a "justiça" familiar, defendida por Dabin, como ramo autônomo da justiça, v. La philosophie de l'ordre juridique positif, §§ 92 e 107. Vermeersch, ob. cit., § 25. Sertillanges, La philosophie morale de S. Thomas d'Aquin, cap. IX, n. 1, p. 191 e ss. Sobre as virtudes anexas à justiça, ver ainda J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, § 82 e ss., Théorie Générale du droit, 221 e ss. G. Renard, Le droit, 1'ordre et Ia raison, p. 339 a 341. Lachance, "Droits imparfaits", cap. 8 de Le concept de droit. S. Tomás, De partibus potentialibus justitiae vel de virtutibus ei annexis, II II, q. 80 a 121. Cícero, De offcis, De inventione, cap. 52. Aristóteles, Ética a Nicômano, passim. 142 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO por isso mesmo, ela não pode ser exigida e constitui, como diz S. Tomás, uma virtude anexa à justiça legal." 7. Outras formulações 7.1 Duas definições clássicas de justiça: Ulpiano e Cícero Félix Senn, De Ia Justice et du droit, Paris, Sirey, 1927, v. I. "Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi", texto de Ulpiano, no livro I de suas "Regras", incluído, no Digesto, livro 1, título I, De Justitia et Jure, fr. 10, pr. Essa definição da justiça, que nossas compilações jurídicas nos transmitem, não é entretanto a única definição da justiça, que a sabedoria antiga nos deixou. Há uma outra que Cícero indica no "De invencione", e que a Idade Média cristã também reproduz. A justiça não é definida aí como uma vontade, mas como um hábito, uma disposição do espírito que dá a cada um o que lhe é devido, sem contudo prejudicar a utilidade comum. "Justitia est habitus animi, communi utilitate conservata, suum cuique tribuens dignitatem." Estas duas definições são contraditórias, ou antes elas se complementam, fazendonos melhor compreender a noção da justiça? São elas obras de Cícero ou do jurisconsulto Ulpiano, ou estes não fazem mais do que as reproduzir, retirandoas de fontes mais antigas? Enfim, se a justiça é ao mesmo tempo habitus animi e "vontade", que atribui a cada um o seu direito, cuique jus suum, qual é, então, esse cada um e qual é este direito que deve ser atribuído a cada um? As respostas a estas diversas questões são dadas, de uma maneira muito precisa, pelas fontes mesmas de onde foram tirados os elementos das definições reproduzidas por Cícero, e, seguindo sem dúvida numerosos outros jurisconsultos, por Ulpiano. Estas fontes, aliás, não são romanas. São de origem grega, ou, talvez, de origem ainda mais antiga. Em todo caso é da escola pitagórica e estóica que Roma recebeu a definição, desde então tradicional, de justiça. 7.2 Lei positiva e justiça Hans Kelsen, What is justice?, Ed. University o California, 1957, p. 293. A teoria pura do Direito restringese à análise estrutural da lei positiva, baseada no estudo comparativo das regras sociais que atualmente existem e existiram na história sob o nome de lei. Portanto, o problema da origem da lei a lei em geral ou uma ordem legal particular , significando as causas do surgimento da lei com seu específico conteúdo, está fora do alcance desta teoria. X70' De justitia, 11 11, q. 80, a. único, ad 5; II II, q. 120, a. 2. Sobre a eqüidade como virtude anexa à justiça, v. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, § 84 e ss. B. Raffo Magnasco, La justicia, lec. XVI, p. 233 e ss. São problemas de sociologia e de história. E, como tal, requerem métodos totalmente diferentes dos de uma análise estrutural das regras legais existentes. Como a questão da origem da lei, a questão de estabelecer se uma dada regra legal é justa ou injusta não pode ser respondida dentro da estrutura e pelos métodos específicos de uma ciência orientada para a análise estrutural da lei positiva. Isto não significa necessariamente que a questão sobre o que seja justiça não possa ser respondida científica e objetivamente. Mas, mesmo que seja possível decidirse objetivamente sobre o que é justo e o que é injusto, como é possível determinar o que é um ácido e o que é uma base, justiça e lei devem ser consideradas como dois conceitos diferentes. Se a idéia de justiça possui alguma função, é a de ser um modelo para a leitura da boa lei e um critério para a distinção entre uma lei boa e uma lei má. Existe, entretanto, na ciência jurídica tradicional, uma tendência terminológica em identificar lei com justiça, a usar o termo no sentido de lei justa, e a declarar que uma ordem coercitiva eficaz e, portanto, uma lei positiva válida, ou uma norma qualquer de tal ordem social, não é uma lei "real" ou "verdadeira" se ela não for justa. Este uso do termo "lei" tem o efeito de que qualquer lei positiva deva ser considerada à primeira vista como justa, já que se apresenta como lei e é geralmente chamada "lei". Pode ser duvidoso que ela mereça ser denominada lei, mas ela tem o benefício da dúvida. Aquele que nega a justiça de tal "lei" e afirma que a assim chamada lei não é "lei verdadeira", tem que provar isto; e esta prova é praticamente impossível já que não existe um critério objetivo de justiça. Portanto, a conseqüência real da identificação terminológica entre a "lei" e a `justiça" é uma justificação ilícita de toda lei positiva. Não há e não pode haver um critério objetivo de justiça devido ao seguinte: afirmar que algo é justo ou injusto é um julgamento de valor em referência a um fim último, e estes julgamentos de valor são por natureza de caráter subjetivo, porque baseados em elementos emocionais de nossa mente, em nossos sentimentos e desejos. Eles não podem ser verificados pelos fatos, como podem as afirmações sobre a realidade. Os julgamentos dos valores últimos são sobretudo atos de preferência; eles indicam o que é "melhor" e não o que é "bom"; eles implicam uma escolha entre dois valores conflitantes, como, por exemplo, a escolha entre liberdade e segurança. Se um sistema social que garante a liberdade individual, mas não a segurança econômica, é preferível a um sistema social que garante a segurança econômica, mas não a liberdade individual, depende da decisão sobre qual dos dois valores, liberdade ou segurança, é o maior. É difícil negar que existe uma diferença radical entre a afirmação de que a liberdade é valor maior do que a segurança, ou viceversa, e a declaração de que a água é mais pesada do que a madeira. Há indivíduos que preferem a liberdade à segurança porque eles sentemse felizes somente se estão livres, e portanto preferem um sistema social e o consideram justo somente se ele garante a liberdade individual. Mas outros preferem a segurança porque sentemse felizes só quando estão economicamente seguros, e por conseguinte só consideram um sistema justo se ele garante a segurança econômica. Seus julgamentos sobre o valor da liberdade e da segurança, e portanto sua idéia de justiça, estão, em última análise, baseados apenas em seus sentimentos. Nenhuma verificação objetiva dos seus julgamentos de valor é possível. E, como o homem difere muito em seus sentimentos, suas idéias de justiça são muito diferentes. Esta é a razão porque, a despeito das tentativas feitas pelos mais ilustres Prensadores da humanidade para resolver o problema da justiça, não existe nenhum acordo, mas o mais apaixonado debate na resposta à questão sobre o que é justo. Bem diferente é a situação em relação às afirmações sobre a realidade. A declaração de que a água é mais pesada do que a madeira pode ser verificada pela experiência. CONCEITO DE JUSTIÇA 143 144 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 145 As afirmações sobre fatos são baseadas, é verdade, na percepção de nossos sentidos, controlados pela razão, e, portanto, são, de certa forma, também subjetivas. Mas as percepções dos nossos sentidos estão sob o controle da nossa razão em grau muito maior do que os nossos sentimentos, e, como matéria de fato, ninguém duvida de que a água seja mais pesada do que a madeira. Mesmo se aceitamos a filosofia do subjetivismo radical e admitimos que o universo existe apenas na mente do homem, nós precisamos, não obstante, sustentar a diferença que existe entre julgamentos de valor e afirmações sobre a realidade. A diferença pode ser apenas relativa, entre graus de subjetividade ("objetivo" significando, então, o menor grau possível de subjetividade). Mas a diferença relativa já é suficiente para justificar a diferença entre um julgamento sobre o que é justo e uma afirmação sobre o que é a lei, a lei positiva. Lei "positiva" significa que uma lei é criada por atos de seres humanos que têm seu lugar no tempo e no espaço, em contraposição à lei natural, que se considera ter outra origem. Conseqüentemente, a questão sobre o que é a lei positiva, a lei de certo país ou a lei num caso concreto, é a questão de um ato criador da lei, que ocorreu num determinado tempo e espaço. A resposta a esta pergunta não depende dos sentimentos daqueles que respondem; ela pode ser verificada por fatos objetivos, ao passo que a questão sobre se a lei de um certo país ou a decisão de uma determinada corte é "justa" depende da idéia de justiça, admitida pela mente de quem responde, e esta idéia de justiça está baseada na função emocional dessa mente. 7.3 Pensamentos sobre a justiça B. Pascal, Pensées, Paris, Ed. Libr. Hachette, 1946, n. 294 e 298. Três graus de elevação do pólo invertem toda a jurisprudência, um meridiano decide sobre a verdade; em poucos anos, as leis fundamentais se transformam; o direito tem suas épocas, a entrada de Saturno em Leão nos assinala a origem de um tal crime. Bizarra justiça que um riacho delimita! Verdade deste lado dos Pirineus, erro do outro lado. Eles confessam que a justiça não está nos seus costumes, mas reside nas leis naturais, conhecidas em todos os países. Certamente isso seria sustentável se a temeridade do acaso que semeou as leis humanas tivesse deixado ao menos uma que fosse universal; mas a realidade é tão engraçada e o capricho dos homens está tão diversificado que não existe nenhuma. O furto, o incesto, o assassínio de filhos e de pais, tudo teve seu lugar entre, as ações virtuosas. Pode haver alguma coisa mais divertida que um homem ter o direito de me matar porque ele mora do outro lado do rio e seu príncipe brigou com o meu, ainda mesmo que eu não tenha nada com ele? Há sem dúvida leis naturais; mas esta bela razão corrompida a tudo corrompeu: "Nihil amplius nostrum est; quod nostrum dicimus, arts est. Ex senatus consultis et plebiscitis crimina exercentur. Ut olim uittis, sic nunc legibus laboramus". Desta confusão decorre que um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador, outro a comodidade do soberano, outro o costume atual, e é o mais certo: nada, apenas pela razão, é justo por si mesmo; tudo se transforma com o tempo. O costume realiza toda a eqüidade, pela simples razão de que ele é aceito; esse é o fundamento místico de sua autoridade. Quem pretenda reduzilo ao seu princípio, o aniquila. Nada é tão falível como estas leis que retificam os erros; quem as obedece porque elas são justas, obedece à justiça que imagina, mas não à essência da lei: todo seu valor está concentrado em si mesma; ela é lei, e nada mais. Quem quiser examinar o motivo o encontrará tão fraco e superficial, que, se ele não estiver acostumado a contemplar os prodígios da imaginação humana, admirará que um século lhe tenha proporcionado tanta pompa e reverência. A arte de subverter os Estados é a de abalar os costumes estabelecidos, pesquisando até sua fonte, para assinalar sua falta de autoridade e de justiça. É preciso, dizse, voltar às leis fundamentais e primitivas do Estado, que um costume injusto aboliu. É um jogo seguro para tudo perder; nada será justo nessa balança. Justiça, força. É justo que o que é justo seja seguido, é necessário que o que é mais forte seja seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirania. A justiça sem força é contraditada, porque os maus sempre existem; a força sem a justiça é acusada. E preciso, pois, colocar juntas a justiça e a força; e assim fazer com que o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo. A justiça é sujeita a discussão, a força é reconhecida sem discussão. Assim não se pode dar força à justiça, porque a força contradisse a justiça e afirmou que ela era injusta e disse que ela é que era justa. E, assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, acabou fazendo com que o que é forte fosse justo. 7.4 Justiça civil e justiça penal G. Del Vecchio, A Justiça, Saraiva, 1960, p. 94. Houve, em todos os povos e tempos, um sistema regulador, resultante dos elementos psíquicos dos próprios homens conviventes, e que assinala a cada um a esfera própria de atividade, ligando uns aos outros mediante uma série de vínculos bilaterais e recíprocos, de sorte que pretensões e obrigações se correspondem e se convertem. Nem importa que tal sistema não seja sempre enunciado ou formulado por escrito, uma vez que essa formulação, mesmo onde ela se verifique, não pode, por motivos vários, ser totalmente cumprida. O sistema vive como organismo lógico, enquanto é sustido e alimentado pela consciência social preponderante, que de contínuo o elabora e renova. Ele tem uma racionalidade intrínseca própria, que o pensamento reflexo descobre e analisa só num segundo momento, como que percorrendo de novo a própria obra genuína e imediata de criação. Isto mesmo é o que acontece com todos os outros produtos históricos (por exemplo, a linguagem), nos quais o espírito manifesta ativamente suas potências profundas, ainda antes de estas aflorarem e se delinearem na lúcida tela da consciência. Portanto, também o sistema das determinações intersubjetivas do operar é antes costumado ou praticado que raciocinado (para nos servimos da expressão de Vico); o que em nada diminui seu significado ideal, mas é novo documento de sua humana necessidade. Uma vez que o fenômeno da retribuição do mal com o mal, sobretudo na forma típica do talião (retaliatio) ou da vingança regulada e comensurada, é o que mais dá na vista entre os fenômenos da justiça primitiva, asseverouse que a justiça penal precede historicamente a civil. "Dans les sociétés primitives", escreve por exemplo Durkheim, "le droit est tout entier pénal". Mas, contra esta tese, é fácil observar que a pena, com o delito a que corresponde, supõe um estado precedente de normalidade ou de equilíbrio: por outras palavras, uma exigência e uma obrigação correlativas, determinadas por uma regra, embora tácita, mas que na imensa maioria dos casos é observada e não transgredida. A transgressão, ou seja, a perturbação do equilíbrio, que justamente se visa restabelecer mediante a pena, representa na realidade uma 146 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO exceção, e logicamente um consecutivum. Em suma, a lei penal tem como pressuposto uma série de valores jurídicos já definidos e reconhecidos, relativamente aos quais ela constitui só uma espécie de justiça segunda. Certo é que já com a primeira espécie de determinações jurídicas (ou justiça primeira) é dada virtualmente a possibilidade da transgressão; se assim não fosse, seria insensata a afirmação de qualquer máxima deontológica. Mas aquilo que para estas determinações é mera virtualidade (que pode não verificarse efetivamente, e as mais das vezes não se verifica) é, ao invés, a necessária base de fato para a justiça penal: a qual parte justamente da hipótese de uma injustiça praticada ou injúria, para referir uma nova série de determinações jurídicas, sujeitas estas, por seu turno, à possibilidade de uma transgressão ou de inadimplemento. O caráter secundário da justiça penal manifestase principalmente no fato de ela não intervir em todos os casos de violação dos preceitos jurídicos elementares ou primários; tal violação é condição necessária, mas não suficiente para que se dê lugar àquela justiça. O direito violado admite ainda outras formas de reafirmação e reintegração, ainda mais intimamente conexas com aquela exigência fundamental, que se identifica com a natureza lógica do direito em geral, ou seja, a impedibilidade da ofensa. Desta seguese imediatamente a obrigação de restituir e de ressarcir, em todos os casos de injustiça praticada e de damnum injuria datum. Mas a restituição e o ressarcimento são por si conceitos meramente civis; como o respeito do limite jurídico originário, nem mudam de natureza, embora sejam postos em ato por meios coercitivos. Em poucas palavras, há uma sanção e uma coação civil as quais (como exigências) são inseparáveis do direito; ao passo que a sanção e a coação penal, que por vezes se acrescentam e sobrepõem àquelas, podem faltar, e de qualquer maneira nunca são possíveis por si sós. A noção elementar da justiça, como equilíbrio e correlação intersubjetiva, que se resolve na exigência recíproca do respeito e na recíproca possibilidade de impedir a ofensa, está pois implícita na fenomenologia jurídica primitiva, e subentendida nas próprias formulações penais, muito embora estas pareçam existir por si, ou extrinsecamente se revelem como um prius. Na realidade, estes diversos graus e momentos da justiça, que a sucessiva elaboração, científica e técnica, discrimina e dispõe arquitetonicamente, mostramse, a princípio, como que confusos, ou melhor, compreendidos num só núcleo. Assim, por exemplo, o instituto da composição, que tão grande papel desempenhou no direito antigo, encerra em si elementos civis e penais, privados e públicos. Todavia, é claro que isto, longe de infirmar, confirma antes o que já por outra via se demonstrou, a saber, que, qualquer que seja a importância das distinções feitas, ou a fazer, nesta matéria, um só é o germe e o motivo de todas as maneiras de justiça: Leges innumerae, una justitia. Sem dúvida, é longo e laborioso o processo histórico, mediante o qual "desde a infância do mundo" (para nos servirmos das palavras de Vico) as "sementes: eternas do justo se vão desdobrando em máximas demonstradas de justiça"; e quase' não vale a pena advertir que, nas fases primordiais, a justiça não se encontra naquel plenitude e perfeição ideal, que, aliás, para falar verdade, em vão se procurara; também nas fases mais avançadas. Ora, justamente, quanto maior for em nós "consciência histórica", ou, por outra, a noção da complexidade do processo lent pelo qual se vai formando este "mundo civil", tanto maior motivo de admira temos em descobrir desde o exórdio como sendo já dados, ou só virtualmen ou implicitamente, os elementos fundamentais e a trama do mesmo processo. conseguinte, quem parte do preconceito positivista ou empirista de que no espíritda e, portanto, na história, nada é dado a priori, e que conseqüentemente tambó a justiça é apenas um efeito do devir e algo de artificial, deve, perante esse fa maravilhoso e, entanto, inegável, desenganarse ou contradizerse: como aconteceu, por exemplo, com Littré, o qual, após ter asseverado que a justiça "loin d'être primordiale, innée, élémentaire, est secondaire, acquise et complexe", acaba por confessar que "un élément irréductible, qui est dans l'esprit de 1'homme, le soumet à l'idée de justice"; elemento este que ele faz consistir na simples intuição (intuition irréductible): "A égale A. A diffère de B". Quanto a nós, queremos dizer a quem reconhece os valores espirituais como superordenados à realidade fenomênica: o elemento primeiro e universal, que se encontra no fundo de toda experiência jurídica, é sem dúvida argumento que nos deve maravilhar, todavia nem mais nem menos do que tantos outros igualmente procedentes da atividade do espírito, e que refletem a natureza do mesmo espírito. Em sentido análogo, para relembramos apenas um exemplo clássico, Sócrates admirava, e ensinava a admirar, o espontâneo desvelarse das verdades geométricas eternas na mente de jovem escravo inculto; e Kant, à imitação de Rousseau, assinalava o milagre sempre antigo e sempre novo, que é para a nossa consciência o auscultar em si o simples e imperioso ditame da lei moral. Precisamente as verdades mais simples e "comuns" como já o observava, e, bem, Schopenhauer são maravilhosas para o filósofo; ao passo que os não filósofos só se maravilham perante os fenômenos insólitos. 8. 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