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Texto 4 - Sócrates e a fundação da filosofia moral
“Digo-vos que exatamente isso é para o homem o bem maior, refletir todo dia sobre a virtude e sobre outros argumentos sobre os quais me haveis ouvido disputar e pesquisar sobre mim mesmo e sobre os outros, e que uma vida sem tais pesquisas não é digna de ser vivida”(Apologia,38)
 a)	“Ó Sócrates, tinha ouvido, antes mesmo de encontrar-me contigo, que tu não fazes senão duvidar e que fazes duvidar também os outros: ora, como me parece, tu me fascinas, me encantas, me enredas completamente, de modo que me tornei cheio de dúvidas. E parece-me verdadeiramente, se é lícito brincar, que te assemelhas muitíssimo, pelo aspecto e por tudo o mais, à raia marinha: também esta, de fato, entorpece quem dela se aproxima e a toca: e parece-me que agora, tu também produziste sobre mim efeito semelhante. Com efeito, tenho a alma e a boca entorpecidas e não sei mais o que te responder. Contudo, muitas e muitas vezes discorri sobre a virtude, diante de muitas pessoas e muito bem, pelo menos segundo me parecia; agora, ao invés, não sei nem mesmo dizer o que ela é. E parece-me que tu decidiste acertadamente não atravessar o mar e não viajar: se tu, de fato, fizésseis tais coisas, em outra cidade, serias expulso imediatamente como impostor.” (Platão, Ménon, 80 a-b)
	“Ora, a minha arte de obstetra assemelha-se em todo o resto à das parteiras, mas difere dela no fato de agir sobre homens e não sobre mulheres, e cuidar das almas grávidas e não dos corpos. E a minha maior capacidade é que eu consigo discernir seguramente se a alma do jovem dá à luz a uma quimera e a uma mentira, ou se a algo real. Pois eu tenho em comum com as parteiras o fato se ser também estéril...de sapiência; e a reprovação de muitos já me fizeram, que eu sempre interrogo os outros, mas não manifesto nunca sobre qualquer questão o meu pensamento, ignorante que sou, é uma reprovação verdadeira. E a razão é o que o Deus obrigou-me a ser obstetra, mas proibiu-me de gerar. Eu sou, portanto, ignorante, e de mim não saiu nenhuma sapiente descoberta que tenha sido produzida pela minha alma; ao invés, aqueles que se comprazem de minha companhia, embora alguns deles pareçam no início totalmente ignorantes, continuando a freqüentar-me, conseguem em seguida, desde que Deus o permita, extraordinário proveito, como eles mesmos e os outros constatam. E é claro que não aprenderam nada de mim, mas unicamente por si mesmos aprenderam e geraram muitas e belas coisas...
Pois bem, caro amigo, contei-te toda esta história justamente por isso, porque suspeito que tu, e talvez tu mesmo creias, estejas grávido e sintas as dores do parto. Portanto, confia-te a mim, que sou obstetra e filho de parteira; e o que te pergunto, tenta responder da melhor maneira possível. Se , depois, examinando as tuas respostas, eu encontrar que algumas são quimeras e não verdades, arranco-as de ti e lanço-as fora, e não te zangues comigo como fazem com seus filhos as que dão à luz pela primeira vez. Já muitos, caro amigo, têm contra mim esta má disposição, tanto que estão até mesmo prontos a agredir-me se eu tento arrancar deles alguma opinião extravagante; e não vêem que faço isso por benevolência, longe como estão de saber que nenhum Deus quer o mal dos homens; e não é , na verdade, por maldade que eu faço isso, mas só porque não considero lícito aceitar a falsidade ou obscurecer a verdade” (Platão, Teeteto, l48 e-151)
b)“ O Laques, em sua simplicidade, é como o ponto zero do diálogo socrático. A situação; dois “burgueses” atenienses, que se fizeram por si mesmos, preocupam-se com a educação de seus filhos. Acaba de chegar um mestre de armas de brilhante reputação, que abre uma escola. Os dois pais de família perguntam-se se devem enviar para lá seus filhos. 
Ora, eles não se sentem de nenhum modo qualificados para tomar uma decisão. Fazem então apelo a dois de seus amigos que são qualificados para decidir: são “especialistas”. Laques e Nícias são dois estrategistas renomados que exerceram numerosos comandos: o primeiro, que se formou sobre o terreno, não tem cultura alguma; o segundo, ao contrário, freqüentou os sofistas e entende também de política. Sócrates encontra-se lá: convidam-no a participar do debate. E isso, por três razões: ele conheceu bem o avô de um dos jovens; Laques, que o teve sob suas ordens, dá testemunho de suas qualidades de combatente; e, enfim, nunca é mal ter um tal homem a seu lado quando se trata da juventude , que tem na mais alta conta suas opiniões.
	O debate começa: cumpre ou não dar lições de esgrima aos jovens? Os dois especialistas tomam sucessivamente a palavra. Nícias demonstra, com uma argumentação brilhante, que um tal exercício só pode ser proveitoso tanto como exercício corporal como formação moral. A essa demonstração Laques opõe “fatos”: ele é de opinião que esse treinamento abstrato de nada serve e que o único lugar onde se aprende a lutar é o próprio campo de batalha. Dois estilos de pensamento, duas atitudes que se opõem e se anulam. Como escolher, conseqüentemente? Os dois pais de família voltam-se para Sócrates e pedem-lhe para optar em favor de uma ou de outra parte e, assim, por seu voto, concluir o escrutínio.
	Ora, este coloca condições para sua participação. Não se trata, precisa inicialmente, de proceder “democraticamente”numa questão tão grave. Deve-se escolher, mas é preciso que seja com conhecimento de causa. Ora, a técnica adotada até aqui é má. Laques e Nícias não entabularam um diálogo efetivo: nada mais fizeram que justapor monólogos. Cumpre, se se quer avançar, constituir uma verdadeira discussão, isto é, questionar com precisão a fim de dar margem a respostas adequadas (e não de colecionar respostas sem questão). Essa função interrogativa, Sócrates reclama que lhe seja concedida.
	O que seus interlocutores fazem de bom grado. A partir do momento em que lhe é dada a liberdade de conduzir o debate, Sócrates muda seu sentido. Daí para a frente aplica seu método: e este consiste em definir rigorosamente de que se fala. Ao problema vago: cumpre tomar lições de esgrima?, importa substituir a questão mais profunda: que se espera do ensino da arte das armas? Ora , essa própria questão remete a uma interrogação mais radical. Se é verdade que o fim de semelhantes lições é o aprendizado da coragem (o que logo reconhecem Laques e Nícias), torna-se claro que a questão graças à qual será possível resolver o problema inicial é de fato esta: o que é a coragem?
	O diálogo, pouco a pouco, se transformou: a ironia socrática o fez passar do domínio empírico, onde ele se enredava e onde não podiam se expressar senão preferências contigentes, ao da essência, onde deve-se elaborar um saber. Dessa obrigação são logo convencidos. Quando Sócrates pergunta afinal o que é a coragem, eles regozijam: quem, pois, melhor que eles é entendido nessa matéria? Laques, como é de seu hábito, evoca “fatos”, cita “exemplos” confirmando as definições sucessivas que dá. A esses “fatos” Sócrates não tem a menor dificuldade em opor outros “fatos” contradizendo tais definições, a tal ponto é verdade - concepção que será constantemente característica do projeto filosófico - que nenhum “fato” jamais prova o que quer que seja. Nícias é mais hábil: sabe que tem de se haver com um temível disputador. Ele constrói suas respostas. Deve, entretanto, reconhecer, ele também, face às contradições às quais Sócrates o acusa, que não sabe o que é a coragem. Os dois pais de família estão muito decepcionados: reclamam de quem soube então vigorosamente denunciar os erros e as confusões que dê uma solução.
	Sócrates então recua. Ele nunca pretendeu saber o que é a coragem. O que sempre soube é, ao mesmo tempo, que não o sabia e que os outros tampouco o sabiam. E marca um encontro com seus amigos para que discutam de novo...” (Châtelet,F. A Filosofia Pagã, p.81-2)
Leituras complementares:
CHÂTELET, François. A Filosofia Pagã. Rio de Janeiro: Zahar, 1973,p.73-87.
CHAUÍ, Marilena. Sócrates: o elogio da Filosofia. In: ____. Introdução à Filosofia. Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 134-158.
DROIT, Roger-Pol. Silêncios e comentários. In: ____. A companhia dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.56-72
DORION, Louis-André. Compreender Sócrates. Petrópolis: Vozes, 2006.
ERLER, Michael.;GRAESER, Andréas (orgs.). Filósofos da Antiguidade. Dos primórdios ao período clássico. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p.129-143.
GOTTLIEB, Anthony. Sócrates. São Paulo: Unesp, 1999 (Grandes Filósofos)
MONDOLFO, Rodolfo. Sócrates. São Paulo: Mestre Jou.1972
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola. 1993. v.1.p.247-322.
PECORARO, Rossano (org.). Os filósofos. Clássicos da Filosofia. De Sócrates a Rousseau. Petrópolis: Vozes/PucRJ, 2008.
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