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Enviado por Leticia Gomes em

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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE
POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA
INTERNACIONAL – CNPEPI
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Antonio de Aguiar Patriota
FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo
Instituto de Pesquisa
de Relações Internacionais
Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim
A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada
ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil
informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática
brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os
temas de relações internacionais e para a política externa brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 3411-6033
Fax: (61) 3411-9125
Site: www.funag.gov.br
Brasília, 2009
III Conferência Nacional de
Política Externa e Política
Internacional – CNPEPI
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
70170-900 Brasília – DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034
Fax: (61) 3411 9125
Site: www.funag.gov.br
E-mail: funag@mre.gov.br
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme
Lei n° 10.994, de 14/12/2004.
Capa:
Aldemir Martins, Sertão de Timbaúba
OST, 1973
in Odorico Tavares a minha casa baiana sonhos e
desejos de um colecionador.
Equipe Técnica:
Eliane Miranda Paiva
Maria Marta Cezar Lopes
Cíntia Rejane Sousa Araújo Gonçalves
Erika Silva Nascimento
Juliana Corrêa de Freitas
Júlia Lima Thomaz de Godoy
Programação Visual e Diagramação:
Juliana Orem e Maria Loureiro
Impresso no Brasil 2009
 CDU 327(81)
Conferência Nacional de Política Externa e Política
Internacional : (3 : Rio de Janeiro : 8 e 9 de dezembro de
2008) III CNPEPI : O Brasil no mundo que vem aí. -
Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
440p.
1.Política externa - Brasil. 2. Política internacional -
Brasil. I. Título. III. Título: o Brasil no mundo que vem aí.
Abertura
Apresentação, 9
Embaixador Jeronimo Moscardo
Palestra do Senhor Secretário-Geral das Relações Exteriores, 11
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
Primeira Sessão: Estados Unidos
O Brasil e a Política Externa dos EUA no Governo Obama, 19
Antonio de Aguiar Patriota
A Configuração Mundial do Poder, a Nova Hegemonia Norte-
Americana e Novo Governo Obama, 33
Gilberto Dupas
Segunda Sessão: América Latina e Caribe
A América Latina e o Caribe; e o Brasil, 53
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão
América Latina no presente Sistema Internacional, 61
Helio Jaguaribe
América Latina e Caribe : Nova Fronteira da Política Externa Brasileira, 73
Marcel Biato
Sumário
Terceira Sessão: Europa
Uma Europa mais Transparente, 89
Franklin Trein
Brasil - União Europeia: Uma Parceria Estratégica, 121
Maria Edileuza Fontenele Reis
Quarta Sessão: África e Oriente Médio
Instabilidade Política Moderna nos Países que Correspondem aos Últimos
Impérios Coloniais Europeus. Exemplos do Oriente Médio e Comparação
com a África, 141
Affonso Celso de Ouro Preto
A África entre o Atraso e o Desenvolvimento no Período Pós-Crise Global, 157
José Flávio Sombra Saraiva
Cooperação Sul-Sul: a Experiência de Cooperação Internacional em Saúde
do Brasil com Países da África, 171
Paulo M. Buss e José Roberto Ferreira
Quinta Sessão: Rússia
A Nova Rússia sob Medvedev e Putin, 191
Angelo Segrillo
Considerações sobre a Situação Atual da Rússia: Desafios, Perspectivas, 203
Daniel Aarão Reis
Sexta Sessão: China, Índia e Japão
China, Índia e Japão no mundo que vem aí, 227
Amaury Porto de Oliveira
BRICS, the Chinese Engine, and the Humbling of Market Fundamentalism,245
Glauco Arbix
7
Sétima Sessão: Amazônia
Amazônia : os Desafios de uma Região Complexa e Dinâmica, 263
Adalberto Luis Val
Amazônia: Políticas e Estratégias, 277
Adherbal Meira Mattos
A Ocupação da Amazônia, 293
Adriano Benayon
Manaus, Cidade Mundial para Prestação de Serviços Ambientais: Uma
Proposta, 317
Bertha K. Becker
Amazônia: Desafios e Soluções, 339
Eduardo Dias da Costa Villas Bôas
Reflexões sobre Cultura, Soberania e Patrimônio Genético na Amazônia, 359
Ennio Candotti
Amazônia, 375
Ives Gandra da Silva Martins
Objetivos de uma Política Externa do Brasil em Relação à Amazônia: Proposta
para Discussão, 385
José Alberto da Costa Machado
Amazônia: Reflexões sobre sua Problemática, 407
Leonidas Pires Gonçalves
Lista de Participantes, 421
9
Apresentação
A Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional "O
Brasil no Mundo que vem aí" tem como objetivo promover o diálogo sobre
nossa agenda de política externa, com a participação da comunidade
acadêmica, diplomatas, jornalistas e representantes da sociedade em geral.
Na sua III edição, a Conferência tratou dos seguintes temas: Estados
Unidos, América Latina e Caribe, Europa, África e Oriente Médio, Rússia,
China, Índia, Japão e Amazônia.
A Conferência sob menção pretende transformar-se nos estados-gerais
das relações internacionais no Brasil e inspira-se na convicção de que a
sociedade sabe mais e pode mais que a burocracia governamental.
Embaixador Jeronimo Moscardo
Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão
11
Palestra do Senhor Secretário-Geral das
Relações Exteriores, Embaixador Samuel
Pinheiro Guimarães
Bom dia a todas e a todos. É um prazer muito grande estar aqui hoje
para a Abertura da III Conferência sobre Política Externa e Política
Internacional, organizada pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo Instituto
de Pesquisa de Relações Internacionais, com um tema muito oportuno: “O
Brasil no mundo que vem aí”. Eu fui convidado para dizer algumas palavras e
prometo não me alongar muito para que possam logo ouvir os debatedores.
Vou falar um pouco sobre aquilo que possa ser chamado de “saída para
a crise”, a saída pela política. Primeiro, eu queria falar sobre a dinâmica
internacional dos últimos 20 anos porque é preciso ter algum tipo de visão
histórica para a situação que nós vivemos no momento. A situação que nós
vivemos no momento não caiu do céu, não é algo inesperado que, de repente,
cai do céu sobre nós e ficamos perplexos. Não é isso. As diversas crises
atuais são fruto de um processo de evolução nos últimos anos, nas últimas
décadas. Nós podemos caracterizar esse processo por alguns aspectos.
Primeiro, nesses últimos anos, houve um processo de liberalização e
desregulamentação da economia no nível dos países e no nível internacional.
Houve um profundo processo de desregulamentação. Essa desregulamentação
ocorreu, por uma sucessão de rodadas internacionais que reduziram os
obstáculos ao comércio de bens em todo o mundo. Ocorreu também no
nível interno europeu. Com a formação da Comunidade Econômica Europeia,
depois União Europeia, houve um processo de liberalização do comércio
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
12
entre aqueles países membros. Há outros aspectos, mas esse é um aspecto
importante. Temos os processos regionais, como o Mercosul e outros, e
também processos bilaterais. Nesse caso, houve o esforço dos Estados Unidos
de celebrar acordos de livre comércio com países, não só na área das
Américas, mas também de outros continentes, com a Austrália, com a Nova
Zelândia, com a Jordânia e vários outros. Houve, enfim, um processo de
desregulamentação e liberalização na área de comércio bens.
Depois, houve também um grande processo de desregulamentação e
liberalização na área dos capitais. Nessa área, a partir das modificações das
legislações internas, principalmente, nos Estados Unidos e também na
Inglaterra, houve uma desregulamentação
dos fluxos de capitais, que passaram
a fluir. Naturalmente, isso foi ajudado com o fim do papel do FMI, quando
os Estados Unidos abandonaram o padrão ouro e passou a existir, no mundo,
um sistema de taxas de câmbio flexíveis. Houve também a desregulamentação
do movimento de capitais em todo mundo através das chamadas
“privatizações”, que foram movimentos de desregulamentação, com a abertura
de áreas que, antes, estavam fechadas ao capital estrangeiro.
Naturalmente, isso não ocorreu na área do trabalho. Nós falamos
nos bens, no capital e nos serviços, embora numa escala menor, mas não
ocorreu na área do trabalho. Houve uma grande movimentação de pessoas
a nível internacional, mas de forma muito restritiva. Nós temos grandes
contingentes de brasileiros, por exemplo, que não tínhamos no exterior.
Hoje, são cerca de três ou quatro milhões de brasileiros no exterior, mas
há um número muito grande de outras nacionalidades, de outras origens e
um grande número de deslocados, por conflitos. Nesse caso, naturalmente,
não houve um processo de desregulamentação. Pelo contrário, tem havido
um processo de regulamentação, de restrição aos movimentos do trabalho
dos seres humanos.
Esse é um processo de globalização e de criação de interdependência,
cada vez maior, entre as economias e as sociedades. O resultado desse processo
também é uma enorme concentração de poder que ocorreu ao longo desses
anos. Já havia uma concentração de poder enorme, logo após a II Guerra
Mundial, mas ela prosseguiu, tanto uma concentração de poder político, como
de poder militar, econômico e tecnológico. Se nós tomarmos a área do poder
político, nós temos a expansão das atribuições do Conselho de Segurança, a
expansão informal, porém, uma expansão, e de novos instrumentos de exercício
do poder político, como é o caso da OTAN, e de outras formas de intervenção,
PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES
13
outros instrumentos de intervenção. Na área militar, é a mesma coisa, ou seja,
há uma série de acordos que limita o acesso a certas armas a países considerados
“imaturos”, inferiores. É óbvio que isso não é colocado assim; isso é colocado
em nome do bem da humanidade, mas o fato é esse. A premissa que está por
detrás é que há países de uma civilização superior, de um nível cultural superior,
que têm o direito de ter certos tipos de armas; e outros países são inferiores,
são países instáveis, que podem colocar em risco a paz e a segurança internacional
e, portanto, não podem ter armas. Há uma série de tratados que foram sendo
celebrados de forma a restringir, cada vez mais, o acesso às armas de destruição
em massa e também a qualquer outro tipo de armas, mesmo as armas
convencionais. Na área econômica, essa concentração de poder pode ser
medida de várias formas, como pela diferença de renda per capita que existe
entre os países altamente desenvolvidos e os países subdesenvolvidos. Essa
diferença tem aumentado com o tempo entre os países. Na área tecnológica, é
a mesma coisa. O número de patentes registradas todos os anos é
predominantemente, esmagadoramente, de patentes registradas por países
altamente desenvolvidos. Aproximadamente metade das patentes internacionais
é registrada pelos Estados Unidos, segundo as informações da Organização
Mundial da Propriedade Intelectual.
Enfim, esse período todo também se caracterizou por uma questão
ideológica importante, que foi o chamado “fim do socialismo” e da vitória
ideológica das doutrinas neoliberais e a derrota das doutrinas coletivistas, de
toda a natureza, como o comunismo, socialismo e assim por diante. Foi a
vitória do neoliberalismo em todo o seu esplendor que correspondeu a teorias,
por exemplo, como o fim das fronteiras, o fim dos Estados e assim por diante.
Hoje, naturalmente, isso está um pouco superado pela própria mudança de
política econômica nos países altamente desenvolvidos, em que há uma política
de profunda intervenção do Estado, de profunda preocupação coletiva com
o destino das sociedades, como a aquisição de bancos, ajuda a empresas e
assim por diante. Isso mostra um pouco um renascimento dessa questão do
individualismo versus coletivismo, preocupações coletivas da sociedade. Não
quero chamar de “socialismo”, nem de “comunismo”, mas de políticas que
prevêem, principalmente, uma maior intervenção do Estado em defesa da
organização da sociedade, tanto do ponto de vista econômico, quanto do
ponto de vista social. Enfim, esse é um processo que nos leva, com suas
diferentes características, ao que eu chamaria de “grandes crises atuais” e
todas elas são um desafio para o Brasil.
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
14
A primeira delas, que está mais na imprensa, é a crise financeira e, hoje
em dia, cada vez mais, uma crise produtiva porque a crise está passando da
área financeira para a área produtiva, nos países altamente desenvolvidos. A
segunda delas, que é uma crise mais estrutural, é a crise ambiental. Nós temos,
seguramente, uma crise ambiental de proporções extraordinárias, hoje já
reconhecida por todos os países, e que terá profundo impacto na organização
das sociedades porque essa crise ambiental é vinculada à crise energética,
pela escassez de energia, pela mudança dos padrões de consumo de energia,
por sua vez, ligadas a questões do Oriente Próximo, mas, sensivelmente, se
pode identificar como uma questão dos padrões de consumo do individualismo.
O fato de que certas sociedades são baseadas na ideia de que é possível
consumir qualquer tipo de produto, de uma forma totalmente livre e com
enorme grau de desperdício. Há uma crise energética, mas há também uma
crise de recursos naturais de uma forma geral. Há algo muito perigoso, que é
uma ideia formulada assim: “O que seria se todos os chineses tivessem um
automóvel? O que seria se todos os chineses comessem carne?”. Há uma
ideia por detrás de que certos países têm direito a ter certos níveis de consumo
e outros, por terem chegado atrasados, não teriam esse direito porque isso
criaria um problema, um desafio, um dilema internacional. Isso é algo
extremamente preocupante para países em desenvolvimento. E se todos os
brasileiros tivessem um automóvel? E se todos os brasileiros tivessem níveis
de consumo dos países altamente desenvolvidos? Isso geraria uma demanda
enorme sobre os recursos da terra. Só que nós temos seguramente o direito,
tanto ou mais do que qualquer outro país, de ter níveis de consumo adequados
para cada cidadão brasileiro. Todos os cidadãos brasileiros têm esse direito.
Como eu já mencionei de passagem, temos a questão da crise energética, da
reorganização da matriz energética do mundo, que envolve a questão da
energia nuclear, que envolve a questão dos biocombustíveis e assim por diante.
A questão alimentar também é um pouco esta, ou seja, saber como enfrentar
o desafio de fazer com que todas as populações do mundo tenham o direito
a níveis adequados de nutrição. E finalmente, temos uma crise de natureza
político-militar, que é a da emergência da China, ou seja, como acomodar a
China no sistema internacional. Qual é o papel que a China deve ter no sistema
internacional? Como acomodá-la nas diferentes instituições, nos diferentes
temas? Como reacomodar a Rússia na sua nova fase de reafirmação nacional?
Diante desses temas todos, dessas crises, dessa evolução, certamente,
para a política externa brasileira, se colocam grandes desafios. O grande desafio,
PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES
15
em minha opinião, é a luta pela desconcentração do poder internacional. Nós
temos interesse em que haja um processo de desconcentração desse poder. É
muito difícil se falar de uma completa democratização das instituições. Isso é
extremamente difícil. Eu acredito mais num processo de maior democracia, de
maior participação nos grandes organismos. Isso passa pelo Conselho de
Segurança, pelos organismos financeiros e econômicos internacionais,
como a
reforma do Fundo Monetário Internacional, como a reforma, em curso, da
Organização Mundial de Comércio, na medida em que, o G-20, na OMC é
um fato totalmente novo. Quer dizer, a participação dos países em
desenvolvimento, em que o Brasil tem desempenhado a função de coordenador,
é realmente uma vitória brasileira. Ninguém se impõe como coordenador de
nada. É necessário que os outros convoquem o país para essa função. Nenhum
país, em nenhum lugar, diz: “Eu vou ser o coordenador de tal grupo”. Isso
simplesmente não existe na prática. O que existe é o consenso, entre um grupo
de Estados, para que um deles seja o seu porta-voz, o seu coordenador, o seu
articulador. Então, essa luta pela desconcentração do poder é extremamente
importante em todos os níveis. Segundo, temos a luta para que, em seu conjunto,
as normas que vêm sendo organizadas a nível internacional, nos diferentes fóruns
e organizações multilaterais, regionais etc., sejam as mais favoráveis ao
desenvolvimento da sociedade brasileira, para resolver os problemas das
desigualdades sociais, das vulnerabilidades externas, e da realização do potencial
da sociedade brasileira, da economia do Estado Brasileiro. É necessário que
essas normas internacionais não nos criem obstáculos e sim sejam favoráveis
ao desenvolvimento interno, i.e., que preservem o grau de autonomia do Estado.
Nesse processo de desenvolvimento interno, a função do Estado é essencial.
Nós não podemos imaginar que haja desenvolvimento econômico e social no
Brasil sem uma função do Estado de promoção desse desenvolvimento, para
garantir que todas as potencialidades da sociedade brasileira sejam
desenvolvidas. Não é possível imaginar de outra forma. Muitas vezes, a
normatização internacional tende a coibir a ação do Estado, a dificultar a ação
do Estado. No âmbito da política externa, é necessário fazer com que essas
normas venham a ser favoráveis ao desenvolvimento econômico, político e
social do Brasil.
Como fazer isso? Primeiro, do ponto de vista internacional, é necessária
a articulação com os grandes Estados da Periferia, que são a Índia, a China,
a África do Sul, a Argentina, porque esses Estados têm um nível semelhante
de aspiração à do Brasil. Outros países menores tendem a ser absorvidos
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES
16
pelos grandes polos de poder que se organizam no sistema internacional.
Eles acabam sendo absorvidos, muitas vezes cooptados. É com esses grandes
Estados – que têm aspirações semelhantes às do Brasil, e que já atingiram
um certo nível de desenvolvimento – que nós temos que nos articular no
processo de negociação das normas internacionais e da desconcentração de
poder. É por isso que nós estamos juntos com a Índia, por exemplo, no G-4;
estamos junto com a Índia, com a China e com a África do Sul nas áreas de
programas de desenvolvimento tecnológico, como na área de satélites, e há
muitas outras áreas ainda não exploradas, mas que necessariamente devemos
explorar.
Em segundo lugar, temos a questão da articulação regional. O sistema
internacional é um sistema de grande interdependência e onde surgem grandes
blocos de países, como é o caso da União Europeia e da América do Norte.
Na América do Norte, se forma uma grande economia, com características
diferentes das da União Europeia e que inclui: o Canadá, os Estados Unidos,
o México, a América Central depois dos acordos de livre comércio, e alguns
estados da América do Sul. Os acordos de livre comércio que foram
celebrados, na realidade, criam uma área econômica integrada, livre de tarifas,
com a mesma regulamentação. É necessária uma articulação regional brasileira
para que possamos participar melhor das negociações internacionais e das
disputas internacionais. Além das negociações, temos também algumas
situações de fato, onde os países são arregimentados para se pronunciar.
Nesse processo de articulação regional, a União das Nações Sul-americanas
- UNASUL é de grande importância nos seus diferentes aspectos –
econômicos, políticos, militares –, com o Conselho de Defesa Sul-americano.
O Mercosul, naturalmente, é o centro da política exterior na América do Sul.
Finalmente, uma palavra sobre a questão da articulação interna. É
necessário que haja, dentro do Brasil, uma articulação das forças progressistas;
aquelas forças que têm o Brasil como parâmetro e não apenas a livre ação
dos indivíduos. É necessária uma articulação entre aquelas forças que
consideram que o Brasil é uma sociedade humana, não é um mercado; o
Brasil não é um mercado, o Brasil é uma sociedade de indivíduos muito além
dos seus interesses puramente econômicos, mas os seus interesses de toda a
ordem. Nesse momento de crise, é necessário que as forças políticas e sociais,
que têm essa preocupação, estejam unidas na defesa de políticas que permitam
a superação do desafio que nós enfrentamos, a começar pela manutenção da
demanda interna, manutenção dos investimentos para construirmos a infra-
PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES
17
estrutura do país e para não cairmos na armadilha de que é necessário reduzir
a demanda. Nenhum país do mundo está nessa armadilha. Todos os países
estão preocupados em manter o seu nível de demanda, e tentar manter o seu
nível de investimentos. Não podemos cair na armadilha de alguns que dizem
que é necessário reduzir a demanda no Brasil para enfrentarmos essa situação.
É justamente a saída errada.
Finalmente, uma questão que eu acho extremamente positiva é que,
historicamente, foi em períodos de crise que o Brasil se desenvolveu na
realidade. Foi no grande período da grande depressão até ao final da II
Guerra Mundial que houve uma grande expansão do desenvolvimento industrial
brasileiro e, mais tarde, com as diferentes crises econômicas que tornaram
real e vital a ideia do desenvolvimento econômico brasileiro, baseado na
indústria. Na verdade, 85% da população brasileira vive nas cidades. Nas
cidades, não há agricultura. Duvido que os senhores consigam plantar alguma
coisa dentro de uma cidade. O emprego na cidade é o emprego industrial e
na área de serviços. Então, é muito importante que haja a possibilidade do
desenvolvimento industrial, que essa crise seja uma oportunidade de afirmação
da indústria. Não é que a agricultura e o agronegócio não tenham importância.
É óbvio que têm, mas, certamente, não é possível desenvolver uma ação
com as dimensões e perspectivas do Brasil com base apenas numa visão
agrícola do mundo e da sociedade. Na minha opinião, isso não é correto. Eu
sei que muitos criticariam esse ponto de vista, mas de uma coisa eu tenho
certeza: não há emprego de natureza agrícola nas cidades. Isso eu posso
garantir aos senhores. Se quiserem, podem plantar alguns pés de soja no seu
apartamento, para ver se isso é possível. Se for, eu me considero derrotado.
Finalmente, acredito que uma situação como a atual é uma situação que
permite renovar a ideia da participação do Estado como um agente de
desenvolvimento econômico num momento de crise. Eu acho que a situação
internacional é muito importante porque, certamente, se todos os Estados
mais desenvolvidos do mundo estão utilizando a sua administração, o seu
Estado para enfrentar a crise, nada mais conveniente que um país como o
nosso também possa, e deva, usar o seu Estado para enfrentar essa situação
de grandes dificuldades e de grandes desafios, no processo em que todos
estão interessados e empenhados de construir uma sociedade mais justa,
mais democrática e mais próspera. Muito obrigado pela atenção.
19
O Brasil e a Política Externa dos EUA no
Governo Obama
Antonio de Aguiar Patriota1
Em artigo publicado na Política Externa de junho/julho/agosto de
2008 (“O Brasil e a política externa dos EUA”), examinei a evolução da
política externa norte-americana no segundo mandato do Presidente Bush
(2005-09) e o desenvolvimento das relações bilaterais. Com a posse do
Presidente Barack
Obama, em 20/1/2009, que tantas esperanças
despertou nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, proponho
um exercício de natureza mais prospectiva, ao considerar como será
possível, sem perder os avanços realizados, abrir novas áreas de
cooperação entre as duas grandes democracias multiétnicas das Américas.
Há, hoje, virtual consenso entre os Governos Lula e Obama de que
não é necesssário “reinventar a roda” nas relações bilaterais, mas sim
acrescentar, àquelas áreas específicas de convergência já identificadas,
novos temas, iniciativas e mecanismos, tornados possíveis pela maior
compatibilidade entre os momentos políticos vividos pelos dois países.
Tal aproximação ocorrerá no contexto de grave crise financeira
internacional, a qual, ao mesmo tempo em que traz problemas novos e
acentua alguns antigos, poderá favorecer a remoção de obstáculos –
notadamente certos preconceitos e modos rígidos de pensar, cuja
obsolescência ficou patente nos últimos meses.
1 O autor é Embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América.
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
20
As Relações Brasil-EUA no Final do Governo Bush
Sem pretender repetir o artigo de junho passado, recapitulo alguns
marcos importantes a partir de 2005:
- a Cúpula da Granja do Torto de novembro de 2005 entre os Presidentes
Lula e Bush, com ênfase nos biocombustíveis;
- o hábito de consulta e cooperação no apoio à estabilização, democracia
e desenvolvimento do Haiti, que demonstrou estarem os EUA e o Brasil
sintonizados em relação a uma questão de paz e segurança;
- a consulta intensa, praticamente permanente, sobre comércio
internacional, no âmbito das negociações da Rodada de Doha da OMC;
- o abandono, pelo Governo Bush, da ênfase na ALCA, “colocada
entre parênteses”, decisão que não impediu, nos anos seguintes, o
crescimento robusto do comércio e dos investimentos entre Brasil e
EUA;
- o estabelecimento de “diálogo estratégico” regular entre as Chancelarias,
no nível de Subsecretários para Assuntos Políticos – mecanismo que os EUA
mantêm apenas com um punhado de países;
- as duas Cúpulas bilaterais de março de 2007 – São Paulo e Camp
David – que produziram, entre outros resultados, o Memorando de
Entendimento sobre Biocombustíveis e o Fórum de Altos Executivos Brasil-
EUA;
- a criação do Diálogo de Parceria Econômica, por iniciativa do Ministro
Celso Amorim e da Secretária de Estado Condoleezza Rice, que vem dando
frutos concretos, tais como a intensificação dos vôos comerciais entre os
dois países, com a inclusão de rotas novas ligando o Nordeste brasileiro a
cidades do sul dos Estados Unidos;
- o convite para que o Brasil – juntamente com Índia e África do Sul –
participassem da Conferência de Annapolis sobre o Oriente Médio, em
novembro de 2007;
- a assinatura do Plano de Ação Conjunta para a Eliminação da
Discriminação Étnica e Racial e a Promoção da Igualdade pela Secretária de
Estado Rice e o Ministro Edson Santos;
- a aprovação, pela Câmara de Representantes dos Estados Unidos
(com maioria democrata desde as eleições de 2006) de resoluções unânimes
de apoio ao fortalecimento das relações entre Brasil e EUA.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
21
Em 2008, várias dessas iniciativas continuaram a render frutos. Uma crescente
confiança recíproca fez que os Estados Unidos procurassem o diálogo com o
Brasil em relação a questões regionais, inclusive em momentos de tensão, como
na controvérsia Colômbia – Equador e durante as perturbações políticas na
Bolívia. Houve apoio de Washington a iniciativas brasileiras, como a União das
Nações Sul-Americanas (UNASUL) e o Conselho de Defesa da América do
Sul. Até mesmo a Cúpula da América Latina e do Caribe, realizada na Costa do
Sauípe, em dezembro de 2008, terá sido vista como o evento construtivo que foi
– não obstante certa incompreensão em setores mais conservadores do Congresso
norte-americano.
Também em sinal de ambiente mais cooperativo, o diálogo bilateral estendeu-
se a área por muito tempo excluída da agenda bilateral, a de defesa. Em 2008, o
Ministro da Defesa Nelson Jobim visitou os Estados Unidos em três ocasiões
distintas, duas vezes para reunião com o Secretário da Defesa Robert Gates e
uma para conhecer a sede do Comando Sul (SouthCom). Foi possível, assim,
conversar com transparência e franqueza sobre novas iniciativas de cada lado: do
Brasil, o Conselho Sul-Americano de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e
os planos de capacitação tecnológica na indústria de defesa; dos Estados Unidos,
entre outros temas, a polêmica criação da IV Frota, cujo anúncio repentino
provocara reações na opinião pública latino-americana e pedidos de
esclarecimentos provenientes de vários Governos da região. Destacou-se
positivamente o comportamento norte-americano, que sugeriria estar ficando para
trás a época das objeções a programas em esferas como a espacial e a nuclear.
No mesmo espírito, os Estados Unidos começam a sinalizar que poderão ser um
parceiro em projetos de capacitação tecnólogica de interesse brasileiro.
O ano de 2008 encerrou-se com uma manifestação emblemática do crescente
papel global do Brasil, na Cúpula de Washington do G20 financeiro. A convite do
Presidente George W. Bush, o Presidente Lula desempenhou papel de destaque,
como um dos principais oradores do almoço de trabalho organizado pela Casa
Branca em torno do tema comércio internacional. No exercício da Presidência
do G20, o Brasil pode, ademais, pôr à mostra sua capacidade de diálogo com
todas as correntes políticas e proveniências geográficas.
A Campanha Eleitoral de 2008
O ano de 2008, nos Estados Unidos, foi dominado por uma eleição
presidencial que provocou uma mobilização raramente vista da sociedade
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
22
norte-americana. A candidatura de Barack Obama trouxe forte conteúdo
transformador. A perspectiva de eleição do primeiro Presidente afro-
americano representava a culminação histórica de longo processo de
integração social, superação da discriminação e ampliação da democracia,
que data da Guerra Civil norte-americana e se mantivera incompleto por
mais de um século.
Agregou-se o efeito de mudança generacional: Obama, com seus 47
anos, não participou das controvérsias políticas e culturais dos anos 1960 e
do começo dos anos 1970. A Guerra do Vietnã, a explosão do consumo de
drogas, os distúrbios raciais que se seguiram ao assassinato do Dr. Martin
Luther King e o escândalo de Watergate provocaram divisões profundas,
mas não deixaram cicatrizes no futuro Presidente, cuja infância transcorria,
no Havaí e na Indonésia, em lar multirracial e aberto para o mundo.
Tudo isso fez com que a campanha de Obama, primeiro na primária
democrata e em seguida na eleição geral, atraísse a juventude e as minorias
étnicas. Com organização moderna, em rede, tornada possível pelo uso
inovativo da internet, e provando ser possível conciliar iniciativa e disciplina,
Obama logrou promover um verdadeiro movimento nacional em torno da
ideia de mudança.
Ao mesmo tempo, a crise financeira, que se tornou aguda em meados de
setembro, após a falência do banco Lehman Brothers, culminou processo de
erosão gradual de todo um conjunto de falsas certezas que se havia propagado
desde os anos 1990. A noção de que exista um conjunto pronto de receitas
políticas e econômicas com aplicação universal, concebido em Washington e
pronto para exportação aos quatro cantos do mundo, ruiu como castelo de
areia em face da maré alta. As elites políticas, financeiras e econômicas que
haviam pontificado nas duas décadas anteriores passaram a ser apontadas
como responsáveis por catástrofe que, ao contrário de crises anteriores,
começou no centro do mundo desenvolvido e daí se espalhou pelo globo. Se
consenso há sobre causas e remédios da crise, foi no sentido de que país
algum detém o monopólio da sabedoria sobre como enfrentá-la, e de que é
preciso
esforço comum e cooperação mais eficaz para que o árduo trabalho
de superação tenha perspectivas de êxito.
O Brasil teve condições de diálogo e acesso às principais campanhas
eleitorais, que apresentaram, cada uma, aspectos inéditos. Somos cada vez
mais vistos como um parceiro importante na busca de soluções para as grandes
questões políticas e econômicas da região e da comunidade internacional.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
23
Representantes do Governo brasileiro, nas mais diversas áreas, tiveram acesso
aos assessores das campanhas eleitorais, em particular as dos três principais
candidatos, os Senadores Barack Obama, Hillary Clinton e John McCain.
Foi possível não só recolher informações, mas também prestar esclarecimentos
sobre o Brasil e apresentar a perspectiva brasileira sobre os grandes temas
regionais e globais.
Barack Obama
A facilidade de diálogo entre os Presidentes Lula e George W. Bush, até
certo ponto surpreendente, em vista de trajetórias pessoais e posturas políticas
muito distintas, foi fator relevante na reaproximação entre Brasil e Estados
Unidos, a partir de 2005. Alguns observadores chegaram a levantar dúvidas
sobre a possibilidade de manutenção desse clima favorável com Barack
Obama na Casa Branca.
Argumentos sólidos, porém, permitem prever que Brasil e Estados Unidos
continuarão a encontrar novas áreas de cooperação nos próximos anos, além
de prosseguir nas já existentes. Entre Lula e Obama, podem ser identificadas
afinidades em pelo menos três campos: trajetória pessoal, temperamento e
valores.
No campo da trajetória pessoal, o traço mais marcante de ambos os
percursos foi a superação do preconceito. Enquanto a eleição de Lula marcou
a ampliação da democracia no Brasil, pela elevação de um representante do
operariado ao cargo de Presidente, Obama representou a derrubada de uma
barreira racial que muitos ainda julgavam fora de alcance nos Estados Unidos.
Quando Obama nasceu, em 1961, o casamento entre seus pais ainda
seria proibido por lei em vários Estados norte-americanos (não, porém, no
seu Estado natal, Havaí, de cultura mais tolerante e mestiça). O próprio
Presidente Obama mencionou em seu discurso de posse, no Capitólio, que
sessenta anos antes talvez os restaurantes da capital norte-americana não
aceitassem que seu pai, o economista queniano Barack Hussein Obama
(mesmo nome do filho), se sentasse à mesa para almoçar. Sua autobiografia,
lançada em português como “A origem dos meus sonhos”, escrita aos 33
anos, contém uma reflexão comovente sobre a decepção do jovem Barack
diante do pai, cuja carreira promissora terminou em impasse, e cuja vida,
depois de diversos casamentos e filhos, desembocou em alcoolismo e
depressão. O jovem Barack seria visto pela sociedade norte-americana como
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
24
afro-descendente, pela aparência física, mas conviveu na infância quase que
unicamente com a mãe e os avós brancos.
Sua mãe, a antropóloga Ann Durham, personagem criativa e progressista,
casou-se novamente com um cidadão indonésio. Obama passou parte da
infância, dos 6 aos 10 anos, numa rua de terra batida da periferia de Jacarta,
correndo atrás de galinhas e cachorros, junto com os outros meninos da
vizinhança, como relata na autobiografia. Que entre aqueles meninos, quase
todos de família muçulmana, soltando pipas na Indonésia nos idos de 1970,
estivesse um futuro Presidente dos Estados Unidos, é cenário que só a
combinação de momento histórico, uma grande autoconfiança individual e
uma pitada de destino pode explicar.
O resultado dessa genealogia e, mais tarde, do casamento com Michelle
LaVaugh Robinson, de família afro-americana tradicional do South Side de
Chicago, é uma “primeira família” única em seu universalismo. Uma das meio-
irmãs quenianas de Obama é casada com inglês; outro meio-irmão por parte
de pai vive na China e é casado com chinesa; sua meia-irmã por parte de
mãe é indonésia e casada com cidadão canadense de ascendência também
chinesa. Mesmo na família de Michelle, de perfil menos internacional, há um
primo que se converteu ao judaísmo e é rabino, sobrepondo em uma só
aliança familiar as três fés abraâmicas.
Uma segunda convergência se observa nas semelhanças entre os
temperamentos dos ocupantes do Alvorada e da Casa Branca. Obama, que
passou toda a vida construindo pontes entre negros e brancos, desenvolveu
capacidade natural de conciliação e diálogo. Na Faculdade de Direito da
Universidade Harvard, embora participasse de grupo de estudantes mais à
esquerda, foi eleito editor da prestigiosa revista “Harvard Law Review” com
o voto dos conservadores. No Partido Democrata, embora suas raízes estejam
na ala progressista, foi sempre capaz de atrair apoios de centristas e mesmo
de membros da ala mais conservadora. Durante a campanha eleitoral, além
do apoio praticamente unânime dos setores progressistas, apareceu o
fenômeno curioso dos “Conservadores por Obama”, ou “Obamacons”,
dotados de sua própria página web.
Em política externa, essa disposição se manifesta na política de “mão
estendida” em relação dos adversários dos Estados Unidos, bastando apenas
que eles “descerrem o punho”, na fórmula empregada no discurso de posse
e frequentemente citada desde então. A capacidade de diálogo e conciliação
se reflete também, em Obama, numa preferência pelo multilateralismo, visto
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
25
como mecanismo inclusivo, de vocação universal, e não como mero
agrupamento dos que pensam igual (like-minded). Na conferência de
imprensa em que apresentou sua equipe de política externa e segurança
nacional, Obama anunciou, como uma das três prioridades principais do
Departamento de Estado, o fortalecimento das instituições internacionais (as
outras duas são a não proliferação nuclear e a paz no Oriente Médio). Também
classificou as Nações Unidas de organização “indispensável”, qualificativo
que não se escutou em Washington, em relação à ONU, nem durante o
Governo George W. Bush, nem no de seu antecessor democrata.
Um terceiro campo de convergência, o dos valores, revela coincidência
no compromisso com a eliminação da pobreza e com a justiça social. Obama
demonstrou, com base em sua vivência na Indonésia e no Quênia, em seu
trabalho como assistente social nos bairros mais pobres de Chicago e em seu
temperamento de construtor de pontes, capacidade de compreender esses
problemas do ponto de vista dos pobres. Obama estudou na melhor escola
particular do Havaí, sobretudo graças aos sacrifícios dos avós. Ao terminar
seus cursos universitários, porém, abandonou a perspectiva de empregos
bem-remunerados em Wall Street ou em escritórios de advocacia, e optou
por oportunidades como organizador comunitário em uma das regiões mais
deprimidas de Chicago.
Desde então, Obama estabeleceu como plataforma central de sua atuação
a solidariedade social. A situação dos jovens afro-americanos em bairros
pobres nas grandes cidades, como Chicago; a geração de empregos; a
universalização da cobertura por seguro-saúde; e a melhoria da educação
pública, como detalhado em seu livro de campanha, “A audácia da esperança”,
foram a tônica de sua atuação política e de sua campanha presidencial. Durante
a campanha eleitoral, Obama ironizou o lema do ultraliberalismo, ou
fundamentalismo de mercado, a chamada “sociedade de proprietários”
(ownership society), dizendo que para os ricos isso parecia significar “cada
um por si” (you are on your own). Em seu discurso de posse, sintetizou sua
visão de futuro: “uma nação não pode prosperar, se dedicar atenção apenas
aos mais prósperos”.
O Momento Histórico e as Relações Bilaterais
Além das afinidades entre os Presidentes Lula e Obama, acima apontadas,
fatores de ordem estrutural contribuem para uma consolidação dos progressos
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
26
realizados em várias vertentes do relacionamento
bilateral e para a abertura
de novas frentes de aproximação.
Por muito tempo, a política externa dos Estados Unidos mal disfarçava
veleidades de tutela informal sobre as nações latino-americanas. Tal era o
sentido da “Doutrina Monroe” (a responsabilidade pela liderança da defesa
da América Latina contra “ameaças extracontinentais” caberia aos Estados
Unidos, que exerceriam, para tanto, supervisão sobre as relações dos países
latino-americanos com Estados de outros continentes) e do chamado
“Corolário Roosevelt” (Theodore, não Franklin: a responsabilidade pela
estabilidade política interna dos países latino-americanos competiria, também,
a Washington).
Tais políticas fizeram-se sentir com mais peso, ao longo do século XX,
na América Central e no Caribe, mas não deixaram de repercutir também
mais ao Sul. Para o Brasil, desde a consolidação das fronteiras com os vizinhos
– obra concluída por volta de 1910 – a tarefa principal da política externa,
formulada com diferentes matizes em cada geração, tem sido a criação de
condições externas favoráveis para o desenvolvimento econômico e social
do país. Para tanto, o pré-requisito essencial era a busca da autonomia
decisória na promoção do desenvolvimento, sem ingerências nem submissão
a interesses externos.
Nos anos 1950, atitudes dos Estados Unidos em relação à criação da
Petrobras, por exemplo, convenceram muitos brasileiros de que prevenir ou
impedir o desenvolvimento industrial do Brasil constituía parte da agenda não
declarada de Washington. As objeções aos programas nuclear e espacial,
nos anos 1970 e 1980 e as divergências sobre propriedade intelectual, a
partir dos anos 1980, foram fontes de desentendimento. As dificuldades iniciais
dos Estados Unidos com a formação do Mercosul também geraram alguma
tensão.
Ao mesmo tempo, outro conjunto de fatores nunca deixou de aproximar
os dois países, e conduziu a momentos de relação estreita e mutuamente
proveitosa – seja a “aliança não escrita” da época de Rio Branco (na expressão
do historiador norte-americano E. Bradford Burns), seja a participação do
Brasil na II Guerra Mundial (quando fomos o “aliado esquecido”, segundo o
historiador Frank McCann). O investimento e o capital norte-americanos
nas mais diversas áreas tiveram participação positiva na industrialização do
Brasil, em processo simbolizado pela Companhia Siderúrgica Nacional,
construída com financiamento e bens de capital dos Estados Unidos.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
27
Controvérsias subsequentes fizeram com que alguns se esquecessem de que
os primeiros passos dos programas nuclear e espacial do Brasil, entre os
anos 1950 e 1970, em muito beneficiaram-se da cooperação com os Estados
Unidos. E até hoje os fluxos de comércio e investimento revelam
complementaridades entre os dois países.
É possível afirmar, em suma, que Brasil e Estados Unidos podem manter,
em certos momentos e temas, políticas divergentes, no nível dos Governos,
mas sem chegar a ter conflitos fundamentais de interesse, no nível dos Estados.
A ambos interessa, primordialmente, a paz, estabilidade e prosperidade nas
Américas e no mundo.
Hoje, Brasil e Estados Unidos intensificam seus contatos políticos em
contexto histórico de grandes transformações. O Brasil está em trajetória
ascendente, com estabilidade econômica, progresso social e democracia
consolidada. Cada vez mais nosso ponto de vista é global, de país contribuinte
para o aperfeiçoamento do sistema internacional. Os Estados Unidos, por
sua vez, continuarão pelo futuro previsível a demonstrar vitalidade econômica,
científica e tecnológica, sem falar no poderio militar. Como aponta Fareed
Zakharia em “O Mundo Pós-Americano”, com a ascensão relativa de outros
países, os Estados Unidos vão sendo levados a aceitar mais naturalmente a
ideia de que vivem em mundo crescentemente multipolar, como admitiu
recentemente o Secretário da Defesa Robert Gates. A tentação do
unilateralismo conduziu, no Iraque, a resultados que falam por si; a crise iniciada
em 2008 tornou ainda mais patentes os limites do poder unilateral dos Estados
Unidos e a necessidade de cooperação internacional.
Restam, é verdade, no estamento de política externa norte-americana,
personalidades que acreditam na possibilidade de um retorno aos anos 1990,
quando os Estados Unidos viveram seu “momento unipolar”, na consagrada
expressão de Charles Krauthammer. Para os que duvidam, porém, da
orientação da atual liderança política, recomenda-se a leitura do Capítulo 8,
dedicado à política externa, do livro de campanha do então candidato
presidencial Barack Obama, “A audácia da esperança”. De forma talvez
inédita, constata-se a capacidade de um Presidente dos Estados Unidos de
enxergar a realidade internacional não apenas da perspectiva de seu próprio
país, mas também, a partir de uma vivência que incorpora contatos importantes
com o mundo em desenvolvimento (Indonésia e Quênia em particular). Entre
outras muitas observações de Obama que soam naturais aos brasileiros,
destaco as seguintes:
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
28
“Nosso desempenho tem sido inconstante, tanto na Indonésia quanto
no resto do mundo. Algumas vezes, a política externa norte-americana
foi previdente, servindo simultaneamente nossos interesses nacionais,
nossos ideais, e os interesses das outras nações. Outras vezes, as
políticas norte-americanas foram mal-orientadas, baseadas em
premissas falsas que ignoram as aspirações legítimas de outros povos,
diminuem nossa própria credibilidade e tornam o mundo mais perigoso
(...) (Na América Latina,) os Estados Unidos não chegaram a
empreender a colonização sistemática praticada pelas nações europeias,
mas perderam quaisquer inibições a respeito da ingerência nos assuntos
internos de países que julgavam estrategicamente importantes. Theodore
Roosevelt, por exemplo, acrescentou um corolário à Doutrina Monroe,
declarando que os Estados Unidos interviriam em qualquer país latino-
americano ou caribenho de cujo Governo não gostassem (...) No
começo do século XX, portanto, os motivos que guiavam a política
externa dos Estados Unidos pareciam dificilmente distinguíveis daqueles
das demais grandes potências, guiadas pela realpolitik e pelos interesses
comerciais”.
Perspectivas para as Relações Brasil-EUA no Governo Obama
As preocupações sociais de Obama harmonizam-se com muitos temas
de interesse da nova Secretária de Estado. Hillary Clinton estreou no cenário
nacional, ainda no começo do mandato do ex-Presidente Bill Clinton, com
uma campanha pela universalização do acesso à saúde que esbarrou no
obstrucionismo dos republicanos, mas que – reconhece-se hoje – teria
beneficiado os Estados Unidos se tivesse ido adiante. A competitividade da
indústria norte-americana, como se sabe, é prejudicada pela necessidade de
que cada empresa arque com grande parte dos custos de saúde e aposentadoria
de seus empregados. A privatização da saúde levou a um sistema que é o
mais caro entre os países desenvolvidos, mas que deixa sem cobertura médica
quase 50 milhões de norte-americanos, segundo o Bureau do Censo dos
EUA.
Hillary Clinton, em sua carreira como Senadora por Nova York e em sua
campanha presidencial, destacou-se, também, pela defesa dos direitos da
mulher, da infância, dos idosos e das populações mais vulneráveis. O primeiro
discurso do Presidente Obama no Congresso e o primeiro projeto de
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
29
orçamento refletem essas prioridades, com ênfase em saúde, educação e
energias limpas. Emerge, assim, quadro em que vários entre os principais
tomadores de decisão dos Estados Unidos – não só o Presidente e a Secretária
de Estado, mas também outros integrantes do Governo, como os Secretários
da Educação, Arne Duncan, Trabalho, Hilda Solis, e Saúde, a ex-
Governadora do Kansas Kathleen Sebelius – demonstram preocupação com
temas similares
aos que captam a atenção do Governo brasileiro.
Com a posse do novo Governo, os Estados Unidos voltam a se engajar
com o cumprimento das Metas de Desenvolvimento do Milênio das Nações
Unidas, objeto de ressalvas norte-americanas ainda recentemente, durante o
processo de preparação da 60ª Assembléia Geral, em 2005. Abre-se, assim,
espaço para a troca de experiências e a cooperação em temas sociais, entre
dois países com semelhanças não negligenciáveis: grandes, multiétnicos,
democráticos, federativos e preocupados com a superação da desigualdade.
Os Estados Unidos, como aponta o Ministro Roberto Mangabeira Unger, são
o país mais desigual entre os desenvolvidos e o Brasil, apesar dos significativos
progressos dos últimos anos, ainda está entre os mais desiguais, entre os países
em desenvolvimento. Isso pode ser encarado como uma oportunidade, na
medida em que o diálogo se dê, como tudo indica que ocorrerá nos próximos
anos, em ambiente de respeito pelas diferenças entre as experiências de um e
de outro país, tanto em âmbito federal, como Estadual e municipal.
Outra das prioridades reiteradas por Obama em seus planos de Governo
é a energia, em particular o desenvolvimento de fontes renováveis, a
conservação, a sustentabilidade e a diversificação das fontes de suprimento,
com a concomitante redução de dependências externas. Também nessa área,
o Brasil é visto como líder mundial. As conquistas do Brasil na esfera energética
são admiradas nos Estados Unidos e o desejo de parceria é perceptível,
tanto no Executivo como no Congresso e no setor privado. Note-se que uma
das nomeações mais ousadas e bem-recebidas do Governo Obama foi
justamente para o Departamento de Energia, para qual foi escolhido o físico
Steven Chu, o primeiro Prêmio Nobel a ocupar um posto ministerial nos
Estados Unidos. A indicação de Chu, comprometido com as fontes renováveis
e limpas de energia, foi geralmente interpretada como indicadora de nova
postura, mais cooperativa, no tema da mudança do clima.
As relações econômicas entre os dois países também se beneficiarão do
impulso positivo dos últimos anos. Entre 2000 e 2008, as exportações
brasileiras para os Estados Unidos passaram de US$ 13,2 bilhões para US$
ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA
30
27,4 bilhões (crescimento de 108%), ao passo que as importações foram de
US$ 12,9 bilhões para US$ 25,6 bilhões (crescimento de 98%), desempenho
mais dinâmico que o do intercâmbio com diversos países com os quais os
Estados Unidos mantém acordo de livre comércio. Em 2008, os Estados
Unidos foram o maior investidor externo no Brasil (US$ 7 bilhões) e também
o maior receptor de investimento externo brasileiro (US$ 4,8 bilhões). Os
estoques de investimento entre os EUA e o Brasil são significativamente maiores
que entre os EUA e os demais BRICs (China2, Índia e Rússia). Tanto o
Presidente Obama quanto a Secretária Clinton manifestaram interesse em
relações mais estreitas com o Brasil no plano econômico e comercial, como
se depreende, por exemplo, do apoio demonstrado por ambos à manutenção
do Fórum de Altos Executivos.
No tema prioritário do fortalecimento das instituições internacionais –
singularizado, como vimos, pelo Governo Obama como central – abre-se
espaço mais amplo de coordenação. Obama elevou a posição de
Representante Permanente junto às Nações Unidas ao nível ministerial, como
fora em alguns governos anteriores (mas não no de George W. Bush). A
indicada, Susan Rice, foi uma de suas colaboradoras mais próximas ao longo
da campanha eleitoral. Já em seu primeiro pronunciamento após a confirmação
no cargo, Rice indicou quatro prioridades: combate à pobreza, mudança do
clima, operações de paz e não proliferação. Em cada das áreas apontadas, o
Brasil é ator significativo. A cooperação entre os dois países nas Nações
Unidas poderá adquirir maior relevância em vista da projetada eleição do
Brasil para nosso nono mandato como membro eletivo do Conselho de
Segurança, em 2010-11. A participação do Brasil nos círculos decisórios
internacionais, proposição que vem ganhando apoio em Washington, abrirá
dimensões inéditas para o relacionamento bilateral.
O Presidente Lula recebeu telefonema do Presidente Obama, poucos
dias após sua posse, ocasião em que foi convidado para ser um dos primeiros
Chefes de Estado a visitar Washington. Obama foi convidado, na mesma
ocasião, a visitar o Brasil. Lula e Obama também estarão juntos na Cúpula
de Londres do G20 e na Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago. O
Ministro Celso Amorim e a Secretária de Estado Hillary Clinton conversaram
por telefone logo após a confirmação de Clinton pelo Senado norte-americano
e, em 24 de fevereiro, mantiveram uma reunião de trabalho que permitiu o
2 Excluído Hong Kong.
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA
31
mapeamento de áreas para futura intensificação do diálogo e da cooperação:
energia, mudança do clima, combate à pobreza, Haiti, Cuba, Oriente Médio,
fortalecimento e reforma das Nações Unidas, entre outras. A cooperação
triangular para a promoção do desenvolvimento em terceiros países,
aproveitando as capacidades complementares do Brasil e dos Estados
Unidos, já foi iniciada nas áreas de etanol e saúde e poderá estender-se a
outros campos, permitindo atuação conjunta em favor do progresso regional
e global.
Nada disso implica alinhamento automático ou coincidência absoluta de
posições. Não é impossível que ocorram dificuldades, por exemplo, na agenda
comercial, abalada no mundo inteiro pelo agravamento da recessão econômica
e pelo ressurgimento de tendências protecionistas. A finalização da Rodada
do Desenvolvimento de Doha, os subsídios agrícolas, a tarifa do etanol, a
relação entre propriedade intelectual e acesso à saúde, a renovação anual do
Sistema Geral de Preferências (SGP): todos esses são temas que continuarão
a merecer, como tem ocorrido, atenção e esforço da diplomacia brasileira.
Recentemente, tive acesso a duas análises sobre o relacionamento entre
os Estados Unidos e o Brasil, encomendadas a dois especialistas em relações
internacionais sediados em Washington. Ambos assinalam o momento de
oportunidade que se abre com a eleição de Barack Obama, em contexto
internacional no qual o Brasil emerge como uma democracia sólida e uma
economia em expansão. Com a multiplicação de contatos governamentais no
mais alto nível, a crescente interação dos setores privados e o envolvimento
da sociedade civil, as perspectivas que se abrem são efetivamente
promissoras. Ao beneficiar-se de ambiente de crescente respeito mútuo e de
novas afinidades políticas, a relação entre Brasil e Estados Unidos poderá,
nos próximos anos, trazer ganhos para as duas sociedades e, como propõe
David Rothkopf, constituir “uma das parcerias estratégicas internacionais que
serão chave” para o equacionamento das grandes questões de paz,
desenvolvimento e sustentabilidade da agenda internacional.
33
A Configuração Mundial do Poder, a Nova
Hegemonia Norte-Americana e Novo Governo
Obama
Gilberto Dupas1
Vamos investigar aqui algumas das questões fundamentais quando se
discute as condições cada vez mais complexas de governabilidade mundial
neste novo século. Apesar do duro legado do governo W. Bush, agora
dramatizado pela crise econômica mundial, parece claro que o mundo global
não pode prescindir das eventuais virtudes hegemônicas de sua maior potência,
até porque tão cedo não haverá quem possa substituí-lo. A maior qualidade
hegemônica é favorecer a governabilidade do sistema mundial, reconhecendo
diferenças, mediando crises e confrontos e possibilitando gestos simbólicos
em direção às nações e povos atingidos por excessiva exclusão e precariedade.
Se o novo governo Barak Obama não conseguir que os EUA assumam o
papel condizente com seu próprio poder, o que inclui antes de tudo a tolerância
com as diferenças e a busca permanente de consensos, teremos grandes
probabilidades
de um século marcado pelas dores de um duro retrocesso.
Não temos razões sólidas para supor que estaríamos no limiar de um abalo
mais profundo que ferisse os fundamentos do sistema capitalista, os famosos
1 Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente
do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor de vários livros, entre os
quais O Mito do Progresso; Atores e Poderes na Nova Lógica Global e Ética e Poder na
Sociedade da Informação. Foi professor visitante da Universidade de Paris (II) e da Universidade
Nacional de Córdoba e membro da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior
(CONAES). É também editor da revista Política Externa.
GILBERTO DUPAS
34
“sinais do outono”. Mas parece ter crescido progressivamente o número de
tensões que vão se acumulando em meio ao caminho, e pretendemos aqui
analisá-las.
A postura internacional dos EUA durante o governo W. Bush teve efeitos
complexos com relação ao futuro de sua condição hegemônica. A ação
terrorista de 11 de setembro, destruindo símbolos de seu poder econômico,
militar e político, foi um trauma imenso para os norte-americanos. Mas, para
além da brutal e humilhante surpresa de um ataque ao coração da grande
potência mundial, haveria suficiente inovação no grande atentado para justificar
que, a partir dele, o mundo teria mudado? E que seria necessária uma nova e
dura doutrina hegemônica de segurança? A suposição de uma privatização
das armas de destruição em massa por grupos não estatais pode ser muito
assustadora. Mas o 11 de setembro não parece diferir muito de um atentado
clássico. As armas foram aviões de companhias aéreas norte-americanas,
em vôo regular. Atos kamikases também não são novidades. No entanto, o
impacto dos atentados foi tão violento que justificou o brado guerreiro “os
que não estão conosco, estão contra nós”. Tratou-se de uma enorme escala
retórica se a compararmos com a frase que Madeleine Albright gostava de
repetir no governo Clinton: “Nós voamos mais alto, vemos de cima, e sabemos
o que é melhor para o mundo”. O trauma do 11 de setembro foi tão profundo
que não houve nenhuma resistência interna ao aumento massivo do orçamento
da defesa implementado pelo governo. O forte apelo patriótico e a
solidariedade resolveram a questão. No entanto, se olharmos um pouco para
trás, desde os anos 1990 certa arrogância tem predominado naquele país,
acentuada pela fantasia de Francis Fukuyama de que o fim da história – sob
a égide do triunfo americano – levaria o mundo inteiro a agir segundo seus
preceitos e valores. Mas o período de unanimidade está terminando. Da
mesma maneira que a economia americana é regida por ciclos mais amplos e
brutais que os dos países europeus, o espírito público americano passa também
por fases de grande arrebatamento seguidas por ondas de pesada autocrítica,
como foi a guerra do Vietnã, agora culminando com a eleição de Obama.
A doutrina W. Bush: origens e contradições
O maniqueísmo do bem e do mal sempre foi poderoso entre os norte-
americanos. Por sua longa tradição democrática, os políticos precisam justificar
seus objetivos de política externa primeiro dentro do país. E a manipulação
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
35
da questão do inimigo, do poder imoral e quase satânico que ameaçaria os
valores e a segurança da América vem sendo uma prática tradicional, como
se viu na Guerra Fria. O discurso fundamentalista da equipe de W. Bush tem
raízes mais profundas, até porque – após o colapso do império soviético – é
inverossímil acreditar que Afeganistão, Coreia do Norte, Iraque e Irã pudessem
de fato ameaçar os EUA. É preciso lembrar que as escolhas estratégicas dos
EUA pós-11 de setembro já estavam a caminho na campanha eleitoral para
a sucessão de Clinton. Basta ler ensaios de Condoleezza Rice e Robert B.
Zoellick, ainda em 2000, para verificar que aqueles conceitos republicanos
para uma nova política externa norte-americana estavam todos presentes em
artigo do secretário da defesa Donald H. Rumsfeld, que justificava a guerra
contra o terrorismo. É claro que os atentados provocaram a campanha contra
o Afeganistão e o Iraque, com modificações consequentes no equilíbrio da
Ásia Central e do Sul. Porém, o intervencionismo e o isolacionismo já eram
claras tendências nas duas décadas finais do século passado. Vários conceitos
vêm do governo Clinton. O “eixo do mal” (Iraque, Irã e Coreia do Norte)
são os mesmos “Estados bandidos” (rogue States) de Clinton. Com a questão
terrorista tendo centrado seus atos, Bush pôde mostrar-se de corpo inteiro.
Em artigo ao The New York Times, Bill Keller fez um balanço do que achavam
de Bush seus pares conservadores. Eles o julgavam essencialmente um
moralista, cujos ataques de setembro trouxeram à tona o missionário,
“convertido do álcool e da vida desregrada, para Deus e para a vida
doméstica”, o qual achava que todos são capazes de fazer o mesmo. Keller
classifica o moralismo de Bush ambicioso e messiânico, “convencido de que
o maior projeto dos EUA é combater o mal e implantar o que chama de
‘valores universais’ em todo o mundo”. Norman Podhoretz, influente autor
conservador, acredita que o objetivo estratégico do presidente era “mudar o
regime de seis ou sete países e criar condições que levassem à reforma interna
e à modernização do mundo islâmico”. Tratar-se-ia, obviamente, de um
objetivo arriscado e prepotente, que nos remete a uma discussão sobre
responsabilidades hegemônicas que farei mais tarde.
O que o 11 de setembro permitiu foi a aceleração de um rumo já traçado
pela administração Bush, juntando republicanos e democratas para apoiar as
escolhas estratégicas mais agressivas da administração republicana e
acelerando a “guerra contra o terrorismo”. Nessas novas ações ofensivas,
Washington preferiu ter o suporte de uma coalizão; mas enfatizou que isso
não era um pré-requisito para a operação. A “Estratégia de Segurança Nacional
GILBERTO DUPAS
36
dos Estados Unidos” encaminhada ao Congresso por Bush deixava claro
que seu governo pretendia agir preventivamente contra atos de terrorismo e
que “não vamos hesitar em agir sozinhos”. É o que, de alguma forma, já havia
ocorrido na Guerra do Golfo e no Afeganistão. Alguns falcões do Pentágono
– mas, principalmente Rumsfeld e Wolfowitz – eram contra uma colaboração
européia, com envolvimento da OTAN, que introduziria considerações
diplomáticas ou políticas em detrimento da eficácia operacional. No entanto,
uma parte dos militares achava que as restrições às ineficiências das operações
de campo vinham do próprio Pentágono e de sua imensa burocracia. Essa é,
aliás, a opinião de Eliot A. Cohen. Ele analisa as dificuldades de promover
mudanças quando está em jogo o conservadorismo militar. Mostra, também,
que a designação de funcionários civis sem preparo e especialização deixa o
Pentágono excessivamente nas mãos da estrutura militar, que defende suas
respectivas Forças em detrimento de uma ação estratégica conjunta.
O ataque aos EUA deixou à mostra as condições das alianças norte-
americanas na região de influência islâmica. Paquistão, Egito e Arábia Saudita,
que forneceram o grosso dos militantes do Al-Qaeda, eram considerados
aliados dos EUA; o Irã, que aparentemente não forneceu nenhum, foi acusado
de principal suporte do terrorismo. A China, considerada a ameaça do século
XXI, deixou de sê-lo. Além do mais, a radicalização do terrorismo parece
mais um fenômeno também interior ao Ocidente e a seus aliados próximos
(Arábia Saudita e Paquistão) do que exportação do “eixo do mal”. A maior
parte dos integrantes do Al-Qaeda são re-islamizados ou vieram do Ocidente;
encontram-se santuários terroristas em New Jersey e nas periferias londrinas
e parisienses.
As reflexões sobre as raízes profundas do terrorismo continuam
bloqueadas entre os americanos. São sumariamente rejeitadas associações
com a humilhação vivida
pelos árabes, o conflito Israel-Palestina e a ação
norte-americana contra o Iraque. Havia duas ideias fixas: o suporte absoluto
a Israel e a obsessão de derrubar Saddam Hussein acertando velhas contas,
ainda que ao preço de levar a região ao caos e promover hostilidades entre
europeus. A relação entre terrorismo e pobreza também sempre foi rejeitada,
já que ele tem vindo de classes médias ocidentais. Não se cogita da ideia da
solidariedade ideológica com os pobres, das cicatrizes da colonização, da
imigração e da marginalização, nem das realidades presentes no Oriente
Médio. Como o radicalismo se alastrou entre muçulmanos que vivem no
Ocidente, também foi eliminada a hipótese de que o apoio a regimes autoritários
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
37
(Argélia, Arábia Saudita e Tunísia) bloqueia o desenvolvimento de um Islã
moderno e liberal. Sobrou, então, a questão culturalista do tipo “o problema
é o Islã”. Os americanos achavam, de maneira simplista, que a solução pode
ser alcançada, em alguns anos, com o uso da força e de ações políticas
concretas. A tese principal seria a incompatibilidade do Islã com os valores
da América. Daniel Pipes, por exemplo, fazia ligação entre imigração e
terrorismo, apoiava as medidas anti-imigração europeias e introduziu a questão
do crescimento demográfico palestino e da comunidade muçulmana nos EUA.
São teses assemelhadas às da extrema direita francesa e austríaca.
A doutrina W. Bush assumiu parte dessas ideias ao radicalizar o discurso
contra os “inimigos”, como consta da “Estratégia de Segurança Nacional dos
Estados Unidos” enviada rotineiramente pelo governo ao Congresso. Assumiu
o terrorismo como tão ilegítimo quanto a “escravidão, a pirataria e o
genocídio”, e deu-se ao direito de “agir sozinho” de maneira preventiva e
antecipada em qualquer lugar no mundo, deixando claro que “nunca permitirá
que outro país desafie sua superioridade militar (...) ameaçada agora pelos
países mais fortes do que pelo mais fracos”. Por outro lado, falava em “apoiar
os governos moderados, especialmente no mundo muçulmano, para assegurar
que as condições e ideologias que promovem o terrorismo não encontrem
terreno fértil em nenhuma nação”. O que permitiu espaço não para atacar
indiscriminadamente o Islã, mas para apoiar o “bom” Islã contra o “mau”. O
problema central está contido no maniqueísmo ultra-redutor e implícito à
definição de “bem” e de “mal”, associado a atitudes belicosas unilaterais. A
respeito da nova doutrina, em editorial de setembro de 2002, o The New
York Times advertia que “quando essas estratégias belicosas se convertem
no tema dominante da conduta americana, a nação corre o risco de afastar
de si os amigos e solapar justamente os interesses que Bush procura proteger.
Líderes fortes e confiantes não precisam ser arrogantes. Na verdade, a
arrogância subverte a liderança eficiente. (...) Bush precisa tomar cuidado
para não converter os EUA em uma fortaleza que inspire a inimizade, em vez
de inspirar a inveja ao mundo”.
Usando uma retórica alternativa, eventualmente mais sutil, Richard Haass,
Ex-Diretor de Planejamento do Departamento de Estado, propôs “integrar
países e organizações de forma a promover um mundo em harmonia com os
interesses e valores americanos”. O pressuposto é que esses “valores
americanos” coincidiam com o de outros países, na medida em que são
supostos universais, impondo-se sem necessidade de negociação. Essa ideia
GILBERTO DUPAS
38
foi também defendida por Paul Wolfowitz, ex-secretário-adjunto da Defesa:
“Para ganhar a guerra contra o terrorismo e ajudar a construir um mundo
pacífico, devemos falar às centenas de milhões de pessoas tolerantes
moderadas do mundo muçulmano, já que elas vivem e aspiram usufruir os
benefícios da liberdade, da democracia e da livre iniciativa. Esses valores são
descritos como ocidentais, mas, de fato, são uma aspiração comum da
humanidade”.
A proposta de Wolfowitz era desenvolver um Islã moderado e liberal,
compatível com as aspirações dos que vivem no Ocidente. São ideias que se
oporiam ao crash de civilizações, no pressuposto de que haveria uma só
civilização, sendo o resto barbárie. Wolfowitz dizia que é preciso pôr de pé o
Islã moderado, isolando o radical, e mover uma guerra ideológica contra os
radicais – como foi feita contra o comunismo – envolvendo intelectuais, artistas
e sindicatos. Tratava-se de uma nova guerra de propaganda e de uma
engenharia social que promoveria os valores da administração americana:
democracia, direitos dos homens, livre comércio, livre iniciativa. O pressuposto,
mais uma vez, é que o monopólio da verdade faz esses valores universais.
Clinton colocou, então, a seguinte questão: “Podemos ser donos da verdade
inteira, ou devemos nos unir a outros na busca pela verdade?”
A constituição de um Islã moderado, made in West, tinha como premissa
que vários dos quadros radicais mais importantes são formados no Ocidente,
não nos mollahs; que eles vinham dos moldes ocidentais, não das madrasas.
E que a radicalização não brotaria necessariamente de um ensinamento
religioso, mas seria consequência das complexas frustrações que afetam tanto
intelectuais laicos como nacionalistas. Os radicais seriam também um produto
das decepções, marginalizações e diluições de identidades, fruto da
globalização e da ocidentalização do mundo. Eles buscariam uma forma
desesperada de romper com o consumismo desenfreado, a sociedade
performática e o sentimento de exclusão. Esses radicais adorariam suas teses
de corpo e alma; e captavam ampla simpatia e solidariedade, especialmente
quando se mostram dispostos a pagar o preço do martírio.
Apesar de aparentemente bem articulada em torno da “nova doutrina de
segurança”, a política dos EUA nos anos W. Bush – examinada de maneira
mais rigorosa – parece uma colcha de retalhos de decisões anteriores ao 11
de setembro, envolvendo considerações ideológicas, interesses contraditórios
e voluntarismo moralizante. Ocultando-se sob um discurso de valores, ela se
apresentava revestida de uma coerência que não se sustentava. Esse discurso
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
39
tentava mascarar e conciliar componentes contraditórios. Com isso, induzia
os outros países e forças públicas a ratificar certos princípios difíceis de rejeitar
de imediato e tenta criar espaço para a força bélica norte-americana – logística
e financeiramente auto-suficiente – operar livremente em qualquer parte do
mundo em intervenções pontuais. O rescaldo da ocupação, política e
operacionalmente muito complexo, era deixado – sempre que possível – a
cargo dos europeus ou de organizações internacionais. É o caso do Kosovo,
do Afeganistão e da Palestina. E, talvez agora, no Iraque.
A nova moral hegemônica definia os campos com muita clareza. De um
lado, “o direito e a democracia”; de outro, “as forças do mal”. O que significa
a volta a uma retórica maniqueísta que redivide o mundo entre “bons” (aqueles
que estão com os EUA) e “maus” (aqueles que estão contra ou hesitam). Na
realidade, para além do aparente monolitismo desses conceitos, essas
categorias transitórias são fortemente impregnadas de Realpolitik em função
dos “interesses superiores da nação”. Essa situação tem criado espaços e
margem de manobra para os atores regionais acomodarem seus objetivos.
Um triste exemplo é a situação do Oriente Médio. Em todo o período
subsequente à criação do Estado de Israel e ao início do conflito entre palestinos
e israelenses, os EUA mantiveram grande influência sobre a região na condição
de grandes operadores da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial e fiel
depositário do novo equilíbrio ocidental em torno das instituições de Bretton
Woods. Embora mais identificados com os interesses de Israel – e acusados
disso muitas vezes pelos grupos palestinos –, ainda assim sucessivos governos
norte-americanos tinham se empenhado para evitar uma situação muito crítica
na região,
inclusive na época da Guerra Fria. Bill Clinton esteve prestes a
arrancar um acordo que poderia ter posto fim ao conflito. Ehud Barak havia
quebrado um tabu ao oferecer a divisão de Jerusalém, mas Yasser Arafat –
pressionado no seu front interno e com pouco espaço de manobra – acabou
não viabilizando um entendimento. No entanto, a situação internacional norte-
americana após os atentados de setembro foi profundamente danosa para a
situação no Oriente Médio. A radicalização do discurso de Bush sobre a
questão terrorista deu pretexto a um brutal endurecimento do regime de Israel,
perdendo os EUA legitimidade para funcionar – senão como árbitro – pelo
menos como capaz de conter os impulsos agressivos de parte a parte,
especialmente de Israel. Sharon considerou-se, então, livre para tentar liquidar
– a sua maneira – a autoridade palestina. Na realidade, vários atores regionais
imediatamente procuraram adaptar seus interesses a essas novas circunstâncias
GILBERTO DUPAS
40
da lógica do poder mundial. Alemães e japoneses aproveitaram a
oportunidade para se livrar das últimas restrições dos acordos de pós-guerra
que limitavam investimento militar. A Inglaterra movimentou-se rapidamente
para o espaço de grande aliado dos EUA na Europa, deixando claro a franceses
e alemães que não aceita um papel secundário nas discussões centrais na
nova Europa. E a Rússia, enquanto flerta com o “eixo do mal” fazendo acordos
comerciais com o Iraque e a Coreia do Norte, negociava “apoio” norte-
americano para suas estratégias agressivas na Tchetchênia e na Geórgia.
Na verdade, o sentimento de brutal fragilidade despertado pelos
atentados aos EUA revelou um país violentamente defensivo e sem projeto
sistêmico ou de governança global, papel inalienável da sua condição
hegemônica. Mas há outra importante faceta dessa questão. A nova doutrina
W. Bush também foi uma resposta à globalização. Fazendo desaparecer o
espaço de ação dos Estados nacionais, a globalização destruiu o conceito
de espaço estratégico. Sobrou muito pouco a negociar em termos de
territórios, de esferas de influência ou de interesses vitais com a perda de
autonomias nacionais. Como se pode negociar – ou dissuadir – os novos
terroristas se eles não representam Estados e não têm nada a perder e nem
senhores a quem dar satisfação?
Os complexos caminhos da hegemonia norte-americana
Nações hegemônicas sempre defenderam teses que interessam mais a si
próprias que ao sistema de nações sobre o qual exercem seu controle. Mas
é condição de exercício da hegemonia que os países que são parte do sistema
achem que essas teses também lhes interessam de alguma forma. Caso
contrário, a hegemonia teria que ser substituída por coerção. É esse o perigo
que os EUA e o mundo correm no momento em que teses unilaterais parecem
dominar as ações da grande potência mundial. Assim, recoloca-se a questão
do papel hegemônico.
Analisando os ciclos hegemônicos, Fernand Braudel constatava que,
sempre que os lucros do comércio e da produção se acumulavam além dos
canais possíveis de investimento, este era um “sinal do outono”. As expansões
financeiras daí decorrentes provocavam duas tendências complementares:
hiperacumulação e competição intensa por capital. Expansões do comércio
e da produção muito rápidas e lucrativas geravam forte concorrência e, por
sua vez, tenderam a acumular lucros superiores à capacidade de investir. A
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
41
consequência era o crescente acúmulo de rendimentos e a criação de uma
grande liquidez. As taxas de retorno em queda na atividade comercial e de
produção geravam restrições orçamentárias que aumentavam a competição
pelo capital e poderiam elevar as taxas de juros. Nesses processos, fortes
redistribuições de renda aconteciam a favor dos detentores da liquidez,
sustentando uma atividade financeira divorciada da produção.
As expansões financeiras inflavam temporariamente o poder do Estado
hegemônico em declínio, já que ele mantinha o acesso privilegiado da liquidez
que se acumulava nos mercados financeiros mundiais. Essas expansões de
liquidez, no entanto, acabavam transferindo o capital para novos sistemas
emergentes com maiores perspectivas de segurança e lucro que os dominantes
até então. Na transição, a crescente desorganização sistêmica diminuía o poder
de ação da potência hegemônica em crise e aumentava a demanda por
governabilidade mundial a quem pudesse oferecê-la. Se surgissem novas
estruturas governamentais e empresariais com maior competência organizacional,
estariam abertas as condições para uma nova hegemonia. Esses padrões de
repetição – hegemonia levando à expansão, expansão ao caos e caos à nova
hegemonia – verificaram-se nas transições hegemônicas do passado.
Os holandeses haviam construído a sua liderança como mercadores e
não como soldados. No entanto, três guerras sucessivas contra os ingleses
entre 1652 e 1674 os obrigaram a aceitar o monopólio britânico na navegação
e ceder o controle do tráfico de escravos na África Ocidental. Isso fez os
portos ingleses superarem Amsterdã; e suas indústrias cresceram rapidamente
com a ajuda do mercado triangular no Atlântico (escravos, matérias-primas e
manufaturas). Derrotada a ameaça francesa nos mares e depois em terra –
na desastrada campanha russa de 1812 – o espaço estava livre para a
imposição da Pax Britannica com o Tratado de Viena (1815), que conduziu
a Europa a uma paz de cem anos (1815-1914). A concepção inglesa de
equilíbrio do poder foi construída devolvendo parte das Índias Orientais e
Ocidentais à Holanda e França, colocando-se como protetora do comércio
marítimo, liberalizando unilateralmente o seu comércio, barateando o custo
de produtos essenciais e criando meios de pagamento para a compra de
produtos industrializados ingleses. Com isso, um número crescente de países
pôde se encaixar numa benéfica divisão internacional de trabalho que
preservava a centralidade comercial inglesa.
A derrota de Napoleão já havia alterado radicalmente as relações de
força na América do Norte, permitindo aos colonos abrirem mão da proteção
GILBERTO DUPAS
42
inglesa e preparar sua independência. Nas guerras do final do século XIX,
por sua vez, técnicas de produção em massa foram aceleradas, a partir da
Guerra da Crimeia, com uso do sistema de fabricação americano de usinagem
automática, exibido na Grande Exposição de Londres em 1851. O navio a
vapor mudou a lógica militar. E o mundo ficou repleto de nações industrializadas.
Já no século XX, quando a Primeira Guerra Mundial começou, o custo
das vitórias que contiveram a Alemanha precipitou o declínio inglês em favor
dos EUA. Assim que liquidaram sua dívida com a receita das armas, a liquidez
americana se converteu em empréstimos domésticos e internacionais em
grande escala. A Segunda Guerra fez despertar o poder mundial centrado
nos EUA, liquidados temporariamente Alemanha e Japão e enfraquecidas a
Inglaterra e a França. Concebida por Roosevelt, a ordem mundial norte-
americana pós-guerra estava imbuída da mesma ideologia de segurança que
havia impregnado o seu New Deal interno. A ONU e o FMI tornaram-se o
núcleo de um governo mundial dominado pelos EUA. Truman conseguiu
utilizar-se plenamente do pretexto da Guerra Fria para concretizar uma visão
“livre-mundista” voltada contra o perigo soviético. A partir de 1970, com a
humilhante derrota no Vietnã e sintomas de crise no sistema monetário centrado
em Bretton Woods, a hegemonia americana apresentou alguns sinais de perda
de dinamismo. Mas a surpreendente derrocada soviética deu-lhe novo ímpeto.
Cada reorganização do sistema de poder mundial havia acarretado
mudanças nas relações entre o capital e o Estado. A concessão de monopólio
esteve na base da enorme acumulação tanto nas companhias de comércio e
navegação holandesas do século XVII como nos fabricantes ingleses do século
XIX. Já a grande empresa verticalizada vinda da
tradição fordista do início
do século XX sofreu uma revolução a partir dos anos 1980, com a tecnologia
da informação permitindo o fracionamento das cadeias produtivas globais e
a flexibilização da produção a partir das parcerias e terceirizações utilizando
os novos conceitos de redes. A empresa transnacional norte-americana, tal
como sua ancestral mercantil, tem desempenhado papel fundamental na
ampliação e manutenção do poder dos EUA. As análises sobre a natureza
do enorme deficit comercial norte-americano deixavam claro que ele é
provocado pela imensa dispersão da atividade produtiva das empresas
sediadas no país – que exportam mais a partir de suas filiais externas do que
de sua sede continental – e não, obviamente, por problemas de
competitividade. A vitalidade das corporações globais é intensa. Mas a enorme
concentração e a transnacionalização dessas empresas e do sistema financeiro
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
43
geraram um sistema global pouco sujeito à autoridade estatal e com poder
sobre as nações mais poderosas do mundo, diminuição dos empregos, piora
do perfil de renda e deficits externos estruturais crescentes nos grandes países
da periferia. Os graves problemas dos cidadãos, que provocam demanda
locais, vão se distanciando cada vez mais da possibilidade de ação dos
mecanismos estatais, ocasionando crescente perda de capacidade reguladora
desses Estados nacionais.
A anatomia do capitalismo e suas crises
Os conflitos entre capital e trabalho são estruturais e permanentes. Em
Bretton Woods aceitou-se que os governos usassem políticas monetárias
como instrumento de redução do desemprego. Truman acreditava que o
conflito capital-trabalho poderia ser domesticado pela aplicação vigorosa
dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos.
No passado, como lembram Beverly J. Silver e Eric Slater, as transições
hegemônicas haviam convivido com crescentes conflitos sociais. Eles
moldavam, em meio aos colapsos, os pactos sociais que sustentariam a nova
hegemonia. Atualmente, os EUA controlam o poder militar; o Japão e os
chineses de além-mar detêm a liquidez; e a República Popular da China
possui a mão de obra barata, alta produtividade industrial, grandes reservas
e é sócia essencial do capitalismo global. Esse arranjo estrutural sem
precedentes, que parecia manter em relativo equilíbrio as estruturas de poder
mundial, foi atropelado pela crise econômica global e torna mais complexa a
investigação do eventual declínio hegemônico norte-americano.
Mas uma questão de fundo se sobrepõe a essa análise. Há sinais de crise
sistêmica e estrutural no capitalismo global? Sabemos que estudar o
capitalismo é investigar a morfologia dos seus ciclos e crises. Sua história é
uma alternância entre otimismo e desalento, crescimento e recessão, a
depender da qualidade das regras e instituições presentes em cada uma dessas
etapas. A proposta do pós-guerra, influenciada por ideias keynesianas, era
constituir uma nova ordem internacional propiciando amplo raio de manobra
para políticas nacionais de desenvolvimento. Seguiu-se a era dourada das
décadas 1950 e 1960. Em 1971, no entanto, Nixon suspendeu a
conversibilidade do dólar em ouro. Uma de suas consequências foi a profunda
redução do poder de compra dos países exportadores de petróleo, em função
da erosão do dólar. A alta de preços provocada pelo cartel do petróleo em
GILBERTO DUPAS
44
1973, e agravada em 1979, provocou ondas depressivas na economia
mundial, especialmente nos importadores de petróleo que tiveram que arcar
com um forte endividamento para manter equilibradas suas reservas. A
abundância dos chamados petrodólares facilitou a reciclagem financeira desses
países mediante crédito fácil. Mas a adoção da taxa de juros flutuantes, junto
com o crescimento das dívidas, introduzia um fator importante de instabilidade
no cenário.
O declínio do “consenso keynesiano” resultou na elevação das taxas de
juros americanas em outubro de 1979. A partir daí, cresceu o patamar
inflacionário geral, criou-se o euromercado pelo excesso de dólares e
finalmente substitui-se o regime de taxas fixas de câmbio pelo câmbio flutuante.
A primeira grave crise internacional dos anos 1980, iniciada com o colapso
da dívida externa latino-americana, tem a ver, pois, com o novo nível de
estoque dessa dívida, agravada, principalmente, pela decisão dos EUA de
aumentar fortemente os juros. No período 1981-1990, por conta de
profundos ajustes recessivos, o crescimento da renda per capita da América
Latina foi negativo. No final da década, reconhecendo a incapacidade de
pagamento de vários países, os EUA lideraram no G-7 os planos Baker e
Brady e operaram descontos no valor nominal e nos juros dos empréstimos
contraídos durante a década.
Os anos 80 inauguraram a era dos mercados financeiros livres. A
afirmação da supremacia dos mercados gerou uma onda de crises que varreu
as duas décadas seguintes e permanece até hoje. Ela iniciou com o crash da
Bolsa de Valores em 1987, continuou com a quebra dos mercados imobiliários
em 1989, o colapso da Bolsa de Tóquio em 1990, os ataques especulativos
às moedas fracas europeias em 1992 e 1993 e a crise dos bônus americanos
em 1994. Nesse mesmo ano, a grande volatilidade dos fluxos internacionais
acabou tendo um duro teste na crise cambial mexicana no final de 1994,
provocando efeitos regionais perversos na Argentina e no Brasil. Mais para o
final da década, veio a crise asiática, provocada por uma reversão do fluxo
internacional de recursos aos países da região, abundantemente irrigados por
financiamentos e investimentos em função de seus desempenhos econômicos
considerados até então diferenciados. Seguiram-se desvalorizações intensas
na Tailândia, Malásia e Coreia, com repercussões em toda a área. Em seguida
veio a crise russa, que se superpôs à segunda fase da crise asiática, e foi
coroada com a moratória de 1998. Finalmente, a década terminou com nova
crise brasileira. Em 2001 estourou o colapso argentino, após anos de estrito
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
45
cumprimento das recomendações das instituições internacionais, obrigando
o país a abandonar a paridade, provocando uma desvalorização de 200%
em sua moeda e o desmoronamento do seu sistema financeiro. Ao mesmo
tempo a Turquia entrava em forte declínio, exigindo rápido suporte do FMI
para controlar uma situação precária da qual não saiu até agora. Depois o
Brasil passou a ser a grande fonte de preocupação mundial, não só pela
fragilização dos seus fundamentos mas, principalmente, por efeito da turbulência
das eleições presidenciais que elegeram Lula e que levantavam suspeitas que
mostraram-se sem sentido.
As grandes questões sem resposta
Hobsbawm acha que a doença ocupacional de uma superpotência é a
megalomania; e que os EUA terão que aprender as limitações de poder,
como os ingleses fizeram no século XIX. Mas a crise econômica que sucedeu
ao estouro da “bolha tecnológica” na Bolsa de Valores norte-americana, com
repercussões em todo o mundo, acrescenta um ingrediente novo e faz algumas
questões de fundo se colocarem. Estaríamos diante de sinais de declínio da
hegemonia norte-americana, tal como ocorreu com a holandesa no século
XVII, ou com a britânica ao final do século XIX? Por outro lado, será que o
mesmo modelo de nação hegemônica, organizadora e reguladora do espaço,
continuará a prevalecer na era da informação? Estaria a despontar da atual
turbulência global uma nova estrutura hegemônica? Ela seria da mesma
natureza da que foi rompida?
Fernand Braudel dizia que não há capitalismo vigoroso sem um Estado
forte que esteja a seu serviço. Atualmente, os imensos fluxos de capital privado
e a lógica dos blocos regionais impõem restrições cada vez mais rigorosas às
políticas econômicas. No entanto, teria sido muito diferente de hoje a relação
básica entre Estados e grandes corporações nos ciclos hegemônicos
anteriores? Mais
do que em qualquer outro período da história econômica,
as tentativas de estabilizar o crescimento econômico estão severamente
limitadas por uma total anomia e pela perda de capacidade regulatória das
instituições internacionais. E a confiança na inovação tecnológica como motor
da acumulação capitalista foi temporariamente posta em dúvida pelo colapso
do preço das ações das empresas de ponta tecnológica, que havia justificado
expectativas absurdas de taxas de retorno de investimentos, criando um estado
de exaltação inconsequente quanto ao futuro do capitalismo. Será possível
GILBERTO DUPAS
46
aos EUA – com a ajuda dos órgãos internacionais fortemente dependentes
de sua influência (ONU, OMC, BIRD e FMI) – reconstruir um poder
regulatório da ordem mundial, incluindo nesse poder os fluxos financeiros
globais que, em sua brutal autonomia, movimentam-se aos solavancos,
provocando enormes danos e tumultos nos países mundo afora?
A crise, o novo Governo Americano e a configuração mundial do poder
A crise sistêmica desencadeada a partir de setembro questionou alguns
dos fundamentos do capitalismo global. A partir dos anos 1980, o fim da
polarização ideológica e a acesso aos mercados globais haviam levado a
uma profunda transformação na política e na economia. Os Estados nacionais
tornaram-se atores mais frágeis e as grandes corporações globais impuseram
o seu estilo de busca de lucro a qualquer preço, operando nas zonas cinzentas
do mercado e fragmentando sua produção mundial. Esse foi, aliás, o caminho
da incorporação da China ao processo capitalista, do qual se tornou parceira
muito relevante e a mais recente florescência do modelo americano. As
questões relativas à regulação passaram a ser rejeitadas como indesejáveis
resíduos arcaicos que tentavam limitar o vigor do capitalismo vencedor. A
crise atual provocou uma reviravolta momentânea nesses conceitos.
Neoliberais viraram keynesianos e governos democráticos dos países líderes
mundiais alocaram volumes equivalentes a quase 20% dos respectivos PIBs
para socorrer bancos e empresas submetidas a gestão temerária, sob a
justificativa parcialmente verdadeira de que estão protegendo casas, poupanças
e empregos da população. Enquanto isso, Alan Greenspan, pedia desculpas
ao mundo por não ter percebido que o mercado tinha virado um cassino e
exigia controles.
A erosão da confiança dos cidadãos em seus dirigentes e nas instituições
políticas é o principal problema das democracias atuais. O individualismo se
exacerbou, a esfera pública se erodiu e os interesses privados se impuseram
nos altares do mercado. As segundas hipotecas e os subprime só ocorreram
porque os cidadãos norte-americanos foram induzidos ao consumo conspícuo
pela propaganda, supondo que a escalada absurda de preços dos seus imóveis
seria permanente. O mundo macroeconômico havia entrado numa fase de
alta complexidade onde dominam opiniões tecnocráticas muito distantes da
sensibilidade do cidadão-consumidor; o capitalismo financeiro global
aproveitou-se disso e vendeu-lhe fantásticas miragens.
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
47
A crise também tem a ver com o mundo vivendo acima dos seus meios.
A era da abundância em recursos naturais já havia terminado há dez anos.
Cientistas respeitáveis alertavam que mais alguns passos da humanidade na
direção errada - e a degradação ecológica poderia ser irreparável, vitimando
gerações futuras. Mas o poder econômico continuava garantindo que as novas
tecnologias “dariam um jeito”. A questão é de quem são as escolhas; e a
quem elas beneficiam. Como conseguir uma mudança radical de modelo de
produção, com a redução do consumismo desenfreado e do sucateamento,
se o mercado livre é a lei e os grandes atores econômicos têm total liberdade
de definir a direção dos vetores tecnológicos? Alguém acredita que o próprio
mercado possa se auto-regular? Quem vai ser capaz de enfrentar a batalha
gigantesca de reconversão da lógica privada de produção em nome do futuro
da civilização?
Howard Davis, diretor da Escola de Economia de Londres, descreve o
kafkiano conjunto de uma centena e meia de entidades e comitês internacionais
que até aqui faziam de conta que controlavam o sistema financeiro
internacional. E defende regras duras para amarrar as partes soltas do sistema,
incluindo seus buracos negros, e a exigência aos bancos de comportamentos
contra cíclicos como capitalização obrigatória quando os preços de mercado
atingem valores acima das médias.
A crise iniciada em 2008 pelo colapso do sistema financeiro pode, de
fato, gerar uma nova era de regramento do lado desenfreado do capitalismo
global? Quem serão seus agentes? Políticos movimentam-se de forma
hiperativa, outorgando-se poderes de épocas de guerra; mas ainda estão tão
perdidos como os economistas e intelectuais. Suas posições oscilam entre a
antevisão “das folhas de outono” do fim do capitalismo até a assunção de
que esta é uma mera crise de ajuste e será resolvida com certa socialização
de prejuízos e alguma regulação. Mas a sua verdadeira natureza é tão
complexa que conduz a uma cegueira relativa. Ulrich Beck diz que o
comportamento atual das autoridades mais lhe parece a daquele bêbado que
procura sua carteira perdida em meio à noite escura com o facho de uma
lanterna. Ao ser perguntado “É mesmo aqui que você a perdeu?” ele responde:
“Não; mas a luz dessa lanterna me permite ao menos continuar procurando”.
Beck lembra que risco e dano não significam necessariamente catástrofe,
mas que a percepção dos seus efeitos futuros em áreas críticas como clima,
finanças ou terrorismo, instaura um estado de exceção ilimitado que transcende
a escala nacional para a dimensão universal. O problema é que a legitimidade
GILBERTO DUPAS
48
de uma ação cosmo-política face às crises globais depende muito do foco
das mídias, que só as abordam quando elas viram catástrofes.
Em suma, essa crise tanto pode ser de fundamentos quanto de forma; ou
de ambos. Muitas águas ainda rolarão sobre as escoras do capitalismo global;
e algumas dessas escoras ainda podem cair com a força das correntes.
Estruturas e equilíbrios de poder irão se alterar tanto na política como na
economia, e muito exigirão de seus atores principais. Especialmente de Barack
Obama, tido como analista frio e construtor de consensos. Porém sua equipe
é apenas uma reconstituição completamente da época Clinton, com alguns
toques do Bush e dos jovens seguidores de Obama. Esperava-se por
mudanças mais radicais, mais a ética da convicção outra vez cede à ética da
responsabilidade. Bastará para o tamanho do desafio? Obama já respondeu
às críticas de sua ala mais à esquerda que clamava por mudanças com uma
frase emblemática: “a mudança sou eu!”
E o que pode mudar no papel estratégico da América Latina? Em editorial
recente, o NYT falava de uma oportunidade única para o novo governo
incrementar laços com uma região que supre os EUA com um terço das suas
importações de óleo, a maioria dos seus imigrantes e quase toda a cocaína
que consome. Os líderes latino-americanos querem saber se Washington vai
agora falar a sério sobre política de energia, integração econômica, imigração
e tráfico de drogas. O NYT propõe acabar com o embargo sobre Cuba e
aproveitar o enfraquecimento de Chávez com políticas ativas de ajuda
envolvendo também Nicarágua, Honduras e toda a região. Finalmente, pede
tarifa zero ao etanol brasileiro.
O relatório do National Intelligence Council, preparado a cada quatro
anos pelo núcleo duro do establishment de segurança dos EUA está pronto
para ser entregue a Obama e diz que “o país ainda joga um papel
proeminente nos eventos globais”, dramática diferença com o anterior
que falava numa contínua dominância dos EUA. A tendência geral da
intelectualidade do país é o chamado “new declinism” – a sensação de
que a mais poderosa nação do mundo está em declínio. O oposto da
agressiva confiança dos anos Bush e do
momento unipolar. Três razões
principais são apontadas: Iraque e Afeganistão são a certeza de que a
supremacia militar não se converte automaticamente em vitória política; o
crescimento da China e Índia como novos atores de peso; e a percepção
vinda da crise de que os EUA estão vivendo acima de suas possibilidades
e de que há alguma coisa errada no modelo americano. O respeitado
A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER
49
General Brent Scowcroft declarou outro dia “O exercício do nosso poder
nos revelou que ele é efêmero”. No livro de Fareed Zakaria, que consta
ter sido o único sobre política externa lido por Obama em 2008, ele
conclui que os anos Bush foram o apogeu do poder americano. Richard
Haass, Chairman do Council on Foreign Relations é enfático: “O momento
unipolar dos EUA se foi”. No entanto, William Wohlforth adverte que já
houve outros momentos de crise de confiança seguidos de recuperação,
como após a derrota no Vietnam.
O fato é que, salvo crise político-social de grandes proporções na China,
a estagnação dos próximos anos trará definitivamente uma mudança de patamar
no poder chinês. Nada ainda para ameaçar a hegemonia norte-americana. Mas
com China crescendo a 7%, Europa e Japão estagnados e EUA a passo de
cágado, em 5 anos, os chineses terão um PIB de US$ 5 trilhão, tendo
ultrapassado largamente França, Inglaterra e Alemanha e ligeiramente o Japão,
transformando-se na segunda maior economia do mundo. Só que os EUA
ainda estarão com US$ 15 trilhão, 3 vezes mais que a China!
Assim, gostemos ou não, teremos que continuar convivendo com a
hegemonia norte-americana. Mas ser hegêmona é mostrar competência em
fazer um discurso e praticar ações que, embora interessando mais ao próprio
hegêmona, possam ser compreendidos pela comunidade internacional como
interessando razoavelmente a todos. Conforme já lembramos, do “voamos
mais alto e sabemos o que é melhor para o mundo” de Madeleine Albright
(na era Clinton) ao “quem não está conosco está contra nós” do
fundamentalista Rumsfeld (nos tempos de Bush) houve uma escala imensa da
hegemonia em direção a uma quase tirania. O que nos resta é cobrar da
potência norte-americana o exercício de uma hegemonia benévola que leve
cada vez mais a consensos multipolares que aliviem as tensões mundiais e
gerem condições de governabilidade sistêmica. Esse é o grande desafio e o
papel esperado do governo de Obama.
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53
A América Latina e o Caribe; e o Brasil**
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão*
* Embaixador, Diretor do Departamento da América Central e do Caribe, do Ministério das
Relações Exteriores.
** Texto apresentado na Sessão sobre América Latina e Caribe da “III Conferência Nacional de
Política Externa e Política Internacional - CNPEPI - O Brasil no mundo que vem aí”,
realizada no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, em 8 e 9 de dezembro de 2008, sob os
auspícios da Fundação Alexandre de Gusmão e do Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais.
Não se fala de Europa latina e muito menos de África latina como se fala
de América latina. Por quê?
O Haiti é América latina? E Guadalupe? Martinica?
O que se costuma chamar de América latina, na verdade, é a América
ibérica. É a América que os portugueses e espanhóis construíram. É a América
que fala português e espanhol. É a América que herdou um comportamento
cultural ibérico, uma predominância cultural católica mas, sobretudo, uma
mestiçagem cultural e social que se quis aberta, através de sua história, a
outras influências, mas aberta com a condicionante da predominância da
chamada cultura ocidental.
O que se convencionou chamar de América latina é esse espaço geográfico
e histórico onde a cultura européia, filtrada pela visão de mundo ibérica,
construiu sociedades novas a partir de uma abertura a outras sociedades que
incluía a miscigenação. É o lugar aonde veio o português Martin, onde ele se
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
54
juntou com a índia Iracema e onde nasceu Moacir. Onde as filhas dos incas e
dos astecas se casaram com castelhanos e galegos, onde um índio esculpiu,
cheio de fé, a imagem de Nossa Senhora de Copacabana.
Ao contrário da América inglesa, do norte, a América latina nasceu e
cresceu como continuação da sociedade constituída em Portugal e na
Espanha. Não houve, por parte dos que de lá para cá vieram, aquele desejo
protestante ou algo cátaro de cortar vínculos e fundar uma sociedade nova e
diferente, uma sociedade de eleitos, que orientou muitas das principais levas
de homens que foram para a América do norte e que terminaram por fundar
os Estados Unidos. A única tentativa semelhante nesta nossa América foi a
dos jesuítas nas Missões, que fracassou rotundamente, talvez até porque não
contemplou a miscigenação.
Os portugueses e espanhóis que para cá vieram queriam enriquecer e, se
possível, voltar nobres para sua terra e a ela se reincorporar. Aos poucos,
porém, foram ficando. Mas foram ficando e, ao mesmo tempo em que
mantinham sempre presente a referência a seu país de origem, davam vida,
aqui, a algo novo, algo mais variado, algo mais aberto, que a convivência
íntima com os índios despertara e a convivência íntima, logo mais, com os
negros, iria consolidar. O produto dessa interação não foi, quase nunca,
consciente e se deu mesmo, muitas vezes, por baixo de uma exclusão
consciente; mas construiu esta sociedade de aberturas e circunscrições que é
a de nossa América ibérica.
Em alguns lugares mais, em outros menos, o traço que talvez mais nos
caracterize seja o desta convivência constante com o outro e o da abertura
constante ao outro. Não apenas ao outro físico mas, também, ao outro cultural.
E um outro muito outro, se podemos dizer assim, pois o ibérico e o índio
nada tinham em comum ; e ambos, nada em comum com os africanos. Dessa
convivência com o outro nasceram nossas sociedades, e dessa convivência
elas ainda vivem, ora gregárias, em maior ou menor grau, ora alijadoras. Até
mesmo ao ponto de, vez por outra, nos sentirmos outros e alguns quererem,
por exemplo, tirar um passaporte italiano ou adotar comportamentos africanos.
O que têm, então, em comum a Bahia e o Chile? Ou Cuzco e Buenos
Aires? Um representante minimamente educado da classe média, mesmo da
classe média baixa, do Rio de Janeiro, digamos, tem mais em comum com a
Itália ou a França do que com o Equador, por exemplo, ou talvez até mesmo
do que com um borracheiro do Acre. O que faz, então, com que Quito e o
Rio de Janeiro sejam mais uma mesma coisa, que o Rio de Janeiro e Roma?
A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL
55
Talvez o fato de que ambos incorporaram Roma mas incorporaram, também,
algo mais, incorporaram outras visões de mundo que se somaram à de Roma
para entender ou tentar explicar o mundo e passaram a se pautar por este
comportamento que permite ou supõe a constante possibilidade de outras
incorporações.
Portugal e Espanha vieram à América e aqui miscigenaram. Miscigenaram
em todos os sentidos. Mas esta miscigenação ficou aqui, na América; e só a
partir da América o pensamento e o comportamento português ou espanhol
se modificaram em sua maneira de ver o mundo e de estar no mundo, que é
hoje a nossa maneira, não mais a deles. Os dois países trouxeram para cá
sua visão de mundo mas aqui operaram uma abertura daquela visão de mundo
que incorporou o fato novo da criação de uma sociedade que incluía - mesmo
que excluindo - o outro: o índio, primeiro e o negro, depois; e depois o
quibe, o suchi e por aí a fora.
Esta América, onde também o português e o espanhol viraram outro, é o
que nós chamamos de América latina. É um conceito eminentemente cultural
e nada político. Não existe a América latina política, a não ser como expressão
parcial - uma das expressões - da América latina cultural.
E mesmo essa América latina cultural e, conseqüentemente, a política,
será que são mesmo latinas? Ou serão, simplesmente, América?
Se atentarmos bem, a Guiana, o Suriname e os pequenos países do Caribe
insular anglófono e francófono, fazem parte, também, daquele conceito cultural
de miscigenação que é o da América latina ibérica. Foram eles, também,
países forjados nessa construção de uma sociedade de que o outro faz parte,
constante e intimamente, seja por inclusão seja por exclusão, e sempre com
a condicionante da preponderância da chamada cultura ocidental, neste caso
filtrada pela Grã-Bretanha, pela Holanda e pela França.
A América do norte também começou assim e uma grande parcela de
sua população ainda é assim mas, logo, a direção social, política e histórica
que tomaram, em suas relações com o mundo e com os outros que por lá
encontraram, enveredou pelo caminho do egoísmo messiânico; mas do
significado disso tratarei mais adiante.
Nossas sociedades nesta América são sociedades de estrangeiros e
constantemente abertas. Os ibéricos chegaram estrangeiros, os africanos
e depois os japoneses, indianos, árabes, europeus, todos estrangeiros; e
os índios viraram estrangeiros nas sociedades que criamos, mas também
vieram. Os europeus se mudaram para a América como não se mudaram
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
56
para nenhum outro Continente e na América criaram, junto com os outros
que aqui encontraram e com os outros que para aqui vieram, o que não
criaram em nenhum outro Continente. Criaram a convivência com o outro,
de que já tinham perdido há muito tempo a memória. Curiosamente, os
estertores dessa convivência, na Europa, deram-se exatamente na
Península Ibérica e Portugal e Espanha foram construídos, também, com
uma razoável dose de convivência com o outro, o norte-africano e o
judeu.
Essa convivência é nossa herança, que já não é mais ibérica nem latina
porque foi construída por todos: é americana. Pois nosso temperamento já
não é o francês ou italiano ou espanhol ou português ou africano ou índio ou
sírio ou japonês: é americano.
Existe um samba do grande compositor Miguel Gustavo, cantado pelo
extraordinário Moreira da Silva e escrito para ele, que se chama “Moreira
da Silva contra 007” e que mostra muito claramente o que estou dizendo
aqui. O samba conta como o 007 vem ao Brasil acompanhado da Cláudia
Cardinale e os dois se hospedam na concentração do time do Santos, com
a intenção de raptar o Pelé para que não jogue contra a Inglaterra. A
Cláudia Cardinale é a arma do 007 para capturar o Pelé. Na piscina da
concentração do Santos, a Cardinale fica se oferecendo ao Pelé, fica se
oferecendo e o Pelé vai chegando, vai chegando, vai chegando e, diz o
samba: “a bonitinha não percebe a tabelinha que ele faz / Pelé controla a
Cardinale, dá-lhe um beijo e avança mais; / gol do Brasil!” E, então,
comentando aquela atitude ousada do Pelé, o samba conclui: “
Temperamento latino é fogo! ”
Mutatis mutandis, é uma situação semelhante a quando o extraordinário
orador que foi José do Patrocínio dizia, em seus inflamados e cativantes
discursos: “ nós, os latinos...”.
Aquele temperamento “latino” do Pelé, no samba e a “latinidade” de
José do Patrocínio, em seus discursos, já não são mais latinos: são, como
nós somos, americanos.
Por isto, a América latina não existe, existe esta nossa América que é
latina e índia e negra e tudo o mais e que tem algo novo e dela para mostrar
ao mundo. Que vai da Patagônia ao México e engloba todo o Caribe insular
e tem, dentro dela, o Brasil.
Mas por que pára no México? E o que é este algo novo e como se situa,
nele, o Brasil?
A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL
57
II
É fundamental recuperarmos a palavra América. Pois nós somos a América
que pode ser algo novo na História, nós sul-americanos, centro-americanos
e caribenhos. Os outros, a república da América do norte, viram passar a
História por eles e não souberam dar-lhe nada de diferente no que diz respeito
à relação com os outros povos; apenas terão representado, para a História,
ao final de seu poderio, o terem-se constituído em uma cabeça de império a
mais oprimindo, com a empáfia de seu discurso messiânico, de uma maneira
ou de outra, outros povos, como já o fizeram diversos, desde a aurora dos
tempos, enquanto aguardavam por outros mais fortes que, implacavelmente,
lhes tomariam o bastão invocando com a mesma empáfia o mesmo
salvacionismo.
Não é assim que nos vemos, nós americanos desta nossa América. Não
é isto o que devemos querer de nós. Não é este o papel que devemos querer
para nós no mundo, na História. Porque não foi assim que surgimos, não foi
assim que nos constituímos, não é assim que nos relacionamos.
O que poderemos nós, então, representar para a História? O que seremos
nós que, ultimamente, o império de turno, a República do norte, como os que
lhe antecederam, não soube ser, ou não pôde ser? Porque a América do
norte não fez história, ela repetiu a história. Mas e nós, que eu gostaria de
chamar simplesmente América, o que será de nós?
Nós, esta América nossa, este punhado de sociedades que se constituíram
feitas de outros e que continuam hoje abertas aos outros, não apenas aos
outros físicos, que cheguem imigrantes, mas aos outros que cheguem para
incorporar visões novas, esta América é a única região do mundo que pode
ter algo de novo a oferecer à História. E, dentro dessa América, o Brasil tem
um papel fundamental a desempenhar, na construção daquele algo novo.
Trata-se do que se poderia entender como a transposição para as
sociedades - os países, os governos, os estados, as nações, como queiram
- daquela intuição genial
de Ortega y Gasset de que o homem é ele e sua
circunstância : “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me
salvo yo”. As circunstâncias dos países são os outros países, as outras
sociedades, os outros povos.
A consciência de que nós somos nós e também os outros faz com que
vejamos de uma maneira totalmente diferente a nossa relação com os outros.
A alteridade do outro passa a adquirir uma identidade conosco que transforma
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
58
muitas diferenças em similitudes. A prática disso é a extrapolação para os
outros países daquele sistema de incorporação do outro que regeu a
constituição de cada uma de nossas sociedades. É o estabelecimento de
relações com base na aceitação, na incorporação dos interesses do outro
mas, também, na negação, mantendo sempre, entretanto, o outro como parte
de si.
Somente esta nossa América, que engloba, como disse, do Rio Grande
à Patagônia e o Caribe e que se formou pela incorporação constante e aberta
ao outro, pode estar preparada para iniciar a prática deste novo relacionamento
entre os povos no âmbito da História. Só esta nossa América criou ou quis
criar uma sociedade nova, aberta e abrangente, mas despida de qualquer
veleidade salvacionista ou de qualquer missão messiânica auto-outorgada.
Uma sociedade despida de qualquer desejo de exportar modelos de excelência,
que pretendesse impor como solução definitiva aos problemas dos outros.
Até pelo contrário, vejam bem, esta nossa América experimentou de peito
aberto já todos os sistemas e se abriu a todas as fórmulas tidas em seus
momentos como exemplares.
O que podemos ter a oferecer ao mundo - e talvez só nós - é esta ideia
e esta prática de nos relacionarmos com o outro e de incorporarmos o outro
a nós e de nos incorporarmos ao outro.
Vejam esta curiosa enumeração, algo caótica, de nomes de Presidentes
das várias repúblicas desta nossa América, do Rio Grande do Norte à Terra
do Fogo: Bachelet, Kirchner, Sanguinetti, Geisel, Fox, Mahuad, Lindley,
Aylwin, William, Frondizi, Michalski, Goulart, Alessandri, Bosch, Banzer,
Stroessner, Terry, Soublette, Dorneles, Wasmosy, Fujimori, Saca, Menen,
Bucaram, Kubitschek.
Nós somos todos eles e seremos muitos outros mais.
E o papel do Brasil nisso tudo é fundamental. É fundamental porque,
para sê-lo, deve ser semelhante ao de todos os outros e isto é o que lhe dará
grandeza.
O Brasil é grande, cresce inexoravelmente e será cada vez maior, mesmo
que aos trancos e barrancos, como lembrou um de nós que muito o pensou.
Não creio que alguém tenha dúvidas quanto a isto. Seria, então, relativamente
fácil para o Brasil, almejar atingir, no futuro, uma situação de superioridade
sobre estes que são os nossos outros e se arvorar em potência regional, ou,
em breve, até um pouco mais, pois nós temos, também, uns outros nossos na
África. Seremos potência, seremos ricos, teremos submarinos e fronteiras
A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL
59
seguras, poremos e disporemos.
Mas . . . e daí? Seremos grandes, nos imporemos pelo mundo a fora,
eventualmente alguns queimarão umas bandeiras nossas aqui e ali, talvez
explodam umas bombas em Copacabana e, assim, aos poucos estaremos
cercados ineludível e implacavelmente de estrangeiros. Depois, quando
estivermos então entrando em nossa decadência, a História registrará, em
sua longa lista de impérios, o nosso, como um a mais que o egoísmo dos
homens gerou.
III
O Brasil não pode ser isso. Se quisermos ter um papel e uma presença
no mundo, temos que ser outra coisa. E podemos, pela nossa história, pela
nossa formação, pelas lutas e pela índole de nosso povo e por nossa
circunstância, podemos ser outra coisa.
Esta outra coisa é a solidariedade, a verdadeira cooperação, o altruísmo
que incorpora e se incorpora ao outro; esta outra coisa é o Amor.
Escândalo! Falar de amor em relações internacionais! Em política externa
e política internacional falar de amor! Mas sim, se nós não formos capazes
de crescer juntos e em estreita intimidade com nossa circunstância, com nossa
América e, como disse, já agora também com um pedaço da África, se não
formos capazes de desenvolver este novo tipo de relação com os outros em
torno de nós, se não soubermos ser iguais a eles, muito em breve passaremos
a ser, nós, o Brasil, por nossa grandeza ineludível, os Estados Unidos da
América do Sul; e nossa passagem pela História terá sido tão melancólica
quanto foi, apenas para referir os mais recentes, a passagem do Império
Britânico ou, até agora, a dos Estados Unidos do norte, que sempre mais
contribuíram para a discórdia e o desentendimento entre os homens do que
contribuíram para fazer caminhar a humanidade na direção de um
desenvolvimento comum e geral, de uma solidariedade nas alegrias e nas
misérias, na direção do Amor.
O papel do Brasil, assim, é fundamental e único. A desproporção de
nossa grandeza com a de todos nossos vizinhos, da Patagônia ao Rio Grande,
passando pelo Caribe, é notável. Por isso nossa responsabilidade e nosso
papel podem ser únicos na História. Trata-se de saber se quereremos ser um
império a mais ou se quereremos deixar na História uma presença nova. Se
quereremos consolidar nosso crescimento sobre a dominação dos próximos
GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO
60
ou criar uma nova relação de crescimento solidário. Se quereremos criar
uma nova relação entre os povos, uma relação de cooperação verdadeira,
ou apenas ocupar o espaço de tirano de turno.
Não! O Brasil não pode vir a ser um dia o tirano de turno. O Brasil
padeceu as tiranias alheias e não quererá impor a sua a ninguém. Pelo contrário,
justamente porque se encontra nessa posição singular nas Américas, o Brasil
tem a oportunidade única na História de poder desempenhar um papel novo
e desejado, o papel de motor da solidariedade e da verdadeira igualdade
entre as diferentes nações. Só quem tem pode dar. O Brasil tem muito e,
portanto, pode dar muito.
O possível não é limitado pelo impossível, pelo contrário, o possível é
quem determina as fronteiras do impossível. E sempre mais o impossível se
faz possível, do que o possível impossível.
Meu convite, portanto, não é para pensarmos o Brasil no mundo que
vem aí, mas para pensarmos o mundo num Brasil que pode vir aí.
61
América Latina no presente Sistema
Internacional
Helio Jaguaribe
1. Introdução
Uma satisfatória análise da posição da América Latina em geral e da
América do Sul, em particular, no presente sistema internacional, requer que
se leve em conta não somente, como usualmente se procede, a medida em
que os Estados Unidos, única superpotência remanescente, alcançaram
incontrastável supremacia mundial mas, também, a medida em que dois
processos originariamente independentes, o processo de globalização e o
processo de expansão do poder e da influência dos Estados Unidos vieram a
tornar-se crescentemente interconectados.
O corrente processo de globalização constitui a terceira e decisiva fase
de um processo que se iniciou com os descobrimentos marítimos do século
XV e subseqüente Revolução Mercantil, que se expandiu e acelerou com a
Revolução Industrial, a partir de fins do século XVIII e adquiriu suas presente
características, com o que se poderia denominar de Revolução Tecnológica,
depois da Segunda Guerra Mundial, notadamente no curso do último terço
do século XX.
A principal característica do atual processo de globalização é sua
dependência da eletrônica, à semelhança da dependência da máquina a vapor,
por parte da Revolução Industrial. Os recursos proporcionados pela
informática, por telecomunicações quase instantâneas, pela rapidíssima
HELIO JAGUARIBE
62
interconexão aérea de todas as áreas do planeta, pela energia nuclear e por
um contínuo progresso científico, que vai da cosmologia à biologia molecular,
modificaram decisivamente as características sociais
e individuais do mundo
contemporâneo. Sem prejuízo da importância que continuam detendo os
recursos naturais (e.g. crescentemente água e ainda por algum tempo petróleo)
se tornaram menos importantes que os tecnológicos.
É nesse quadro que se processa a crescente interconexão entre
globalização e americanização. O processo de continuada expansão do poder
e da influência dos Estados Unidos, a partir da Primeira Guerra Mundial,
mais ainda depois da Segunda e, sem competidores externos, com o final
colapso da União Soviética em 1991, levou aquele país a dispor de condições
particularmente favoráveis – deliberadamente as empregando – para se valer,
em atendimento de seus interesses, desse outro processo em expansão ainda
mais acelerada, o da globalização.
Detêm os EUA a maior capacidade internacional de tecnologia,
particularmente em suas diversas dimensões cibernéticas. A informatização
do mundo passou, assim, a se processar sob o prático monopólio dos EUA.
O idioma inglês se substituiu definitivamente ao francês, a partir do segundo
terço do século XX e tornou-se à língua universal, favorecendo, naturalmente,
aqueles de que é língua materna. O sistema financeiro internacional, que
constitui o núcleo central do processo de globalização, se tornou, por um
lado, majoritariamente controlado por empresas americanas e, por outro lado,
o que mais importa, veio a se pautar integralmente pelos métodos financeiros
dos EUA e tem o inglês como seu próprio idioma. O processo de globalização
se converteu, assim, no processo de americanização do mundo.
Esse mesmo processo se tornou, também, equivalente ao processo de
modernização. Central, no mesmo, é o completo predomínio da razão
instrumental, nas múltiplas formas pelas quais se desenvolve o “know how”.
Colateralmente, se universalizaram os valores do modo de vida americano e
seus objetivos de poder e de consumo, pelo cinema, pela televisão, pela
música, pela indumentária dos jovens e, de um modo geral, pelo “estilo
jovem”.
Como todos os precedentes históricos da universalização de uma cultura
hegemônica – oposição sassânida à cultura helênica, judaica e germânica, à
cultura romana, britânica, à cultura francesa – a expansão da cultura americana
está encontrando crescentes resistências. Haveria que distinguir, a esse
respeito, resistências de tipo autonomizantes como, no âmbito do Ocidente,
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
63
o mundo latino e, no do Oriente, o chinês, de resistências de tipo
antagonizantes, como no mundo islâmico. Estas últimas tendem a reforçar as
dos primeiro tipo.
Algo imprevistamente, para os ocidentais, o Islam se tornou, notadamente
a partir do último terço do século XX, o principal fator de oposição aos
Estados Unidos e à americanização do mundo. Essa oposição, diversamente
do que se entende em certos setores, não é primordialmente uma oposição
religiosa ao cristianismo, como na Idade Média, ou à democratização das
sociedades como predominantemente se pensa nos EUA. Essa oposição é
ao modo americano de modernização e, por decorrência, às formas ocidentais
de modernização.
O fenômeno é complexo e comporta diversas dimensões e aspectos. O
núcleo dessa oposição se encontra, sem dúvida, nas características integristas
do Islam, como religião e como cultura. Importa recordar a esse respeito
que, embora em termos menos radicais, o cristianismo, tanto em sua versão
ortodoxa como na católica, também foi integrista. A civilização bizantina,
que prevaleceu no Ocidente do século VII a meados do século XIII, era
integrista e unia, no mesmo sistema de valores, cristianismo e patriotismo
bizantino. Na vertente católica do cristianismo se desenvolveu, do século
XII ao XIII, um conflito de vida e morte entre o Império e o Papado, cada
qual pretendendo unificar, sob sua hegemonia, o conjunto dos valores culturais,
políticos e cívicos. Foi precisamente porque esse conflito, embora perdido
pelos imperadores Hohenstaufen, conduziu, igualmente, à desmoralização do
Papado, com sete décadas de Avignon, que o mundo ocidental se livrou do
integrismo religioso-político e foi levado, no curso do tempo, com o
Renascimento e a Ilustração, à independente formação, na sociedade global,
de quatro subsistemas: civil, cultural, político e econômico. É precisamente
contra a independentização dos subsistemas que se insurge o islamismo. Este
se funda na indissolúvel unidade da “umma”, a sociedade dos crentes, a
primeira das quais foi fundada por Maomé em Medina em 622, na qual estão
submetidas ao mesmo regime as dimensões religioso-cultural, política,
econômica e civil da sociedade global.
Num fenômeno tão complexo como o que conduz ao fundamentalismo
islâmico intervêm vários outros fatores e circunstâncias, notadamente os que
produzem ou manifestam a profunda frustração decorrente da dominação do
mundo islâmico pelo ocidental, particularmente o americano. O fato é que
as desastradas políticas do presidente Bush, relativamente à questão palestina
HELIO JAGUARIBE
64
e, de um modo geral, ao mundo muçulmano, exacerbadas com a decisão
unilateral de invadir e ocupar o Iraque, suscitaram uma imensa reação
fundamentalista no mundo islâmico, gerando um gravíssimo problema mundial.
2. Império Americano
A incontrastável supremacia dos Estado Unidos, ora exacerbada pelo
unilateralismo do governo Bush, tem levado muitos analistas a descrevê-la
em termos da formação de um novo império mundial, o “Império Americano”.
É certo que são inegáveis os aspectos imperiais da supremacia americana.
Isto não obstante, uma análise mais cuidadosa da forma pela qual se exerce
essa supremacia revela características que a diferenciam completamente dos
impérios históricos, do romano ao britânico. Estes consistiam no exercício de
uma dominação formal da metrópole sobre suas províncias ou colônias, dirigida
por um pró-cônsul ou vice-rei, apoiado por guarnições militares e equipes
burocráticas da metrópole. Nada disso ocorre com o “Império Americano”.
Este preserva os aspectos formais da soberania dos países sob sua
predominância: bandeira, hino, exércitos de parada, inclusive, nas sociedades
democráticas, eleições “livres” de seus dirigentes.
O predomínio americano não se exerce sob a formal modalidade de um
império e sim através de um conjunto de poderosos constrangimentos, de
caráter financeiro, econômico-tecnológico, cultural, político e apenas
excepcionalmente por intervenções militares, como no recente caso do Iraque.
O “Império Americano” é um “campo”, em sentido análogo ao que
empregamos quando falamos de “campo magnético” ou “campo
gravitacional”. Esse sistema de poderosos condicionamentos, precedentemente
referido, opera de sorte a compelir os dirigentes locais, lhes agrade ou não, a
atuar de forma compatível com os interesses do sistema financeiro internacional,
das grandes multinacionais que endogenamente controlam a economia desses
países e, exogenamente, de Washington.
Os constrangimentos precedentemente referidos se reforçam
reciprocamente. De um modo geral, o constrangimento principal é de caráter
financeiro. Frequentemente, porque o país controlado depende, para o
equilíbrio de suas contas, de financiamentos proporcionados, direta ou
indiretamente, pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, ademais de por
agências como o Eximbank, o Banco Mundial e outras. De um modo geral,
porque, para manter seu acesso ao mercado financeiro internacional – e
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
65
também ao tecnológico – esses países têm de atuar de conformidade com
suas regras. Por outro lado, as grandes multinacionais, que estão
crescentemente assumindo o controle da economia dos países
subdesenvolvidos, neles dispõem de condições para orientar sua política.
Mencione-se, entre estas, a predominância do financiamento, não
necessariamente ostensivo, que as multinacionais têm nas campanhas
políticas
desses países, assim decisivamente influenciando a escolha de seus dirigentes
e a conduta destes.
Extremamente relevante, nesse processo, é a influência cultural dos
EUA. Esta se exerce através das mais diversas formas que vão, nos países
subdesenvolvidos, do absoluto predomínio americano no cinema, na
televisão e no regime de informações, até a medida em que, nos últimos
trinta anos, é cada vez maior e mais decisivo o número de economistas
desses países formados por universidades americanas. Nestas, a boa ciência
econômica que lhes é ensinada vem indissoluvelmente embutida numa
ideologia neoliberal, que se apresenta como condição da boa técnica
econômica (vide o “Consenso de Washington) e como tal é absorvida por
esses discípulos. Daí a orientação neoliberal de quase todas as competentes
equipes econômicas assessorando governos da periferia, o Brasil sendo
uma das ilustrações do caso.
Decisiva influência, nesse processo, é exercida pelo fato de o processo de
modernização ter crescentemente assumido, a partir da segunda metade do
século XX, características de uma americanização. Isto se torna particularmente
visível na juventude e se faz sentir mesmo em países como a China, que busca
séria e eficazmente modalidades próprias de desenvolvimento, mas onde a
juventude urbana, de calças jeans, dança o rock.
A supremacia americana, embora de alcance mundial, ainda não é uma
completa hegemonia internacional, dada a existência de outros centros de
poder que, embora sujeitos a essa supremacia, a ela oferecem variados
graus de resistência. Cabe, assim, constatar que o atual sistema internacional
apresenta quatro distintos níveis.
(1) Nível de supremacia: exclusivamente ocupado pelos Estados Unidos;
(2) Nível de autonomia interna: União Europeia;
(3) Nível de resistência: China, Índia, Rússia e, potencialmente, Brasil,
caso se consolidem Mercosul e o Sistema Sul-americano de Cooperação e
Livre Comércio;
HELIO JAGUARIBE
66
(4) Nível de dependência: os demais países.
3. Alternativas Históricas
O quadro internacional precedentemente indicado é bastante instável e
tende, a largo prazo, ou seja, no curso da primeira metade deste século,
senão mais cedo, a se modificar. Duas são as principais alternativas do sistema
internacional e da ordem mundial dele decorrente: (1) consolidação do
“Império Americano” ou (2) formação de um novo regime multipolar.
A primeira alternativa resultaria da completa consolidação e
universalização da hegemonia americana. Essa hipótese apresenta, por sua
vez, duas possibilidades. A menos provável seria a de uma dura hegemonia
unilateral dos EUA, no estilo do governo Bush, lograr e se consolidar e se
impor universalmente. O que torna improvável essa hipótese é o fato de que,
para prevalecer, teria de empregar meios coercitivos extremamente violentos,
como por exemplo, entre outras medidas a preventiva aniquilação, por mísseis,
das instalações atômicas da China. Constrangimentos domésticos, nos
próprios Estados Unidos, além de outras formas de resistência, tornam
improvável esse desfecho.
A segunda possível modalidade de uma consolidada e universal hegemonia
americana, bem mais viável, seria a de se constituir por via cooptacional. O
melhor exemplo histórico dessa modalidade de hegemonia é dado por Felipe
II da Macedônia e sua “Liga Helênica”. Em 337 aC, depois de haver
militarmente se sobreposto a todos os outros Estados gregos, Felipe reuniu
em Corinto um congresso panhelênico e nele, nominalmente como preparativo
para a guerra contra a Pérsia, inimiga comum de todos os gregos (leia-se,
hoje, guerra contra o terrorismo), se constituiu a Liga Helênica. Nela, cada
Estado grego participava de sua assembleia com um peso proporcional à
respectiva importância, cabendo, entretanto, à Macedônia, o comando militar
e a liderança da Liga.
Os Estados Unidos poderão, eventualmente, construir um sistema análogo
à Liga Helênica, incorporando a sua liderança mundial os outros principais
centros de poder, como União Europeia, China, Rússia, Índia e eventualmente
alguns outros. Em tal caso, formar-se-ia um sistema hegemônico mundial
susceptível de muito longa duração.
A outra alternativa histórica é a formação, até meados do século, de outros
centros de poder dotados de satisfatória equipotência com os EUA. A China
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
67
é, reconhecidamente, a principal candidata a essa posição. Tendo mantido
continuamente, desde Deng Xiaoping, a partir de 1978, impressionantes taxas
anuais de crescimento econômico, não inferiores a 7% e se modernizado
vertiginosamente, a China tenderá a superar o PIB americano em 2045,
alcançando, segundo estimativa de Goldman Sachs (“paper” 99 de 2003)
US$34,8 trilhões, contra os US$30,9 trilhões dos Estados Unidos. Essa
possibilidade, embora realista, depende, entre outras circunstâncias, de duas
principais condições: (1) capacidade de sustentar, a partir de 2015, taxas
anuais de crescimento não inferiores a 6% e (2) atitude, por parte da liderança
chinesa, de proceder, pacífica e tempestivamente, aos ajustes institucionais que
correspondam às necessidades de uma China moderna.
Outra candidata à condição de novo centro internacional de poder é a
Rússia, na medida em que as reformas que vêm sendo introduzidas por
Wladimir Putin tenham continuidade e persistência. Herdando do passado
soviético o segundo maior arsenal nuclear do mundo, a Rússia dá indicações
de se encaminhar para recuperar sua antiga condição de superpotência até
meados do século. Estima Goldman Sachs, no referido estudo, que a Rússia,
cujo PIB per capita, em 2000 era apenas cerca de 10% do americano, alcance
60% deste em 2050.
O sistema internacional tende a experimentar, no curso da primeira metade
deste século, outras importantes modificações. Consistem estas na provável
emergência de um novo tipo de protagonista internacional que, não alcançando
a condição de superpotência, atinja, estável e auto-sustentavelmente, a
condição de grande interlocutor independente.
Essa possibilidade se apresenta para o provável caso de que se formem, na
União Europeia, subsistemas políticos diferenciados entre si e do conjunto da UE
como sistema econômico. A Europa dos 25 acentuou, provavelmente de forma
definitiva, as dificuldades que já observavam na Europa dos 15 de esse grande
sistema econômico alcançar satisfatória unidade política. Isto não significa que a
UE não venha a adotar uma Constituição comum, o que provavelmente virá a
ocorrer. Significa, entretanto, que essa Constituição incluirá normas que requeiram
unanimidade, ou algo de próximo, para a adoção de posições comuns em matéria
de política externa e de defesa, assim as inviabilizando. A UE, em seu conjunto,
continuará sendo um gigante econômico e um anão político.
Nesse quadro, entretanto, já se pode discernir uma forte tendência para
que, no âmbito da UE, se formem subsistemas políticos diferenciados. Dois
já se encontram claramente em formação: (1) um subsistema atlanticista,
HELIO JAGUARIBE
68
liderado pelo Reino Unido e apoiado pelos nórdicos, estreitamente vinculado
aos EUA e (2) um subsistema europeista, liderado por França e Alemanha,
tendente a ser apoiado pelos países latinos, adotando uma posição
independente dos EUA, embora vinculada aos valores ocidentais. Resta a
ver como se posicionarão, face a esses dois subsistemas, os povos eslavos
recém-admitidos na UE. De imediato, esses novos membros inclinam-se para
a posição atlanticista, como decorrência de sua histórica resistência à URSS
e, portanto, à Rússia. Existem, todavia, importantes vínculos históricos e
econômicos que aproximam a Europa central da Alemanha e a Polônia da
França. Até que ponto, no curso do tempo, esses vínculos não tenderão a
aproximar os eslavos do subsistema franco-germanico?
Independentemente de como venham a se alinhar os
eslavos europeus,
no curso do primeiro terço deste século, tudo indica que o sub-sistema político
europeista tenderá a se consolidar e a se constituir como um grande interlocutor
internacional independente. Essa condição de grande interlocutor internacional
independente terá outro protagonista, a Índia, que já a está adotando e cujo
PIB, conforme o mencionado estudo de Goldman Sachs, tenderá a ultrapassar
o maior PIB europeu, o da Alemanha, em 2025.
Um terceiro candidato à condição de grande interlocutor internacional
independente é o Brasil. Referindo, uma vez mais, o mencionado estudo de
Goldman Sachs, o Brasil tenderá a ultrapassar o PIB da França em 2035 e
em 2040, o da Alemanha. No caso do Brasil, todavia, é importante levar em
conta a necessidade de que se ressente, para assegurar sua autonomia
internacional, de manter uma estreita aliança com a Argentina e de operar no
âmbito do Mercosul e de um sistema sul-americano de cooperação e livre
comércio. Essas circunstâncias, todavia, podem e tendem a ser mantidas
pelo Brasil, o que o qualifica como potencial grande interlocutor internacional
independente no horizonte de meados do século.
Uma análise mais abrangente dessa questão requeriria se contemplasse
o caso dos países islâmicos e algumas outras situações, o que, entretanto,
ultrapassaria as estreitas dimensões deste estudo. Baste se mencionar, assim,
que a alternativa multipolar, para meados deste século, conduz à formação
de três grandes sistemas de poder – EUA, China e Rússia – e de, pelo menos,
de três grandes interlocutores internacionais independentes, Índia, subsistema
europeista e sistema Brasil-Mercosul-Sulamérica.
O quadro resultante desse possível futuro regime internacional é
extremamente complexo porque envolverá, por um lado, um renovado risco
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
69
de hecatombe nuclear, como durante o período da Guerra Fria e, por outro
lado, um difícil relacionamento entre EUA e China, mediatizado por Rússia e
pelos grandes interlocutores internacionais.
Na verdade, contemplando-se o processo histórico no seu muito longo
prazo, pode-se dizer que tende a duas consequências finais: o suicídio nuclear
da humanidade ou a formação, como previa Kant, de uma estável Pax
Universalis. Caso venha a se formar um novo regime multipolar, em meados
do século, o sentido de sobrevivência tenderá mais uma vez, como no curso
da Guerra Fria, a evitar um confronto nuclear. Este, não obstante, como
quase ocorreu no período precedente, pode vir a se desencadear de forma
não expressamente deliberada. Se o mundo evitar o suicídio nuclear, tenderá
a formas crescentemente institucionais de regulação de seus interesses,
culminando numa forma satisfatoriamente racional e minimamente eqüitativa
de administração mundial. É interessante observar que, por caminhos distintos,
a hipótese de uma durável hegemonia americana, nos termos precedentemente
analisados, também tenderá, a longo prazo, a desembocar uma
satisfatoriamente racional e minimamente eqüitativa administração mundial.
4. América Latina e Brasil
As considerações precedentes permitem concluir as presentes reflexões
considerando a situação, nesse quadro, da América Latina, em geral e do
Brasil, em particular.
A evolução da América Latina, no curso da segunda metade do século
XX, conduziu a uma significativa diferenciação econômica entre o norte e o
sul da região. O norte, que já vinha se caracterizando por sua crescente
gravitação em torno dos Estado Unidos, veio, com a adesão do México à
NAFTA, a se constituir, institucionalmente, em parte do sistema econômico
americano. A América do Sul, não obstante a grande influência que, sob
múltiplas formas, sobre ela exercem os Estados Unidos, mantém significativa
margem de autonomia e encontra em países como Brasil e Argentina e,
decorrentemente, em Mercosul, um núcleo duro de resistência a sua absorção
pelo sistema econômico americano.
Cabe, assim, nas presentes condições, diferenciar na América Latina
três distintos círculos: o econômico, o cultural e o político. Economicamente,
a região está dividida, por um lado, entre México, América Central e Caribe,
gravitando em torno dos EUA e por outro lado, América do Sul, sob
HELIO JAGUARIBE
70
predominante influência de Brasil e Argentina, diretamente e por intermédio
de Mercosul. Culturalmente, a América Latina apresenta significativa unidade,
não obstante as diferenças entre hispanofonos e lusófonos. As comuns
características ibero-americanas de América Latina superam, de muito, suas
particularidades lingüísticas e outras. Caberia mencionar o fato de que, num
país como a Espanha, as diferenças entre um castelhano e um andaluz são
possivelmente maiores que as que separam hispanofonos de lusófonos. O
circulo político, finalmente, apresenta diferenciações conforme as opções
políticas tenham motivação econômicas, caso em que se manifesta o dualismo
norte-sul, das opções de motivação cultural, tão ou mais freqüentes que as
precedentes, caso em que se manifesta a unidade cultural de América Latina.
Uma análise satisfatoriamente abrangentes de América Latina requereria,
relativamente ao norte da região, diferenciar-se os casos de México, da
América Central e do Caribe. Requereria, em relação ao sul da região, uma
diferenciação entre Mercosul, por um lado e, por outro, Chile e os países
andinos. Os restritos limites deste estudo impõem uma simplificação. Nele
se considerará, por um lado, o eixo Argentina-Brasil-Mercosul e sua influência
sobre o restante da América do Sul e, por outro lado, o caso do México.
Reduzindo uma questão complexa a seus aspectos mais fundamentais
pode-se dizer que o que está em jogo, na América Latina é, por um lado, a
medida em que países como Brasil e Argentina logrem estabelecer uma durável,
confiável e reciprocamente benéfica aliança estratégica, a partir da qual possam
consolidar Mercosul e instituir um sistema sul-americano de cooperação e
livre comércio, assegurando à América do Sul a possibilidade de se constituir,
até meados do século, como um dos grandes interlocutores internacionais
independentes do mundo. Por outro lado, a questão que se apresenta é a de
como assegurar ao México a preservação de sua identidade nacional, no
âmbito de NAFTA e da supremacia americana. As duas questões estão inter-
relacionadas, embora de forma não simétrica. Se não se constituir de forma
estável, confiável e reciprocamente benéfica, uma aliança estratégica entre
Brasil e Argentina, não somente Mercosul deixará de se manter e não se
logrará instituir um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio
como, ademais, os dois grandes países da América do Sul perderão,
isoladamente, a capacidade de manter sua autonomia internacional e se
converterão em segmentos do mercado internacional e em “províncias” do
Império Americano. Tudo, assim, depende dessa aliança. Por outro lado,
ainda que esta se consolide e gere os esperados efeitos na América do Sul, a
AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL
71
manutenção da identidade nacional do México é condição, para este, da
preservação de seu destino histórico e, para a América Latina, da sustentação
de um de seus pilares fundamentais. Com efeito, não obstante a relativa
importância da contribuição cultural centro-americana e cubana, por um lado,
e de países como Chile e dos andinos, por outro, a cultura latino-americana
repousa, no fundamental, sobre o tripé constituído, de norte a sul, por México,
Brasil e Argentina. Sem México, essa cultura se veria terrivelmente mutilada.
O problema com que se defronta a América Latina, face ao incipiente
século XXI, é a medida em que, seja qual for a alternativa que venha a ser
assumida pelo sistema internacional, no curso da primeira metade do século,
a possibilidade de que os latino-americanos tenham voz e peso, nesse sistema,
depende da medida em que
logrem fazer de América do Sul um grande
interlocutor internacional independente. Se lograrem alcançar essa
interlocução, México, embora submetido a uma vinculação econômica com
EUA, preservará sua identidade nacional e condições para optimizar seu
próprio relacionamento econômico com o vizinho do norte.
Seria desnecessário reconhecer o fato de que, para a América do Sul, a
alternativa multipolar, na evolução do sistema internacional, seria de longe a
mais favorável e a única em que lhe seria possível o exercício de um importante
e independente interlocução internacional. É pouco, mas não irrelevante, o
que um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio possa fazer
para contribuir no sentido da formação de um futuro regime multipolar.
Observe-se, entretanto, que mesmo no caso de vir a se configurar uma longa
hegemonia mundial americana, a formação de uma séria aliança entre o Brasil
e a Argentina, com suas múltiplas decorrências na América do Sul, constituiria
algo de decisivo para que a inserção desses países, e dos demais da região,
no sistema imperial americano, se faça sob a forma de uma província de
primeira classe, como ocorrerá com os países europeus, e não como resíduos
indiferenciados do Terceiro Mundo.
73
América Latina e Caribe: Nova Fronteira da
Política Externa Brasileira
Marcel Biato
Integração regional ou “descolamento”?
Neste início de século XXI, quando começa a consolidar-se como país
com interesses e alcance globais, o Brasil está se voltando mais intensamente
para sua vizinhança imediata. Por que haveria de fazê-lo, arriscando distrair-
se do esforço primordial de esquadrinhar as potencialidades e riscos que a
globalização abre para uma potência emergente? Seria recomendável ao Brasil
atribuir prioridade a aglomerado disperso de países de dimensões econômicas
contrastantes e tradições sociais e políticas igualmente díspares? Discrepâncias
e divergências que só parecem aumentar e que negariam qualquer possibilidade
de consolidar-se um bloco regional apto a integrar-se de forma coesa e
competitiva numa economia mundial cada vez mais integrada?
A América do Sul e, mais genericamente, a América Latina e Caribe foi
a primeira fronteira do Brasil. Os limites físicos, lentamente consolidados ao
longo de décadas e séculos, reforçavam o fosso que nos separava e
diferenciava de um entorno continental do qual nos sentíamos existencialmente
apartados pela língua, por rivalidades dinásticas, pelo regime político e por
aspirações derivadas de nossas dimensões demográfica e territorial. Desde
os primórdios da luta pela independência continental no início do século XIX,
eram mútuos e crescentes os sentimentos de desconfiança e mesmo inimizade
entre as repúblicas herdeiras do Império Espanhol e o então Império luso-
MARCEL BIATO
74
brasileiro. O regime brasileiro representava o continuísmo monárquico,
escravocrata e expansionista contra o qual os próceres Bolívar e San Martín
haviam-se batido. Não é de estranhar, em contrapartida, que o Barão do Rio
Branco, responsável pela consolidação definitiva das fronteiras brasileiras
um século mais tarde, tenha sido um dos poucos heróis populares do país.
Por muitas décadas, “descolar” da América Latina e de sua multiplicidade
de repúblicas, frequentemente instáveis politicamente e frágeis
economicamente, era um objetivo nacional tão intensamente ansiado quanto
mal-disfarçado. Nada pior para quem se via como o “país do futuro” do que
ter sua capital confundida com Buenos Aires. No momento em que empresas
e interesses brasileiros vêm galgando latitudes e conquistando horizontes,
muitos ainda arguirão que para tornar-se um global player o Brasil deveria
minimizar seus vínculos com vizinhos sem projeção política ou relevância
econômica no cenário internacional, países aparentemente condenados à
eterna condição de “quintal” dos Estados Unidos. Já nos atuais tempos de
globalização, a região passou a ser vista como “canteiro” de matéria prima
para o novo pólo dinâmico da indústria mundial, que estaria migrando
inexoravelmente em direção à Ásia. Nesse cenário, caberia ao Brasil
posicionar-se estrategicamente como um daqueles poucos países que, por
sua massa crítica demográfica e escala de produção industrial, poderia escapar
a esse modesto destino. O que se vê, no entanto, é algo bem diverso. O
Brasil está firmemente engajado em múltiplas iniciativas voltadas para fomentar
a integração regional. Hoje, ambiciosos projetos viários encurtam distâncias
continentais, esquemas de interconexão energética reforçam uma
interdependência natural e instituições supranacionais começam a tornar
realidade a retórica secular da solidariedade regional. Como se deu essa
metamorfose? Terá o Brasil abandonado sua ambição de desgarrar-se do
seu entorno para realizar sua vocação de ator global?
Do imperialismo aos três “Ds”
A resposta para essa transformação começa, sim, com um sonho de
grandeza – mas não do Brasil. A noção de América Latina, incorporando
aqui também o Caribe, nasceu em associação à ambição imperial de Napoleão
III. Num momento de forte competição expansionista entre as potências
europeias, essa expressão foi cunhada para valorizar a presença mundial da
França e de sua civilização. O final trágico da aventura de Maximiliano I, no
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
75
México, e o inexorável recuo cultural francês puseram fim a esses grandiosos
devaneios. Entretanto, vingou a expressão que Napoleão III ajudou a
popularizar. Uma sobrevivência improvável, para não dizer surpreendente,
pois pretende qualificar região que jamais se havia imaginado como
conformando uma unidade geográfica, étnica e, muito menos, política.
Na virada do século XX, prevaleciam na região outras perspectivas
geopolíticas. Argentina, Brasil e Chile se viam como potências sul-americanas
e disputavam entre si a liderança do continente. Argentina e Brasil também se
arvoravam como próceres das grandes causas hemisféricas. O Brasil o fazia,
a partir de certo momento, na expectativa de selar uma aliança preferencial
com os Estados Unidos. A Argentina, com o objetivo oposto. Já a América
Central era comumente enxergada – inclusive por si própria – quase como
um protetorado norte-americano. Quanto ao Caribe, não passava de uma
dependência colonial, como que a lembrar a todos os demais de um passado
recente que ainda buscavam exorcizar.
O único elemento verdadeiramente unificador era o fato de a América
Latina e Caribe reunir países herdeiros dos impérios europeus que se
constituíram ao sul do Rio Grande. Em outras palavras, unia-lhes o fato de
serem nações ainda lutando para desvencilhar-se das amarras que os atavam
econômica e culturalmente às praças metropolitanas. Nesse sentido, a
expressão América Latina foi quase que uma imposição de fora, dentro da
melhor prática colonialista.
Talvez tenhamos aí uma chave para a persistência da noção de América
Latina. Consolida-se em paralelo a consciência, sobretudo a partir do pós-
guerra, de que a região vivia uma relação de dependência periférica, seja
com as ex-metrópoles, seja com outras nações avançadas. A expressão mais
nítida desse sentimento de subordinação foi formulada pioneiramente por
Raúl Prebisch, um dos mentores da CEPAL. Arguiu haver tendência,
aparentemente inexorável, de deterioração do poder de compra no mercado
internacional dos produtos primários, principal fonte de divisas dos países
latino-americanos. Em contraste, os bens industrializados, de maior valor
agregado, que necessitavam importar dos países desenvolvidos, tornavam-
se cada vez mais valorizados e, portanto, inaccessíveis. Esse quadro tornou-
se ainda mais dramático ao final da Segunda Guerra Mundial, com a retomada
dos fluxos comerciais entre os mercados europeu e norte-americano e suas
colônias africanas e asiáticas. A competição dessas exportações primárias
com
produtos latino-americanos acelerava a depreciação da produção latino-
MARCEL BIATO
76
americana. O resultante desequilíbrio nas contas externas, após a curta
bonança do período da guerra, pareceria condenar os países latino-americanos
a sistemáticas crises de balanço de pagamento, com o inevitável impacto
sobre a atividade econômica e, mais particularmente, sobre projetos
ambiciosos de industrialização – já então vista como o atalho mais curto para
o desenvolvimento. Nascem nesse contexto os famosos três “Ds” do chanceler
brasileiro Araújo Castro. Discursando na abertura da Assembleia-Geral das
Nações Unidas em 1963, pregou reformas estruturais ao sistema internacional.
Somente com o Desarmamento – liberando maciços recursos para financiar
a industrialização – e com a Descolonização – trazendo autodeterminação
aos povos da África e Ásia – poder-se-ia almejar o Desenvolvimento dos
países do agora denominado Terceiro Mundo. Parecia à diplomacia brasileira
ser essa a única fórmula capaz de romper o círculo vicioso de dependência
periférica, formulado teoricamente por, entre outros, Fernando Henrique
Cardoso.
Comércio versus desenvolvimento
Como então estruturado, o comércio parecia aumentar os desníveis entre
países e condenar irremediavelmente os países subdesenvolvidos a assim
permanecer. Nasce nesse momento ideia que, décadas mais tarde, desembocaria
na criação do G-20, foro negociador dedicado a melhorar os termos de troca
das exportações agrícolas dos países já agora denominados em desenvolvimento.
A própria demora na fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC) 1
– assim como os limitados recursos à disposição de entidades multilaterais de
financiamento – como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, reflete a modéstia dos avanços em direção à criação do que se
esperava seria uma Nova Ordem Econômica, capaz de atender às aspirações
dos países em desenvolvimento. Não por coincidência, surgem grosso modo
nesse período os primeiros movimentos em direção à integração regional. Ficara
claro que dos países industrializados do Norte – indiferentemente se do campo
socialista ou capitalista – não viriam nem as concessões nem a generosidade
almejadas. Caberia aos países do Sul se unirem para exigir reformas.
Há claro paralelismo entre o movimento pela descolonização na África e
na Ásia e os primeiros passos na América Latina em direção à integração
1 Foi preciso esperar até 1994.
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
77
regional. Caberia aos povos então denominados “subdesenvolvidos” tomar
seu destino em suas próprias mãos e deixar de simplesmente esperar respostas
e propostas advindas dos países desenvolvidos. A experiência, a partir de
1960, da ALALC e, posteriormente, da ALADI2 contribuiu para aumentar o
comércio inter-regional e para preparar os países da região latino-americanos
para o processo de globalização que adviria décadas mais tarde. A mera
redução de barreiras alfandegárias revelou-se, entretanto, de limitado impacto.
Na medida em que não tocou nas condicionantes estruturais da atividade
econômica em cada país, a política de fomentar a constituição de uma união
aduaneira continental terminou por reproduzir, em certa média, dentro da
América Latina a relação assimétrica que já caracterizava as trocas da região
como um todo com os países desenvolvidos. Sintomático dessa dinâmica
perversa é o fato de que, em momentos de retração do comércio e dos
investimentos internacionais – como na atual crise, os fluxos entre os países
da América Latina caem em ritmo ainda maior, contribuindo para reforçar –
ao invés de minorar – o impacto recessivo. Essa realidade, essa dinâmica
espelha uma preocupante constatação. A falta de competitividade e
complementaridade produtiva das economias menores frustrava seu principal
interesse em aderir aos arranjos comerciais regionais: o acesso prioritário ao
mercado consumidor das maiores economias da região. Muitas vezes, vê-se
exatamente o contrário – o predomínio avassalador nos mercados menores
de empresas e investimentos oriundos das economias maiores. O resultado é
a consolidação de um superávit estrutural nas contas comerciais,
particularmente do Brasil, com a maioria de seus vizinhos latino-americanos.
A “invasão” brasileira nesses mercados acaba por favorecer rancores e
temores nacionalistas que militam contra o próprio projeto integracionista.
Não estranha, portanto, que o aprofundamento dos mecanismos regionais
de integração seja retardado por suspeitas e acusações por parte dos parceiros
menores de que apenas as economias maiores do Bloco estariam auferindo
os benefícios do acesso privilegiado a um mercado de escala continental. Na
verdade, permanecem vigentes para a maioria dos países da região as
limitações estruturais já apontadas por Araújo Castro, a saber, falta de acesso
à capacitação técnica e tecnológica e aos investimentos necessários à
industrialização desenvolvimentista.
2 A Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), lançada em 1960, foi sucedida
pela Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) em 1980.
MARCEL BIATO
78
Como superar esse ciclo vicioso? Na era da globalização, essa indagação
ganha tinturas de especial urgência. A livre circulação de idéias, de bens e
tecnologia tornou a todos mais interligados, por força da crescente
dependência mútua – para melhor ou pior – em matéria econômica, ambiental
e de segurança. Em princípio, isto deveria servir de poderoso incentivo para
países e indivíduos buscarem mais cooperação, maximizando os benefícios
da interdependência e mitigando seu lado adverso. No entanto, aquelas
mesmas forças desencadeadas pela globalização ajudam a exacerbar as
disparidades pré-existentes em padrão de vida dentro de países e entre eles,
ao mesmo tempo em que magnificam os contrastes sociais e econômicos
decorrentes. Afinal de contas, os movimentos de crenças, imagens e pessoas
fomentam não apenas admiração e emulação, mas por vezes inveja e
frustração.
Globalização ou democratização?
Da perspectiva de um país em desenvolvimento, esse dilema é
especialmente severo. Para a maioria, o preço inevitável para unir-se à
economia global que está emergindo pode significar perda considerável de
controle e capacidade regulatória soberana sobre amplos espectros de política
pública, à medida que se impõe a lógica de um mercado de massa globalmente
integrado. No entanto, demandas opostas para reverter a forte redução da
presença do Estado marcaram os anos 80 em diante. A subseqüente crise
financeira global do fim da década dos 90, que atingiu os países em
desenvolvimento com especial virulência, só fez reforçar essas demandas.
Calou fundo a percepção do papel insubstituível do Estado no provimento
de planejamento estratégico, de políticas econômicas anticíclicas e de serviços
públicos de primeira necessidade, sobretudo em momentos de grande
turbulência econômico e desassossego social.
Na América Latina, mais do que em qualquer outra região, essas forças
contraditórias se entrechocaram com contundência. Em nenhuma região o
chamado Consenso de Washington foi aplicado com maior vigor e fracassou
com maior retumbância. Em nenhuma outra parte houve reação mais vigorosa,
na forma de movimentos de democracia popular que expressavam
nacionalismo econômico – e especialmente energético – e sentimento anti-
globalização. Rechaçou-se a falsa confluência entre a modernização do Estado
e sua destituição como instrumento estratégico de formulação e execução de
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
79
políticas públicas. Entendeu-se que fortalecer as instituições capazes de gerar
governabilidade transparente e legítima não é a mesma coisa que se submeter
de forma acrítica às forças impessoais do mercado. Exige-se que a democracia
seja também econômica e social, isto é,
que se traduza em bem-estar e
prosperidade para todos. Em alguns países, busca-se mesmo a “re-fundação”
das instituições nacionais, de forma a coaduná-las ao surgimento na cena
política nacional de segmentos sociais antes sem representação. A convocação
de Assembleias Constituintes expressa uma confiança fundamental no sistema
democrático. Na medida em que as instituições públicas logrem atender às
demandas mínimas, sua credibilidade sai fortalecida. A própria América Central
vive uma espécie de “sul-americanização“, na medida em que também ali têm
assumido governos favoráveis a um maior engajamento do Estado em políticas
de promoção de inclusão social. A dinâmica dessas mudanças segue uma
trajetória complexa e muitas vezes imprevisível. Podem, num primeiro
momento, acirrar tensões que as instituições estão mal-equipadas a absorver.
É notável, portanto, que, dos muitos grupos de esquerda que há 20 anos
defendiam a recurso às armas, apenas as FARC, na Colômbia, não foram
incorporados ao processo democrático.
Compatibilizar as forças da globalização e da soberania nacional e popular
passa, num aggiornamento da linguagem de Araújo Castro, por um sistema
internacional de tomada de decisões que promova o desenvolvimento
sustentável global, protegendo direitos adquiridos, mas também respeitando
aspirações e realidades emergentes. A crise econômica atual, assim como a
ameaça ambiental que vivemos, são apenas manifestações mais óbvias de
um realinhamento crucial de forças. A irrupção na cena mundial dos países
“emergentes”, que passam a rivalizar política e economicamente com as
tradicionais potências industrializadas, dá conotações cada vez mais claras
ao desequilíbrio fundamental da sociedade global contemporânea: de um lado,
o desejo dos países ricos de preservar um padrão de consumo insustentável
e, de outro, a aspiração dos países em desenvolvimento de alcançar níveis
equivalentes de bem-estar.
As implicações dessa realidade foram suscitadas pelo então Secretário
Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, em seu relatório “In Larger Freedom”,
de 2005. Pela primeira vez num documento oficial, reconheceu explicitamente
não se poder garantir a segurança e bem-estar para alguns se não houver
desenvolvimento para todos. O desafio para a comunidade internacional está
em adequar o sistema internacional a essa transição de poder que,
MARCEL BIATO
80
paradoxalmente, termina por atingir mais duramente os setores mais vulneráveis
dos próprios países em desenvolvimento. Alguns exemplos, são esses mesmos
países os menos responsáveis pelas mudanças climáticas, mas são os mais
diretamente atingidos pelas intempéries. Ao mesmo tempo, são os que menos
recursos financeiros e tecnológicos dispõem para enfrentá-las. De igual modo,
como bem demonstra a atual crise financeira, as nações pobres são as mais
duramente atingidas por turbulências financeiras para as quais pouco ou nada
contribuíram. Nem por isso estão em condições de influir adequadamente
nas determinações do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial,
agências cruciais para o encaminhamento da crise. Para não falar no Conselho
de Segurança das Nações Unidas, cada vez mais desmoralizado e incapaz
de responder ao desafio dos conflitos que hoje dominam as manchetes
internacionais.
A opção latino-americana
Nunca as instituições multilaterais foram tão demandadas. No entanto,
vemos que nunca estiveram tão ausentes e incapazes de responder às demandas
e ameaças de um mundo em profunda e acelerada transformação. A
multiplicação de iniciativas unilaterais ou por meio de grupos auto-selecionados
de países motivados por critérios que não são universalmente reconhecidos
ou compartilhados contribui para agravar tensões e incertezas. Em meio à
crescente interdependência e conectividade, defrontamos o desafio de construir
um novo modelo de governabilidade global, centrado em mecanismos
atualizados de cooperação e coordenação. Nesse esforço, os países da
América Latina e Caribe estão tomando a dianteira. Consolida-se a
consciência de que a região necessita projetar-se de forma coesa e unida em
defesa de uma agenda de interesses claramente definidos.
O Brasil engaja-se nesse esforço a partir de um enfoque pragmático de
seus interesses – não de uma fé romântica em ideais distantes dos interesses
objetivos do país. A experiência prática tem se incumbido de fazer dissipar a
falsa dicotomia entre as aspirações brasileiras de projetar-se como ator global
– por força de suas dimensões demográficas e potencialidades econômicas –
e o projeto de integração regional no qual está fortemente engajado. Pela
escala e competitividade de seu parque produtivo, nenhum país tem mais a
ganhar com a criação de um espaço econômico regional integrado do que o
Brasil. Demonstração eloquente disso é a presença crescente de empresas e
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
81
produtos brasileiros nos mercados vizinhos. A América Latina já é o primeiro
destino para as exportações brasileiras de produtos manufaturados e serviços
tecnológicos. Esses empreendedores formam a ponta de lança de uma
agressiva estratégia de internacionalização de empresas brasileira, passo
indispensável para a inserção competitiva do Brasil na economia globalizada.
A construção desse espaço integrado passa necessariamente pela
consolidação de uma infra-estrutura de transportes, comunicações e energia
que dê real conectividade e, portanto, competitividade à economia regional.
Trata-se de superar definitivamente, no plano físico, uma pesada herança de
sociedades de costas umas para as outras, voltadas historicamente para as
ex-metrópoles. Para viabilizar as obras de infra-estrutura que romperão essa
lógica herdada do pacto colonial, estão disponíveis volumes crescentes de
financiamento público brasileiro, por meio do BNDES e do Programa Proex
do Banco do Brasil. Por outro lado, já estão em curso negociações para a
criação de um Banco do Sul, capaz de multiplicar os recursos já disponíveis
para esse fim no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e na
Corporación Andina de Fomento (CAF).
Consolidar esse processo exige, como já referido, que as vantagens de
acesso a um mercado consumidor integrado de escala continental possam
estender-se a todos. Minorar as enormes assimetrias entre as economias
nacionais é o objetivo do Fundo para a Convergência Estrutural e
Fortalecimento da Estrutura Institucional do Mercosul – o FOCEM,
constituído para colocar recursos financeiros e capacitação técnica à
disposição de empresas de países de menor desenvolvimento relativo. A
integração de mercados também passa pela harmonização progressiva dos
distintos regimes aduaneiros na região. Já há importantes acordos de
complementação comercial entre o Mercosul, o Chile e a Comunidade Andina.
Uma nova institucionalidade e o papel do Brasil
O trabalho de aprofundamento institucional vai além das esferas
econômica e comercial. As dificuldades que a União Europeia vem
enfrentando para consolidar seu projeto3 de integração apontam para a
importância de evitar-se, também na América Latina, o risco de “déficit
3 A rejeição por referendo popular na Dinamarca do Tratado de Lisboa suspendeu a vigência
desse instrumento decisivo para o aprofundamento institucional da União Européia.
MARCEL BIATO
82
democrático”. O processo de construção da unidade regional deve dar ao
cidadão comum a sensação de dispor de voz ativa nos processos decisórios
que afetam sua vida. No âmbito do Mercosul, está-se consolidando conjunto
de mecanismos voltados não apenas para o alargamento do Bloco – como
o ingresso da Venezuela – mas também para seu aprofundamento, com o
Foro Consultivo de Cidades e Regiões, o Fórum Social e, em particular, o
Parlamento. Tenciona-se estender progressivamente todas essas iniciativas
à esfera da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL, que servirá de
guarda-chuva
institucional para o conjunto de ações de integração em escala
continental sendo postas em prática para realizar o pleno potencial das
notáveis vantagens comparativas da região: ausência de sérias tensões de
índole étnica, religiosa ou nacionalista; considerável unidade linguístico-
cultural; amplos recursos naturais minerais e agrícolas, inclusive um terço
da água potável do mundo.
Esse arcabouço almeja estimular as condições políticas e institucionais
necessárias para reverter, na esfera continental, o distanciamento entre países
estruturalmente voltados para parceiros do além-mar, seja as antigas
metrópoles seja novos sócios privilegiados dentre os países industrializados.
Essa lógica do afastamento – quando não da competição antagônica – entre
países vizinhos se expressa de forma especialmente visível em matéria de
segurança e defesa4. Assim como é necessário superar barreiras físicas à
integração, a construção de uma identidade regional passa pela superação
de rivalidades históricas e tensões e desconfianças que desestimulam uma
visão comum dos interesses coletivos de região.
É nesse contexto que ganha especial relevância a criação recente do
Conselho de Defesa. Ele estimulará mecanismos de diálogo e coordenação
para encaminhar soluções pacíficas e mutuamente acordadas para
situações regionais de conflito. O encaminhamento pacífico da crise que,
em meados de 2008, ameaçava levar a Bolívia ao borde de uma guerra
4 Reproduziram-se, no processo de definição de fronteiras dos estados herdeiros do esfacelamento
do império espanhol as forças centrífugas herdadas do nexo colonial. O temor permanente de
ingerência externa via-se potencializado por uma identidade nacional fragilizada em meio à
insegurança de uma elite branca desenraizada e à marginalização de um substrato de massas
indígenas e mestiças politicamente não confiáveis. Explica-se assim que, apesar – ou talvez
mesmo por causa – de a maioria de vizinhos limítrofes hispano-americanos partilharem estreitas
afinidades étnicas, culturais e históricas, o processo de diferenciação das nacionalidades tenha
sido tão conflituoso. Isto ajuda a explicar também a ligação entre a questão limítrofe e o
processo de consolidação da identidade nacional e, por conseguinte, a importância dos princípios
de não intervenção e de intangibilidade de fronteiras consagrados no direito panamericano.
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
83
civil, foi um passo notável nessa direção. Já as deliberações durante a
Cúpula do Grupo do Rio, em São Domingo, também em 2008 –
posteriormente referendadas pela OEA – evitaram que o episódio de
violação fronteiriça envolvendo o Equador e a Colômbia degenerasse em
um enfrentamento bélico.
A consolidação de uma visão generosa do potencial dos países da região
alcançar objetivos comuns, por encima das suspeitas históricas e rivalidades
contemporâneas, tem relevância especial para o Brasil. A multiplicação da
presença de empresas e investimentos brasileiros nas economias vizinhas tem
sido acompanhada, em anos recentes, pela multiplicação de gestos de
incômodo e mesmo hostilidade, de conotação frequentemente nacionalista.
Em contrapartida, também surgem oportunidades para demonstrar as
vantagens da acrescida capacidade de ação e de mobilização que o país hoje
detém. Exemplo nesse sentido foi o recente convite do Governo boliviano
para o Brasil substituir os Estados Unidos como mercado preferencial para
suas exportações de têxteis5.
Talvez o mais trunfo de que dispõe o Brasil esteja, no entanto, no campo
institucional. Oferece cooperação, entre outros, no combate a doenças e no
desenvolvimento agrícola. Mas sua vantagem comparativa está, sobretudo,
no campo da modernização do Estado em favor do planejamento de longo
prazo para promover crescimento com distribuição de renda. Programas de
combate à AIDS, de fomento à agricultura familiar e de inclusão social, como
o programa Bolsa Família.
A vez da América Central e do Caribe
A consolidação de um bloco coeso e integrado sul-americano não exclui
uma aproximação com a América Central e Caribe. Pelo contrário, oferece a
plataforma para consolidar um espaço integrado em escala ainda maior. Foi
esse o sentido da incorporação dos países do Caribe como membros-plenos
do Grupo do Rio, mecanismo tradicional de concertação e consulta política
da região. Se é verdade que a América Central e Caribe não comparte a
mesma coerência geográfica e unidade linguística do continente sul-americano,
trás outros trunfos e possibilidades.
5 A recente rescisão do acordo de cooperação entre a Bolívia e os EUA na repressão ao cultivo
à coca levou Washington a suspender o acesso privilegiado de exportações têxteis bolivianos ao
mercado norte-americano.
MARCEL BIATO
84
Numa economia cada vez mais globalizada, esse agrupamento de países
dispõe de localização privilegiada para acessar as principais praças comerciais
e motores econômicos do século XXI. Trata-se de região situada
estrategicamente próxima ao maior mercado do mundo – os Estados Unidos.
Já por meio do Canal do Panamá, tem-se acesso em condições vantajosas
às economias emergentes da China e do Sudoeste Asiático. Não por acaso a
Agência Brasileira de Promoção às Exportações (APEX) abriu no Canal do
Panamá um centro distribuidor de produtos.
No âmbito energético, o Brasil vem desenvolvendo, em colaboração
com os EUA, programas triangulares que permitem a países centro-americanos
e caribenhos beneficiarem-se de tecnologia e insumos brasileiros para exportar
etanol ao mercado norte-americano. Ao mesmo tempo, esses países
incorporam uma fonte energética renovável e barata que os ajudará a reduzir
a dependência do petróleo importado. A internacionalização de empresas e
investimentos brasileiros na região se dá em vários ramos, como por exemplo,
o têxtil. Por sua vez, a Embrapa abrirá um escritório regional para cooperar
na melhoria da produtividade e competitividade da produção agropecuária.
Como estímulo a essas iniciativas, está em curso a negociação de acordos
de associação do Mercosul com o Mercado Comum Centro-Americano e
com a Comunidade do Caribe (CARICOM). Expressão concreta do
compromisso brasileiro com essa aproximação foi o recente pedido brasileiro
para ingressar no Banco Centro-Americano de Integração. Ao mesmo tempo,
o Brasil vem aprofundando o diálogo com o CARICOM e com o Sistema de
Integração Centro-Americana (SICA).
Com o México, o aumento do comércio e dos investimentos bilaterais
demonstra que diferenças de regimes comerciais6 não devem constituir uma
barreira. Uma parceria no desenvolvimento de tecnologia de prospecção de
petróleo a alta profundidade poderá ajudar ambos os países a maximizar os
benefícios de suas potencialidades energéticas.
Talvez a expressão maior da convicção da importância de a região chamar
a si a solução da complexa multiplicidade de interesses e desafios que se
apresentam está na decisão brasileira de convocar, em dezembro de 2008,
na Bahia, a primeira Cúpula da América Latina e Caribe. Foi a primeira vez
que os 33 países se reuniram para discutir uma agenda verdadeiramente
6 O México forma parte do NAFTA, regime de livre comércio congregando também os Estados
Unidos e o Canadá.
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
85
regional. O compromisso coletivo em buscar soluções próprias para as
questões da região foi sublinhado pela reafirmação do apoio à missão das
Nações Unidas no Haiti, composta majoritariamente por latino-americanos.
Uma agenda comum e o diálogo com os EUA
Talvez o mais importante resultado do encontro tenha sido a declaração
de que diante da crise global, a América Latina e Caribe se sairão melhor se
unirem esforços. Sobretudo em momento em que se questionam os
fundamentos e as instituições do sistema financeiro internacional, a região
não poderá defender seus interesses
enquanto continuar mero espectador
das grandes decisões. Somente identificando interesses compartidos e
vantagens comparativas coletivas poderá a região moldar as condições em
que se integrará a esse novo mundo em gestação.
Em qualquer cenário futuro, Washington seguirá sendo um interlocutor
imprescindível. A eleição de Obama suscitou grandes expectativas. A chegada
ao poder em Washington do primeiro afro-descendente serve de metáfora
para a capacidade de reinvenção e renovação do modelo norte-americano
sob o signo da tolerância e diversidade? É essa a pergunta que se fizeram os
líderes reunidos em Sauípe, ao avançar propostas inovadoras que desafiam a
Administração Obama a deixar para trás uma agenda hemisférica
historicamente unilateral e impositiva, centrada no conhecido trinômio: livre
comércio, terrorismo e narcotráfico.
Nenhum tema será mais definidor das perspectivas de moldar-se um
diálogo equilibrado e construtivo do que a normalização plena das relações
de Cuba no hemisfério. Foi esse o sentido do recente ingresso, por decisão
unânime, de Havana no Grupo do Rio. Investimentos brasileiros estão
ajudando a melhorar a infra-estrutura e a competitividade de parque produtivo
cubano e, dessa forma, as chances do país incorporar-se, sem maiores traumas
econômicos e sociais, à comunidade hemisférica.
A suspensão do embargo norte-americano contra Cuba tem uma carga
simbólica que muito além da simples superação de uma das últimas
confrontações remanescentes da Guerra Fria. Tem a ver com a luta pelo
direito à autodeterminação e pelo direito de decidir seu próprio futuro, sem
temores de intervenções ou ingerências externas, questão que – como já
vimos, marca de forma profunda a história e a psique da região. A consciência
da necessidade e do direito de assumir maiores responsabilidades pelo próprio
MARCEL BIATO
86
destino está à raiz do amadurecimento institucional que a região vive. Assim
deve-se interpretar a proposta do Presidente Calderón, durante a Cúpula de
Sauípe, de lançar-se, já em 2010, uma Organização dos Estados Latino-
Americanos.
Superar a lógica da submissão e da dependência abre caminho para
fundar uma verdadeira parceria com os Estados Unidos. A proposta, adiantada
pela Secretária de Estado, de um programa hemisférico em matéria de energias
renováveis pode ser um bom começo. Abre perspectivas de aprofundar-se a
cooperação já existente nesse campo, com benefícios palpáveis em matéria
de acesso a mercados e transferência de tecnologia. Não hesitaremos em
cobrar essas promessas se o elevado custo de introduzir tecnologias “verdes”
for pretexto para Washington abandonar negociações para reduzir sua emissão
gases de efeito estufa ou para rever as tarifas alfandegárias que atualmente
incidem sobre as exportações de etanol brasileiro.
No momento em que a economia global atravessa grave crise, a América
Latina e o Caribe esperam dos EUA não iniciativas grandiosas, mas uma
disposição de coordenar respostas consensuais. Isto implica, de um lado,
que os EUA resistam à tentação de recorrer ao protecionismo para proteger
mercados e empregos locais. De outro lado, significa evitar adotar programa
de socorro financeiro doméstico que “sugue” todo o crédito disponível nos
mercados internacionais, em prejuízo das necessidades de financiamento das
economias em desenvolvimento.
Exigiremos que a demanda norte-americana por estupefacientes, e não
apenas sua produção na América Latina – seja combatida com vigor e
tenacidade. No tratamento de imigrantes em condição irregular,
demandaremos respeito a princípios elementares de direitos humanos. Também
devemos insistir em que programas regionais de cooperação e abertura
comercial – e não a construção de um muro sobre o Rio Grande – sejam
nossa resposta coletiva à aspiração de muitos latino-americanos a emprego e
vida dignos. Apoiamos o compromisso do Presidente Obama de recuperar o
papel do Estado como agente de promoção de políticas públicas estratégicas,
ainda mais neste momento em que a globalização mostra sua face mais sinistra.
Estaremos prontos a colaborar em ações anticíclicas, sobretudo nos setores-
chave de saúde e educação, para proteger empregos e os mais vulneráveis.
A V Cúpula das Américas, a realizar-se em abril próximo, em Trinidad e
Tobago, será um primeiro e decisivo teste dessa determinação de nossa região
de não esperar, mas de avançar propostas concretas para uma aliança
AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
87
hemisférica que reconheça os avanços econômicos e sociais da região, assim
como o imperativo do diálogo e da cooperação em um mundo cada vez mais
interdependente.
Conclusão
Na tentativa de realizar o sonho de um Novo Mundo na América tropical,
os próceres da independência latino-americana buscaram regulamentar todos
os aspectos das relações regionais. Desde amplos acordos comerciais até a
uniformização do direito público, passando por mecanismos de conciliação e
arbitramento obrigatórios de litígios. Permaneceu, no entanto, no papel o
sonho de uma “pátria grande” hispano-americana, capaz de cristalizar numa
unidade política panamericana os anseios libertários e proto-democráticos
das nações que emergiam da sombra dos impérios ibero-americanos.
Hoje, o conceito de América Latina e Caribe exprime sobretudo a
convicção de que somos unidos pela busca do desenvolvimento sustentável
com inclusão social, pela valorização de nossa diversidade e pela certeza de
que podemos contribuir decisivamente para moldar neste hemisfério um espaço
de convivência pacífica e prosperidade comum. Isto não invalida que cada
país identifique formas próprias e historicamente condicionadas de alcançar
esses alvos nacionais e regionais. Superamos uma visão mercantilista do
processo de integração para compreender que a resposta está em forjar uma
moldura institucional que traga transparência e previsibilidade às ações
coletivas, mas também comparta experiências, capacitações e recursos.
No momento em que a globalização cobra solidariedade e coordenação
de todos, a América Latina e Caribe estão dando um exemplo e se
credenciando para opinar na construção de uma nova ordem mais equitativa.
É essa a convicção que motiva o Presidente Lula a afirmar que de nada
adianta ao Brasil avançar e progredir se estiver cercado por vizinhos atrasados
e ressentidos. Assim, mais do que nunca a América Latina e Caribe continuam
a ser a primeira fronteira do Brasil e a linha de frente de sua política externa.
89
Uma Europa mais Transparente
Franklin Trein*
1. Breve introdução histórica
Não é uma tarefa simples conhecer o processo histórico que vem sendo
cumprido pelo demorado e complexo movimento que constitui a União Europeia.
A integração entre um pequeno grupo de países do Velho Continente, ao ter sido
iniciada em um período de recuperação da grave crise econômica, social e política
em que se encontrava a Europa no final da Segunda Guerra, estabeleceu princípios
e metas que se tornaram rapidamente insuficientes para dar respostas aos desafios
impostos pela construção de um destino comum entre Estados e Nações. Naquele
momento, quando foram retomadas as desgastadas idéias de unir os europeus
sob um mesmo projeto de desenvolvimento, as relações entre as sociedades
nacionais europeias estavam marcadas profundamente pelos conflitos, que ao
longo de séculos, levaram a sucessivas destruições de parte a parte.
A paz era a recompensa de todos os sacrifícios e das intermináveis
negociações que deviam conduzir ao estabelecimento de uma confiança mútua,
capaz de fazer convergir os esforços de reconstrução das economias e das
sociedades nacionais, destruídas e destroçadas pela Guerra. Assinado pelos
seis países fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço1 –
*Coordenador do Programa de Estudos Europeus da UFRJ.
1 Os seis países signatários do Tratado de Paris são: Bélgica,
França, Holanda, Itália, Luxemburgo
e República Federal da Alemanha.
FRANKLIN TREIN
90
CECA –, em 18 de abril de 1951, o Tratado de Paris tinha objetivos bastante
limitados. Contudo, através da habilidosa escolha do carvão e do aço, insumos
indispensáveis à guerra, postos sob a supervisão de uma Alta Autoridade
completamente independente dos governos nacionais, ele serviu de ponto de
partida seguro para o processo de integração que se iniciava.
Os Tratados de Roma (25 de março de 1957) reuniram os mesmos seis
signatários do Tratado de Paris, estabelecendo a Comunidade Econômica
Europeia – CEE – e a Comunidade Europeia da Energia Atômica –
EURATOM. Aqueles dois Tratados continham projetos muito mais
abrangentes e audaciosos do que o primeiro passo dado em 1951. Eles
incluíam dimensões importantes das economias nacionais de cada Estado
membro, influenciando diretamente o cotidiano das sociedades envolvidas.
Os Tratados de Roma, a exemplo do Tratado de Paris, continuavam a
apostar numa integração que se apoiava principalmente nas relações
econômicas. Os dois projetos de integração de caráter eminentemente político
– a Comunidade Europeia de Defesa2 – CED – e a Comunidade Política
Europeia – CPE – não tiveram seguimento depois que a Assembleia Nacional
francesa recusou-se a ratificar o Tratado que criava a CED em 30 de agosto
de 1954.
Apesar de todos os obstáculos enfrentados e dificuldades a serem
superadas, desde os primeiros anos de sua implantação o êxito das três
Comunidades Europeias tornou-se sensível mesmo para aqueles que viam a
integração com grande ceticismo. Talvez, o melhor exemplo neste sentido
seja a mudança ocorrida na posição do Reino Unido a respeito de sua
participação naqueles projetos. Depois de recusar por reiteradas vezes o
convite para ser signatário do Tratado de Paris e dos Tratados de Roma,
seguindo o exemplo da Irlanda, que apresentou a Bruxelas o seu pedido de
adesão à Comunidade Econômica Europeia em 31 de julho de 1961, Londres
formalizou o seu primeiro pedido para fazer parte da CEE em 9 de agosto de
1961. O mesmo fez a Dinamarca no dia seguinte3.
O desenvolvimento positivo da integração comprovava o acerto das
decisões de ampliação das relações econômicas dos Estados membros, ao
2 O Tratado que criava a Comunidade Europeia de defesa foi assinado no dia 27 de maio de
1952. Foram seus signatários: Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e República Federal
da Alemanha. Este último país devia observar restrições quanto ao armamento que estaria à
disposição de suas Forças Armadas.
3 A Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido passaram a integrar a Comunidade Europeia no dia 1o
de janeiro de 1973.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
91
mesmo tempo em que indicava a necessidade de que a integração fosse
ampliada para as relações políticas. Pois, sem que isto acontecesse, a economia
encontraria rapidamente os seus limites como fator de aproximação entre as
sociedades nacionais envolvidas no processo. Assim, Christian Fouchet4
recebeu a tarefa de coordenar o grupo de trabalho encarregado de redigir
um projeto de União Política da Europa. Ainda que o Plano Fouchet5, como
foi chamado aquele projeto, não tenha produzido ao resultado esperado, ele
serviu para marcar a necessidade do debate em torno da integração política
da Europa.
Pouco antes de ingressar em um momento de grandes dificuldades em
consequência da crise que se estabeleceu na economia mundial no início da
década de 70, na reunião de cúpula de Haia – 1o e 2 de dezembro de 1969
– as Comunidades Europeias decidiram a dar um passo importante no sentido
de atingir metas correspondentes a uma maior integração. Definiram então
como objetivo a realização gradual de uma União Econômica e Monetária –
UEM – até 1980. O plano para implantação da UEM, também conhecido
como Plano Werner6, foi apresentado pela Comissão Europeia ao Conselho
Europeu em 8 de outubro de 1970. Ele definia, entre outras coisas, um
programa de convergência das políticas macro-econômicas e, em especial,
um rígido controle sobre as taxas de câmbio entre as moedas dos Estados
membros, o que deu origem ao que ficou conhecido como a “serpente
monetária” 7.
A condução de Sicco Leendert Mansholt8, então Comissário para a
Agricultura, ao cargo de Presidente da Comissão Europeia – 22 de março
de 1972 – marcou a radicalização de um importante debate político-
econômico em Bruxelas. A discussão liderada por Mansholt, que envolveu
não só os membros da Comissão, levou ao estabelecimento das bases daquela
que, seja pela sua complexidade, seja pelos seus custos para o conjunto dos
4 Christian Fouchet (1911 – 1974), diplomata francês, estudou direito e economia política. Foi
deputado na Assembleia Nacional e ministro de Estado nos Gabinetes de Pierre Mendes France
e Georges Pompidou.
5 O Plano Fouchet foi apresentado na reunião de Chefes de Estado e de Governo dos Estados
membros da Comunidade Econômica Europeia em julho de 1961, em Bonn.
6 Pierre Werner (1913 – 2002), embora nascido na França, era cidadão luxemburguês. Foi
Ministro de Finanças e da Cultura e por duas vezes Primeiro Ministro do Ducado de Luxemburgo.
7 A “serpente monetária” foi um sistema concebido para controlar as relações cambiais entre as
moedas dos países da CEE dentro de um regime mais estrito do que o então existente.
8 Sicco Leendert Mansholt (1908 – 1995), político holandês, membro do Partido Social Democrata
dos Trabalhadores. Mansholt foi Presidente da Comissão Européia em 1972 e 1973.
FRANKLIN TREIN
92
Estados membros, se tornaria a política de integração mais expressiva por
um período de vários anos: a Política Agrícola Comum – PAC. A PAC
converteu-se em um paradigma da integração, tanto pelos efeitos internos ao
mercado comunitário, como por suas consequências para as relações bilaterais
e multilaterais da CEE.
Rumo à união econômica e monetária, como base indispensável ao
mercado único, um momento importante na agenda de integração foi a adoção
em 13 de março de 1979 da unidade monetária europeia, o “ecu”9; uma
moeda contábil, de referência para o orçamento e prestação de contas de
toda as instância comunitárias e ainda disponível para as contas públicas e
privadas dos Estados membros. Naquele mesmo ano, nos dias 7 a 10 de
junho, os eleitores dos Estados membros elegeram, pela primeira vez pelo
voto direto, os seus eurodeputados, ou seja, os seus representantes no
Parlamento Europeu em Estrasburgo10. Aquele acontecimento teve um
extraordinário valor, não somente no sentido simbólico da construção de
uma comunidade de nações, mas na dimensão prática de consolidação de
uma infra-estrutura democrática capaz de discutir e decidir coletivamente
sobre o destino de milhões de europeus irmanados pelo diálogo, pela paz e
pela vontade de um desenvolvimento solidário.
As sucessivas elevações do preço do petróleo ao longo da década de
70 e a consequente desordem das contas públicas, principalmente dos países
em desenvolvimento, levaram a economia mundial a uma crise sem precedentes
no pós- Guerra. Assim, no início dos anos 80 a integração europeia enfrentou
grandes problemas e passou a ser vista com enorme ceticismo pela opinião
pública e mesmo por expressivas lideranças políticas da Europa. Para transpor
o horizonte negativo que se abatia sobre a Comunidade, em 6 de janeiro de
1981, o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha Hans-Dietrich
Genscher11 apresentou em uma reunião em Stuttgart o que foi chamado de
“Apelo a Epifania”. Em seu discurso o ministro alemão preconizava uma
retomada urgente da cooperação política entre os dez Estados membros.
Pouco depois, no dia 28 de janeiro daquele mesmo ano, em Florença, Emilio
9 O ecu foi substituído pelo euro em 1o de janeiro de 1999.
10 O Parlamento Europeu se reuniu pela primeira vez em março de 1958, em Estrasburgo. Os
142 eurodeputados que ali compareceram representavam os Parlamentos nacionais
dos Estados
membros.
11 Hans-Dietrich Genscher (1927 - ) estudou economia e direito, foi deputado no Parlamento
Federal alemão, Ministro do Interior e depois Ministro de Relações Exteriores da Alemanha
entre 1974 e 1992.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
93
Colombo, Ministro de Relações Exteriores da Itália, retomava as palavras
de seu colega alemão para conclamar a todos os países comunitários a um
esforço sem par no sentido da integração política. Aqueles discursos somados
deram nascimento a um programa de trabalho que ficou conhecido como
Plano Genscher-Colombo, apresentado ao Conselho Europeu na reunião de
cúpula realizada em Londres nos dias 26 e 27 de novembro de 1981.
O Plano Genscher-Colombo tornou-se assim precursor do Ato Único
Europeu. Naquele documento – assinado em 17 e 28 de fevereiro de 1986
em Luxemburgo e em Haia, respectivamente, que tem o escopo de um Tratado
– pela primeira vez os europeus declaram a intenção de construir juntos uma
União Europeia. Neste sentido, o Ato Único define as modificações
institucionais a serem empreendidas, trata do alargamento das competências
comunitárias, examina a cooperação política europeia com terceiros países,
estabelece as condições de construção de um espaço social europeu12 e cria
um programa de pesquisa científica amplo e acessível a todos os Estados
membros.
A partir da assinatura do Ato Único, superado o que ficou conhecido
como o euroceticismo, o processo de integração retomou seu curso positivo.
O Relatório Delors13, apresentado em 12 de abril de 1989, cuidou da
superação de importantes obstáculos que dificultavam o avanço da União
Econômica e Monetária. Em poucas palavras, Jaques Delors recuperou o
que já havia sido estabelecido pelo Plano Werner em 1970. Porém, reiterou
a necessidade da convertibilidade completa e irreversível das moedas entre
os Estados membros, da completa liberação do movimento de capitais, da
fixação de paridade entre as moedas europeias e, em conclusão, asseverou a
necessidade da adoção de uma moeda única. A União Econômica e Monetária
proposta por Delors deveria ser realizada em três etapas. A primeira se resumia
a concluir a construção do mercado único, o que implicava, entre outras
coisas, que todas as moedas aderissem ao mecanismo de trocas do Sistema
Monetário Europeu – SME. O segundo momento teria como principal tarefa
estabelecer um Sistema Europeu de Bancos Centrais – SEBC – que coexistiria
12 Ao tratar da livre circulação de pessoas entre os Estados membros, como um princípio
fundamental da União Europeia, o Ato Único Europeu reforça as decisões e os parâmetros
contidos no Acordo de Schenguen, entre a Alemanha, Bélgica, França Holanda e Luxemburgo, de
14 de junho de 1985, válidos para o controle da circulação de pessoas sobre as fronteiras dos
países signatários.
13 Jacques Delors (1925 - ) estudou economia, foi Ministro de Economia e Finanças da França,
Presidente da Comissão Européia por dez anos – 1985 a 1995 –, é membro do Partido Socialista.
FRANKLIN TREIN
94
com os Bancos Centrais nacionais dos Estados membros. Um Instituto
Monetário Europeu – IME – coordenaria as decisões coletivas e cuidaria da
definição da estrutura do futuro Banco Central Europeu - BCE. Na terceira
e última etapa haveria a transferência da competência das políticas monetárias
da esfera nacional dos Estados membros para a competência da União e,
dentro do possível, a adoção de uma moeda única em substituição as moedas
nacionais.
As autoridades comunitárias e, entre elas principalmente a Comissão
Europeia, manifestaram em muitas ocasiões, o convencimento de que a
solução dos problemas da integração estava no avanço do processo e nunca
num retorno às condições anteriores. Movidos por esta percepção, em 15
de novembro de 1990, em Roma, tiveram lugar duas Conferências
Intergovernamentais. Uma dedicada a União Econômica e Monetária, a outra
voltada para a União Política dos europeus. Em última instância, os debates
voltados para a União Econômica e Monetária concluíram que no campo
econômico a união consistiria na coordenação das políticas nacionais pelo
Conselho de Ministros de Economia e Finanças, permanecendo, contudo,
com os Estados membros a responsabilidade por suas respectivas políticas
econômicas; já no campo monetário a união se completaria com a adoção de
uma moeda única sob a autoridade de um Banco Central Europeu – BCE.
Aquela era mais uma das muitas rodadas de discussão ocorrida entre os
representantes dos doze Estados membros, mas foi, provavelmente, a que
tratou de forma mais direta e com maiores consequências das questões que
permitiram chegar a um acordo sobre o futuro da integração na forma do
Tratado de Maastricht. Elaborado ao longo de pouco menos de dois anos o
Tratado sobre a União Europeia14 recolhe um dos resultados mais positivos
e, por isso mesmo, dos mais expressivos da vontade e da capacidade daqueles
que, mesmo diante dos maiores e mais difíceis obstáculos, nunca desistiram
da integração.
Entre 1986 e 1992 a Comunidade Internacional em geral e a Europa em
particular foram sacudidas por acontecimentos que mudaram a história do
século XX. A crise que envolveu a União Soviética e todo o seu entorno
14 Tratado sobre a União Europeia e não Tratado da União Europeia. Esta pequena diferença,
não percebida por muitos é, no entanto, de grande significado. Ela indica que o documento
assinado em Maastricht não pretende ser definitivo nas definições sobre a União Europeia,
senão que, muito antes, encaminhar o processo para um novo patamar no qual a ideia de uma
união dos europeus possa ser discutida e construída em bases mais sólidas e abrangentes.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
95
geopolítico, marcada, principalmente, pela queda do muro de Berlim, em 9
de novembro de 1989, e que culminou com a dissolução formal da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 8 de dezembro de 1991, significou
um desafio para Bruxelas e para todas as autoridades nacionais dos Estados
membros. Naquele momento a Europa vivia numa realidade para o qual não
havia sido elaborada qualquer previsão, nem política e nem teórica. Nos
Bálcãs15, a partir de 1989, a rápida desintegração da República Federal da
Iugoslávia acrescentava problemas de dimensões incalculáveis a já
sobrecarregada agenda dos principais órgãos da Comunidade Europeia: a
Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu. As decisões impunham-se
sem dar tempo para reflexões mais profundas ou demoradas. O melhor
exemplo das tensões em que se viram submersos, além da Comissão Europeia,
todos os governos nacionais da Europa comunitária foi, provavelmente, aquele
produzido pelas intensas negociações que levaram à decisão de reunificação
da Alemanha em 9 de agosto de 1990. Dois países signatários dos Tratados
fundacionais, ou seja, aqueles que intituiram as Comunidades Europeias, Itália
e França não só não apoiaram a condução dada por Bonn às negociações
com Berlin Oriental e com Moscou, como, nas palavras do presidente francês,
François Mitterrand16, criticaram frontalmente a perspectiva de uma Alemanha
restaurada em seu território e população correspondendo ao período anterior
à Segunda Guerra Mundial, ou seja, de uma Alemanha reconduzida à condição
de maior país da Europa.
As discussões sobre a formulação do Tratado de Maastricht enfrentaram
inúmeros problemas, uma vez que a integração devia ser levada a uma
perspectiva realmente inovadora. A continuidade do processo de integração
exigia rupturas e cobrava a ousadia de trazer para o núcleo central da união
entre os europeus uma convergência política, tentada tantas vezes no passado
e, sabidamente, com tão poucos êxitos. O modo de expressar a centralidade
da união política era vista por muitos negociadores na forma de definir as
15 A crise nos Bálcãs, por sua extensão e complexidade foi o maior desafio enfrentado pela União
Europeia em toda a sua História. A desintegração da
Iugoslávia, uma Federação de Estados
nacionais com relativa autonomia, que manteve a região em condições de cooperação razoáveis
entre 1945 e o início dos anos 80, significou a quebra do período de paz mais longo conhecido
pela Europa. Os conflitos políticos, étnicos, religiosos e culturais naquela região mostraram a
Bruxelas as suas limitações como ator na Comunidade Internacional enquanto a UE não for
capaz de falar com uma só voz política e de respaldar suas decisões com uma força militar
européia de dissuasão à altura de suas dimensões econômicas, geográficas e demográficas.
16 François Miterrand (1916 – 1996) foi Presidente da França entre 1981 e 1995.
FRANKLIN TREIN
96
bases de sustentação da União Europeia. Por isto mesmo, talvez, dias e noites
de discussões ininterruptas não foram suficientes para produzir o consenso
da unidade. As maiores dificuldades encontradas diziam respeito às questões
de defesa e de política social. O Reino Unido, como sempre, resistiu a toda
e qualquer formulação que pudesse ser interpretada como cessão de soberania
em suas decisões políticas e exigiu que se mantivesse de forma muito explicita
a distância entre as competências comunitárias e as competências de simples
cooperação bilateral e multilateral entre os Estados membros.
Esgotada toda a pauta de negociações e pressionados por uma conjuntura
interna à Comissão Europeia, e externa, relativa à opinião pública dos europeus, o
consenso possível só foi alcançado em 17 de abril de 1991, na base de um projeto
de tratado que se sustentava em três pilares. Aquele era um resultado que deixava
evidente que os partidários da unidade haviam sido derrotados. O primeiro pilar
estava representado pela Comunidade Europeia, o segundo pela política estrangeira
e de segurança comum – PESC – e o terceiro pela cooperação nos assuntos dos
negócios do interior e da justiça. Havia uma clara dificuldade, os dois primeiros
pilares são de natureza comunitária e o terceiro intergovernamental17. De qualquer
forma, o primeiro pilar, ao estar representado pela Comunidade Europeia e não
pela Comunidade Econômica Europeia, ao excluir o adjetivo “econômica”, deixou
marcado que a integração deixava de ser une affaire de marché.
O Tratado sobre a União Europeia foi assinado em Maastricht em 7 de
fevereiro de 1992 e, após grandes dificuldades para ser ratificado pelos países
comunitários, entrou em vigor em 1o de novembro de 1993. A Europa julgava
superada uma fase importante e difícil de sua história e declarava-se preparada
para seguir ampliando o número de seus participantes ao abrir espaço para
novos Estados membros. Porém, reconhecia que em prazo não muito distante
deveria voltar a ocupar-se da definição de sua estrutura institucional, sem o
que não seria possível seguir avançando com a integração18.
17 Sendo correto se entender que questões comunitárias são questões interestatais, evoluindo,
em muitos casos, para um nível supraestatal, então é permitido dizer que um dos problemas
mais centrais do processo de integração dos europeus é o de realizar a transição das relações
intergovernamentais para as relações comunitárias. Este movimento terá sempre como
pressuposto a perspectiva não de cessão de soberania, mas de ampliação da soberania como
soberania compartilhada.
18 O Tratado de Maastricht estabeleceu em seu artigo N que: “Em 1996 será convocada uma
Conferência de representantes dos governos dos Estados membros para analisar, de acordo com
os objetivos enunciados nos artigos A e B das Disposições Comuns, as disposições do presente
Tratado em relação às quais está prevista a revisão.”
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
97
A Conferência Intergovernamental – CIG – de 29 de março de 1996,
em Turim, deu início a revisão do Tratado sobre a União Europeia no seu
todo e de alguns pontos presentes nos Tratados fundacionais. A CIG cuidou
especialmente das questões que se mostravam mais sensíveis diante da opinião
pública. Assim, receberam destaque problemas relacionados a uma maior
transparência de toda a infra-estrutura comunitária, seu funcinamento e a
participação democrática em suas decisões. Também foram consideradas as
condições necessárias a ampliação do espaço de liberdade, segurança e justiça
para os cidadão dentro da UE. A política externa e de segurança comum foi
reforçada em seus princípios e objetivos. Eram todos temas recorrentes das
Conferências Intergovernamentais, que naquele momento só estavam
recebendo um tratamento especial. Porém, um novo tema se acrescentava
àqueles com grande urgência. Era o que tratava das condições de alargamento
da UE, com a hipótese de admissão de um número expressivos de países da
Europa Central e do Leste e ainda Malta e Chipre19. A perspectiva das
dificuldades de administrar tantos Estados nacionais dentro de uma mesma
comunidade, a ser formada por sociedades com histórias, culturas, línguas,
religiões, etnias tão diversas, sugeria ainda mais um tema: a possibilidade de
se instituir uma integração a velocidades diversas, ou como se chamou em
muitas oportunidades anteriores, uma Europa de geometria variável.
As questões relativas ao Acordo de Schenguen20 e a posição especial
do Reino Unido de rejeição das políticas sociais adotadas pela União Europeia,
paricularmente a partir do Tratado de Maasticht, contribuiram muito para os
resultados pouco expressivos obtidos em Amsterdam. De fato, o Tratado de
Amsterdam ficou bastante limitado nas questões institucionais em geral e na
criação de novos instrumentos políticos e jurídicos que pudessem intervir
positivamente nas negociações que levariam à ampliação do número de
19O ingresso de Chipre na União Europeia, como é de amplo conhecimento, por sua situação
complexa, exigiu grande habilidade política das autoridades de Bruxelas. Aquela pequena ilha do
Mediterrâneo, habitada por duas comunidades, uma greco-cipriota, ao Sul, e outra turco-cipriota,
ao Norte, é só mais uma herdeira dos malefícios deixados pelo colonialismo inglês em todos os
lugares por onde passou. Atualmente, com o nome de República de Chipre, os greco-cipriotas,
que formaram um país autônomo e independente, reconhecido como legítimo pela Comunidade
Internacional desde 1992, participam como mais um Estado membro da UE.
20 O Acordo de Schenguen é uma convenção entre os países da EU, com exceção do Reino Unido
e da Irlanda, pela qual são definidas as condições da livre circulação de pessoas no espaço
geográfico dos países signatários. O Acordo foi assinado em 14 de julho de 1985, tendo,
originalmente, a participação de cinco países: Alemanha Bélgica, França, Holanda e Luxemburgo.
FRANKLIN TREIN
98
estados membros da UE. Assinado em 2 de outubro de 1977, o Tratado
entrou em vigor em 1o de janeiro de 1999.
O alargamento da União Europeia, que teve inicio no começo dos anos
90, pôs em evidência a necessidade de novas bases para a integração, o que
também pode ser visto como as limitações das instituções comunitárias para
abrigar uma diversidade tão grande de países. Pressionados pelo debate
público sobre a ampliação das fronteiras da UE, várias lideranças europeia
romperam o silêncio e passaram a tomar parte ativa nas discussões. De maneira
geral foram vozes que falaram em favor de uma Federação de Estados
nacionais, na qual deveria ser possível conciliar interesses comuns a todos e
interesses individuais de cada país. Entre as principais personalidades que se
manifestaram estava Helmut Schmidt21, ex-chanceler federal alemão, Valéry
Giscard d’Estaing22, antigo presidente francês e Jaques Delors, aquele que
permaneceu por mais tempo na presidência da Comissão Europeia. Mas
coube ao então Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Joschka
Fischer23, em uma conferência na Universidade Humboldt, em Berlim, em 12
de maio de 2000, expressar oficialmente e com todas as letras qual seria o
formato de uma Federação para a Europa. Guardadas as diferenças, a
estrutura
federativa da Europa, na proposta de Fischer, era muito parecida
com a da República Federal da Alemanha, preservando-se para os Estados
nacionais, evidentemente, muito mais autonomia do que dispõem os Länder
na Federação Alemã.
A resposta francesa ao desafio de criação de um Federação de Estados
Europeus veio nas palavras do Presidente Jaques Chirac24, que em um discurso no
Bundestag – Parlamento Alemão, declarou aceitar a formação de um grupo pioneiro
franco-alemão, aberto à adesões, com a finalidade de impulsionar a integração,
mas que não estava de acordo com qualquer forma de superestado. É dispensável
dizer que a reação dos britânicos aos termos daquele debate foi de enfática rejeição.
21 Helmut Schmidt (1918 - ) estudou economia, foi governador da cidade-estado de Hamburgo,
deputado no Parlamento Federal alemão, Ministro de Defesa, Ministro de Finanças e Primeiro
Ministro de 1974 a 1982.
22 Valéry Giscard d’Estaing (1926 - ) nasceu em Koblenz, Alemanha, uma cidade situada na foz
de rio Mosel junto ao rio Reno. Cidadão francês, ele foi Ministro de Economia e Finança e mais
tarde presidente da França, de maio de 1974 a maio de 1981.
23 Joseph Martin Fischer – “Joschka”(1948 - ) foi Ministro de Relações Exteriores da Alemanha
de 1998 a 2005.
24 Jacques Chirac (1932 - ) estudou na Escola Nacional de Administração, foi Ministro da
Agricultura, Primeiro Ministro e Presidente da França.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
99
Se o debate sobre uma reforma profunda na estrutura da União Europeia
se mostrava impossível, a realidade dos fatos não economizava evidências de
que algo deveria ser feito, sob pena de se instaurar uma crise imprevisível,
capaz de comprometer todo o futuro da integração. Foi em meio a uma atmosfera
de grande tensão, a exigir soluções urgentes e de grande envergadura, que se
realizou a Conferência Intergovernamental de Nice, nos dias 7, 8 e 9 de
Dezembro de 2000. A mais longa e talvez mais difícil reunião do Conselho
Europeu até aquela data. As divergências entre as autoridade presentes sobre
a reforma das instituições pareciam instransponíveis.
O exame da agenda cumprida pela CIG de Nice permite algumas
observações indispensáveis ao entendimento do processo que se inaugura
com a disposição da UE de ampliar o número de seus Estados membros,
passando de quinze para vinte e sete em um breve transcurso de tempo. Em
primeiro lugar é possível identificar que, mesmo diante de tantas divergências,
no âmbito das questões jurídicas, foi relativamente fácil chegar a um consenso
sobre a reforma proposta para o sistema jurisdicional comunitário, com o
propósito de evitar o crescimento descontrolado do número de demandas
levadas à Côrte de Justiça e ao Tribunal de Primeira Instância das
Comunidades Europeias em Luxemburgo. O que se propôs como solução
foi a criação de Câmaras Juridicionais adjuntas ao Tribunal de Primeira
Instância, em condições de dar soluções aos processos sem a necessidade
da intervenção direta daquela Côrte e do Tribunal.
Outra questão que exigia uma solução ou pelo menos estruturas mais
condizentes com uma comunidades ampliada para quase três dezenas de
membros era o próprio sistema comunitário. Para aquele momento o sistema
comunitário podia ser resumido às atribuições do Presidente da Comissão
Europeia e aos mecanismos de cooperação entre os Estados membros. A
prática havia demonstrado que a autoridade do Presidente da Comissão
deveria ser sensivelmente reforçada, sob pena de graves prejuízos nas tomadas
de decisões e suas implementações. Após muitos debates, ficou estabelecido
que o Presidente passava a dividir suas atribuições com os demais Comissários
segundo seus critérios e poderia remanejar aquelas responsabilidades,
chegando até mesmo ao caso de pedir a demissão de um integrante da
Comissão. Ao Presidente foi dada ainda a competência de indicar seus Vice-
Presidentes.
A cooperação entre os Estados membros envolvia problemas ainda mais
difíceis para a construção de um consenso. O tratado de Amsterdam havia
FRANKLIN TREIN
100
deixado aberta a hipótese de certos Estados, em comum acordo com os
demais, estabelecerem processos mais acelerados de integração bilateral ou
mesmo multilateral, sem que isto implicasse na participação de todos os
Estados membros. Foi o que tomou o nome de cooperação reforçada25.
Porém, as restrições levantadas por aqueles que discordavam dessa solução
acabaram por impedir, naquele momento, qualquer ação nesse sentido. Ao
término de muito esforço o Conselho de Nice conseguiu progressos
significativos. Ficou estabelecido que a cooperação reforçada, ainda que com
restrições e procedimentos estritos, poderia ser praticada nos assuntos do
primeiro e terceiro pilares do Tratado sobre a União Europeia, ou seja, nas
questões comunitárias e referentes à justiça e à problemas internos,
respectivamente, mas por força das objeções levantadas pelo Reino Unido,
Irlanda e Suécia não poderia se praticada nos assuntos do segundo pilar, isto
é, aquele que diz respeito à PESC.
A composição da Comissão Europeia foi outro tema que gerou grandes
debates. A lógica aplicada até então – dois comissários para os países maiores
e um para os menores, assegurando pelo menos um comissário para cada
Estado membro – deveria ser mudada, sob pena de aquele órgão se tornar
completamente inoperante em suas decisões. Não foi possível qualquer forma
de solução e o problema foi postergado para um momento futuro, quando a
UE já tivesse assimilado todos os países candidatos a integrá-la.
Ao revisar questões pendentes de reuniões anteriores da CIG o Conselho
de Nice teve o cuidado de buscar temas que permitissem algum consenso sem as
intermináveis discussões ocorridas em oportunidades anteriores que acabavam
bloqueando o avanço do processo de integração. Assim puderam ser tratados os
seguintes problemas: o acordo sobre o estatuto das sociedades anônimas europeias
operando em mais de um Estado membro; as medidas necessárias ao reforço da
segurança marítima; a criação de uma autoridade europeia com funções consultivas
para cuidar dos problemas dos alimentos em geral; uma agenda social para a
Europa com clara definição de seu escopo; o reforço do espaço dito de liberdade,
segurança e justiça pelo reconhecimento mútuo das decisões judiciais; a adoção
de um plano de ação para estimular a mobilidade de estudantes, professores e
pesquisadores entre os Estados membros; uma declaração sobre o esporte,
buscando evitar a forte interferência do mercado nas atividades esportivas.
25 A importância da chamada “cooperação reforçada” para a integração fez com que o Tratado de
Lisboa tenha dedicado um Título inteiro, o IV, a definição de suas condições, finalidades e
objetivos.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
101
A perspectiva de ampliação do número de participantes do processo de
integração impunha um problema ao Parlamento Europeu que exigia urgente
solução. O Tratado de Amsterdam havia estabelecido um número máximo
de eurodeputados – 700 – que, se mantidas as regras vigentes de composição
do Parlamento para a União Europeia com 27 Estados membros, seria
ultrpassado, chegaria a 732. A solução não satisfez a todos, mas obteve um
consenso provisório26. O que talvez tenha sido mais relevante naquele momento
foi a decisão de ampliar a competência do Parlamento, e com isso reforçar
as suas atribuições legislativas.
As regras para as decisões do Conselho Europeu também foram objeto
de discussão. O objetivo era tornar aquele órgão mais ágil e fugir da facilidade
do veto individual ou mesmo de uma pequena minoria. Os avanços foram
difíceis. Em consequência o Tratado de Nice tornou ainda mais complexa as
discussões no âmbito do Conselho, pois as deliberações, para serem válidas,
devem contar com a maioria qualificada de votos, o que significa a maioria
numérica referente aos Estados membros e ainda representar a maioria da
população da União Europeia.
Resumidamente, se em decorrência das decisões que puderam ser
tomadas na CIG de Nice o Tratado, assinado em 26 de fevereiro de 2001,
criou condições para o alargamento, ao mesmo tempo deixou claro, mais
uma vez, a insuficiência dos mecanismos de negociação da própria CIG. De
qualquer forma, para evitar problemas ainda mais graves, ficou definido e foi
cumprida a data da entrada em vigor do Tratado de Nice: 1o de fevereiro de
2003.
2. A Convenção e o futuro da União Europeia
As limitações do tratado de Nice impuseram, já nos meses seguintes a
sua assinatura, a tomada de medidas urgentes relacionadas à reforma do
conjunto das instituições comunitárias. Deste modo, o Conselho Europeu
reunido em Laeken, em 15 de dezembro de 2001, decidiu convocar uma
Convenção sobre o futuro da Europa que, em primeiro lugar, deveria elaborar
26 Na intenção de resolver o problema do número de eurodeputados no Parlamento Europeu e
a distribuição da representação por país, a ata de adesão da Bulgária e da Romênia, assinada em
25 de abril de 2005, estabeleceu em seu artigo 9o que O Parlamento não teria mais do que 736
cadeiras. Naquele momento também ficou decidido que haverá uma nova repartição da
representação por país a partir do início da legislatura de 2009 – 2014.
FRANKLIN TREIN
102
um projeto de tratado constitucional para a União Europeia. A Declaração
de Laeken, além de definir a instalação de uma Convenção, estabeleceu os
termos de sua composição, seus objetivos, seu método de trabalho, dando
prazo para o cumprimento de suas tarefas: até 1o de março de 2003. Com a
finalidade de servir de roteiro para o trabalho da Convenção, os Chefes de
Estado e de Governo reunidos na CIG de Laeken formularam sessenta
questões relacionadas ao futuro da União Europeia. Aquelas perguntas se
distribuiam por quatro grandes temas: divisão e definição de competências;
simplificação dos Tratados; estrutura institucional e o caminho até uma
Constituição para os cidadãos europeus. A data de encerramento dos
trabalhos não pode ser cumprida. Um esforço concentrado, porém, tornou
possível chegar a bom termo em 10 de julho de 2003.
Indicado pela CIG de Laeken, Valéry Giscard d’Estaing presidiu a
Convenção, auxiliado por dois vice-presidentes: Giuliano Amato27 e Jean-
Luc Dehaene28. Os demais integrantes foram eleitos ou indicados. Em seu
conjunto representavam os órgãos comunitários, dos Estados membros e as
organizações da sociedade civil europeia mais diretamente envolvidas com a
construção da União. Os representantes dos países candidatos a participar
da UE ganharam assento nos debates da Convenção com direito à voz, porém
sem direito a voto. As reuniões, realizadas nas instalações do Parlamento
Europeu em Bruxelas, foram abertas ao público e acompanhadas pela
imprensa em geral. Um total de pouco menos de cem e até um pouco mais de
duzentos integrantes participaram diretamente dos debates em plenário e
votaram nas decisões sobre os princípios ou sobre as formulações do texto.
No transcurso dos trabalhos a Convenção teve que superar uma
dificuldade conceitual básica: seu mandato não era o de uma Assembleia
Constituinte e nem sequer o de substituição de uma CIG. A Declaração de
Laeken dizia expressamente que o mandato da Convenção era “para garantir
uma preparação, o mais transparente possível, da próxima Conferência
Intergovernamental.” Contornadas as pretenções constituintes dos muitos
participantes da Convenção, os trabalhos puderam ser iniciados e os debates
ganharam o seu ritmo próprio. Entre as questões examinadas, as principais
27 Giuliano Amato (1938 - ), cidadão italiano, é jurista, foi Ministro do Interior, do Orçamento,
da Reforma e do Tesouro da Itália. Entre 1992/93 e entre 2000/01 exerceu a Presidência do
Conselho de Ministros.
28 Jean-Luc Dehaene (1940 - ) nasceu em Montpellier, uma cidade situada no sul da França.
Cidadão belga, foi por duas vezes, entre 1995 e 1999, Primeiro Ministro da Bélgica.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
103
foram: a Carta dos Direitos Fundamentais do Cidadão Europeu; a
subsidiariedade; o papel do Poder Legislativo dos Estados membros; a
governança política e econômica; a política exterior; a política de segurança e
de defesa comuns; a simplificação dos procedimentos administrativos em
todos os níveis; o espaço de liberdade, de segurança e justiça no interior da
UE, a Europa social.
As questões institucionais, começando pela personalidade jurídica da
União, no entanto, foram as de mais difícil consenso. França, Reino Unido e
Espanha insistiram na necessidade de um Conselho com um presidente estável,
um responsável europeu para os assuntos exteriores e uma Comissão com
um menor número de membros. A Alemanha, por sua vez, punha sua ênfase
no reforço da autoridade do presidente da Comissão. Bélgica, Holanda e
Luxemburgo preiteavam um presidente da Comissão eleito pelo Parlamento
Europeu com funções também de presidente do Conselho de Ministros.
Paralelamente, a proposta de natureza completamente federalista, elaborada
pelo então Presidente da Comissão Romano Prodi29 sequer foi examinada
pelos convencionais.
A dificuldade de ver aceita uma estrutura federativa fez com Giscard
d’Estaing tenha optado em manter a forma tradicional da Comunidade, ou
seja, os três pilares representados pelo Conselho, Comissão e Parlamento.
Ainda por sua iniciativa o texto do tratado constitucional incluiu a definição do
cargo de presidente do Conselho como função exclusiva, eleito para um mandato
plurianual com duração de dois anos e meio. Os assuntos exteriores seriam
responsabilidade exclusiva de um ministro, que acumularia ainda as funções de
vice-presidente da Comissão, a qual teria seu número de integrantes menor do
que o de Estados membros, sendo seu presidente eleito pelo Parlamento Europeu.
Por fim, as decisões do Conselho se fariam com base no princípio da maioria
qualificada, ou seja, considerando tanto a necessidade da maioria simples entre
os Estados membros como um mínimo de 66% do total da população da UE.
O Conselho Europeu examinou o texto elaborado pela Convenção e,
após algumas dificuldade iniciais, deu a conhecer o seu consenso sobre o
mesmo. O Tratado que estabelece uma Constituição para Europa, e que
assim deveria inaugurar uma nova fase de sua história, foi assinado pelos 25
Chefes de Estado e de Governo, em Roma, no dia 29 de outubro de 2004.
29 Romano Prodi (1939 - ) Cidadão italiano, economista, foi Primeiro-Ministro da Itália por
duas vezes: de 1996 a 1998 e de 2006 a 2008. Presidiu a Comissão Européia de 1999 a 2004.
FRANKLIN TREIN
104
O processo de ratificação do Tratado Constitucional teve início logo a
seguir e as dificuldades em ver o texto aprovado pelos eleitores europeus ou
por seus representantes nos Parlamentos nacionais também apareceram
imediatamente. De qualquer modo, quando a França, em 29 de maio de
2005 e a Holanda, em 1o de junho de 2005, através de consulta direta aos
seus eleitores disseram não à Constituição, a mesma já havia sido aprovada
por 18 países – Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Eslováquia,
Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália, Letônia,
Lituânia, Luxemburgo, Malta e Romênia – os demais, que ainda não haviam
se manifestado decidiram suspender o processo de ratificação.
O não dos franceses e holandeses provocou uma grande crise política
nas relações internas da União Europeia. Era como se um portal para o futuro
tivesse sido fechado, interrompendo uma trajetória da qual muitos esperavam
a realização da grande oportunidade histórica para a Europa recuperar sua
posição de ator de primeira linha no cenário da Comunidade Internacional. A
saida para o impasse veio da Presidência alemã do Conselho que, com grande
interesse e muita habilidade conseguiu um acordo entre os seus pares, na
CIG de 21 e 22 de junho de 2007. A proposta feita por Berlim permitiu
reabrir as discussões
sobre o processo constitucional na forma de um mandato
de revisão do Tratado que estabelecia uma Constituição para Europa,
rejeitado pela França e pela Holanda. De alguma forma a proposta da
Chanceler Angela Merkel30 havia sido objeto de uma sugestão do Presidente
francês Nicolas Sarkozy quando este se referiu à hipótese de ser elaborado
um Tratado mais simples, que recolhesse as reforma estruturais estritamente
necessárias ao bom funcionamento da UE. De qualquer modo, a fórmula
conseguida pela Chanceler alemã foi muito mais ampla e contemplou todo o
texto da Constituição, abrindo a oportunidade para a elaboração de um
Tratado completamente novo.
3. O Tratado de Lisboa
Os estudiosos que acompanham o dia a dia da integração europeia e
entre eles em particular aqueles que observam a evolução de sua estrutura
político-jurídico coincidem na avaliação de que, apesar de todas as dificuldades
30 Angela Merkel (1954 -) foi Ministra da Mulher e da Juventude e Ministra do Meio Ambiente
antes de assumir o cargo de Primeira Ministra da República Federal da Alemanha.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
105
enfrentadas desde a crise criada pela negativa ao Tratado que estabelece
uma Constituição para a Europa em 2005, a União Europeia entrou numa
fase de constitucionalização de suas relações internas da qual não tem mais
como recuar. A constatação desta realidade histórico-política da UE não
significa, de maneira alguma, a solução de seus problemas, que ainda poderão
ser muitos com a não aprovação do Tratado de Lisboa por parte da Irlanda.
Esta é uma dificuldade real a ser enfrentada para a qual parece não existirem
muitas alternativas de solução a não ser o avanço em direção a uma nova
ordem jurídica, política e estrutural de toda a União. Diante de suas dimensões
atuais e da perspectiva, que se torna cada dia mais uma imposição, ou seja,
a de ter que admitir novos países, como é o caso da Croacia e, apesar de
todas as suas dificuldades, também o da Turquia, a União Europeia não dispõe
de muitas hipóteses, se não quiser renunciar ao seu projeto original. Ainda,
em outros termos, o que lhe resta é encontrar forças para assumir soluções
radicais para os seus problemas, o que não é uma tarefa simples.
Vejamos, brevemente, alguns elementos do Tratado de Lisboa que dão
à Europa a oportunidade de seguir com o seu propósito de integração. Em
primeiro lugar a CIG de Lisboa buscou encontrar, com o Tratado, uma forma
de superar a resposta negativa à Constituição. Isso significou, de um lado,
reestabelecer as bases institucionais necessárias às reformas inadiáveis da
UE, e, de outro, preservar aqueles ganhos extraordinários que o texto
constitucional havia recolhido. Tudo dentro do rígido princípio de que sem a
assinatura de todos os 27 Estados membros e a posterior homologação
unânime, nada acontecerá.
O exame comparativo do Tratado de Lisboa e do Tratado que
estabelece uma Constituição para a Europa revela que muitos pontos
fundamentais, bem como alguns princípio e normas complementares, mais
de conteúdo político do que de forma jurídica, reunidos pela Convenção,
encontram-se preservados no texto aprovado em Lisboa. Assim, o texto
aponta claramente para a necessidade de superação do déficit de
democracia que acompanha a construção da unidade da Europa desde a
sua origem. Da mesma forma faz referência à necessidade de a UE se
estruturar para desenvolver uma atuação global, porém com respaldo
não só de suas lideranças políticas mas também de sua base social, ou
seja, a sociedade civil europeia. Com uma estrutura tão
extraordinariamente grande e complexa, diante de uma realidade
internacional globalizada e de grande dinamismo é dispensável dizer que
FRANKLIN TREIN
106
as decisões devem ser ágeis, consistentes e consequentes. Tais
pressupostos implicam na necessidade de uma nova ordem e nenhuma
será melhor, até o presente momento histórico, do que aquela de natureza
federativa. Por isso mesmo, o Tratado de Lisboa preserva no seu interior
a trama federativa da Constituição. O conceito de democracia assume
assim uma nova dimensão, deixando de ser só representativa para ser
também participativa. O princípio de subsidiariedade ganha mais
consistência, uma vez que, com base numa ordem federativa os
Parlamentos nacionais passam a atuar de forma muito mais próxima das
atividades e das decisões dos órgãos da UE.
O que, de fato, muda completamente no Tratado de Lisboa em
comparação ao Tratado Constitucional é a relação entre as partes
signatárias, os Estados membros. Para encontrar uma solução para a
crise jurídico-política, resultante da negativa de aprovação da França e
da Holanada, a União Europeia se viu diante de uma única hipótese,
que foi a de continuar recorrendo à fórmula jurídica de “tratado
internacional” para regulamentar as suas relações internas, entre os
Estados membros, e ipso facto renunciar aos vínculos muito mais
estreitos e estritos que seriam criados por uma Constituição, a qual
estabeleceria entre todos uma estrutura jurídico-política de natureza
claramente federativa.
A diferença entre os dois Tratados pode ser identificada no próprio texto.
O Tratado Constitucional esta concebido como um “contrato” entre cidadãos,
enquanto que o Tratado de Lisboa é um texto que estabelece normas de
relacionamento interestatais. Por outro lado, o Tratado de Lisboa é de leitura
muito mais difícil do que o texto constitucional. Em Lisboa desaparecem as
simplificações. Retornaram ao texto as intrincadas referências a outros
ordenamentos jurídicos da UE, a exemplo do que pode ser encontrado em
todos os demais Tratados, como os de Maastricht, de Amsterdam e de
Nice. O texto que recebeu aprovação da CIG em 2007, na sua condição de
tratado, não contribui para resolver o emaranhado jurídico resultante da
sucessão dos Tratados, desde aquele que criou a CECA até o de Nice e que
hoje constituem a base institucional da União Europeia. O cidadão, não
especializado em questões político-jurídicas, para se situar dentro do espaço
comunitário, encontra-se agora, muito mais do que anteriormente, distante
da necessidade de entender não só a estrutura como a dinâmica de
funcionamento dos órgãos da UE. Neste sentido, as reclamações sobre a
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
107
intransparência da União Europeia são mais legítimas do que em qualquer
momento no passado.
O texto aprovado em Lisboa em 2007 deixa alguns prejuízos com relação
aquele aprovado em Roma em 2004. Não consta mais do seu arcabouço a
“Carta dos Direitos Fundamentais da União”, que compunha a Parte II do
Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Na intenção de
descaracterizar qualquer vínculo mais estreito que pudesse ser interpretado
como expressão de relações supranacionais, foram suprimidas do texto de
Lisboa todas as referência aos símbolos da União, tais como a bandeira, o
hino, o dia da Europa, etc. O preâmbulo do texto constitucional também foi
modificado, restando somente as referências a elementos que reforçam o
caráter interinstitucional do Tratado. Por fim, o texto tomou uma forma pela
qual passou a ser somente mais uma revisão dos Tratados anteriores, a
exemplo do que aconteceu com a sucessão de revisões ocorridas ao longo
das décadas de 80 e 90 do século passado.
Contudo, a leitura atenta do Tratado de Lisboa permite alguns
esclarecimentos importantes. Lisboa reafirmou a dimensão politicada UE de
forma incontestável. Acentuou os mecanismos da democracia representativa
e participativa, abrindo novos espaços para a participação direta dos cidadãos,
como o princípio de intervenção legislativa através de petição com um milhão
de assinaturas. Inovou ainda em um ponto fundamental ao criar condições
jurídico-políticas que permitem a um Estado membro por decisão voluntária
e soberana, solicitar seu desligamento da União. Desta forma as relações dos
países integrantes da Comunidade com o conjunto comunitário
ganha novas
dimensões, reforçando tanto os mecanismos do princípio de subsidiariedade
como as competências preestabelecida para os Parlamentos nacionais nos
assuntos de interesse bilaterais e multilaterais de interesse geral. Ao mesmo
tempo o Parlamento Europeu tem suas funções legislativas ampliadas,
tornando-se rotina a sua participação nas decisões em assuntos de relevância
para os Estados membros e a sociedade civil como um todo.
As mudanças funcionais dos órgãos comunitários também são visíveis.
Em primeiro lugar é possível identificar aquelas referentes ao Conselho
Europeu, que passa a ter uma estrutura permanente. A presidência deixa de
ser rotativa, trocando de titular a cada seis meses, e ganha um mandato
exclusivo. Outra função que recebe destaque é a do Alto Representante da
União Europeia para os Assuntos Exteriores e a Política de Segurança. Seu
titular tem assento tanto no Conselho, onde preside o Conselho de Relações
FRANKLIN TREIN
108
Exteriores,31 como na Comissão, onde é um dos seus Vice-Presidentes32. O
Conselho de Ministros como um todo assume uma nova dinâmica interna, ou
seja, passa a ter uma presidência rotativa, composta por três membros que
se sucedem ao longo de 18 meses, trocando de titular ao fim de cada
semestre. Ficam fora desta regra o Conselho de Relações Exteriores e o
Eurogrupo33. O primeiro terá como presidente permanente o Alto
Representante, enquanto que o segundo elegerá o seu respectivo presidente.
Ambos exercerão mandato de dois anos e meio, ou seja, coincidindo com o
mandato do Presidente do Conselho Europeu.
O Tratado de Lisboa não deu à Comissão Europeia nada de especialmente
novo. Talvez a mais expressiva de todas as novidades seja o estabelecimento
da regra que determina que o seu Presidente deve pertencer ao partido político
com o maior número de votos nas eleições para o Parlamento Europeu. Esta
foi uma decisão que pode ser entendida no sentido de dar à Comissão, o órgão
com atribuições executivas mais amplas na União Europeia, um pouco mais de
conteúdo democrático. O fato de que composição da Comissão se faz sempre
por indicação e não através de um processo eleitoral tem sido alvo de críticas
permanentes da opinião pública. Assim, esta pode não ter sido a melhor solução,
mas foi a forma encontrada neste momento para diminuir a distância entre a
Comissão Europeia e o cidadão eleitor.
Com o propósito de tornar mais eficaz e eficiente as suas tomadas de
decisão a Comissão teve acrescentadas mais competências as suas já extensas
atribuições. Complementarmente, desde uma outra perspectiva, é possível
observar ainda que a Comissão ganha um expressivo reforço institucional
quando o texto do Tratado define os atos jurídicos da União. O Tratado de
Lisboa qualifica os atos legislativos e executivos, distinguido uns e outros e
estabelecendo uma clara hierarquia entre eles.
O texto do Tratado aprovado em Lisboa tem o firme objetivo de resolver
um problema que ficou pendente quando da assinatura do Tratado de
31 O Conselho de Relações Exteriores é formado pelos Ministros de Relações Exteriores dos
Estados-Membros.
32 A função do Alto Representante da União Europeia para os Assuntos Exteriores e a Política
de Segurança como Vice-Presidente da Comissão Europeia está definida no Artigo 18o, inciso 4
do Tratado de Lisboa.
33 Denomina-se Eurogrupo o Conselho formado pelos Ministros titulares de Economia e Finanças
dos Estados membros. Suas atribuições se estendem às questões relativas as suas pastas para
os países que fazem parte da Eurozona, ou seja, aqueles que adotaram o euro como moeda
nacional.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
109
Maastricht, isto é, o da segmentação da infra-estrutura que sustenta a União
em três pilares: o comunitário, o da PESC e o da cooperação no domínio da
justiça e dos assuntos internos. Isto está consubstanciado nas definições de
competências para o desenvolvimento das políticas econômicas e sociais e
na melhor definição do que se deve entender por cooperação comunitária,
especialmente quando diz respeito diretamente à construção do que passou
a se chamar de “espaço de liberdade, de segurança e de justiça”. O Tratado
de Lisboa trata de dar à União Europeia uma unidade que o Tratado de
Maastricht não conseguiu construir.
Um elmento importante desta unidade definida em Lisboa pode ser
identificado na nova Política Externa Comum. Em primeiro lugar há um esforço
muito consistente de definir a personalidade jurídica, com direitos e deveres
da União Europeia, frente a países terceiros e aos organismos internacionais34.
Os primeiros beneficiados, neste caso, são os seus vizinhos, estejam eles nas
suas fronteiras junto à Europa Oriental, no Oriente Médio ou na Bacia do
Mediterrâneo. O Mercosul, que já mantém com a UE longos anos de
negociação de um acordo bilateral de cooperação poderá ter facilitado o seu
entendimento com os europeus, uma vez que as decisões dos representantes
europeus agora poderão se concentrar em questões mais básicas e de maior
densidade, deixando de lado detalhes, que muitas vezes foram a causa de
dificuldades insuperáveis no decorrer das discussões. Em outras palavras, o
Alto Representante, que responde pela política externa do Conselho e da
Comissão, juntamente com o Serviço Europeu de Ação Exterior35, que lhe
dá assistência, terá mais autoridade e autonomia para decidir nas questões
bilaterais e multilaterais de interesse da União Europeia.
O CIG de Lisboa não aprovou só um tratado. Na verdade, foram dois:
o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União
Europeia. São tratados distintos e complementares.
34 Se os Tratados fundacionais da União Europeia – CECA, CEE e EURATOM – proviam suas
respectivas Comunidades de personalidade jurídica internacional, isto não aconteceu quando
foi redigido o Tratado sobre a União Européia, assinado em Maastricht em 1992. Ou seja, de
acordo com os termos daquele texto a União Européia não está habilitada a assinar trados,
convênios, convenções ou qualquer outro instrumento jurídico com terceiros países. Para sanar
este problema o Tratado de Lisboa estabelece explicitamente o estatuto jurídico da União
Europeia, que assim pode representar legalmente o conjunto de países que lhe são signatários.
Diz o seu Artigo 47o “A União tem personalidade jurídica.”
35 O Serviço Europeu de Ação Exterior foi instituído pelo Tratado Constitucional em seu Artigo
III-296.3.
FRANKLIN TREIN
110
O primeiro, da União Europeia, em seu Artigo 1o declara:
“Pelo presente Tratado, as ALTAS PARTES CONTRATANTES instituem
entre si uma UNIÃO EUROPEIA, adiante designada por “União”, à qual
os Estados-Membros atribuem competências para atingirem os seus
objectivos comuns.
O presente Tratado assinala uma nova etapa no processo de criação de
uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as
decisões serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível e ao
nível mais próximo possível dos cidadãos.
A União funda-se no presente Tratado e no Tratado sobre o Funcionamento
da União Europeia (a seguir designados “os Tratados”). Estes dois Tratados
têm o mesmo valor jurídico. A União substitui-se e sucede à Comunidade
Europeia.”
O segundo Tratado, sobre o Funcionamento da União, define os seus
objetivos em seu Artigo 1o nos seguintes termos:
“1. O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina os
domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências.
2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem os
Tratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmo
valor jurídico, são designados pelos termos “os Tratados”.
O Tratado da União Europeia dedica todo o seu Título V ao que denomina
de “ação exterior e política exterior e de segurança comum”. Além de definir de
forma extensa e detalhada a Política Exterior e de Segurança Comum - PESC
- ficam estabelecidas
ali as relações de trabalho entre o Alto Representante da
União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, como membro do
Conselho, e a própria Comissão. No Artigo 24o se pode ler:
 “1. A competência da União em matéria de política externa e de segurança
comum abrange todos os domínios da política externa, bem como todas
as questões relativas à segurança da União, incluindo a definição gradual
de uma política comum de defesa que poderá conduzir a uma defesa
comum.”
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
111
Em outras palavras, o que a CIG aprovou em Lisboa significa que a UE
se propõe a assumir progressivamente a responsabilidade por todos os
assuntos que digam respeito às relações internacionais de seus Estados
membros, incluídos aí os relacionados à defesa e segurança coletiva da União.
Isto pode ser ainda melhor entendido se for acrescentado o que ficou
estabelecido no Tratado sobre o Funcionamento da União, em seu Artigo
222o, ao texto do Tratado da União Europeia, onde estão nomeadas as
“Tarefas de Petersberg”36 e o compromisso decorrente da Declaração de
Laeken. O conjunto de compromissos expressos naqueles documentos dão
a dimensão e a perspectiva a partir da qual Bruxelas entende como sendo da
sua responsabilidade cuidar dos interesses da União em tudo que diga respeito
às relações com países terceiros e com a Comunidade Internacional, tendo o
Alto Representante como elemento de ligação entre o Conselho e a Comissão.
 O interesse da CIG em destinar à União a competência pelas questões
de política externa e de segurança comum pode ser identificado ainda em um
outro contexto do Tratado de Lisboa. Mesmo que na letra do Tratado tenha
desaparecido o nome do Ministro de Assuntos Exteriores da União Europeia37
suas funções e responsabilidades permaneceram completamente preservadas.
Contudo, a denominação de Alto Representante da União Europeia para
Assuntos Exteriores e de Política de Segurança pode não ter sido a mais
feliz. O nome dado a esta função de um membro da Comissão, um de seus
Vice-presidentes, já mostrou que ela pode ser confundida facilmente com a
do Alto Representante para a Política Exterior e de Segurança Comum, função
acumulada pelo Secretário Geral do Conselho.
A Política Exterior e de Segurança Comum – PESC – foi instituída pelo
Tratado sobre a União Europeia – TUE – (1992) e completada pelo Tratado
de Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001). O Artigo 17o do
TUE, consolidado, não só define o que são as atribuições da PESC, como
36 As «Tarefas de Petersberg» fazem parte integrante da política europeia de segurança e de
defesa (PESD). Foram incluídas expressamente no Tratado da União Europeia (artigo 17.º) e
abrangem: as missões humanitárias ou de evacuação dos cidadãos nacionais; as missões de
manutenção da paz e as missões de forças de combate para a gestão das crises, incluindo
operações de restabelecimento da paz. Estas missões foram instituídas pela Declaração de
Petersberg, adotada na sequência do Conselho Ministerial da União da Europa Ocidental –
UEO – realizado em Junho de 1992. Nos termos daquela declaração, os Estados membros da
UEO decidiram colocar à disposição daquela organização e igualmente da NATO e da União
Europeia, unidades militares provenientes dos diversos ramos das suas Forças Armadas
convencionais.
37 Artigo III-195o do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.
FRANKLIN TREIN
112
estabelece ainda que ela contemple uma política de defesa comum, que poderá
conduzir a uma defesa comum. O texto sublinha que, para tanto, a definição
progressiva da política de defesa comum estará respalda pela cooperação
entre si dos Estados membros no setor de armamentos38. O Artigo seguinte
(18o) estabelece que o Presidente do Conselho será o responsável pela
PESC em representação da União. Ainda no âmbito da PESC um Comitê
Político e de Segurança39 acompanhará a situação internacional e através de
suas análises e relatórios contribuirá com as decisões do Conselho. Desta
forma o Comitê Político e de Segurança se soma ao conjunto das autoridades
da União Europeia responsáveis pela formulação da Política Exterior de
Segurança e Defesa – PESD.
Desde a entrada em vigor do Tratado sobre a União Europeia no início
da década de 90 o dia a dia das atividades do Alto Representante da Política
Exterior e de Segurança Comum mostrou, tanto para o interior da UE como
para a Comunidade Internacional, a relevância daquela função. Numa e noutra
direção a atividade do Alto Representante serviu tanto para fazer convergir
as políticas dos Estados membros como para dar uma dimensão de unidade
e coerência à UE. Assim, a PESC, como talvez nenhuma outra política comum,
cumpriu com o objetivo de construir uma imagem unificada da Europa,
superando até mesmo a Política Agrícola Comum – PAC, instituída duas
décadas antes. Isto contribuiu para que o Tratado de Lisboa tenha mantido
integralmente as tarefas inerentes àquela política concentrando ainda nas
funções do novo Alto Representante as atribuições que cabiam ao Comissário
para as Relações Exteriores e Política Europeia de Vizinhança.
As questões de política externa, defesa e segurança estão definidas no
Tratado de Lisboa nos Títulos III e V. No primeiro, em seu Artigo 18o, inciso
1, está dito: “O Conselho Europeu nomeará por maioria qualificada, com
a aprovação do Presidente da Comissão, o Alto Representante da União
para Assuntos Exteriores e Política de Segurança.” O mesmo Artigo
estabelece ainda que o Alto Representante estará à frente da Política Exterior
e de Segurança Comum – PESC – da União e atuará, do mesmo modo, em
relação a política comum de segurança e defesa.
38 Para promover a integração de suas respectivas Forças Armadas os Estados membros que
assim desejarem podem se valer das disposições sobre as cooperações reforçadas, previstas no
Título IV do Tratado de Lisboa.
39 As tarefas do Comitê Político e de Segurança estão bem definidas no Artigo 38 do Tratado de
Lisboa, que assume o conteúdo do Artigo 25 da TUE.
UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE
113
No Título V, que trata das “Disposições gerais relativas à ação exterior
da União e disposições específicas relativas à política exterior e de segurança
comum”, em seu Artigo 24o40, como já foi observado, dispõe que a política
exterior e de segurança comum será executada pelo Alto Representante da
União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança acrescentando os
Estados membros como co-responsáveis41. Em outras palavras, compete ao
Alto Representante coordenar o diálogo político com terceiros países como
representante da União Europeia, tarefa que divide, é necessário observar,
com o Presidente do Conselho Europeu, assim como compartilha com o
Presidente da Comissão Europeia as responsabilidades nos assuntos
pertinentes às relações exteriores.
O Artigo 27o, em seu inciso 3, determina que o trabalho do Alto
Representante seja apoiado pelo Serviço Europeu de Ação Exterior – SEAE
– em colaboração com os Serviços Diplomáticos dos Estados membros. O
texto do mesmo inciso esclarece ainda que a composição do SEAE se fará a
partir de funcionários dos serviços competentes da Secretaria-Geral do
Conselho e da Comissão e por pessoal em comissão de serviço do Serviço
Diplomáticos nacionais.
O tratado da União Europeia contribui decisivamente para o
esclarecimento das relações internas à União quando se trata de questões de
política externa, defesa e segurança. Ao resgatar os ganhos alcançados pelo
Tratado, que estabelecia uma Constituição para a Europa, foi possível manter
os ordenamentos que preservam o lema da UE: “unidade na diversidade”.
Assim, as questões de âmbito comunitário, de responsabilidade da Comissão,
passam a ser tratadas em sintonia com as questões de responsabilidade
intergovernamental, ou seja, da esfera do Conselho. Isto permite à Europa,
pela primeira vez de forma consistente e consequente, falar de
uma Política
Externa Comum – PEC.
O problema de uma PEC não é novo para a UE e sua principal dificuldade
estava sempre relacionada à cessão de soberania. O que agora fica redefinido
é que, a exemplo da política interna42, ao passar da esfera intergovernamental
40 Este Artigo recupera todo o conteúdo do Artigo 11o do TUE.
41 Ao estabelecer esta parceria entre a União e os Estados membros o Tratado de Lisboa elege,
claramente, não só a co-responsabilidade pelos assuntos de política externa, defesa e segurança,
mas ainda a dupla intervenção: interestatal e intergovernamental.
42 Pelos termos do Tratado da União Européia qualquer cidadão de um Estado membro, ao
assumir a cidadania europeia, passa a somá-la a sua cidadania nacional, uma vez que a aquisição
do status de cidadão europeu não implica na renúncia de sua cidadania de origem.
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114
para a comunitária o que acontece, de facto e de jura, é a ampliação da
soberania dos Estados-membros, uma vez que passa a ser compartilhada,
ou seja, a soberania nacional de um Estado se amplia para os demais Estados.
Dito de outra forma, isto só é possível na medida em que admite compartilhar
suas decisões sobre política externa, defesa e segurança. Ou seja, nenhum
Estado está renunciando as suas responsabilidades.
O Tratado da União Europeia permite que a União passe a atuar de
forma coerente e convergente em questões que estiveram dispersas e mesmo
contraditórias em muitos momentos. A UE ganha unidade para a sua política
de comércio internacional, para a sua política de desenvolvimento e para a
política ambiental, resolvendo assim conflitos e inconsistências não só entre
os Estados membros, mas também entre as ações dos Comissários,
responsáveis por cada uma daquelas áreas43.
Concluindo, vale a pena lembrar as declarações “13 e 14”, anexas ao
Tratado de Lisboa, que ampliam as responsabilidade e co-decisões e assuntos
de política externa, de segurança e defesa da UE. A primeira refere-se à
importância da participação e cooperação entre os Parlamentos nacionais e o
Parlamento Europeu e a segunda conclama à formação de uma “Conferência
dos Parlamentos” como instrumento de participação mais efetivo dos órgãos
legislativos dos Estados membros e da União nas questões relativas à integração.
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121
Brasil-União Europeia: Uma parceria estratégica
Maria Edileuza Fontenele Reis*
No dia 4 de julho de 2007, na Cúpula de Lisboa, durante a Presidência
de Portugal do Conselho da União Europeia, com a participação do Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, do Primeiro-Ministro de Portugal, José Sócrates
Carvalho Pinto de Sousa, do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel
Durão Barroso e do Primeiro- Ministro da Eslovênia, Janez Jansa, foi lançada
a Parceria Estratégica entre o Brasil e a União Europeia. Trata-se de iniciativa
de grande envergadura para o aprofundamento e a dinamização do
relacionamento entre o Brasil e a União Europeia. A Parceria Estratégica
representa a elevação do diálogo ao mais alto patamar para o tratamento não
só da ampla gama de iniciativas na pauta bilateral, mas também para a
cooperação em temas afetos às respectivas conjunturas regionais e em assuntos
de interesse global, efetivo reflexo do aprofundamento das relações bilaterais.
A parceria estratégica Brasil-UE insere-se, assim, no contexto de
dinamização da cooperação em diferentes áreas de interesse mútuo, entre as
quais se situam novas iniciativas em energia/biocombustíveis, ciência e
tecnologia, meio ambiente, cooperação técnica, temas sociais,
desenvolvimento regional e transportes marítimos. Reflete também a
dinamização do relacionamento político bilateral, consubstanciada na
formalização, em 30 de abril, do Diálogo Político de Alto Nível Brasil-UE,
* Embaixadora. Diretora do Departamento da Europa.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
122
mecanismo que se reuniu em Brasília, no dia 03 maio de 2007, em Luibliana,
em 06 de junho de 2008, e em Praga, em 24 de março de 2009. Nessas
ocasiões, foram abordados temas da agendas bilateral e regional, bem como
assuntos multilaterais de interesse comum.
A Parceria Estratégia não é uma panacéia – nem para um lado, nem
para o outro. Recorda-se nesse particular que o termo “estratégia”, tomado
de empréstimo do vocabulário militar, pode ser definido em linguagem
diplomática como a arte de aplicar meios disponíveis com vistas à
consecução de objetivos específicos – de explorar condições favoráveis
com o fim de alcançar metas. Nesse entendimento, a Parceria Estratégica
Brasil-União Europeia traduz a disposição de dois grandes parceiros, com
interesses consolidados, de buscar novas formas de cooperação lastreadas
no respeito mútuo e no reconhecimento da crescente importância de ambos
os atores na conformação de uma ordem internacional multipolar. A Parceria
Estratégica é, portanto, o mecanismo formal ao amparo do qual serão
desenvolvidas, de forma orgânica, sistêmica e consistente, as possibilidades
de maior interação entre o Brasil e a União Europeia nos campos político,
econômico-comercial, científico e tecnológico, cultural, de migrações, e da
cooperação em benefício de terceiros países. Conforme afirmou o Presidente
Lula em seu pronunciamento na Cúpula de Lisboa, com a Parceria
Estratégica “estamos elevando nossa relação à altura de suas
potencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundo
em transformação. Comungamos de princípios democráticos e do respeito
aos direitos humanos. Respaldamos as Nações Unidas como principal
instrumento da defesa da paz e da segurança internacionais. Confiamos no
sistema multilateral para a promoção do desenvolvimento com justiça social.
O grande desafio que temos é o de operacionalizar esses valores, mediante
propostas concretas, ou pelo menos coordenadas. Para isso deve servir
nosso diálogo”.1
As relações entre o Brasil e a União Europeia são quase tão antigas
quanto os Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a Comunidade
Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica
(EURATOM)2. Foram formalizadas em 1960, quando estabelecemos relações
1 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a Cúpula de Lisboa, 4 de julho de
2007. Presidência da República, Secretaria de Comunicação Social.
2 Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a Comunidade Econômica Europeia (CEE)
e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM).
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
123
diplomáticas, e implementadas já a partir do ano seguinte, com a instalação,
em Bruxelas, de nossa representação junto à CEE.
O Brasil acompanhou com grande atenção a evolução do complexo
processo de constituição da União Europeia desde sua gênese, com a criação
da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) em 1952, assim
como os Tratados de Roma, de março de 1957, e a instituição do Ato Único
Europeu, de 1968, que reunia as três Comunidades, lançando as bases para
a conformação, em 1992, do mercado comum com livre circulação, na então
Europa dos 12, de bens, capital e serviços.
Acompanhamos também a evolução institucional da UE, engendrada na
esteira de seu processo de alargamento e de aprofundamento, mediante a
criação de ampla e complexa rede de instituições gestadas no processo de
integração europeu. Nesse quadro, destaca-se o Tratado de Maastricht
(1992), também chamado de Tratado da União Europeia, que lançou as
bases para a política monetária, moeda única (e criação do Banco Central
Europeu), e cidadania comunitária, definindo os três pilares que passariam a
orientar a integração Europeia: a dimensão comunitária; a política exterior e
de segurança; e assuntos de Interior e Justiça. Da mesma forma, observamos
o processo de aperfeiçoamento institucional da UE, em que desempenha
papel de relevo o Tratado de Amsterdã, o qual amplia o escopo do interesse
comunitário ao introduzir o tratamento de temas sociais e direitos humanos,
bem como o Tratado de Nice (2001), que introduz adaptações especialmente
na composição do Parlamento Europeu, com vistas à absorção de 10 novos
membros.
Com a mesma atenção, acompanhamos os movimentos em direção à
ambiciosa empreitada de elaboração de uma Constituição Europeia, como
propunha o Tratado de 18 de julho de 20043, malogrado com sua negação
pela França e pelos Países Baixos. Seguimos agora o processo de ratificação
do Tratado de Reforma da União Europeia (Tratado de Lisboa), 2007,
especialmente à luz de disposições relativas a uma maior convergência em matéria
de política externa. O aperfeiçoamento jurídico e institucional da UE, com seu
contínuo processo de integração política, econômica e comercial, certamente
traz conseqüências que transcendem os limites de seu próprio espaço geográfico.
Nesse contexto, identifica-se também o desejo europeu de maior protagonismo
político na conformação de uma ordem internacional multipolar.
3 Tratado Constitucional para a União Europeia, assinado em Roma, em 29 de outubro de 2004.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
124
Certamente, como experiência sem precedentes na história, a
conformação da União Europeia nos serviu como fonte privilegiada de
inspiração na concepção do nosso próprio mecanismo de integração regional.
Mas no que diz respeito ao relacionamento bilateral propriamente dito, é
forçoso reconhecer que muito pouco desenvolvemos em quase cinquenta
anos. Essa percepção é ilustrada de forma eloquente pelo fato de que entre
1960 e 2006 nunca houve uma visita ao Brasil de um Presidente da Comissão
Europeia – e até 2007, jamais um Presidente do Brasil havia visitado
oficialmente a Comissão Europeia. A relação bilateral ao longo de todo esse
período era rarefeita e marcada por disputas em torno de tarifas, imposição
de padrões e de posições sobre os mais diversos temas.
Cabe, contudo, recordar aqui o diálogo birregional que tem caracterizado
o relacionamento político entre a Europa e a América Latina, iniciado ainda
na década de oitenta, quando a Comunidade Europeia promoveu, em 1984,
em São José da Costa Rica, reunião com vistas à promoção do processo de
paz na América Central, em associação com o Grupo de Contadora, integrado
por México, Colômbia, Venezuela e Panamá. Com a posterior formação do
Grupo do Rio, em 1986, através da fusão do Grupo de Contadora com o
Grupo de Apoio a Contadora, formado por Brasil, Argentina, Peru e Uruguai,
foi institucionalizado, em 1990, o diálogo político regular entre a tróica Europeia
e os Ministros das Relações Exteriores do Grupo do Rio, mecanismo que,
desde então, se reúne bienalmente, alternando seus encontros com aqueles
das Cúpulas América Latina e Caribe-União Europeia, instituídas em 1999,
quando se realizou a sua primeira cimeira, no Rio de Janeiro. As reuniões
ministeriais Grupo do Rio-UE e os encontros em nível de Chefes de Estado
e de Governo no contexto das Cúpulas América Latina e Caribe-UE têm
sido os principais foros de diálogo político birregional.
Mas a análise do relacionamento da União Europeia com a América Latina
e Caribe também envolve forte vertente econômica, com evolução histórica
passando pelo sistema de preferências tarifárias aplicadas aos países ACP
(notadamente do Caribe – acordos de Cotonou, Lomé e Iaundê), até as
negociações de acordo de parceria econômica com a CARICOM, com a
Comunidade Andina, os Acordos de Associação firmados com Chile e México
(e seu sucesso na ampliação da pauta comercial bilateral) às negociações de
Acordo de Associação Mercosul-UE, lançadas em 1999 e ainda não concluídas.
Ainda no final de 2005, quando me preparava para assumir a direção do
Departamento da Europa, unidade no Ministério das Relações Exteriores
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
125
encarregada do relacionamento bilateral com a União Europeia, verifiquei
em minhas leituras, que, em paralelo ao aprofundamento de seu processo de
integração, Bruxelas tecia também rede de parcerias extra-regionais com
países relevantes na cena internacional. Nesse quadro, sobressaem a relação
privilegiada com os Estados Unidos da América e, na sua seqüência, com o
Canadá, atores tradicionais no eixo euroatlântico; com o Japão, expressivo
parceiro econômico da EU; com a Rússia, vizinho de importância estratégica
no contexto geopolítico e da segurança energética da União Europeia; e com
a China e a Índia, economias emergentes com mercados altamente atraentes
para a economia Europeia.
Saltava aos olhos a ausência do Brasil nesse conjunto de parcerias,
sobretudo quando consideramos que entre os BRICs faltava apenas o “B”.
Essa percepção também já permeava pronunciamentos de autoridades
comunitárias, que identificavam no Brasil ator de crescente importância no
cenário global. De fato, a partir do início do Governo do Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, após consolidadas importantes conquistas da sociedade
brasileira, como o fortalecimento de suas instituições democráticas e a
estabilidade política e econômica, o Brasil passou a assumir crescente
protagonismo em temas de interesse global. O empenho do Brasil na
promoção do desenvolvimento com justiça social, o pioneirismo na produção
e no uso de fontes limpas de energia, o compromisso com a preservação do
meio ambiente, o respeito aos direitos humanos e os esforços em prol na
integração regional são elementos da voz forte do Brasil em diferentes tabuleiros
políticos, econômicos e sociais.
Com efeito, em janeiro de 2006, em reunião no Itamaraty com o
Representante da Comissão Europeia em Brasília, Embaixador João Pacheco,
deu-se início às tratativas com vistas ao estabelecimento da relação de Parceira
Estratégia entre o Brasil e a União Europeia4. Nesse contexto, realizou-se a
primeira visita ao Brasil de um Presidente da Comissão Europeia, o Dr. José
Manuel Durão Barrroso, em fins de maio de 2006. No diálogo mantido naquela
ocasião entre o Presidente da República e o Presidente da Comissão Europeia
evidenciou-se vasto potencial de cooperação em novas áreas de interesse
mútuo, bem como de aprofundamento das relações em iniciativas já em curso.
Foi naquele encontro que o Presidente da Comissão Europeia, animado pelo
4 Despacho Telegráfico número 23, de 26 de janeiro de 2006, para a Missão junto à Comunidade
Europeia em Bruxelas.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
126
entusiasmo do Presidente Lula com o desenvolvimento brasileiro dos
biocombustíveis e sua conseqüente
contribuição para mitigar os efeitos da
mudança do clima, incluindo também importante dimensão social ao propiciar
sustento para áreas mais pobres do planeta, convidou-o para ser palestrante
de honra da Conferência Internacional sobre Biocombustíveis que se propunha
organizar em 2007, e de fato realizada em Bruxelas, em 5 de julho daquele
ano.
No processo de lançamento da Parceria Estratégica, a Comissão
Europeia publicou, no dia 30 de maio de 2007, nota à imprensa com o seguinte
teor: “A Comissão Europeia propôs lançar uma Parceria Estratégica com o
Brasil na primeira Cimeira UE-Brasil que se realizará em Lisboa em 4 de
Julho. Numa Comunicação hoje adotada, a Comissão sublinha o papel
crescente desempenhado pelo Brasil na cena internacional, o seu peso a nível
regional e os fortes vínculos bilaterais que existem entre o país e a Europa e
propõe um certo número de iniciativas para reforçar as relações entre as
duas partes no quadro de uma Parceria Estratégica. A Comunicação identifica
um vasto espectro de sectores e atividades em que a UE tem um interesse
fundamental em reforçar a cooperação e em desenvolver um diálogo mais
aprofundado com o Brasil”5. A Comunicação sublinha igualmente a importância
de um diálogo reforçado para apoiar a conclusão de um Acordo de Associação
UE-Mercosul.
Elaborada na perspectiva da realização da Cimeira UE-Brasil, a referida
Comunicação foi discutida com os Estados-Membros e constituiu base para
a Agenda da Cúpula de Lisboa. Naquele documento, o Presidente da
Comissão Europeia expressou que: “O Brasil é um parceiro importante para
a UE. Não só partilhamos laços históricos e culturais estreitos, valores, e um
forte empenhamento nas instituições multilaterais, mas também a capacidade
para dar uma contribuição decisiva para o tratamento de muitos desafios
globais como as alterações climáticas, a pobreza, o multilateralismo, os direitos
humanos e outros. Ao propor um estreitamento destes laços, reconhecemos
o estatuto do Brasil como protagonista fundamental para integrar o clube
restrito dos nossos parceiros estratégicos.” A Comissária de Relações
Exteriores e Política Europeia de Vizinhança Benita Ferrero-Waldner, por
sua vez, referiu: “Existe um enorme potencial por explorar nas nossas relações
com o Brasil a nível multilateral, regional e bilateral. Esta Parceria Estratégica
5 Comunicação interna da Comissão Europeia, datada de 30 de maio de 2007.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
127
permitir-nos-á desenvolver ainda mais a nossa cooperação em sectores-chave
como a energia, os transportes marítimos e o desenvolvimento regional, e
estabelecer novas relações duradouras entre os nossos povos”.
A Comunicação “Para uma Parceria Estratégica UE-Brasil”6 propunha
uma vasta gama de áreas e setores para uma cooperação e uma parceria
mais estreita. As áreas prioritárias de ação incluem o reforço do
multilateralismo, com vistas à construção de um sistema das Nações Unidas
mais eficaz e a promoção dos Direitos Humanos. A Comissão propõe cooperar
estreitamente em relação a desafios globais como a pobreza e as desigualdades,
as questões ambientais (em especial as alterações climáticas, as florestas, a
gestão dos recursos hídricos e a biodiversidade), energia, reforçar a
estabilidade e a prosperidade na América Latina e a cooperação em matéria
de integração regional com o Mercosul, bem como a determinação conjunta
de concluir um acordo UE-Mercosul.
Ao salientar que o Brasil é o mais importante mercado da UE na América
Latina, a Comissão propunha tratar as questões relativas ao comércio e ao
investimento de relevância bilateral específica que complementam as
discussões UE-Mercosul e sugeria reforçar a cooperação em setores e áreas
de interesse mútuo como as questões econômicas e financeiras, a sociedade
da informação, os transportes aéreos, os transportes marítimos, a ciência e
tecnologia, a navegação por satélite, as questões sociais e o desenvolvimento
regional. Por último, sugeria igualmente ações para aproximar os povos através
do sistema de intercâmbio de estudantes universitários Erasmus Mundus,
do diálogo cultural e de uma Mesa Redonda de empresas a realizar-se
paralelamente à Cimeira. Cabe aqui, no entanto, o registro do entendimento
do Governo brasileiro de que a Parceria Estratégica Brasil-União Europeia
tem caráter estritamente bilateral e não constitui instância negociadora do
Acordo de Associação Mercosul-UE, que tem seus foros próprios de diálogo.
A Parceria, contudo, poderá representar um impulso político às negociações
Mercosul-UE, em sintonia com os objetivos compartilhados pelos países do
Mercosul 7.
A Comunicação incluía duas recomendações principais aos Estados-
Membros da UE: lançar com o Brasil uma Parceria Estratégica na Cimeira
6 Documento da Presidência do Conselho da União Europeia, de 2 de junho de 2007, que dispõe
sobre o estabelecimento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia.
7 Circular Telegráfica nº 6.4149, de 31.05.2007, a todas as Embaixadas brasileiras no exteriores,
com esclarecimentos sobre o lançamento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
128
de Julho em Lisboa; e convidar o Brasil a apresentar sua posição sobre o
alcance desta Parceria Estratégica. Na base dessas recomendações estava a
percepção europeia de que “Brazil is an increasingly important partner
for the EU and also a highly competitive player in regional and global
issues. It is a key actor in Latin America both because of its political and
economic weight and as a result of its leadership role in the region (eg
leading the UN stabilization mission in Haiti). It plays a lead role in
Mercosur and in other South American regional processes. Brazil seeks
to promote effective multilateralism and is one of the most important
and articulate countries within the developing world. As leader of the
G-20, it will continue to play a crucial role in multilateral trade
negotiations (WTO) and because of the richness of its natural environment
and biodiversity will be a key partner on environmental issues. The EU
is the first largest investor and trade partner of Brazil. The fifth largest
country in the world, Brazil has become such an important part of the
international architecture that many issues of the international agenda
require that we work in partnership. For all these reasons, the EU has a
strong interest in strengthening its dialogue with Brazil.”8
A Chancelaria brasileira, por sua vez, emitiu, em Nota à Imprensa
expressando que o Governo brasileiro acolhera, de forma altamente positiva,
a proposta da Comissão Europeia de lançar relação de Parceria Estratégica
com o Brasil, como uma decorrência natural do relacionamento bilateral do
Brasil com a União Europeia. A proposta encontra também sintonia com as
parcerias estratégicas que o Brasil já mantém com vários Estados-Membros
da União Europeia, entre os quais a Alemanha, França, Reino Unido, Portugal,
Espanha e Itália, países que estão entre os nossos mais importantes parceiros
comerciais e entre os maiores investidores no Brasil, além de serem importantes
as relações em ciência e tecnologia. Harmoniza-se, ainda, com interesse do
Brasil de aprofundar com a União Europeia não só o relacionamento bilateral,
mas também o diálogo sobre temas de interesse global.
Dada a elevada sintonia dos interesses de ambas as partes, o processo
negociador avançou rapidamente, culminando com a formalização da Parceria
Estratégica na Cúpula de Lisboa, em 4 de julho de 2007, durante a presidência
portuguesa do Conselho da UE. Cabe aqui também registrar o empenho de
8 Draft Preparation Document of the Lisbon Summit – Comunicação da Comissão Europeia à
Presidência do Conselho e ao Parlamento Europeu. Documento interno da Comissão Europeia
para a preparação da Cúpula de Lisboa. Bruxelas, 30 de maio de 2007.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
129
Portugal no lançamento da Parceria durante sua Presidência do Conselho da
UE, expresso em suas gestões junto a outros Estados-Membros da UE e na
organização da Cúpula de Lisboa. Conforme palavras do então embaixador
de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, “resolvemos propor que
fosse atribuído ao Brasil o estatuto de interlocutor privilegiado. É uma espécie
de quadro referencial de interlocução nas mais diversas áreas, desde a política
externa até questões ambientais. Um quadro em que se integrarão não só
todos os modelos de cooperação que já existem entre o Brasil e a União
Europeia, mas também futuros modelos, porque pensamos que o Brasil é um
ator no quadro internacional que justifica maior atenção do que tem tido até
agora”9. Portugal também se empenhou para fazer da Cúpula de Lisboa um
evento de natureza singular, tendo convidado para o evento outros Chefes de
Governo europeus. Assim, ao ato comemorativo do lançamento da Parceria
Estratégica Brasil União-Europeia, sob a condução do Presidente Aníbal
Cavaco Silva, juntaram-se ao Presidente Lula, além dos Primeiros-Ministros
de Portugal, Eslovênia e o Presidente da Comissão Europeia, formando a
tróica da UE, também o Presidente da França, Nicolas Sarkozy, o Presidente
do Governo da Espanha, Jose Luís Rodríguz Zapatero, o Presidente do
Conselho de Ministros da Itália, Romano Prodi, entre outros líderes europeus.
No contexto do lançamento da Parceria Estratégica, foi também organizado
o I Foro Empresarial Brasil-União Europeia, com expressiva participação de
representantes das áreas de comércio e de investimentos dos dois lados.
A importância daquele evento encontra-se refletida no parágrafo 3 da
Declaração Conjunta da Cúpula de Lisboa, que assim dispõe:
“No momento histórico da sua primeira Cúpula, o Brasil e a UE decidiram
estabelecer uma Parceria Estratégica abrangente, baseada nos seus
estreitos laços históricos, culturais e econômicos. Ambas as partes
partilham valores e princípios essenciais, como a democracia, o primado
do Direito, a promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais
e a economia de mercado. Os dois lados concordam com a necessidade
de identificar e promover estratégias comuns para enfrentar os desafios
mundiais, inclusive em matéria de paz e segurança, democracia e direitos
humanos, mudança do clima, diversidade biológica, segurança energética
e desenvolvimento sustentável, luta contra a pobreza e a exclusão. Estão
9 Francisco Seixas da Costa, entrevista à Radiobras/Agência Brasil, em 5 de junho de 2007.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
130
também de acordo quanto à importância de cumprir as obrigações
decorrentes dos tratados internacionais vigentes em matéria de
desarmamento e não-proliferação. O Brasil e a UE concordam em que a
melhor forma de abordar as questões de ordem mundial se dá pela via de
um multilateralismo efetivo centrado no sistema das Nações Unidas. Ambas
as partes se congratulam pelo estabelecimento de um diálogo político Brasil-
UE, iniciado sob a Presidência alemã da União Europeia”10.
Naquela ocasião, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso
por ocasião da Cúpula de Lisboa, sublinhou
“Hoje nos reunimos para dar início a uma nova era do relacionamento
entre o Brasil e a União Europeia. Estamos lançando uma parceria
estratégica, estamos elevando nossa relação à altura de suas
potencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundo
em transformação. As grandes questões globais como comércio, mudança
do clima, segurança energética, não podem ser discutidas em círculos
restritos que não levem em conta as posições dos grandes países em
desenvolvimento. Se quisermos verdadeiramente construir um mundo
melhor, temos que estimular o diálogo e a cooperação entre o Sul e o
Norte sobre os principais temas da agenda global”11.
A referida Declaração Conjunta já estabelecia as principais áreas que as
duas partes se propunham a aprofundar, entre as quais listavam o fortalecimento
do diálogo político com vistas ao tratamento dos principais desafios mundiais,
a cooperação no plano birregional no contexto das Cúpulas América Latina e
Caribe-União Europeia; o fortalecimento das relações econômicas e comerciais
nos âmbitos bilateral e birregional; o fortalecimento dos Diálogos Setoriais
bilaterais já estabelecidos em matéria de transportes marítimos, ciência e
tecnologia e sociedade da informação; meio ambiente e desenvolvimento
sustentável, e acolhem com satisfação o lançamento de novos diálogos sobre
energia, emprego e questões sociais, desenvolvimento regional, cultura e
educação, bem como o mecanismo de consulta para as questões sanitárias e
fitossanitárias; ciência e tecnologia; e a intensificação das relações envolvendo
10 Declaração Conjunta da Primeira Cúpula Brasil-União Europeia, Lisboa, 4 de julho de 2007.
11 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula de Lisboa, Lisboa, 4 de julho de
2007.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
131
entre a sociedade civil. A Declaração Conjunta reflete, assim, a agenda da
reunião plenária da Cúpula de Lisboa, quando foram abordados três blocos de
temas: Relações Brasil-União Europeia: o lançamento da Parceria Estratégica;
Temas regionais: situação na Europa e situação na América Latina e Assuntos
Globais: Rodada de Doha, Fortalecimento do multilateralismo, Mudança do
clima, Combate à pobreza e à exclusão social e Energia.
Entre o lançamento da Parceria Estratégica e a II Reunião de Cúpula Brasil-
UE, realizada no Rio de Janeiro, em 22 de dezembro de 2008, as duas partes
estiveram empenhadas em, ao mesmo tempo, dinamizar as áreas de cooperação
já estabelecidas e negociar o Plano de Ação Conjunto da Parceria Estratégica.
A Cúpula do Rio de Janeiro, que ocorreu sob a Presidência Francesa do
Conselho da União Europeia, contou com a participação do Presidente Nicolas
Sarkozy e do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso.
Sua agenda privilegiou o debate das questões de interesse global, o tratamento
da crise financeira internacional à luz a reunião ministerial do G-20 Financeiro,
realizada em São Paulo, em novembro de 2008, bem como no contexto da
coordenação com vistas à Cúpula do G-20, realizada em Londres, em abril de
2009. Também nesse bloco de temas foi dada continuidade à discussão da
agenda de Lisboa com o aprofundamento da discussão sobre o fortalecimento
do multilateralismo nos planos político econômico, quando foram discutidas a
reforma das Nações Unidas e de seu Conselho de Segurança, bem como a
Rodada de Doha da OMC; além que questões afetas à mudança do clima e
energia, tendo presente a realização no Brasil, em novembro de 2008, da
Conferência Internacional sobre Biocombustíveis e as Metas de
Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas. Também foram intercambiadas
visões sobre os cenários regionais europeu e latino-americano e abordados
temas bilaterais da Parceria Estratégica Brasil-UE, consubstanciados no Plano
de Ação Conjunto, então adotado.
O Plano de Ação constitui-se em documento amplo que passa a
estabelecer a moldura central das relações do Brasil com a União Europeia.
Inclui as áreas de cooperação já em andamento, bem como novas vertentes
de atuação conjunta, em forma de programa de trabalho a ser avaliado
anualmente nas reuniões da Comissão Mista Brasil União Europeia.12
12 Comissão Mista Brasil-União Europeia, instituída pelo Acordo-quadro de cooperação entre
a Comunidade Econômica Europeia e a República Federativa do Brasil, assinado em 29 de junho
de 1992. A Comissão realizou em Brasília, em 17 de março de 2007 sua 10ª reunião, estando o
próximo encontro previsto para ralizar-se em Bruxelas, entre os dias 07 e 09 de julho de 2009.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
132
O Plano de Ação consolida como metas centrais da Parceria Estratégica
a promoção da paz e da segurança abrangente por meio de um sistema
multilateral
eficaz; a promoção da parceria econômica, social e ambiental
para o desenvolvimento sustentável; a promoção da cooperação regional; a
promoção da ciência, da tecnologia e da inovação; e a promoção do
intercâmbio entre os povos. O Documento está, assim, estruturado em cinco
grandes blocos de temas agrupando as principais ações que as partes se
comprometem a implementar ao longo dos próximos três anos. Ao final desse
período, o Plano será objeto de avaliação, com vistas a definição de novos
rumos para a parceria.
1. Promoção da paz e da segurança
Propõe atuação conjunta, inclusive no contexto do Diálogo Político de
Alto Nível, com vistas ao fortalecimento do sistema multilateral, com ênfase
na reforma das Nações Unidas, incluindo o Conselho Econômico e Social
(ECOSOC), a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) e o Conselho
de Segurança (CSNU), assim como consultas e ações conjuntas nas áreas
de direitos humanos e democracia, justiça internacional (inclusive no âmbito
do Tribunal Penal Internacional – TPI), desarmamento e não proliferação,
prevenção de conflitos e gestão de crises, construção da paz, e luta contra o
terrorismo, crime organizado e corrupção, drogas ilícitas.
Como desdobramento da implementação desse capítulo do Plano de
Ação, os representantes do Brasil e da União Europeia em organismos
internacionais nas áreas acima citadas estão instruídos a intensificar a
coordenação em foros multilaterais. À luz da ativa participação do Brasil
e da União Europeia no Conselho de Direitos Humanos da ONU, missões
das duas partes intensificarão o diálogo nessa área, especialmente no
tocante à construção da paz e à assistência pós-conflito, com vistas a
projetos conjuntos no Haiti, com reuniões já marcadas para ocorrer em
Brasília, no início de junho de 2009. As partes também assumiram o
compromisso de dar prosseguimento à coordenação sobre a reforma das
Nações Unidas. Destacam-se, nesse capítulo, os trabalhos do Diálogo
sobre Desarmamento e Não-Proliferação, instituído ainda em 2002, com
reuniões anuais de consultas entre o Brasil e a Tróica da UE sobre temas
de desarmamento e não-proliferação, em nível de altos funcionários, de
periodicidade anual.
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
133
Com base no princípio da responsabilidade compartilhada e em uma
abordagem equilibrada entre a redução da oferta e da demanda de drogas, e
tomando em consideração as realidades de ambas as Partes, a cooperação
entre Brasil e UE nessa matéria deve centrar-se no intercâmbio de experiências
e de boas práticas, atividades de capacitação e treinamento, intercâmbio de
informações operacionais e jurídicas, entre outras.
2. Aperfeiçoamento da parceria econômica, social e ambiental para
a promoção do desenvolvimento sustentável
Trata–se de área particularmente relevante, em que as partes se
comprometem a trabalhar em diferentes níveis com vistas à conclusão da
Rodada de Doha. Também institui o Diálogo Brasil-União Europeia sobre
Temas Agrícolas (aspectos sanitários e fitossanitários), mecanismo de grande
importância para o encaminhamento de questões relativas ao comércio bilateral;
o Diálogo sobre Temas Macroeconômicos e Financeiros – a ser em breve
estruturado com vistas inclusive ao debate sobre a crise financeira
internacional; o reforço de ações em comércio e investimentos, com vistas à
ampliação e diversificação do intercâmbio bilateral (criação de Grupo de
Trabalho sobre Comércio e Investimentos); intensificação da cooperação
entre o BNDES e o Banco Europeu de Investimentos (BEI) em áreas como
mudança do clima, energia e infra-estrutura. Dispõe sobre o relacionamento
nas áreas de propriedade intelectual, transportes marítimo e aéreo e sociedade
da informação.
Além dos novos Diálogos Setoriais propostos nesse capítulo, cabe menção
ao Diálogo sobre Sociedade da Informação, já institucionalizado, ao amparo
do qual são tratados temas relacionados à tecnologia da informação, bem
como sobre governança da Internet, tema em que a experiência brasileira
desperta o interesse da Comissão Europeia, que deseja ainda conhecer os
projetos do Governo brasileiro em matéria de inclusão digital (programas
federais “Um Computador por Aluno” e “Plano Nacional de Banda Larga”).
Dispõe ainda sobre a consecução da Metas do Milênio; sobre o diálogo
sobre desenvolvimento global e cooperação triangular; sobre questões sociais
e de emprego; sobre redução de disparidades regionais e a instituição do
Diálogo sobre Governança do Setor Público. Nesse quadro, será dinamizado
o Diálogo sobre Desenvolvimento Social, firmado em abril de 2008, orientado
para a implementação de projetos na área social, objetivando a promoção
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
134
do emprego pleno, livremente escolhido e produtivo para mulheres e homens;
o fortalecimento da agenda de trabalho decente, em particular quanto a
princípios fundamentais, salários justos e direitos no trabalho; o combate ao
trabalho infantil e o trabalho forçado; o estímulo a orientação profissional e
oportunidades de aprendizagem continuada; a cooperação na área de saúde
e segurança no ambiente de trabalho; o fortalecimento do diálogo no campo
dos sistemas de seguridade social; o apoio ao intercâmbio de melhores práticas
na área de responsabilidade social corporativa e códigos de conduta justa
em empresas; o intercâmbio de melhores práticas em inclusão social, em
particular com relação a minorias.
Também merece destaque o Diálogo sobre Políticas de Integração
Regional, concluído em novembro de 2007, ao amparo do qual já estão em
andamento projetos bilaterais sobre redução das assimetrias intra-regionais
no Brasil. As partes se comprometem, no contexto desse Diálogo, a
intercambiar experiências em coesão territorial, bem como em governança
em múltiplos níveis e em parcerias que envolvam atores regionais e locais, o
setor privado e a sociedade civil; a trocar experiências sobre planejamento
estratégico e sobre a organização de estratégias de desenvolvimento territorial
voltadas para a redução de disparidades sociais e regionais; a buscar o
desenvolvimento de capacidade administrativa, coordenação e comunicação
interinstitucional e capacidade de monitoramento e avaliação; a desenvolver
esquemas de cooperação entre regiões, inclusive cooperação transfronteiriça;
a estimular o apoio técnico para o desenvolvimento e a consolidação de
políticas regionais, inclusive a possível implementação de projetos-piloto em
áreas-chave da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) do
Brasil e da política regional da Comissão Europeia.
Esse capítulo do Plano de Ação trata também do desenvolvimento
da parceria no contexto do Diálogo sobre a Dimensão Ambiental do
Desenvolvimento Sustentável e Mudança do Clima, instituído em maio
de 2006. Brasil e UE cooperarão no processo abrangente lançado em
Bali a fim de permitir a implementação integral, efetiva e sustentada da
Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima
(UNFCCC) por meio de ações de cooperação de longo prazo, agora,
até e após 2012. Trabalharão em conjunto para procurar alcançar um
resultado acordado ambicioso e global até 2009 com vistas ao
fortalecimento da cooperação internacional sobre a mudança do clima
por meio de um esforço global nos marcos da UNFCCC e do Protocolo
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
135
de Quioto. Com esse objetivo, sublinham a importância de se alcançarem
resultados com relação a todos os componentes do Plano de Ação de
Bali adotado em dezembro de 2007 (entre outros, visão compartilhada,
mitigação, adaptação, tecnologias, financiamento), tomando seriamente
em consideração os cenários ambiciosos do Painel Intergovernamental
sobre Mudança do Clima (IPCC) e levando em conta o princípio da
eqüidade. Assinalam a necessidade de que todos os países desenvolvidos
assumam a liderança, comprometendo-se com metas de redução de
emissões mandatórias,
ambiciosas e comparáveis, e de que os países em
desenvolvimento tomem medidas de mitigação apropriadas em nível
nacional, no contexto do desenvolvimento sustentável, apoiadas e
viabilizadas por tecnologia, financiamento e capacitação, de forma
mensurável, reportável e verificável. Brasil e UE ressaltam a necessidade
de ação tempestiva do Grupo de Trabalho Ad Hoc do Protocolo de
Quioto de modo que conclua seu programa de trabalho até o fim de 2009.
Reconhecem que o progresso substantivo nessa área deve ser baseado
no objetivo último da Convenção e no princípio das responsabilidades
comuns porém diferenciadas e das respectivas capacidades.
O Plano de Ação Conjunto dispõe, ademais, sobre a implementação
do Diálogo sobre Política Energética, criado por ocasião da visita do
Presidente da República à Comissão Europeia, em 5 de julho de 2007,
tendo realizado sua primeira reunião ministerial à margem da Conferência
Internacional sobre Biocombustíveis (São Paulo, 17-21/11/2008). No marco
do diálogo sobre política energética, Brasil e União Europeia pretendem
fortalecer a cooperação em políticas voltadas para aperfeiçoar a segurança
energética, inclusive a diversificação da oferta e de rotas de abastecimento;
em questões regulatórias para mercados de energia competitivos, incluindo
oportunidades de investimento; em eficiência energética e gestão da
demanda, incluindo iniciativas conjuntas e trabalhos conjuntos para a
promoção do acesso à energia e da eficiência energética em nível
internacional; em tecnologias de menor teor de carbono, incluindo, inter
alia, gás e carvão limpo, bem como pesquisa na área da energia nuclear e
cooperação em segurança nuclear, com atenção especial às tecnologias
seguras e sustentáveis; no desenvolvimento e na disseminação de tecnologias
de energia renovável, inclusive biocombustíveis de segunda geração; na
promoção da consolidação de mercados nacionais, regionais e internacionais
para biocombustíveis; em padrões técnicos internacionais para
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
136
biocombustíveis; sustentabilidade para biocombustíveis de forma a garantir
que produção de bioenergia, não afete a produção de alimentos e a
biodiversidade. Ainda com respeito a biocombustíveis, estão em curso entre
o Brasil e a União Europeia entendimentos para a cooperação trilateral
com países de menor desenvolvimento para promover a produção de
biocombustíveis e bioeletricidade, compatíveis com as normas e os padrões
exigidos pelo mercado internacional.
3. Promoção da Cooperação Regional
Dispõe sobre a intensificação da cooperação ALC-UE, Grupo do Rio-
UE e da agenda Mercosul-UE. Para tanto, as partes se comprometem a
apoiar iniciativas interregionais que aprofundem a integração regional, em
particular o processo ALC-UE; a estimular o intercâmbio regular de opiniões
sobre a situação em ambas as regiões; a implementar os compromissos
gerados pelas Cúpulas ALC-UE; a intensificar o intercâmbio sobre políticas-
chave voltadas para a promoção da inclusão social e para a redução da
pobreza e desigualdade. A Parceria Estratégica Brasil-UE apresenta grande
potencial de impacto positivo sobre o Brasil e a UE, bem como sobre as
relações entre a UE e o Mercosul em seu conjunto. Brasil e UE atribuem
grande importância ao fortalecimento das relações entre ambas as regiões e
têm compromisso com a retomada e a conclusão do processo de negociação
de um Acordo de Associação birregional equilibrado e abrangente. Para tanto,
as partes se comprometem a dar prosseguimento às negociações com vistas
à conclusão de um Acordo Mercosul-UE equilibrado e abrangente; a apoiar
o diálogo político e outras iniciativas a fim de fortalecer o desenvolvimento e
a cooperação econômica entre as duas regiões; a fortalecer o diálogo
regulatório e industrial birregional, a fim de aperfeiçoar o ambiente de negócios
e superar obstáculos desnecessários ao comércio; e a estimular o intercâmbio
entre o Parlamento do Mercosul e o Parlamento Europeu.
4. Promoção da Ciência, Tecnologia e Inovação
Atribui ênfase à intensificação das atividades do Comitê Diretivo sobre
Ciência e Tecnologia, com prioridade para as áreas de biotecnologia,
nanotecnologia, meio ambiente, energia e mudança do clima. Nesse particular,
merece destaque a intensificação dos trabalhos do Diálogo sobre Ciência e
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
137
Tecnologia, especialmente a partir da entrada em vigor, em dezembro de
2006, do Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica, ao amparo do
qual foi instituído o Comitê Diretivo de Cooperação Científica e Técnica
Brasil-União Europeia (CDC), em nível ministerial. O Plano de Ação
contempla a intensificação do desenvolvimento de projetos de pesquisa no
Brasil e na União Europeia em temas de energia (biocombustíveis e energia
nuclear), agricultura e biotecnologia, meio ambiente e mudança do clima,
espaço, saúde, nanotecnologia, transportes, mobilidade de pesquisadores,
ciências sociais e humanas e tecnologias da informação e comunicações. O
Plano de Ação dispõe também sobre o desenvolvimento da cooperação no
campo do espaço exterior e da navegação por satélite, em particular com
vistas a intensificar o diálogo e o intercâmbio de informações relativos aos
Programas Europeus de Navegação por Satélite (Galileo e EGNOS); o
fortalecimento da cooperação entre a CE e o Brasil na área de observação
da Terra, em especial mediante a participação na Iniciativa GEO (Grupo de
Observação da Terra); a exploração de oportunidades de cooperação em
pesquisas para o uso pacífico da energia nuclear, em particular as negociações
de um acordo de cooperação no campo da pesquisa em energia de fusão
entre o Brasil e a EAEC (EURATOM), com vistas ao acesso do Brasil ao
projeto do Reator Termonuclear Experimental Internacional (ITER).
5. Intercâmbio Cultural e entre as sociedades
Nesse capítulo do Plano de Ação, merece relevo o tratamento do tema
migrações, os contatos entre as sociedades civis e questões consulares,
assuntos que adquirem crescente importância no contexto da globalização,
tendo como base os laços históricos, culturais e humanos que unem os povos
do Brasil e da Europa. O Brasil e a União Europeia reconhecem o papel
positivo da migração como fator de intercâmbio humano e econômico nos
países de origem e de destino e se comprometem a continuar a tratar toda a
gama de questões de migração, tais como migração regular, migração irregular
e os vínculos entre migração e desenvolvimento, no marco das relações
bilaterais e dos foros internacionais de que participam Brasil e UE, tomando
em conta os direitos humanos e a dignidade de todos os migrantes. Para
tanto, acordaram fortalecer o diálogo sobre questões de migração nos foros
Brasil-UE existentes e propõem-se a trabalhar mais especificamente na área
das remessas, a fim de facilitar suas transferências e encontrar mecanismos
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
138
apropriados para a redução de seus custos; aumento da cooperação
operacional a fim de combater o tráfico de imigrantes, o tráfico de pessoas e
a exploração dos migrantes; a facilitação de viagens sem necessidade de
visto, com respeito integral à conclusão dos respectivos procedimentos
internos, parlamentares e outros, com base na reciprocidade, mediante a
negociação e conclusão em futuro próximo de acordo(s) sobre isenção de
vistos de curta duração entre a CE e o Brasil; o prosseguimento da cooperação
sobre assuntos consulares, especialmente aqueles relativos a acesso consular,
assistência e proteção; atenção especial a que sejam garantidas aos consulados
informações em casos de prisão, detenção ou transferência de seus nacionais;
a assegurar a prestação de assistência consular a pessoas detidas em postos
policiais, aeroportos e postos de fronteira.
O Plano de Ação também contempla o fortalecimento da cooperação
nos campos da educação e da cultura. Para tanto, as partes comprometem-
se a criar um diálogo setorial sobre educação, juventude e esportes, que
abrangerá temas de interesse comum, tais como a cooperação e o intercâmbio
em educação superior e a mobilidade de estudantes, professores e
pesquisadores mediante a implementação de programas como o Erasmus
Mundus, em consonância com o espírito do Espaço Comum de Educação
Superior ALC-UE; o intercâmbio de informações e de experiências com
vistas ao aperfeiçoamento de sistemas de avaliação acadêmica; a troca de
boas práticas e informações com vistas à identificação de métodos bem-
sucedidos para o ensino e o aprendizado de ciências, a fim de aumentar a
participação na educação científica e no treinamento vocacional e técnico-
profissional; a colaboração entre instituições de alto nível (universidades,
institutos de pesquisa, academias diplomáticas, think tanks e outras) nas
áreas de estudos brasileiros e europeus especializados e de Relações
Internacionais; a estimular a promoção do multilingüismo nos sistemas
educacionais e universitários de ambas as Partes e facilitar o ensino dos idiomas
da outra Parte.
Na esfera cultural, o Brasil e UE estão comprometidos com a preservação
e a promoção da diversidade cultural, com o aperfeiçoamento do diálogo
intercultural e com a promoção das indústrias culturais e criativas. As Partes
procurarão tratar conjuntamente essas questões em nível institucional, bem
como no nível dos setores público e privado e das organizações da sociedade
civil. Nesse sentido, as partes estabelecerão o diálogo regular sobre políticas
culturais, inclusive as indústrias culturais e criativas com vistas ao trabalho
BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA
139
conjunto para a promoção da cooperação em instâncias internacionais, a fim
de facilitar a implementação eficiente da Convenção da UNESCO de 2005;
a promoção da inclusão social e do desenvolvimento sustentável por meio do
acesso à cultura, inclusive mediante o uso de tecnologias de informação e
comunicação e das novas tecnologias digitais; a adoção de medidas voltadas
para a promoção do intercâmbio cultural e possíveis iniciativas conjuntas a
fim de divulgar a cultura brasileira na Europa e a cultura Europeia no Brasil; o
estímulo à cooperação e intercâmbio no campo do patrimônio cultural, inclusive
no setor de museus, com vistas à preservação de bens e expressões culturais;
a facilitação do trânsito da arte e de artistas do Brasil e da UE; o
desenvolvimento de políticas públicas no setor audiovisual.
Cientes da importância da consolidação dos instrumentos democráticos
de consulta à sociedade civil, em particular as instituições que representam
organizações da sociedade civil nas esferas econômica e social, o Brasil e a
União Europeia se comprometem a estimular a cooperação entre o Conselho
de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) do Brasil e o Comitê
Econômico e Social Europeu (EESC). Decidiram, assim, estimular a
organização de Mesa Redonda DCES-EESC, que constituirá a arquitetura
institucional do relacionamento Brasil-UE na promoção da cooperação e do
intercâmbio de experiências e de boas práticas entre associações empresariais,
sindicatos, agricultores e outras organizações da sociedade civil de ambas as
Partes.
Em complemento à interação ente as sociedades, o Plano de Ação
também se propõe a estimular o intercâmbio entre os Parlamento Europeu e
o Congresso Nacional brasileiro. As duas partes estabeleceram, em abril de
2009, o Diálogo Parlamentar, que já realizou sua primeira seção de instalação.
A Parceria Estratégica Brasil-UE também deverá promover a cobertura de
imprensa e o intercâmbio jornalístico recíprocos; a organização de conferências
e cursos de curta duração para jornalistas, entre outras iniciativas.
A elevação do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia ao
patamar de Parceria Estratégica resultou de uma convergência de
interesses, fundada nos valores e princípios que compartilhamos e
defendemos nos foros internacionais, e no reconhecimento recíproco do
potencial de nossa coordenação e cooperação. Desde a Cúpula de
Lisboa, em julho de 2007, o diálogo bilateral ganhou maior dinamismo
em todos os níveis, o que ratifica as elevadas expectativas quanto ao
futuro promissor da Parceria Estratégica.
MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS
140
A face mais visível dessa relação, até mesmo por ser mais facilmente
mensurável, se traduz nas cifras de investimento e intercâmbio comercial.
Com efeito, a União Europeia tem tradicionalmente ocupado lugar de relevo
entre os principais parceiros econômicos do Brasil. A corrente comercial em
2008 superou a casa dos US$ 77 bilhões de dólares. Essa cifra representa
cerca de 22,2% do comércio total do Brasil, e um crescimento de cerca de
26% sobre o mesmo período em 2007. Somente em 2007, o ingresso de
investimentos diretos dos 27 países-membros da UE no Brasil somou US$
18,4 bilhões, o que representa 54,6% do total de investimentos que o Brasil
recebeu naquele ano.
Mas a apresentação acima do Plano de Ação da Parceria Estratégica
Brasil-União Europeia buscou mostrar, de forma resumida, a diversidade e
amplitude do relacionamento moderno entre o Brasil e a União Europeia. O
Plano completo consta de documento de 23 páginas, onde se estruturam as
múltiplas ações que as duas partes acordaram desenvolver ao longo dos três
anos de sua validade, com vistas à sua reavaliação em 2011.
Trata-se de agenda ambiciosa, de importância que transcende quaisquer
interesses econômicos imediatos. O Plano de Ação traduz a abrangência e o
caráter diversificado do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia,
que envolve não apenas agentes governamentais, mas também instituições
acadêmicas, o empresariado, os meios científico e cultural e tantos outros
segmentos das sociedades do Brasil e da Europa. O Plano de Ação reflete,
assim, a disposição compartilhada de imprimir ao relacionamento enfoque
verdadeiramente estratégico e humanista, voltado para as grandes questões
de nosso tempo. Encerra, portanto, a perspectiva de dois parceiros
empenhados na construção de uma ordem internacional multipolar, lastreada
no respeito mútuo, na confiança compartilhada, e na determinação de trabalhar
não só pela prosperidade e bem estar dos povos do Brasil e da União
Europeia. O sentido verdadeiramente estratégico da Parceria Brasil-União
Europeia se traduz na capacidade de trabalhar com olhar solidário sobre os
mais pobres e excluídos para a construção de um mundo mais justo e melhor.
141
Instabilidade política moderna nos países que
correspondem aos últimos impérios colônias
europeus. Exemplos do Oriente Médio e
comparação com a África
Affonso Celso de Ouro Preto
Berço das três grandes religiões monoteístas, ponto de contato entre o
Ocidente e o Oriente, área de conflito e também de síntese cultural, centro
estratégico próximo às maiores riquezas petrolíferas do planeta, o Oriente
Médio se mantém, ainda hoje, como a região por excelência das confrontações
e das crises modernas.
Uma observação inicial é conveniente.
Em primeiro lugar, o Oriente Médio, desde as Cruzadas e a conquista
otomana – com a exceção da tentativa de conquista francesa durante a
Revolução, no final do século XVIII – viveu durante séculos, contrastando
com os distúrbios de hoje, numa relativa paz e num clima próximo à tolerância,
como parte do império otomano. Outras partes do império haviam sido
marcadas pela violência mas não foi o caso do Oriente Médio propriamente
dito. 
A segunda observação seria que os estados, hoje existentes, na região,
constituem entidades políticas relativamente modernas, na medida em que
representam a divisão levada a cabo, em proveito próprio, após a primeira
guerra mundial, pela Grã-Bretanha e pela França, das províncias árabes do
império otomano.
As crises que marcam o Oriente Médio moderno – conflitos do Líbano,
guerra no Iraque, tensões com a Síria, confrontação
palestino – israelense,
não devem, por outro lado, ser examinados como fenômenos estanques sem
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
142
nenhuma relação de casualidade entre si (ainda que esse princípio de
causalidade não tenha sido aceito por todos os observadores e por todos os
matizes de opinião).
Um conflito específico, efetivamente, deve ser examinado, com
particular atenção. já que repercutiu, intensamente, não só em toda a
região mas também, globalmente, fora do Oriente Médio. Trata-se da
confrontação entre o nacionalismo árabe, mais especificamente, o
nacionalismo palestino, e o Estado judeu de Israel. Pode-se afirmar
que uma eventual pacificação da região dependerá da solução que
puder ser alcançada (se essa solução for possível um dia...) para esse
problema.
Sem tentar desenvolver uma análise histórica da criação do Estado de
Israel e de sua evolução ou um exame pormenorizado dos nacionalismos
árabes da região, em particular o palestino, cabe verificar, hoje, que a
complexa colisão (israelo-palestina) se expressa em dois ou mesmo em
três níveis.
Trata-se, em primeiro lugar de um conflito pela posse de um território. A
expansão da colonização israelense entrou em choque com as populações
árabes residentes na Palestina. Esse choque teve início com o desenvolvimento
da emigração judaica, a partir do século XX na Palestina. O Holocausto
nazista conferiu uma nova legitimidade a essa colonização que levou à criação
do Estado de Israel em 1948.
Em segundo lugar, a confrontação é também religiosa, na medida em que
o país – Israel-Palestina – é considerado terra sagrada tanto para a tradição
religiosa judia quanto para o Islam – (o país, como se sabe, também já foi
Terra Santa também para o cristianismo).
Enfim, em terceiro lugar, existe um conflito que opõe uma luta pela
emancipação de um povo – o palestino – a uma preocupação de segurança
de outro povo, o israelense, que se julga gravemente ameaçado pelos
fundamentalismos islâmico e mesmo pelos simples nacionalismo de seus
vizinhos palestinos.
Após uma série de guerras que se traduziram por vitórias israelenses –as
quais expressavam a superioridade técnica e militar de uma sociedade do
Primeiro Mundo (ainda que pequena) sobre os seus vizinhos do Terceiro
Mundo – em 1967 haviam sido ocupadas os últimos territórios palestinos,
até então, sob soberania árabe, ou seja a Jerusalém Oriental, a Cisjordânia e
a Faixa de Gaza.
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
143
A última confrontação entre estados, a de 1973 constituiu uma tentativa
por parte, dos vizinhos de Israel, de recuperar territórios perdidos em
guerras anteriores. A partir de então o conflito torna-se mais político do
que militar.
O nacionalismo palestino frente à ocupação israelense, expressou-
se, inicialmente, sobretudo pelo movimento “OLP” – Organização pela
Libertação da Palestina. Vários partidos e movimentos participavam e
participam da Organização. O principal deles foi o “El Fatah” cujo
líder, Yasser Arafat, tornou-se o principal dirigente do movimento
palestino.
A situação da Palestina ocupada após a guerra de 1967 levou ao
desenvolvimento da violência que se alastrou pelo território palestino
com as acusações mútuas de terrorismo e de repressão da força
ocupante.
Em 1992, teve início um diálogo OLP – Estado de Israel. Em 1993,
94 em Oslo uma serie de acordos, celebrados graças à mediação
norueguesa, levaram, pela primeira vez, ao reconhecimento mútuo. A
OLP reconheceu o Estado de Israel, cuja existência, nos seus
programas, não havia sido considerada como legítima até então, Israel,
por sua vez, reconhecia, pela primeira vez, o nacionalismo palestina
(a comunidade palestina havia sido considerada, antes, como apenas
parte do mundo árabe: a existência de uma nação palestina, ainda,
não era aceita nos EUA e em Israel) abrindo caminho para um futuro
Estado palestino – cujas fronteiras e condições de existência, no
entanto, estavam longe de estar determinadas. No entendimento
palestino (e do resto do mundo árabe), essas fronteiras deveriam
estender-se aos limites de 1967 e incluir Jerusalém Oriental, futura
capital do novo Estado.
Os acordos de Oslo de 1992-93 abriram caminho para a criação
da Autoridade Palestina, com base na cidade de Ramalah, sob a
presidência de Yasser Arafat, do partido Al Fatah, com uma soberania
sobre os “Territórios Ocupados” (ou seja a Cisjordânia e a Faixa de
Gaza, conquistados por Israel na guerra de 1967).
Um movimento palestino, de base religiosa, se opôs ao projeto de
criar dois Estados – o judeu e o palestino – e defendeu o ideal de fundar
apenas um, povoado, de israelitas e árabes mas, no seu entendimento,
com uma maioria muçulmana. Tratava-se do Hamas.
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
144
Vale registrar que a OLP, tanto quanto outros movimentos nacionalistas
árabes, predominantes até o fim da década dos noventa, como o Bath
sírio-iraquiano ou movimento egípcio dos coronéis, representavam ideais
laicos.
Esses nacionalismos expressavam a ambição, sobretudo de classes
médias, de identificar-se com modelos ocidentais de modernidade e visavam
introduzir o progresso do Ocidente nas tradicionais sociedades do Oriente
Médio. O próprio conceito de nacionalismo, aliás, é ocidental e só apareceu
e consolidou-se no mundo árabe a partir do início do século XX. O partido
Baath, por exemplo, foi fundado na Síria, por árabes cristãos parcialmente
ocidentalizados.
No mundo árabe, todavia, após as sucessivas derrotas militares frente a
Israel, bem como com o desgaste de governos nacionalistas laicos,
frequentemente acusados de incompetência e ou de corrupção, fortaleceu-
se, a partir dos anos noventa, um novo nacionalismo: o religioso.
Partidos nacionalistas religiosos, às vezes antigos, como os Irmãos
Muçulmanos do Egito (fundado em 1926), ganharam importância. Criou-se
o Hezbollah no Líbano, no seio da comunidade xiita, com apoio iraniano
(após a invasão israelense de 1982). O movimento dos Irmãos Muçulmanos
ganhou uma nova dimensão, no seu país de origem, o Egito, e inspirou, na
Palestina, o Hamas. Essa tendência refletia também o impacto da grande
Revolução Islâmica Iraniana (fora do mundo árabe) de 1979. O movimento
radical islâmico, mas não apenas árabe, Al Queda (condenado por vários
partidos nacionalistas), constitui um desdobramento dessa tendência de
retorno às raízes do Islam.
Verifica-se que as classes médias arábes, até recentemente
parcialmente ocidentalizadas, tendem a retornar a uma procura de
identidades próprias que levariam a ideais islâmicos, afastadas das
influências da cultura ocidental. O movimento atinge tanto as áreas de
tradição xiita, amplas áreas do Iraque e do Líbano e alguns países do
Golfo, além do Irã de cultura persa, bem como o resto do mundo árabe,
em geral, sunita. O caráter religioso de certos movimentos do Oriente
Médio alterou o caráter dos conflitos registrados na região, tornando
mais difíceis os mecanismos de negociação.
Convém, aliás, lembrar que o papel crescente da religião na política, não
constitui fenômeno restrito ao mundo árabe islâmico. Em Israel cresce a
importância dos partidos religiosos (de direita ou de extrema direita).
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
145
Esvaziam-se, no Estado judeu, os partidos tradicionais laicos, como o
trabalhista, que desempenharam um papel decisivo na criação do Estado
hebreu como o Partido Trabalhista.
Em 2005 havia sido eleito para a presidência da Autoridade Palestina, o
Presidente Mahmoud Abbas (após o falecimento de Arafat, o primeiro
Presidente) do movimento nacionalista laico o Al Fatah, considerado
moderado. Um ano depois, o Hamas islâmico, definido em Israel, e nos EUA
como movimento essencialmente terrorista, alcançou a maioria absoluta das
cadeiras da Assembleia Legislativa. Cabia-lhe formar
o Governo, de acordo
com a legislação vigente.
Diante da impossibilidade de formar uma coalizão, constitui-se um governo
formado apenas pelo Hamas. Criara-se uma situação delicada na medida
em que, oficialmente, o Hamas não reconhecia Israel e o Governo israelense,
por sua vez, mantinha a sua definição do movimento Hamas como organização
terrorista cujo objetivo seria destruir Israel.
 Israel exigiu de seus interlocutores palestinos, as conhecidas três
condições: reconhecimento do Estado de Israel, aceitação oficial dos acordos
já concluídos (Oslo por exemplo), renúncia à violência enfim. O Quarteto
EUA, UE, Rússia e Nações Unidas, criado para prestar assistência ao
processo de paz, também aceitou endossar as chamadas três condições,
para iniciar uma negociação, atendo a pressão sobretudo norte-americana
(ainda que todos os membros do Quarteto, como o russo, não expressassem
seu apoio às três condições com a mesma intensidade).
O criticado Governo do Hamas, todavia, havia sido eleito, num pleito que
não foi posto em dúvida por nenhum observador. Gerou-se uma situação pela
qual a comunidade internacional (a maior parte) não quis negociar com um
Governo ainda que este tivesse sido democraticamente eleito (segundo todos
os observadores), com o argumento de que o partido vitorioso não havia
oficialmente renunciado à violência. A exigência das chamadas três condições,
cobradas do Hamas, se traduzia numa recusa de negociar com o mais poderoso
e, aparentemente, mais representativo (pelo menos então), movimento palestino.
Toda a importante assistência internacional (sobretudo europeia) e, por outro
lado, o repasse dos impostos por Israel, foram suspensos.
No início de 2008, o Hamas assumiu o controle da Faixa, eliminando,
na área, a presença do El Fatah. O nacionalismo palestino consagrava a sua
divisão com duas administrações – a primeira, a do Hamas, com o controle
de Gaza pelo Hamas e, a segunda na Cisjordânia com o Fatah. A primeira
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
146
repudiada por Israel e pela maior parte da comunidade internacional e a
segunda, oficialmente definida como moderada, aceita como parceira para
negociações.
Apesar das rodadas de negociações, Israel e moderados palestinos da
Administração de Ramallah não se verificaram verdadeiros progressos. Não
se registram, na sociedade israelense, sinais de que seria viável uma aceitação
de concessões mútuas, necessárias a qualquer verdadeiro entendimento.
Israel continua dominado pela prioridade conferida ao problema de sua própria
segurança, principal ou quase única tema de sua vida política. De maneira
simplificada, poderia afirmar-se que a história do povo judeu, diante das
inúmeras perseguições sofridas que culminaram no Holocausto nazista, levou
ao fortalecimento, na sociedade israelense, da mentalidade de que não haverá,
em caso de perigo, qualquer auxílio exterior e de que o país constitui uma
fortaleza sitiada, em perigo, rodeada de inimigos, cujo fanatismo é irremediável
e com os quais qualquer forma de verdadeiro diálogo é impossível.
Registraram-se, todavia.
A sua evidente superioridade militar, baseada inclusive em armas nucleares,
permitirá a Israel evitar a necessidade de quaisquer concessões. O
fortalecimento da extrema direita e dos partidos religiosos, expressa já pelas
eleições de 2006 afastam Israel de uma rota de concessões inevitáveis para
qualquer negociação. Nas eleições de 2009, o eleitorado israelense resvalou
ainda mais para a direita, com uma maioria absoluta para os partidos
conservadores e ultraconservadores.
O futuro Primeiro Ministro, aparentemente, no momento em que se redige
esta tentativa de análise, seria Benjamin Netanyahu, líder do Partido
conservador Likud, ainda que o seu principal adversário, a Chanceler Tzipi
Livni alcançado, para o seu partido centrista Kadima, uma maior votação,
sem, conseguir, com seus aliados, uma maioria na Assembleia, a Knesset.
Benjamin Netanyahu, durante a campanha eleitoral, expressou oposição
ao projeto de criação do estado palestino. A sua liderança no próximo governo
israelense significaria, ao que tudo indica, um sensível recuo no processo de
paz (que se encontrava já passavelmente paralisado....).
Teve início, ainda com o presente governo, antes das eleições, no começo
do presente ano de 2009, por parte das forças israelenses, em retaliação ao
disparo de mísseis, uma campanha de violentos bombardeios, seguida de
uma invasão parcial de Gaza. Certos observadores atribuíram os ataques ao
fato de que as eleições israelenses estavam convocadas para fevereiro e que
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
147
o Governo israelense, controlado por partidos centristas, desejava demonstrar
os seus compromissos com a segurança do país.
Complica-se a situação diante do desenvolvimento de um novo projeto
na Palestina. Trata-se da defesa do Estado binacional. Seria abandonada
a idéia de criar um Estado palestino em favor da luta pelos direitos políticos
das populações árabes sujeitas ao controle ou a ocupação israelense. Os
palestinos de Israel propriamente dito – cerca de 20% população total
do país – com os palestinos da Cisjordânia e de Gaza, alcançariam, a
médio prazo, devido a sua alta taxa de aumento de população, uma maioria
nos territórios controlados por Israel. Seria criada a difícil situação para
o público e para as autoridades israelenses de escolher entre o
estabelecimento de um estado que se afastaria, com a consequente perda
de legitimidade, de um modelo democrático ou então, de um país que
deixaria de ser judeu, o que significaria o fim da sociedade israelense tal
como ela existiu até hoje.
A opção do Estado binacional é defendida apenas (por enquanto ) por
uma minoria dos palestinos, mas a hipótese passa a ser lembrada, com
crescente freqüência, como elemento de pressão contra Israel.
Diante do clima de impasse, a única possibilidade de abertura ou início
de abertura política, poderá decorrer de uma eventual pressão internacional,
mais precisamente dos EUA. Todavia, a política norte-americana, com raras
exceções, até hoje, se recusou a exercer essa verdadeira pressão. É
perceptível, na opinião pública, e nos meios governamentais, dos EUA, uma
identificação com Israel onde se vê uma sociedade engajada na luta contra
os fundamentalismos islâmicos adversários também dos EUA. Israel, seria o
aliado fiel, necessário numa região estrategicamente importante,
particularmente rica em petróleo, onde são claros os interesses norte-
americanos.
Durante o Governo Bush, após os atentados de setembro 2001, a
prioridade da política exterior, no Oriente Médio (e não só no Oriente Médio)
passou a ser a luta na “guerra contra o terror” – “the war on terror” – o que
levaria a um fortalecimento, ainda maior, das relações com os estamentos
militares israelenses.
Notou-se, no entanto, no último ano do Governo Bush, uma inflexão de
sua política frente à crise Israel – Palestina. Por iniciativa norte-americana foi
convocada a Conferência de Anápolis, onde foi aceito o princípio de uma
negociação, sem precondições (core issues) e foram marcadas, inclusive,
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
148
datas para o processo negociador. O Governo Bush terminou, no entanto,
sem um sensível progresso no processo de paz.
Os conflitos e crises do Oriente Médio continuaram a ser vistos pelos
EUA durante administração Bush, separadamente, como crises especificas
de cada país, como foi dito no início desta tentativa de análise. O fenômeno
moderno do nacionalismo árabe e as repercussões, em toda a região, das
humilhações decorrentes do conflito israelo-palestino, o seu caráter religioso
e sua dimensão simbólica, não foram levados em conta. A luta contra o “Mal”
da administração Bush ou seja a guerra contra o terror, expessa em termos
ideológicos, se mantinha como objetivo principal ou único nas demais
áreas
de crise do Oriente Médio – Líbano, Iraque ainda em conflito interno, relações
com a Síria, preocupações frente ao Irã persa, definido como Estado fora da
lei ou “rogue state”. A política norte-americana passou a adquirir um caráter
frequentemente maniqueísta, definido às vezes como “islamófobo”.
No contexto do clima de indignação e de exaltação patriótica que se
difundiu, nos EUA, com os atentados do setembro 2001, foi decidida a invasão
do Iraque. O país, dirigido, com mão de ferro, por Sadam Hussein, não
mantinha qualquer relação com as redes de terrorismo se julgava ameaçar os
EUA nem desenvolvia um programa de armas de destruição de massa. O seu
regime era laico.
Tentou-se, ali, no Iraque após a ocupação do país, em 2003, promover
a instalação de um regime que expressaria os ideais de uma democracia de
modelo norte-americano. Uma experiência mais ou menos semelhante foi
tentada no Afeganistão.
Desenvolvia-se efetivamente uma estratégia de criar e encorajar, no
Oriente Médio, democracias de tipo ocidental as quais constituiriam um fator
de paz e estabilidade na região.
No Líbano continua a manter-se uma sociedade única na sua composição
e sua organização. Num território menor do que o da Bélgica, existem várias,
comunidades, pertencentes ao mundo árabe, mas de culturas diferentes,
seguindo, cada uma, a sua legislação específica. O poder, oficialmente
compartilhado entre os diversos grupos, havia sido exercido, na prática, até
os anos setenta, pela fortemente ocidentalizada comunidade cristã maronita
que formava a maior parte da classe média. O poder político e econômico
dos maronitas foi contestado, cada vez mais, com êxito crescente, mais pelas
comunidades islâmicas, sobretudo os xiitas, representados pelo partido
Hezbollah, aliado do Irã.
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
149
Na fronteira com Israel, parcialmente controlada do lado libanês pelo
Hezbollah, desenvolveram-se incidentes, quase rotineiramente, até que um
conflito em 2006, levou a ou justificou uma invasão levado a cabo pelo
Estado judeu.
O conflito que opôs Israel ao Hezbollah prolongou-se por 33 dias e
surpreendeu todos os observadores pela resistência demonstrada pela milícia
xiita frente ao que sempre se considerara a maior força militar da região ou
seja, o Exército israelense. Indubitavelmente, a milícia xiita do Hezbollah
sem conseguir uma vitória militar, alcançou, pela sua resistência, um claro
êxito político que repercutiu em todo o mundo árabe.
A suspensão das hostilidades levou a uma precária paz. Na complexa
sociedade libanesa, o Hezbollah havia consolidado uma presença poderosa.
A Síria, dirigida pelo Presidente Assad, líder de uma das duas vertentes
do partido Bath, foi definida também, pelos EUA, como “rogue state” por
acolher, no entendimento movimentos considerados terroristas pelo Governo
norte-americano permitir, na sua fronteira com o Iraque, a passagem de forças
ligadas aos movimentos de resistência iraquianos bem como por manter
relações estreitas com o Irã.
A Síria reclama de Israel, a devolução das colinas do Golã conquistadas
durante a guerra de 1967. Teve início, em 2008, um processo de negociação,
por meio de uma intermediação o turca, entre a Síria e Israel para discutir a
eventual devolução do território reclamado....
No Iraque, após a invasão norte-americana e britânica, com alguns outros
aliados, de 2003 (invasão não autorizada pelo CSNU), a vitória militar e a
derrubada do regime Saddam Hussein foram rápidas e fáceis. A consolidação
dessa vitória e a pacificação do país constituíram, no entanto, objetivos mais
difíceis.
Apesar da eleição legislativa, celebrada em fins de 2005 as complexas
negociações que levaram à instalação do Governo xiita do primeiro-ministro
(em princípio moderado) Al Maliki, com o Presidente curdo Talabani, verificou-
se que o fortalecimento do recém instalado regime parecia complexo. Tornou-
se necesário combater simultaneamente várias oposições: dissidências
religiosas, partido Bath, puro banditismo. Surgiu o Al Queda que nunca existira
anteriormente no país. Parecia ameaçada a unidade do país, dividido entre as
comunidades curda no norte, sunita no centro e xiita no sul. O fortalecimento
da presença militar norte-americana, verificada no final do Governo Bush
levou, apesar de perdas militares elevadas, a uma estabilização crescente
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
150
vários aliados dos EUA como a Espanha ou mesmo a Grã-Bretanha passaram
a diminuir ou retirar os seus respectivos contingentes militares.
As tentativas de instalar um governo no Iraque ou melhor, de criar um
novo Estado, em princípio democrático, inspirado em ideais do
conservadorismo norte-americano, depararam-se com dificuldades
inesperadas. Descobria-se ou redescobria-se o que os estudiosos da área já
haviam assinalado. O Iraque é um Estado frágil, artificial dirão muitos,
constituído apenas após a Primeira Guerra Mundial, quando se uniram sob
controle britânico, populações e culturas heterogêneas que nunca haviam
formado um Estado soberano, anteriormente. A unidade havia sido mantida,
após a independência com dificuldades, por regimes autoritários ou tirânicos,
enriquecidos pelo petróleo o último dos quais havia sido o de Sadam Hussein
da comunidade sunita.
Criara-se, um vácuo de poder gerado pela eliminação do regime Baath
pelos EUA e pela incapacidade de instalar ou consolidar um Estado sucessor.
Paradoxalmente, a guerra do Iraque parecia haver sido vencida, em
termos políticos, pelo Estado vizinho e adversário, o Irã xiita. O Irã tornou-
se a verdadeira potência regional cuja sombra se projeta em todo o Oriente
Médio (a apesar de não pertencer geograficamente à região) novo peso do
Estado xiita constitui fator político ainda não assimilado. Os EUA, os principais
países ocidentais, continuam a ver com preocupação esse novo poder regional,
alheio à influência política do Oeste e cujas ambições nucleares preocupam,
sobretudo Israel, e, cuja retórica parece assustadora. Por outro lado, cresce
o número de observadores que acredita ser necessário estabelecer um diálogo
com essa nova potência regional. Seria, com cautela, o caso da nova
administração dos EUA.
A paz no Oriente Médio parece distante, mais distante do que em outras
oportunidades. As experiências de uso da força no Líbano em 2006 contra
o Hezbollah, os ataques contra o Hamas na Faixa de Gaza no início de
2009, as incertezas ainda existentes no Iraque, onde a própria existência
do Estado é posta em dúvida, apesar de uma apregoada crescente
pacificação, o quadro sempre confuso do Líbano onde as várias
comunidades ainda demonstram uma incapacidade de alcançar uma
verdadeira reconciliação, os problemas decorrentes do crescimento político
do Irã com um possível projeto de armamento nuclear contra o qual, num
clima de nervosismo, o establishment israelense e amplos setores
conservadores da opinião norte-americana, pedem um ataque armado
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
151
preventivo, bem como a Palestina, constituem fatores que reforçam o
pessimismo quanto à eventual paz no Oriente Médio.
Os últimos acontecimentos políticos de fevereiro 2009 reforçam esse
pessimismo. As eleições israelenses de fevereiro 2009, constituiram,
indubitavelmente, um êxito para os setores conservadores e ultra-
conservadores do país – laicos e religiosos – os quais, em princípio, seriam
contrários ao conceito da criação de um Estado palestino.
Nota-se, sobretudo, a falta de verdadeiros líderes na região para levar a
cabo um verdadeiro processo de paz o qual, necessariamente, implicaria
numa capacidade de admitir concessões e de conter setores radicais.
A eleição norte-americana, todavia, desperta no Oriente Médio
esperanças (não só no Oriente Médio evidentemente....). Não está clara ainda,
qual será a política da nova administração. Parecem delinear-se, no entanto,
no Governo Obama, sinais de que serão menos intensas as avaliações de
cunho ideológico e as prioridades concedidas à guerra “contra o terror”
expressas pela administração anterior.
Tentativa de comparação dos conflitos e da instabilidade atual do Oriente
Médio com os da África sobretudo os da África subsaárica.
Examinar a África implica na necessidade de uma definição.
Existem, efetivamente, para efeitos de uma tentativa de análise política,
duas Áfricas. A África do Norte, o Ocidente árabe conhecido como o Magreb,
em oposição ao Oriente Médio bem como a outra África a subsaárica. A
tentativa de comparação que se tentará aqui se concentrará com a parte
subsaárica do continente.
A África do Norte, cultural e politicamente, pertence ao universo árabe
ainda que uma parcela de sua população seja de língua berbere falada antes
da conquista islâmica. O Oriente Médio, todavia, está relativamente longe e
seus conflitos, ainda que repercutam intensamente, no Magreb, não constituem
uma razão básica de instabilidade da região .
Os Estados já delineados antes da conquista europeia, confirmaram-se
com o processo de independência e sua existência não foi posta em dúvida.
As fronteiras coloniais foram aceitas com algumas exceções como o problema
do Saara espanhol que opõe a Argélia ao Marrocos. A colonização, ainda
que breve, deixou profundas marcas na região ao formar ou desenvolver
uma classe média de cultura francesa.
O principal problema que a África do Norte enfrenta é o da confrontação
dos regimes existentes com movimentos fundamentalistas islâmicos,
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
152
particularmente na Argélia, onde o conflito adquiriu contornos de muito
acentuada violência. Essa confrontação reflete, a rigor, o choque de uma
parcela considerável das populações contra classes médias, parcialmente
ocidentalizadas, as quais controlam os respectivos estados, inclusive as suas
forças armadas. Trata-se de fenômeno difundido no só no mundo árabe mas
no mundo islâmico de modo geral (como no Irã). Na África do Norte, até
agora, os Estados mantiveram o seu controle fazendo todavia concessões
aos ideais islâmicos e à cultura árabe.
A África subsaárica, tema básico da parte africana desta tentativa de
análise, constitui um universo profundamente diferente.
Essa África encontra-se num estágio de desenvolvimento muito mais
incipiente do que o Oriente Médio (ou a Ásia). Havia sido usada, durante
séculos, pela Europa, sem uma tentativa de colonização, com o único objetivo
do desenvolvimento do trafego de escravos para continente americano.
No final do século XIX, após a abolição do tráfico, o continente africano
havia sido partilhado entre países europeus. As colônias europeias, então
criadas, não se definiam por critérios étnicos, culturais ou religiosos.
Correspondiam simplesmente a um equilíbrio de forças registrado na Europa
no momento da partilha ou respeitavam (parcialmente), uma antiguidade na
ocupação de feitorias, no litoral, como teria sido o caso de Portugal. A
ocupação das colônias africanas foi justificada, na época, como a expressão
da “missão civilizadora” da Europa ou seja o “white man´s burden”. Na
África subsaárica, as fronteiras, após as respectivas independências registradas
a partir do fim dos anos cinqüenta, foram respeitadas, apesar de seu caráter
artificial, no que diz respeito às etnias ou as religiões (a alternativa teria sido o
caos). Registraram-se raras a exceções a esse entendimento, como o conflito
que opôs a Etiópia à Eritreia. Desenvolveram-se, no entanto, no continente,
no seio dos novos Estados (mas não em todos nem na maioria), após a
euforia dos anos que se seguiu à independência, guerras e confrontações de
extraordinária violência.
Conflitos sacudiram Angola em 1992, Ruanda e Burundi em 1993/94
com contornos de genocídio, mais recentemente Serra Leoa e Costa do
Marfim. Hoje, novamente, o Congo enfrenta a violência. No Sudão, onde o
conflito que opõe o Governo central à região ocidental de Darfur, não está
ainda solucionado apesar das promessas e compromissos em contrário e a
presença de contingentes reduzidos de forças internacionais. No mesmo país,
o norte e o sul, após muitos anos de violenta confrontação, mantém uma paz
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
153
precária. A Somália se encontra ainda em situação caótica e a Nigéria enfreta
certas desordens na região do Delta. As desordens e guerras foram seguidas,
em várias áreas, pelo drama da fome que assolou vastas regiões.
Esses conflitos possuiam duas características. Representavam, em
primeiro lugar, guerras tribais nos estados artificiais criados pela colonização
europeia. Podem ser considerados como tentativas de estabelecer novas elites
dirigentes ou novas formas de distribuição de poder em países com identidades
incertas. Correspondem a extrema dificuldade da criação de Estados
modernos em sociedades que mantiveram o seu caráter tribal aesar da
experiência.
Em segundo lugar, essas guerras apesar de um custo humano de, às
vezes, milhões de vítimas, repercutiram apenas em áreas limitadas e nos países
vizinhos, sem alcançar uma dimensão de confrontações globais ou sequer
continentais, com desdobramentos em todo o continente ou fora dele. A
sociedade internacional, apesar de sinais (modestos) de solidariedade ou de
preocupação, diante da violência verificada, não se sentiu atingida. As crises
africanas, em suma, apesar de sua intensidade dramática, mantiveram um
caráter, acentuadamente, local.
A última observação seria a de que, após anos de confrontação, 2000,
a África subsaárica, depois de 2000, passou a beneficiar-se de taxas de
desenvolvimento, relativamente elevadas. O continente aproveitou os altos
preços de commodities. Beneficiou-se de uma massa crítica crescente de
investimentos chineses e até certo ponto indianos. A influência chinesa, em
particular ganhou importância. A África subsaárica afastou-se econômica e
politicamente das antigas metrópoles .
Esse desenvolvimento, ainda frágil, evidentemente, não foi uniforme em
todos os estados do continente. Concentrou-se em alguns países (entre outros)
como Angola, Moçambique, Botsuana, até certo ponto Quênia e Tanzânia e
mesmo Serra Leoa. Esses países partiram de patamares modestos e estão
ameaçados, hoje, pela queda dos preços das commodities. O seu progresso,
todavia, poderia indicar que a terrível fase da violência interna, foi ultrapassada.
Ao mencionar a parte do subsaárica do continente é necessário registrar
uma grande exceção: a África do Sul. Examinar o país exigiria uma análise
especial. Cabe aqui lembrar que se trata de nação com problemas específicos,
referentes à integração de suas várias comunidades, diferentes dos que se
registram no resto do continente. Será necessário acrescentar ainda que a
África do Sul, definida como estado “emergente”, alcançou um elevado nível
AFFONSO CELSO DE OURO PRETO
154
tecnológico e desenvolveu um importante parque industrial únicos no
continente.
 Comparar a África subsaárica com o Oriente Médio, – além da
exceção sul africana, constitui um exercício interessante.
As duas regiões enfrentam, como foi visto, crises e confrontações
graves.
Os seus conflitos se distinguem por dois motivos. Em primeiro lugar,
os choques verificados na África tiveram lugar em sociedades essencial
ou puramente tribaisque se encontravam, como foi dito, num estágio
incipiente de desenvolvimento. Os choques conflitos expressaram o
esforço, após as euforias das respectivas independências, de criação ou
consolidação, de Estados modernos. Igualmente as extraordinárias
dificuldades, encontradas nessa rota. Demonstram ainda o fato de que as
colonizações, na África, haviam sido breves, sem marcar, profundamente
as sociedades, exceto no que
diz respeito às suas pouco numerosas elites.
Em segundo lugar, como se disse, na África subsáarica, apesar da
violência que ali se verificou, o seu alcance, e pouco repercutiu além das
fronteiras nacionais.
Já o Oriente Médio apresenta um quadro profundamente diferente.
Os Estados possuíam bases sólidas, ainda que constituíssem também
entidades artificiais, formadas que foram com base nos entendimentos
que se seguiram à primeira guerra, e com fronteiras às vezes contestadas
como as do Líbano com a Síria ou as de Israel com o futuro Estado
israelense. As sociedades locais, todavia, com algumas exceções – por
exemplo, o Iraque – não são tribais mas representam partes de um
conjunto maior, ainda que dividido, hoje, em nações, que seria o mundo
árabe, unido pela mesma cultura e pela consciência de uma afinidade
histórica.
As guerras internas, ainda que violentas como as do Líbano, o
setembro negro jordaniano, ou os conflitos frente a Israel, não chegaram,
nem de longe, ao grau de violência que se verificou na África subsaárica
e não podem ser consideradas como conflitos tribais.
Por outro lado, apesar de constituir dramas menos intensos, os
conflitos do Oriente Médio, muito mais do que os africanos, repercutiram,
globalmente, fora da região, em todo o mundo e não só nos meios
islâmicos. O Oriente Médio tornou-se uma das principais áreas de
confrontação onde se concentram as atenções internacionais e onde é,
INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS
155
claramente visível, uma presença dos EUA e uma contestação, hoje
sobretudo política, a essa presença.
A violência foi menor no Oriente Médio do que na África subsaárica,
mas ela preocupa mais o mundo....
157
A África entre o atraso e o desenvolvimento no
período Pós-Crise Global
José Flávio Sombra Saraiva*
O objetivo central do presente capítulo é apresentar algumas das ideias
por mim defendidas oralmente nos debates que da Terceira Conferência
Nacional de Política Externa e Política Internacional, organizada pelo Instituto
de Pesquisa em Relações Internacionais (IPRI) e Fundação Alexandre de
Gusmão (FUNAG), do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, realizado
em dezembro de 2008, no Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro.
Redigido posteriormente ao contexto da conferência, ainda que recupere
parte da minha exposição, o presente texto incorpora naturalmente fatos e
processos que se espraiaram a posteriori, em especial os aspectos atinentes
ao impacto da crise econômica global iniciada na segunda metade do ano de
2008, além da chegado à presidência dos Estados Unidos da América do
Presidente Barack Obama, fenômenos que se debruçaram sobre o mundo
em 2009, com consequências para os Estados, as economias e as sociedades
africanas.
Nesse sentido, o documento está divido em quatro problemas centrais.
O primeiro aborda a adaptação do continente africano ao período posterior
à década de bonança econômica de fins da década de 1990 em grande parte
do continente, até o ano de 2008. O segundo se refere aos temas
* PhD, Universidade de Birmingham, Inglaterra; professor titular em Relações Internacionais
da UnB e presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
158
estruturalmente recorrentes na África, com ou sem crise global. Avalia alguns
desafios, de caráter mais novo, para o melhor engajamento da África nas
mudanças sistêmicas que vislumbra o sistema internacional da passagem da
primeira para a segunda década do século 21. O terceiro aborda a disputa e/
ou a cooperação sino-americana na África depois da chegada do presidente
Obama ao poder. Finalmente, na conclusão, uma palavra de confiança é
conferida aos esforços brasileiros ao buscar manter base logística de operação
no continente africano.
Depois da bonança, o ônus?
As condições internacionais da passagem do século 20 para o século
atual foram favoráveis à inserção internacional da África. Os anos que separam
1999 ao ano atual configuraram quase uma década de superação, comparada
com as quatro décadas anteriores de baixa continuidade econômica, fraturas
na formação dos Estados nacionais, péssimos índices sociais. O crescimento
econômico em ciclo recente trouxe alguma consistência estrutural à
modernização daquele continente de 30 milhões de quilômetros quadrados,
gerador de fato inédito à história recente dos jovens Estados africanos,
nascidos do primeiro ciclo de independências no fim dos anos 1950 e início
da década de 1960.
 Os registros quantitativos e qualitativos produzidos pelas agências
internacionais e pelos próprios gestores dos 54 Estados africanos produziram
evidências empíricas do argumento inicial. Economistas, governos e empresas
chinesas e norte-americanas, e mesmo balanços brasileiros de empresas e
órgãos de governo, confirmaram a quadra histórica alvissareira que assistimos
recentemente.
Os atuais 680 milhões de africanos que habitam as paragens continentais,
depois de décadas de agruras, assistiram, mesmo com crises estruturais e
dificuldades históricas no campo da assimetria social e dependência econômica
das metrópoles de antes, um sopro de esperança de normalização de suas
vidas. Apresentada como a última fronteira do capitalismo global, a África
atraiu a atenção da sociedade internacional. Abria-se a oportunidade para,
por meio do crescimento econômico, buscar-se a normalização política e a
pacificação dos conflitos domésticos.
Observei, na edição anterior da Conferência Nacional de Política Exterior
e Política Internacional (II CNPEPI), dimensões que animaram o ambiente
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
159
positivo na África e em torno dela. Interna e externamente induzidas, as
sociedades africanas caminharam para um novo estágio civilizatório. As
expectativas que elevaram o lugar da África no sistema internacional são
relevantes para um continente povoado por Estados que têm apenas meio
século de autonomia formal, depois do ciclo colonial:
“O sentimento de que nos últimos sete anos, justamente os primeiros do
novo século, a África vem superando o drama histórico das guerras intestinas
e internacionais. O número de países africanos com conflitos armados
internos caiu de 13 para 5, nos últimos seis anos, apesar da dramaticidade
do caso do Darfur. Os conflitos foram a mais importante causa imediata da
pobreza no continente. A redução dramática dos mesmos faz pensar que
os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhões queimados nos conflitos
entre 1990 e 2005, podem agora ser dirigidos às políticas de redução da
pobreza e da miséria.”1
As novas condições da temperatura e pressão das relações internacionais
do segundo semestre de 2008 e primeira metade de 2009, especialmente as
de ordem econômica, fizeram tremer lideranças africanas. A preocupação
inicial era a de que a crise econômica global se espraiaria nas periferias do
capitalismo, portanto na África, de forma sequencial, em efeito dominó, a
seguir o compasso de intranquilidade criada no centro do capitalismo norte-
americano e seus pares europeus.
A crise originada na toxidade dos capitais, fato global mais relevante da
segunda metade de 2008, ao migrar para as atividades produtivas já no final
do mesmo ano, aprofundou-se e alastrou-se geograficamente. Quase não
houve surpresa, para o observador comum dos fatos globais, seu
aprofundamento nos primeiros meses de 2009.
A crise atingiu a todos? A lógica da divulgação diária de cada novo índice
econômico apresentado pelas autoridades governamentais em diferentes
partes do planeta deprimiu a esperança. O fatalismo é tão intenso que alcançou
em proporção a outra lógica perversa que presidiu quadra histórica
relativamente recente: a da euforia triunfalista dos que decretaram o fim da
História no início dos anos 1990 e o início do paraíso liberal.
1 SARAIVA, José Flávio Sombra Saraiva, “A África na ordem internacional do século XXI:
mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?”, Revista Brasileira de Relações
Internacionais, 51(1), 2008, pp. 87-104.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
160
Exemplos não andam escassos. Recessão no Japão de hoje nos níveis
dos anos 1970. Inoperância e lentidão do governo Obama, nos seus
primeiros meses, no encaminhar o espinhoso detalhamento dos planos
práticos para mover os Estados Unidos para o desejado ciclo industrial.
Uma Europa cambaleante e com emprego declinante, a empurrar o projeto
comunitário para a xenofobia de direita. A China, vulnerável diante da
dependência das exportações como vetor central do seu PIB, parecia que
iria crescer lentamente. Seus satélites asiáticos ajudariam a pagar a conta.
A Rússia morreu na praia com a depreciação de sua commodity energética
e crise cambial.
A América Latina não foi exceção. Diante das enxurradas de balanços
negativos na área do emprego em grande parte dos países da região, e da
barragem dos financiamentos do ciclo virtuoso do capitalismo perdulário e
das fontes de investimento internacionais, os cidadãos comuns já entenderam
que a fase áurea já passou. O Brasil, e alguns outros países da região, no
entanto, já mostram capacidade de retomada do crescimento, ainda que de
forma discreta.
Na África houve pânico. Mas logo se percebeu que o contexto poderia
não ser tão ruim. A África não foi atingida, plenamente, pelo pessimismo
congênito daquele primeiro momento. Lá a tendência parece ter sido um
pouco diferente daquelas vislumbradas nas áreas tradicionais do capitalismo
e na parte mais proeminente dos países emergentes do Sul.
A África ainda não barrou seu ciclo de crescimento na década em curso.
Os índices de normalização macroeconômicos são positivos, a gestão pública
melhorou e as economias africanas não se abateram como nos grandes do
centro do capitalismo. O continente assiste e continua a assistir a ciclo de
crescimento. É o mais sustentável desde as independências do início dos
anos 1960. Parece estar em melhor posição ante o ciclo de crescimento
anual em torno de 5% que vem mantendo desde 2002, embora tenha caído
tal percentual em uma grande parte de países nos últimos meses de 2008 e
início de 2009, especialmente aqueles mais ligados às empresas e comércio
com países europeus.
A África naturalmente não está imune. A retração chinesa teve algum
impacto no continente. No entanto, o avanço dos capitais do Golfo Pérsico,
compensou o crédito e o financiamento infra-estrutural dos novos projetos
do NEPAD, a iniciativa africana de desenvolvimento sustentável e de
incorporação social dos mais vulneráveis.
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
161
Apesar do efeito do contágio da febre pessimista, a África é a parte do
planeta que menos fala em crise no momento. Em parte porque a crise já é
paisagem duradoura da geografia africana. O continente foi um laboratório
de modelos os mais inadequados ao desenvolvimento, à cidadania e à
autonomia decisória internacional do continente por muito tempo. Agora
desejam eles uma África para os africanos, uma espécie de Doutrina Monroe
do outro lado do Atlântico Sul.
Para os pessimistas, só é possível falar da África nos termos das
tragédias humanitárias. Ou de governos corruptos. Sim, esses temas
merecem toda a atenção e cuidado da opinião pública internacional. Mas
há outras Áfricas. Há aquelas que, reconhecidas pelos relatórios norte-
americanos da Freedom House, reduziram os conflitos interestatais de 14
para 5 na presente década.
Para além do drama de Darfur, do Congo, dos piratas da Somália ou do
regime antigo do Zimbábue, ou mesmo dos problemas de corrupção na África
do Sul, mais da metade dos governos africanos do presente são democráticos
ou estão em processos de normalização democrática. Obama sabe disso e já
tem plano para a África. O Brasil de Lula começou antes sua inflexão correta
na direção africana.
O outro lado da crise é, portanto, uma África que fez, de fato, da crise
uma oportunidade. Há um sopro de esperança no ar. Alto ao fatalismo que
embrutece a capacidade de reagir às crises.
Há lições advindas da África. O crescimento econômico angolano, como
aquele que se notou permanecer na faixa de 7%, é fato auspicioso. Tal
crescimento é seguindo, na África oriental, pela Etiópia, e no golfo atlântico
da Guiné por Gana. O mesmo pode-se dizer, no norte da África, para o caso
argelino, ancorado no petróleo e no projeto de liderança econômica e política
da chamada África do Norte.
Os velhos desafios na nova ordem africana
Apesar da crise não ter se abatido sobre o continente como os arautos
da desesperança pregaram, persiste na África o problema dos velhos desafios
que não se alteram com a mesma velocidade da sua integração na sociedade
global. Quatro desafios, entre outros, podem ser enumerados e desdobrados
em temas para a reflexão com mais vagar ao longo dos próximos anos na
África.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
162
O primeiro deles é a baixa alternância de poder no continente. A
perpetuação de governantes não é tema novo, mas ganha nova proporção na
passagem da primeira para a segunda década do século 21, mesmo para
países relativamente estáveis como Angola, em processo de desenvolvimento
notável. Há também os casos de países relativamente tranquilos há anos,
estáveis e economicamente viáveis, como o Gabão, mas governado por um
Bongo envelhecido e sem criatividade. Há governantes no poder para além
de 20 a 30 anos, sem abertura real a reformas democratizantes. Há eleições
de fachada em vários países.
Tais regimes dúbios e governos em lenta democratização, mesmo que
apresentados como em processo de institucionalização, substituem muito
lentamente os velhos donos do poder por outras elites, mais renovadas e
modernas. O caso do Zimbábue é simbólico, um país que bem regrou a
convivência da presença do crescimento econômico com a permanência do
ex-colonizadores e organizou a infra-estrutura social e econômica. Vê-lo da
maneira que Robert Mugabe o vê é certamente um retrocesso. Há novas
elites no país, ligadas ao mundo contemporâneo, mas não encontram meios
para permanecer no próprio país, que fenece por razões que se originam na
natureza e na perpetuação do poder.
O segundo desafio é a penetração na África, na formação de parte das
novas elites e de setores médios das populações urbanas das grandes
metrópoles do continente, do tema narcotráfico internacional. Esse é um
aspecto relativamente novo, com raízes nas velhas resource wars na África,
ou das guerras do blood diamond, como aquelas na África ocidental e em
Angola, agora em suas novas versões.
Expandiram-se essas preocupações ante a ponte que vem se realizando,
entre a América Latina e a Europa, em torno do tráfico de drogas e pessoas.
Há notícias de corredores de tráfico internacional de ilícitos que vinculam
produtores de pasta de coca na América do Sul, ao transporte e preparação
de novos produtos na África ocidental, e seu processamento entre a África e
a Europa.
Existem ainda poucos dados disponíveis acerca dessa matéria, mas já
suficientes para supor que tais interesses espúrios, da realidade da economia
política internacional, estão presentes na economia e na política africanas do
momento. Emergem Estados parasitas, vinculados a essa ameaça internacional.
Os golpes e contra-golpes que foram assistidos recentemente na Guiné-Bissau,
desde março de 2009, expressam exatamente o aprisionamento do Estado
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
163
por interesses econômicos poderosos, multinacionais e desestabilizadores
de jovem Estado na África ocidental, país de língua portuguesa, membro da
CPLP e que recebeu a primeira visita de chefe de Estado do Brasil, em fim
dos anos 1970, do então presidente Figueiredo.
O presidente Lula também
já esteve lá, em um dos seus périplos africanos.
O terceiro desafio está no campo exclusivo das políticas públicas para
manter e ampliar o ganho econômico dos últimos anos, advindos da cola do
maior crescimento do capitalismo em sua história. Já se sabe que essa onda
quebrou e que o crescimento econômico global está voltando, mas ainda
modesto, e tenderá a seguir modesto por muitos anos. Isso tem uma grande
implicação nas políticas públicas africanas voltadas para o desenvolvimento
sustentável e a inclusão social.
A ordem que se eleva diante do fim da década de ouro, com crescimento
econômico mais modesto, exigirá escolhas importantes dos líderes e das
sociedades africanas. Se em 2007, antes do impacto da crise econômica
global, 37 países africanos, quase dois terços dos países continentais, cresciam
acima de 4% ao ano, e 34 foram classificados pela Freedon House como
“livres” ou “parcialmente livres”, como seguiu esse compasso na quadra
histórica de menos capital disponível para investimento na África?
Subsistem em 2009, portanto, além dos velhos desafios que subsistem
na história recente da inserção internacional dos países africanos no sistema
mundial, as dificuldades vinculadas às próprias transformações em curso na
ordem econômica e política mundial. A África necessitará de uma elite africana
mais comprometida com a autonomia decisória e a boa integração do
continente aos processos econômicos globais.
Constatam os economistas africanos ou africanistas que o crescimento
econômico que assistiu a África na primeira década de ouro do século 21
não tende a seguir no molde anterior. Apesar da África, segundo a OCDE,
ter passado a receber mais recursos advindos de investimentos que de ajuda
internacional, essa equação poderá se inverter se não houver responsabilidade
dos seus governantes nesse importante capítulo de normalização econômica
já iniciada na África a muitos custos internos.
Controle inflacionário e responsabilidade fiscal foram movimentos
importantes de normalização macroeconômica encabeçados por governos
responsáveis no continente africano em fins dos anos 1990 e início dos atuais.
Uma regressão nessas áreas e a retomada de ciclo de endividamento externo
seriam nefastas para os avanços parciais conquistados nos últimos anos.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
164
O quarto e último desafio que enfrentarão os africanos nos próximos
anos é a tentação para, diante de novas dificuldades que chegam do front
internacional, recorrer ao velho discurso de vítimas. Esse discurso, de grande
eficácia política para as elites perversas africanas, não serve aos africanos
que constróem no dia a dia seu futuro.
A África vinha provando que mesmo intervenções humanitárias, com
aquelas que os anos 1990 foram pródigos, trouxeram poucos resultados
práticos para as populações e reforçaram, ao final, os esquemas de poder
das elites perversas. Ajuda externa carimbada de laços com as elites que
perpetuam as diferenças sociais, econômicas e políticas é conspiração contra
a África, que tende a permanecer infantilizada em alguns setores graças a
esse tipo de falsa piedade.
O desafio psicológico e social é, portanto, o do princípio clássico do
ensinamento do pescar, e não comer o peixe pescado por outros. Se pela
primeira vez na história o continente recebe mais investimento que ajuda, e
avançou tão bem, o modelo que deve dirigir a relação da África com o mundo
é o modelo do investimento, não da esmola.
Os novos olhares sobre a África: o governo Obama e a nova
ofensiva chinesa
Embora filho de queniano, o presidente Obama manteve discreta
apreciação acerca dos desdobramentos políticos, econômicos e sociais nos
primeiros meses de seu governo. Para especialistas norte-americanos
interessados em uma estratégia mais delimitada de contenção dos avanços
chineses no continente africano, o novo governo ianque pareceu reticente a
por em marcha aspectos do documento preparado, anos antes, pela Professora
Samantha Power e o ex-subsecretário para assuntos africanos no governo,
Chester Chocker, conhecedores dos problemas e possibilidades africanas.
A manutenção de uma pauta velha na África, marcada pela preocupação
no campo quase exclusivo da segurança internacional, com ênfase ao tema
do terrorismo, obstruiu, ao lado das preocupações mais domésticas norte-
americanas no campo econômico, a formulação de uma política mais assertiva
em relação ao continente ancestral do presidente dos Estados Unidos da
América.
A evolução, nos últimos meses, vem sendo, no entanto, positiva, com a
retomada dos contatos mais diretos do presidente Obama e da secretária de
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
165
Estado Hillary Clinton com matérias atinentes a África. Obama e Clinton
viajaram a África em 2009. Emergem quatro áreas de interesse dos Estados
no continente. São quase quatro áreas de engajamento, a saber:
i. O fortalecimento das instituições democráticas;
ii. A prevenção de conflitos;
iii. O incentivo ao crescimento econômico;
iv. A parceria para o combate de ameaças globais como o terrorismo.2
Esse último problema foi tratado na visita da Secretária de Estado ao
continente africano no mês de agosto de 2009, em torno de sete países
visitados. A preocupação especialmente com os temas do chifre da África,
com a pirataria nas águas territoriais da Somália, o desgoverno na região e a
fissuras abertas que permitem a penetração dos grupos terroristas, segue
sendo área de preocupação, seguindo a tendência da política externa norte-
americana para o continente desde os dois governos Bush.
O tema democratização dos regimes, associados aos temas de
investimento direto dos Estados Unidos na África foi direta e claramente
tratado pela Secretária de Estado:
“O verdadeiro progresso econômico na África depende de governos
responsáveis que rejeitam a corrupção, reforcem a lei e entreguem
resultados a seu povo. Isso não é apenas sobre boa governança, isso é
sobre bons negócios.”3
Antes mesmo, na visita do presidente Obama a Gana, em julho de 2009,
chamou a atenção para o fato de que os africanos têm razão para se orgulhar
mais do que para se humilhar diante de sua história. Lançou seu discurso
contra o velho pano de fundo, já roto, em torno da pobreza endêmica, e
preferiu avançar um discurso de sucesso e de elevação do patamar africano
pelo binômio bom governo – investimentos econômicos.
2 Esses pontos foram apresentados recentemente pelo subsecretário para assuntos africanos do
presidente Obama, Johnnie Carson, e relembrados no discurso da Secretária de Estado Hillary
Clinton no discurso pronunciado em Cabo Verde, dia 14 de agosto de 2009, no palácio presidencial
de Praia, na última fase da sua visita a sete países africanos (Quênia, África do Sul, Libéria,
Nigéria, Congo, Angola e Cabo Verde)
3 Discurso da Secretária de Estado Hillary Clinton na África, conforme nota anterior.
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
166
De Fareed Zakaria, amigo e influente colunista nas ideias internacionalistas
do presidente Obama, aos grandes institutos norte-americanos que vêm se
dedicando a ensaiar a nova aproximação dos Estados para a África, aparece
um contendor do outro lado, ora visto como competidor, ora como
colaborador da retomada do interesse dos Estados Unidos da América no
continente. É a China, que veio para ficar na África.
O peso da China na África já foi por mim tratado no texto que publiquei
na Segunda Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional,
mas creio que vale anotar alguns elementos de interesse da China na África
para o contexto pós-crise global. Defendo que a África é cada vez mais
importante para o desenvolvimento chinês.
A base da operação chinesa na África não sofreu a descontinuidade dos
norte-americanos nem foi contaminada pelo tema do terrorismo como uma
ameaça. Ao contrário, os chineses aproveitaram
a brecha aberta pela retirada
norte-americana relativa da África no contexto pós-Guerra Fria. Depois de
1989, ante o isolamento chinês diante das desconfianças do mundo em relação
massacre do governo chinês na Praça da Paz Celestial, os chineses buscaram
apoio dos governos ditatoriais da África em troca de cooperação, que triplicou
em dois anos, e investimento, necessário ao projeto chinês de crescimento
do seu capitalismo de exceção.
Desde 1990, renovando-se em 2000 com a criação do Fórum de
Cooperação África-China, no qual 80 ministros de Estado africanos foram
levados de Pequim à área industrial de Guandong em avião para verem o
colosso do crescimento industrial chinês, passando pela segunda edição, em
novembro de 2007, a China desembarcou na África de forma estrutural. É
difícil andar em qualquer rua comercial de qualquer país africano que não
seja povoada por produtos chineses. Estão os investimentos chineses nos
mais importantes projetos de infra-estrutura do continente africano, de
aeroportos a estradas expressas, passando por palácios e grandes campos
de acesso às extrações minerais.
A estratégia chinesa é um pouco, ou muito mais, afoita que a proposta do
presidente Obama para a África. Pode ser esquematicamente apresentada em
torno dos seguintes pontos, como o fiz para o caso norte-americano antes:
i. Exportação para a África do modelo chinês de tratamento dos temas
da agenda internacional, apresentando-se como uma representante natural
dos países em desenvolvimento;
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
167
ii. Exportação de bens industriais e armas e importação de produtos
primários;
iii. Exploração de todas as fontes possíveis e necessárias de recursos
minerais, estratégicos e de energia que garanta a sustentabilidade do
crescimento econômico chinês.4
Se a China voltou bem da crise global, como demonstram os dados de
crescimento econômico do gigante asiático, em torno de 8% do PIB
anualizado de julho de 2008 a julho de 2009, é o capitalismo chinês o maior
agente de modernização econômica do continente africano.
Os investimentos do banco de desenvolvimento na África já superam,
nos últimos quatro anos, o total dos investimentos europeus no seu
conjunto, e é muito superior ao que países em desenvolvimento como o
Brasil podem fazer, apesar dos financiamentos e investimentos do nosso
BNDEs. Os norte-americanos não possuem meios objetivos para superar
a capacidade logística e infra-estrutural, financeira e comercial, montada
pelos chineses.
A continuidade do crescimento econômico chinês, associado aos capitais
do Golfo Pérsico, poderá trazer a oportunidade de continuação do ciclo
virtuoso que os africanos ainda possuem, em termos de investimento externo
direto. Os dados ainda são favoráveis a essa equação sino-africana. Os norte-
americanos podem optar por se juntar aos chineses no campo do investimento,
mas terão dificuldades de compartilhar os métodos chineses, mais pragmáticos
no que se refere ao tema da boa governança interna das débeis democracias
africanas.
Em todo caso, segue a China seu projeto de criar mais duas Chinas até
2050, a incluir mais 400 milhões de seus habitantes nos meios da sociedade
de consumo de massa nos moldes ocidentais, por meio da extração energética,
mineral e das riquezas naturais da África. A respeito desse projeto já não há
mais muita dúvida.
O que poderão fazer os norte-americanos em torno desse projeto? Pouco
parece. O que poderão fazer os europeus, em fase de cadência econômica
endêmica? Certamente nada. Será esse um capítulo importante para o estudo
da economia política internacional dos próximos cinquenta anos. A África
será o centro dessa disputa e/ou cooperação nas novas disputas do capitalismo
global.
4 SARAIVA, José Flávio S., op. cit., p. 97
JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA
168
À guisa de conclusão: o Brasil ainda tem seu lugar na África
O Brasil, na década de ouro do crescimento econômico na África, não
substituiu nenhum outro ator estatal internacional em seu peso relativo no
investimento, na presença comercial nem no peso geoestratégico ou político
no continente transatlântico. No entanto, avançou posição em sua fronteira
oriental. Substituiu o período de silêncio nas relações do Brasil com a África
por um ciclo virtuoso de cooperação e desenho de projetos para o continente
africano.5
A recuperação, no governo Lula, da política africana, permitiu ao Brasil
certa participação nessa área do planeta, fronteira atlântica do Brasil, e proveu
funcionalidade aos interesses brasileiros, além de certos valores, à projeção
internacional do país. A África recebeu algum investimento brasileiro, empresas
estão presentes, jovens de todo o país, mesmo de pequenas cidades, trabalham
hoje em empresas brasileiras e internacionais em países em canteiros de obra
como Angola.
A diplomacia brasileira esteve próximo aos africanos em temas de
interesse comum como o protecionismo comercial das economias centrais,
em foros internacionais e compartilhou a ideia de um Atlântico sul de
cooperação econômica e social e não de conflitos ou de militarização nuclear.
A agenda de apoio ao desenvolvimento da África é certamente uma
contribuição do Brasil ao programas de combate a pobreza e inclusão social
na África.
 A criação dos novos postos na África foi rapidamente devolvido pela
boa reciprocidade africana. Brasília já abriga 34 embaixadas ou missões
permanentes de países africanos. É caso único na América Latina, superado
nas Américas apenas pelos Estados Unidos.
Esses avanços são, portanto, importantes, associados à pauta comercial
que se expandiu percentualmente para ordem de 6% do intercâmbio do Brasil,
aproximando-a de valores em torno de US$ 20 bilhões no ano presente, o
que não é desprezível.
O Brasil vem, assim, contribuir aos projetos de desenvolvimento africanos.
Esses projetos, que são e devem ser africanos, merecem a contribuição da
5 Escrevi cinco livros acerca das oscilações, o ir e vir, nas relações do Brasil com o continente
africano. O que melhor analisa o vai e vem e, em especial, o período afônico de África na política
externa do Brasil nos anos 1990 está no seguinte livro: SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar
da África: a dimensão atlântica da política externa do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1996.
A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL
169
experiência brasileira. Reconciliamo-nos, por meio de uma política africana
do Brasil, com os brasileiros todos, os descendentes ou não de africanos,
pois o Brasil é um país de alcance global. Não pode escolher parceiros e
países para cooperar apenas pelo grau de desenvolvimento alcançado. Esse
é o valor da política externa do Brasil para a formação do próprio país.
171
Cooperação Sul-Sul: a Experiência de
Cooperação Internacional em Saúde do Brasil
com Países da África1
Paulo M. Buss2
José Roberto Ferreira3
“The responsibility for the development of
the South lies in the South,
and in the hands of the people of the South”
Julius Nyerere (1990)
Introdução
O presente artigo traz uma reflexão sobre as iniciativas de cooperação
internacional em saúde que a FIOCRUZ tem desenvolvido em conjunto com
os Ministérios da Saúde e das Relações Exteriores com países da África,
área amplamente priorizada no contexto da política externa brasileira.
A ‘saúde’ tem sido priorizada na política externa brasileira, em função
das constantes demandas por cooperação e apoio nesta área, que recebe o
Presidente da República nas suas viagens internacionais, particularmente a
países do Continente africano, demandas estas que decorrem do
reconhecimento internacional que goza o Brasil pela qualidade e pelo perfil
inovador do Sistema Único de Saúde brasileiro e pela reconhecida capacidade
1 Documento revisado e ampliado, originalmente apresentado à III Conferência Nacional
de
Política Externa e Política Internacional (CNPEPI): ‘Brasil no mundo que vem aí’, realizada
pela Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, no Rio
de Janeiro, dias 8 e 9 de dezembro de 2008.
2 Professor e Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública; Diretor do Centro de Relações
Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz e ex-presidente da Instituição; Membro
Titular da Academia Nacional de Medicina.
3 Professor Honoris Causa da Escola Nacional de Saúde Pública; Chefe da Assessoria de
Cooperação Internacional da Fundação Oswaldo Cruz; ex-Diretor de Recursos Humanos da
Organização Panamericana da Saúde, Washington D.C., de 1970 a 1995.
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
172
das instituições cientificas nacionais na área da saúde. De outro lado, os muitos
estudantes africanos de diversos países que passaram por graduações
universitárias e cursos de pós-graduação do país vêm difundindo a qualidade
do ensino e da ciência brasileiras no Continente Africano, contribuindo para
esta demanda crescente.
Outro fator para explicar a forte presença da saúde na política externa
brasileira é o prestígio que goza o Brasil, suas instituições e profissionais do
setor saúde entre as organizações internacionais que, muitas vezes, são as
responsáveis por selecionar instituições ou consultores para a cooperação
internacional em saúde.
Como a FIOCRUZ tem sido constantemente acionada pelo Governo,
através dos mencionados Ministérios – Saúde e Relações Exteriores – para
colaborar na resposta às reiteradas demandas de cooperação em saúde,
fomos acumulando uma série de reflexões, análises e também práticas no
trabalho com a África.
Assim, vamos apresentar inicialmente nossa visão sobre alguns ‘contextos
africanos’ fundamentais para o planejamento e a implementação das atividades
institucionais de cooperação internacional em saúde. Tais reflexões advêm
de análises sistemáticas de documentação disponível na literatura especializada
e na imprensa mundial sobre a África, bem como das visitas a diversos países
e entrevistas com líderes políticos e acadêmicos africanos que temos feito
nos últimos anos.
Em seguida, apresentaremos a experiência concreta que vem sendo
desenvolvida na cooperação internacional em saúde no Continente, com ênfase
nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), integrantes,
junto com Brasil, Portugal e Timor-Leste, da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP).
Contextos Africanos
A África é o terceiro maior continente da Terra e o segundo mais populoso,
possuindo cerca de 945 milhões de habitantes (2007), distribuídos em 54
países, o que representa cerca de 1/7 da população do mundo, mas que
responde por apenas 2,1% do PIB mundial. Dos 54 países independentes
da África, 48 são continentais e 6 são insulares. Quando falamos de África é
preciso considerar, no mínimo, suas duas grandes macro-regiões, muito
distintas quanto aos quadros humano e econômico. Ao norte, na África
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
173
mediterrânea, encontra-se uma organização sócio-econômica muito
semelhante à do Oriente Médio, compondo o mundo islâmico, no qual
predominam os povos caucasóides, principalmente berberes e árabes,
totalizando cerca de ¼ da população africana. Na área subsaariana, temos a
chamada África negra, assim denominada pela predominância de povos de
pele escura, que concentra a grande massa de pobreza do continente,
representando cerca de 70% dos habitantes do continente.
A população urbana alcança cerca de 368 milhões (39%) e a rural ao redor
de 577 milhões (61%). A taxa de crescimento demográfico (2005-2010) está
estimada em 2,3% e a densidade demográfica é de 31,4 habitantes/km2 (2007).
A população tem crescido exponencialmente ao longo do último século
(duplicou nos últimos 28 anos e quadruplicou nos últimos 55 anos). É uma
população muito jovem, apresentando uma média de idade em torno de 19
anos (2003). A expectativa média de vida (EV) encontrava-se, em 2006,
abaixo dos 50 anos em 28 países, e abaixo de 60 anos em 43 países. Em
Lesoto, Botsuana e Suazilândia, a EV estava abaixo de 35 anos.
Estima-se que a população alcançará 1 bilhão de pessoas em torno de
2010. Os países mais populosos, em 2007, eram: Nigéria (137,2 milhões),
Etiópia (81,2 milhões) e Egito (76,9 milhões); existem 45 aglomerações
urbanas com mais de 1 milhão de habitantes no Continente. O analfabetismo
alcança 40,3% da população adulta (2005).
Economia
Dos 53 países africanos, 34 estão entre os menos desenvolvidos do
mundo. No Mapa 1, apresenta-se um panorama do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) nos diversos países do continente: a maioria dos países da
África subsaariana tem baixo IDH (abaixo de 0,499), região na qual quase
metade da população vive abaixo da linha da pobreza. O PIB total do
Continente é de USD 1,635 trilhões (2007), o que corresponde a um PIB
per capita médio de US$ 1.730 (2007), mas com variações de USD 4.770
na África do Sul a USD 100 no Burundi e USD 170 na Etiópia.
A maioria dos países africanos tem sua economia centrada na agricultura
e na exploração de minérios. Com isto, desenvolveu-se um sistema de
economia de intercâmbio comercial, que continua coexistindo com a economia
de subsistência. O continente participa de apenas 2% das transações
comerciais que acontecem no mundo.
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
174
Embora 1/4 do território africano seja coberto por florestas, grande parte
da madeira só tem valor como combustível. Costa do Marfim, Libéria, Gana
e Nigéria são os maiores exportadores de madeira de lei. A pesca marítima,
muito difundida mas voltada para o consumo local, adquire importância
comercial apenas no Marrocos, Namíbia e África do Sul. As indústrias de
extração mineral são o setor mais desenvolvido em boa parte da economia
africana, respondendo por cerca de 90% da receita total de exportação,
com destaques para a África do Sul, Líbia, Nigéria e Argélia. Além disso,
Serra Leoa tem a maior reserva conhecida de titânio.
 A nação mais industrializada do continente é a África do Sul, que alcançou
relativa estabilidade política e desenvolvimento, possuindo sozinha 1/5 do
PIB de toda a África. Porém, também já foram implantados centros industriais
de envergadura no Zimbábue, Egito e Argélia. O principal bloco econômico
é o SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, na sua
denominação em português), formado por 14 países do sul da África, que se
firma como o pólo econômico mais promissor do continente.
Questões políticas relevantes
Além de informações físico-naturais e populacionais, para compreender
melhor o tema da saúde e da cooperação, é importante que se analise, ainda
que sumariamente, a situação política da África. Em primeiro lugar, há que se
reconhecer a extrema juventude de uma África politicamente autônoma. Os
processos de independência têm entre 35 e 60 anos, contra mais de 175
anos do Brasil, por exemplo. Segundo, há que se registrar a irresponsabilidade
das potências ocidentais ao abandonarem seus espólios do século XX e a
incapacidade das Nações Unidas de lidarem com a avalanche de demandas
políticas e sociais decorrentes do processo de descolonização. O mundo
estava mais preocupado com a Guerra Fria entre as superpotências e os
próprios processos de descolonização foram manipulados muitas vezes de
forma imoral e aética pelas potências em confronto.
As guerras civis e tribais que ocorreram na pós-independência de diversos
países, a maioria delas decorrentes da divisão territorial artificial imposta pelas
potências européias e/ou estimuladas no contexto da Guerra Fria, contribuíram
na maioria dos países para corroer as bases de um processo social pacífico e
acabaram por destruir grande parte da infra-estrutura dos mesmos, inclusive
a de saúde.
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA
DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
175
A pós-colonização também se caracterizou pelo êxodo maciço de
recursos humanos qualificados, além do que inexistiam ou foram fechadas
universidades e escolas de nível superior nas ex-colônias; ademais, por um
longo período os ex-colonizadores impediam o envio de quadros mais
qualificados às ex-colônias. Os esforços de criação de universidades e escolas
de nível superior, por outro lado, foram até agora insuficientes para suprir as
necessidades de técnicos em quase todos os países africanos. Tal falta de
recursos continua até os dias de hoje, com tamanha gravidade na África que
a OMS tomou o problema dos recursos humanos em saúde como tema do
seu informe mundial de 2006 (OMS, 2006), apontando problemas que
acabaram por gerar um grande pacto mundial para o desenvolvimento dos
recursos humanos (OMS, 2007) e a regulação de migrações de profissionais
(OMS, 2008), com ênfase nos esforços de bloqueio ao brain drain.
Inspirados na União Europeia, os países do continente criaram, em 2002,
a União Africana (www.africa-union.org), sucedendo a Organização da
Unidade Africana (OUA) (1963) (ver quadro correspondente). Sua sede
localiza-se em Adis Abeba (Etiópia) e tem como principais objetivos a unidade
e solidariedade africanas; a eliminação do colonialismo; a defesa da soberania
dos Estados; a integração econômica; e a cooperação política e cultural no
Continente.
Saúde
Se a coordenação política cabe, na África, à União Africana, a parte de
saúde é conduzida pelo Escritório da OMS para a África, localizado em
Brazzaville, Congo, mas reúne apenas os países do subsaara, pois os países
do Norte e do Corno da África reúnem-se na região da OMS denominada
“Leste do Mediterrâneo”, junto com os países árabes do Oriente Médio4.
As péssimas condições sócio-sanitárias e ambientais da África acabaram
gerando um terreno muito favorável a uma severa deterioração das condições
de vida e saúde da maioria da população africana, nos diversos países. Uma
situação marcante é a iniquidade em saúde entre países e no interior dos
mesmos, com severos impactos negativos sobre os países mais pobres e
entre os mais pobres no interior dos diferentes países. Ademais, vive-se o
4 As seis regiões de saúde da OMS são África, Américas, Sudeste da Ásia, Europa, Leste do
Mediterrâneo, e Pacífico do Oeste (ou, em inglês, como são mais conhecidos: Africa, Americas,
South-East Asia, Europe, Eastern Mediterranean e Western Pacific).
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
176
paradoxo de que sobre aqueles em piores condições e, portanto, maiores
necessidades, é que recaem também as maiores dificuldades de acesso aos
programas sociais, em geral e de saúde, em particular.
O primeiro (mas também mais recente) amplo Relatório sobre Saúde
na África, publicado em 2006, mostra inequivocamente as péssimas
condições de vida e saúde vigentes no continente (OMS/AFRO, 2006).
Baixa expectativa de vida; altas taxas de mortalidade materna e de crianças
menores de 5 anos; alta prevalência de doenças infecto-parasitárias, entre
as quais se destacam a malária, a AIDS, a tuberculose e outras doenças
negligenciadas; desnutrição infantil e fome severas em muitos países e em
quase todo subsaara imediato; elevadas perdas de vida por conflitos
violentos sem resolução à vista ou em fase de eclosão e re-eclosão;
ambiente físico hostil e degradado ou em degradação, secas e/ou
inundações derivadas das importantes mudanças climáticas globais estão
entre alguns dos muitos problemas de saúde ou de situações identificadas
que impactam sobre a saúde.
Os governos nacionais não dispõem de recursos necessários e/ou
suficientes para enfrentar a avalanche de problemas sociais e de saúde, porque
as economias são frágeis e dependentes e porque os governos de muitos
países também não dispõem, nem de institucionalidade apropriada, nem de
recursos humanos qualificados.
O mencionado relatório afirma que sua mensagem central é:
“African countries will not develop economically and socially
without substantial improvements in the health of their people.
The health care interventions – treatments, diagnostic and
preventive methods – that are needed in this Region are known.
The challenge for African countries and their partners is to
deliver these to the people who need them, and the best way to
do this is establish well-functioning health systems” (WHO/
AFRO, 2006).
O fortalecimento dos sistemas de saúde em todas suas diversas e
complexas dimensões, mais do que apenas o enfrentamento de problemas
ou doenças específicas (entre as quais sempre se destacam HIV/AIDS,
malária e tuberculose), como tem sido a regra até aqui, deve ser o
componente dominante da ajuda internacional em saúde na África.
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
177
África e a Cooperação Internacional
Há um consenso absoluto entre os países africanos e na comunidade
global sobre a necessidade de ajuda internacional para o desenvolvimento
do Continente, em diversos campos da vida econômica e social, entre os
quais certamente a saúde, como defende a União Africana com sua estratégia
de New Partnership for Africa’s Development/Nova Parceria para o
Desenvolvimento da África (NEPAD, 2001). Mas ajuda que lhes assegure
compartilhamento, afirmação de soberania, protagonismo. E, portanto, uma
imensa esperança na ‘cooperação Sul-Sul’ ou ‘cooperação entre países em
desenvolvimento (CTPD)’ (ver quadro correspondente). Os africanos com
frequência tem sido ‘ignorados’ pelas cooperações de países ou blocos de
países desenvolvidos e por diversas ONGs, que chegam com ‘pacotes
prontos’ e, muitas vezes, até com territórios em que vão atuar já definidos,
sem considerar os eventuais planos de desenvolvimento ou saúde vigentes
nos países. Estes aceitam tais programas de ajuda muitas vezes por falta de
melhores opções, razão pela qual a ‘cooperação Sul-Sul’ corretamente
desenvolvida – como, no geral, tem sido orientada a abordagem brasileira –
poderia substituir a cooperação dominante, com evidentes vantagens para as
nações africanas.
A ‘cooperação para a saúde’ não tem como ser desarticulada da
“cooperação para o desenvolvimento”. Quer dizer, sem saúde seguramente
não haverá desenvolvimento e sem desenvolvimento, as condições de vida e
saúde – que são entes interdependentes – também não melhorarão. Portanto,
qualquer apoio internacional que pretenda ser eficaz precisa ser intersetorial,
quer dizer, combinar harmonicamente ajuda para o desenvolvimento
econômico com apoio para setores sociais como saúde, educação e agricultura
e a promoção da democracia e estabilidade política, incluindo a construção
da institucionalidade do Estado em geral e do setor saúde em particular. Em
síntese, a articulação intersetorial é a chave para uma cooperação resolutiva
na África.
Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs) (UN, 2000),
por exemplo, que são eminentemente intersetoriais, dariam conta de algumas
questões africanas. Eles são resultantes do pacto universal, intergovernamental,
firmado na Cúpula do Milênio, no ano 2000, e apresentam metas claras, que
cobrem campos intersetoriais vitais, como são o enfrentamento da pobreza,
alimentação e nutrição, educação, equidade de gênero, ambiente sustentável
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
178
e diversos objetivos de saúde, como saúde materna e infantil e as principais
doenças infecto-parasitárias. Além do mais, para atingí-los, propõe a criação
de uma “aliança para o desenvolvimento”, que é o Objetivo 8.
As críticas severas às formas vigentes de ajuda para o desenvolvimento
propiciada pelos países desenvolvidos e organizações multilaterais, levou-os
a realizarem um Fórum de Alto Nível, em 2005, em Paris, para “reformar” a
ajuda para o desenvolvimento, procurando torná-la mais eficaz, na perspectiva
da revisão qüinqüenal da Declaração do Milênio e dos ODMs,
que ocorreria
mais tarde, no mesmo ano. Deste evento, surgiu a “Declaração de Paris sobre
a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento” (OECD, 2005) que, firmada por
centenas de paises e dezenas de instituições globais, inclusive da sociedade
civil (OECD, 2009), reitera a necessidade de ampliar a ajuda para o
desenvolvimento, mas também melhorar sua eficácia, através das estratégias
de:
• Apropriação, através da qual os países parceiros exercem liderança
efetiva sobre as suas políticas e estratégias de desenvolvimento e asseguram
a coordenação das ações de desenvolvimento;
• Alinhamento, pela qual os doadores baseiam todo o seu apoio nas
estratégias nacionais de desenvolvimento, instituições e procedimentos dos
países parceiros;
• Harmonização, isto é, as ações dos doadores são mais coordenadas,
transparentes e coletivamente eficazes;
• Gestão centrada em resultados.
A excelente Declaração e as adesões de inúmeros países e organizações
às suas propostas, fariam supor um aumento na ajuda externa para o
desenvolvimento e práticas mais adequadas, com repercussões positivas sobre
os ODMs. Contudo, as conclusões dos dois últimos Relatórios sobre os
ODMs em geral, incluindo o objetivo 8, são muito preocupantes. O Informe
de 2007 (UN, 2007) afirma que a ajuda para o desenvolvimento vem
decrescendo, apesar da renovação (retórica) dos compromissos dos países
doadores; que os doadores se comprometeram a dobrar suas ajudas para a
África, embora pouco tenha sido feito até o momento; e que o acesso
preferencial aos mercados de países desenvolvidos reduziu-se para a maioria
dos países em desenvolvimento. Já o Relatório de 2008 (UN, 2008a)
acrescenta que a ajuda para o desenvolvimento caiu pelo segundo ano
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
179
consecutivo, afetando os compromissos para 2010; que os subsídios agrícolas
domésticos dos países ricos superam em muito o dinheiro usado na ajuda
para o desenvolvimento; e que a baixa disponibilidade e os preços elevados
são barreiras para o acesso a medicamentos essenciais em países em
desenvolvimento.
Em setembro de 2008, realizou-se em Acra, Gana, o 3º. Fórum de Alto
Nível sobre a Eficácia da Ajuda, que veio a gerar a ‘Agenda de Ação de
Acra’ (UN, 2008b), bem como em Doha, em dezembro de 2008, realizou-
se a Reunião de Análise do Financiamento para o Desenvolvimento, que
produziu a ‘Declaração de Doha sobre o Financiamento para o
Desenvolvimento’ (UN, 2008c), todas com referências específicas e ênfase
especial na cooperação com a África.
Todos estes elementos devem necessariamente ser tomados em conta
pela cooperação brasileira em saúde com países da África, principalmente
para evitar os erros crassos já cometidos por países que antes do nosso se
aventuraram no apoio econômico e social ao continente.
Cooperação Internacional em Saúde do Brasil com a África
A cooperação técnica internacional em saúde do Brasil tem como focos
principais a América do Sul e a CPLP, incluindo PALOP. Além dos PALOP,
a cooperação tem focado alguns outros países na África, como África do Sul
(no contexto de IBAS), Nigéria e, na África francofônica, Mali e Burkina
Faso, exatamente dois países nos quais muito recentemente o Brasil abriu
embaixadas.
A cooperação Sul-Sul segundo o Brasil
Antes de enfocar propriamente a cooperação internacional do Brasil com
a África, cabe contextualizar a “Cooperação Sul-Sul” ou “Cooperação entre
Países em Desenvolvimento” na política externa brasileira, segundo o Ministério
das Relações Exteriores (MRE, 2008). No ano de 1987, com a criação da
Agência Brasileira de Cooperação (ABC), no MRE, estabeleceu-se
efetivamente uma coordenação (CGPD) para tratar da Cooperação entre
Países em Desenvolvimento (CTPD), também conhecida como Cooperação
Sul-Sul ou Horizontal, com o objetivo de coordenar, negociar, aprovar,
acompanhar e avaliar a cooperação para o desenvolvimento, em todas as
PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA
180
áreas do conhecimento, recebida de outros países e organismos internacionais
e aquela entre o Brasil e países em desenvolvimento.
A partir de 2004, a cooperação brasileira entre países em
desenvolvimento foi significativamente ampliada, pautando-se desde então
pelas seguintes diretrizes:
• Priorizar programas de cooperação técnica que favoreçam a
intensificação das relações do Brasil com seus parceiros de maior interesse
para a política exterior brasileira;
• Apoiar projetos vinculados sobretudo a programas e prioridades
nacionais de desenvolvimento dos países recipiendários;
• Canalizar os esforços de CGPD para projetos de maior repercussão
e âmbito de influência, com efeito multiplicador mais intenso;
• Privilegiar projetos com maior alcance de resultados;
• Apoiar, sempre que possível, projetos com contrapartida nacional e/
ou com participação efetiva de instituições parceiras;
• Estabelecer parcerias preferencialmente com instituições genuinamente
nacionais.
À luz destas orientações governamentais, a CGPD concentrou suas
ações com base nas seguintes prioridades: 1) Compromissos assumidos
em viagens do Presidente da República e do Chanceler; 2) Países da
América do Sul; 3) Países da África, em especial os PALOP, e Timor Leste;
4) Demais países da América Latina e Caribe; 5) Apoio à CPLP; e 6)
Incremento das iniciativas de cooperação triangular com países
desenvolvidos (através de suas respectivas agências) e organismos
internacionais.
A cooperação internacional em saúde do Brasil na África e no
âmbito da CPLP
Como sabemos, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)
está composta de oito países, distribuídos em quatro Continentes. Cinco países
estão na África e constituem os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP): Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e
Príncipe. O Brasil, nas Américas, Portugal, na Europa e Timor-Leste, na
Ásia, completam a CPLP.
COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE
181
Os países integrantes da CPLP apresentam grandes assimetrias entre si,
como se pode verificar no quadro 1.
Tais assimetrias existem não só em relação às suas populações, que variam
de cerca de 189 milhões no Brasil a 155 mil em São Tomé e Príncipe, mas
também nas suas economias: a renda per capita, por exemplo, varia de USD
21,5 mil em Portugal a apenas USD 729 no Timor-Leste, USD 830 em
Guiné-Bissau e USD 1.200 em Moçambique. Verificam-se também grandes
variações nos indicadores de saúde, como na mortalidade de crianças abaixo
de 5 anos (260 por mil em Angola a 5 por mil em Portugal) e na expectativa
de vida ao nascer (ao redor de cerca de 70 anos no Brasil e Portugal e
abaixo de 50 anos em Angola e Moçambique).
O modelo de cooperação em saúde adotado, mais recentemente, pelos
Ministros da Saúde da CPLP – com a decisiva inspiração da FIOCRUZ,
como instituição articuladora da cooperação internacional em saúde do Brasil
– foi a elaboração compartilhada de um Programa Estratégico de
Cooperação em Saúde da CPLP (PECS/CPLP), cuja estrutura é mostrada
no quadro 2.
A estrutura da cooperação em saúde da CPLP compreende o
Conselho de Ministros da Saúde dos países membros, que indicaram
‘pontos focais’ para a elaboração do PECS/CPLP, cuja coordenação é
feita pela Secretaria Executiva da CPLP, com o apoio técnico formal da
Fundação Oswaldo Cruz (Brasil) e do Instituto de Higiene e Medicina
Tropical (Portugal). O Conselho de Ministros da Saúde reuniu-se em
Praia, Cabo Verde (abril, 2008) e determinou a elaboração do Plano. Os
“pontos focais” são as instâncias responsáveis por levantar a demanda e
a possível oferta de cooperação em saúde dos países membros. Tal etapa
já se realizou entre abril e setembro de 2008. Reunidos no Rio de Janeiro
(setembro, 2008), os Ministros examinaram a versão preliminar do Plano
(Anexo), baseado nas necessidades, demandas e ofertas e na

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