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III CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL – CNPEPI MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim Secretário-Geral Embaixador Antonio de Aguiar Patriota FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira. Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo, Sala 1 70170-900 Brasília, DF Telefones: (61) 3411-6033 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br Brasília, 2009 III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional – CNPEPI Direitos de publicação reservados à Fundação Alexandre de Gusmão Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo 70170-900 Brasília – DF Telefones: (61) 3411 6033/6034 Fax: (61) 3411 9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: funag@mre.gov.br Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14/12/2004. Capa: Aldemir Martins, Sertão de Timbaúba OST, 1973 in Odorico Tavares a minha casa baiana sonhos e desejos de um colecionador. Equipe Técnica: Eliane Miranda Paiva Maria Marta Cezar Lopes Cíntia Rejane Sousa Araújo Gonçalves Erika Silva Nascimento Juliana Corrêa de Freitas Júlia Lima Thomaz de Godoy Programação Visual e Diagramação: Juliana Orem e Maria Loureiro Impresso no Brasil 2009 CDU 327(81) Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional : (3 : Rio de Janeiro : 8 e 9 de dezembro de 2008) III CNPEPI : O Brasil no mundo que vem aí. - Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. 440p. 1.Política externa - Brasil. 2. Política internacional - Brasil. I. Título. III. Título: o Brasil no mundo que vem aí. Abertura Apresentação, 9 Embaixador Jeronimo Moscardo Palestra do Senhor Secretário-Geral das Relações Exteriores, 11 Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Primeira Sessão: Estados Unidos O Brasil e a Política Externa dos EUA no Governo Obama, 19 Antonio de Aguiar Patriota A Configuração Mundial do Poder, a Nova Hegemonia Norte- Americana e Novo Governo Obama, 33 Gilberto Dupas Segunda Sessão: América Latina e Caribe A América Latina e o Caribe; e o Brasil, 53 Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão América Latina no presente Sistema Internacional, 61 Helio Jaguaribe América Latina e Caribe : Nova Fronteira da Política Externa Brasileira, 73 Marcel Biato Sumário Terceira Sessão: Europa Uma Europa mais Transparente, 89 Franklin Trein Brasil - União Europeia: Uma Parceria Estratégica, 121 Maria Edileuza Fontenele Reis Quarta Sessão: África e Oriente Médio Instabilidade Política Moderna nos Países que Correspondem aos Últimos Impérios Coloniais Europeus. Exemplos do Oriente Médio e Comparação com a África, 141 Affonso Celso de Ouro Preto A África entre o Atraso e o Desenvolvimento no Período Pós-Crise Global, 157 José Flávio Sombra Saraiva Cooperação Sul-Sul: a Experiência de Cooperação Internacional em Saúde do Brasil com Países da África, 171 Paulo M. Buss e José Roberto Ferreira Quinta Sessão: Rússia A Nova Rússia sob Medvedev e Putin, 191 Angelo Segrillo Considerações sobre a Situação Atual da Rússia: Desafios, Perspectivas, 203 Daniel Aarão Reis Sexta Sessão: China, Índia e Japão China, Índia e Japão no mundo que vem aí, 227 Amaury Porto de Oliveira BRICS, the Chinese Engine, and the Humbling of Market Fundamentalism,245 Glauco Arbix 7 Sétima Sessão: Amazônia Amazônia : os Desafios de uma Região Complexa e Dinâmica, 263 Adalberto Luis Val Amazônia: Políticas e Estratégias, 277 Adherbal Meira Mattos A Ocupação da Amazônia, 293 Adriano Benayon Manaus, Cidade Mundial para Prestação de Serviços Ambientais: Uma Proposta, 317 Bertha K. Becker Amazônia: Desafios e Soluções, 339 Eduardo Dias da Costa Villas Bôas Reflexões sobre Cultura, Soberania e Patrimônio Genético na Amazônia, 359 Ennio Candotti Amazônia, 375 Ives Gandra da Silva Martins Objetivos de uma Política Externa do Brasil em Relação à Amazônia: Proposta para Discussão, 385 José Alberto da Costa Machado Amazônia: Reflexões sobre sua Problemática, 407 Leonidas Pires Gonçalves Lista de Participantes, 421 9 Apresentação A Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional "O Brasil no Mundo que vem aí" tem como objetivo promover o diálogo sobre nossa agenda de política externa, com a participação da comunidade acadêmica, diplomatas, jornalistas e representantes da sociedade em geral. Na sua III edição, a Conferência tratou dos seguintes temas: Estados Unidos, América Latina e Caribe, Europa, África e Oriente Médio, Rússia, China, Índia, Japão e Amazônia. A Conferência sob menção pretende transformar-se nos estados-gerais das relações internacionais no Brasil e inspira-se na convicção de que a sociedade sabe mais e pode mais que a burocracia governamental. Embaixador Jeronimo Moscardo Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão 11 Palestra do Senhor Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Bom dia a todas e a todos. É um prazer muito grande estar aqui hoje para a Abertura da III Conferência sobre Política Externa e Política Internacional, organizada pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, com um tema muito oportuno: “O Brasil no mundo que vem aí”. Eu fui convidado para dizer algumas palavras e prometo não me alongar muito para que possam logo ouvir os debatedores. Vou falar um pouco sobre aquilo que possa ser chamado de “saída para a crise”, a saída pela política. Primeiro, eu queria falar sobre a dinâmica internacional dos últimos 20 anos porque é preciso ter algum tipo de visão histórica para a situação que nós vivemos no momento. A situação que nós vivemos no momento não caiu do céu, não é algo inesperado que, de repente, cai do céu sobre nós e ficamos perplexos. Não é isso. As diversas crises atuais são fruto de um processo de evolução nos últimos anos, nas últimas décadas. Nós podemos caracterizar esse processo por alguns aspectos. Primeiro, nesses últimos anos, houve um processo de liberalização e desregulamentação da economia no nível dos países e no nível internacional. Houve um profundo processo de desregulamentação. Essa desregulamentação ocorreu, por uma sucessão de rodadas internacionais que reduziram os obstáculos ao comércio de bens em todo o mundo. Ocorreu também no nível interno europeu. Com a formação da Comunidade Econômica Europeia, depois União Europeia, houve um processo de liberalização do comércio SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES 12 entre aqueles países membros. Há outros aspectos, mas esse é um aspecto importante. Temos os processos regionais, como o Mercosul e outros, e também processos bilaterais. Nesse caso, houve o esforço dos Estados Unidos de celebrar acordos de livre comércio com países, não só na área das Américas, mas também de outros continentes, com a Austrália, com a Nova Zelândia, com a Jordânia e vários outros. Houve, enfim, um processo de desregulamentação e liberalização na área de comércio bens. Depois, houve também um grande processo de desregulamentação e liberalização na área dos capitais. Nessa área, a partir das modificações das legislações internas, principalmente, nos Estados Unidos e também na Inglaterra, houve uma desregulamentação dos fluxos de capitais, que passaram a fluir. Naturalmente, isso foi ajudado com o fim do papel do FMI, quando os Estados Unidos abandonaram o padrão ouro e passou a existir, no mundo, um sistema de taxas de câmbio flexíveis. Houve também a desregulamentação do movimento de capitais em todo mundo através das chamadas “privatizações”, que foram movimentos de desregulamentação, com a abertura de áreas que, antes, estavam fechadas ao capital estrangeiro. Naturalmente, isso não ocorreu na área do trabalho. Nós falamos nos bens, no capital e nos serviços, embora numa escala menor, mas não ocorreu na área do trabalho. Houve uma grande movimentação de pessoas a nível internacional, mas de forma muito restritiva. Nós temos grandes contingentes de brasileiros, por exemplo, que não tínhamos no exterior. Hoje, são cerca de três ou quatro milhões de brasileiros no exterior, mas há um número muito grande de outras nacionalidades, de outras origens e um grande número de deslocados, por conflitos. Nesse caso, naturalmente, não houve um processo de desregulamentação. Pelo contrário, tem havido um processo de regulamentação, de restrição aos movimentos do trabalho dos seres humanos. Esse é um processo de globalização e de criação de interdependência, cada vez maior, entre as economias e as sociedades. O resultado desse processo também é uma enorme concentração de poder que ocorreu ao longo desses anos. Já havia uma concentração de poder enorme, logo após a II Guerra Mundial, mas ela prosseguiu, tanto uma concentração de poder político, como de poder militar, econômico e tecnológico. Se nós tomarmos a área do poder político, nós temos a expansão das atribuições do Conselho de Segurança, a expansão informal, porém, uma expansão, e de novos instrumentos de exercício do poder político, como é o caso da OTAN, e de outras formas de intervenção, PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES 13 outros instrumentos de intervenção. Na área militar, é a mesma coisa, ou seja, há uma série de acordos que limita o acesso a certas armas a países considerados “imaturos”, inferiores. É óbvio que isso não é colocado assim; isso é colocado em nome do bem da humanidade, mas o fato é esse. A premissa que está por detrás é que há países de uma civilização superior, de um nível cultural superior, que têm o direito de ter certos tipos de armas; e outros países são inferiores, são países instáveis, que podem colocar em risco a paz e a segurança internacional e, portanto, não podem ter armas. Há uma série de tratados que foram sendo celebrados de forma a restringir, cada vez mais, o acesso às armas de destruição em massa e também a qualquer outro tipo de armas, mesmo as armas convencionais. Na área econômica, essa concentração de poder pode ser medida de várias formas, como pela diferença de renda per capita que existe entre os países altamente desenvolvidos e os países subdesenvolvidos. Essa diferença tem aumentado com o tempo entre os países. Na área tecnológica, é a mesma coisa. O número de patentes registradas todos os anos é predominantemente, esmagadoramente, de patentes registradas por países altamente desenvolvidos. Aproximadamente metade das patentes internacionais é registrada pelos Estados Unidos, segundo as informações da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Enfim, esse período todo também se caracterizou por uma questão ideológica importante, que foi o chamado “fim do socialismo” e da vitória ideológica das doutrinas neoliberais e a derrota das doutrinas coletivistas, de toda a natureza, como o comunismo, socialismo e assim por diante. Foi a vitória do neoliberalismo em todo o seu esplendor que correspondeu a teorias, por exemplo, como o fim das fronteiras, o fim dos Estados e assim por diante. Hoje, naturalmente, isso está um pouco superado pela própria mudança de política econômica nos países altamente desenvolvidos, em que há uma política de profunda intervenção do Estado, de profunda preocupação coletiva com o destino das sociedades, como a aquisição de bancos, ajuda a empresas e assim por diante. Isso mostra um pouco um renascimento dessa questão do individualismo versus coletivismo, preocupações coletivas da sociedade. Não quero chamar de “socialismo”, nem de “comunismo”, mas de políticas que prevêem, principalmente, uma maior intervenção do Estado em defesa da organização da sociedade, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social. Enfim, esse é um processo que nos leva, com suas diferentes características, ao que eu chamaria de “grandes crises atuais” e todas elas são um desafio para o Brasil. SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES 14 A primeira delas, que está mais na imprensa, é a crise financeira e, hoje em dia, cada vez mais, uma crise produtiva porque a crise está passando da área financeira para a área produtiva, nos países altamente desenvolvidos. A segunda delas, que é uma crise mais estrutural, é a crise ambiental. Nós temos, seguramente, uma crise ambiental de proporções extraordinárias, hoje já reconhecida por todos os países, e que terá profundo impacto na organização das sociedades porque essa crise ambiental é vinculada à crise energética, pela escassez de energia, pela mudança dos padrões de consumo de energia, por sua vez, ligadas a questões do Oriente Próximo, mas, sensivelmente, se pode identificar como uma questão dos padrões de consumo do individualismo. O fato de que certas sociedades são baseadas na ideia de que é possível consumir qualquer tipo de produto, de uma forma totalmente livre e com enorme grau de desperdício. Há uma crise energética, mas há também uma crise de recursos naturais de uma forma geral. Há algo muito perigoso, que é uma ideia formulada assim: “O que seria se todos os chineses tivessem um automóvel? O que seria se todos os chineses comessem carne?”. Há uma ideia por detrás de que certos países têm direito a ter certos níveis de consumo e outros, por terem chegado atrasados, não teriam esse direito porque isso criaria um problema, um desafio, um dilema internacional. Isso é algo extremamente preocupante para países em desenvolvimento. E se todos os brasileiros tivessem um automóvel? E se todos os brasileiros tivessem níveis de consumo dos países altamente desenvolvidos? Isso geraria uma demanda enorme sobre os recursos da terra. Só que nós temos seguramente o direito, tanto ou mais do que qualquer outro país, de ter níveis de consumo adequados para cada cidadão brasileiro. Todos os cidadãos brasileiros têm esse direito. Como eu já mencionei de passagem, temos a questão da crise energética, da reorganização da matriz energética do mundo, que envolve a questão da energia nuclear, que envolve a questão dos biocombustíveis e assim por diante. A questão alimentar também é um pouco esta, ou seja, saber como enfrentar o desafio de fazer com que todas as populações do mundo tenham o direito a níveis adequados de nutrição. E finalmente, temos uma crise de natureza político-militar, que é a da emergência da China, ou seja, como acomodar a China no sistema internacional. Qual é o papel que a China deve ter no sistema internacional? Como acomodá-la nas diferentes instituições, nos diferentes temas? Como reacomodar a Rússia na sua nova fase de reafirmação nacional? Diante desses temas todos, dessas crises, dessa evolução, certamente, para a política externa brasileira, se colocam grandes desafios. O grande desafio, PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES 15 em minha opinião, é a luta pela desconcentração do poder internacional. Nós temos interesse em que haja um processo de desconcentração desse poder. É muito difícil se falar de uma completa democratização das instituições. Isso é extremamente difícil. Eu acredito mais num processo de maior democracia, de maior participação nos grandes organismos. Isso passa pelo Conselho de Segurança, pelos organismos financeiros e econômicos internacionais, como a reforma do Fundo Monetário Internacional, como a reforma, em curso, da Organização Mundial de Comércio, na medida em que, o G-20, na OMC é um fato totalmente novo. Quer dizer, a participação dos países em desenvolvimento, em que o Brasil tem desempenhado a função de coordenador, é realmente uma vitória brasileira. Ninguém se impõe como coordenador de nada. É necessário que os outros convoquem o país para essa função. Nenhum país, em nenhum lugar, diz: “Eu vou ser o coordenador de tal grupo”. Isso simplesmente não existe na prática. O que existe é o consenso, entre um grupo de Estados, para que um deles seja o seu porta-voz, o seu coordenador, o seu articulador. Então, essa luta pela desconcentração do poder é extremamente importante em todos os níveis. Segundo, temos a luta para que, em seu conjunto, as normas que vêm sendo organizadas a nível internacional, nos diferentes fóruns e organizações multilaterais, regionais etc., sejam as mais favoráveis ao desenvolvimento da sociedade brasileira, para resolver os problemas das desigualdades sociais, das vulnerabilidades externas, e da realização do potencial da sociedade brasileira, da economia do Estado Brasileiro. É necessário que essas normas internacionais não nos criem obstáculos e sim sejam favoráveis ao desenvolvimento interno, i.e., que preservem o grau de autonomia do Estado. Nesse processo de desenvolvimento interno, a função do Estado é essencial. Nós não podemos imaginar que haja desenvolvimento econômico e social no Brasil sem uma função do Estado de promoção desse desenvolvimento, para garantir que todas as potencialidades da sociedade brasileira sejam desenvolvidas. Não é possível imaginar de outra forma. Muitas vezes, a normatização internacional tende a coibir a ação do Estado, a dificultar a ação do Estado. No âmbito da política externa, é necessário fazer com que essas normas venham a ser favoráveis ao desenvolvimento econômico, político e social do Brasil. Como fazer isso? Primeiro, do ponto de vista internacional, é necessária a articulação com os grandes Estados da Periferia, que são a Índia, a China, a África do Sul, a Argentina, porque esses Estados têm um nível semelhante de aspiração à do Brasil. Outros países menores tendem a ser absorvidos SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES 16 pelos grandes polos de poder que se organizam no sistema internacional. Eles acabam sendo absorvidos, muitas vezes cooptados. É com esses grandes Estados – que têm aspirações semelhantes às do Brasil, e que já atingiram um certo nível de desenvolvimento – que nós temos que nos articular no processo de negociação das normas internacionais e da desconcentração de poder. É por isso que nós estamos juntos com a Índia, por exemplo, no G-4; estamos junto com a Índia, com a China e com a África do Sul nas áreas de programas de desenvolvimento tecnológico, como na área de satélites, e há muitas outras áreas ainda não exploradas, mas que necessariamente devemos explorar. Em segundo lugar, temos a questão da articulação regional. O sistema internacional é um sistema de grande interdependência e onde surgem grandes blocos de países, como é o caso da União Europeia e da América do Norte. Na América do Norte, se forma uma grande economia, com características diferentes das da União Europeia e que inclui: o Canadá, os Estados Unidos, o México, a América Central depois dos acordos de livre comércio, e alguns estados da América do Sul. Os acordos de livre comércio que foram celebrados, na realidade, criam uma área econômica integrada, livre de tarifas, com a mesma regulamentação. É necessária uma articulação regional brasileira para que possamos participar melhor das negociações internacionais e das disputas internacionais. Além das negociações, temos também algumas situações de fato, onde os países são arregimentados para se pronunciar. Nesse processo de articulação regional, a União das Nações Sul-americanas - UNASUL é de grande importância nos seus diferentes aspectos – econômicos, políticos, militares –, com o Conselho de Defesa Sul-americano. O Mercosul, naturalmente, é o centro da política exterior na América do Sul. Finalmente, uma palavra sobre a questão da articulação interna. É necessário que haja, dentro do Brasil, uma articulação das forças progressistas; aquelas forças que têm o Brasil como parâmetro e não apenas a livre ação dos indivíduos. É necessária uma articulação entre aquelas forças que consideram que o Brasil é uma sociedade humana, não é um mercado; o Brasil não é um mercado, o Brasil é uma sociedade de indivíduos muito além dos seus interesses puramente econômicos, mas os seus interesses de toda a ordem. Nesse momento de crise, é necessário que as forças políticas e sociais, que têm essa preocupação, estejam unidas na defesa de políticas que permitam a superação do desafio que nós enfrentamos, a começar pela manutenção da demanda interna, manutenção dos investimentos para construirmos a infra- PALESTRA DO SENHOR SECRETÁRIO-GERAL DAS RELAÇÕES EXTERIORES 17 estrutura do país e para não cairmos na armadilha de que é necessário reduzir a demanda. Nenhum país do mundo está nessa armadilha. Todos os países estão preocupados em manter o seu nível de demanda, e tentar manter o seu nível de investimentos. Não podemos cair na armadilha de alguns que dizem que é necessário reduzir a demanda no Brasil para enfrentarmos essa situação. É justamente a saída errada. Finalmente, uma questão que eu acho extremamente positiva é que, historicamente, foi em períodos de crise que o Brasil se desenvolveu na realidade. Foi no grande período da grande depressão até ao final da II Guerra Mundial que houve uma grande expansão do desenvolvimento industrial brasileiro e, mais tarde, com as diferentes crises econômicas que tornaram real e vital a ideia do desenvolvimento econômico brasileiro, baseado na indústria. Na verdade, 85% da população brasileira vive nas cidades. Nas cidades, não há agricultura. Duvido que os senhores consigam plantar alguma coisa dentro de uma cidade. O emprego na cidade é o emprego industrial e na área de serviços. Então, é muito importante que haja a possibilidade do desenvolvimento industrial, que essa crise seja uma oportunidade de afirmação da indústria. Não é que a agricultura e o agronegócio não tenham importância. É óbvio que têm, mas, certamente, não é possível desenvolver uma ação com as dimensões e perspectivas do Brasil com base apenas numa visão agrícola do mundo e da sociedade. Na minha opinião, isso não é correto. Eu sei que muitos criticariam esse ponto de vista, mas de uma coisa eu tenho certeza: não há emprego de natureza agrícola nas cidades. Isso eu posso garantir aos senhores. Se quiserem, podem plantar alguns pés de soja no seu apartamento, para ver se isso é possível. Se for, eu me considero derrotado. Finalmente, acredito que uma situação como a atual é uma situação que permite renovar a ideia da participação do Estado como um agente de desenvolvimento econômico num momento de crise. Eu acho que a situação internacional é muito importante porque, certamente, se todos os Estados mais desenvolvidos do mundo estão utilizando a sua administração, o seu Estado para enfrentar a crise, nada mais conveniente que um país como o nosso também possa, e deva, usar o seu Estado para enfrentar essa situação de grandes dificuldades e de grandes desafios, no processo em que todos estão interessados e empenhados de construir uma sociedade mais justa, mais democrática e mais próspera. Muito obrigado pela atenção. 19 O Brasil e a Política Externa dos EUA no Governo Obama Antonio de Aguiar Patriota1 Em artigo publicado na Política Externa de junho/julho/agosto de 2008 (“O Brasil e a política externa dos EUA”), examinei a evolução da política externa norte-americana no segundo mandato do Presidente Bush (2005-09) e o desenvolvimento das relações bilaterais. Com a posse do Presidente Barack Obama, em 20/1/2009, que tantas esperanças despertou nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, proponho um exercício de natureza mais prospectiva, ao considerar como será possível, sem perder os avanços realizados, abrir novas áreas de cooperação entre as duas grandes democracias multiétnicas das Américas. Há, hoje, virtual consenso entre os Governos Lula e Obama de que não é necesssário “reinventar a roda” nas relações bilaterais, mas sim acrescentar, àquelas áreas específicas de convergência já identificadas, novos temas, iniciativas e mecanismos, tornados possíveis pela maior compatibilidade entre os momentos políticos vividos pelos dois países. Tal aproximação ocorrerá no contexto de grave crise financeira internacional, a qual, ao mesmo tempo em que traz problemas novos e acentua alguns antigos, poderá favorecer a remoção de obstáculos – notadamente certos preconceitos e modos rígidos de pensar, cuja obsolescência ficou patente nos últimos meses. 1 O autor é Embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América. ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA 20 As Relações Brasil-EUA no Final do Governo Bush Sem pretender repetir o artigo de junho passado, recapitulo alguns marcos importantes a partir de 2005: - a Cúpula da Granja do Torto de novembro de 2005 entre os Presidentes Lula e Bush, com ênfase nos biocombustíveis; - o hábito de consulta e cooperação no apoio à estabilização, democracia e desenvolvimento do Haiti, que demonstrou estarem os EUA e o Brasil sintonizados em relação a uma questão de paz e segurança; - a consulta intensa, praticamente permanente, sobre comércio internacional, no âmbito das negociações da Rodada de Doha da OMC; - o abandono, pelo Governo Bush, da ênfase na ALCA, “colocada entre parênteses”, decisão que não impediu, nos anos seguintes, o crescimento robusto do comércio e dos investimentos entre Brasil e EUA; - o estabelecimento de “diálogo estratégico” regular entre as Chancelarias, no nível de Subsecretários para Assuntos Políticos – mecanismo que os EUA mantêm apenas com um punhado de países; - as duas Cúpulas bilaterais de março de 2007 – São Paulo e Camp David – que produziram, entre outros resultados, o Memorando de Entendimento sobre Biocombustíveis e o Fórum de Altos Executivos Brasil- EUA; - a criação do Diálogo de Parceria Econômica, por iniciativa do Ministro Celso Amorim e da Secretária de Estado Condoleezza Rice, que vem dando frutos concretos, tais como a intensificação dos vôos comerciais entre os dois países, com a inclusão de rotas novas ligando o Nordeste brasileiro a cidades do sul dos Estados Unidos; - o convite para que o Brasil – juntamente com Índia e África do Sul – participassem da Conferência de Annapolis sobre o Oriente Médio, em novembro de 2007; - a assinatura do Plano de Ação Conjunta para a Eliminação da Discriminação Étnica e Racial e a Promoção da Igualdade pela Secretária de Estado Rice e o Ministro Edson Santos; - a aprovação, pela Câmara de Representantes dos Estados Unidos (com maioria democrata desde as eleições de 2006) de resoluções unânimes de apoio ao fortalecimento das relações entre Brasil e EUA. O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA 21 Em 2008, várias dessas iniciativas continuaram a render frutos. Uma crescente confiança recíproca fez que os Estados Unidos procurassem o diálogo com o Brasil em relação a questões regionais, inclusive em momentos de tensão, como na controvérsia Colômbia – Equador e durante as perturbações políticas na Bolívia. Houve apoio de Washington a iniciativas brasileiras, como a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) e o Conselho de Defesa da América do Sul. Até mesmo a Cúpula da América Latina e do Caribe, realizada na Costa do Sauípe, em dezembro de 2008, terá sido vista como o evento construtivo que foi – não obstante certa incompreensão em setores mais conservadores do Congresso norte-americano. Também em sinal de ambiente mais cooperativo, o diálogo bilateral estendeu- se a área por muito tempo excluída da agenda bilateral, a de defesa. Em 2008, o Ministro da Defesa Nelson Jobim visitou os Estados Unidos em três ocasiões distintas, duas vezes para reunião com o Secretário da Defesa Robert Gates e uma para conhecer a sede do Comando Sul (SouthCom). Foi possível, assim, conversar com transparência e franqueza sobre novas iniciativas de cada lado: do Brasil, o Conselho Sul-Americano de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e os planos de capacitação tecnológica na indústria de defesa; dos Estados Unidos, entre outros temas, a polêmica criação da IV Frota, cujo anúncio repentino provocara reações na opinião pública latino-americana e pedidos de esclarecimentos provenientes de vários Governos da região. Destacou-se positivamente o comportamento norte-americano, que sugeriria estar ficando para trás a época das objeções a programas em esferas como a espacial e a nuclear. No mesmo espírito, os Estados Unidos começam a sinalizar que poderão ser um parceiro em projetos de capacitação tecnólogica de interesse brasileiro. O ano de 2008 encerrou-se com uma manifestação emblemática do crescente papel global do Brasil, na Cúpula de Washington do G20 financeiro. A convite do Presidente George W. Bush, o Presidente Lula desempenhou papel de destaque, como um dos principais oradores do almoço de trabalho organizado pela Casa Branca em torno do tema comércio internacional. No exercício da Presidência do G20, o Brasil pode, ademais, pôr à mostra sua capacidade de diálogo com todas as correntes políticas e proveniências geográficas. A Campanha Eleitoral de 2008 O ano de 2008, nos Estados Unidos, foi dominado por uma eleição presidencial que provocou uma mobilização raramente vista da sociedade ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA 22 norte-americana. A candidatura de Barack Obama trouxe forte conteúdo transformador. A perspectiva de eleição do primeiro Presidente afro- americano representava a culminação histórica de longo processo de integração social, superação da discriminação e ampliação da democracia, que data da Guerra Civil norte-americana e se mantivera incompleto por mais de um século. Agregou-se o efeito de mudança generacional: Obama, com seus 47 anos, não participou das controvérsias políticas e culturais dos anos 1960 e do começo dos anos 1970. A Guerra do Vietnã, a explosão do consumo de drogas, os distúrbios raciais que se seguiram ao assassinato do Dr. Martin Luther King e o escândalo de Watergate provocaram divisões profundas, mas não deixaram cicatrizes no futuro Presidente, cuja infância transcorria, no Havaí e na Indonésia, em lar multirracial e aberto para o mundo. Tudo isso fez com que a campanha de Obama, primeiro na primária democrata e em seguida na eleição geral, atraísse a juventude e as minorias étnicas. Com organização moderna, em rede, tornada possível pelo uso inovativo da internet, e provando ser possível conciliar iniciativa e disciplina, Obama logrou promover um verdadeiro movimento nacional em torno da ideia de mudança. Ao mesmo tempo, a crise financeira, que se tornou aguda em meados de setembro, após a falência do banco Lehman Brothers, culminou processo de erosão gradual de todo um conjunto de falsas certezas que se havia propagado desde os anos 1990. A noção de que exista um conjunto pronto de receitas políticas e econômicas com aplicação universal, concebido em Washington e pronto para exportação aos quatro cantos do mundo, ruiu como castelo de areia em face da maré alta. As elites políticas, financeiras e econômicas que haviam pontificado nas duas décadas anteriores passaram a ser apontadas como responsáveis por catástrofe que, ao contrário de crises anteriores, começou no centro do mundo desenvolvido e daí se espalhou pelo globo. Se consenso há sobre causas e remédios da crise, foi no sentido de que país algum detém o monopólio da sabedoria sobre como enfrentá-la, e de que é preciso esforço comum e cooperação mais eficaz para que o árduo trabalho de superação tenha perspectivas de êxito. O Brasil teve condições de diálogo e acesso às principais campanhas eleitorais, que apresentaram, cada uma, aspectos inéditos. Somos cada vez mais vistos como um parceiro importante na busca de soluções para as grandes questões políticas e econômicas da região e da comunidade internacional. O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA 23 Representantes do Governo brasileiro, nas mais diversas áreas, tiveram acesso aos assessores das campanhas eleitorais, em particular as dos três principais candidatos, os Senadores Barack Obama, Hillary Clinton e John McCain. Foi possível não só recolher informações, mas também prestar esclarecimentos sobre o Brasil e apresentar a perspectiva brasileira sobre os grandes temas regionais e globais. Barack Obama A facilidade de diálogo entre os Presidentes Lula e George W. Bush, até certo ponto surpreendente, em vista de trajetórias pessoais e posturas políticas muito distintas, foi fator relevante na reaproximação entre Brasil e Estados Unidos, a partir de 2005. Alguns observadores chegaram a levantar dúvidas sobre a possibilidade de manutenção desse clima favorável com Barack Obama na Casa Branca. Argumentos sólidos, porém, permitem prever que Brasil e Estados Unidos continuarão a encontrar novas áreas de cooperação nos próximos anos, além de prosseguir nas já existentes. Entre Lula e Obama, podem ser identificadas afinidades em pelo menos três campos: trajetória pessoal, temperamento e valores. No campo da trajetória pessoal, o traço mais marcante de ambos os percursos foi a superação do preconceito. Enquanto a eleição de Lula marcou a ampliação da democracia no Brasil, pela elevação de um representante do operariado ao cargo de Presidente, Obama representou a derrubada de uma barreira racial que muitos ainda julgavam fora de alcance nos Estados Unidos. Quando Obama nasceu, em 1961, o casamento entre seus pais ainda seria proibido por lei em vários Estados norte-americanos (não, porém, no seu Estado natal, Havaí, de cultura mais tolerante e mestiça). O próprio Presidente Obama mencionou em seu discurso de posse, no Capitólio, que sessenta anos antes talvez os restaurantes da capital norte-americana não aceitassem que seu pai, o economista queniano Barack Hussein Obama (mesmo nome do filho), se sentasse à mesa para almoçar. Sua autobiografia, lançada em português como “A origem dos meus sonhos”, escrita aos 33 anos, contém uma reflexão comovente sobre a decepção do jovem Barack diante do pai, cuja carreira promissora terminou em impasse, e cuja vida, depois de diversos casamentos e filhos, desembocou em alcoolismo e depressão. O jovem Barack seria visto pela sociedade norte-americana como ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA 24 afro-descendente, pela aparência física, mas conviveu na infância quase que unicamente com a mãe e os avós brancos. Sua mãe, a antropóloga Ann Durham, personagem criativa e progressista, casou-se novamente com um cidadão indonésio. Obama passou parte da infância, dos 6 aos 10 anos, numa rua de terra batida da periferia de Jacarta, correndo atrás de galinhas e cachorros, junto com os outros meninos da vizinhança, como relata na autobiografia. Que entre aqueles meninos, quase todos de família muçulmana, soltando pipas na Indonésia nos idos de 1970, estivesse um futuro Presidente dos Estados Unidos, é cenário que só a combinação de momento histórico, uma grande autoconfiança individual e uma pitada de destino pode explicar. O resultado dessa genealogia e, mais tarde, do casamento com Michelle LaVaugh Robinson, de família afro-americana tradicional do South Side de Chicago, é uma “primeira família” única em seu universalismo. Uma das meio- irmãs quenianas de Obama é casada com inglês; outro meio-irmão por parte de pai vive na China e é casado com chinesa; sua meia-irmã por parte de mãe é indonésia e casada com cidadão canadense de ascendência também chinesa. Mesmo na família de Michelle, de perfil menos internacional, há um primo que se converteu ao judaísmo e é rabino, sobrepondo em uma só aliança familiar as três fés abraâmicas. Uma segunda convergência se observa nas semelhanças entre os temperamentos dos ocupantes do Alvorada e da Casa Branca. Obama, que passou toda a vida construindo pontes entre negros e brancos, desenvolveu capacidade natural de conciliação e diálogo. Na Faculdade de Direito da Universidade Harvard, embora participasse de grupo de estudantes mais à esquerda, foi eleito editor da prestigiosa revista “Harvard Law Review” com o voto dos conservadores. No Partido Democrata, embora suas raízes estejam na ala progressista, foi sempre capaz de atrair apoios de centristas e mesmo de membros da ala mais conservadora. Durante a campanha eleitoral, além do apoio praticamente unânime dos setores progressistas, apareceu o fenômeno curioso dos “Conservadores por Obama”, ou “Obamacons”, dotados de sua própria página web. Em política externa, essa disposição se manifesta na política de “mão estendida” em relação dos adversários dos Estados Unidos, bastando apenas que eles “descerrem o punho”, na fórmula empregada no discurso de posse e frequentemente citada desde então. A capacidade de diálogo e conciliação se reflete também, em Obama, numa preferência pelo multilateralismo, visto O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA 25 como mecanismo inclusivo, de vocação universal, e não como mero agrupamento dos que pensam igual (like-minded). Na conferência de imprensa em que apresentou sua equipe de política externa e segurança nacional, Obama anunciou, como uma das três prioridades principais do Departamento de Estado, o fortalecimento das instituições internacionais (as outras duas são a não proliferação nuclear e a paz no Oriente Médio). Também classificou as Nações Unidas de organização “indispensável”, qualificativo que não se escutou em Washington, em relação à ONU, nem durante o Governo George W. Bush, nem no de seu antecessor democrata. Um terceiro campo de convergência, o dos valores, revela coincidência no compromisso com a eliminação da pobreza e com a justiça social. Obama demonstrou, com base em sua vivência na Indonésia e no Quênia, em seu trabalho como assistente social nos bairros mais pobres de Chicago e em seu temperamento de construtor de pontes, capacidade de compreender esses problemas do ponto de vista dos pobres. Obama estudou na melhor escola particular do Havaí, sobretudo graças aos sacrifícios dos avós. Ao terminar seus cursos universitários, porém, abandonou a perspectiva de empregos bem-remunerados em Wall Street ou em escritórios de advocacia, e optou por oportunidades como organizador comunitário em uma das regiões mais deprimidas de Chicago. Desde então, Obama estabeleceu como plataforma central de sua atuação a solidariedade social. A situação dos jovens afro-americanos em bairros pobres nas grandes cidades, como Chicago; a geração de empregos; a universalização da cobertura por seguro-saúde; e a melhoria da educação pública, como detalhado em seu livro de campanha, “A audácia da esperança”, foram a tônica de sua atuação política e de sua campanha presidencial. Durante a campanha eleitoral, Obama ironizou o lema do ultraliberalismo, ou fundamentalismo de mercado, a chamada “sociedade de proprietários” (ownership society), dizendo que para os ricos isso parecia significar “cada um por si” (you are on your own). Em seu discurso de posse, sintetizou sua visão de futuro: “uma nação não pode prosperar, se dedicar atenção apenas aos mais prósperos”. O Momento Histórico e as Relações Bilaterais Além das afinidades entre os Presidentes Lula e Obama, acima apontadas, fatores de ordem estrutural contribuem para uma consolidação dos progressos ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA 26 realizados em várias vertentes do relacionamento bilateral e para a abertura de novas frentes de aproximação. Por muito tempo, a política externa dos Estados Unidos mal disfarçava veleidades de tutela informal sobre as nações latino-americanas. Tal era o sentido da “Doutrina Monroe” (a responsabilidade pela liderança da defesa da América Latina contra “ameaças extracontinentais” caberia aos Estados Unidos, que exerceriam, para tanto, supervisão sobre as relações dos países latino-americanos com Estados de outros continentes) e do chamado “Corolário Roosevelt” (Theodore, não Franklin: a responsabilidade pela estabilidade política interna dos países latino-americanos competiria, também, a Washington). Tais políticas fizeram-se sentir com mais peso, ao longo do século XX, na América Central e no Caribe, mas não deixaram de repercutir também mais ao Sul. Para o Brasil, desde a consolidação das fronteiras com os vizinhos – obra concluída por volta de 1910 – a tarefa principal da política externa, formulada com diferentes matizes em cada geração, tem sido a criação de condições externas favoráveis para o desenvolvimento econômico e social do país. Para tanto, o pré-requisito essencial era a busca da autonomia decisória na promoção do desenvolvimento, sem ingerências nem submissão a interesses externos. Nos anos 1950, atitudes dos Estados Unidos em relação à criação da Petrobras, por exemplo, convenceram muitos brasileiros de que prevenir ou impedir o desenvolvimento industrial do Brasil constituía parte da agenda não declarada de Washington. As objeções aos programas nuclear e espacial, nos anos 1970 e 1980 e as divergências sobre propriedade intelectual, a partir dos anos 1980, foram fontes de desentendimento. As dificuldades iniciais dos Estados Unidos com a formação do Mercosul também geraram alguma tensão. Ao mesmo tempo, outro conjunto de fatores nunca deixou de aproximar os dois países, e conduziu a momentos de relação estreita e mutuamente proveitosa – seja a “aliança não escrita” da época de Rio Branco (na expressão do historiador norte-americano E. Bradford Burns), seja a participação do Brasil na II Guerra Mundial (quando fomos o “aliado esquecido”, segundo o historiador Frank McCann). O investimento e o capital norte-americanos nas mais diversas áreas tiveram participação positiva na industrialização do Brasil, em processo simbolizado pela Companhia Siderúrgica Nacional, construída com financiamento e bens de capital dos Estados Unidos. O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA 27 Controvérsias subsequentes fizeram com que alguns se esquecessem de que os primeiros passos dos programas nuclear e espacial do Brasil, entre os anos 1950 e 1970, em muito beneficiaram-se da cooperação com os Estados Unidos. E até hoje os fluxos de comércio e investimento revelam complementaridades entre os dois países. É possível afirmar, em suma, que Brasil e Estados Unidos podem manter, em certos momentos e temas, políticas divergentes, no nível dos Governos, mas sem chegar a ter conflitos fundamentais de interesse, no nível dos Estados. A ambos interessa, primordialmente, a paz, estabilidade e prosperidade nas Américas e no mundo. Hoje, Brasil e Estados Unidos intensificam seus contatos políticos em contexto histórico de grandes transformações. O Brasil está em trajetória ascendente, com estabilidade econômica, progresso social e democracia consolidada. Cada vez mais nosso ponto de vista é global, de país contribuinte para o aperfeiçoamento do sistema internacional. Os Estados Unidos, por sua vez, continuarão pelo futuro previsível a demonstrar vitalidade econômica, científica e tecnológica, sem falar no poderio militar. Como aponta Fareed Zakharia em “O Mundo Pós-Americano”, com a ascensão relativa de outros países, os Estados Unidos vão sendo levados a aceitar mais naturalmente a ideia de que vivem em mundo crescentemente multipolar, como admitiu recentemente o Secretário da Defesa Robert Gates. A tentação do unilateralismo conduziu, no Iraque, a resultados que falam por si; a crise iniciada em 2008 tornou ainda mais patentes os limites do poder unilateral dos Estados Unidos e a necessidade de cooperação internacional. Restam, é verdade, no estamento de política externa norte-americana, personalidades que acreditam na possibilidade de um retorno aos anos 1990, quando os Estados Unidos viveram seu “momento unipolar”, na consagrada expressão de Charles Krauthammer. Para os que duvidam, porém, da orientação da atual liderança política, recomenda-se a leitura do Capítulo 8, dedicado à política externa, do livro de campanha do então candidato presidencial Barack Obama, “A audácia da esperança”. De forma talvez inédita, constata-se a capacidade de um Presidente dos Estados Unidos de enxergar a realidade internacional não apenas da perspectiva de seu próprio país, mas também, a partir de uma vivência que incorpora contatos importantes com o mundo em desenvolvimento (Indonésia e Quênia em particular). Entre outras muitas observações de Obama que soam naturais aos brasileiros, destaco as seguintes: ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA 28 “Nosso desempenho tem sido inconstante, tanto na Indonésia quanto no resto do mundo. Algumas vezes, a política externa norte-americana foi previdente, servindo simultaneamente nossos interesses nacionais, nossos ideais, e os interesses das outras nações. Outras vezes, as políticas norte-americanas foram mal-orientadas, baseadas em premissas falsas que ignoram as aspirações legítimas de outros povos, diminuem nossa própria credibilidade e tornam o mundo mais perigoso (...) (Na América Latina,) os Estados Unidos não chegaram a empreender a colonização sistemática praticada pelas nações europeias, mas perderam quaisquer inibições a respeito da ingerência nos assuntos internos de países que julgavam estrategicamente importantes. Theodore Roosevelt, por exemplo, acrescentou um corolário à Doutrina Monroe, declarando que os Estados Unidos interviriam em qualquer país latino- americano ou caribenho de cujo Governo não gostassem (...) No começo do século XX, portanto, os motivos que guiavam a política externa dos Estados Unidos pareciam dificilmente distinguíveis daqueles das demais grandes potências, guiadas pela realpolitik e pelos interesses comerciais”. Perspectivas para as Relações Brasil-EUA no Governo Obama As preocupações sociais de Obama harmonizam-se com muitos temas de interesse da nova Secretária de Estado. Hillary Clinton estreou no cenário nacional, ainda no começo do mandato do ex-Presidente Bill Clinton, com uma campanha pela universalização do acesso à saúde que esbarrou no obstrucionismo dos republicanos, mas que – reconhece-se hoje – teria beneficiado os Estados Unidos se tivesse ido adiante. A competitividade da indústria norte-americana, como se sabe, é prejudicada pela necessidade de que cada empresa arque com grande parte dos custos de saúde e aposentadoria de seus empregados. A privatização da saúde levou a um sistema que é o mais caro entre os países desenvolvidos, mas que deixa sem cobertura médica quase 50 milhões de norte-americanos, segundo o Bureau do Censo dos EUA. Hillary Clinton, em sua carreira como Senadora por Nova York e em sua campanha presidencial, destacou-se, também, pela defesa dos direitos da mulher, da infância, dos idosos e das populações mais vulneráveis. O primeiro discurso do Presidente Obama no Congresso e o primeiro projeto de O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA 29 orçamento refletem essas prioridades, com ênfase em saúde, educação e energias limpas. Emerge, assim, quadro em que vários entre os principais tomadores de decisão dos Estados Unidos – não só o Presidente e a Secretária de Estado, mas também outros integrantes do Governo, como os Secretários da Educação, Arne Duncan, Trabalho, Hilda Solis, e Saúde, a ex- Governadora do Kansas Kathleen Sebelius – demonstram preocupação com temas similares aos que captam a atenção do Governo brasileiro. Com a posse do novo Governo, os Estados Unidos voltam a se engajar com o cumprimento das Metas de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas, objeto de ressalvas norte-americanas ainda recentemente, durante o processo de preparação da 60ª Assembléia Geral, em 2005. Abre-se, assim, espaço para a troca de experiências e a cooperação em temas sociais, entre dois países com semelhanças não negligenciáveis: grandes, multiétnicos, democráticos, federativos e preocupados com a superação da desigualdade. Os Estados Unidos, como aponta o Ministro Roberto Mangabeira Unger, são o país mais desigual entre os desenvolvidos e o Brasil, apesar dos significativos progressos dos últimos anos, ainda está entre os mais desiguais, entre os países em desenvolvimento. Isso pode ser encarado como uma oportunidade, na medida em que o diálogo se dê, como tudo indica que ocorrerá nos próximos anos, em ambiente de respeito pelas diferenças entre as experiências de um e de outro país, tanto em âmbito federal, como Estadual e municipal. Outra das prioridades reiteradas por Obama em seus planos de Governo é a energia, em particular o desenvolvimento de fontes renováveis, a conservação, a sustentabilidade e a diversificação das fontes de suprimento, com a concomitante redução de dependências externas. Também nessa área, o Brasil é visto como líder mundial. As conquistas do Brasil na esfera energética são admiradas nos Estados Unidos e o desejo de parceria é perceptível, tanto no Executivo como no Congresso e no setor privado. Note-se que uma das nomeações mais ousadas e bem-recebidas do Governo Obama foi justamente para o Departamento de Energia, para qual foi escolhido o físico Steven Chu, o primeiro Prêmio Nobel a ocupar um posto ministerial nos Estados Unidos. A indicação de Chu, comprometido com as fontes renováveis e limpas de energia, foi geralmente interpretada como indicadora de nova postura, mais cooperativa, no tema da mudança do clima. As relações econômicas entre os dois países também se beneficiarão do impulso positivo dos últimos anos. Entre 2000 e 2008, as exportações brasileiras para os Estados Unidos passaram de US$ 13,2 bilhões para US$ ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA 30 27,4 bilhões (crescimento de 108%), ao passo que as importações foram de US$ 12,9 bilhões para US$ 25,6 bilhões (crescimento de 98%), desempenho mais dinâmico que o do intercâmbio com diversos países com os quais os Estados Unidos mantém acordo de livre comércio. Em 2008, os Estados Unidos foram o maior investidor externo no Brasil (US$ 7 bilhões) e também o maior receptor de investimento externo brasileiro (US$ 4,8 bilhões). Os estoques de investimento entre os EUA e o Brasil são significativamente maiores que entre os EUA e os demais BRICs (China2, Índia e Rússia). Tanto o Presidente Obama quanto a Secretária Clinton manifestaram interesse em relações mais estreitas com o Brasil no plano econômico e comercial, como se depreende, por exemplo, do apoio demonstrado por ambos à manutenção do Fórum de Altos Executivos. No tema prioritário do fortalecimento das instituições internacionais – singularizado, como vimos, pelo Governo Obama como central – abre-se espaço mais amplo de coordenação. Obama elevou a posição de Representante Permanente junto às Nações Unidas ao nível ministerial, como fora em alguns governos anteriores (mas não no de George W. Bush). A indicada, Susan Rice, foi uma de suas colaboradoras mais próximas ao longo da campanha eleitoral. Já em seu primeiro pronunciamento após a confirmação no cargo, Rice indicou quatro prioridades: combate à pobreza, mudança do clima, operações de paz e não proliferação. Em cada das áreas apontadas, o Brasil é ator significativo. A cooperação entre os dois países nas Nações Unidas poderá adquirir maior relevância em vista da projetada eleição do Brasil para nosso nono mandato como membro eletivo do Conselho de Segurança, em 2010-11. A participação do Brasil nos círculos decisórios internacionais, proposição que vem ganhando apoio em Washington, abrirá dimensões inéditas para o relacionamento bilateral. O Presidente Lula recebeu telefonema do Presidente Obama, poucos dias após sua posse, ocasião em que foi convidado para ser um dos primeiros Chefes de Estado a visitar Washington. Obama foi convidado, na mesma ocasião, a visitar o Brasil. Lula e Obama também estarão juntos na Cúpula de Londres do G20 e na Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago. O Ministro Celso Amorim e a Secretária de Estado Hillary Clinton conversaram por telefone logo após a confirmação de Clinton pelo Senado norte-americano e, em 24 de fevereiro, mantiveram uma reunião de trabalho que permitiu o 2 Excluído Hong Kong. O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA NO GOVERNO OBAMA 31 mapeamento de áreas para futura intensificação do diálogo e da cooperação: energia, mudança do clima, combate à pobreza, Haiti, Cuba, Oriente Médio, fortalecimento e reforma das Nações Unidas, entre outras. A cooperação triangular para a promoção do desenvolvimento em terceiros países, aproveitando as capacidades complementares do Brasil e dos Estados Unidos, já foi iniciada nas áreas de etanol e saúde e poderá estender-se a outros campos, permitindo atuação conjunta em favor do progresso regional e global. Nada disso implica alinhamento automático ou coincidência absoluta de posições. Não é impossível que ocorram dificuldades, por exemplo, na agenda comercial, abalada no mundo inteiro pelo agravamento da recessão econômica e pelo ressurgimento de tendências protecionistas. A finalização da Rodada do Desenvolvimento de Doha, os subsídios agrícolas, a tarifa do etanol, a relação entre propriedade intelectual e acesso à saúde, a renovação anual do Sistema Geral de Preferências (SGP): todos esses são temas que continuarão a merecer, como tem ocorrido, atenção e esforço da diplomacia brasileira. Recentemente, tive acesso a duas análises sobre o relacionamento entre os Estados Unidos e o Brasil, encomendadas a dois especialistas em relações internacionais sediados em Washington. Ambos assinalam o momento de oportunidade que se abre com a eleição de Barack Obama, em contexto internacional no qual o Brasil emerge como uma democracia sólida e uma economia em expansão. Com a multiplicação de contatos governamentais no mais alto nível, a crescente interação dos setores privados e o envolvimento da sociedade civil, as perspectivas que se abrem são efetivamente promissoras. Ao beneficiar-se de ambiente de crescente respeito mútuo e de novas afinidades políticas, a relação entre Brasil e Estados Unidos poderá, nos próximos anos, trazer ganhos para as duas sociedades e, como propõe David Rothkopf, constituir “uma das parcerias estratégicas internacionais que serão chave” para o equacionamento das grandes questões de paz, desenvolvimento e sustentabilidade da agenda internacional. 33 A Configuração Mundial do Poder, a Nova Hegemonia Norte-Americana e Novo Governo Obama Gilberto Dupas1 Vamos investigar aqui algumas das questões fundamentais quando se discute as condições cada vez mais complexas de governabilidade mundial neste novo século. Apesar do duro legado do governo W. Bush, agora dramatizado pela crise econômica mundial, parece claro que o mundo global não pode prescindir das eventuais virtudes hegemônicas de sua maior potência, até porque tão cedo não haverá quem possa substituí-lo. A maior qualidade hegemônica é favorecer a governabilidade do sistema mundial, reconhecendo diferenças, mediando crises e confrontos e possibilitando gestos simbólicos em direção às nações e povos atingidos por excessiva exclusão e precariedade. Se o novo governo Barak Obama não conseguir que os EUA assumam o papel condizente com seu próprio poder, o que inclui antes de tudo a tolerância com as diferenças e a busca permanente de consensos, teremos grandes probabilidades de um século marcado pelas dores de um duro retrocesso. Não temos razões sólidas para supor que estaríamos no limiar de um abalo mais profundo que ferisse os fundamentos do sistema capitalista, os famosos 1 Gilberto Dupas é coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e autor de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso; Atores e Poderes na Nova Lógica Global e Ética e Poder na Sociedade da Informação. Foi professor visitante da Universidade de Paris (II) e da Universidade Nacional de Córdoba e membro da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CONAES). É também editor da revista Política Externa. GILBERTO DUPAS 34 “sinais do outono”. Mas parece ter crescido progressivamente o número de tensões que vão se acumulando em meio ao caminho, e pretendemos aqui analisá-las. A postura internacional dos EUA durante o governo W. Bush teve efeitos complexos com relação ao futuro de sua condição hegemônica. A ação terrorista de 11 de setembro, destruindo símbolos de seu poder econômico, militar e político, foi um trauma imenso para os norte-americanos. Mas, para além da brutal e humilhante surpresa de um ataque ao coração da grande potência mundial, haveria suficiente inovação no grande atentado para justificar que, a partir dele, o mundo teria mudado? E que seria necessária uma nova e dura doutrina hegemônica de segurança? A suposição de uma privatização das armas de destruição em massa por grupos não estatais pode ser muito assustadora. Mas o 11 de setembro não parece diferir muito de um atentado clássico. As armas foram aviões de companhias aéreas norte-americanas, em vôo regular. Atos kamikases também não são novidades. No entanto, o impacto dos atentados foi tão violento que justificou o brado guerreiro “os que não estão conosco, estão contra nós”. Tratou-se de uma enorme escala retórica se a compararmos com a frase que Madeleine Albright gostava de repetir no governo Clinton: “Nós voamos mais alto, vemos de cima, e sabemos o que é melhor para o mundo”. O trauma do 11 de setembro foi tão profundo que não houve nenhuma resistência interna ao aumento massivo do orçamento da defesa implementado pelo governo. O forte apelo patriótico e a solidariedade resolveram a questão. No entanto, se olharmos um pouco para trás, desde os anos 1990 certa arrogância tem predominado naquele país, acentuada pela fantasia de Francis Fukuyama de que o fim da história – sob a égide do triunfo americano – levaria o mundo inteiro a agir segundo seus preceitos e valores. Mas o período de unanimidade está terminando. Da mesma maneira que a economia americana é regida por ciclos mais amplos e brutais que os dos países europeus, o espírito público americano passa também por fases de grande arrebatamento seguidas por ondas de pesada autocrítica, como foi a guerra do Vietnã, agora culminando com a eleição de Obama. A doutrina W. Bush: origens e contradições O maniqueísmo do bem e do mal sempre foi poderoso entre os norte- americanos. Por sua longa tradição democrática, os políticos precisam justificar seus objetivos de política externa primeiro dentro do país. E a manipulação A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 35 da questão do inimigo, do poder imoral e quase satânico que ameaçaria os valores e a segurança da América vem sendo uma prática tradicional, como se viu na Guerra Fria. O discurso fundamentalista da equipe de W. Bush tem raízes mais profundas, até porque – após o colapso do império soviético – é inverossímil acreditar que Afeganistão, Coreia do Norte, Iraque e Irã pudessem de fato ameaçar os EUA. É preciso lembrar que as escolhas estratégicas dos EUA pós-11 de setembro já estavam a caminho na campanha eleitoral para a sucessão de Clinton. Basta ler ensaios de Condoleezza Rice e Robert B. Zoellick, ainda em 2000, para verificar que aqueles conceitos republicanos para uma nova política externa norte-americana estavam todos presentes em artigo do secretário da defesa Donald H. Rumsfeld, que justificava a guerra contra o terrorismo. É claro que os atentados provocaram a campanha contra o Afeganistão e o Iraque, com modificações consequentes no equilíbrio da Ásia Central e do Sul. Porém, o intervencionismo e o isolacionismo já eram claras tendências nas duas décadas finais do século passado. Vários conceitos vêm do governo Clinton. O “eixo do mal” (Iraque, Irã e Coreia do Norte) são os mesmos “Estados bandidos” (rogue States) de Clinton. Com a questão terrorista tendo centrado seus atos, Bush pôde mostrar-se de corpo inteiro. Em artigo ao The New York Times, Bill Keller fez um balanço do que achavam de Bush seus pares conservadores. Eles o julgavam essencialmente um moralista, cujos ataques de setembro trouxeram à tona o missionário, “convertido do álcool e da vida desregrada, para Deus e para a vida doméstica”, o qual achava que todos são capazes de fazer o mesmo. Keller classifica o moralismo de Bush ambicioso e messiânico, “convencido de que o maior projeto dos EUA é combater o mal e implantar o que chama de ‘valores universais’ em todo o mundo”. Norman Podhoretz, influente autor conservador, acredita que o objetivo estratégico do presidente era “mudar o regime de seis ou sete países e criar condições que levassem à reforma interna e à modernização do mundo islâmico”. Tratar-se-ia, obviamente, de um objetivo arriscado e prepotente, que nos remete a uma discussão sobre responsabilidades hegemônicas que farei mais tarde. O que o 11 de setembro permitiu foi a aceleração de um rumo já traçado pela administração Bush, juntando republicanos e democratas para apoiar as escolhas estratégicas mais agressivas da administração republicana e acelerando a “guerra contra o terrorismo”. Nessas novas ações ofensivas, Washington preferiu ter o suporte de uma coalizão; mas enfatizou que isso não era um pré-requisito para a operação. A “Estratégia de Segurança Nacional GILBERTO DUPAS 36 dos Estados Unidos” encaminhada ao Congresso por Bush deixava claro que seu governo pretendia agir preventivamente contra atos de terrorismo e que “não vamos hesitar em agir sozinhos”. É o que, de alguma forma, já havia ocorrido na Guerra do Golfo e no Afeganistão. Alguns falcões do Pentágono – mas, principalmente Rumsfeld e Wolfowitz – eram contra uma colaboração européia, com envolvimento da OTAN, que introduziria considerações diplomáticas ou políticas em detrimento da eficácia operacional. No entanto, uma parte dos militares achava que as restrições às ineficiências das operações de campo vinham do próprio Pentágono e de sua imensa burocracia. Essa é, aliás, a opinião de Eliot A. Cohen. Ele analisa as dificuldades de promover mudanças quando está em jogo o conservadorismo militar. Mostra, também, que a designação de funcionários civis sem preparo e especialização deixa o Pentágono excessivamente nas mãos da estrutura militar, que defende suas respectivas Forças em detrimento de uma ação estratégica conjunta. O ataque aos EUA deixou à mostra as condições das alianças norte- americanas na região de influência islâmica. Paquistão, Egito e Arábia Saudita, que forneceram o grosso dos militantes do Al-Qaeda, eram considerados aliados dos EUA; o Irã, que aparentemente não forneceu nenhum, foi acusado de principal suporte do terrorismo. A China, considerada a ameaça do século XXI, deixou de sê-lo. Além do mais, a radicalização do terrorismo parece mais um fenômeno também interior ao Ocidente e a seus aliados próximos (Arábia Saudita e Paquistão) do que exportação do “eixo do mal”. A maior parte dos integrantes do Al-Qaeda são re-islamizados ou vieram do Ocidente; encontram-se santuários terroristas em New Jersey e nas periferias londrinas e parisienses. As reflexões sobre as raízes profundas do terrorismo continuam bloqueadas entre os americanos. São sumariamente rejeitadas associações com a humilhação vivida pelos árabes, o conflito Israel-Palestina e a ação norte-americana contra o Iraque. Havia duas ideias fixas: o suporte absoluto a Israel e a obsessão de derrubar Saddam Hussein acertando velhas contas, ainda que ao preço de levar a região ao caos e promover hostilidades entre europeus. A relação entre terrorismo e pobreza também sempre foi rejeitada, já que ele tem vindo de classes médias ocidentais. Não se cogita da ideia da solidariedade ideológica com os pobres, das cicatrizes da colonização, da imigração e da marginalização, nem das realidades presentes no Oriente Médio. Como o radicalismo se alastrou entre muçulmanos que vivem no Ocidente, também foi eliminada a hipótese de que o apoio a regimes autoritários A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 37 (Argélia, Arábia Saudita e Tunísia) bloqueia o desenvolvimento de um Islã moderno e liberal. Sobrou, então, a questão culturalista do tipo “o problema é o Islã”. Os americanos achavam, de maneira simplista, que a solução pode ser alcançada, em alguns anos, com o uso da força e de ações políticas concretas. A tese principal seria a incompatibilidade do Islã com os valores da América. Daniel Pipes, por exemplo, fazia ligação entre imigração e terrorismo, apoiava as medidas anti-imigração europeias e introduziu a questão do crescimento demográfico palestino e da comunidade muçulmana nos EUA. São teses assemelhadas às da extrema direita francesa e austríaca. A doutrina W. Bush assumiu parte dessas ideias ao radicalizar o discurso contra os “inimigos”, como consta da “Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos” enviada rotineiramente pelo governo ao Congresso. Assumiu o terrorismo como tão ilegítimo quanto a “escravidão, a pirataria e o genocídio”, e deu-se ao direito de “agir sozinho” de maneira preventiva e antecipada em qualquer lugar no mundo, deixando claro que “nunca permitirá que outro país desafie sua superioridade militar (...) ameaçada agora pelos países mais fortes do que pelo mais fracos”. Por outro lado, falava em “apoiar os governos moderados, especialmente no mundo muçulmano, para assegurar que as condições e ideologias que promovem o terrorismo não encontrem terreno fértil em nenhuma nação”. O que permitiu espaço não para atacar indiscriminadamente o Islã, mas para apoiar o “bom” Islã contra o “mau”. O problema central está contido no maniqueísmo ultra-redutor e implícito à definição de “bem” e de “mal”, associado a atitudes belicosas unilaterais. A respeito da nova doutrina, em editorial de setembro de 2002, o The New York Times advertia que “quando essas estratégias belicosas se convertem no tema dominante da conduta americana, a nação corre o risco de afastar de si os amigos e solapar justamente os interesses que Bush procura proteger. Líderes fortes e confiantes não precisam ser arrogantes. Na verdade, a arrogância subverte a liderança eficiente. (...) Bush precisa tomar cuidado para não converter os EUA em uma fortaleza que inspire a inimizade, em vez de inspirar a inveja ao mundo”. Usando uma retórica alternativa, eventualmente mais sutil, Richard Haass, Ex-Diretor de Planejamento do Departamento de Estado, propôs “integrar países e organizações de forma a promover um mundo em harmonia com os interesses e valores americanos”. O pressuposto é que esses “valores americanos” coincidiam com o de outros países, na medida em que são supostos universais, impondo-se sem necessidade de negociação. Essa ideia GILBERTO DUPAS 38 foi também defendida por Paul Wolfowitz, ex-secretário-adjunto da Defesa: “Para ganhar a guerra contra o terrorismo e ajudar a construir um mundo pacífico, devemos falar às centenas de milhões de pessoas tolerantes moderadas do mundo muçulmano, já que elas vivem e aspiram usufruir os benefícios da liberdade, da democracia e da livre iniciativa. Esses valores são descritos como ocidentais, mas, de fato, são uma aspiração comum da humanidade”. A proposta de Wolfowitz era desenvolver um Islã moderado e liberal, compatível com as aspirações dos que vivem no Ocidente. São ideias que se oporiam ao crash de civilizações, no pressuposto de que haveria uma só civilização, sendo o resto barbárie. Wolfowitz dizia que é preciso pôr de pé o Islã moderado, isolando o radical, e mover uma guerra ideológica contra os radicais – como foi feita contra o comunismo – envolvendo intelectuais, artistas e sindicatos. Tratava-se de uma nova guerra de propaganda e de uma engenharia social que promoveria os valores da administração americana: democracia, direitos dos homens, livre comércio, livre iniciativa. O pressuposto, mais uma vez, é que o monopólio da verdade faz esses valores universais. Clinton colocou, então, a seguinte questão: “Podemos ser donos da verdade inteira, ou devemos nos unir a outros na busca pela verdade?” A constituição de um Islã moderado, made in West, tinha como premissa que vários dos quadros radicais mais importantes são formados no Ocidente, não nos mollahs; que eles vinham dos moldes ocidentais, não das madrasas. E que a radicalização não brotaria necessariamente de um ensinamento religioso, mas seria consequência das complexas frustrações que afetam tanto intelectuais laicos como nacionalistas. Os radicais seriam também um produto das decepções, marginalizações e diluições de identidades, fruto da globalização e da ocidentalização do mundo. Eles buscariam uma forma desesperada de romper com o consumismo desenfreado, a sociedade performática e o sentimento de exclusão. Esses radicais adorariam suas teses de corpo e alma; e captavam ampla simpatia e solidariedade, especialmente quando se mostram dispostos a pagar o preço do martírio. Apesar de aparentemente bem articulada em torno da “nova doutrina de segurança”, a política dos EUA nos anos W. Bush – examinada de maneira mais rigorosa – parece uma colcha de retalhos de decisões anteriores ao 11 de setembro, envolvendo considerações ideológicas, interesses contraditórios e voluntarismo moralizante. Ocultando-se sob um discurso de valores, ela se apresentava revestida de uma coerência que não se sustentava. Esse discurso A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 39 tentava mascarar e conciliar componentes contraditórios. Com isso, induzia os outros países e forças públicas a ratificar certos princípios difíceis de rejeitar de imediato e tenta criar espaço para a força bélica norte-americana – logística e financeiramente auto-suficiente – operar livremente em qualquer parte do mundo em intervenções pontuais. O rescaldo da ocupação, política e operacionalmente muito complexo, era deixado – sempre que possível – a cargo dos europeus ou de organizações internacionais. É o caso do Kosovo, do Afeganistão e da Palestina. E, talvez agora, no Iraque. A nova moral hegemônica definia os campos com muita clareza. De um lado, “o direito e a democracia”; de outro, “as forças do mal”. O que significa a volta a uma retórica maniqueísta que redivide o mundo entre “bons” (aqueles que estão com os EUA) e “maus” (aqueles que estão contra ou hesitam). Na realidade, para além do aparente monolitismo desses conceitos, essas categorias transitórias são fortemente impregnadas de Realpolitik em função dos “interesses superiores da nação”. Essa situação tem criado espaços e margem de manobra para os atores regionais acomodarem seus objetivos. Um triste exemplo é a situação do Oriente Médio. Em todo o período subsequente à criação do Estado de Israel e ao início do conflito entre palestinos e israelenses, os EUA mantiveram grande influência sobre a região na condição de grandes operadores da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial e fiel depositário do novo equilíbrio ocidental em torno das instituições de Bretton Woods. Embora mais identificados com os interesses de Israel – e acusados disso muitas vezes pelos grupos palestinos –, ainda assim sucessivos governos norte-americanos tinham se empenhado para evitar uma situação muito crítica na região, inclusive na época da Guerra Fria. Bill Clinton esteve prestes a arrancar um acordo que poderia ter posto fim ao conflito. Ehud Barak havia quebrado um tabu ao oferecer a divisão de Jerusalém, mas Yasser Arafat – pressionado no seu front interno e com pouco espaço de manobra – acabou não viabilizando um entendimento. No entanto, a situação internacional norte- americana após os atentados de setembro foi profundamente danosa para a situação no Oriente Médio. A radicalização do discurso de Bush sobre a questão terrorista deu pretexto a um brutal endurecimento do regime de Israel, perdendo os EUA legitimidade para funcionar – senão como árbitro – pelo menos como capaz de conter os impulsos agressivos de parte a parte, especialmente de Israel. Sharon considerou-se, então, livre para tentar liquidar – a sua maneira – a autoridade palestina. Na realidade, vários atores regionais imediatamente procuraram adaptar seus interesses a essas novas circunstâncias GILBERTO DUPAS 40 da lógica do poder mundial. Alemães e japoneses aproveitaram a oportunidade para se livrar das últimas restrições dos acordos de pós-guerra que limitavam investimento militar. A Inglaterra movimentou-se rapidamente para o espaço de grande aliado dos EUA na Europa, deixando claro a franceses e alemães que não aceita um papel secundário nas discussões centrais na nova Europa. E a Rússia, enquanto flerta com o “eixo do mal” fazendo acordos comerciais com o Iraque e a Coreia do Norte, negociava “apoio” norte- americano para suas estratégias agressivas na Tchetchênia e na Geórgia. Na verdade, o sentimento de brutal fragilidade despertado pelos atentados aos EUA revelou um país violentamente defensivo e sem projeto sistêmico ou de governança global, papel inalienável da sua condição hegemônica. Mas há outra importante faceta dessa questão. A nova doutrina W. Bush também foi uma resposta à globalização. Fazendo desaparecer o espaço de ação dos Estados nacionais, a globalização destruiu o conceito de espaço estratégico. Sobrou muito pouco a negociar em termos de territórios, de esferas de influência ou de interesses vitais com a perda de autonomias nacionais. Como se pode negociar – ou dissuadir – os novos terroristas se eles não representam Estados e não têm nada a perder e nem senhores a quem dar satisfação? Os complexos caminhos da hegemonia norte-americana Nações hegemônicas sempre defenderam teses que interessam mais a si próprias que ao sistema de nações sobre o qual exercem seu controle. Mas é condição de exercício da hegemonia que os países que são parte do sistema achem que essas teses também lhes interessam de alguma forma. Caso contrário, a hegemonia teria que ser substituída por coerção. É esse o perigo que os EUA e o mundo correm no momento em que teses unilaterais parecem dominar as ações da grande potência mundial. Assim, recoloca-se a questão do papel hegemônico. Analisando os ciclos hegemônicos, Fernand Braudel constatava que, sempre que os lucros do comércio e da produção se acumulavam além dos canais possíveis de investimento, este era um “sinal do outono”. As expansões financeiras daí decorrentes provocavam duas tendências complementares: hiperacumulação e competição intensa por capital. Expansões do comércio e da produção muito rápidas e lucrativas geravam forte concorrência e, por sua vez, tenderam a acumular lucros superiores à capacidade de investir. A A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 41 consequência era o crescente acúmulo de rendimentos e a criação de uma grande liquidez. As taxas de retorno em queda na atividade comercial e de produção geravam restrições orçamentárias que aumentavam a competição pelo capital e poderiam elevar as taxas de juros. Nesses processos, fortes redistribuições de renda aconteciam a favor dos detentores da liquidez, sustentando uma atividade financeira divorciada da produção. As expansões financeiras inflavam temporariamente o poder do Estado hegemônico em declínio, já que ele mantinha o acesso privilegiado da liquidez que se acumulava nos mercados financeiros mundiais. Essas expansões de liquidez, no entanto, acabavam transferindo o capital para novos sistemas emergentes com maiores perspectivas de segurança e lucro que os dominantes até então. Na transição, a crescente desorganização sistêmica diminuía o poder de ação da potência hegemônica em crise e aumentava a demanda por governabilidade mundial a quem pudesse oferecê-la. Se surgissem novas estruturas governamentais e empresariais com maior competência organizacional, estariam abertas as condições para uma nova hegemonia. Esses padrões de repetição – hegemonia levando à expansão, expansão ao caos e caos à nova hegemonia – verificaram-se nas transições hegemônicas do passado. Os holandeses haviam construído a sua liderança como mercadores e não como soldados. No entanto, três guerras sucessivas contra os ingleses entre 1652 e 1674 os obrigaram a aceitar o monopólio britânico na navegação e ceder o controle do tráfico de escravos na África Ocidental. Isso fez os portos ingleses superarem Amsterdã; e suas indústrias cresceram rapidamente com a ajuda do mercado triangular no Atlântico (escravos, matérias-primas e manufaturas). Derrotada a ameaça francesa nos mares e depois em terra – na desastrada campanha russa de 1812 – o espaço estava livre para a imposição da Pax Britannica com o Tratado de Viena (1815), que conduziu a Europa a uma paz de cem anos (1815-1914). A concepção inglesa de equilíbrio do poder foi construída devolvendo parte das Índias Orientais e Ocidentais à Holanda e França, colocando-se como protetora do comércio marítimo, liberalizando unilateralmente o seu comércio, barateando o custo de produtos essenciais e criando meios de pagamento para a compra de produtos industrializados ingleses. Com isso, um número crescente de países pôde se encaixar numa benéfica divisão internacional de trabalho que preservava a centralidade comercial inglesa. A derrota de Napoleão já havia alterado radicalmente as relações de força na América do Norte, permitindo aos colonos abrirem mão da proteção GILBERTO DUPAS 42 inglesa e preparar sua independência. Nas guerras do final do século XIX, por sua vez, técnicas de produção em massa foram aceleradas, a partir da Guerra da Crimeia, com uso do sistema de fabricação americano de usinagem automática, exibido na Grande Exposição de Londres em 1851. O navio a vapor mudou a lógica militar. E o mundo ficou repleto de nações industrializadas. Já no século XX, quando a Primeira Guerra Mundial começou, o custo das vitórias que contiveram a Alemanha precipitou o declínio inglês em favor dos EUA. Assim que liquidaram sua dívida com a receita das armas, a liquidez americana se converteu em empréstimos domésticos e internacionais em grande escala. A Segunda Guerra fez despertar o poder mundial centrado nos EUA, liquidados temporariamente Alemanha e Japão e enfraquecidas a Inglaterra e a França. Concebida por Roosevelt, a ordem mundial norte- americana pós-guerra estava imbuída da mesma ideologia de segurança que havia impregnado o seu New Deal interno. A ONU e o FMI tornaram-se o núcleo de um governo mundial dominado pelos EUA. Truman conseguiu utilizar-se plenamente do pretexto da Guerra Fria para concretizar uma visão “livre-mundista” voltada contra o perigo soviético. A partir de 1970, com a humilhante derrota no Vietnã e sintomas de crise no sistema monetário centrado em Bretton Woods, a hegemonia americana apresentou alguns sinais de perda de dinamismo. Mas a surpreendente derrocada soviética deu-lhe novo ímpeto. Cada reorganização do sistema de poder mundial havia acarretado mudanças nas relações entre o capital e o Estado. A concessão de monopólio esteve na base da enorme acumulação tanto nas companhias de comércio e navegação holandesas do século XVII como nos fabricantes ingleses do século XIX. Já a grande empresa verticalizada vinda da tradição fordista do início do século XX sofreu uma revolução a partir dos anos 1980, com a tecnologia da informação permitindo o fracionamento das cadeias produtivas globais e a flexibilização da produção a partir das parcerias e terceirizações utilizando os novos conceitos de redes. A empresa transnacional norte-americana, tal como sua ancestral mercantil, tem desempenhado papel fundamental na ampliação e manutenção do poder dos EUA. As análises sobre a natureza do enorme deficit comercial norte-americano deixavam claro que ele é provocado pela imensa dispersão da atividade produtiva das empresas sediadas no país – que exportam mais a partir de suas filiais externas do que de sua sede continental – e não, obviamente, por problemas de competitividade. A vitalidade das corporações globais é intensa. Mas a enorme concentração e a transnacionalização dessas empresas e do sistema financeiro A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 43 geraram um sistema global pouco sujeito à autoridade estatal e com poder sobre as nações mais poderosas do mundo, diminuição dos empregos, piora do perfil de renda e deficits externos estruturais crescentes nos grandes países da periferia. Os graves problemas dos cidadãos, que provocam demanda locais, vão se distanciando cada vez mais da possibilidade de ação dos mecanismos estatais, ocasionando crescente perda de capacidade reguladora desses Estados nacionais. A anatomia do capitalismo e suas crises Os conflitos entre capital e trabalho são estruturais e permanentes. Em Bretton Woods aceitou-se que os governos usassem políticas monetárias como instrumento de redução do desemprego. Truman acreditava que o conflito capital-trabalho poderia ser domesticado pela aplicação vigorosa dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos. No passado, como lembram Beverly J. Silver e Eric Slater, as transições hegemônicas haviam convivido com crescentes conflitos sociais. Eles moldavam, em meio aos colapsos, os pactos sociais que sustentariam a nova hegemonia. Atualmente, os EUA controlam o poder militar; o Japão e os chineses de além-mar detêm a liquidez; e a República Popular da China possui a mão de obra barata, alta produtividade industrial, grandes reservas e é sócia essencial do capitalismo global. Esse arranjo estrutural sem precedentes, que parecia manter em relativo equilíbrio as estruturas de poder mundial, foi atropelado pela crise econômica global e torna mais complexa a investigação do eventual declínio hegemônico norte-americano. Mas uma questão de fundo se sobrepõe a essa análise. Há sinais de crise sistêmica e estrutural no capitalismo global? Sabemos que estudar o capitalismo é investigar a morfologia dos seus ciclos e crises. Sua história é uma alternância entre otimismo e desalento, crescimento e recessão, a depender da qualidade das regras e instituições presentes em cada uma dessas etapas. A proposta do pós-guerra, influenciada por ideias keynesianas, era constituir uma nova ordem internacional propiciando amplo raio de manobra para políticas nacionais de desenvolvimento. Seguiu-se a era dourada das décadas 1950 e 1960. Em 1971, no entanto, Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro. Uma de suas consequências foi a profunda redução do poder de compra dos países exportadores de petróleo, em função da erosão do dólar. A alta de preços provocada pelo cartel do petróleo em GILBERTO DUPAS 44 1973, e agravada em 1979, provocou ondas depressivas na economia mundial, especialmente nos importadores de petróleo que tiveram que arcar com um forte endividamento para manter equilibradas suas reservas. A abundância dos chamados petrodólares facilitou a reciclagem financeira desses países mediante crédito fácil. Mas a adoção da taxa de juros flutuantes, junto com o crescimento das dívidas, introduzia um fator importante de instabilidade no cenário. O declínio do “consenso keynesiano” resultou na elevação das taxas de juros americanas em outubro de 1979. A partir daí, cresceu o patamar inflacionário geral, criou-se o euromercado pelo excesso de dólares e finalmente substitui-se o regime de taxas fixas de câmbio pelo câmbio flutuante. A primeira grave crise internacional dos anos 1980, iniciada com o colapso da dívida externa latino-americana, tem a ver, pois, com o novo nível de estoque dessa dívida, agravada, principalmente, pela decisão dos EUA de aumentar fortemente os juros. No período 1981-1990, por conta de profundos ajustes recessivos, o crescimento da renda per capita da América Latina foi negativo. No final da década, reconhecendo a incapacidade de pagamento de vários países, os EUA lideraram no G-7 os planos Baker e Brady e operaram descontos no valor nominal e nos juros dos empréstimos contraídos durante a década. Os anos 80 inauguraram a era dos mercados financeiros livres. A afirmação da supremacia dos mercados gerou uma onda de crises que varreu as duas décadas seguintes e permanece até hoje. Ela iniciou com o crash da Bolsa de Valores em 1987, continuou com a quebra dos mercados imobiliários em 1989, o colapso da Bolsa de Tóquio em 1990, os ataques especulativos às moedas fracas europeias em 1992 e 1993 e a crise dos bônus americanos em 1994. Nesse mesmo ano, a grande volatilidade dos fluxos internacionais acabou tendo um duro teste na crise cambial mexicana no final de 1994, provocando efeitos regionais perversos na Argentina e no Brasil. Mais para o final da década, veio a crise asiática, provocada por uma reversão do fluxo internacional de recursos aos países da região, abundantemente irrigados por financiamentos e investimentos em função de seus desempenhos econômicos considerados até então diferenciados. Seguiram-se desvalorizações intensas na Tailândia, Malásia e Coreia, com repercussões em toda a área. Em seguida veio a crise russa, que se superpôs à segunda fase da crise asiática, e foi coroada com a moratória de 1998. Finalmente, a década terminou com nova crise brasileira. Em 2001 estourou o colapso argentino, após anos de estrito A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 45 cumprimento das recomendações das instituições internacionais, obrigando o país a abandonar a paridade, provocando uma desvalorização de 200% em sua moeda e o desmoronamento do seu sistema financeiro. Ao mesmo tempo a Turquia entrava em forte declínio, exigindo rápido suporte do FMI para controlar uma situação precária da qual não saiu até agora. Depois o Brasil passou a ser a grande fonte de preocupação mundial, não só pela fragilização dos seus fundamentos mas, principalmente, por efeito da turbulência das eleições presidenciais que elegeram Lula e que levantavam suspeitas que mostraram-se sem sentido. As grandes questões sem resposta Hobsbawm acha que a doença ocupacional de uma superpotência é a megalomania; e que os EUA terão que aprender as limitações de poder, como os ingleses fizeram no século XIX. Mas a crise econômica que sucedeu ao estouro da “bolha tecnológica” na Bolsa de Valores norte-americana, com repercussões em todo o mundo, acrescenta um ingrediente novo e faz algumas questões de fundo se colocarem. Estaríamos diante de sinais de declínio da hegemonia norte-americana, tal como ocorreu com a holandesa no século XVII, ou com a britânica ao final do século XIX? Por outro lado, será que o mesmo modelo de nação hegemônica, organizadora e reguladora do espaço, continuará a prevalecer na era da informação? Estaria a despontar da atual turbulência global uma nova estrutura hegemônica? Ela seria da mesma natureza da que foi rompida? Fernand Braudel dizia que não há capitalismo vigoroso sem um Estado forte que esteja a seu serviço. Atualmente, os imensos fluxos de capital privado e a lógica dos blocos regionais impõem restrições cada vez mais rigorosas às políticas econômicas. No entanto, teria sido muito diferente de hoje a relação básica entre Estados e grandes corporações nos ciclos hegemônicos anteriores? Mais do que em qualquer outro período da história econômica, as tentativas de estabilizar o crescimento econômico estão severamente limitadas por uma total anomia e pela perda de capacidade regulatória das instituições internacionais. E a confiança na inovação tecnológica como motor da acumulação capitalista foi temporariamente posta em dúvida pelo colapso do preço das ações das empresas de ponta tecnológica, que havia justificado expectativas absurdas de taxas de retorno de investimentos, criando um estado de exaltação inconsequente quanto ao futuro do capitalismo. Será possível GILBERTO DUPAS 46 aos EUA – com a ajuda dos órgãos internacionais fortemente dependentes de sua influência (ONU, OMC, BIRD e FMI) – reconstruir um poder regulatório da ordem mundial, incluindo nesse poder os fluxos financeiros globais que, em sua brutal autonomia, movimentam-se aos solavancos, provocando enormes danos e tumultos nos países mundo afora? A crise, o novo Governo Americano e a configuração mundial do poder A crise sistêmica desencadeada a partir de setembro questionou alguns dos fundamentos do capitalismo global. A partir dos anos 1980, o fim da polarização ideológica e a acesso aos mercados globais haviam levado a uma profunda transformação na política e na economia. Os Estados nacionais tornaram-se atores mais frágeis e as grandes corporações globais impuseram o seu estilo de busca de lucro a qualquer preço, operando nas zonas cinzentas do mercado e fragmentando sua produção mundial. Esse foi, aliás, o caminho da incorporação da China ao processo capitalista, do qual se tornou parceira muito relevante e a mais recente florescência do modelo americano. As questões relativas à regulação passaram a ser rejeitadas como indesejáveis resíduos arcaicos que tentavam limitar o vigor do capitalismo vencedor. A crise atual provocou uma reviravolta momentânea nesses conceitos. Neoliberais viraram keynesianos e governos democráticos dos países líderes mundiais alocaram volumes equivalentes a quase 20% dos respectivos PIBs para socorrer bancos e empresas submetidas a gestão temerária, sob a justificativa parcialmente verdadeira de que estão protegendo casas, poupanças e empregos da população. Enquanto isso, Alan Greenspan, pedia desculpas ao mundo por não ter percebido que o mercado tinha virado um cassino e exigia controles. A erosão da confiança dos cidadãos em seus dirigentes e nas instituições políticas é o principal problema das democracias atuais. O individualismo se exacerbou, a esfera pública se erodiu e os interesses privados se impuseram nos altares do mercado. As segundas hipotecas e os subprime só ocorreram porque os cidadãos norte-americanos foram induzidos ao consumo conspícuo pela propaganda, supondo que a escalada absurda de preços dos seus imóveis seria permanente. O mundo macroeconômico havia entrado numa fase de alta complexidade onde dominam opiniões tecnocráticas muito distantes da sensibilidade do cidadão-consumidor; o capitalismo financeiro global aproveitou-se disso e vendeu-lhe fantásticas miragens. A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 47 A crise também tem a ver com o mundo vivendo acima dos seus meios. A era da abundância em recursos naturais já havia terminado há dez anos. Cientistas respeitáveis alertavam que mais alguns passos da humanidade na direção errada - e a degradação ecológica poderia ser irreparável, vitimando gerações futuras. Mas o poder econômico continuava garantindo que as novas tecnologias “dariam um jeito”. A questão é de quem são as escolhas; e a quem elas beneficiam. Como conseguir uma mudança radical de modelo de produção, com a redução do consumismo desenfreado e do sucateamento, se o mercado livre é a lei e os grandes atores econômicos têm total liberdade de definir a direção dos vetores tecnológicos? Alguém acredita que o próprio mercado possa se auto-regular? Quem vai ser capaz de enfrentar a batalha gigantesca de reconversão da lógica privada de produção em nome do futuro da civilização? Howard Davis, diretor da Escola de Economia de Londres, descreve o kafkiano conjunto de uma centena e meia de entidades e comitês internacionais que até aqui faziam de conta que controlavam o sistema financeiro internacional. E defende regras duras para amarrar as partes soltas do sistema, incluindo seus buracos negros, e a exigência aos bancos de comportamentos contra cíclicos como capitalização obrigatória quando os preços de mercado atingem valores acima das médias. A crise iniciada em 2008 pelo colapso do sistema financeiro pode, de fato, gerar uma nova era de regramento do lado desenfreado do capitalismo global? Quem serão seus agentes? Políticos movimentam-se de forma hiperativa, outorgando-se poderes de épocas de guerra; mas ainda estão tão perdidos como os economistas e intelectuais. Suas posições oscilam entre a antevisão “das folhas de outono” do fim do capitalismo até a assunção de que esta é uma mera crise de ajuste e será resolvida com certa socialização de prejuízos e alguma regulação. Mas a sua verdadeira natureza é tão complexa que conduz a uma cegueira relativa. Ulrich Beck diz que o comportamento atual das autoridades mais lhe parece a daquele bêbado que procura sua carteira perdida em meio à noite escura com o facho de uma lanterna. Ao ser perguntado “É mesmo aqui que você a perdeu?” ele responde: “Não; mas a luz dessa lanterna me permite ao menos continuar procurando”. Beck lembra que risco e dano não significam necessariamente catástrofe, mas que a percepção dos seus efeitos futuros em áreas críticas como clima, finanças ou terrorismo, instaura um estado de exceção ilimitado que transcende a escala nacional para a dimensão universal. O problema é que a legitimidade GILBERTO DUPAS 48 de uma ação cosmo-política face às crises globais depende muito do foco das mídias, que só as abordam quando elas viram catástrofes. Em suma, essa crise tanto pode ser de fundamentos quanto de forma; ou de ambos. Muitas águas ainda rolarão sobre as escoras do capitalismo global; e algumas dessas escoras ainda podem cair com a força das correntes. Estruturas e equilíbrios de poder irão se alterar tanto na política como na economia, e muito exigirão de seus atores principais. Especialmente de Barack Obama, tido como analista frio e construtor de consensos. Porém sua equipe é apenas uma reconstituição completamente da época Clinton, com alguns toques do Bush e dos jovens seguidores de Obama. Esperava-se por mudanças mais radicais, mais a ética da convicção outra vez cede à ética da responsabilidade. Bastará para o tamanho do desafio? Obama já respondeu às críticas de sua ala mais à esquerda que clamava por mudanças com uma frase emblemática: “a mudança sou eu!” E o que pode mudar no papel estratégico da América Latina? Em editorial recente, o NYT falava de uma oportunidade única para o novo governo incrementar laços com uma região que supre os EUA com um terço das suas importações de óleo, a maioria dos seus imigrantes e quase toda a cocaína que consome. Os líderes latino-americanos querem saber se Washington vai agora falar a sério sobre política de energia, integração econômica, imigração e tráfico de drogas. O NYT propõe acabar com o embargo sobre Cuba e aproveitar o enfraquecimento de Chávez com políticas ativas de ajuda envolvendo também Nicarágua, Honduras e toda a região. Finalmente, pede tarifa zero ao etanol brasileiro. O relatório do National Intelligence Council, preparado a cada quatro anos pelo núcleo duro do establishment de segurança dos EUA está pronto para ser entregue a Obama e diz que “o país ainda joga um papel proeminente nos eventos globais”, dramática diferença com o anterior que falava numa contínua dominância dos EUA. A tendência geral da intelectualidade do país é o chamado “new declinism” – a sensação de que a mais poderosa nação do mundo está em declínio. O oposto da agressiva confiança dos anos Bush e do momento unipolar. Três razões principais são apontadas: Iraque e Afeganistão são a certeza de que a supremacia militar não se converte automaticamente em vitória política; o crescimento da China e Índia como novos atores de peso; e a percepção vinda da crise de que os EUA estão vivendo acima de suas possibilidades e de que há alguma coisa errada no modelo americano. O respeitado A CONFIGURAÇÃO MUNDIAL DO PODER 49 General Brent Scowcroft declarou outro dia “O exercício do nosso poder nos revelou que ele é efêmero”. No livro de Fareed Zakaria, que consta ter sido o único sobre política externa lido por Obama em 2008, ele conclui que os anos Bush foram o apogeu do poder americano. Richard Haass, Chairman do Council on Foreign Relations é enfático: “O momento unipolar dos EUA se foi”. No entanto, William Wohlforth adverte que já houve outros momentos de crise de confiança seguidos de recuperação, como após a derrota no Vietnam. O fato é que, salvo crise político-social de grandes proporções na China, a estagnação dos próximos anos trará definitivamente uma mudança de patamar no poder chinês. Nada ainda para ameaçar a hegemonia norte-americana. Mas com China crescendo a 7%, Europa e Japão estagnados e EUA a passo de cágado, em 5 anos, os chineses terão um PIB de US$ 5 trilhão, tendo ultrapassado largamente França, Inglaterra e Alemanha e ligeiramente o Japão, transformando-se na segunda maior economia do mundo. Só que os EUA ainda estarão com US$ 15 trilhão, 3 vezes mais que a China! Assim, gostemos ou não, teremos que continuar convivendo com a hegemonia norte-americana. Mas ser hegêmona é mostrar competência em fazer um discurso e praticar ações que, embora interessando mais ao próprio hegêmona, possam ser compreendidos pela comunidade internacional como interessando razoavelmente a todos. Conforme já lembramos, do “voamos mais alto e sabemos o que é melhor para o mundo” de Madeleine Albright (na era Clinton) ao “quem não está conosco está contra nós” do fundamentalista Rumsfeld (nos tempos de Bush) houve uma escala imensa da hegemonia em direção a uma quase tirania. O que nos resta é cobrar da potência norte-americana o exercício de uma hegemonia benévola que leve cada vez mais a consensos multipolares que aliviem as tensões mundiais e gerem condições de governabilidade sistêmica. Esse é o grande desafio e o papel esperado do governo de Obama. Bibliografia ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly J. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto. GILBERTO DUPAS 50 COHEN, Eliot A. “Um conto de dois secretários”. Revista de Política Externa, vol. 11, nº 2. Paz e Terra. São Paulo: setembro-novembro de 2002. DUPAS, Gilberto. “Globalização, exclusão social e governabilidade”. I Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais. Recife: novembro de 1999. _______ “As tensões econômicas e sociais na UE”. Seminário: As relações entre Brasil e Alemanha e os caminhos do MERCOSUL e da União Européia. 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São Paulo: junho-agosto de 2001. 53 A América Latina e o Caribe; e o Brasil** Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão* * Embaixador, Diretor do Departamento da América Central e do Caribe, do Ministério das Relações Exteriores. ** Texto apresentado na Sessão sobre América Latina e Caribe da “III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional - CNPEPI - O Brasil no mundo que vem aí”, realizada no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, em 8 e 9 de dezembro de 2008, sob os auspícios da Fundação Alexandre de Gusmão e do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. Não se fala de Europa latina e muito menos de África latina como se fala de América latina. Por quê? O Haiti é América latina? E Guadalupe? Martinica? O que se costuma chamar de América latina, na verdade, é a América ibérica. É a América que os portugueses e espanhóis construíram. É a América que fala português e espanhol. É a América que herdou um comportamento cultural ibérico, uma predominância cultural católica mas, sobretudo, uma mestiçagem cultural e social que se quis aberta, através de sua história, a outras influências, mas aberta com a condicionante da predominância da chamada cultura ocidental. O que se convencionou chamar de América latina é esse espaço geográfico e histórico onde a cultura européia, filtrada pela visão de mundo ibérica, construiu sociedades novas a partir de uma abertura a outras sociedades que incluía a miscigenação. É o lugar aonde veio o português Martin, onde ele se GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO 54 juntou com a índia Iracema e onde nasceu Moacir. Onde as filhas dos incas e dos astecas se casaram com castelhanos e galegos, onde um índio esculpiu, cheio de fé, a imagem de Nossa Senhora de Copacabana. Ao contrário da América inglesa, do norte, a América latina nasceu e cresceu como continuação da sociedade constituída em Portugal e na Espanha. Não houve, por parte dos que de lá para cá vieram, aquele desejo protestante ou algo cátaro de cortar vínculos e fundar uma sociedade nova e diferente, uma sociedade de eleitos, que orientou muitas das principais levas de homens que foram para a América do norte e que terminaram por fundar os Estados Unidos. A única tentativa semelhante nesta nossa América foi a dos jesuítas nas Missões, que fracassou rotundamente, talvez até porque não contemplou a miscigenação. Os portugueses e espanhóis que para cá vieram queriam enriquecer e, se possível, voltar nobres para sua terra e a ela se reincorporar. Aos poucos, porém, foram ficando. Mas foram ficando e, ao mesmo tempo em que mantinham sempre presente a referência a seu país de origem, davam vida, aqui, a algo novo, algo mais variado, algo mais aberto, que a convivência íntima com os índios despertara e a convivência íntima, logo mais, com os negros, iria consolidar. O produto dessa interação não foi, quase nunca, consciente e se deu mesmo, muitas vezes, por baixo de uma exclusão consciente; mas construiu esta sociedade de aberturas e circunscrições que é a de nossa América ibérica. Em alguns lugares mais, em outros menos, o traço que talvez mais nos caracterize seja o desta convivência constante com o outro e o da abertura constante ao outro. Não apenas ao outro físico mas, também, ao outro cultural. E um outro muito outro, se podemos dizer assim, pois o ibérico e o índio nada tinham em comum ; e ambos, nada em comum com os africanos. Dessa convivência com o outro nasceram nossas sociedades, e dessa convivência elas ainda vivem, ora gregárias, em maior ou menor grau, ora alijadoras. Até mesmo ao ponto de, vez por outra, nos sentirmos outros e alguns quererem, por exemplo, tirar um passaporte italiano ou adotar comportamentos africanos. O que têm, então, em comum a Bahia e o Chile? Ou Cuzco e Buenos Aires? Um representante minimamente educado da classe média, mesmo da classe média baixa, do Rio de Janeiro, digamos, tem mais em comum com a Itália ou a França do que com o Equador, por exemplo, ou talvez até mesmo do que com um borracheiro do Acre. O que faz, então, com que Quito e o Rio de Janeiro sejam mais uma mesma coisa, que o Rio de Janeiro e Roma? A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL 55 Talvez o fato de que ambos incorporaram Roma mas incorporaram, também, algo mais, incorporaram outras visões de mundo que se somaram à de Roma para entender ou tentar explicar o mundo e passaram a se pautar por este comportamento que permite ou supõe a constante possibilidade de outras incorporações. Portugal e Espanha vieram à América e aqui miscigenaram. Miscigenaram em todos os sentidos. Mas esta miscigenação ficou aqui, na América; e só a partir da América o pensamento e o comportamento português ou espanhol se modificaram em sua maneira de ver o mundo e de estar no mundo, que é hoje a nossa maneira, não mais a deles. Os dois países trouxeram para cá sua visão de mundo mas aqui operaram uma abertura daquela visão de mundo que incorporou o fato novo da criação de uma sociedade que incluía - mesmo que excluindo - o outro: o índio, primeiro e o negro, depois; e depois o quibe, o suchi e por aí a fora. Esta América, onde também o português e o espanhol viraram outro, é o que nós chamamos de América latina. É um conceito eminentemente cultural e nada político. Não existe a América latina política, a não ser como expressão parcial - uma das expressões - da América latina cultural. E mesmo essa América latina cultural e, conseqüentemente, a política, será que são mesmo latinas? Ou serão, simplesmente, América? Se atentarmos bem, a Guiana, o Suriname e os pequenos países do Caribe insular anglófono e francófono, fazem parte, também, daquele conceito cultural de miscigenação que é o da América latina ibérica. Foram eles, também, países forjados nessa construção de uma sociedade de que o outro faz parte, constante e intimamente, seja por inclusão seja por exclusão, e sempre com a condicionante da preponderância da chamada cultura ocidental, neste caso filtrada pela Grã-Bretanha, pela Holanda e pela França. A América do norte também começou assim e uma grande parcela de sua população ainda é assim mas, logo, a direção social, política e histórica que tomaram, em suas relações com o mundo e com os outros que por lá encontraram, enveredou pelo caminho do egoísmo messiânico; mas do significado disso tratarei mais adiante. Nossas sociedades nesta América são sociedades de estrangeiros e constantemente abertas. Os ibéricos chegaram estrangeiros, os africanos e depois os japoneses, indianos, árabes, europeus, todos estrangeiros; e os índios viraram estrangeiros nas sociedades que criamos, mas também vieram. Os europeus se mudaram para a América como não se mudaram GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO 56 para nenhum outro Continente e na América criaram, junto com os outros que aqui encontraram e com os outros que para aqui vieram, o que não criaram em nenhum outro Continente. Criaram a convivência com o outro, de que já tinham perdido há muito tempo a memória. Curiosamente, os estertores dessa convivência, na Europa, deram-se exatamente na Península Ibérica e Portugal e Espanha foram construídos, também, com uma razoável dose de convivência com o outro, o norte-africano e o judeu. Essa convivência é nossa herança, que já não é mais ibérica nem latina porque foi construída por todos: é americana. Pois nosso temperamento já não é o francês ou italiano ou espanhol ou português ou africano ou índio ou sírio ou japonês: é americano. Existe um samba do grande compositor Miguel Gustavo, cantado pelo extraordinário Moreira da Silva e escrito para ele, que se chama “Moreira da Silva contra 007” e que mostra muito claramente o que estou dizendo aqui. O samba conta como o 007 vem ao Brasil acompanhado da Cláudia Cardinale e os dois se hospedam na concentração do time do Santos, com a intenção de raptar o Pelé para que não jogue contra a Inglaterra. A Cláudia Cardinale é a arma do 007 para capturar o Pelé. Na piscina da concentração do Santos, a Cardinale fica se oferecendo ao Pelé, fica se oferecendo e o Pelé vai chegando, vai chegando, vai chegando e, diz o samba: “a bonitinha não percebe a tabelinha que ele faz / Pelé controla a Cardinale, dá-lhe um beijo e avança mais; / gol do Brasil!” E, então, comentando aquela atitude ousada do Pelé, o samba conclui: “ Temperamento latino é fogo! ” Mutatis mutandis, é uma situação semelhante a quando o extraordinário orador que foi José do Patrocínio dizia, em seus inflamados e cativantes discursos: “ nós, os latinos...”. Aquele temperamento “latino” do Pelé, no samba e a “latinidade” de José do Patrocínio, em seus discursos, já não são mais latinos: são, como nós somos, americanos. Por isto, a América latina não existe, existe esta nossa América que é latina e índia e negra e tudo o mais e que tem algo novo e dela para mostrar ao mundo. Que vai da Patagônia ao México e engloba todo o Caribe insular e tem, dentro dela, o Brasil. Mas por que pára no México? E o que é este algo novo e como se situa, nele, o Brasil? A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL 57 II É fundamental recuperarmos a palavra América. Pois nós somos a América que pode ser algo novo na História, nós sul-americanos, centro-americanos e caribenhos. Os outros, a república da América do norte, viram passar a História por eles e não souberam dar-lhe nada de diferente no que diz respeito à relação com os outros povos; apenas terão representado, para a História, ao final de seu poderio, o terem-se constituído em uma cabeça de império a mais oprimindo, com a empáfia de seu discurso messiânico, de uma maneira ou de outra, outros povos, como já o fizeram diversos, desde a aurora dos tempos, enquanto aguardavam por outros mais fortes que, implacavelmente, lhes tomariam o bastão invocando com a mesma empáfia o mesmo salvacionismo. Não é assim que nos vemos, nós americanos desta nossa América. Não é isto o que devemos querer de nós. Não é este o papel que devemos querer para nós no mundo, na História. Porque não foi assim que surgimos, não foi assim que nos constituímos, não é assim que nos relacionamos. O que poderemos nós, então, representar para a História? O que seremos nós que, ultimamente, o império de turno, a República do norte, como os que lhe antecederam, não soube ser, ou não pôde ser? Porque a América do norte não fez história, ela repetiu a história. Mas e nós, que eu gostaria de chamar simplesmente América, o que será de nós? Nós, esta América nossa, este punhado de sociedades que se constituíram feitas de outros e que continuam hoje abertas aos outros, não apenas aos outros físicos, que cheguem imigrantes, mas aos outros que cheguem para incorporar visões novas, esta América é a única região do mundo que pode ter algo de novo a oferecer à História. E, dentro dessa América, o Brasil tem um papel fundamental a desempenhar, na construção daquele algo novo. Trata-se do que se poderia entender como a transposição para as sociedades - os países, os governos, os estados, as nações, como queiram - daquela intuição genial de Ortega y Gasset de que o homem é ele e sua circunstância : “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. As circunstâncias dos países são os outros países, as outras sociedades, os outros povos. A consciência de que nós somos nós e também os outros faz com que vejamos de uma maneira totalmente diferente a nossa relação com os outros. A alteridade do outro passa a adquirir uma identidade conosco que transforma GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO 58 muitas diferenças em similitudes. A prática disso é a extrapolação para os outros países daquele sistema de incorporação do outro que regeu a constituição de cada uma de nossas sociedades. É o estabelecimento de relações com base na aceitação, na incorporação dos interesses do outro mas, também, na negação, mantendo sempre, entretanto, o outro como parte de si. Somente esta nossa América, que engloba, como disse, do Rio Grande à Patagônia e o Caribe e que se formou pela incorporação constante e aberta ao outro, pode estar preparada para iniciar a prática deste novo relacionamento entre os povos no âmbito da História. Só esta nossa América criou ou quis criar uma sociedade nova, aberta e abrangente, mas despida de qualquer veleidade salvacionista ou de qualquer missão messiânica auto-outorgada. Uma sociedade despida de qualquer desejo de exportar modelos de excelência, que pretendesse impor como solução definitiva aos problemas dos outros. Até pelo contrário, vejam bem, esta nossa América experimentou de peito aberto já todos os sistemas e se abriu a todas as fórmulas tidas em seus momentos como exemplares. O que podemos ter a oferecer ao mundo - e talvez só nós - é esta ideia e esta prática de nos relacionarmos com o outro e de incorporarmos o outro a nós e de nos incorporarmos ao outro. Vejam esta curiosa enumeração, algo caótica, de nomes de Presidentes das várias repúblicas desta nossa América, do Rio Grande do Norte à Terra do Fogo: Bachelet, Kirchner, Sanguinetti, Geisel, Fox, Mahuad, Lindley, Aylwin, William, Frondizi, Michalski, Goulart, Alessandri, Bosch, Banzer, Stroessner, Terry, Soublette, Dorneles, Wasmosy, Fujimori, Saca, Menen, Bucaram, Kubitschek. Nós somos todos eles e seremos muitos outros mais. E o papel do Brasil nisso tudo é fundamental. É fundamental porque, para sê-lo, deve ser semelhante ao de todos os outros e isto é o que lhe dará grandeza. O Brasil é grande, cresce inexoravelmente e será cada vez maior, mesmo que aos trancos e barrancos, como lembrou um de nós que muito o pensou. Não creio que alguém tenha dúvidas quanto a isto. Seria, então, relativamente fácil para o Brasil, almejar atingir, no futuro, uma situação de superioridade sobre estes que são os nossos outros e se arvorar em potência regional, ou, em breve, até um pouco mais, pois nós temos, também, uns outros nossos na África. Seremos potência, seremos ricos, teremos submarinos e fronteiras A AMÉRICA LATINA E O CARIBE; E O BRASIL 59 seguras, poremos e disporemos. Mas . . . e daí? Seremos grandes, nos imporemos pelo mundo a fora, eventualmente alguns queimarão umas bandeiras nossas aqui e ali, talvez explodam umas bombas em Copacabana e, assim, aos poucos estaremos cercados ineludível e implacavelmente de estrangeiros. Depois, quando estivermos então entrando em nossa decadência, a História registrará, em sua longa lista de impérios, o nosso, como um a mais que o egoísmo dos homens gerou. III O Brasil não pode ser isso. Se quisermos ter um papel e uma presença no mundo, temos que ser outra coisa. E podemos, pela nossa história, pela nossa formação, pelas lutas e pela índole de nosso povo e por nossa circunstância, podemos ser outra coisa. Esta outra coisa é a solidariedade, a verdadeira cooperação, o altruísmo que incorpora e se incorpora ao outro; esta outra coisa é o Amor. Escândalo! Falar de amor em relações internacionais! Em política externa e política internacional falar de amor! Mas sim, se nós não formos capazes de crescer juntos e em estreita intimidade com nossa circunstância, com nossa América e, como disse, já agora também com um pedaço da África, se não formos capazes de desenvolver este novo tipo de relação com os outros em torno de nós, se não soubermos ser iguais a eles, muito em breve passaremos a ser, nós, o Brasil, por nossa grandeza ineludível, os Estados Unidos da América do Sul; e nossa passagem pela História terá sido tão melancólica quanto foi, apenas para referir os mais recentes, a passagem do Império Britânico ou, até agora, a dos Estados Unidos do norte, que sempre mais contribuíram para a discórdia e o desentendimento entre os homens do que contribuíram para fazer caminhar a humanidade na direção de um desenvolvimento comum e geral, de uma solidariedade nas alegrias e nas misérias, na direção do Amor. O papel do Brasil, assim, é fundamental e único. A desproporção de nossa grandeza com a de todos nossos vizinhos, da Patagônia ao Rio Grande, passando pelo Caribe, é notável. Por isso nossa responsabilidade e nosso papel podem ser únicos na História. Trata-se de saber se quereremos ser um império a mais ou se quereremos deixar na História uma presença nova. Se quereremos consolidar nosso crescimento sobre a dominação dos próximos GONÇALO DE BARROS CARVALHO E MELLO MOURÃO 60 ou criar uma nova relação de crescimento solidário. Se quereremos criar uma nova relação entre os povos, uma relação de cooperação verdadeira, ou apenas ocupar o espaço de tirano de turno. Não! O Brasil não pode vir a ser um dia o tirano de turno. O Brasil padeceu as tiranias alheias e não quererá impor a sua a ninguém. Pelo contrário, justamente porque se encontra nessa posição singular nas Américas, o Brasil tem a oportunidade única na História de poder desempenhar um papel novo e desejado, o papel de motor da solidariedade e da verdadeira igualdade entre as diferentes nações. Só quem tem pode dar. O Brasil tem muito e, portanto, pode dar muito. O possível não é limitado pelo impossível, pelo contrário, o possível é quem determina as fronteiras do impossível. E sempre mais o impossível se faz possível, do que o possível impossível. Meu convite, portanto, não é para pensarmos o Brasil no mundo que vem aí, mas para pensarmos o mundo num Brasil que pode vir aí. 61 América Latina no presente Sistema Internacional Helio Jaguaribe 1. Introdução Uma satisfatória análise da posição da América Latina em geral e da América do Sul, em particular, no presente sistema internacional, requer que se leve em conta não somente, como usualmente se procede, a medida em que os Estados Unidos, única superpotência remanescente, alcançaram incontrastável supremacia mundial mas, também, a medida em que dois processos originariamente independentes, o processo de globalização e o processo de expansão do poder e da influência dos Estados Unidos vieram a tornar-se crescentemente interconectados. O corrente processo de globalização constitui a terceira e decisiva fase de um processo que se iniciou com os descobrimentos marítimos do século XV e subseqüente Revolução Mercantil, que se expandiu e acelerou com a Revolução Industrial, a partir de fins do século XVIII e adquiriu suas presente características, com o que se poderia denominar de Revolução Tecnológica, depois da Segunda Guerra Mundial, notadamente no curso do último terço do século XX. A principal característica do atual processo de globalização é sua dependência da eletrônica, à semelhança da dependência da máquina a vapor, por parte da Revolução Industrial. Os recursos proporcionados pela informática, por telecomunicações quase instantâneas, pela rapidíssima HELIO JAGUARIBE 62 interconexão aérea de todas as áreas do planeta, pela energia nuclear e por um contínuo progresso científico, que vai da cosmologia à biologia molecular, modificaram decisivamente as características sociais e individuais do mundo contemporâneo. Sem prejuízo da importância que continuam detendo os recursos naturais (e.g. crescentemente água e ainda por algum tempo petróleo) se tornaram menos importantes que os tecnológicos. É nesse quadro que se processa a crescente interconexão entre globalização e americanização. O processo de continuada expansão do poder e da influência dos Estados Unidos, a partir da Primeira Guerra Mundial, mais ainda depois da Segunda e, sem competidores externos, com o final colapso da União Soviética em 1991, levou aquele país a dispor de condições particularmente favoráveis – deliberadamente as empregando – para se valer, em atendimento de seus interesses, desse outro processo em expansão ainda mais acelerada, o da globalização. Detêm os EUA a maior capacidade internacional de tecnologia, particularmente em suas diversas dimensões cibernéticas. A informatização do mundo passou, assim, a se processar sob o prático monopólio dos EUA. O idioma inglês se substituiu definitivamente ao francês, a partir do segundo terço do século XX e tornou-se à língua universal, favorecendo, naturalmente, aqueles de que é língua materna. O sistema financeiro internacional, que constitui o núcleo central do processo de globalização, se tornou, por um lado, majoritariamente controlado por empresas americanas e, por outro lado, o que mais importa, veio a se pautar integralmente pelos métodos financeiros dos EUA e tem o inglês como seu próprio idioma. O processo de globalização se converteu, assim, no processo de americanização do mundo. Esse mesmo processo se tornou, também, equivalente ao processo de modernização. Central, no mesmo, é o completo predomínio da razão instrumental, nas múltiplas formas pelas quais se desenvolve o “know how”. Colateralmente, se universalizaram os valores do modo de vida americano e seus objetivos de poder e de consumo, pelo cinema, pela televisão, pela música, pela indumentária dos jovens e, de um modo geral, pelo “estilo jovem”. Como todos os precedentes históricos da universalização de uma cultura hegemônica – oposição sassânida à cultura helênica, judaica e germânica, à cultura romana, britânica, à cultura francesa – a expansão da cultura americana está encontrando crescentes resistências. Haveria que distinguir, a esse respeito, resistências de tipo autonomizantes como, no âmbito do Ocidente, AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL 63 o mundo latino e, no do Oriente, o chinês, de resistências de tipo antagonizantes, como no mundo islâmico. Estas últimas tendem a reforçar as dos primeiro tipo. Algo imprevistamente, para os ocidentais, o Islam se tornou, notadamente a partir do último terço do século XX, o principal fator de oposição aos Estados Unidos e à americanização do mundo. Essa oposição, diversamente do que se entende em certos setores, não é primordialmente uma oposição religiosa ao cristianismo, como na Idade Média, ou à democratização das sociedades como predominantemente se pensa nos EUA. Essa oposição é ao modo americano de modernização e, por decorrência, às formas ocidentais de modernização. O fenômeno é complexo e comporta diversas dimensões e aspectos. O núcleo dessa oposição se encontra, sem dúvida, nas características integristas do Islam, como religião e como cultura. Importa recordar a esse respeito que, embora em termos menos radicais, o cristianismo, tanto em sua versão ortodoxa como na católica, também foi integrista. A civilização bizantina, que prevaleceu no Ocidente do século VII a meados do século XIII, era integrista e unia, no mesmo sistema de valores, cristianismo e patriotismo bizantino. Na vertente católica do cristianismo se desenvolveu, do século XII ao XIII, um conflito de vida e morte entre o Império e o Papado, cada qual pretendendo unificar, sob sua hegemonia, o conjunto dos valores culturais, políticos e cívicos. Foi precisamente porque esse conflito, embora perdido pelos imperadores Hohenstaufen, conduziu, igualmente, à desmoralização do Papado, com sete décadas de Avignon, que o mundo ocidental se livrou do integrismo religioso-político e foi levado, no curso do tempo, com o Renascimento e a Ilustração, à independente formação, na sociedade global, de quatro subsistemas: civil, cultural, político e econômico. É precisamente contra a independentização dos subsistemas que se insurge o islamismo. Este se funda na indissolúvel unidade da “umma”, a sociedade dos crentes, a primeira das quais foi fundada por Maomé em Medina em 622, na qual estão submetidas ao mesmo regime as dimensões religioso-cultural, política, econômica e civil da sociedade global. Num fenômeno tão complexo como o que conduz ao fundamentalismo islâmico intervêm vários outros fatores e circunstâncias, notadamente os que produzem ou manifestam a profunda frustração decorrente da dominação do mundo islâmico pelo ocidental, particularmente o americano. O fato é que as desastradas políticas do presidente Bush, relativamente à questão palestina HELIO JAGUARIBE 64 e, de um modo geral, ao mundo muçulmano, exacerbadas com a decisão unilateral de invadir e ocupar o Iraque, suscitaram uma imensa reação fundamentalista no mundo islâmico, gerando um gravíssimo problema mundial. 2. Império Americano A incontrastável supremacia dos Estado Unidos, ora exacerbada pelo unilateralismo do governo Bush, tem levado muitos analistas a descrevê-la em termos da formação de um novo império mundial, o “Império Americano”. É certo que são inegáveis os aspectos imperiais da supremacia americana. Isto não obstante, uma análise mais cuidadosa da forma pela qual se exerce essa supremacia revela características que a diferenciam completamente dos impérios históricos, do romano ao britânico. Estes consistiam no exercício de uma dominação formal da metrópole sobre suas províncias ou colônias, dirigida por um pró-cônsul ou vice-rei, apoiado por guarnições militares e equipes burocráticas da metrópole. Nada disso ocorre com o “Império Americano”. Este preserva os aspectos formais da soberania dos países sob sua predominância: bandeira, hino, exércitos de parada, inclusive, nas sociedades democráticas, eleições “livres” de seus dirigentes. O predomínio americano não se exerce sob a formal modalidade de um império e sim através de um conjunto de poderosos constrangimentos, de caráter financeiro, econômico-tecnológico, cultural, político e apenas excepcionalmente por intervenções militares, como no recente caso do Iraque. O “Império Americano” é um “campo”, em sentido análogo ao que empregamos quando falamos de “campo magnético” ou “campo gravitacional”. Esse sistema de poderosos condicionamentos, precedentemente referido, opera de sorte a compelir os dirigentes locais, lhes agrade ou não, a atuar de forma compatível com os interesses do sistema financeiro internacional, das grandes multinacionais que endogenamente controlam a economia desses países e, exogenamente, de Washington. Os constrangimentos precedentemente referidos se reforçam reciprocamente. De um modo geral, o constrangimento principal é de caráter financeiro. Frequentemente, porque o país controlado depende, para o equilíbrio de suas contas, de financiamentos proporcionados, direta ou indiretamente, pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, ademais de por agências como o Eximbank, o Banco Mundial e outras. De um modo geral, porque, para manter seu acesso ao mercado financeiro internacional – e AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL 65 também ao tecnológico – esses países têm de atuar de conformidade com suas regras. Por outro lado, as grandes multinacionais, que estão crescentemente assumindo o controle da economia dos países subdesenvolvidos, neles dispõem de condições para orientar sua política. Mencione-se, entre estas, a predominância do financiamento, não necessariamente ostensivo, que as multinacionais têm nas campanhas políticas desses países, assim decisivamente influenciando a escolha de seus dirigentes e a conduta destes. Extremamente relevante, nesse processo, é a influência cultural dos EUA. Esta se exerce através das mais diversas formas que vão, nos países subdesenvolvidos, do absoluto predomínio americano no cinema, na televisão e no regime de informações, até a medida em que, nos últimos trinta anos, é cada vez maior e mais decisivo o número de economistas desses países formados por universidades americanas. Nestas, a boa ciência econômica que lhes é ensinada vem indissoluvelmente embutida numa ideologia neoliberal, que se apresenta como condição da boa técnica econômica (vide o “Consenso de Washington) e como tal é absorvida por esses discípulos. Daí a orientação neoliberal de quase todas as competentes equipes econômicas assessorando governos da periferia, o Brasil sendo uma das ilustrações do caso. Decisiva influência, nesse processo, é exercida pelo fato de o processo de modernização ter crescentemente assumido, a partir da segunda metade do século XX, características de uma americanização. Isto se torna particularmente visível na juventude e se faz sentir mesmo em países como a China, que busca séria e eficazmente modalidades próprias de desenvolvimento, mas onde a juventude urbana, de calças jeans, dança o rock. A supremacia americana, embora de alcance mundial, ainda não é uma completa hegemonia internacional, dada a existência de outros centros de poder que, embora sujeitos a essa supremacia, a ela oferecem variados graus de resistência. Cabe, assim, constatar que o atual sistema internacional apresenta quatro distintos níveis. (1) Nível de supremacia: exclusivamente ocupado pelos Estados Unidos; (2) Nível de autonomia interna: União Europeia; (3) Nível de resistência: China, Índia, Rússia e, potencialmente, Brasil, caso se consolidem Mercosul e o Sistema Sul-americano de Cooperação e Livre Comércio; HELIO JAGUARIBE 66 (4) Nível de dependência: os demais países. 3. Alternativas Históricas O quadro internacional precedentemente indicado é bastante instável e tende, a largo prazo, ou seja, no curso da primeira metade deste século, senão mais cedo, a se modificar. Duas são as principais alternativas do sistema internacional e da ordem mundial dele decorrente: (1) consolidação do “Império Americano” ou (2) formação de um novo regime multipolar. A primeira alternativa resultaria da completa consolidação e universalização da hegemonia americana. Essa hipótese apresenta, por sua vez, duas possibilidades. A menos provável seria a de uma dura hegemonia unilateral dos EUA, no estilo do governo Bush, lograr e se consolidar e se impor universalmente. O que torna improvável essa hipótese é o fato de que, para prevalecer, teria de empregar meios coercitivos extremamente violentos, como por exemplo, entre outras medidas a preventiva aniquilação, por mísseis, das instalações atômicas da China. Constrangimentos domésticos, nos próprios Estados Unidos, além de outras formas de resistência, tornam improvável esse desfecho. A segunda possível modalidade de uma consolidada e universal hegemonia americana, bem mais viável, seria a de se constituir por via cooptacional. O melhor exemplo histórico dessa modalidade de hegemonia é dado por Felipe II da Macedônia e sua “Liga Helênica”. Em 337 aC, depois de haver militarmente se sobreposto a todos os outros Estados gregos, Felipe reuniu em Corinto um congresso panhelênico e nele, nominalmente como preparativo para a guerra contra a Pérsia, inimiga comum de todos os gregos (leia-se, hoje, guerra contra o terrorismo), se constituiu a Liga Helênica. Nela, cada Estado grego participava de sua assembleia com um peso proporcional à respectiva importância, cabendo, entretanto, à Macedônia, o comando militar e a liderança da Liga. Os Estados Unidos poderão, eventualmente, construir um sistema análogo à Liga Helênica, incorporando a sua liderança mundial os outros principais centros de poder, como União Europeia, China, Rússia, Índia e eventualmente alguns outros. Em tal caso, formar-se-ia um sistema hegemônico mundial susceptível de muito longa duração. A outra alternativa histórica é a formação, até meados do século, de outros centros de poder dotados de satisfatória equipotência com os EUA. A China AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL 67 é, reconhecidamente, a principal candidata a essa posição. Tendo mantido continuamente, desde Deng Xiaoping, a partir de 1978, impressionantes taxas anuais de crescimento econômico, não inferiores a 7% e se modernizado vertiginosamente, a China tenderá a superar o PIB americano em 2045, alcançando, segundo estimativa de Goldman Sachs (“paper” 99 de 2003) US$34,8 trilhões, contra os US$30,9 trilhões dos Estados Unidos. Essa possibilidade, embora realista, depende, entre outras circunstâncias, de duas principais condições: (1) capacidade de sustentar, a partir de 2015, taxas anuais de crescimento não inferiores a 6% e (2) atitude, por parte da liderança chinesa, de proceder, pacífica e tempestivamente, aos ajustes institucionais que correspondam às necessidades de uma China moderna. Outra candidata à condição de novo centro internacional de poder é a Rússia, na medida em que as reformas que vêm sendo introduzidas por Wladimir Putin tenham continuidade e persistência. Herdando do passado soviético o segundo maior arsenal nuclear do mundo, a Rússia dá indicações de se encaminhar para recuperar sua antiga condição de superpotência até meados do século. Estima Goldman Sachs, no referido estudo, que a Rússia, cujo PIB per capita, em 2000 era apenas cerca de 10% do americano, alcance 60% deste em 2050. O sistema internacional tende a experimentar, no curso da primeira metade deste século, outras importantes modificações. Consistem estas na provável emergência de um novo tipo de protagonista internacional que, não alcançando a condição de superpotência, atinja, estável e auto-sustentavelmente, a condição de grande interlocutor independente. Essa possibilidade se apresenta para o provável caso de que se formem, na União Europeia, subsistemas políticos diferenciados entre si e do conjunto da UE como sistema econômico. A Europa dos 25 acentuou, provavelmente de forma definitiva, as dificuldades que já observavam na Europa dos 15 de esse grande sistema econômico alcançar satisfatória unidade política. Isto não significa que a UE não venha a adotar uma Constituição comum, o que provavelmente virá a ocorrer. Significa, entretanto, que essa Constituição incluirá normas que requeiram unanimidade, ou algo de próximo, para a adoção de posições comuns em matéria de política externa e de defesa, assim as inviabilizando. A UE, em seu conjunto, continuará sendo um gigante econômico e um anão político. Nesse quadro, entretanto, já se pode discernir uma forte tendência para que, no âmbito da UE, se formem subsistemas políticos diferenciados. Dois já se encontram claramente em formação: (1) um subsistema atlanticista, HELIO JAGUARIBE 68 liderado pelo Reino Unido e apoiado pelos nórdicos, estreitamente vinculado aos EUA e (2) um subsistema europeista, liderado por França e Alemanha, tendente a ser apoiado pelos países latinos, adotando uma posição independente dos EUA, embora vinculada aos valores ocidentais. Resta a ver como se posicionarão, face a esses dois subsistemas, os povos eslavos recém-admitidos na UE. De imediato, esses novos membros inclinam-se para a posição atlanticista, como decorrência de sua histórica resistência à URSS e, portanto, à Rússia. Existem, todavia, importantes vínculos históricos e econômicos que aproximam a Europa central da Alemanha e a Polônia da França. Até que ponto, no curso do tempo, esses vínculos não tenderão a aproximar os eslavos do subsistema franco-germanico? Independentemente de como venham a se alinhar os eslavos europeus, no curso do primeiro terço deste século, tudo indica que o sub-sistema político europeista tenderá a se consolidar e a se constituir como um grande interlocutor internacional independente. Essa condição de grande interlocutor internacional independente terá outro protagonista, a Índia, que já a está adotando e cujo PIB, conforme o mencionado estudo de Goldman Sachs, tenderá a ultrapassar o maior PIB europeu, o da Alemanha, em 2025. Um terceiro candidato à condição de grande interlocutor internacional independente é o Brasil. Referindo, uma vez mais, o mencionado estudo de Goldman Sachs, o Brasil tenderá a ultrapassar o PIB da França em 2035 e em 2040, o da Alemanha. No caso do Brasil, todavia, é importante levar em conta a necessidade de que se ressente, para assegurar sua autonomia internacional, de manter uma estreita aliança com a Argentina e de operar no âmbito do Mercosul e de um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio. Essas circunstâncias, todavia, podem e tendem a ser mantidas pelo Brasil, o que o qualifica como potencial grande interlocutor internacional independente no horizonte de meados do século. Uma análise mais abrangente dessa questão requeriria se contemplasse o caso dos países islâmicos e algumas outras situações, o que, entretanto, ultrapassaria as estreitas dimensões deste estudo. Baste se mencionar, assim, que a alternativa multipolar, para meados deste século, conduz à formação de três grandes sistemas de poder – EUA, China e Rússia – e de, pelo menos, de três grandes interlocutores internacionais independentes, Índia, subsistema europeista e sistema Brasil-Mercosul-Sulamérica. O quadro resultante desse possível futuro regime internacional é extremamente complexo porque envolverá, por um lado, um renovado risco AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL 69 de hecatombe nuclear, como durante o período da Guerra Fria e, por outro lado, um difícil relacionamento entre EUA e China, mediatizado por Rússia e pelos grandes interlocutores internacionais. Na verdade, contemplando-se o processo histórico no seu muito longo prazo, pode-se dizer que tende a duas consequências finais: o suicídio nuclear da humanidade ou a formação, como previa Kant, de uma estável Pax Universalis. Caso venha a se formar um novo regime multipolar, em meados do século, o sentido de sobrevivência tenderá mais uma vez, como no curso da Guerra Fria, a evitar um confronto nuclear. Este, não obstante, como quase ocorreu no período precedente, pode vir a se desencadear de forma não expressamente deliberada. Se o mundo evitar o suicídio nuclear, tenderá a formas crescentemente institucionais de regulação de seus interesses, culminando numa forma satisfatoriamente racional e minimamente eqüitativa de administração mundial. É interessante observar que, por caminhos distintos, a hipótese de uma durável hegemonia americana, nos termos precedentemente analisados, também tenderá, a longo prazo, a desembocar uma satisfatoriamente racional e minimamente eqüitativa administração mundial. 4. América Latina e Brasil As considerações precedentes permitem concluir as presentes reflexões considerando a situação, nesse quadro, da América Latina, em geral e do Brasil, em particular. A evolução da América Latina, no curso da segunda metade do século XX, conduziu a uma significativa diferenciação econômica entre o norte e o sul da região. O norte, que já vinha se caracterizando por sua crescente gravitação em torno dos Estado Unidos, veio, com a adesão do México à NAFTA, a se constituir, institucionalmente, em parte do sistema econômico americano. A América do Sul, não obstante a grande influência que, sob múltiplas formas, sobre ela exercem os Estados Unidos, mantém significativa margem de autonomia e encontra em países como Brasil e Argentina e, decorrentemente, em Mercosul, um núcleo duro de resistência a sua absorção pelo sistema econômico americano. Cabe, assim, nas presentes condições, diferenciar na América Latina três distintos círculos: o econômico, o cultural e o político. Economicamente, a região está dividida, por um lado, entre México, América Central e Caribe, gravitando em torno dos EUA e por outro lado, América do Sul, sob HELIO JAGUARIBE 70 predominante influência de Brasil e Argentina, diretamente e por intermédio de Mercosul. Culturalmente, a América Latina apresenta significativa unidade, não obstante as diferenças entre hispanofonos e lusófonos. As comuns características ibero-americanas de América Latina superam, de muito, suas particularidades lingüísticas e outras. Caberia mencionar o fato de que, num país como a Espanha, as diferenças entre um castelhano e um andaluz são possivelmente maiores que as que separam hispanofonos de lusófonos. O circulo político, finalmente, apresenta diferenciações conforme as opções políticas tenham motivação econômicas, caso em que se manifesta o dualismo norte-sul, das opções de motivação cultural, tão ou mais freqüentes que as precedentes, caso em que se manifesta a unidade cultural de América Latina. Uma análise satisfatoriamente abrangentes de América Latina requereria, relativamente ao norte da região, diferenciar-se os casos de México, da América Central e do Caribe. Requereria, em relação ao sul da região, uma diferenciação entre Mercosul, por um lado e, por outro, Chile e os países andinos. Os restritos limites deste estudo impõem uma simplificação. Nele se considerará, por um lado, o eixo Argentina-Brasil-Mercosul e sua influência sobre o restante da América do Sul e, por outro lado, o caso do México. Reduzindo uma questão complexa a seus aspectos mais fundamentais pode-se dizer que o que está em jogo, na América Latina é, por um lado, a medida em que países como Brasil e Argentina logrem estabelecer uma durável, confiável e reciprocamente benéfica aliança estratégica, a partir da qual possam consolidar Mercosul e instituir um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio, assegurando à América do Sul a possibilidade de se constituir, até meados do século, como um dos grandes interlocutores internacionais independentes do mundo. Por outro lado, a questão que se apresenta é a de como assegurar ao México a preservação de sua identidade nacional, no âmbito de NAFTA e da supremacia americana. As duas questões estão inter- relacionadas, embora de forma não simétrica. Se não se constituir de forma estável, confiável e reciprocamente benéfica, uma aliança estratégica entre Brasil e Argentina, não somente Mercosul deixará de se manter e não se logrará instituir um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio como, ademais, os dois grandes países da América do Sul perderão, isoladamente, a capacidade de manter sua autonomia internacional e se converterão em segmentos do mercado internacional e em “províncias” do Império Americano. Tudo, assim, depende dessa aliança. Por outro lado, ainda que esta se consolide e gere os esperados efeitos na América do Sul, a AMÉRICA LATINA NO PRESENTE SISTEMA INTERNACIONAL 71 manutenção da identidade nacional do México é condição, para este, da preservação de seu destino histórico e, para a América Latina, da sustentação de um de seus pilares fundamentais. Com efeito, não obstante a relativa importância da contribuição cultural centro-americana e cubana, por um lado, e de países como Chile e dos andinos, por outro, a cultura latino-americana repousa, no fundamental, sobre o tripé constituído, de norte a sul, por México, Brasil e Argentina. Sem México, essa cultura se veria terrivelmente mutilada. O problema com que se defronta a América Latina, face ao incipiente século XXI, é a medida em que, seja qual for a alternativa que venha a ser assumida pelo sistema internacional, no curso da primeira metade do século, a possibilidade de que os latino-americanos tenham voz e peso, nesse sistema, depende da medida em que logrem fazer de América do Sul um grande interlocutor internacional independente. Se lograrem alcançar essa interlocução, México, embora submetido a uma vinculação econômica com EUA, preservará sua identidade nacional e condições para optimizar seu próprio relacionamento econômico com o vizinho do norte. Seria desnecessário reconhecer o fato de que, para a América do Sul, a alternativa multipolar, na evolução do sistema internacional, seria de longe a mais favorável e a única em que lhe seria possível o exercício de um importante e independente interlocução internacional. É pouco, mas não irrelevante, o que um sistema sul-americano de cooperação e livre comércio possa fazer para contribuir no sentido da formação de um futuro regime multipolar. Observe-se, entretanto, que mesmo no caso de vir a se configurar uma longa hegemonia mundial americana, a formação de uma séria aliança entre o Brasil e a Argentina, com suas múltiplas decorrências na América do Sul, constituiria algo de decisivo para que a inserção desses países, e dos demais da região, no sistema imperial americano, se faça sob a forma de uma província de primeira classe, como ocorrerá com os países europeus, e não como resíduos indiferenciados do Terceiro Mundo. 73 América Latina e Caribe: Nova Fronteira da Política Externa Brasileira Marcel Biato Integração regional ou “descolamento”? Neste início de século XXI, quando começa a consolidar-se como país com interesses e alcance globais, o Brasil está se voltando mais intensamente para sua vizinhança imediata. Por que haveria de fazê-lo, arriscando distrair- se do esforço primordial de esquadrinhar as potencialidades e riscos que a globalização abre para uma potência emergente? Seria recomendável ao Brasil atribuir prioridade a aglomerado disperso de países de dimensões econômicas contrastantes e tradições sociais e políticas igualmente díspares? Discrepâncias e divergências que só parecem aumentar e que negariam qualquer possibilidade de consolidar-se um bloco regional apto a integrar-se de forma coesa e competitiva numa economia mundial cada vez mais integrada? A América do Sul e, mais genericamente, a América Latina e Caribe foi a primeira fronteira do Brasil. Os limites físicos, lentamente consolidados ao longo de décadas e séculos, reforçavam o fosso que nos separava e diferenciava de um entorno continental do qual nos sentíamos existencialmente apartados pela língua, por rivalidades dinásticas, pelo regime político e por aspirações derivadas de nossas dimensões demográfica e territorial. Desde os primórdios da luta pela independência continental no início do século XIX, eram mútuos e crescentes os sentimentos de desconfiança e mesmo inimizade entre as repúblicas herdeiras do Império Espanhol e o então Império luso- MARCEL BIATO 74 brasileiro. O regime brasileiro representava o continuísmo monárquico, escravocrata e expansionista contra o qual os próceres Bolívar e San Martín haviam-se batido. Não é de estranhar, em contrapartida, que o Barão do Rio Branco, responsável pela consolidação definitiva das fronteiras brasileiras um século mais tarde, tenha sido um dos poucos heróis populares do país. Por muitas décadas, “descolar” da América Latina e de sua multiplicidade de repúblicas, frequentemente instáveis politicamente e frágeis economicamente, era um objetivo nacional tão intensamente ansiado quanto mal-disfarçado. Nada pior para quem se via como o “país do futuro” do que ter sua capital confundida com Buenos Aires. No momento em que empresas e interesses brasileiros vêm galgando latitudes e conquistando horizontes, muitos ainda arguirão que para tornar-se um global player o Brasil deveria minimizar seus vínculos com vizinhos sem projeção política ou relevância econômica no cenário internacional, países aparentemente condenados à eterna condição de “quintal” dos Estados Unidos. Já nos atuais tempos de globalização, a região passou a ser vista como “canteiro” de matéria prima para o novo pólo dinâmico da indústria mundial, que estaria migrando inexoravelmente em direção à Ásia. Nesse cenário, caberia ao Brasil posicionar-se estrategicamente como um daqueles poucos países que, por sua massa crítica demográfica e escala de produção industrial, poderia escapar a esse modesto destino. O que se vê, no entanto, é algo bem diverso. O Brasil está firmemente engajado em múltiplas iniciativas voltadas para fomentar a integração regional. Hoje, ambiciosos projetos viários encurtam distâncias continentais, esquemas de interconexão energética reforçam uma interdependência natural e instituições supranacionais começam a tornar realidade a retórica secular da solidariedade regional. Como se deu essa metamorfose? Terá o Brasil abandonado sua ambição de desgarrar-se do seu entorno para realizar sua vocação de ator global? Do imperialismo aos três “Ds” A resposta para essa transformação começa, sim, com um sonho de grandeza – mas não do Brasil. A noção de América Latina, incorporando aqui também o Caribe, nasceu em associação à ambição imperial de Napoleão III. Num momento de forte competição expansionista entre as potências europeias, essa expressão foi cunhada para valorizar a presença mundial da França e de sua civilização. O final trágico da aventura de Maximiliano I, no AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 75 México, e o inexorável recuo cultural francês puseram fim a esses grandiosos devaneios. Entretanto, vingou a expressão que Napoleão III ajudou a popularizar. Uma sobrevivência improvável, para não dizer surpreendente, pois pretende qualificar região que jamais se havia imaginado como conformando uma unidade geográfica, étnica e, muito menos, política. Na virada do século XX, prevaleciam na região outras perspectivas geopolíticas. Argentina, Brasil e Chile se viam como potências sul-americanas e disputavam entre si a liderança do continente. Argentina e Brasil também se arvoravam como próceres das grandes causas hemisféricas. O Brasil o fazia, a partir de certo momento, na expectativa de selar uma aliança preferencial com os Estados Unidos. A Argentina, com o objetivo oposto. Já a América Central era comumente enxergada – inclusive por si própria – quase como um protetorado norte-americano. Quanto ao Caribe, não passava de uma dependência colonial, como que a lembrar a todos os demais de um passado recente que ainda buscavam exorcizar. O único elemento verdadeiramente unificador era o fato de a América Latina e Caribe reunir países herdeiros dos impérios europeus que se constituíram ao sul do Rio Grande. Em outras palavras, unia-lhes o fato de serem nações ainda lutando para desvencilhar-se das amarras que os atavam econômica e culturalmente às praças metropolitanas. Nesse sentido, a expressão América Latina foi quase que uma imposição de fora, dentro da melhor prática colonialista. Talvez tenhamos aí uma chave para a persistência da noção de América Latina. Consolida-se em paralelo a consciência, sobretudo a partir do pós- guerra, de que a região vivia uma relação de dependência periférica, seja com as ex-metrópoles, seja com outras nações avançadas. A expressão mais nítida desse sentimento de subordinação foi formulada pioneiramente por Raúl Prebisch, um dos mentores da CEPAL. Arguiu haver tendência, aparentemente inexorável, de deterioração do poder de compra no mercado internacional dos produtos primários, principal fonte de divisas dos países latino-americanos. Em contraste, os bens industrializados, de maior valor agregado, que necessitavam importar dos países desenvolvidos, tornavam- se cada vez mais valorizados e, portanto, inaccessíveis. Esse quadro tornou- se ainda mais dramático ao final da Segunda Guerra Mundial, com a retomada dos fluxos comerciais entre os mercados europeu e norte-americano e suas colônias africanas e asiáticas. A competição dessas exportações primárias com produtos latino-americanos acelerava a depreciação da produção latino- MARCEL BIATO 76 americana. O resultante desequilíbrio nas contas externas, após a curta bonança do período da guerra, pareceria condenar os países latino-americanos a sistemáticas crises de balanço de pagamento, com o inevitável impacto sobre a atividade econômica e, mais particularmente, sobre projetos ambiciosos de industrialização – já então vista como o atalho mais curto para o desenvolvimento. Nascem nesse contexto os famosos três “Ds” do chanceler brasileiro Araújo Castro. Discursando na abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1963, pregou reformas estruturais ao sistema internacional. Somente com o Desarmamento – liberando maciços recursos para financiar a industrialização – e com a Descolonização – trazendo autodeterminação aos povos da África e Ásia – poder-se-ia almejar o Desenvolvimento dos países do agora denominado Terceiro Mundo. Parecia à diplomacia brasileira ser essa a única fórmula capaz de romper o círculo vicioso de dependência periférica, formulado teoricamente por, entre outros, Fernando Henrique Cardoso. Comércio versus desenvolvimento Como então estruturado, o comércio parecia aumentar os desníveis entre países e condenar irremediavelmente os países subdesenvolvidos a assim permanecer. Nasce nesse momento ideia que, décadas mais tarde, desembocaria na criação do G-20, foro negociador dedicado a melhorar os termos de troca das exportações agrícolas dos países já agora denominados em desenvolvimento. A própria demora na fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC) 1 – assim como os limitados recursos à disposição de entidades multilaterais de financiamento – como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, reflete a modéstia dos avanços em direção à criação do que se esperava seria uma Nova Ordem Econômica, capaz de atender às aspirações dos países em desenvolvimento. Não por coincidência, surgem grosso modo nesse período os primeiros movimentos em direção à integração regional. Ficara claro que dos países industrializados do Norte – indiferentemente se do campo socialista ou capitalista – não viriam nem as concessões nem a generosidade almejadas. Caberia aos países do Sul se unirem para exigir reformas. Há claro paralelismo entre o movimento pela descolonização na África e na Ásia e os primeiros passos na América Latina em direção à integração 1 Foi preciso esperar até 1994. AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 77 regional. Caberia aos povos então denominados “subdesenvolvidos” tomar seu destino em suas próprias mãos e deixar de simplesmente esperar respostas e propostas advindas dos países desenvolvidos. A experiência, a partir de 1960, da ALALC e, posteriormente, da ALADI2 contribuiu para aumentar o comércio inter-regional e para preparar os países da região latino-americanos para o processo de globalização que adviria décadas mais tarde. A mera redução de barreiras alfandegárias revelou-se, entretanto, de limitado impacto. Na medida em que não tocou nas condicionantes estruturais da atividade econômica em cada país, a política de fomentar a constituição de uma união aduaneira continental terminou por reproduzir, em certa média, dentro da América Latina a relação assimétrica que já caracterizava as trocas da região como um todo com os países desenvolvidos. Sintomático dessa dinâmica perversa é o fato de que, em momentos de retração do comércio e dos investimentos internacionais – como na atual crise, os fluxos entre os países da América Latina caem em ritmo ainda maior, contribuindo para reforçar – ao invés de minorar – o impacto recessivo. Essa realidade, essa dinâmica espelha uma preocupante constatação. A falta de competitividade e complementaridade produtiva das economias menores frustrava seu principal interesse em aderir aos arranjos comerciais regionais: o acesso prioritário ao mercado consumidor das maiores economias da região. Muitas vezes, vê-se exatamente o contrário – o predomínio avassalador nos mercados menores de empresas e investimentos oriundos das economias maiores. O resultado é a consolidação de um superávit estrutural nas contas comerciais, particularmente do Brasil, com a maioria de seus vizinhos latino-americanos. A “invasão” brasileira nesses mercados acaba por favorecer rancores e temores nacionalistas que militam contra o próprio projeto integracionista. Não estranha, portanto, que o aprofundamento dos mecanismos regionais de integração seja retardado por suspeitas e acusações por parte dos parceiros menores de que apenas as economias maiores do Bloco estariam auferindo os benefícios do acesso privilegiado a um mercado de escala continental. Na verdade, permanecem vigentes para a maioria dos países da região as limitações estruturais já apontadas por Araújo Castro, a saber, falta de acesso à capacitação técnica e tecnológica e aos investimentos necessários à industrialização desenvolvimentista. 2 A Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), lançada em 1960, foi sucedida pela Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) em 1980. MARCEL BIATO 78 Como superar esse ciclo vicioso? Na era da globalização, essa indagação ganha tinturas de especial urgência. A livre circulação de idéias, de bens e tecnologia tornou a todos mais interligados, por força da crescente dependência mútua – para melhor ou pior – em matéria econômica, ambiental e de segurança. Em princípio, isto deveria servir de poderoso incentivo para países e indivíduos buscarem mais cooperação, maximizando os benefícios da interdependência e mitigando seu lado adverso. No entanto, aquelas mesmas forças desencadeadas pela globalização ajudam a exacerbar as disparidades pré-existentes em padrão de vida dentro de países e entre eles, ao mesmo tempo em que magnificam os contrastes sociais e econômicos decorrentes. Afinal de contas, os movimentos de crenças, imagens e pessoas fomentam não apenas admiração e emulação, mas por vezes inveja e frustração. Globalização ou democratização? Da perspectiva de um país em desenvolvimento, esse dilema é especialmente severo. Para a maioria, o preço inevitável para unir-se à economia global que está emergindo pode significar perda considerável de controle e capacidade regulatória soberana sobre amplos espectros de política pública, à medida que se impõe a lógica de um mercado de massa globalmente integrado. No entanto, demandas opostas para reverter a forte redução da presença do Estado marcaram os anos 80 em diante. A subseqüente crise financeira global do fim da década dos 90, que atingiu os países em desenvolvimento com especial virulência, só fez reforçar essas demandas. Calou fundo a percepção do papel insubstituível do Estado no provimento de planejamento estratégico, de políticas econômicas anticíclicas e de serviços públicos de primeira necessidade, sobretudo em momentos de grande turbulência econômico e desassossego social. Na América Latina, mais do que em qualquer outra região, essas forças contraditórias se entrechocaram com contundência. Em nenhuma região o chamado Consenso de Washington foi aplicado com maior vigor e fracassou com maior retumbância. Em nenhuma outra parte houve reação mais vigorosa, na forma de movimentos de democracia popular que expressavam nacionalismo econômico – e especialmente energético – e sentimento anti- globalização. Rechaçou-se a falsa confluência entre a modernização do Estado e sua destituição como instrumento estratégico de formulação e execução de AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 79 políticas públicas. Entendeu-se que fortalecer as instituições capazes de gerar governabilidade transparente e legítima não é a mesma coisa que se submeter de forma acrítica às forças impessoais do mercado. Exige-se que a democracia seja também econômica e social, isto é, que se traduza em bem-estar e prosperidade para todos. Em alguns países, busca-se mesmo a “re-fundação” das instituições nacionais, de forma a coaduná-las ao surgimento na cena política nacional de segmentos sociais antes sem representação. A convocação de Assembleias Constituintes expressa uma confiança fundamental no sistema democrático. Na medida em que as instituições públicas logrem atender às demandas mínimas, sua credibilidade sai fortalecida. A própria América Central vive uma espécie de “sul-americanização“, na medida em que também ali têm assumido governos favoráveis a um maior engajamento do Estado em políticas de promoção de inclusão social. A dinâmica dessas mudanças segue uma trajetória complexa e muitas vezes imprevisível. Podem, num primeiro momento, acirrar tensões que as instituições estão mal-equipadas a absorver. É notável, portanto, que, dos muitos grupos de esquerda que há 20 anos defendiam a recurso às armas, apenas as FARC, na Colômbia, não foram incorporados ao processo democrático. Compatibilizar as forças da globalização e da soberania nacional e popular passa, num aggiornamento da linguagem de Araújo Castro, por um sistema internacional de tomada de decisões que promova o desenvolvimento sustentável global, protegendo direitos adquiridos, mas também respeitando aspirações e realidades emergentes. A crise econômica atual, assim como a ameaça ambiental que vivemos, são apenas manifestações mais óbvias de um realinhamento crucial de forças. A irrupção na cena mundial dos países “emergentes”, que passam a rivalizar política e economicamente com as tradicionais potências industrializadas, dá conotações cada vez mais claras ao desequilíbrio fundamental da sociedade global contemporânea: de um lado, o desejo dos países ricos de preservar um padrão de consumo insustentável e, de outro, a aspiração dos países em desenvolvimento de alcançar níveis equivalentes de bem-estar. As implicações dessa realidade foram suscitadas pelo então Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, em seu relatório “In Larger Freedom”, de 2005. Pela primeira vez num documento oficial, reconheceu explicitamente não se poder garantir a segurança e bem-estar para alguns se não houver desenvolvimento para todos. O desafio para a comunidade internacional está em adequar o sistema internacional a essa transição de poder que, MARCEL BIATO 80 paradoxalmente, termina por atingir mais duramente os setores mais vulneráveis dos próprios países em desenvolvimento. Alguns exemplos, são esses mesmos países os menos responsáveis pelas mudanças climáticas, mas são os mais diretamente atingidos pelas intempéries. Ao mesmo tempo, são os que menos recursos financeiros e tecnológicos dispõem para enfrentá-las. De igual modo, como bem demonstra a atual crise financeira, as nações pobres são as mais duramente atingidas por turbulências financeiras para as quais pouco ou nada contribuíram. Nem por isso estão em condições de influir adequadamente nas determinações do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial, agências cruciais para o encaminhamento da crise. Para não falar no Conselho de Segurança das Nações Unidas, cada vez mais desmoralizado e incapaz de responder ao desafio dos conflitos que hoje dominam as manchetes internacionais. A opção latino-americana Nunca as instituições multilaterais foram tão demandadas. No entanto, vemos que nunca estiveram tão ausentes e incapazes de responder às demandas e ameaças de um mundo em profunda e acelerada transformação. A multiplicação de iniciativas unilaterais ou por meio de grupos auto-selecionados de países motivados por critérios que não são universalmente reconhecidos ou compartilhados contribui para agravar tensões e incertezas. Em meio à crescente interdependência e conectividade, defrontamos o desafio de construir um novo modelo de governabilidade global, centrado em mecanismos atualizados de cooperação e coordenação. Nesse esforço, os países da América Latina e Caribe estão tomando a dianteira. Consolida-se a consciência de que a região necessita projetar-se de forma coesa e unida em defesa de uma agenda de interesses claramente definidos. O Brasil engaja-se nesse esforço a partir de um enfoque pragmático de seus interesses – não de uma fé romântica em ideais distantes dos interesses objetivos do país. A experiência prática tem se incumbido de fazer dissipar a falsa dicotomia entre as aspirações brasileiras de projetar-se como ator global – por força de suas dimensões demográficas e potencialidades econômicas – e o projeto de integração regional no qual está fortemente engajado. Pela escala e competitividade de seu parque produtivo, nenhum país tem mais a ganhar com a criação de um espaço econômico regional integrado do que o Brasil. Demonstração eloquente disso é a presença crescente de empresas e AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 81 produtos brasileiros nos mercados vizinhos. A América Latina já é o primeiro destino para as exportações brasileiras de produtos manufaturados e serviços tecnológicos. Esses empreendedores formam a ponta de lança de uma agressiva estratégia de internacionalização de empresas brasileira, passo indispensável para a inserção competitiva do Brasil na economia globalizada. A construção desse espaço integrado passa necessariamente pela consolidação de uma infra-estrutura de transportes, comunicações e energia que dê real conectividade e, portanto, competitividade à economia regional. Trata-se de superar definitivamente, no plano físico, uma pesada herança de sociedades de costas umas para as outras, voltadas historicamente para as ex-metrópoles. Para viabilizar as obras de infra-estrutura que romperão essa lógica herdada do pacto colonial, estão disponíveis volumes crescentes de financiamento público brasileiro, por meio do BNDES e do Programa Proex do Banco do Brasil. Por outro lado, já estão em curso negociações para a criação de um Banco do Sul, capaz de multiplicar os recursos já disponíveis para esse fim no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e na Corporación Andina de Fomento (CAF). Consolidar esse processo exige, como já referido, que as vantagens de acesso a um mercado consumidor integrado de escala continental possam estender-se a todos. Minorar as enormes assimetrias entre as economias nacionais é o objetivo do Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento da Estrutura Institucional do Mercosul – o FOCEM, constituído para colocar recursos financeiros e capacitação técnica à disposição de empresas de países de menor desenvolvimento relativo. A integração de mercados também passa pela harmonização progressiva dos distintos regimes aduaneiros na região. Já há importantes acordos de complementação comercial entre o Mercosul, o Chile e a Comunidade Andina. Uma nova institucionalidade e o papel do Brasil O trabalho de aprofundamento institucional vai além das esferas econômica e comercial. As dificuldades que a União Europeia vem enfrentando para consolidar seu projeto3 de integração apontam para a importância de evitar-se, também na América Latina, o risco de “déficit 3 A rejeição por referendo popular na Dinamarca do Tratado de Lisboa suspendeu a vigência desse instrumento decisivo para o aprofundamento institucional da União Européia. MARCEL BIATO 82 democrático”. O processo de construção da unidade regional deve dar ao cidadão comum a sensação de dispor de voz ativa nos processos decisórios que afetam sua vida. No âmbito do Mercosul, está-se consolidando conjunto de mecanismos voltados não apenas para o alargamento do Bloco – como o ingresso da Venezuela – mas também para seu aprofundamento, com o Foro Consultivo de Cidades e Regiões, o Fórum Social e, em particular, o Parlamento. Tenciona-se estender progressivamente todas essas iniciativas à esfera da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL, que servirá de guarda-chuva institucional para o conjunto de ações de integração em escala continental sendo postas em prática para realizar o pleno potencial das notáveis vantagens comparativas da região: ausência de sérias tensões de índole étnica, religiosa ou nacionalista; considerável unidade linguístico- cultural; amplos recursos naturais minerais e agrícolas, inclusive um terço da água potável do mundo. Esse arcabouço almeja estimular as condições políticas e institucionais necessárias para reverter, na esfera continental, o distanciamento entre países estruturalmente voltados para parceiros do além-mar, seja as antigas metrópoles seja novos sócios privilegiados dentre os países industrializados. Essa lógica do afastamento – quando não da competição antagônica – entre países vizinhos se expressa de forma especialmente visível em matéria de segurança e defesa4. Assim como é necessário superar barreiras físicas à integração, a construção de uma identidade regional passa pela superação de rivalidades históricas e tensões e desconfianças que desestimulam uma visão comum dos interesses coletivos de região. É nesse contexto que ganha especial relevância a criação recente do Conselho de Defesa. Ele estimulará mecanismos de diálogo e coordenação para encaminhar soluções pacíficas e mutuamente acordadas para situações regionais de conflito. O encaminhamento pacífico da crise que, em meados de 2008, ameaçava levar a Bolívia ao borde de uma guerra 4 Reproduziram-se, no processo de definição de fronteiras dos estados herdeiros do esfacelamento do império espanhol as forças centrífugas herdadas do nexo colonial. O temor permanente de ingerência externa via-se potencializado por uma identidade nacional fragilizada em meio à insegurança de uma elite branca desenraizada e à marginalização de um substrato de massas indígenas e mestiças politicamente não confiáveis. Explica-se assim que, apesar – ou talvez mesmo por causa – de a maioria de vizinhos limítrofes hispano-americanos partilharem estreitas afinidades étnicas, culturais e históricas, o processo de diferenciação das nacionalidades tenha sido tão conflituoso. Isto ajuda a explicar também a ligação entre a questão limítrofe e o processo de consolidação da identidade nacional e, por conseguinte, a importância dos princípios de não intervenção e de intangibilidade de fronteiras consagrados no direito panamericano. AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 83 civil, foi um passo notável nessa direção. Já as deliberações durante a Cúpula do Grupo do Rio, em São Domingo, também em 2008 – posteriormente referendadas pela OEA – evitaram que o episódio de violação fronteiriça envolvendo o Equador e a Colômbia degenerasse em um enfrentamento bélico. A consolidação de uma visão generosa do potencial dos países da região alcançar objetivos comuns, por encima das suspeitas históricas e rivalidades contemporâneas, tem relevância especial para o Brasil. A multiplicação da presença de empresas e investimentos brasileiros nas economias vizinhas tem sido acompanhada, em anos recentes, pela multiplicação de gestos de incômodo e mesmo hostilidade, de conotação frequentemente nacionalista. Em contrapartida, também surgem oportunidades para demonstrar as vantagens da acrescida capacidade de ação e de mobilização que o país hoje detém. Exemplo nesse sentido foi o recente convite do Governo boliviano para o Brasil substituir os Estados Unidos como mercado preferencial para suas exportações de têxteis5. Talvez o mais trunfo de que dispõe o Brasil esteja, no entanto, no campo institucional. Oferece cooperação, entre outros, no combate a doenças e no desenvolvimento agrícola. Mas sua vantagem comparativa está, sobretudo, no campo da modernização do Estado em favor do planejamento de longo prazo para promover crescimento com distribuição de renda. Programas de combate à AIDS, de fomento à agricultura familiar e de inclusão social, como o programa Bolsa Família. A vez da América Central e do Caribe A consolidação de um bloco coeso e integrado sul-americano não exclui uma aproximação com a América Central e Caribe. Pelo contrário, oferece a plataforma para consolidar um espaço integrado em escala ainda maior. Foi esse o sentido da incorporação dos países do Caribe como membros-plenos do Grupo do Rio, mecanismo tradicional de concertação e consulta política da região. Se é verdade que a América Central e Caribe não comparte a mesma coerência geográfica e unidade linguística do continente sul-americano, trás outros trunfos e possibilidades. 5 A recente rescisão do acordo de cooperação entre a Bolívia e os EUA na repressão ao cultivo à coca levou Washington a suspender o acesso privilegiado de exportações têxteis bolivianos ao mercado norte-americano. MARCEL BIATO 84 Numa economia cada vez mais globalizada, esse agrupamento de países dispõe de localização privilegiada para acessar as principais praças comerciais e motores econômicos do século XXI. Trata-se de região situada estrategicamente próxima ao maior mercado do mundo – os Estados Unidos. Já por meio do Canal do Panamá, tem-se acesso em condições vantajosas às economias emergentes da China e do Sudoeste Asiático. Não por acaso a Agência Brasileira de Promoção às Exportações (APEX) abriu no Canal do Panamá um centro distribuidor de produtos. No âmbito energético, o Brasil vem desenvolvendo, em colaboração com os EUA, programas triangulares que permitem a países centro-americanos e caribenhos beneficiarem-se de tecnologia e insumos brasileiros para exportar etanol ao mercado norte-americano. Ao mesmo tempo, esses países incorporam uma fonte energética renovável e barata que os ajudará a reduzir a dependência do petróleo importado. A internacionalização de empresas e investimentos brasileiros na região se dá em vários ramos, como por exemplo, o têxtil. Por sua vez, a Embrapa abrirá um escritório regional para cooperar na melhoria da produtividade e competitividade da produção agropecuária. Como estímulo a essas iniciativas, está em curso a negociação de acordos de associação do Mercosul com o Mercado Comum Centro-Americano e com a Comunidade do Caribe (CARICOM). Expressão concreta do compromisso brasileiro com essa aproximação foi o recente pedido brasileiro para ingressar no Banco Centro-Americano de Integração. Ao mesmo tempo, o Brasil vem aprofundando o diálogo com o CARICOM e com o Sistema de Integração Centro-Americana (SICA). Com o México, o aumento do comércio e dos investimentos bilaterais demonstra que diferenças de regimes comerciais6 não devem constituir uma barreira. Uma parceria no desenvolvimento de tecnologia de prospecção de petróleo a alta profundidade poderá ajudar ambos os países a maximizar os benefícios de suas potencialidades energéticas. Talvez a expressão maior da convicção da importância de a região chamar a si a solução da complexa multiplicidade de interesses e desafios que se apresentam está na decisão brasileira de convocar, em dezembro de 2008, na Bahia, a primeira Cúpula da América Latina e Caribe. Foi a primeira vez que os 33 países se reuniram para discutir uma agenda verdadeiramente 6 O México forma parte do NAFTA, regime de livre comércio congregando também os Estados Unidos e o Canadá. AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 85 regional. O compromisso coletivo em buscar soluções próprias para as questões da região foi sublinhado pela reafirmação do apoio à missão das Nações Unidas no Haiti, composta majoritariamente por latino-americanos. Uma agenda comum e o diálogo com os EUA Talvez o mais importante resultado do encontro tenha sido a declaração de que diante da crise global, a América Latina e Caribe se sairão melhor se unirem esforços. Sobretudo em momento em que se questionam os fundamentos e as instituições do sistema financeiro internacional, a região não poderá defender seus interesses enquanto continuar mero espectador das grandes decisões. Somente identificando interesses compartidos e vantagens comparativas coletivas poderá a região moldar as condições em que se integrará a esse novo mundo em gestação. Em qualquer cenário futuro, Washington seguirá sendo um interlocutor imprescindível. A eleição de Obama suscitou grandes expectativas. A chegada ao poder em Washington do primeiro afro-descendente serve de metáfora para a capacidade de reinvenção e renovação do modelo norte-americano sob o signo da tolerância e diversidade? É essa a pergunta que se fizeram os líderes reunidos em Sauípe, ao avançar propostas inovadoras que desafiam a Administração Obama a deixar para trás uma agenda hemisférica historicamente unilateral e impositiva, centrada no conhecido trinômio: livre comércio, terrorismo e narcotráfico. Nenhum tema será mais definidor das perspectivas de moldar-se um diálogo equilibrado e construtivo do que a normalização plena das relações de Cuba no hemisfério. Foi esse o sentido do recente ingresso, por decisão unânime, de Havana no Grupo do Rio. Investimentos brasileiros estão ajudando a melhorar a infra-estrutura e a competitividade de parque produtivo cubano e, dessa forma, as chances do país incorporar-se, sem maiores traumas econômicos e sociais, à comunidade hemisférica. A suspensão do embargo norte-americano contra Cuba tem uma carga simbólica que muito além da simples superação de uma das últimas confrontações remanescentes da Guerra Fria. Tem a ver com a luta pelo direito à autodeterminação e pelo direito de decidir seu próprio futuro, sem temores de intervenções ou ingerências externas, questão que – como já vimos, marca de forma profunda a história e a psique da região. A consciência da necessidade e do direito de assumir maiores responsabilidades pelo próprio MARCEL BIATO 86 destino está à raiz do amadurecimento institucional que a região vive. Assim deve-se interpretar a proposta do Presidente Calderón, durante a Cúpula de Sauípe, de lançar-se, já em 2010, uma Organização dos Estados Latino- Americanos. Superar a lógica da submissão e da dependência abre caminho para fundar uma verdadeira parceria com os Estados Unidos. A proposta, adiantada pela Secretária de Estado, de um programa hemisférico em matéria de energias renováveis pode ser um bom começo. Abre perspectivas de aprofundar-se a cooperação já existente nesse campo, com benefícios palpáveis em matéria de acesso a mercados e transferência de tecnologia. Não hesitaremos em cobrar essas promessas se o elevado custo de introduzir tecnologias “verdes” for pretexto para Washington abandonar negociações para reduzir sua emissão gases de efeito estufa ou para rever as tarifas alfandegárias que atualmente incidem sobre as exportações de etanol brasileiro. No momento em que a economia global atravessa grave crise, a América Latina e o Caribe esperam dos EUA não iniciativas grandiosas, mas uma disposição de coordenar respostas consensuais. Isto implica, de um lado, que os EUA resistam à tentação de recorrer ao protecionismo para proteger mercados e empregos locais. De outro lado, significa evitar adotar programa de socorro financeiro doméstico que “sugue” todo o crédito disponível nos mercados internacionais, em prejuízo das necessidades de financiamento das economias em desenvolvimento. Exigiremos que a demanda norte-americana por estupefacientes, e não apenas sua produção na América Latina – seja combatida com vigor e tenacidade. No tratamento de imigrantes em condição irregular, demandaremos respeito a princípios elementares de direitos humanos. Também devemos insistir em que programas regionais de cooperação e abertura comercial – e não a construção de um muro sobre o Rio Grande – sejam nossa resposta coletiva à aspiração de muitos latino-americanos a emprego e vida dignos. Apoiamos o compromisso do Presidente Obama de recuperar o papel do Estado como agente de promoção de políticas públicas estratégicas, ainda mais neste momento em que a globalização mostra sua face mais sinistra. Estaremos prontos a colaborar em ações anticíclicas, sobretudo nos setores- chave de saúde e educação, para proteger empregos e os mais vulneráveis. A V Cúpula das Américas, a realizar-se em abril próximo, em Trinidad e Tobago, será um primeiro e decisivo teste dessa determinação de nossa região de não esperar, mas de avançar propostas concretas para uma aliança AMÉRICA LATINA E CARIBE: NOVA FRONTEIRA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 87 hemisférica que reconheça os avanços econômicos e sociais da região, assim como o imperativo do diálogo e da cooperação em um mundo cada vez mais interdependente. Conclusão Na tentativa de realizar o sonho de um Novo Mundo na América tropical, os próceres da independência latino-americana buscaram regulamentar todos os aspectos das relações regionais. Desde amplos acordos comerciais até a uniformização do direito público, passando por mecanismos de conciliação e arbitramento obrigatórios de litígios. Permaneceu, no entanto, no papel o sonho de uma “pátria grande” hispano-americana, capaz de cristalizar numa unidade política panamericana os anseios libertários e proto-democráticos das nações que emergiam da sombra dos impérios ibero-americanos. Hoje, o conceito de América Latina e Caribe exprime sobretudo a convicção de que somos unidos pela busca do desenvolvimento sustentável com inclusão social, pela valorização de nossa diversidade e pela certeza de que podemos contribuir decisivamente para moldar neste hemisfério um espaço de convivência pacífica e prosperidade comum. Isto não invalida que cada país identifique formas próprias e historicamente condicionadas de alcançar esses alvos nacionais e regionais. Superamos uma visão mercantilista do processo de integração para compreender que a resposta está em forjar uma moldura institucional que traga transparência e previsibilidade às ações coletivas, mas também comparta experiências, capacitações e recursos. No momento em que a globalização cobra solidariedade e coordenação de todos, a América Latina e Caribe estão dando um exemplo e se credenciando para opinar na construção de uma nova ordem mais equitativa. É essa a convicção que motiva o Presidente Lula a afirmar que de nada adianta ao Brasil avançar e progredir se estiver cercado por vizinhos atrasados e ressentidos. Assim, mais do que nunca a América Latina e Caribe continuam a ser a primeira fronteira do Brasil e a linha de frente de sua política externa. 89 Uma Europa mais Transparente Franklin Trein* 1. Breve introdução histórica Não é uma tarefa simples conhecer o processo histórico que vem sendo cumprido pelo demorado e complexo movimento que constitui a União Europeia. A integração entre um pequeno grupo de países do Velho Continente, ao ter sido iniciada em um período de recuperação da grave crise econômica, social e política em que se encontrava a Europa no final da Segunda Guerra, estabeleceu princípios e metas que se tornaram rapidamente insuficientes para dar respostas aos desafios impostos pela construção de um destino comum entre Estados e Nações. Naquele momento, quando foram retomadas as desgastadas idéias de unir os europeus sob um mesmo projeto de desenvolvimento, as relações entre as sociedades nacionais europeias estavam marcadas profundamente pelos conflitos, que ao longo de séculos, levaram a sucessivas destruições de parte a parte. A paz era a recompensa de todos os sacrifícios e das intermináveis negociações que deviam conduzir ao estabelecimento de uma confiança mútua, capaz de fazer convergir os esforços de reconstrução das economias e das sociedades nacionais, destruídas e destroçadas pela Guerra. Assinado pelos seis países fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço1 – *Coordenador do Programa de Estudos Europeus da UFRJ. 1 Os seis países signatários do Tratado de Paris são: Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e República Federal da Alemanha. FRANKLIN TREIN 90 CECA –, em 18 de abril de 1951, o Tratado de Paris tinha objetivos bastante limitados. Contudo, através da habilidosa escolha do carvão e do aço, insumos indispensáveis à guerra, postos sob a supervisão de uma Alta Autoridade completamente independente dos governos nacionais, ele serviu de ponto de partida seguro para o processo de integração que se iniciava. Os Tratados de Roma (25 de março de 1957) reuniram os mesmos seis signatários do Tratado de Paris, estabelecendo a Comunidade Econômica Europeia – CEE – e a Comunidade Europeia da Energia Atômica – EURATOM. Aqueles dois Tratados continham projetos muito mais abrangentes e audaciosos do que o primeiro passo dado em 1951. Eles incluíam dimensões importantes das economias nacionais de cada Estado membro, influenciando diretamente o cotidiano das sociedades envolvidas. Os Tratados de Roma, a exemplo do Tratado de Paris, continuavam a apostar numa integração que se apoiava principalmente nas relações econômicas. Os dois projetos de integração de caráter eminentemente político – a Comunidade Europeia de Defesa2 – CED – e a Comunidade Política Europeia – CPE – não tiveram seguimento depois que a Assembleia Nacional francesa recusou-se a ratificar o Tratado que criava a CED em 30 de agosto de 1954. Apesar de todos os obstáculos enfrentados e dificuldades a serem superadas, desde os primeiros anos de sua implantação o êxito das três Comunidades Europeias tornou-se sensível mesmo para aqueles que viam a integração com grande ceticismo. Talvez, o melhor exemplo neste sentido seja a mudança ocorrida na posição do Reino Unido a respeito de sua participação naqueles projetos. Depois de recusar por reiteradas vezes o convite para ser signatário do Tratado de Paris e dos Tratados de Roma, seguindo o exemplo da Irlanda, que apresentou a Bruxelas o seu pedido de adesão à Comunidade Econômica Europeia em 31 de julho de 1961, Londres formalizou o seu primeiro pedido para fazer parte da CEE em 9 de agosto de 1961. O mesmo fez a Dinamarca no dia seguinte3. O desenvolvimento positivo da integração comprovava o acerto das decisões de ampliação das relações econômicas dos Estados membros, ao 2 O Tratado que criava a Comunidade Europeia de defesa foi assinado no dia 27 de maio de 1952. Foram seus signatários: Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e República Federal da Alemanha. Este último país devia observar restrições quanto ao armamento que estaria à disposição de suas Forças Armadas. 3 A Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido passaram a integrar a Comunidade Europeia no dia 1o de janeiro de 1973. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 91 mesmo tempo em que indicava a necessidade de que a integração fosse ampliada para as relações políticas. Pois, sem que isto acontecesse, a economia encontraria rapidamente os seus limites como fator de aproximação entre as sociedades nacionais envolvidas no processo. Assim, Christian Fouchet4 recebeu a tarefa de coordenar o grupo de trabalho encarregado de redigir um projeto de União Política da Europa. Ainda que o Plano Fouchet5, como foi chamado aquele projeto, não tenha produzido ao resultado esperado, ele serviu para marcar a necessidade do debate em torno da integração política da Europa. Pouco antes de ingressar em um momento de grandes dificuldades em consequência da crise que se estabeleceu na economia mundial no início da década de 70, na reunião de cúpula de Haia – 1o e 2 de dezembro de 1969 – as Comunidades Europeias decidiram a dar um passo importante no sentido de atingir metas correspondentes a uma maior integração. Definiram então como objetivo a realização gradual de uma União Econômica e Monetária – UEM – até 1980. O plano para implantação da UEM, também conhecido como Plano Werner6, foi apresentado pela Comissão Europeia ao Conselho Europeu em 8 de outubro de 1970. Ele definia, entre outras coisas, um programa de convergência das políticas macro-econômicas e, em especial, um rígido controle sobre as taxas de câmbio entre as moedas dos Estados membros, o que deu origem ao que ficou conhecido como a “serpente monetária” 7. A condução de Sicco Leendert Mansholt8, então Comissário para a Agricultura, ao cargo de Presidente da Comissão Europeia – 22 de março de 1972 – marcou a radicalização de um importante debate político- econômico em Bruxelas. A discussão liderada por Mansholt, que envolveu não só os membros da Comissão, levou ao estabelecimento das bases daquela que, seja pela sua complexidade, seja pelos seus custos para o conjunto dos 4 Christian Fouchet (1911 – 1974), diplomata francês, estudou direito e economia política. Foi deputado na Assembleia Nacional e ministro de Estado nos Gabinetes de Pierre Mendes France e Georges Pompidou. 5 O Plano Fouchet foi apresentado na reunião de Chefes de Estado e de Governo dos Estados membros da Comunidade Econômica Europeia em julho de 1961, em Bonn. 6 Pierre Werner (1913 – 2002), embora nascido na França, era cidadão luxemburguês. Foi Ministro de Finanças e da Cultura e por duas vezes Primeiro Ministro do Ducado de Luxemburgo. 7 A “serpente monetária” foi um sistema concebido para controlar as relações cambiais entre as moedas dos países da CEE dentro de um regime mais estrito do que o então existente. 8 Sicco Leendert Mansholt (1908 – 1995), político holandês, membro do Partido Social Democrata dos Trabalhadores. Mansholt foi Presidente da Comissão Européia em 1972 e 1973. FRANKLIN TREIN 92 Estados membros, se tornaria a política de integração mais expressiva por um período de vários anos: a Política Agrícola Comum – PAC. A PAC converteu-se em um paradigma da integração, tanto pelos efeitos internos ao mercado comunitário, como por suas consequências para as relações bilaterais e multilaterais da CEE. Rumo à união econômica e monetária, como base indispensável ao mercado único, um momento importante na agenda de integração foi a adoção em 13 de março de 1979 da unidade monetária europeia, o “ecu”9; uma moeda contábil, de referência para o orçamento e prestação de contas de toda as instância comunitárias e ainda disponível para as contas públicas e privadas dos Estados membros. Naquele mesmo ano, nos dias 7 a 10 de junho, os eleitores dos Estados membros elegeram, pela primeira vez pelo voto direto, os seus eurodeputados, ou seja, os seus representantes no Parlamento Europeu em Estrasburgo10. Aquele acontecimento teve um extraordinário valor, não somente no sentido simbólico da construção de uma comunidade de nações, mas na dimensão prática de consolidação de uma infra-estrutura democrática capaz de discutir e decidir coletivamente sobre o destino de milhões de europeus irmanados pelo diálogo, pela paz e pela vontade de um desenvolvimento solidário. As sucessivas elevações do preço do petróleo ao longo da década de 70 e a consequente desordem das contas públicas, principalmente dos países em desenvolvimento, levaram a economia mundial a uma crise sem precedentes no pós- Guerra. Assim, no início dos anos 80 a integração europeia enfrentou grandes problemas e passou a ser vista com enorme ceticismo pela opinião pública e mesmo por expressivas lideranças políticas da Europa. Para transpor o horizonte negativo que se abatia sobre a Comunidade, em 6 de janeiro de 1981, o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha Hans-Dietrich Genscher11 apresentou em uma reunião em Stuttgart o que foi chamado de “Apelo a Epifania”. Em seu discurso o ministro alemão preconizava uma retomada urgente da cooperação política entre os dez Estados membros. Pouco depois, no dia 28 de janeiro daquele mesmo ano, em Florença, Emilio 9 O ecu foi substituído pelo euro em 1o de janeiro de 1999. 10 O Parlamento Europeu se reuniu pela primeira vez em março de 1958, em Estrasburgo. Os 142 eurodeputados que ali compareceram representavam os Parlamentos nacionais dos Estados membros. 11 Hans-Dietrich Genscher (1927 - ) estudou economia e direito, foi deputado no Parlamento Federal alemão, Ministro do Interior e depois Ministro de Relações Exteriores da Alemanha entre 1974 e 1992. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 93 Colombo, Ministro de Relações Exteriores da Itália, retomava as palavras de seu colega alemão para conclamar a todos os países comunitários a um esforço sem par no sentido da integração política. Aqueles discursos somados deram nascimento a um programa de trabalho que ficou conhecido como Plano Genscher-Colombo, apresentado ao Conselho Europeu na reunião de cúpula realizada em Londres nos dias 26 e 27 de novembro de 1981. O Plano Genscher-Colombo tornou-se assim precursor do Ato Único Europeu. Naquele documento – assinado em 17 e 28 de fevereiro de 1986 em Luxemburgo e em Haia, respectivamente, que tem o escopo de um Tratado – pela primeira vez os europeus declaram a intenção de construir juntos uma União Europeia. Neste sentido, o Ato Único define as modificações institucionais a serem empreendidas, trata do alargamento das competências comunitárias, examina a cooperação política europeia com terceiros países, estabelece as condições de construção de um espaço social europeu12 e cria um programa de pesquisa científica amplo e acessível a todos os Estados membros. A partir da assinatura do Ato Único, superado o que ficou conhecido como o euroceticismo, o processo de integração retomou seu curso positivo. O Relatório Delors13, apresentado em 12 de abril de 1989, cuidou da superação de importantes obstáculos que dificultavam o avanço da União Econômica e Monetária. Em poucas palavras, Jaques Delors recuperou o que já havia sido estabelecido pelo Plano Werner em 1970. Porém, reiterou a necessidade da convertibilidade completa e irreversível das moedas entre os Estados membros, da completa liberação do movimento de capitais, da fixação de paridade entre as moedas europeias e, em conclusão, asseverou a necessidade da adoção de uma moeda única. A União Econômica e Monetária proposta por Delors deveria ser realizada em três etapas. A primeira se resumia a concluir a construção do mercado único, o que implicava, entre outras coisas, que todas as moedas aderissem ao mecanismo de trocas do Sistema Monetário Europeu – SME. O segundo momento teria como principal tarefa estabelecer um Sistema Europeu de Bancos Centrais – SEBC – que coexistiria 12 Ao tratar da livre circulação de pessoas entre os Estados membros, como um princípio fundamental da União Europeia, o Ato Único Europeu reforça as decisões e os parâmetros contidos no Acordo de Schenguen, entre a Alemanha, Bélgica, França Holanda e Luxemburgo, de 14 de junho de 1985, válidos para o controle da circulação de pessoas sobre as fronteiras dos países signatários. 13 Jacques Delors (1925 - ) estudou economia, foi Ministro de Economia e Finanças da França, Presidente da Comissão Européia por dez anos – 1985 a 1995 –, é membro do Partido Socialista. FRANKLIN TREIN 94 com os Bancos Centrais nacionais dos Estados membros. Um Instituto Monetário Europeu – IME – coordenaria as decisões coletivas e cuidaria da definição da estrutura do futuro Banco Central Europeu - BCE. Na terceira e última etapa haveria a transferência da competência das políticas monetárias da esfera nacional dos Estados membros para a competência da União e, dentro do possível, a adoção de uma moeda única em substituição as moedas nacionais. As autoridades comunitárias e, entre elas principalmente a Comissão Europeia, manifestaram em muitas ocasiões, o convencimento de que a solução dos problemas da integração estava no avanço do processo e nunca num retorno às condições anteriores. Movidos por esta percepção, em 15 de novembro de 1990, em Roma, tiveram lugar duas Conferências Intergovernamentais. Uma dedicada a União Econômica e Monetária, a outra voltada para a União Política dos europeus. Em última instância, os debates voltados para a União Econômica e Monetária concluíram que no campo econômico a união consistiria na coordenação das políticas nacionais pelo Conselho de Ministros de Economia e Finanças, permanecendo, contudo, com os Estados membros a responsabilidade por suas respectivas políticas econômicas; já no campo monetário a união se completaria com a adoção de uma moeda única sob a autoridade de um Banco Central Europeu – BCE. Aquela era mais uma das muitas rodadas de discussão ocorrida entre os representantes dos doze Estados membros, mas foi, provavelmente, a que tratou de forma mais direta e com maiores consequências das questões que permitiram chegar a um acordo sobre o futuro da integração na forma do Tratado de Maastricht. Elaborado ao longo de pouco menos de dois anos o Tratado sobre a União Europeia14 recolhe um dos resultados mais positivos e, por isso mesmo, dos mais expressivos da vontade e da capacidade daqueles que, mesmo diante dos maiores e mais difíceis obstáculos, nunca desistiram da integração. Entre 1986 e 1992 a Comunidade Internacional em geral e a Europa em particular foram sacudidas por acontecimentos que mudaram a história do século XX. A crise que envolveu a União Soviética e todo o seu entorno 14 Tratado sobre a União Europeia e não Tratado da União Europeia. Esta pequena diferença, não percebida por muitos é, no entanto, de grande significado. Ela indica que o documento assinado em Maastricht não pretende ser definitivo nas definições sobre a União Europeia, senão que, muito antes, encaminhar o processo para um novo patamar no qual a ideia de uma união dos europeus possa ser discutida e construída em bases mais sólidas e abrangentes. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 95 geopolítico, marcada, principalmente, pela queda do muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, e que culminou com a dissolução formal da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 8 de dezembro de 1991, significou um desafio para Bruxelas e para todas as autoridades nacionais dos Estados membros. Naquele momento a Europa vivia numa realidade para o qual não havia sido elaborada qualquer previsão, nem política e nem teórica. Nos Bálcãs15, a partir de 1989, a rápida desintegração da República Federal da Iugoslávia acrescentava problemas de dimensões incalculáveis a já sobrecarregada agenda dos principais órgãos da Comunidade Europeia: a Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu. As decisões impunham-se sem dar tempo para reflexões mais profundas ou demoradas. O melhor exemplo das tensões em que se viram submersos, além da Comissão Europeia, todos os governos nacionais da Europa comunitária foi, provavelmente, aquele produzido pelas intensas negociações que levaram à decisão de reunificação da Alemanha em 9 de agosto de 1990. Dois países signatários dos Tratados fundacionais, ou seja, aqueles que intituiram as Comunidades Europeias, Itália e França não só não apoiaram a condução dada por Bonn às negociações com Berlin Oriental e com Moscou, como, nas palavras do presidente francês, François Mitterrand16, criticaram frontalmente a perspectiva de uma Alemanha restaurada em seu território e população correspondendo ao período anterior à Segunda Guerra Mundial, ou seja, de uma Alemanha reconduzida à condição de maior país da Europa. As discussões sobre a formulação do Tratado de Maastricht enfrentaram inúmeros problemas, uma vez que a integração devia ser levada a uma perspectiva realmente inovadora. A continuidade do processo de integração exigia rupturas e cobrava a ousadia de trazer para o núcleo central da união entre os europeus uma convergência política, tentada tantas vezes no passado e, sabidamente, com tão poucos êxitos. O modo de expressar a centralidade da união política era vista por muitos negociadores na forma de definir as 15 A crise nos Bálcãs, por sua extensão e complexidade foi o maior desafio enfrentado pela União Europeia em toda a sua História. A desintegração da Iugoslávia, uma Federação de Estados nacionais com relativa autonomia, que manteve a região em condições de cooperação razoáveis entre 1945 e o início dos anos 80, significou a quebra do período de paz mais longo conhecido pela Europa. Os conflitos políticos, étnicos, religiosos e culturais naquela região mostraram a Bruxelas as suas limitações como ator na Comunidade Internacional enquanto a UE não for capaz de falar com uma só voz política e de respaldar suas decisões com uma força militar européia de dissuasão à altura de suas dimensões econômicas, geográficas e demográficas. 16 François Miterrand (1916 – 1996) foi Presidente da França entre 1981 e 1995. FRANKLIN TREIN 96 bases de sustentação da União Europeia. Por isto mesmo, talvez, dias e noites de discussões ininterruptas não foram suficientes para produzir o consenso da unidade. As maiores dificuldades encontradas diziam respeito às questões de defesa e de política social. O Reino Unido, como sempre, resistiu a toda e qualquer formulação que pudesse ser interpretada como cessão de soberania em suas decisões políticas e exigiu que se mantivesse de forma muito explicita a distância entre as competências comunitárias e as competências de simples cooperação bilateral e multilateral entre os Estados membros. Esgotada toda a pauta de negociações e pressionados por uma conjuntura interna à Comissão Europeia, e externa, relativa à opinião pública dos europeus, o consenso possível só foi alcançado em 17 de abril de 1991, na base de um projeto de tratado que se sustentava em três pilares. Aquele era um resultado que deixava evidente que os partidários da unidade haviam sido derrotados. O primeiro pilar estava representado pela Comunidade Europeia, o segundo pela política estrangeira e de segurança comum – PESC – e o terceiro pela cooperação nos assuntos dos negócios do interior e da justiça. Havia uma clara dificuldade, os dois primeiros pilares são de natureza comunitária e o terceiro intergovernamental17. De qualquer forma, o primeiro pilar, ao estar representado pela Comunidade Europeia e não pela Comunidade Econômica Europeia, ao excluir o adjetivo “econômica”, deixou marcado que a integração deixava de ser une affaire de marché. O Tratado sobre a União Europeia foi assinado em Maastricht em 7 de fevereiro de 1992 e, após grandes dificuldades para ser ratificado pelos países comunitários, entrou em vigor em 1o de novembro de 1993. A Europa julgava superada uma fase importante e difícil de sua história e declarava-se preparada para seguir ampliando o número de seus participantes ao abrir espaço para novos Estados membros. Porém, reconhecia que em prazo não muito distante deveria voltar a ocupar-se da definição de sua estrutura institucional, sem o que não seria possível seguir avançando com a integração18. 17 Sendo correto se entender que questões comunitárias são questões interestatais, evoluindo, em muitos casos, para um nível supraestatal, então é permitido dizer que um dos problemas mais centrais do processo de integração dos europeus é o de realizar a transição das relações intergovernamentais para as relações comunitárias. Este movimento terá sempre como pressuposto a perspectiva não de cessão de soberania, mas de ampliação da soberania como soberania compartilhada. 18 O Tratado de Maastricht estabeleceu em seu artigo N que: “Em 1996 será convocada uma Conferência de representantes dos governos dos Estados membros para analisar, de acordo com os objetivos enunciados nos artigos A e B das Disposições Comuns, as disposições do presente Tratado em relação às quais está prevista a revisão.” UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 97 A Conferência Intergovernamental – CIG – de 29 de março de 1996, em Turim, deu início a revisão do Tratado sobre a União Europeia no seu todo e de alguns pontos presentes nos Tratados fundacionais. A CIG cuidou especialmente das questões que se mostravam mais sensíveis diante da opinião pública. Assim, receberam destaque problemas relacionados a uma maior transparência de toda a infra-estrutura comunitária, seu funcinamento e a participação democrática em suas decisões. Também foram consideradas as condições necessárias a ampliação do espaço de liberdade, segurança e justiça para os cidadão dentro da UE. A política externa e de segurança comum foi reforçada em seus princípios e objetivos. Eram todos temas recorrentes das Conferências Intergovernamentais, que naquele momento só estavam recebendo um tratamento especial. Porém, um novo tema se acrescentava àqueles com grande urgência. Era o que tratava das condições de alargamento da UE, com a hipótese de admissão de um número expressivos de países da Europa Central e do Leste e ainda Malta e Chipre19. A perspectiva das dificuldades de administrar tantos Estados nacionais dentro de uma mesma comunidade, a ser formada por sociedades com histórias, culturas, línguas, religiões, etnias tão diversas, sugeria ainda mais um tema: a possibilidade de se instituir uma integração a velocidades diversas, ou como se chamou em muitas oportunidades anteriores, uma Europa de geometria variável. As questões relativas ao Acordo de Schenguen20 e a posição especial do Reino Unido de rejeição das políticas sociais adotadas pela União Europeia, paricularmente a partir do Tratado de Maasticht, contribuiram muito para os resultados pouco expressivos obtidos em Amsterdam. De fato, o Tratado de Amsterdam ficou bastante limitado nas questões institucionais em geral e na criação de novos instrumentos políticos e jurídicos que pudessem intervir positivamente nas negociações que levariam à ampliação do número de 19O ingresso de Chipre na União Europeia, como é de amplo conhecimento, por sua situação complexa, exigiu grande habilidade política das autoridades de Bruxelas. Aquela pequena ilha do Mediterrâneo, habitada por duas comunidades, uma greco-cipriota, ao Sul, e outra turco-cipriota, ao Norte, é só mais uma herdeira dos malefícios deixados pelo colonialismo inglês em todos os lugares por onde passou. Atualmente, com o nome de República de Chipre, os greco-cipriotas, que formaram um país autônomo e independente, reconhecido como legítimo pela Comunidade Internacional desde 1992, participam como mais um Estado membro da UE. 20 O Acordo de Schenguen é uma convenção entre os países da EU, com exceção do Reino Unido e da Irlanda, pela qual são definidas as condições da livre circulação de pessoas no espaço geográfico dos países signatários. O Acordo foi assinado em 14 de julho de 1985, tendo, originalmente, a participação de cinco países: Alemanha Bélgica, França, Holanda e Luxemburgo. FRANKLIN TREIN 98 estados membros da UE. Assinado em 2 de outubro de 1977, o Tratado entrou em vigor em 1o de janeiro de 1999. O alargamento da União Europeia, que teve inicio no começo dos anos 90, pôs em evidência a necessidade de novas bases para a integração, o que também pode ser visto como as limitações das instituções comunitárias para abrigar uma diversidade tão grande de países. Pressionados pelo debate público sobre a ampliação das fronteiras da UE, várias lideranças europeia romperam o silêncio e passaram a tomar parte ativa nas discussões. De maneira geral foram vozes que falaram em favor de uma Federação de Estados nacionais, na qual deveria ser possível conciliar interesses comuns a todos e interesses individuais de cada país. Entre as principais personalidades que se manifestaram estava Helmut Schmidt21, ex-chanceler federal alemão, Valéry Giscard d’Estaing22, antigo presidente francês e Jaques Delors, aquele que permaneceu por mais tempo na presidência da Comissão Europeia. Mas coube ao então Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Joschka Fischer23, em uma conferência na Universidade Humboldt, em Berlim, em 12 de maio de 2000, expressar oficialmente e com todas as letras qual seria o formato de uma Federação para a Europa. Guardadas as diferenças, a estrutura federativa da Europa, na proposta de Fischer, era muito parecida com a da República Federal da Alemanha, preservando-se para os Estados nacionais, evidentemente, muito mais autonomia do que dispõem os Länder na Federação Alemã. A resposta francesa ao desafio de criação de um Federação de Estados Europeus veio nas palavras do Presidente Jaques Chirac24, que em um discurso no Bundestag – Parlamento Alemão, declarou aceitar a formação de um grupo pioneiro franco-alemão, aberto à adesões, com a finalidade de impulsionar a integração, mas que não estava de acordo com qualquer forma de superestado. É dispensável dizer que a reação dos britânicos aos termos daquele debate foi de enfática rejeição. 21 Helmut Schmidt (1918 - ) estudou economia, foi governador da cidade-estado de Hamburgo, deputado no Parlamento Federal alemão, Ministro de Defesa, Ministro de Finanças e Primeiro Ministro de 1974 a 1982. 22 Valéry Giscard d’Estaing (1926 - ) nasceu em Koblenz, Alemanha, uma cidade situada na foz de rio Mosel junto ao rio Reno. Cidadão francês, ele foi Ministro de Economia e Finança e mais tarde presidente da França, de maio de 1974 a maio de 1981. 23 Joseph Martin Fischer – “Joschka”(1948 - ) foi Ministro de Relações Exteriores da Alemanha de 1998 a 2005. 24 Jacques Chirac (1932 - ) estudou na Escola Nacional de Administração, foi Ministro da Agricultura, Primeiro Ministro e Presidente da França. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 99 Se o debate sobre uma reforma profunda na estrutura da União Europeia se mostrava impossível, a realidade dos fatos não economizava evidências de que algo deveria ser feito, sob pena de se instaurar uma crise imprevisível, capaz de comprometer todo o futuro da integração. Foi em meio a uma atmosfera de grande tensão, a exigir soluções urgentes e de grande envergadura, que se realizou a Conferência Intergovernamental de Nice, nos dias 7, 8 e 9 de Dezembro de 2000. A mais longa e talvez mais difícil reunião do Conselho Europeu até aquela data. As divergências entre as autoridade presentes sobre a reforma das instituições pareciam instransponíveis. O exame da agenda cumprida pela CIG de Nice permite algumas observações indispensáveis ao entendimento do processo que se inaugura com a disposição da UE de ampliar o número de seus Estados membros, passando de quinze para vinte e sete em um breve transcurso de tempo. Em primeiro lugar é possível identificar que, mesmo diante de tantas divergências, no âmbito das questões jurídicas, foi relativamente fácil chegar a um consenso sobre a reforma proposta para o sistema jurisdicional comunitário, com o propósito de evitar o crescimento descontrolado do número de demandas levadas à Côrte de Justiça e ao Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias em Luxemburgo. O que se propôs como solução foi a criação de Câmaras Juridicionais adjuntas ao Tribunal de Primeira Instância, em condições de dar soluções aos processos sem a necessidade da intervenção direta daquela Côrte e do Tribunal. Outra questão que exigia uma solução ou pelo menos estruturas mais condizentes com uma comunidades ampliada para quase três dezenas de membros era o próprio sistema comunitário. Para aquele momento o sistema comunitário podia ser resumido às atribuições do Presidente da Comissão Europeia e aos mecanismos de cooperação entre os Estados membros. A prática havia demonstrado que a autoridade do Presidente da Comissão deveria ser sensivelmente reforçada, sob pena de graves prejuízos nas tomadas de decisões e suas implementações. Após muitos debates, ficou estabelecido que o Presidente passava a dividir suas atribuições com os demais Comissários segundo seus critérios e poderia remanejar aquelas responsabilidades, chegando até mesmo ao caso de pedir a demissão de um integrante da Comissão. Ao Presidente foi dada ainda a competência de indicar seus Vice- Presidentes. A cooperação entre os Estados membros envolvia problemas ainda mais difíceis para a construção de um consenso. O tratado de Amsterdam havia FRANKLIN TREIN 100 deixado aberta a hipótese de certos Estados, em comum acordo com os demais, estabelecerem processos mais acelerados de integração bilateral ou mesmo multilateral, sem que isto implicasse na participação de todos os Estados membros. Foi o que tomou o nome de cooperação reforçada25. Porém, as restrições levantadas por aqueles que discordavam dessa solução acabaram por impedir, naquele momento, qualquer ação nesse sentido. Ao término de muito esforço o Conselho de Nice conseguiu progressos significativos. Ficou estabelecido que a cooperação reforçada, ainda que com restrições e procedimentos estritos, poderia ser praticada nos assuntos do primeiro e terceiro pilares do Tratado sobre a União Europeia, ou seja, nas questões comunitárias e referentes à justiça e à problemas internos, respectivamente, mas por força das objeções levantadas pelo Reino Unido, Irlanda e Suécia não poderia se praticada nos assuntos do segundo pilar, isto é, aquele que diz respeito à PESC. A composição da Comissão Europeia foi outro tema que gerou grandes debates. A lógica aplicada até então – dois comissários para os países maiores e um para os menores, assegurando pelo menos um comissário para cada Estado membro – deveria ser mudada, sob pena de aquele órgão se tornar completamente inoperante em suas decisões. Não foi possível qualquer forma de solução e o problema foi postergado para um momento futuro, quando a UE já tivesse assimilado todos os países candidatos a integrá-la. Ao revisar questões pendentes de reuniões anteriores da CIG o Conselho de Nice teve o cuidado de buscar temas que permitissem algum consenso sem as intermináveis discussões ocorridas em oportunidades anteriores que acabavam bloqueando o avanço do processo de integração. Assim puderam ser tratados os seguintes problemas: o acordo sobre o estatuto das sociedades anônimas europeias operando em mais de um Estado membro; as medidas necessárias ao reforço da segurança marítima; a criação de uma autoridade europeia com funções consultivas para cuidar dos problemas dos alimentos em geral; uma agenda social para a Europa com clara definição de seu escopo; o reforço do espaço dito de liberdade, segurança e justiça pelo reconhecimento mútuo das decisões judiciais; a adoção de um plano de ação para estimular a mobilidade de estudantes, professores e pesquisadores entre os Estados membros; uma declaração sobre o esporte, buscando evitar a forte interferência do mercado nas atividades esportivas. 25 A importância da chamada “cooperação reforçada” para a integração fez com que o Tratado de Lisboa tenha dedicado um Título inteiro, o IV, a definição de suas condições, finalidades e objetivos. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 101 A perspectiva de ampliação do número de participantes do processo de integração impunha um problema ao Parlamento Europeu que exigia urgente solução. O Tratado de Amsterdam havia estabelecido um número máximo de eurodeputados – 700 – que, se mantidas as regras vigentes de composição do Parlamento para a União Europeia com 27 Estados membros, seria ultrpassado, chegaria a 732. A solução não satisfez a todos, mas obteve um consenso provisório26. O que talvez tenha sido mais relevante naquele momento foi a decisão de ampliar a competência do Parlamento, e com isso reforçar as suas atribuições legislativas. As regras para as decisões do Conselho Europeu também foram objeto de discussão. O objetivo era tornar aquele órgão mais ágil e fugir da facilidade do veto individual ou mesmo de uma pequena minoria. Os avanços foram difíceis. Em consequência o Tratado de Nice tornou ainda mais complexa as discussões no âmbito do Conselho, pois as deliberações, para serem válidas, devem contar com a maioria qualificada de votos, o que significa a maioria numérica referente aos Estados membros e ainda representar a maioria da população da União Europeia. Resumidamente, se em decorrência das decisões que puderam ser tomadas na CIG de Nice o Tratado, assinado em 26 de fevereiro de 2001, criou condições para o alargamento, ao mesmo tempo deixou claro, mais uma vez, a insuficiência dos mecanismos de negociação da própria CIG. De qualquer forma, para evitar problemas ainda mais graves, ficou definido e foi cumprida a data da entrada em vigor do Tratado de Nice: 1o de fevereiro de 2003. 2. A Convenção e o futuro da União Europeia As limitações do tratado de Nice impuseram, já nos meses seguintes a sua assinatura, a tomada de medidas urgentes relacionadas à reforma do conjunto das instituições comunitárias. Deste modo, o Conselho Europeu reunido em Laeken, em 15 de dezembro de 2001, decidiu convocar uma Convenção sobre o futuro da Europa que, em primeiro lugar, deveria elaborar 26 Na intenção de resolver o problema do número de eurodeputados no Parlamento Europeu e a distribuição da representação por país, a ata de adesão da Bulgária e da Romênia, assinada em 25 de abril de 2005, estabeleceu em seu artigo 9o que O Parlamento não teria mais do que 736 cadeiras. Naquele momento também ficou decidido que haverá uma nova repartição da representação por país a partir do início da legislatura de 2009 – 2014. FRANKLIN TREIN 102 um projeto de tratado constitucional para a União Europeia. A Declaração de Laeken, além de definir a instalação de uma Convenção, estabeleceu os termos de sua composição, seus objetivos, seu método de trabalho, dando prazo para o cumprimento de suas tarefas: até 1o de março de 2003. Com a finalidade de servir de roteiro para o trabalho da Convenção, os Chefes de Estado e de Governo reunidos na CIG de Laeken formularam sessenta questões relacionadas ao futuro da União Europeia. Aquelas perguntas se distribuiam por quatro grandes temas: divisão e definição de competências; simplificação dos Tratados; estrutura institucional e o caminho até uma Constituição para os cidadãos europeus. A data de encerramento dos trabalhos não pode ser cumprida. Um esforço concentrado, porém, tornou possível chegar a bom termo em 10 de julho de 2003. Indicado pela CIG de Laeken, Valéry Giscard d’Estaing presidiu a Convenção, auxiliado por dois vice-presidentes: Giuliano Amato27 e Jean- Luc Dehaene28. Os demais integrantes foram eleitos ou indicados. Em seu conjunto representavam os órgãos comunitários, dos Estados membros e as organizações da sociedade civil europeia mais diretamente envolvidas com a construção da União. Os representantes dos países candidatos a participar da UE ganharam assento nos debates da Convenção com direito à voz, porém sem direito a voto. As reuniões, realizadas nas instalações do Parlamento Europeu em Bruxelas, foram abertas ao público e acompanhadas pela imprensa em geral. Um total de pouco menos de cem e até um pouco mais de duzentos integrantes participaram diretamente dos debates em plenário e votaram nas decisões sobre os princípios ou sobre as formulações do texto. No transcurso dos trabalhos a Convenção teve que superar uma dificuldade conceitual básica: seu mandato não era o de uma Assembleia Constituinte e nem sequer o de substituição de uma CIG. A Declaração de Laeken dizia expressamente que o mandato da Convenção era “para garantir uma preparação, o mais transparente possível, da próxima Conferência Intergovernamental.” Contornadas as pretenções constituintes dos muitos participantes da Convenção, os trabalhos puderam ser iniciados e os debates ganharam o seu ritmo próprio. Entre as questões examinadas, as principais 27 Giuliano Amato (1938 - ), cidadão italiano, é jurista, foi Ministro do Interior, do Orçamento, da Reforma e do Tesouro da Itália. Entre 1992/93 e entre 2000/01 exerceu a Presidência do Conselho de Ministros. 28 Jean-Luc Dehaene (1940 - ) nasceu em Montpellier, uma cidade situada no sul da França. Cidadão belga, foi por duas vezes, entre 1995 e 1999, Primeiro Ministro da Bélgica. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 103 foram: a Carta dos Direitos Fundamentais do Cidadão Europeu; a subsidiariedade; o papel do Poder Legislativo dos Estados membros; a governança política e econômica; a política exterior; a política de segurança e de defesa comuns; a simplificação dos procedimentos administrativos em todos os níveis; o espaço de liberdade, de segurança e justiça no interior da UE, a Europa social. As questões institucionais, começando pela personalidade jurídica da União, no entanto, foram as de mais difícil consenso. França, Reino Unido e Espanha insistiram na necessidade de um Conselho com um presidente estável, um responsável europeu para os assuntos exteriores e uma Comissão com um menor número de membros. A Alemanha, por sua vez, punha sua ênfase no reforço da autoridade do presidente da Comissão. Bélgica, Holanda e Luxemburgo preiteavam um presidente da Comissão eleito pelo Parlamento Europeu com funções também de presidente do Conselho de Ministros. Paralelamente, a proposta de natureza completamente federalista, elaborada pelo então Presidente da Comissão Romano Prodi29 sequer foi examinada pelos convencionais. A dificuldade de ver aceita uma estrutura federativa fez com Giscard d’Estaing tenha optado em manter a forma tradicional da Comunidade, ou seja, os três pilares representados pelo Conselho, Comissão e Parlamento. Ainda por sua iniciativa o texto do tratado constitucional incluiu a definição do cargo de presidente do Conselho como função exclusiva, eleito para um mandato plurianual com duração de dois anos e meio. Os assuntos exteriores seriam responsabilidade exclusiva de um ministro, que acumularia ainda as funções de vice-presidente da Comissão, a qual teria seu número de integrantes menor do que o de Estados membros, sendo seu presidente eleito pelo Parlamento Europeu. Por fim, as decisões do Conselho se fariam com base no princípio da maioria qualificada, ou seja, considerando tanto a necessidade da maioria simples entre os Estados membros como um mínimo de 66% do total da população da UE. O Conselho Europeu examinou o texto elaborado pela Convenção e, após algumas dificuldade iniciais, deu a conhecer o seu consenso sobre o mesmo. O Tratado que estabelece uma Constituição para Europa, e que assim deveria inaugurar uma nova fase de sua história, foi assinado pelos 25 Chefes de Estado e de Governo, em Roma, no dia 29 de outubro de 2004. 29 Romano Prodi (1939 - ) Cidadão italiano, economista, foi Primeiro-Ministro da Itália por duas vezes: de 1996 a 1998 e de 2006 a 2008. Presidiu a Comissão Européia de 1999 a 2004. FRANKLIN TREIN 104 O processo de ratificação do Tratado Constitucional teve início logo a seguir e as dificuldades em ver o texto aprovado pelos eleitores europeus ou por seus representantes nos Parlamentos nacionais também apareceram imediatamente. De qualquer modo, quando a França, em 29 de maio de 2005 e a Holanda, em 1o de junho de 2005, através de consulta direta aos seus eleitores disseram não à Constituição, a mesma já havia sido aprovada por 18 países – Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta e Romênia – os demais, que ainda não haviam se manifestado decidiram suspender o processo de ratificação. O não dos franceses e holandeses provocou uma grande crise política nas relações internas da União Europeia. Era como se um portal para o futuro tivesse sido fechado, interrompendo uma trajetória da qual muitos esperavam a realização da grande oportunidade histórica para a Europa recuperar sua posição de ator de primeira linha no cenário da Comunidade Internacional. A saida para o impasse veio da Presidência alemã do Conselho que, com grande interesse e muita habilidade conseguiu um acordo entre os seus pares, na CIG de 21 e 22 de junho de 2007. A proposta feita por Berlim permitiu reabrir as discussões sobre o processo constitucional na forma de um mandato de revisão do Tratado que estabelecia uma Constituição para Europa, rejeitado pela França e pela Holanda. De alguma forma a proposta da Chanceler Angela Merkel30 havia sido objeto de uma sugestão do Presidente francês Nicolas Sarkozy quando este se referiu à hipótese de ser elaborado um Tratado mais simples, que recolhesse as reforma estruturais estritamente necessárias ao bom funcionamento da UE. De qualquer modo, a fórmula conseguida pela Chanceler alemã foi muito mais ampla e contemplou todo o texto da Constituição, abrindo a oportunidade para a elaboração de um Tratado completamente novo. 3. O Tratado de Lisboa Os estudiosos que acompanham o dia a dia da integração europeia e entre eles em particular aqueles que observam a evolução de sua estrutura político-jurídico coincidem na avaliação de que, apesar de todas as dificuldades 30 Angela Merkel (1954 -) foi Ministra da Mulher e da Juventude e Ministra do Meio Ambiente antes de assumir o cargo de Primeira Ministra da República Federal da Alemanha. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 105 enfrentadas desde a crise criada pela negativa ao Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa em 2005, a União Europeia entrou numa fase de constitucionalização de suas relações internas da qual não tem mais como recuar. A constatação desta realidade histórico-política da UE não significa, de maneira alguma, a solução de seus problemas, que ainda poderão ser muitos com a não aprovação do Tratado de Lisboa por parte da Irlanda. Esta é uma dificuldade real a ser enfrentada para a qual parece não existirem muitas alternativas de solução a não ser o avanço em direção a uma nova ordem jurídica, política e estrutural de toda a União. Diante de suas dimensões atuais e da perspectiva, que se torna cada dia mais uma imposição, ou seja, a de ter que admitir novos países, como é o caso da Croacia e, apesar de todas as suas dificuldades, também o da Turquia, a União Europeia não dispõe de muitas hipóteses, se não quiser renunciar ao seu projeto original. Ainda, em outros termos, o que lhe resta é encontrar forças para assumir soluções radicais para os seus problemas, o que não é uma tarefa simples. Vejamos, brevemente, alguns elementos do Tratado de Lisboa que dão à Europa a oportunidade de seguir com o seu propósito de integração. Em primeiro lugar a CIG de Lisboa buscou encontrar, com o Tratado, uma forma de superar a resposta negativa à Constituição. Isso significou, de um lado, reestabelecer as bases institucionais necessárias às reformas inadiáveis da UE, e, de outro, preservar aqueles ganhos extraordinários que o texto constitucional havia recolhido. Tudo dentro do rígido princípio de que sem a assinatura de todos os 27 Estados membros e a posterior homologação unânime, nada acontecerá. O exame comparativo do Tratado de Lisboa e do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa revela que muitos pontos fundamentais, bem como alguns princípio e normas complementares, mais de conteúdo político do que de forma jurídica, reunidos pela Convenção, encontram-se preservados no texto aprovado em Lisboa. Assim, o texto aponta claramente para a necessidade de superação do déficit de democracia que acompanha a construção da unidade da Europa desde a sua origem. Da mesma forma faz referência à necessidade de a UE se estruturar para desenvolver uma atuação global, porém com respaldo não só de suas lideranças políticas mas também de sua base social, ou seja, a sociedade civil europeia. Com uma estrutura tão extraordinariamente grande e complexa, diante de uma realidade internacional globalizada e de grande dinamismo é dispensável dizer que FRANKLIN TREIN 106 as decisões devem ser ágeis, consistentes e consequentes. Tais pressupostos implicam na necessidade de uma nova ordem e nenhuma será melhor, até o presente momento histórico, do que aquela de natureza federativa. Por isso mesmo, o Tratado de Lisboa preserva no seu interior a trama federativa da Constituição. O conceito de democracia assume assim uma nova dimensão, deixando de ser só representativa para ser também participativa. O princípio de subsidiariedade ganha mais consistência, uma vez que, com base numa ordem federativa os Parlamentos nacionais passam a atuar de forma muito mais próxima das atividades e das decisões dos órgãos da UE. O que, de fato, muda completamente no Tratado de Lisboa em comparação ao Tratado Constitucional é a relação entre as partes signatárias, os Estados membros. Para encontrar uma solução para a crise jurídico-política, resultante da negativa de aprovação da França e da Holanada, a União Europeia se viu diante de uma única hipótese, que foi a de continuar recorrendo à fórmula jurídica de “tratado internacional” para regulamentar as suas relações internas, entre os Estados membros, e ipso facto renunciar aos vínculos muito mais estreitos e estritos que seriam criados por uma Constituição, a qual estabeleceria entre todos uma estrutura jurídico-política de natureza claramente federativa. A diferença entre os dois Tratados pode ser identificada no próprio texto. O Tratado Constitucional esta concebido como um “contrato” entre cidadãos, enquanto que o Tratado de Lisboa é um texto que estabelece normas de relacionamento interestatais. Por outro lado, o Tratado de Lisboa é de leitura muito mais difícil do que o texto constitucional. Em Lisboa desaparecem as simplificações. Retornaram ao texto as intrincadas referências a outros ordenamentos jurídicos da UE, a exemplo do que pode ser encontrado em todos os demais Tratados, como os de Maastricht, de Amsterdam e de Nice. O texto que recebeu aprovação da CIG em 2007, na sua condição de tratado, não contribui para resolver o emaranhado jurídico resultante da sucessão dos Tratados, desde aquele que criou a CECA até o de Nice e que hoje constituem a base institucional da União Europeia. O cidadão, não especializado em questões político-jurídicas, para se situar dentro do espaço comunitário, encontra-se agora, muito mais do que anteriormente, distante da necessidade de entender não só a estrutura como a dinâmica de funcionamento dos órgãos da UE. Neste sentido, as reclamações sobre a UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 107 intransparência da União Europeia são mais legítimas do que em qualquer momento no passado. O texto aprovado em Lisboa em 2007 deixa alguns prejuízos com relação aquele aprovado em Roma em 2004. Não consta mais do seu arcabouço a “Carta dos Direitos Fundamentais da União”, que compunha a Parte II do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Na intenção de descaracterizar qualquer vínculo mais estreito que pudesse ser interpretado como expressão de relações supranacionais, foram suprimidas do texto de Lisboa todas as referência aos símbolos da União, tais como a bandeira, o hino, o dia da Europa, etc. O preâmbulo do texto constitucional também foi modificado, restando somente as referências a elementos que reforçam o caráter interinstitucional do Tratado. Por fim, o texto tomou uma forma pela qual passou a ser somente mais uma revisão dos Tratados anteriores, a exemplo do que aconteceu com a sucessão de revisões ocorridas ao longo das décadas de 80 e 90 do século passado. Contudo, a leitura atenta do Tratado de Lisboa permite alguns esclarecimentos importantes. Lisboa reafirmou a dimensão politicada UE de forma incontestável. Acentuou os mecanismos da democracia representativa e participativa, abrindo novos espaços para a participação direta dos cidadãos, como o princípio de intervenção legislativa através de petição com um milhão de assinaturas. Inovou ainda em um ponto fundamental ao criar condições jurídico-políticas que permitem a um Estado membro por decisão voluntária e soberana, solicitar seu desligamento da União. Desta forma as relações dos países integrantes da Comunidade com o conjunto comunitário ganha novas dimensões, reforçando tanto os mecanismos do princípio de subsidiariedade como as competências preestabelecida para os Parlamentos nacionais nos assuntos de interesse bilaterais e multilaterais de interesse geral. Ao mesmo tempo o Parlamento Europeu tem suas funções legislativas ampliadas, tornando-se rotina a sua participação nas decisões em assuntos de relevância para os Estados membros e a sociedade civil como um todo. As mudanças funcionais dos órgãos comunitários também são visíveis. Em primeiro lugar é possível identificar aquelas referentes ao Conselho Europeu, que passa a ter uma estrutura permanente. A presidência deixa de ser rotativa, trocando de titular a cada seis meses, e ganha um mandato exclusivo. Outra função que recebe destaque é a do Alto Representante da União Europeia para os Assuntos Exteriores e a Política de Segurança. Seu titular tem assento tanto no Conselho, onde preside o Conselho de Relações FRANKLIN TREIN 108 Exteriores,31 como na Comissão, onde é um dos seus Vice-Presidentes32. O Conselho de Ministros como um todo assume uma nova dinâmica interna, ou seja, passa a ter uma presidência rotativa, composta por três membros que se sucedem ao longo de 18 meses, trocando de titular ao fim de cada semestre. Ficam fora desta regra o Conselho de Relações Exteriores e o Eurogrupo33. O primeiro terá como presidente permanente o Alto Representante, enquanto que o segundo elegerá o seu respectivo presidente. Ambos exercerão mandato de dois anos e meio, ou seja, coincidindo com o mandato do Presidente do Conselho Europeu. O Tratado de Lisboa não deu à Comissão Europeia nada de especialmente novo. Talvez a mais expressiva de todas as novidades seja o estabelecimento da regra que determina que o seu Presidente deve pertencer ao partido político com o maior número de votos nas eleições para o Parlamento Europeu. Esta foi uma decisão que pode ser entendida no sentido de dar à Comissão, o órgão com atribuições executivas mais amplas na União Europeia, um pouco mais de conteúdo democrático. O fato de que composição da Comissão se faz sempre por indicação e não através de um processo eleitoral tem sido alvo de críticas permanentes da opinião pública. Assim, esta pode não ter sido a melhor solução, mas foi a forma encontrada neste momento para diminuir a distância entre a Comissão Europeia e o cidadão eleitor. Com o propósito de tornar mais eficaz e eficiente as suas tomadas de decisão a Comissão teve acrescentadas mais competências as suas já extensas atribuições. Complementarmente, desde uma outra perspectiva, é possível observar ainda que a Comissão ganha um expressivo reforço institucional quando o texto do Tratado define os atos jurídicos da União. O Tratado de Lisboa qualifica os atos legislativos e executivos, distinguido uns e outros e estabelecendo uma clara hierarquia entre eles. O texto do Tratado aprovado em Lisboa tem o firme objetivo de resolver um problema que ficou pendente quando da assinatura do Tratado de 31 O Conselho de Relações Exteriores é formado pelos Ministros de Relações Exteriores dos Estados-Membros. 32 A função do Alto Representante da União Europeia para os Assuntos Exteriores e a Política de Segurança como Vice-Presidente da Comissão Europeia está definida no Artigo 18o, inciso 4 do Tratado de Lisboa. 33 Denomina-se Eurogrupo o Conselho formado pelos Ministros titulares de Economia e Finanças dos Estados membros. Suas atribuições se estendem às questões relativas as suas pastas para os países que fazem parte da Eurozona, ou seja, aqueles que adotaram o euro como moeda nacional. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 109 Maastricht, isto é, o da segmentação da infra-estrutura que sustenta a União em três pilares: o comunitário, o da PESC e o da cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos. Isto está consubstanciado nas definições de competências para o desenvolvimento das políticas econômicas e sociais e na melhor definição do que se deve entender por cooperação comunitária, especialmente quando diz respeito diretamente à construção do que passou a se chamar de “espaço de liberdade, de segurança e de justiça”. O Tratado de Lisboa trata de dar à União Europeia uma unidade que o Tratado de Maastricht não conseguiu construir. Um elmento importante desta unidade definida em Lisboa pode ser identificado na nova Política Externa Comum. Em primeiro lugar há um esforço muito consistente de definir a personalidade jurídica, com direitos e deveres da União Europeia, frente a países terceiros e aos organismos internacionais34. Os primeiros beneficiados, neste caso, são os seus vizinhos, estejam eles nas suas fronteiras junto à Europa Oriental, no Oriente Médio ou na Bacia do Mediterrâneo. O Mercosul, que já mantém com a UE longos anos de negociação de um acordo bilateral de cooperação poderá ter facilitado o seu entendimento com os europeus, uma vez que as decisões dos representantes europeus agora poderão se concentrar em questões mais básicas e de maior densidade, deixando de lado detalhes, que muitas vezes foram a causa de dificuldades insuperáveis no decorrer das discussões. Em outras palavras, o Alto Representante, que responde pela política externa do Conselho e da Comissão, juntamente com o Serviço Europeu de Ação Exterior35, que lhe dá assistência, terá mais autoridade e autonomia para decidir nas questões bilaterais e multilaterais de interesse da União Europeia. O CIG de Lisboa não aprovou só um tratado. Na verdade, foram dois: o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. São tratados distintos e complementares. 34 Se os Tratados fundacionais da União Europeia – CECA, CEE e EURATOM – proviam suas respectivas Comunidades de personalidade jurídica internacional, isto não aconteceu quando foi redigido o Tratado sobre a União Européia, assinado em Maastricht em 1992. Ou seja, de acordo com os termos daquele texto a União Européia não está habilitada a assinar trados, convênios, convenções ou qualquer outro instrumento jurídico com terceiros países. Para sanar este problema o Tratado de Lisboa estabelece explicitamente o estatuto jurídico da União Europeia, que assim pode representar legalmente o conjunto de países que lhe são signatários. Diz o seu Artigo 47o “A União tem personalidade jurídica.” 35 O Serviço Europeu de Ação Exterior foi instituído pelo Tratado Constitucional em seu Artigo III-296.3. FRANKLIN TREIN 110 O primeiro, da União Europeia, em seu Artigo 1o declara: “Pelo presente Tratado, as ALTAS PARTES CONTRATANTES instituem entre si uma UNIÃO EUROPEIA, adiante designada por “União”, à qual os Estados-Membros atribuem competências para atingirem os seus objectivos comuns. O presente Tratado assinala uma nova etapa no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível e ao nível mais próximo possível dos cidadãos. A União funda-se no presente Tratado e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (a seguir designados “os Tratados”). Estes dois Tratados têm o mesmo valor jurídico. A União substitui-se e sucede à Comunidade Europeia.” O segundo Tratado, sobre o Funcionamento da União, define os seus objetivos em seu Artigo 1o nos seguintes termos: “1. O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências. 2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem os Tratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmo valor jurídico, são designados pelos termos “os Tratados”. O Tratado da União Europeia dedica todo o seu Título V ao que denomina de “ação exterior e política exterior e de segurança comum”. Além de definir de forma extensa e detalhada a Política Exterior e de Segurança Comum - PESC - ficam estabelecidas ali as relações de trabalho entre o Alto Representante da União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, como membro do Conselho, e a própria Comissão. No Artigo 24o se pode ler: “1. A competência da União em matéria de política externa e de segurança comum abrange todos os domínios da política externa, bem como todas as questões relativas à segurança da União, incluindo a definição gradual de uma política comum de defesa que poderá conduzir a uma defesa comum.” UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 111 Em outras palavras, o que a CIG aprovou em Lisboa significa que a UE se propõe a assumir progressivamente a responsabilidade por todos os assuntos que digam respeito às relações internacionais de seus Estados membros, incluídos aí os relacionados à defesa e segurança coletiva da União. Isto pode ser ainda melhor entendido se for acrescentado o que ficou estabelecido no Tratado sobre o Funcionamento da União, em seu Artigo 222o, ao texto do Tratado da União Europeia, onde estão nomeadas as “Tarefas de Petersberg”36 e o compromisso decorrente da Declaração de Laeken. O conjunto de compromissos expressos naqueles documentos dão a dimensão e a perspectiva a partir da qual Bruxelas entende como sendo da sua responsabilidade cuidar dos interesses da União em tudo que diga respeito às relações com países terceiros e com a Comunidade Internacional, tendo o Alto Representante como elemento de ligação entre o Conselho e a Comissão. O interesse da CIG em destinar à União a competência pelas questões de política externa e de segurança comum pode ser identificado ainda em um outro contexto do Tratado de Lisboa. Mesmo que na letra do Tratado tenha desaparecido o nome do Ministro de Assuntos Exteriores da União Europeia37 suas funções e responsabilidades permaneceram completamente preservadas. Contudo, a denominação de Alto Representante da União Europeia para Assuntos Exteriores e de Política de Segurança pode não ter sido a mais feliz. O nome dado a esta função de um membro da Comissão, um de seus Vice-presidentes, já mostrou que ela pode ser confundida facilmente com a do Alto Representante para a Política Exterior e de Segurança Comum, função acumulada pelo Secretário Geral do Conselho. A Política Exterior e de Segurança Comum – PESC – foi instituída pelo Tratado sobre a União Europeia – TUE – (1992) e completada pelo Tratado de Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001). O Artigo 17o do TUE, consolidado, não só define o que são as atribuições da PESC, como 36 As «Tarefas de Petersberg» fazem parte integrante da política europeia de segurança e de defesa (PESD). Foram incluídas expressamente no Tratado da União Europeia (artigo 17.º) e abrangem: as missões humanitárias ou de evacuação dos cidadãos nacionais; as missões de manutenção da paz e as missões de forças de combate para a gestão das crises, incluindo operações de restabelecimento da paz. Estas missões foram instituídas pela Declaração de Petersberg, adotada na sequência do Conselho Ministerial da União da Europa Ocidental – UEO – realizado em Junho de 1992. Nos termos daquela declaração, os Estados membros da UEO decidiram colocar à disposição daquela organização e igualmente da NATO e da União Europeia, unidades militares provenientes dos diversos ramos das suas Forças Armadas convencionais. 37 Artigo III-195o do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. FRANKLIN TREIN 112 estabelece ainda que ela contemple uma política de defesa comum, que poderá conduzir a uma defesa comum. O texto sublinha que, para tanto, a definição progressiva da política de defesa comum estará respalda pela cooperação entre si dos Estados membros no setor de armamentos38. O Artigo seguinte (18o) estabelece que o Presidente do Conselho será o responsável pela PESC em representação da União. Ainda no âmbito da PESC um Comitê Político e de Segurança39 acompanhará a situação internacional e através de suas análises e relatórios contribuirá com as decisões do Conselho. Desta forma o Comitê Político e de Segurança se soma ao conjunto das autoridades da União Europeia responsáveis pela formulação da Política Exterior de Segurança e Defesa – PESD. Desde a entrada em vigor do Tratado sobre a União Europeia no início da década de 90 o dia a dia das atividades do Alto Representante da Política Exterior e de Segurança Comum mostrou, tanto para o interior da UE como para a Comunidade Internacional, a relevância daquela função. Numa e noutra direção a atividade do Alto Representante serviu tanto para fazer convergir as políticas dos Estados membros como para dar uma dimensão de unidade e coerência à UE. Assim, a PESC, como talvez nenhuma outra política comum, cumpriu com o objetivo de construir uma imagem unificada da Europa, superando até mesmo a Política Agrícola Comum – PAC, instituída duas décadas antes. Isto contribuiu para que o Tratado de Lisboa tenha mantido integralmente as tarefas inerentes àquela política concentrando ainda nas funções do novo Alto Representante as atribuições que cabiam ao Comissário para as Relações Exteriores e Política Europeia de Vizinhança. As questões de política externa, defesa e segurança estão definidas no Tratado de Lisboa nos Títulos III e V. No primeiro, em seu Artigo 18o, inciso 1, está dito: “O Conselho Europeu nomeará por maioria qualificada, com a aprovação do Presidente da Comissão, o Alto Representante da União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança.” O mesmo Artigo estabelece ainda que o Alto Representante estará à frente da Política Exterior e de Segurança Comum – PESC – da União e atuará, do mesmo modo, em relação a política comum de segurança e defesa. 38 Para promover a integração de suas respectivas Forças Armadas os Estados membros que assim desejarem podem se valer das disposições sobre as cooperações reforçadas, previstas no Título IV do Tratado de Lisboa. 39 As tarefas do Comitê Político e de Segurança estão bem definidas no Artigo 38 do Tratado de Lisboa, que assume o conteúdo do Artigo 25 da TUE. UMA EUROPA MAIS TRANSPARENTE 113 No Título V, que trata das “Disposições gerais relativas à ação exterior da União e disposições específicas relativas à política exterior e de segurança comum”, em seu Artigo 24o40, como já foi observado, dispõe que a política exterior e de segurança comum será executada pelo Alto Representante da União para Assuntos Exteriores e Política de Segurança acrescentando os Estados membros como co-responsáveis41. Em outras palavras, compete ao Alto Representante coordenar o diálogo político com terceiros países como representante da União Europeia, tarefa que divide, é necessário observar, com o Presidente do Conselho Europeu, assim como compartilha com o Presidente da Comissão Europeia as responsabilidades nos assuntos pertinentes às relações exteriores. O Artigo 27o, em seu inciso 3, determina que o trabalho do Alto Representante seja apoiado pelo Serviço Europeu de Ação Exterior – SEAE – em colaboração com os Serviços Diplomáticos dos Estados membros. O texto do mesmo inciso esclarece ainda que a composição do SEAE se fará a partir de funcionários dos serviços competentes da Secretaria-Geral do Conselho e da Comissão e por pessoal em comissão de serviço do Serviço Diplomáticos nacionais. O tratado da União Europeia contribui decisivamente para o esclarecimento das relações internas à União quando se trata de questões de política externa, defesa e segurança. Ao resgatar os ganhos alcançados pelo Tratado, que estabelecia uma Constituição para a Europa, foi possível manter os ordenamentos que preservam o lema da UE: “unidade na diversidade”. Assim, as questões de âmbito comunitário, de responsabilidade da Comissão, passam a ser tratadas em sintonia com as questões de responsabilidade intergovernamental, ou seja, da esfera do Conselho. Isto permite à Europa, pela primeira vez de forma consistente e consequente, falar de uma Política Externa Comum – PEC. O problema de uma PEC não é novo para a UE e sua principal dificuldade estava sempre relacionada à cessão de soberania. O que agora fica redefinido é que, a exemplo da política interna42, ao passar da esfera intergovernamental 40 Este Artigo recupera todo o conteúdo do Artigo 11o do TUE. 41 Ao estabelecer esta parceria entre a União e os Estados membros o Tratado de Lisboa elege, claramente, não só a co-responsabilidade pelos assuntos de política externa, defesa e segurança, mas ainda a dupla intervenção: interestatal e intergovernamental. 42 Pelos termos do Tratado da União Européia qualquer cidadão de um Estado membro, ao assumir a cidadania europeia, passa a somá-la a sua cidadania nacional, uma vez que a aquisição do status de cidadão europeu não implica na renúncia de sua cidadania de origem. FRANKLIN TREIN 114 para a comunitária o que acontece, de facto e de jura, é a ampliação da soberania dos Estados-membros, uma vez que passa a ser compartilhada, ou seja, a soberania nacional de um Estado se amplia para os demais Estados. Dito de outra forma, isto só é possível na medida em que admite compartilhar suas decisões sobre política externa, defesa e segurança. Ou seja, nenhum Estado está renunciando as suas responsabilidades. O Tratado da União Europeia permite que a União passe a atuar de forma coerente e convergente em questões que estiveram dispersas e mesmo contraditórias em muitos momentos. A UE ganha unidade para a sua política de comércio internacional, para a sua política de desenvolvimento e para a política ambiental, resolvendo assim conflitos e inconsistências não só entre os Estados membros, mas também entre as ações dos Comissários, responsáveis por cada uma daquelas áreas43. Concluindo, vale a pena lembrar as declarações “13 e 14”, anexas ao Tratado de Lisboa, que ampliam as responsabilidade e co-decisões e assuntos de política externa, de segurança e defesa da UE. A primeira refere-se à importância da participação e cooperação entre os Parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu e a segunda conclama à formação de uma “Conferência dos Parlamentos” como instrumento de participação mais efetivo dos órgãos legislativos dos Estados membros e da União nas questões relativas à integração. 4. Bibliografia ALDECOA LUZARRAGA, Francisco. Una Europa su proceso constituyente. la innovación política europea y su dimensión internacional. La Convención, el Tratado Constitucional y su política exterior (2001-2003). Madrid: Biblioteca Nueva. 2003. ____________. La integración europea. Análisis histórico-jurídico con textos y documentos. Vol. II. Génesis y desarrollo de la Unión Europea. Madrid: Tecnos, 2002. ____________. 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A Parceria Estratégica representa a elevação do diálogo ao mais alto patamar para o tratamento não só da ampla gama de iniciativas na pauta bilateral, mas também para a cooperação em temas afetos às respectivas conjunturas regionais e em assuntos de interesse global, efetivo reflexo do aprofundamento das relações bilaterais. A parceria estratégica Brasil-UE insere-se, assim, no contexto de dinamização da cooperação em diferentes áreas de interesse mútuo, entre as quais se situam novas iniciativas em energia/biocombustíveis, ciência e tecnologia, meio ambiente, cooperação técnica, temas sociais, desenvolvimento regional e transportes marítimos. Reflete também a dinamização do relacionamento político bilateral, consubstanciada na formalização, em 30 de abril, do Diálogo Político de Alto Nível Brasil-UE, * Embaixadora. Diretora do Departamento da Europa. MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 122 mecanismo que se reuniu em Brasília, no dia 03 maio de 2007, em Luibliana, em 06 de junho de 2008, e em Praga, em 24 de março de 2009. Nessas ocasiões, foram abordados temas da agendas bilateral e regional, bem como assuntos multilaterais de interesse comum. A Parceria Estratégia não é uma panacéia – nem para um lado, nem para o outro. Recorda-se nesse particular que o termo “estratégia”, tomado de empréstimo do vocabulário militar, pode ser definido em linguagem diplomática como a arte de aplicar meios disponíveis com vistas à consecução de objetivos específicos – de explorar condições favoráveis com o fim de alcançar metas. Nesse entendimento, a Parceria Estratégica Brasil-União Europeia traduz a disposição de dois grandes parceiros, com interesses consolidados, de buscar novas formas de cooperação lastreadas no respeito mútuo e no reconhecimento da crescente importância de ambos os atores na conformação de uma ordem internacional multipolar. A Parceria Estratégica é, portanto, o mecanismo formal ao amparo do qual serão desenvolvidas, de forma orgânica, sistêmica e consistente, as possibilidades de maior interação entre o Brasil e a União Europeia nos campos político, econômico-comercial, científico e tecnológico, cultural, de migrações, e da cooperação em benefício de terceiros países. Conforme afirmou o Presidente Lula em seu pronunciamento na Cúpula de Lisboa, com a Parceria Estratégica “estamos elevando nossa relação à altura de suas potencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundo em transformação. Comungamos de princípios democráticos e do respeito aos direitos humanos. Respaldamos as Nações Unidas como principal instrumento da defesa da paz e da segurança internacionais. Confiamos no sistema multilateral para a promoção do desenvolvimento com justiça social. O grande desafio que temos é o de operacionalizar esses valores, mediante propostas concretas, ou pelo menos coordenadas. Para isso deve servir nosso diálogo”.1 As relações entre o Brasil e a União Europeia são quase tão antigas quanto os Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM)2. Foram formalizadas em 1960, quando estabelecemos relações 1 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a Cúpula de Lisboa, 4 de julho de 2007. Presidência da República, Secretaria de Comunicação Social. 2 Tratados de Roma, de março de 1957, que criaram a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM). BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 123 diplomáticas, e implementadas já a partir do ano seguinte, com a instalação, em Bruxelas, de nossa representação junto à CEE. O Brasil acompanhou com grande atenção a evolução do complexo processo de constituição da União Europeia desde sua gênese, com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) em 1952, assim como os Tratados de Roma, de março de 1957, e a instituição do Ato Único Europeu, de 1968, que reunia as três Comunidades, lançando as bases para a conformação, em 1992, do mercado comum com livre circulação, na então Europa dos 12, de bens, capital e serviços. Acompanhamos também a evolução institucional da UE, engendrada na esteira de seu processo de alargamento e de aprofundamento, mediante a criação de ampla e complexa rede de instituições gestadas no processo de integração europeu. Nesse quadro, destaca-se o Tratado de Maastricht (1992), também chamado de Tratado da União Europeia, que lançou as bases para a política monetária, moeda única (e criação do Banco Central Europeu), e cidadania comunitária, definindo os três pilares que passariam a orientar a integração Europeia: a dimensão comunitária; a política exterior e de segurança; e assuntos de Interior e Justiça. Da mesma forma, observamos o processo de aperfeiçoamento institucional da UE, em que desempenha papel de relevo o Tratado de Amsterdã, o qual amplia o escopo do interesse comunitário ao introduzir o tratamento de temas sociais e direitos humanos, bem como o Tratado de Nice (2001), que introduz adaptações especialmente na composição do Parlamento Europeu, com vistas à absorção de 10 novos membros. Com a mesma atenção, acompanhamos os movimentos em direção à ambiciosa empreitada de elaboração de uma Constituição Europeia, como propunha o Tratado de 18 de julho de 20043, malogrado com sua negação pela França e pelos Países Baixos. Seguimos agora o processo de ratificação do Tratado de Reforma da União Europeia (Tratado de Lisboa), 2007, especialmente à luz de disposições relativas a uma maior convergência em matéria de política externa. O aperfeiçoamento jurídico e institucional da UE, com seu contínuo processo de integração política, econômica e comercial, certamente traz conseqüências que transcendem os limites de seu próprio espaço geográfico. Nesse contexto, identifica-se também o desejo europeu de maior protagonismo político na conformação de uma ordem internacional multipolar. 3 Tratado Constitucional para a União Europeia, assinado em Roma, em 29 de outubro de 2004. MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 124 Certamente, como experiência sem precedentes na história, a conformação da União Europeia nos serviu como fonte privilegiada de inspiração na concepção do nosso próprio mecanismo de integração regional. Mas no que diz respeito ao relacionamento bilateral propriamente dito, é forçoso reconhecer que muito pouco desenvolvemos em quase cinquenta anos. Essa percepção é ilustrada de forma eloquente pelo fato de que entre 1960 e 2006 nunca houve uma visita ao Brasil de um Presidente da Comissão Europeia – e até 2007, jamais um Presidente do Brasil havia visitado oficialmente a Comissão Europeia. A relação bilateral ao longo de todo esse período era rarefeita e marcada por disputas em torno de tarifas, imposição de padrões e de posições sobre os mais diversos temas. Cabe, contudo, recordar aqui o diálogo birregional que tem caracterizado o relacionamento político entre a Europa e a América Latina, iniciado ainda na década de oitenta, quando a Comunidade Europeia promoveu, em 1984, em São José da Costa Rica, reunião com vistas à promoção do processo de paz na América Central, em associação com o Grupo de Contadora, integrado por México, Colômbia, Venezuela e Panamá. Com a posterior formação do Grupo do Rio, em 1986, através da fusão do Grupo de Contadora com o Grupo de Apoio a Contadora, formado por Brasil, Argentina, Peru e Uruguai, foi institucionalizado, em 1990, o diálogo político regular entre a tróica Europeia e os Ministros das Relações Exteriores do Grupo do Rio, mecanismo que, desde então, se reúne bienalmente, alternando seus encontros com aqueles das Cúpulas América Latina e Caribe-União Europeia, instituídas em 1999, quando se realizou a sua primeira cimeira, no Rio de Janeiro. As reuniões ministeriais Grupo do Rio-UE e os encontros em nível de Chefes de Estado e de Governo no contexto das Cúpulas América Latina e Caribe-UE têm sido os principais foros de diálogo político birregional. Mas a análise do relacionamento da União Europeia com a América Latina e Caribe também envolve forte vertente econômica, com evolução histórica passando pelo sistema de preferências tarifárias aplicadas aos países ACP (notadamente do Caribe – acordos de Cotonou, Lomé e Iaundê), até as negociações de acordo de parceria econômica com a CARICOM, com a Comunidade Andina, os Acordos de Associação firmados com Chile e México (e seu sucesso na ampliação da pauta comercial bilateral) às negociações de Acordo de Associação Mercosul-UE, lançadas em 1999 e ainda não concluídas. Ainda no final de 2005, quando me preparava para assumir a direção do Departamento da Europa, unidade no Ministério das Relações Exteriores BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 125 encarregada do relacionamento bilateral com a União Europeia, verifiquei em minhas leituras, que, em paralelo ao aprofundamento de seu processo de integração, Bruxelas tecia também rede de parcerias extra-regionais com países relevantes na cena internacional. Nesse quadro, sobressaem a relação privilegiada com os Estados Unidos da América e, na sua seqüência, com o Canadá, atores tradicionais no eixo euroatlântico; com o Japão, expressivo parceiro econômico da EU; com a Rússia, vizinho de importância estratégica no contexto geopolítico e da segurança energética da União Europeia; e com a China e a Índia, economias emergentes com mercados altamente atraentes para a economia Europeia. Saltava aos olhos a ausência do Brasil nesse conjunto de parcerias, sobretudo quando consideramos que entre os BRICs faltava apenas o “B”. Essa percepção também já permeava pronunciamentos de autoridades comunitárias, que identificavam no Brasil ator de crescente importância no cenário global. De fato, a partir do início do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após consolidadas importantes conquistas da sociedade brasileira, como o fortalecimento de suas instituições democráticas e a estabilidade política e econômica, o Brasil passou a assumir crescente protagonismo em temas de interesse global. O empenho do Brasil na promoção do desenvolvimento com justiça social, o pioneirismo na produção e no uso de fontes limpas de energia, o compromisso com a preservação do meio ambiente, o respeito aos direitos humanos e os esforços em prol na integração regional são elementos da voz forte do Brasil em diferentes tabuleiros políticos, econômicos e sociais. Com efeito, em janeiro de 2006, em reunião no Itamaraty com o Representante da Comissão Europeia em Brasília, Embaixador João Pacheco, deu-se início às tratativas com vistas ao estabelecimento da relação de Parceira Estratégia entre o Brasil e a União Europeia4. Nesse contexto, realizou-se a primeira visita ao Brasil de um Presidente da Comissão Europeia, o Dr. José Manuel Durão Barrroso, em fins de maio de 2006. No diálogo mantido naquela ocasião entre o Presidente da República e o Presidente da Comissão Europeia evidenciou-se vasto potencial de cooperação em novas áreas de interesse mútuo, bem como de aprofundamento das relações em iniciativas já em curso. Foi naquele encontro que o Presidente da Comissão Europeia, animado pelo 4 Despacho Telegráfico número 23, de 26 de janeiro de 2006, para a Missão junto à Comunidade Europeia em Bruxelas. MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 126 entusiasmo do Presidente Lula com o desenvolvimento brasileiro dos biocombustíveis e sua conseqüente contribuição para mitigar os efeitos da mudança do clima, incluindo também importante dimensão social ao propiciar sustento para áreas mais pobres do planeta, convidou-o para ser palestrante de honra da Conferência Internacional sobre Biocombustíveis que se propunha organizar em 2007, e de fato realizada em Bruxelas, em 5 de julho daquele ano. No processo de lançamento da Parceria Estratégica, a Comissão Europeia publicou, no dia 30 de maio de 2007, nota à imprensa com o seguinte teor: “A Comissão Europeia propôs lançar uma Parceria Estratégica com o Brasil na primeira Cimeira UE-Brasil que se realizará em Lisboa em 4 de Julho. Numa Comunicação hoje adotada, a Comissão sublinha o papel crescente desempenhado pelo Brasil na cena internacional, o seu peso a nível regional e os fortes vínculos bilaterais que existem entre o país e a Europa e propõe um certo número de iniciativas para reforçar as relações entre as duas partes no quadro de uma Parceria Estratégica. A Comunicação identifica um vasto espectro de sectores e atividades em que a UE tem um interesse fundamental em reforçar a cooperação e em desenvolver um diálogo mais aprofundado com o Brasil”5. A Comunicação sublinha igualmente a importância de um diálogo reforçado para apoiar a conclusão de um Acordo de Associação UE-Mercosul. Elaborada na perspectiva da realização da Cimeira UE-Brasil, a referida Comunicação foi discutida com os Estados-Membros e constituiu base para a Agenda da Cúpula de Lisboa. Naquele documento, o Presidente da Comissão Europeia expressou que: “O Brasil é um parceiro importante para a UE. Não só partilhamos laços históricos e culturais estreitos, valores, e um forte empenhamento nas instituições multilaterais, mas também a capacidade para dar uma contribuição decisiva para o tratamento de muitos desafios globais como as alterações climáticas, a pobreza, o multilateralismo, os direitos humanos e outros. Ao propor um estreitamento destes laços, reconhecemos o estatuto do Brasil como protagonista fundamental para integrar o clube restrito dos nossos parceiros estratégicos.” A Comissária de Relações Exteriores e Política Europeia de Vizinhança Benita Ferrero-Waldner, por sua vez, referiu: “Existe um enorme potencial por explorar nas nossas relações com o Brasil a nível multilateral, regional e bilateral. Esta Parceria Estratégica 5 Comunicação interna da Comissão Europeia, datada de 30 de maio de 2007. BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 127 permitir-nos-á desenvolver ainda mais a nossa cooperação em sectores-chave como a energia, os transportes marítimos e o desenvolvimento regional, e estabelecer novas relações duradouras entre os nossos povos”. A Comunicação “Para uma Parceria Estratégica UE-Brasil”6 propunha uma vasta gama de áreas e setores para uma cooperação e uma parceria mais estreita. As áreas prioritárias de ação incluem o reforço do multilateralismo, com vistas à construção de um sistema das Nações Unidas mais eficaz e a promoção dos Direitos Humanos. A Comissão propõe cooperar estreitamente em relação a desafios globais como a pobreza e as desigualdades, as questões ambientais (em especial as alterações climáticas, as florestas, a gestão dos recursos hídricos e a biodiversidade), energia, reforçar a estabilidade e a prosperidade na América Latina e a cooperação em matéria de integração regional com o Mercosul, bem como a determinação conjunta de concluir um acordo UE-Mercosul. Ao salientar que o Brasil é o mais importante mercado da UE na América Latina, a Comissão propunha tratar as questões relativas ao comércio e ao investimento de relevância bilateral específica que complementam as discussões UE-Mercosul e sugeria reforçar a cooperação em setores e áreas de interesse mútuo como as questões econômicas e financeiras, a sociedade da informação, os transportes aéreos, os transportes marítimos, a ciência e tecnologia, a navegação por satélite, as questões sociais e o desenvolvimento regional. Por último, sugeria igualmente ações para aproximar os povos através do sistema de intercâmbio de estudantes universitários Erasmus Mundus, do diálogo cultural e de uma Mesa Redonda de empresas a realizar-se paralelamente à Cimeira. Cabe aqui, no entanto, o registro do entendimento do Governo brasileiro de que a Parceria Estratégica Brasil-União Europeia tem caráter estritamente bilateral e não constitui instância negociadora do Acordo de Associação Mercosul-UE, que tem seus foros próprios de diálogo. A Parceria, contudo, poderá representar um impulso político às negociações Mercosul-UE, em sintonia com os objetivos compartilhados pelos países do Mercosul 7. A Comunicação incluía duas recomendações principais aos Estados- Membros da UE: lançar com o Brasil uma Parceria Estratégica na Cimeira 6 Documento da Presidência do Conselho da União Europeia, de 2 de junho de 2007, que dispõe sobre o estabelecimento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia. 7 Circular Telegráfica nº 6.4149, de 31.05.2007, a todas as Embaixadas brasileiras no exteriores, com esclarecimentos sobre o lançamento da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia. MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 128 de Julho em Lisboa; e convidar o Brasil a apresentar sua posição sobre o alcance desta Parceria Estratégica. Na base dessas recomendações estava a percepção europeia de que “Brazil is an increasingly important partner for the EU and also a highly competitive player in regional and global issues. It is a key actor in Latin America both because of its political and economic weight and as a result of its leadership role in the region (eg leading the UN stabilization mission in Haiti). It plays a lead role in Mercosur and in other South American regional processes. Brazil seeks to promote effective multilateralism and is one of the most important and articulate countries within the developing world. As leader of the G-20, it will continue to play a crucial role in multilateral trade negotiations (WTO) and because of the richness of its natural environment and biodiversity will be a key partner on environmental issues. The EU is the first largest investor and trade partner of Brazil. The fifth largest country in the world, Brazil has become such an important part of the international architecture that many issues of the international agenda require that we work in partnership. For all these reasons, the EU has a strong interest in strengthening its dialogue with Brazil.”8 A Chancelaria brasileira, por sua vez, emitiu, em Nota à Imprensa expressando que o Governo brasileiro acolhera, de forma altamente positiva, a proposta da Comissão Europeia de lançar relação de Parceria Estratégica com o Brasil, como uma decorrência natural do relacionamento bilateral do Brasil com a União Europeia. A proposta encontra também sintonia com as parcerias estratégicas que o Brasil já mantém com vários Estados-Membros da União Europeia, entre os quais a Alemanha, França, Reino Unido, Portugal, Espanha e Itália, países que estão entre os nossos mais importantes parceiros comerciais e entre os maiores investidores no Brasil, além de serem importantes as relações em ciência e tecnologia. Harmoniza-se, ainda, com interesse do Brasil de aprofundar com a União Europeia não só o relacionamento bilateral, mas também o diálogo sobre temas de interesse global. Dada a elevada sintonia dos interesses de ambas as partes, o processo negociador avançou rapidamente, culminando com a formalização da Parceria Estratégica na Cúpula de Lisboa, em 4 de julho de 2007, durante a presidência portuguesa do Conselho da UE. Cabe aqui também registrar o empenho de 8 Draft Preparation Document of the Lisbon Summit – Comunicação da Comissão Europeia à Presidência do Conselho e ao Parlamento Europeu. Documento interno da Comissão Europeia para a preparação da Cúpula de Lisboa. Bruxelas, 30 de maio de 2007. BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 129 Portugal no lançamento da Parceria durante sua Presidência do Conselho da UE, expresso em suas gestões junto a outros Estados-Membros da UE e na organização da Cúpula de Lisboa. Conforme palavras do então embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, “resolvemos propor que fosse atribuído ao Brasil o estatuto de interlocutor privilegiado. É uma espécie de quadro referencial de interlocução nas mais diversas áreas, desde a política externa até questões ambientais. Um quadro em que se integrarão não só todos os modelos de cooperação que já existem entre o Brasil e a União Europeia, mas também futuros modelos, porque pensamos que o Brasil é um ator no quadro internacional que justifica maior atenção do que tem tido até agora”9. Portugal também se empenhou para fazer da Cúpula de Lisboa um evento de natureza singular, tendo convidado para o evento outros Chefes de Governo europeus. Assim, ao ato comemorativo do lançamento da Parceria Estratégica Brasil União-Europeia, sob a condução do Presidente Aníbal Cavaco Silva, juntaram-se ao Presidente Lula, além dos Primeiros-Ministros de Portugal, Eslovênia e o Presidente da Comissão Europeia, formando a tróica da UE, também o Presidente da França, Nicolas Sarkozy, o Presidente do Governo da Espanha, Jose Luís Rodríguz Zapatero, o Presidente do Conselho de Ministros da Itália, Romano Prodi, entre outros líderes europeus. No contexto do lançamento da Parceria Estratégica, foi também organizado o I Foro Empresarial Brasil-União Europeia, com expressiva participação de representantes das áreas de comércio e de investimentos dos dois lados. A importância daquele evento encontra-se refletida no parágrafo 3 da Declaração Conjunta da Cúpula de Lisboa, que assim dispõe: “No momento histórico da sua primeira Cúpula, o Brasil e a UE decidiram estabelecer uma Parceria Estratégica abrangente, baseada nos seus estreitos laços históricos, culturais e econômicos. Ambas as partes partilham valores e princípios essenciais, como a democracia, o primado do Direito, a promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e a economia de mercado. Os dois lados concordam com a necessidade de identificar e promover estratégias comuns para enfrentar os desafios mundiais, inclusive em matéria de paz e segurança, democracia e direitos humanos, mudança do clima, diversidade biológica, segurança energética e desenvolvimento sustentável, luta contra a pobreza e a exclusão. Estão 9 Francisco Seixas da Costa, entrevista à Radiobras/Agência Brasil, em 5 de junho de 2007. MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 130 também de acordo quanto à importância de cumprir as obrigações decorrentes dos tratados internacionais vigentes em matéria de desarmamento e não-proliferação. O Brasil e a UE concordam em que a melhor forma de abordar as questões de ordem mundial se dá pela via de um multilateralismo efetivo centrado no sistema das Nações Unidas. Ambas as partes se congratulam pelo estabelecimento de um diálogo político Brasil- UE, iniciado sob a Presidência alemã da União Europeia”10. Naquela ocasião, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso por ocasião da Cúpula de Lisboa, sublinhou “Hoje nos reunimos para dar início a uma nova era do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia. Estamos lançando uma parceria estratégica, estamos elevando nossa relação à altura de suas potencialidades, e estamos projetando uma visão comum para um mundo em transformação. As grandes questões globais como comércio, mudança do clima, segurança energética, não podem ser discutidas em círculos restritos que não levem em conta as posições dos grandes países em desenvolvimento. Se quisermos verdadeiramente construir um mundo melhor, temos que estimular o diálogo e a cooperação entre o Sul e o Norte sobre os principais temas da agenda global”11. A referida Declaração Conjunta já estabelecia as principais áreas que as duas partes se propunham a aprofundar, entre as quais listavam o fortalecimento do diálogo político com vistas ao tratamento dos principais desafios mundiais, a cooperação no plano birregional no contexto das Cúpulas América Latina e Caribe-União Europeia; o fortalecimento das relações econômicas e comerciais nos âmbitos bilateral e birregional; o fortalecimento dos Diálogos Setoriais bilaterais já estabelecidos em matéria de transportes marítimos, ciência e tecnologia e sociedade da informação; meio ambiente e desenvolvimento sustentável, e acolhem com satisfação o lançamento de novos diálogos sobre energia, emprego e questões sociais, desenvolvimento regional, cultura e educação, bem como o mecanismo de consulta para as questões sanitárias e fitossanitárias; ciência e tecnologia; e a intensificação das relações envolvendo 10 Declaração Conjunta da Primeira Cúpula Brasil-União Europeia, Lisboa, 4 de julho de 2007. 11 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula de Lisboa, Lisboa, 4 de julho de 2007. BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 131 entre a sociedade civil. A Declaração Conjunta reflete, assim, a agenda da reunião plenária da Cúpula de Lisboa, quando foram abordados três blocos de temas: Relações Brasil-União Europeia: o lançamento da Parceria Estratégica; Temas regionais: situação na Europa e situação na América Latina e Assuntos Globais: Rodada de Doha, Fortalecimento do multilateralismo, Mudança do clima, Combate à pobreza e à exclusão social e Energia. Entre o lançamento da Parceria Estratégica e a II Reunião de Cúpula Brasil- UE, realizada no Rio de Janeiro, em 22 de dezembro de 2008, as duas partes estiveram empenhadas em, ao mesmo tempo, dinamizar as áreas de cooperação já estabelecidas e negociar o Plano de Ação Conjunto da Parceria Estratégica. A Cúpula do Rio de Janeiro, que ocorreu sob a Presidência Francesa do Conselho da União Europeia, contou com a participação do Presidente Nicolas Sarkozy e do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso. Sua agenda privilegiou o debate das questões de interesse global, o tratamento da crise financeira internacional à luz a reunião ministerial do G-20 Financeiro, realizada em São Paulo, em novembro de 2008, bem como no contexto da coordenação com vistas à Cúpula do G-20, realizada em Londres, em abril de 2009. Também nesse bloco de temas foi dada continuidade à discussão da agenda de Lisboa com o aprofundamento da discussão sobre o fortalecimento do multilateralismo nos planos político econômico, quando foram discutidas a reforma das Nações Unidas e de seu Conselho de Segurança, bem como a Rodada de Doha da OMC; além que questões afetas à mudança do clima e energia, tendo presente a realização no Brasil, em novembro de 2008, da Conferência Internacional sobre Biocombustíveis e as Metas de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas. Também foram intercambiadas visões sobre os cenários regionais europeu e latino-americano e abordados temas bilaterais da Parceria Estratégica Brasil-UE, consubstanciados no Plano de Ação Conjunto, então adotado. O Plano de Ação constitui-se em documento amplo que passa a estabelecer a moldura central das relações do Brasil com a União Europeia. Inclui as áreas de cooperação já em andamento, bem como novas vertentes de atuação conjunta, em forma de programa de trabalho a ser avaliado anualmente nas reuniões da Comissão Mista Brasil União Europeia.12 12 Comissão Mista Brasil-União Europeia, instituída pelo Acordo-quadro de cooperação entre a Comunidade Econômica Europeia e a República Federativa do Brasil, assinado em 29 de junho de 1992. A Comissão realizou em Brasília, em 17 de março de 2007 sua 10ª reunião, estando o próximo encontro previsto para ralizar-se em Bruxelas, entre os dias 07 e 09 de julho de 2009. MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 132 O Plano de Ação consolida como metas centrais da Parceria Estratégica a promoção da paz e da segurança abrangente por meio de um sistema multilateral eficaz; a promoção da parceria econômica, social e ambiental para o desenvolvimento sustentável; a promoção da cooperação regional; a promoção da ciência, da tecnologia e da inovação; e a promoção do intercâmbio entre os povos. O Documento está, assim, estruturado em cinco grandes blocos de temas agrupando as principais ações que as partes se comprometem a implementar ao longo dos próximos três anos. Ao final desse período, o Plano será objeto de avaliação, com vistas a definição de novos rumos para a parceria. 1. Promoção da paz e da segurança Propõe atuação conjunta, inclusive no contexto do Diálogo Político de Alto Nível, com vistas ao fortalecimento do sistema multilateral, com ênfase na reforma das Nações Unidas, incluindo o Conselho Econômico e Social (ECOSOC), a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) e o Conselho de Segurança (CSNU), assim como consultas e ações conjuntas nas áreas de direitos humanos e democracia, justiça internacional (inclusive no âmbito do Tribunal Penal Internacional – TPI), desarmamento e não proliferação, prevenção de conflitos e gestão de crises, construção da paz, e luta contra o terrorismo, crime organizado e corrupção, drogas ilícitas. Como desdobramento da implementação desse capítulo do Plano de Ação, os representantes do Brasil e da União Europeia em organismos internacionais nas áreas acima citadas estão instruídos a intensificar a coordenação em foros multilaterais. À luz da ativa participação do Brasil e da União Europeia no Conselho de Direitos Humanos da ONU, missões das duas partes intensificarão o diálogo nessa área, especialmente no tocante à construção da paz e à assistência pós-conflito, com vistas a projetos conjuntos no Haiti, com reuniões já marcadas para ocorrer em Brasília, no início de junho de 2009. As partes também assumiram o compromisso de dar prosseguimento à coordenação sobre a reforma das Nações Unidas. Destacam-se, nesse capítulo, os trabalhos do Diálogo sobre Desarmamento e Não-Proliferação, instituído ainda em 2002, com reuniões anuais de consultas entre o Brasil e a Tróica da UE sobre temas de desarmamento e não-proliferação, em nível de altos funcionários, de periodicidade anual. BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 133 Com base no princípio da responsabilidade compartilhada e em uma abordagem equilibrada entre a redução da oferta e da demanda de drogas, e tomando em consideração as realidades de ambas as Partes, a cooperação entre Brasil e UE nessa matéria deve centrar-se no intercâmbio de experiências e de boas práticas, atividades de capacitação e treinamento, intercâmbio de informações operacionais e jurídicas, entre outras. 2. Aperfeiçoamento da parceria econômica, social e ambiental para a promoção do desenvolvimento sustentável Trata–se de área particularmente relevante, em que as partes se comprometem a trabalhar em diferentes níveis com vistas à conclusão da Rodada de Doha. Também institui o Diálogo Brasil-União Europeia sobre Temas Agrícolas (aspectos sanitários e fitossanitários), mecanismo de grande importância para o encaminhamento de questões relativas ao comércio bilateral; o Diálogo sobre Temas Macroeconômicos e Financeiros – a ser em breve estruturado com vistas inclusive ao debate sobre a crise financeira internacional; o reforço de ações em comércio e investimentos, com vistas à ampliação e diversificação do intercâmbio bilateral (criação de Grupo de Trabalho sobre Comércio e Investimentos); intensificação da cooperação entre o BNDES e o Banco Europeu de Investimentos (BEI) em áreas como mudança do clima, energia e infra-estrutura. Dispõe sobre o relacionamento nas áreas de propriedade intelectual, transportes marítimo e aéreo e sociedade da informação. Além dos novos Diálogos Setoriais propostos nesse capítulo, cabe menção ao Diálogo sobre Sociedade da Informação, já institucionalizado, ao amparo do qual são tratados temas relacionados à tecnologia da informação, bem como sobre governança da Internet, tema em que a experiência brasileira desperta o interesse da Comissão Europeia, que deseja ainda conhecer os projetos do Governo brasileiro em matéria de inclusão digital (programas federais “Um Computador por Aluno” e “Plano Nacional de Banda Larga”). Dispõe ainda sobre a consecução da Metas do Milênio; sobre o diálogo sobre desenvolvimento global e cooperação triangular; sobre questões sociais e de emprego; sobre redução de disparidades regionais e a instituição do Diálogo sobre Governança do Setor Público. Nesse quadro, será dinamizado o Diálogo sobre Desenvolvimento Social, firmado em abril de 2008, orientado para a implementação de projetos na área social, objetivando a promoção MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 134 do emprego pleno, livremente escolhido e produtivo para mulheres e homens; o fortalecimento da agenda de trabalho decente, em particular quanto a princípios fundamentais, salários justos e direitos no trabalho; o combate ao trabalho infantil e o trabalho forçado; o estímulo a orientação profissional e oportunidades de aprendizagem continuada; a cooperação na área de saúde e segurança no ambiente de trabalho; o fortalecimento do diálogo no campo dos sistemas de seguridade social; o apoio ao intercâmbio de melhores práticas na área de responsabilidade social corporativa e códigos de conduta justa em empresas; o intercâmbio de melhores práticas em inclusão social, em particular com relação a minorias. Também merece destaque o Diálogo sobre Políticas de Integração Regional, concluído em novembro de 2007, ao amparo do qual já estão em andamento projetos bilaterais sobre redução das assimetrias intra-regionais no Brasil. As partes se comprometem, no contexto desse Diálogo, a intercambiar experiências em coesão territorial, bem como em governança em múltiplos níveis e em parcerias que envolvam atores regionais e locais, o setor privado e a sociedade civil; a trocar experiências sobre planejamento estratégico e sobre a organização de estratégias de desenvolvimento territorial voltadas para a redução de disparidades sociais e regionais; a buscar o desenvolvimento de capacidade administrativa, coordenação e comunicação interinstitucional e capacidade de monitoramento e avaliação; a desenvolver esquemas de cooperação entre regiões, inclusive cooperação transfronteiriça; a estimular o apoio técnico para o desenvolvimento e a consolidação de políticas regionais, inclusive a possível implementação de projetos-piloto em áreas-chave da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) do Brasil e da política regional da Comissão Europeia. Esse capítulo do Plano de Ação trata também do desenvolvimento da parceria no contexto do Diálogo sobre a Dimensão Ambiental do Desenvolvimento Sustentável e Mudança do Clima, instituído em maio de 2006. Brasil e UE cooperarão no processo abrangente lançado em Bali a fim de permitir a implementação integral, efetiva e sustentada da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) por meio de ações de cooperação de longo prazo, agora, até e após 2012. Trabalharão em conjunto para procurar alcançar um resultado acordado ambicioso e global até 2009 com vistas ao fortalecimento da cooperação internacional sobre a mudança do clima por meio de um esforço global nos marcos da UNFCCC e do Protocolo BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 135 de Quioto. Com esse objetivo, sublinham a importância de se alcançarem resultados com relação a todos os componentes do Plano de Ação de Bali adotado em dezembro de 2007 (entre outros, visão compartilhada, mitigação, adaptação, tecnologias, financiamento), tomando seriamente em consideração os cenários ambiciosos do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) e levando em conta o princípio da eqüidade. Assinalam a necessidade de que todos os países desenvolvidos assumam a liderança, comprometendo-se com metas de redução de emissões mandatórias, ambiciosas e comparáveis, e de que os países em desenvolvimento tomem medidas de mitigação apropriadas em nível nacional, no contexto do desenvolvimento sustentável, apoiadas e viabilizadas por tecnologia, financiamento e capacitação, de forma mensurável, reportável e verificável. Brasil e UE ressaltam a necessidade de ação tempestiva do Grupo de Trabalho Ad Hoc do Protocolo de Quioto de modo que conclua seu programa de trabalho até o fim de 2009. Reconhecem que o progresso substantivo nessa área deve ser baseado no objetivo último da Convenção e no princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas e das respectivas capacidades. O Plano de Ação Conjunto dispõe, ademais, sobre a implementação do Diálogo sobre Política Energética, criado por ocasião da visita do Presidente da República à Comissão Europeia, em 5 de julho de 2007, tendo realizado sua primeira reunião ministerial à margem da Conferência Internacional sobre Biocombustíveis (São Paulo, 17-21/11/2008). No marco do diálogo sobre política energética, Brasil e União Europeia pretendem fortalecer a cooperação em políticas voltadas para aperfeiçoar a segurança energética, inclusive a diversificação da oferta e de rotas de abastecimento; em questões regulatórias para mercados de energia competitivos, incluindo oportunidades de investimento; em eficiência energética e gestão da demanda, incluindo iniciativas conjuntas e trabalhos conjuntos para a promoção do acesso à energia e da eficiência energética em nível internacional; em tecnologias de menor teor de carbono, incluindo, inter alia, gás e carvão limpo, bem como pesquisa na área da energia nuclear e cooperação em segurança nuclear, com atenção especial às tecnologias seguras e sustentáveis; no desenvolvimento e na disseminação de tecnologias de energia renovável, inclusive biocombustíveis de segunda geração; na promoção da consolidação de mercados nacionais, regionais e internacionais para biocombustíveis; em padrões técnicos internacionais para MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 136 biocombustíveis; sustentabilidade para biocombustíveis de forma a garantir que produção de bioenergia, não afete a produção de alimentos e a biodiversidade. Ainda com respeito a biocombustíveis, estão em curso entre o Brasil e a União Europeia entendimentos para a cooperação trilateral com países de menor desenvolvimento para promover a produção de biocombustíveis e bioeletricidade, compatíveis com as normas e os padrões exigidos pelo mercado internacional. 3. Promoção da Cooperação Regional Dispõe sobre a intensificação da cooperação ALC-UE, Grupo do Rio- UE e da agenda Mercosul-UE. Para tanto, as partes se comprometem a apoiar iniciativas interregionais que aprofundem a integração regional, em particular o processo ALC-UE; a estimular o intercâmbio regular de opiniões sobre a situação em ambas as regiões; a implementar os compromissos gerados pelas Cúpulas ALC-UE; a intensificar o intercâmbio sobre políticas- chave voltadas para a promoção da inclusão social e para a redução da pobreza e desigualdade. A Parceria Estratégica Brasil-UE apresenta grande potencial de impacto positivo sobre o Brasil e a UE, bem como sobre as relações entre a UE e o Mercosul em seu conjunto. Brasil e UE atribuem grande importância ao fortalecimento das relações entre ambas as regiões e têm compromisso com a retomada e a conclusão do processo de negociação de um Acordo de Associação birregional equilibrado e abrangente. Para tanto, as partes se comprometem a dar prosseguimento às negociações com vistas à conclusão de um Acordo Mercosul-UE equilibrado e abrangente; a apoiar o diálogo político e outras iniciativas a fim de fortalecer o desenvolvimento e a cooperação econômica entre as duas regiões; a fortalecer o diálogo regulatório e industrial birregional, a fim de aperfeiçoar o ambiente de negócios e superar obstáculos desnecessários ao comércio; e a estimular o intercâmbio entre o Parlamento do Mercosul e o Parlamento Europeu. 4. Promoção da Ciência, Tecnologia e Inovação Atribui ênfase à intensificação das atividades do Comitê Diretivo sobre Ciência e Tecnologia, com prioridade para as áreas de biotecnologia, nanotecnologia, meio ambiente, energia e mudança do clima. Nesse particular, merece destaque a intensificação dos trabalhos do Diálogo sobre Ciência e BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 137 Tecnologia, especialmente a partir da entrada em vigor, em dezembro de 2006, do Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica, ao amparo do qual foi instituído o Comitê Diretivo de Cooperação Científica e Técnica Brasil-União Europeia (CDC), em nível ministerial. O Plano de Ação contempla a intensificação do desenvolvimento de projetos de pesquisa no Brasil e na União Europeia em temas de energia (biocombustíveis e energia nuclear), agricultura e biotecnologia, meio ambiente e mudança do clima, espaço, saúde, nanotecnologia, transportes, mobilidade de pesquisadores, ciências sociais e humanas e tecnologias da informação e comunicações. O Plano de Ação dispõe também sobre o desenvolvimento da cooperação no campo do espaço exterior e da navegação por satélite, em particular com vistas a intensificar o diálogo e o intercâmbio de informações relativos aos Programas Europeus de Navegação por Satélite (Galileo e EGNOS); o fortalecimento da cooperação entre a CE e o Brasil na área de observação da Terra, em especial mediante a participação na Iniciativa GEO (Grupo de Observação da Terra); a exploração de oportunidades de cooperação em pesquisas para o uso pacífico da energia nuclear, em particular as negociações de um acordo de cooperação no campo da pesquisa em energia de fusão entre o Brasil e a EAEC (EURATOM), com vistas ao acesso do Brasil ao projeto do Reator Termonuclear Experimental Internacional (ITER). 5. Intercâmbio Cultural e entre as sociedades Nesse capítulo do Plano de Ação, merece relevo o tratamento do tema migrações, os contatos entre as sociedades civis e questões consulares, assuntos que adquirem crescente importância no contexto da globalização, tendo como base os laços históricos, culturais e humanos que unem os povos do Brasil e da Europa. O Brasil e a União Europeia reconhecem o papel positivo da migração como fator de intercâmbio humano e econômico nos países de origem e de destino e se comprometem a continuar a tratar toda a gama de questões de migração, tais como migração regular, migração irregular e os vínculos entre migração e desenvolvimento, no marco das relações bilaterais e dos foros internacionais de que participam Brasil e UE, tomando em conta os direitos humanos e a dignidade de todos os migrantes. Para tanto, acordaram fortalecer o diálogo sobre questões de migração nos foros Brasil-UE existentes e propõem-se a trabalhar mais especificamente na área das remessas, a fim de facilitar suas transferências e encontrar mecanismos MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 138 apropriados para a redução de seus custos; aumento da cooperação operacional a fim de combater o tráfico de imigrantes, o tráfico de pessoas e a exploração dos migrantes; a facilitação de viagens sem necessidade de visto, com respeito integral à conclusão dos respectivos procedimentos internos, parlamentares e outros, com base na reciprocidade, mediante a negociação e conclusão em futuro próximo de acordo(s) sobre isenção de vistos de curta duração entre a CE e o Brasil; o prosseguimento da cooperação sobre assuntos consulares, especialmente aqueles relativos a acesso consular, assistência e proteção; atenção especial a que sejam garantidas aos consulados informações em casos de prisão, detenção ou transferência de seus nacionais; a assegurar a prestação de assistência consular a pessoas detidas em postos policiais, aeroportos e postos de fronteira. O Plano de Ação também contempla o fortalecimento da cooperação nos campos da educação e da cultura. Para tanto, as partes comprometem- se a criar um diálogo setorial sobre educação, juventude e esportes, que abrangerá temas de interesse comum, tais como a cooperação e o intercâmbio em educação superior e a mobilidade de estudantes, professores e pesquisadores mediante a implementação de programas como o Erasmus Mundus, em consonância com o espírito do Espaço Comum de Educação Superior ALC-UE; o intercâmbio de informações e de experiências com vistas ao aperfeiçoamento de sistemas de avaliação acadêmica; a troca de boas práticas e informações com vistas à identificação de métodos bem- sucedidos para o ensino e o aprendizado de ciências, a fim de aumentar a participação na educação científica e no treinamento vocacional e técnico- profissional; a colaboração entre instituições de alto nível (universidades, institutos de pesquisa, academias diplomáticas, think tanks e outras) nas áreas de estudos brasileiros e europeus especializados e de Relações Internacionais; a estimular a promoção do multilingüismo nos sistemas educacionais e universitários de ambas as Partes e facilitar o ensino dos idiomas da outra Parte. Na esfera cultural, o Brasil e UE estão comprometidos com a preservação e a promoção da diversidade cultural, com o aperfeiçoamento do diálogo intercultural e com a promoção das indústrias culturais e criativas. As Partes procurarão tratar conjuntamente essas questões em nível institucional, bem como no nível dos setores público e privado e das organizações da sociedade civil. Nesse sentido, as partes estabelecerão o diálogo regular sobre políticas culturais, inclusive as indústrias culturais e criativas com vistas ao trabalho BRASIL-UNIÃO EUROPEIA: UMA PARCERIA ESTRATÉGICA 139 conjunto para a promoção da cooperação em instâncias internacionais, a fim de facilitar a implementação eficiente da Convenção da UNESCO de 2005; a promoção da inclusão social e do desenvolvimento sustentável por meio do acesso à cultura, inclusive mediante o uso de tecnologias de informação e comunicação e das novas tecnologias digitais; a adoção de medidas voltadas para a promoção do intercâmbio cultural e possíveis iniciativas conjuntas a fim de divulgar a cultura brasileira na Europa e a cultura Europeia no Brasil; o estímulo à cooperação e intercâmbio no campo do patrimônio cultural, inclusive no setor de museus, com vistas à preservação de bens e expressões culturais; a facilitação do trânsito da arte e de artistas do Brasil e da UE; o desenvolvimento de políticas públicas no setor audiovisual. Cientes da importância da consolidação dos instrumentos democráticos de consulta à sociedade civil, em particular as instituições que representam organizações da sociedade civil nas esferas econômica e social, o Brasil e a União Europeia se comprometem a estimular a cooperação entre o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) do Brasil e o Comitê Econômico e Social Europeu (EESC). Decidiram, assim, estimular a organização de Mesa Redonda DCES-EESC, que constituirá a arquitetura institucional do relacionamento Brasil-UE na promoção da cooperação e do intercâmbio de experiências e de boas práticas entre associações empresariais, sindicatos, agricultores e outras organizações da sociedade civil de ambas as Partes. Em complemento à interação ente as sociedades, o Plano de Ação também se propõe a estimular o intercâmbio entre os Parlamento Europeu e o Congresso Nacional brasileiro. As duas partes estabeleceram, em abril de 2009, o Diálogo Parlamentar, que já realizou sua primeira seção de instalação. A Parceria Estratégica Brasil-UE também deverá promover a cobertura de imprensa e o intercâmbio jornalístico recíprocos; a organização de conferências e cursos de curta duração para jornalistas, entre outras iniciativas. A elevação do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia ao patamar de Parceria Estratégica resultou de uma convergência de interesses, fundada nos valores e princípios que compartilhamos e defendemos nos foros internacionais, e no reconhecimento recíproco do potencial de nossa coordenação e cooperação. Desde a Cúpula de Lisboa, em julho de 2007, o diálogo bilateral ganhou maior dinamismo em todos os níveis, o que ratifica as elevadas expectativas quanto ao futuro promissor da Parceria Estratégica. MARIA EDILEUZA FONTENELE REIS 140 A face mais visível dessa relação, até mesmo por ser mais facilmente mensurável, se traduz nas cifras de investimento e intercâmbio comercial. Com efeito, a União Europeia tem tradicionalmente ocupado lugar de relevo entre os principais parceiros econômicos do Brasil. A corrente comercial em 2008 superou a casa dos US$ 77 bilhões de dólares. Essa cifra representa cerca de 22,2% do comércio total do Brasil, e um crescimento de cerca de 26% sobre o mesmo período em 2007. Somente em 2007, o ingresso de investimentos diretos dos 27 países-membros da UE no Brasil somou US$ 18,4 bilhões, o que representa 54,6% do total de investimentos que o Brasil recebeu naquele ano. Mas a apresentação acima do Plano de Ação da Parceria Estratégica Brasil-União Europeia buscou mostrar, de forma resumida, a diversidade e amplitude do relacionamento moderno entre o Brasil e a União Europeia. O Plano completo consta de documento de 23 páginas, onde se estruturam as múltiplas ações que as duas partes acordaram desenvolver ao longo dos três anos de sua validade, com vistas à sua reavaliação em 2011. Trata-se de agenda ambiciosa, de importância que transcende quaisquer interesses econômicos imediatos. O Plano de Ação traduz a abrangência e o caráter diversificado do relacionamento entre o Brasil e a União Europeia, que envolve não apenas agentes governamentais, mas também instituições acadêmicas, o empresariado, os meios científico e cultural e tantos outros segmentos das sociedades do Brasil e da Europa. O Plano de Ação reflete, assim, a disposição compartilhada de imprimir ao relacionamento enfoque verdadeiramente estratégico e humanista, voltado para as grandes questões de nosso tempo. Encerra, portanto, a perspectiva de dois parceiros empenhados na construção de uma ordem internacional multipolar, lastreada no respeito mútuo, na confiança compartilhada, e na determinação de trabalhar não só pela prosperidade e bem estar dos povos do Brasil e da União Europeia. O sentido verdadeiramente estratégico da Parceria Brasil-União Europeia se traduz na capacidade de trabalhar com olhar solidário sobre os mais pobres e excluídos para a construção de um mundo mais justo e melhor. 141 Instabilidade política moderna nos países que correspondem aos últimos impérios colônias europeus. Exemplos do Oriente Médio e comparação com a África Affonso Celso de Ouro Preto Berço das três grandes religiões monoteístas, ponto de contato entre o Ocidente e o Oriente, área de conflito e também de síntese cultural, centro estratégico próximo às maiores riquezas petrolíferas do planeta, o Oriente Médio se mantém, ainda hoje, como a região por excelência das confrontações e das crises modernas. Uma observação inicial é conveniente. Em primeiro lugar, o Oriente Médio, desde as Cruzadas e a conquista otomana – com a exceção da tentativa de conquista francesa durante a Revolução, no final do século XVIII – viveu durante séculos, contrastando com os distúrbios de hoje, numa relativa paz e num clima próximo à tolerância, como parte do império otomano. Outras partes do império haviam sido marcadas pela violência mas não foi o caso do Oriente Médio propriamente dito. A segunda observação seria que os estados, hoje existentes, na região, constituem entidades políticas relativamente modernas, na medida em que representam a divisão levada a cabo, em proveito próprio, após a primeira guerra mundial, pela Grã-Bretanha e pela França, das províncias árabes do império otomano. As crises que marcam o Oriente Médio moderno – conflitos do Líbano, guerra no Iraque, tensões com a Síria, confrontação palestino – israelense, não devem, por outro lado, ser examinados como fenômenos estanques sem AFFONSO CELSO DE OURO PRETO 142 nenhuma relação de casualidade entre si (ainda que esse princípio de causalidade não tenha sido aceito por todos os observadores e por todos os matizes de opinião). Um conflito específico, efetivamente, deve ser examinado, com particular atenção. já que repercutiu, intensamente, não só em toda a região mas também, globalmente, fora do Oriente Médio. Trata-se da confrontação entre o nacionalismo árabe, mais especificamente, o nacionalismo palestino, e o Estado judeu de Israel. Pode-se afirmar que uma eventual pacificação da região dependerá da solução que puder ser alcançada (se essa solução for possível um dia...) para esse problema. Sem tentar desenvolver uma análise histórica da criação do Estado de Israel e de sua evolução ou um exame pormenorizado dos nacionalismos árabes da região, em particular o palestino, cabe verificar, hoje, que a complexa colisão (israelo-palestina) se expressa em dois ou mesmo em três níveis. Trata-se, em primeiro lugar de um conflito pela posse de um território. A expansão da colonização israelense entrou em choque com as populações árabes residentes na Palestina. Esse choque teve início com o desenvolvimento da emigração judaica, a partir do século XX na Palestina. O Holocausto nazista conferiu uma nova legitimidade a essa colonização que levou à criação do Estado de Israel em 1948. Em segundo lugar, a confrontação é também religiosa, na medida em que o país – Israel-Palestina – é considerado terra sagrada tanto para a tradição religiosa judia quanto para o Islam – (o país, como se sabe, também já foi Terra Santa também para o cristianismo). Enfim, em terceiro lugar, existe um conflito que opõe uma luta pela emancipação de um povo – o palestino – a uma preocupação de segurança de outro povo, o israelense, que se julga gravemente ameaçado pelos fundamentalismos islâmico e mesmo pelos simples nacionalismo de seus vizinhos palestinos. Após uma série de guerras que se traduziram por vitórias israelenses –as quais expressavam a superioridade técnica e militar de uma sociedade do Primeiro Mundo (ainda que pequena) sobre os seus vizinhos do Terceiro Mundo – em 1967 haviam sido ocupadas os últimos territórios palestinos, até então, sob soberania árabe, ou seja a Jerusalém Oriental, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS 143 A última confrontação entre estados, a de 1973 constituiu uma tentativa por parte, dos vizinhos de Israel, de recuperar territórios perdidos em guerras anteriores. A partir de então o conflito torna-se mais político do que militar. O nacionalismo palestino frente à ocupação israelense, expressou- se, inicialmente, sobretudo pelo movimento “OLP” – Organização pela Libertação da Palestina. Vários partidos e movimentos participavam e participam da Organização. O principal deles foi o “El Fatah” cujo líder, Yasser Arafat, tornou-se o principal dirigente do movimento palestino. A situação da Palestina ocupada após a guerra de 1967 levou ao desenvolvimento da violência que se alastrou pelo território palestino com as acusações mútuas de terrorismo e de repressão da força ocupante. Em 1992, teve início um diálogo OLP – Estado de Israel. Em 1993, 94 em Oslo uma serie de acordos, celebrados graças à mediação norueguesa, levaram, pela primeira vez, ao reconhecimento mútuo. A OLP reconheceu o Estado de Israel, cuja existência, nos seus programas, não havia sido considerada como legítima até então, Israel, por sua vez, reconhecia, pela primeira vez, o nacionalismo palestina (a comunidade palestina havia sido considerada, antes, como apenas parte do mundo árabe: a existência de uma nação palestina, ainda, não era aceita nos EUA e em Israel) abrindo caminho para um futuro Estado palestino – cujas fronteiras e condições de existência, no entanto, estavam longe de estar determinadas. No entendimento palestino (e do resto do mundo árabe), essas fronteiras deveriam estender-se aos limites de 1967 e incluir Jerusalém Oriental, futura capital do novo Estado. Os acordos de Oslo de 1992-93 abriram caminho para a criação da Autoridade Palestina, com base na cidade de Ramalah, sob a presidência de Yasser Arafat, do partido Al Fatah, com uma soberania sobre os “Territórios Ocupados” (ou seja a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, conquistados por Israel na guerra de 1967). Um movimento palestino, de base religiosa, se opôs ao projeto de criar dois Estados – o judeu e o palestino – e defendeu o ideal de fundar apenas um, povoado, de israelitas e árabes mas, no seu entendimento, com uma maioria muçulmana. Tratava-se do Hamas. AFFONSO CELSO DE OURO PRETO 144 Vale registrar que a OLP, tanto quanto outros movimentos nacionalistas árabes, predominantes até o fim da década dos noventa, como o Bath sírio-iraquiano ou movimento egípcio dos coronéis, representavam ideais laicos. Esses nacionalismos expressavam a ambição, sobretudo de classes médias, de identificar-se com modelos ocidentais de modernidade e visavam introduzir o progresso do Ocidente nas tradicionais sociedades do Oriente Médio. O próprio conceito de nacionalismo, aliás, é ocidental e só apareceu e consolidou-se no mundo árabe a partir do início do século XX. O partido Baath, por exemplo, foi fundado na Síria, por árabes cristãos parcialmente ocidentalizados. No mundo árabe, todavia, após as sucessivas derrotas militares frente a Israel, bem como com o desgaste de governos nacionalistas laicos, frequentemente acusados de incompetência e ou de corrupção, fortaleceu- se, a partir dos anos noventa, um novo nacionalismo: o religioso. Partidos nacionalistas religiosos, às vezes antigos, como os Irmãos Muçulmanos do Egito (fundado em 1926), ganharam importância. Criou-se o Hezbollah no Líbano, no seio da comunidade xiita, com apoio iraniano (após a invasão israelense de 1982). O movimento dos Irmãos Muçulmanos ganhou uma nova dimensão, no seu país de origem, o Egito, e inspirou, na Palestina, o Hamas. Essa tendência refletia também o impacto da grande Revolução Islâmica Iraniana (fora do mundo árabe) de 1979. O movimento radical islâmico, mas não apenas árabe, Al Queda (condenado por vários partidos nacionalistas), constitui um desdobramento dessa tendência de retorno às raízes do Islam. Verifica-se que as classes médias arábes, até recentemente parcialmente ocidentalizadas, tendem a retornar a uma procura de identidades próprias que levariam a ideais islâmicos, afastadas das influências da cultura ocidental. O movimento atinge tanto as áreas de tradição xiita, amplas áreas do Iraque e do Líbano e alguns países do Golfo, além do Irã de cultura persa, bem como o resto do mundo árabe, em geral, sunita. O caráter religioso de certos movimentos do Oriente Médio alterou o caráter dos conflitos registrados na região, tornando mais difíceis os mecanismos de negociação. Convém, aliás, lembrar que o papel crescente da religião na política, não constitui fenômeno restrito ao mundo árabe islâmico. Em Israel cresce a importância dos partidos religiosos (de direita ou de extrema direita). INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS 145 Esvaziam-se, no Estado judeu, os partidos tradicionais laicos, como o trabalhista, que desempenharam um papel decisivo na criação do Estado hebreu como o Partido Trabalhista. Em 2005 havia sido eleito para a presidência da Autoridade Palestina, o Presidente Mahmoud Abbas (após o falecimento de Arafat, o primeiro Presidente) do movimento nacionalista laico o Al Fatah, considerado moderado. Um ano depois, o Hamas islâmico, definido em Israel, e nos EUA como movimento essencialmente terrorista, alcançou a maioria absoluta das cadeiras da Assembleia Legislativa. Cabia-lhe formar o Governo, de acordo com a legislação vigente. Diante da impossibilidade de formar uma coalizão, constitui-se um governo formado apenas pelo Hamas. Criara-se uma situação delicada na medida em que, oficialmente, o Hamas não reconhecia Israel e o Governo israelense, por sua vez, mantinha a sua definição do movimento Hamas como organização terrorista cujo objetivo seria destruir Israel. Israel exigiu de seus interlocutores palestinos, as conhecidas três condições: reconhecimento do Estado de Israel, aceitação oficial dos acordos já concluídos (Oslo por exemplo), renúncia à violência enfim. O Quarteto EUA, UE, Rússia e Nações Unidas, criado para prestar assistência ao processo de paz, também aceitou endossar as chamadas três condições, para iniciar uma negociação, atendo a pressão sobretudo norte-americana (ainda que todos os membros do Quarteto, como o russo, não expressassem seu apoio às três condições com a mesma intensidade). O criticado Governo do Hamas, todavia, havia sido eleito, num pleito que não foi posto em dúvida por nenhum observador. Gerou-se uma situação pela qual a comunidade internacional (a maior parte) não quis negociar com um Governo ainda que este tivesse sido democraticamente eleito (segundo todos os observadores), com o argumento de que o partido vitorioso não havia oficialmente renunciado à violência. A exigência das chamadas três condições, cobradas do Hamas, se traduzia numa recusa de negociar com o mais poderoso e, aparentemente, mais representativo (pelo menos então), movimento palestino. Toda a importante assistência internacional (sobretudo europeia) e, por outro lado, o repasse dos impostos por Israel, foram suspensos. No início de 2008, o Hamas assumiu o controle da Faixa, eliminando, na área, a presença do El Fatah. O nacionalismo palestino consagrava a sua divisão com duas administrações – a primeira, a do Hamas, com o controle de Gaza pelo Hamas e, a segunda na Cisjordânia com o Fatah. A primeira AFFONSO CELSO DE OURO PRETO 146 repudiada por Israel e pela maior parte da comunidade internacional e a segunda, oficialmente definida como moderada, aceita como parceira para negociações. Apesar das rodadas de negociações, Israel e moderados palestinos da Administração de Ramallah não se verificaram verdadeiros progressos. Não se registram, na sociedade israelense, sinais de que seria viável uma aceitação de concessões mútuas, necessárias a qualquer verdadeiro entendimento. Israel continua dominado pela prioridade conferida ao problema de sua própria segurança, principal ou quase única tema de sua vida política. De maneira simplificada, poderia afirmar-se que a história do povo judeu, diante das inúmeras perseguições sofridas que culminaram no Holocausto nazista, levou ao fortalecimento, na sociedade israelense, da mentalidade de que não haverá, em caso de perigo, qualquer auxílio exterior e de que o país constitui uma fortaleza sitiada, em perigo, rodeada de inimigos, cujo fanatismo é irremediável e com os quais qualquer forma de verdadeiro diálogo é impossível. Registraram-se, todavia. A sua evidente superioridade militar, baseada inclusive em armas nucleares, permitirá a Israel evitar a necessidade de quaisquer concessões. O fortalecimento da extrema direita e dos partidos religiosos, expressa já pelas eleições de 2006 afastam Israel de uma rota de concessões inevitáveis para qualquer negociação. Nas eleições de 2009, o eleitorado israelense resvalou ainda mais para a direita, com uma maioria absoluta para os partidos conservadores e ultraconservadores. O futuro Primeiro Ministro, aparentemente, no momento em que se redige esta tentativa de análise, seria Benjamin Netanyahu, líder do Partido conservador Likud, ainda que o seu principal adversário, a Chanceler Tzipi Livni alcançado, para o seu partido centrista Kadima, uma maior votação, sem, conseguir, com seus aliados, uma maioria na Assembleia, a Knesset. Benjamin Netanyahu, durante a campanha eleitoral, expressou oposição ao projeto de criação do estado palestino. A sua liderança no próximo governo israelense significaria, ao que tudo indica, um sensível recuo no processo de paz (que se encontrava já passavelmente paralisado....). Teve início, ainda com o presente governo, antes das eleições, no começo do presente ano de 2009, por parte das forças israelenses, em retaliação ao disparo de mísseis, uma campanha de violentos bombardeios, seguida de uma invasão parcial de Gaza. Certos observadores atribuíram os ataques ao fato de que as eleições israelenses estavam convocadas para fevereiro e que INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS 147 o Governo israelense, controlado por partidos centristas, desejava demonstrar os seus compromissos com a segurança do país. Complica-se a situação diante do desenvolvimento de um novo projeto na Palestina. Trata-se da defesa do Estado binacional. Seria abandonada a idéia de criar um Estado palestino em favor da luta pelos direitos políticos das populações árabes sujeitas ao controle ou a ocupação israelense. Os palestinos de Israel propriamente dito – cerca de 20% população total do país – com os palestinos da Cisjordânia e de Gaza, alcançariam, a médio prazo, devido a sua alta taxa de aumento de população, uma maioria nos territórios controlados por Israel. Seria criada a difícil situação para o público e para as autoridades israelenses de escolher entre o estabelecimento de um estado que se afastaria, com a consequente perda de legitimidade, de um modelo democrático ou então, de um país que deixaria de ser judeu, o que significaria o fim da sociedade israelense tal como ela existiu até hoje. A opção do Estado binacional é defendida apenas (por enquanto ) por uma minoria dos palestinos, mas a hipótese passa a ser lembrada, com crescente freqüência, como elemento de pressão contra Israel. Diante do clima de impasse, a única possibilidade de abertura ou início de abertura política, poderá decorrer de uma eventual pressão internacional, mais precisamente dos EUA. Todavia, a política norte-americana, com raras exceções, até hoje, se recusou a exercer essa verdadeira pressão. É perceptível, na opinião pública, e nos meios governamentais, dos EUA, uma identificação com Israel onde se vê uma sociedade engajada na luta contra os fundamentalismos islâmicos adversários também dos EUA. Israel, seria o aliado fiel, necessário numa região estrategicamente importante, particularmente rica em petróleo, onde são claros os interesses norte- americanos. Durante o Governo Bush, após os atentados de setembro 2001, a prioridade da política exterior, no Oriente Médio (e não só no Oriente Médio) passou a ser a luta na “guerra contra o terror” – “the war on terror” – o que levaria a um fortalecimento, ainda maior, das relações com os estamentos militares israelenses. Notou-se, no entanto, no último ano do Governo Bush, uma inflexão de sua política frente à crise Israel – Palestina. Por iniciativa norte-americana foi convocada a Conferência de Anápolis, onde foi aceito o princípio de uma negociação, sem precondições (core issues) e foram marcadas, inclusive, AFFONSO CELSO DE OURO PRETO 148 datas para o processo negociador. O Governo Bush terminou, no entanto, sem um sensível progresso no processo de paz. Os conflitos e crises do Oriente Médio continuaram a ser vistos pelos EUA durante administração Bush, separadamente, como crises especificas de cada país, como foi dito no início desta tentativa de análise. O fenômeno moderno do nacionalismo árabe e as repercussões, em toda a região, das humilhações decorrentes do conflito israelo-palestino, o seu caráter religioso e sua dimensão simbólica, não foram levados em conta. A luta contra o “Mal” da administração Bush ou seja a guerra contra o terror, expessa em termos ideológicos, se mantinha como objetivo principal ou único nas demais áreas de crise do Oriente Médio – Líbano, Iraque ainda em conflito interno, relações com a Síria, preocupações frente ao Irã persa, definido como Estado fora da lei ou “rogue state”. A política norte-americana passou a adquirir um caráter frequentemente maniqueísta, definido às vezes como “islamófobo”. No contexto do clima de indignação e de exaltação patriótica que se difundiu, nos EUA, com os atentados do setembro 2001, foi decidida a invasão do Iraque. O país, dirigido, com mão de ferro, por Sadam Hussein, não mantinha qualquer relação com as redes de terrorismo se julgava ameaçar os EUA nem desenvolvia um programa de armas de destruição de massa. O seu regime era laico. Tentou-se, ali, no Iraque após a ocupação do país, em 2003, promover a instalação de um regime que expressaria os ideais de uma democracia de modelo norte-americano. Uma experiência mais ou menos semelhante foi tentada no Afeganistão. Desenvolvia-se efetivamente uma estratégia de criar e encorajar, no Oriente Médio, democracias de tipo ocidental as quais constituiriam um fator de paz e estabilidade na região. No Líbano continua a manter-se uma sociedade única na sua composição e sua organização. Num território menor do que o da Bélgica, existem várias, comunidades, pertencentes ao mundo árabe, mas de culturas diferentes, seguindo, cada uma, a sua legislação específica. O poder, oficialmente compartilhado entre os diversos grupos, havia sido exercido, na prática, até os anos setenta, pela fortemente ocidentalizada comunidade cristã maronita que formava a maior parte da classe média. O poder político e econômico dos maronitas foi contestado, cada vez mais, com êxito crescente, mais pelas comunidades islâmicas, sobretudo os xiitas, representados pelo partido Hezbollah, aliado do Irã. INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS 149 Na fronteira com Israel, parcialmente controlada do lado libanês pelo Hezbollah, desenvolveram-se incidentes, quase rotineiramente, até que um conflito em 2006, levou a ou justificou uma invasão levado a cabo pelo Estado judeu. O conflito que opôs Israel ao Hezbollah prolongou-se por 33 dias e surpreendeu todos os observadores pela resistência demonstrada pela milícia xiita frente ao que sempre se considerara a maior força militar da região ou seja, o Exército israelense. Indubitavelmente, a milícia xiita do Hezbollah sem conseguir uma vitória militar, alcançou, pela sua resistência, um claro êxito político que repercutiu em todo o mundo árabe. A suspensão das hostilidades levou a uma precária paz. Na complexa sociedade libanesa, o Hezbollah havia consolidado uma presença poderosa. A Síria, dirigida pelo Presidente Assad, líder de uma das duas vertentes do partido Bath, foi definida também, pelos EUA, como “rogue state” por acolher, no entendimento movimentos considerados terroristas pelo Governo norte-americano permitir, na sua fronteira com o Iraque, a passagem de forças ligadas aos movimentos de resistência iraquianos bem como por manter relações estreitas com o Irã. A Síria reclama de Israel, a devolução das colinas do Golã conquistadas durante a guerra de 1967. Teve início, em 2008, um processo de negociação, por meio de uma intermediação o turca, entre a Síria e Israel para discutir a eventual devolução do território reclamado.... No Iraque, após a invasão norte-americana e britânica, com alguns outros aliados, de 2003 (invasão não autorizada pelo CSNU), a vitória militar e a derrubada do regime Saddam Hussein foram rápidas e fáceis. A consolidação dessa vitória e a pacificação do país constituíram, no entanto, objetivos mais difíceis. Apesar da eleição legislativa, celebrada em fins de 2005 as complexas negociações que levaram à instalação do Governo xiita do primeiro-ministro (em princípio moderado) Al Maliki, com o Presidente curdo Talabani, verificou- se que o fortalecimento do recém instalado regime parecia complexo. Tornou- se necesário combater simultaneamente várias oposições: dissidências religiosas, partido Bath, puro banditismo. Surgiu o Al Queda que nunca existira anteriormente no país. Parecia ameaçada a unidade do país, dividido entre as comunidades curda no norte, sunita no centro e xiita no sul. O fortalecimento da presença militar norte-americana, verificada no final do Governo Bush levou, apesar de perdas militares elevadas, a uma estabilização crescente AFFONSO CELSO DE OURO PRETO 150 vários aliados dos EUA como a Espanha ou mesmo a Grã-Bretanha passaram a diminuir ou retirar os seus respectivos contingentes militares. As tentativas de instalar um governo no Iraque ou melhor, de criar um novo Estado, em princípio democrático, inspirado em ideais do conservadorismo norte-americano, depararam-se com dificuldades inesperadas. Descobria-se ou redescobria-se o que os estudiosos da área já haviam assinalado. O Iraque é um Estado frágil, artificial dirão muitos, constituído apenas após a Primeira Guerra Mundial, quando se uniram sob controle britânico, populações e culturas heterogêneas que nunca haviam formado um Estado soberano, anteriormente. A unidade havia sido mantida, após a independência com dificuldades, por regimes autoritários ou tirânicos, enriquecidos pelo petróleo o último dos quais havia sido o de Sadam Hussein da comunidade sunita. Criara-se, um vácuo de poder gerado pela eliminação do regime Baath pelos EUA e pela incapacidade de instalar ou consolidar um Estado sucessor. Paradoxalmente, a guerra do Iraque parecia haver sido vencida, em termos políticos, pelo Estado vizinho e adversário, o Irã xiita. O Irã tornou- se a verdadeira potência regional cuja sombra se projeta em todo o Oriente Médio (a apesar de não pertencer geograficamente à região) novo peso do Estado xiita constitui fator político ainda não assimilado. Os EUA, os principais países ocidentais, continuam a ver com preocupação esse novo poder regional, alheio à influência política do Oeste e cujas ambições nucleares preocupam, sobretudo Israel, e, cuja retórica parece assustadora. Por outro lado, cresce o número de observadores que acredita ser necessário estabelecer um diálogo com essa nova potência regional. Seria, com cautela, o caso da nova administração dos EUA. A paz no Oriente Médio parece distante, mais distante do que em outras oportunidades. As experiências de uso da força no Líbano em 2006 contra o Hezbollah, os ataques contra o Hamas na Faixa de Gaza no início de 2009, as incertezas ainda existentes no Iraque, onde a própria existência do Estado é posta em dúvida, apesar de uma apregoada crescente pacificação, o quadro sempre confuso do Líbano onde as várias comunidades ainda demonstram uma incapacidade de alcançar uma verdadeira reconciliação, os problemas decorrentes do crescimento político do Irã com um possível projeto de armamento nuclear contra o qual, num clima de nervosismo, o establishment israelense e amplos setores conservadores da opinião norte-americana, pedem um ataque armado INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS 151 preventivo, bem como a Palestina, constituem fatores que reforçam o pessimismo quanto à eventual paz no Oriente Médio. Os últimos acontecimentos políticos de fevereiro 2009 reforçam esse pessimismo. As eleições israelenses de fevereiro 2009, constituiram, indubitavelmente, um êxito para os setores conservadores e ultra- conservadores do país – laicos e religiosos – os quais, em princípio, seriam contrários ao conceito da criação de um Estado palestino. Nota-se, sobretudo, a falta de verdadeiros líderes na região para levar a cabo um verdadeiro processo de paz o qual, necessariamente, implicaria numa capacidade de admitir concessões e de conter setores radicais. A eleição norte-americana, todavia, desperta no Oriente Médio esperanças (não só no Oriente Médio evidentemente....). Não está clara ainda, qual será a política da nova administração. Parecem delinear-se, no entanto, no Governo Obama, sinais de que serão menos intensas as avaliações de cunho ideológico e as prioridades concedidas à guerra “contra o terror” expressas pela administração anterior. Tentativa de comparação dos conflitos e da instabilidade atual do Oriente Médio com os da África sobretudo os da África subsaárica. Examinar a África implica na necessidade de uma definição. Existem, efetivamente, para efeitos de uma tentativa de análise política, duas Áfricas. A África do Norte, o Ocidente árabe conhecido como o Magreb, em oposição ao Oriente Médio bem como a outra África a subsaárica. A tentativa de comparação que se tentará aqui se concentrará com a parte subsaárica do continente. A África do Norte, cultural e politicamente, pertence ao universo árabe ainda que uma parcela de sua população seja de língua berbere falada antes da conquista islâmica. O Oriente Médio, todavia, está relativamente longe e seus conflitos, ainda que repercutam intensamente, no Magreb, não constituem uma razão básica de instabilidade da região . Os Estados já delineados antes da conquista europeia, confirmaram-se com o processo de independência e sua existência não foi posta em dúvida. As fronteiras coloniais foram aceitas com algumas exceções como o problema do Saara espanhol que opõe a Argélia ao Marrocos. A colonização, ainda que breve, deixou profundas marcas na região ao formar ou desenvolver uma classe média de cultura francesa. O principal problema que a África do Norte enfrenta é o da confrontação dos regimes existentes com movimentos fundamentalistas islâmicos, AFFONSO CELSO DE OURO PRETO 152 particularmente na Argélia, onde o conflito adquiriu contornos de muito acentuada violência. Essa confrontação reflete, a rigor, o choque de uma parcela considerável das populações contra classes médias, parcialmente ocidentalizadas, as quais controlam os respectivos estados, inclusive as suas forças armadas. Trata-se de fenômeno difundido no só no mundo árabe mas no mundo islâmico de modo geral (como no Irã). Na África do Norte, até agora, os Estados mantiveram o seu controle fazendo todavia concessões aos ideais islâmicos e à cultura árabe. A África subsaárica, tema básico da parte africana desta tentativa de análise, constitui um universo profundamente diferente. Essa África encontra-se num estágio de desenvolvimento muito mais incipiente do que o Oriente Médio (ou a Ásia). Havia sido usada, durante séculos, pela Europa, sem uma tentativa de colonização, com o único objetivo do desenvolvimento do trafego de escravos para continente americano. No final do século XIX, após a abolição do tráfico, o continente africano havia sido partilhado entre países europeus. As colônias europeias, então criadas, não se definiam por critérios étnicos, culturais ou religiosos. Correspondiam simplesmente a um equilíbrio de forças registrado na Europa no momento da partilha ou respeitavam (parcialmente), uma antiguidade na ocupação de feitorias, no litoral, como teria sido o caso de Portugal. A ocupação das colônias africanas foi justificada, na época, como a expressão da “missão civilizadora” da Europa ou seja o “white man´s burden”. Na África subsaárica, as fronteiras, após as respectivas independências registradas a partir do fim dos anos cinqüenta, foram respeitadas, apesar de seu caráter artificial, no que diz respeito às etnias ou as religiões (a alternativa teria sido o caos). Registraram-se raras a exceções a esse entendimento, como o conflito que opôs a Etiópia à Eritreia. Desenvolveram-se, no entanto, no continente, no seio dos novos Estados (mas não em todos nem na maioria), após a euforia dos anos que se seguiu à independência, guerras e confrontações de extraordinária violência. Conflitos sacudiram Angola em 1992, Ruanda e Burundi em 1993/94 com contornos de genocídio, mais recentemente Serra Leoa e Costa do Marfim. Hoje, novamente, o Congo enfrenta a violência. No Sudão, onde o conflito que opõe o Governo central à região ocidental de Darfur, não está ainda solucionado apesar das promessas e compromissos em contrário e a presença de contingentes reduzidos de forças internacionais. No mesmo país, o norte e o sul, após muitos anos de violenta confrontação, mantém uma paz INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS 153 precária. A Somália se encontra ainda em situação caótica e a Nigéria enfreta certas desordens na região do Delta. As desordens e guerras foram seguidas, em várias áreas, pelo drama da fome que assolou vastas regiões. Esses conflitos possuiam duas características. Representavam, em primeiro lugar, guerras tribais nos estados artificiais criados pela colonização europeia. Podem ser considerados como tentativas de estabelecer novas elites dirigentes ou novas formas de distribuição de poder em países com identidades incertas. Correspondem a extrema dificuldade da criação de Estados modernos em sociedades que mantiveram o seu caráter tribal aesar da experiência. Em segundo lugar, essas guerras apesar de um custo humano de, às vezes, milhões de vítimas, repercutiram apenas em áreas limitadas e nos países vizinhos, sem alcançar uma dimensão de confrontações globais ou sequer continentais, com desdobramentos em todo o continente ou fora dele. A sociedade internacional, apesar de sinais (modestos) de solidariedade ou de preocupação, diante da violência verificada, não se sentiu atingida. As crises africanas, em suma, apesar de sua intensidade dramática, mantiveram um caráter, acentuadamente, local. A última observação seria a de que, após anos de confrontação, 2000, a África subsaárica, depois de 2000, passou a beneficiar-se de taxas de desenvolvimento, relativamente elevadas. O continente aproveitou os altos preços de commodities. Beneficiou-se de uma massa crítica crescente de investimentos chineses e até certo ponto indianos. A influência chinesa, em particular ganhou importância. A África subsaárica afastou-se econômica e politicamente das antigas metrópoles . Esse desenvolvimento, ainda frágil, evidentemente, não foi uniforme em todos os estados do continente. Concentrou-se em alguns países (entre outros) como Angola, Moçambique, Botsuana, até certo ponto Quênia e Tanzânia e mesmo Serra Leoa. Esses países partiram de patamares modestos e estão ameaçados, hoje, pela queda dos preços das commodities. O seu progresso, todavia, poderia indicar que a terrível fase da violência interna, foi ultrapassada. Ao mencionar a parte do subsaárica do continente é necessário registrar uma grande exceção: a África do Sul. Examinar o país exigiria uma análise especial. Cabe aqui lembrar que se trata de nação com problemas específicos, referentes à integração de suas várias comunidades, diferentes dos que se registram no resto do continente. Será necessário acrescentar ainda que a África do Sul, definida como estado “emergente”, alcançou um elevado nível AFFONSO CELSO DE OURO PRETO 154 tecnológico e desenvolveu um importante parque industrial únicos no continente. Comparar a África subsaárica com o Oriente Médio, – além da exceção sul africana, constitui um exercício interessante. As duas regiões enfrentam, como foi visto, crises e confrontações graves. Os seus conflitos se distinguem por dois motivos. Em primeiro lugar, os choques verificados na África tiveram lugar em sociedades essencial ou puramente tribaisque se encontravam, como foi dito, num estágio incipiente de desenvolvimento. Os choques conflitos expressaram o esforço, após as euforias das respectivas independências, de criação ou consolidação, de Estados modernos. Igualmente as extraordinárias dificuldades, encontradas nessa rota. Demonstram ainda o fato de que as colonizações, na África, haviam sido breves, sem marcar, profundamente as sociedades, exceto no que diz respeito às suas pouco numerosas elites. Em segundo lugar, como se disse, na África subsáarica, apesar da violência que ali se verificou, o seu alcance, e pouco repercutiu além das fronteiras nacionais. Já o Oriente Médio apresenta um quadro profundamente diferente. Os Estados possuíam bases sólidas, ainda que constituíssem também entidades artificiais, formadas que foram com base nos entendimentos que se seguiram à primeira guerra, e com fronteiras às vezes contestadas como as do Líbano com a Síria ou as de Israel com o futuro Estado israelense. As sociedades locais, todavia, com algumas exceções – por exemplo, o Iraque – não são tribais mas representam partes de um conjunto maior, ainda que dividido, hoje, em nações, que seria o mundo árabe, unido pela mesma cultura e pela consciência de uma afinidade histórica. As guerras internas, ainda que violentas como as do Líbano, o setembro negro jordaniano, ou os conflitos frente a Israel, não chegaram, nem de longe, ao grau de violência que se verificou na África subsaárica e não podem ser consideradas como conflitos tribais. Por outro lado, apesar de constituir dramas menos intensos, os conflitos do Oriente Médio, muito mais do que os africanos, repercutiram, globalmente, fora da região, em todo o mundo e não só nos meios islâmicos. O Oriente Médio tornou-se uma das principais áreas de confrontação onde se concentram as atenções internacionais e onde é, INSTABILIDADE POLÍTICA MODERNA NOS PAÍSES QUE CORRESPONDEM AOS ÚLTIMOS IMPÉRIOS 155 claramente visível, uma presença dos EUA e uma contestação, hoje sobretudo política, a essa presença. A violência foi menor no Oriente Médio do que na África subsaárica, mas ela preocupa mais o mundo.... 157 A África entre o atraso e o desenvolvimento no período Pós-Crise Global José Flávio Sombra Saraiva* O objetivo central do presente capítulo é apresentar algumas das ideias por mim defendidas oralmente nos debates que da Terceira Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional, organizada pelo Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais (IPRI) e Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, realizado em dezembro de 2008, no Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro. Redigido posteriormente ao contexto da conferência, ainda que recupere parte da minha exposição, o presente texto incorpora naturalmente fatos e processos que se espraiaram a posteriori, em especial os aspectos atinentes ao impacto da crise econômica global iniciada na segunda metade do ano de 2008, além da chegado à presidência dos Estados Unidos da América do Presidente Barack Obama, fenômenos que se debruçaram sobre o mundo em 2009, com consequências para os Estados, as economias e as sociedades africanas. Nesse sentido, o documento está divido em quatro problemas centrais. O primeiro aborda a adaptação do continente africano ao período posterior à década de bonança econômica de fins da década de 1990 em grande parte do continente, até o ano de 2008. O segundo se refere aos temas * PhD, Universidade de Birmingham, Inglaterra; professor titular em Relações Internacionais da UnB e presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA 158 estruturalmente recorrentes na África, com ou sem crise global. Avalia alguns desafios, de caráter mais novo, para o melhor engajamento da África nas mudanças sistêmicas que vislumbra o sistema internacional da passagem da primeira para a segunda década do século 21. O terceiro aborda a disputa e/ ou a cooperação sino-americana na África depois da chegada do presidente Obama ao poder. Finalmente, na conclusão, uma palavra de confiança é conferida aos esforços brasileiros ao buscar manter base logística de operação no continente africano. Depois da bonança, o ônus? As condições internacionais da passagem do século 20 para o século atual foram favoráveis à inserção internacional da África. Os anos que separam 1999 ao ano atual configuraram quase uma década de superação, comparada com as quatro décadas anteriores de baixa continuidade econômica, fraturas na formação dos Estados nacionais, péssimos índices sociais. O crescimento econômico em ciclo recente trouxe alguma consistência estrutural à modernização daquele continente de 30 milhões de quilômetros quadrados, gerador de fato inédito à história recente dos jovens Estados africanos, nascidos do primeiro ciclo de independências no fim dos anos 1950 e início da década de 1960. Os registros quantitativos e qualitativos produzidos pelas agências internacionais e pelos próprios gestores dos 54 Estados africanos produziram evidências empíricas do argumento inicial. Economistas, governos e empresas chinesas e norte-americanas, e mesmo balanços brasileiros de empresas e órgãos de governo, confirmaram a quadra histórica alvissareira que assistimos recentemente. Os atuais 680 milhões de africanos que habitam as paragens continentais, depois de décadas de agruras, assistiram, mesmo com crises estruturais e dificuldades históricas no campo da assimetria social e dependência econômica das metrópoles de antes, um sopro de esperança de normalização de suas vidas. Apresentada como a última fronteira do capitalismo global, a África atraiu a atenção da sociedade internacional. Abria-se a oportunidade para, por meio do crescimento econômico, buscar-se a normalização política e a pacificação dos conflitos domésticos. Observei, na edição anterior da Conferência Nacional de Política Exterior e Política Internacional (II CNPEPI), dimensões que animaram o ambiente A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL 159 positivo na África e em torno dela. Interna e externamente induzidas, as sociedades africanas caminharam para um novo estágio civilizatório. As expectativas que elevaram o lugar da África no sistema internacional são relevantes para um continente povoado por Estados que têm apenas meio século de autonomia formal, depois do ciclo colonial: “O sentimento de que nos últimos sete anos, justamente os primeiros do novo século, a África vem superando o drama histórico das guerras intestinas e internacionais. O número de países africanos com conflitos armados internos caiu de 13 para 5, nos últimos seis anos, apesar da dramaticidade do caso do Darfur. Os conflitos foram a mais importante causa imediata da pobreza no continente. A redução dramática dos mesmos faz pensar que os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhões queimados nos conflitos entre 1990 e 2005, podem agora ser dirigidos às políticas de redução da pobreza e da miséria.”1 As novas condições da temperatura e pressão das relações internacionais do segundo semestre de 2008 e primeira metade de 2009, especialmente as de ordem econômica, fizeram tremer lideranças africanas. A preocupação inicial era a de que a crise econômica global se espraiaria nas periferias do capitalismo, portanto na África, de forma sequencial, em efeito dominó, a seguir o compasso de intranquilidade criada no centro do capitalismo norte- americano e seus pares europeus. A crise originada na toxidade dos capitais, fato global mais relevante da segunda metade de 2008, ao migrar para as atividades produtivas já no final do mesmo ano, aprofundou-se e alastrou-se geograficamente. Quase não houve surpresa, para o observador comum dos fatos globais, seu aprofundamento nos primeiros meses de 2009. A crise atingiu a todos? A lógica da divulgação diária de cada novo índice econômico apresentado pelas autoridades governamentais em diferentes partes do planeta deprimiu a esperança. O fatalismo é tão intenso que alcançou em proporção a outra lógica perversa que presidiu quadra histórica relativamente recente: a da euforia triunfalista dos que decretaram o fim da História no início dos anos 1990 e o início do paraíso liberal. 1 SARAIVA, José Flávio Sombra Saraiva, “A África na ordem internacional do século XXI: mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?”, Revista Brasileira de Relações Internacionais, 51(1), 2008, pp. 87-104. JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA 160 Exemplos não andam escassos. Recessão no Japão de hoje nos níveis dos anos 1970. Inoperância e lentidão do governo Obama, nos seus primeiros meses, no encaminhar o espinhoso detalhamento dos planos práticos para mover os Estados Unidos para o desejado ciclo industrial. Uma Europa cambaleante e com emprego declinante, a empurrar o projeto comunitário para a xenofobia de direita. A China, vulnerável diante da dependência das exportações como vetor central do seu PIB, parecia que iria crescer lentamente. Seus satélites asiáticos ajudariam a pagar a conta. A Rússia morreu na praia com a depreciação de sua commodity energética e crise cambial. A América Latina não foi exceção. Diante das enxurradas de balanços negativos na área do emprego em grande parte dos países da região, e da barragem dos financiamentos do ciclo virtuoso do capitalismo perdulário e das fontes de investimento internacionais, os cidadãos comuns já entenderam que a fase áurea já passou. O Brasil, e alguns outros países da região, no entanto, já mostram capacidade de retomada do crescimento, ainda que de forma discreta. Na África houve pânico. Mas logo se percebeu que o contexto poderia não ser tão ruim. A África não foi atingida, plenamente, pelo pessimismo congênito daquele primeiro momento. Lá a tendência parece ter sido um pouco diferente daquelas vislumbradas nas áreas tradicionais do capitalismo e na parte mais proeminente dos países emergentes do Sul. A África ainda não barrou seu ciclo de crescimento na década em curso. Os índices de normalização macroeconômicos são positivos, a gestão pública melhorou e as economias africanas não se abateram como nos grandes do centro do capitalismo. O continente assiste e continua a assistir a ciclo de crescimento. É o mais sustentável desde as independências do início dos anos 1960. Parece estar em melhor posição ante o ciclo de crescimento anual em torno de 5% que vem mantendo desde 2002, embora tenha caído tal percentual em uma grande parte de países nos últimos meses de 2008 e início de 2009, especialmente aqueles mais ligados às empresas e comércio com países europeus. A África naturalmente não está imune. A retração chinesa teve algum impacto no continente. No entanto, o avanço dos capitais do Golfo Pérsico, compensou o crédito e o financiamento infra-estrutural dos novos projetos do NEPAD, a iniciativa africana de desenvolvimento sustentável e de incorporação social dos mais vulneráveis. A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL 161 Apesar do efeito do contágio da febre pessimista, a África é a parte do planeta que menos fala em crise no momento. Em parte porque a crise já é paisagem duradoura da geografia africana. O continente foi um laboratório de modelos os mais inadequados ao desenvolvimento, à cidadania e à autonomia decisória internacional do continente por muito tempo. Agora desejam eles uma África para os africanos, uma espécie de Doutrina Monroe do outro lado do Atlântico Sul. Para os pessimistas, só é possível falar da África nos termos das tragédias humanitárias. Ou de governos corruptos. Sim, esses temas merecem toda a atenção e cuidado da opinião pública internacional. Mas há outras Áfricas. Há aquelas que, reconhecidas pelos relatórios norte- americanos da Freedom House, reduziram os conflitos interestatais de 14 para 5 na presente década. Para além do drama de Darfur, do Congo, dos piratas da Somália ou do regime antigo do Zimbábue, ou mesmo dos problemas de corrupção na África do Sul, mais da metade dos governos africanos do presente são democráticos ou estão em processos de normalização democrática. Obama sabe disso e já tem plano para a África. O Brasil de Lula começou antes sua inflexão correta na direção africana. O outro lado da crise é, portanto, uma África que fez, de fato, da crise uma oportunidade. Há um sopro de esperança no ar. Alto ao fatalismo que embrutece a capacidade de reagir às crises. Há lições advindas da África. O crescimento econômico angolano, como aquele que se notou permanecer na faixa de 7%, é fato auspicioso. Tal crescimento é seguindo, na África oriental, pela Etiópia, e no golfo atlântico da Guiné por Gana. O mesmo pode-se dizer, no norte da África, para o caso argelino, ancorado no petróleo e no projeto de liderança econômica e política da chamada África do Norte. Os velhos desafios na nova ordem africana Apesar da crise não ter se abatido sobre o continente como os arautos da desesperança pregaram, persiste na África o problema dos velhos desafios que não se alteram com a mesma velocidade da sua integração na sociedade global. Quatro desafios, entre outros, podem ser enumerados e desdobrados em temas para a reflexão com mais vagar ao longo dos próximos anos na África. JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA 162 O primeiro deles é a baixa alternância de poder no continente. A perpetuação de governantes não é tema novo, mas ganha nova proporção na passagem da primeira para a segunda década do século 21, mesmo para países relativamente estáveis como Angola, em processo de desenvolvimento notável. Há também os casos de países relativamente tranquilos há anos, estáveis e economicamente viáveis, como o Gabão, mas governado por um Bongo envelhecido e sem criatividade. Há governantes no poder para além de 20 a 30 anos, sem abertura real a reformas democratizantes. Há eleições de fachada em vários países. Tais regimes dúbios e governos em lenta democratização, mesmo que apresentados como em processo de institucionalização, substituem muito lentamente os velhos donos do poder por outras elites, mais renovadas e modernas. O caso do Zimbábue é simbólico, um país que bem regrou a convivência da presença do crescimento econômico com a permanência do ex-colonizadores e organizou a infra-estrutura social e econômica. Vê-lo da maneira que Robert Mugabe o vê é certamente um retrocesso. Há novas elites no país, ligadas ao mundo contemporâneo, mas não encontram meios para permanecer no próprio país, que fenece por razões que se originam na natureza e na perpetuação do poder. O segundo desafio é a penetração na África, na formação de parte das novas elites e de setores médios das populações urbanas das grandes metrópoles do continente, do tema narcotráfico internacional. Esse é um aspecto relativamente novo, com raízes nas velhas resource wars na África, ou das guerras do blood diamond, como aquelas na África ocidental e em Angola, agora em suas novas versões. Expandiram-se essas preocupações ante a ponte que vem se realizando, entre a América Latina e a Europa, em torno do tráfico de drogas e pessoas. Há notícias de corredores de tráfico internacional de ilícitos que vinculam produtores de pasta de coca na América do Sul, ao transporte e preparação de novos produtos na África ocidental, e seu processamento entre a África e a Europa. Existem ainda poucos dados disponíveis acerca dessa matéria, mas já suficientes para supor que tais interesses espúrios, da realidade da economia política internacional, estão presentes na economia e na política africanas do momento. Emergem Estados parasitas, vinculados a essa ameaça internacional. Os golpes e contra-golpes que foram assistidos recentemente na Guiné-Bissau, desde março de 2009, expressam exatamente o aprisionamento do Estado A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL 163 por interesses econômicos poderosos, multinacionais e desestabilizadores de jovem Estado na África ocidental, país de língua portuguesa, membro da CPLP e que recebeu a primeira visita de chefe de Estado do Brasil, em fim dos anos 1970, do então presidente Figueiredo. O presidente Lula também já esteve lá, em um dos seus périplos africanos. O terceiro desafio está no campo exclusivo das políticas públicas para manter e ampliar o ganho econômico dos últimos anos, advindos da cola do maior crescimento do capitalismo em sua história. Já se sabe que essa onda quebrou e que o crescimento econômico global está voltando, mas ainda modesto, e tenderá a seguir modesto por muitos anos. Isso tem uma grande implicação nas políticas públicas africanas voltadas para o desenvolvimento sustentável e a inclusão social. A ordem que se eleva diante do fim da década de ouro, com crescimento econômico mais modesto, exigirá escolhas importantes dos líderes e das sociedades africanas. Se em 2007, antes do impacto da crise econômica global, 37 países africanos, quase dois terços dos países continentais, cresciam acima de 4% ao ano, e 34 foram classificados pela Freedon House como “livres” ou “parcialmente livres”, como seguiu esse compasso na quadra histórica de menos capital disponível para investimento na África? Subsistem em 2009, portanto, além dos velhos desafios que subsistem na história recente da inserção internacional dos países africanos no sistema mundial, as dificuldades vinculadas às próprias transformações em curso na ordem econômica e política mundial. A África necessitará de uma elite africana mais comprometida com a autonomia decisória e a boa integração do continente aos processos econômicos globais. Constatam os economistas africanos ou africanistas que o crescimento econômico que assistiu a África na primeira década de ouro do século 21 não tende a seguir no molde anterior. Apesar da África, segundo a OCDE, ter passado a receber mais recursos advindos de investimentos que de ajuda internacional, essa equação poderá se inverter se não houver responsabilidade dos seus governantes nesse importante capítulo de normalização econômica já iniciada na África a muitos custos internos. Controle inflacionário e responsabilidade fiscal foram movimentos importantes de normalização macroeconômica encabeçados por governos responsáveis no continente africano em fins dos anos 1990 e início dos atuais. Uma regressão nessas áreas e a retomada de ciclo de endividamento externo seriam nefastas para os avanços parciais conquistados nos últimos anos. JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA 164 O quarto e último desafio que enfrentarão os africanos nos próximos anos é a tentação para, diante de novas dificuldades que chegam do front internacional, recorrer ao velho discurso de vítimas. Esse discurso, de grande eficácia política para as elites perversas africanas, não serve aos africanos que constróem no dia a dia seu futuro. A África vinha provando que mesmo intervenções humanitárias, com aquelas que os anos 1990 foram pródigos, trouxeram poucos resultados práticos para as populações e reforçaram, ao final, os esquemas de poder das elites perversas. Ajuda externa carimbada de laços com as elites que perpetuam as diferenças sociais, econômicas e políticas é conspiração contra a África, que tende a permanecer infantilizada em alguns setores graças a esse tipo de falsa piedade. O desafio psicológico e social é, portanto, o do princípio clássico do ensinamento do pescar, e não comer o peixe pescado por outros. Se pela primeira vez na história o continente recebe mais investimento que ajuda, e avançou tão bem, o modelo que deve dirigir a relação da África com o mundo é o modelo do investimento, não da esmola. Os novos olhares sobre a África: o governo Obama e a nova ofensiva chinesa Embora filho de queniano, o presidente Obama manteve discreta apreciação acerca dos desdobramentos políticos, econômicos e sociais nos primeiros meses de seu governo. Para especialistas norte-americanos interessados em uma estratégia mais delimitada de contenção dos avanços chineses no continente africano, o novo governo ianque pareceu reticente a por em marcha aspectos do documento preparado, anos antes, pela Professora Samantha Power e o ex-subsecretário para assuntos africanos no governo, Chester Chocker, conhecedores dos problemas e possibilidades africanas. A manutenção de uma pauta velha na África, marcada pela preocupação no campo quase exclusivo da segurança internacional, com ênfase ao tema do terrorismo, obstruiu, ao lado das preocupações mais domésticas norte- americanas no campo econômico, a formulação de uma política mais assertiva em relação ao continente ancestral do presidente dos Estados Unidos da América. A evolução, nos últimos meses, vem sendo, no entanto, positiva, com a retomada dos contatos mais diretos do presidente Obama e da secretária de A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL 165 Estado Hillary Clinton com matérias atinentes a África. Obama e Clinton viajaram a África em 2009. Emergem quatro áreas de interesse dos Estados no continente. São quase quatro áreas de engajamento, a saber: i. O fortalecimento das instituições democráticas; ii. A prevenção de conflitos; iii. O incentivo ao crescimento econômico; iv. A parceria para o combate de ameaças globais como o terrorismo.2 Esse último problema foi tratado na visita da Secretária de Estado ao continente africano no mês de agosto de 2009, em torno de sete países visitados. A preocupação especialmente com os temas do chifre da África, com a pirataria nas águas territoriais da Somália, o desgoverno na região e a fissuras abertas que permitem a penetração dos grupos terroristas, segue sendo área de preocupação, seguindo a tendência da política externa norte- americana para o continente desde os dois governos Bush. O tema democratização dos regimes, associados aos temas de investimento direto dos Estados Unidos na África foi direta e claramente tratado pela Secretária de Estado: “O verdadeiro progresso econômico na África depende de governos responsáveis que rejeitam a corrupção, reforcem a lei e entreguem resultados a seu povo. Isso não é apenas sobre boa governança, isso é sobre bons negócios.”3 Antes mesmo, na visita do presidente Obama a Gana, em julho de 2009, chamou a atenção para o fato de que os africanos têm razão para se orgulhar mais do que para se humilhar diante de sua história. Lançou seu discurso contra o velho pano de fundo, já roto, em torno da pobreza endêmica, e preferiu avançar um discurso de sucesso e de elevação do patamar africano pelo binômio bom governo – investimentos econômicos. 2 Esses pontos foram apresentados recentemente pelo subsecretário para assuntos africanos do presidente Obama, Johnnie Carson, e relembrados no discurso da Secretária de Estado Hillary Clinton no discurso pronunciado em Cabo Verde, dia 14 de agosto de 2009, no palácio presidencial de Praia, na última fase da sua visita a sete países africanos (Quênia, África do Sul, Libéria, Nigéria, Congo, Angola e Cabo Verde) 3 Discurso da Secretária de Estado Hillary Clinton na África, conforme nota anterior. JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA 166 De Fareed Zakaria, amigo e influente colunista nas ideias internacionalistas do presidente Obama, aos grandes institutos norte-americanos que vêm se dedicando a ensaiar a nova aproximação dos Estados para a África, aparece um contendor do outro lado, ora visto como competidor, ora como colaborador da retomada do interesse dos Estados Unidos da América no continente. É a China, que veio para ficar na África. O peso da China na África já foi por mim tratado no texto que publiquei na Segunda Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional, mas creio que vale anotar alguns elementos de interesse da China na África para o contexto pós-crise global. Defendo que a África é cada vez mais importante para o desenvolvimento chinês. A base da operação chinesa na África não sofreu a descontinuidade dos norte-americanos nem foi contaminada pelo tema do terrorismo como uma ameaça. Ao contrário, os chineses aproveitaram a brecha aberta pela retirada norte-americana relativa da África no contexto pós-Guerra Fria. Depois de 1989, ante o isolamento chinês diante das desconfianças do mundo em relação massacre do governo chinês na Praça da Paz Celestial, os chineses buscaram apoio dos governos ditatoriais da África em troca de cooperação, que triplicou em dois anos, e investimento, necessário ao projeto chinês de crescimento do seu capitalismo de exceção. Desde 1990, renovando-se em 2000 com a criação do Fórum de Cooperação África-China, no qual 80 ministros de Estado africanos foram levados de Pequim à área industrial de Guandong em avião para verem o colosso do crescimento industrial chinês, passando pela segunda edição, em novembro de 2007, a China desembarcou na África de forma estrutural. É difícil andar em qualquer rua comercial de qualquer país africano que não seja povoada por produtos chineses. Estão os investimentos chineses nos mais importantes projetos de infra-estrutura do continente africano, de aeroportos a estradas expressas, passando por palácios e grandes campos de acesso às extrações minerais. A estratégia chinesa é um pouco, ou muito mais, afoita que a proposta do presidente Obama para a África. Pode ser esquematicamente apresentada em torno dos seguintes pontos, como o fiz para o caso norte-americano antes: i. Exportação para a África do modelo chinês de tratamento dos temas da agenda internacional, apresentando-se como uma representante natural dos países em desenvolvimento; A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL 167 ii. Exportação de bens industriais e armas e importação de produtos primários; iii. Exploração de todas as fontes possíveis e necessárias de recursos minerais, estratégicos e de energia que garanta a sustentabilidade do crescimento econômico chinês.4 Se a China voltou bem da crise global, como demonstram os dados de crescimento econômico do gigante asiático, em torno de 8% do PIB anualizado de julho de 2008 a julho de 2009, é o capitalismo chinês o maior agente de modernização econômica do continente africano. Os investimentos do banco de desenvolvimento na África já superam, nos últimos quatro anos, o total dos investimentos europeus no seu conjunto, e é muito superior ao que países em desenvolvimento como o Brasil podem fazer, apesar dos financiamentos e investimentos do nosso BNDEs. Os norte-americanos não possuem meios objetivos para superar a capacidade logística e infra-estrutural, financeira e comercial, montada pelos chineses. A continuidade do crescimento econômico chinês, associado aos capitais do Golfo Pérsico, poderá trazer a oportunidade de continuação do ciclo virtuoso que os africanos ainda possuem, em termos de investimento externo direto. Os dados ainda são favoráveis a essa equação sino-africana. Os norte- americanos podem optar por se juntar aos chineses no campo do investimento, mas terão dificuldades de compartilhar os métodos chineses, mais pragmáticos no que se refere ao tema da boa governança interna das débeis democracias africanas. Em todo caso, segue a China seu projeto de criar mais duas Chinas até 2050, a incluir mais 400 milhões de seus habitantes nos meios da sociedade de consumo de massa nos moldes ocidentais, por meio da extração energética, mineral e das riquezas naturais da África. A respeito desse projeto já não há mais muita dúvida. O que poderão fazer os norte-americanos em torno desse projeto? Pouco parece. O que poderão fazer os europeus, em fase de cadência econômica endêmica? Certamente nada. Será esse um capítulo importante para o estudo da economia política internacional dos próximos cinquenta anos. A África será o centro dessa disputa e/ou cooperação nas novas disputas do capitalismo global. 4 SARAIVA, José Flávio S., op. cit., p. 97 JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA 168 À guisa de conclusão: o Brasil ainda tem seu lugar na África O Brasil, na década de ouro do crescimento econômico na África, não substituiu nenhum outro ator estatal internacional em seu peso relativo no investimento, na presença comercial nem no peso geoestratégico ou político no continente transatlântico. No entanto, avançou posição em sua fronteira oriental. Substituiu o período de silêncio nas relações do Brasil com a África por um ciclo virtuoso de cooperação e desenho de projetos para o continente africano.5 A recuperação, no governo Lula, da política africana, permitiu ao Brasil certa participação nessa área do planeta, fronteira atlântica do Brasil, e proveu funcionalidade aos interesses brasileiros, além de certos valores, à projeção internacional do país. A África recebeu algum investimento brasileiro, empresas estão presentes, jovens de todo o país, mesmo de pequenas cidades, trabalham hoje em empresas brasileiras e internacionais em países em canteiros de obra como Angola. A diplomacia brasileira esteve próximo aos africanos em temas de interesse comum como o protecionismo comercial das economias centrais, em foros internacionais e compartilhou a ideia de um Atlântico sul de cooperação econômica e social e não de conflitos ou de militarização nuclear. A agenda de apoio ao desenvolvimento da África é certamente uma contribuição do Brasil ao programas de combate a pobreza e inclusão social na África. A criação dos novos postos na África foi rapidamente devolvido pela boa reciprocidade africana. Brasília já abriga 34 embaixadas ou missões permanentes de países africanos. É caso único na América Latina, superado nas Américas apenas pelos Estados Unidos. Esses avanços são, portanto, importantes, associados à pauta comercial que se expandiu percentualmente para ordem de 6% do intercâmbio do Brasil, aproximando-a de valores em torno de US$ 20 bilhões no ano presente, o que não é desprezível. O Brasil vem, assim, contribuir aos projetos de desenvolvimento africanos. Esses projetos, que são e devem ser africanos, merecem a contribuição da 5 Escrevi cinco livros acerca das oscilações, o ir e vir, nas relações do Brasil com o continente africano. O que melhor analisa o vai e vem e, em especial, o período afônico de África na política externa do Brasil nos anos 1990 está no seguinte livro: SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar da África: a dimensão atlântica da política externa do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1996. A ÁFRICA ENTRE O ATRASO E O DESENVOLVIMENTO NO PERÍODO PÓS-CRISE GLOBAL 169 experiência brasileira. Reconciliamo-nos, por meio de uma política africana do Brasil, com os brasileiros todos, os descendentes ou não de africanos, pois o Brasil é um país de alcance global. Não pode escolher parceiros e países para cooperar apenas pelo grau de desenvolvimento alcançado. Esse é o valor da política externa do Brasil para a formação do próprio país. 171 Cooperação Sul-Sul: a Experiência de Cooperação Internacional em Saúde do Brasil com Países da África1 Paulo M. Buss2 José Roberto Ferreira3 “The responsibility for the development of the South lies in the South, and in the hands of the people of the South” Julius Nyerere (1990) Introdução O presente artigo traz uma reflexão sobre as iniciativas de cooperação internacional em saúde que a FIOCRUZ tem desenvolvido em conjunto com os Ministérios da Saúde e das Relações Exteriores com países da África, área amplamente priorizada no contexto da política externa brasileira. A ‘saúde’ tem sido priorizada na política externa brasileira, em função das constantes demandas por cooperação e apoio nesta área, que recebe o Presidente da República nas suas viagens internacionais, particularmente a países do Continente africano, demandas estas que decorrem do reconhecimento internacional que goza o Brasil pela qualidade e pelo perfil inovador do Sistema Único de Saúde brasileiro e pela reconhecida capacidade 1 Documento revisado e ampliado, originalmente apresentado à III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional (CNPEPI): ‘Brasil no mundo que vem aí’, realizada pela Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, no Rio de Janeiro, dias 8 e 9 de dezembro de 2008. 2 Professor e Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública; Diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz e ex-presidente da Instituição; Membro Titular da Academia Nacional de Medicina. 3 Professor Honoris Causa da Escola Nacional de Saúde Pública; Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Fundação Oswaldo Cruz; ex-Diretor de Recursos Humanos da Organização Panamericana da Saúde, Washington D.C., de 1970 a 1995. PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA 172 das instituições cientificas nacionais na área da saúde. De outro lado, os muitos estudantes africanos de diversos países que passaram por graduações universitárias e cursos de pós-graduação do país vêm difundindo a qualidade do ensino e da ciência brasileiras no Continente Africano, contribuindo para esta demanda crescente. Outro fator para explicar a forte presença da saúde na política externa brasileira é o prestígio que goza o Brasil, suas instituições e profissionais do setor saúde entre as organizações internacionais que, muitas vezes, são as responsáveis por selecionar instituições ou consultores para a cooperação internacional em saúde. Como a FIOCRUZ tem sido constantemente acionada pelo Governo, através dos mencionados Ministérios – Saúde e Relações Exteriores – para colaborar na resposta às reiteradas demandas de cooperação em saúde, fomos acumulando uma série de reflexões, análises e também práticas no trabalho com a África. Assim, vamos apresentar inicialmente nossa visão sobre alguns ‘contextos africanos’ fundamentais para o planejamento e a implementação das atividades institucionais de cooperação internacional em saúde. Tais reflexões advêm de análises sistemáticas de documentação disponível na literatura especializada e na imprensa mundial sobre a África, bem como das visitas a diversos países e entrevistas com líderes políticos e acadêmicos africanos que temos feito nos últimos anos. Em seguida, apresentaremos a experiência concreta que vem sendo desenvolvida na cooperação internacional em saúde no Continente, com ênfase nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), integrantes, junto com Brasil, Portugal e Timor-Leste, da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Contextos Africanos A África é o terceiro maior continente da Terra e o segundo mais populoso, possuindo cerca de 945 milhões de habitantes (2007), distribuídos em 54 países, o que representa cerca de 1/7 da população do mundo, mas que responde por apenas 2,1% do PIB mundial. Dos 54 países independentes da África, 48 são continentais e 6 são insulares. Quando falamos de África é preciso considerar, no mínimo, suas duas grandes macro-regiões, muito distintas quanto aos quadros humano e econômico. Ao norte, na África COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE 173 mediterrânea, encontra-se uma organização sócio-econômica muito semelhante à do Oriente Médio, compondo o mundo islâmico, no qual predominam os povos caucasóides, principalmente berberes e árabes, totalizando cerca de ¼ da população africana. Na área subsaariana, temos a chamada África negra, assim denominada pela predominância de povos de pele escura, que concentra a grande massa de pobreza do continente, representando cerca de 70% dos habitantes do continente. A população urbana alcança cerca de 368 milhões (39%) e a rural ao redor de 577 milhões (61%). A taxa de crescimento demográfico (2005-2010) está estimada em 2,3% e a densidade demográfica é de 31,4 habitantes/km2 (2007). A população tem crescido exponencialmente ao longo do último século (duplicou nos últimos 28 anos e quadruplicou nos últimos 55 anos). É uma população muito jovem, apresentando uma média de idade em torno de 19 anos (2003). A expectativa média de vida (EV) encontrava-se, em 2006, abaixo dos 50 anos em 28 países, e abaixo de 60 anos em 43 países. Em Lesoto, Botsuana e Suazilândia, a EV estava abaixo de 35 anos. Estima-se que a população alcançará 1 bilhão de pessoas em torno de 2010. Os países mais populosos, em 2007, eram: Nigéria (137,2 milhões), Etiópia (81,2 milhões) e Egito (76,9 milhões); existem 45 aglomerações urbanas com mais de 1 milhão de habitantes no Continente. O analfabetismo alcança 40,3% da população adulta (2005). Economia Dos 53 países africanos, 34 estão entre os menos desenvolvidos do mundo. No Mapa 1, apresenta-se um panorama do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nos diversos países do continente: a maioria dos países da África subsaariana tem baixo IDH (abaixo de 0,499), região na qual quase metade da população vive abaixo da linha da pobreza. O PIB total do Continente é de USD 1,635 trilhões (2007), o que corresponde a um PIB per capita médio de US$ 1.730 (2007), mas com variações de USD 4.770 na África do Sul a USD 100 no Burundi e USD 170 na Etiópia. A maioria dos países africanos tem sua economia centrada na agricultura e na exploração de minérios. Com isto, desenvolveu-se um sistema de economia de intercâmbio comercial, que continua coexistindo com a economia de subsistência. O continente participa de apenas 2% das transações comerciais que acontecem no mundo. PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA 174 Embora 1/4 do território africano seja coberto por florestas, grande parte da madeira só tem valor como combustível. Costa do Marfim, Libéria, Gana e Nigéria são os maiores exportadores de madeira de lei. A pesca marítima, muito difundida mas voltada para o consumo local, adquire importância comercial apenas no Marrocos, Namíbia e África do Sul. As indústrias de extração mineral são o setor mais desenvolvido em boa parte da economia africana, respondendo por cerca de 90% da receita total de exportação, com destaques para a África do Sul, Líbia, Nigéria e Argélia. Além disso, Serra Leoa tem a maior reserva conhecida de titânio. A nação mais industrializada do continente é a África do Sul, que alcançou relativa estabilidade política e desenvolvimento, possuindo sozinha 1/5 do PIB de toda a África. Porém, também já foram implantados centros industriais de envergadura no Zimbábue, Egito e Argélia. O principal bloco econômico é o SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, na sua denominação em português), formado por 14 países do sul da África, que se firma como o pólo econômico mais promissor do continente. Questões políticas relevantes Além de informações físico-naturais e populacionais, para compreender melhor o tema da saúde e da cooperação, é importante que se analise, ainda que sumariamente, a situação política da África. Em primeiro lugar, há que se reconhecer a extrema juventude de uma África politicamente autônoma. Os processos de independência têm entre 35 e 60 anos, contra mais de 175 anos do Brasil, por exemplo. Segundo, há que se registrar a irresponsabilidade das potências ocidentais ao abandonarem seus espólios do século XX e a incapacidade das Nações Unidas de lidarem com a avalanche de demandas políticas e sociais decorrentes do processo de descolonização. O mundo estava mais preocupado com a Guerra Fria entre as superpotências e os próprios processos de descolonização foram manipulados muitas vezes de forma imoral e aética pelas potências em confronto. As guerras civis e tribais que ocorreram na pós-independência de diversos países, a maioria delas decorrentes da divisão territorial artificial imposta pelas potências européias e/ou estimuladas no contexto da Guerra Fria, contribuíram na maioria dos países para corroer as bases de um processo social pacífico e acabaram por destruir grande parte da infra-estrutura dos mesmos, inclusive a de saúde. COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE 175 A pós-colonização também se caracterizou pelo êxodo maciço de recursos humanos qualificados, além do que inexistiam ou foram fechadas universidades e escolas de nível superior nas ex-colônias; ademais, por um longo período os ex-colonizadores impediam o envio de quadros mais qualificados às ex-colônias. Os esforços de criação de universidades e escolas de nível superior, por outro lado, foram até agora insuficientes para suprir as necessidades de técnicos em quase todos os países africanos. Tal falta de recursos continua até os dias de hoje, com tamanha gravidade na África que a OMS tomou o problema dos recursos humanos em saúde como tema do seu informe mundial de 2006 (OMS, 2006), apontando problemas que acabaram por gerar um grande pacto mundial para o desenvolvimento dos recursos humanos (OMS, 2007) e a regulação de migrações de profissionais (OMS, 2008), com ênfase nos esforços de bloqueio ao brain drain. Inspirados na União Europeia, os países do continente criaram, em 2002, a União Africana (www.africa-union.org), sucedendo a Organização da Unidade Africana (OUA) (1963) (ver quadro correspondente). Sua sede localiza-se em Adis Abeba (Etiópia) e tem como principais objetivos a unidade e solidariedade africanas; a eliminação do colonialismo; a defesa da soberania dos Estados; a integração econômica; e a cooperação política e cultural no Continente. Saúde Se a coordenação política cabe, na África, à União Africana, a parte de saúde é conduzida pelo Escritório da OMS para a África, localizado em Brazzaville, Congo, mas reúne apenas os países do subsaara, pois os países do Norte e do Corno da África reúnem-se na região da OMS denominada “Leste do Mediterrâneo”, junto com os países árabes do Oriente Médio4. As péssimas condições sócio-sanitárias e ambientais da África acabaram gerando um terreno muito favorável a uma severa deterioração das condições de vida e saúde da maioria da população africana, nos diversos países. Uma situação marcante é a iniquidade em saúde entre países e no interior dos mesmos, com severos impactos negativos sobre os países mais pobres e entre os mais pobres no interior dos diferentes países. Ademais, vive-se o 4 As seis regiões de saúde da OMS são África, Américas, Sudeste da Ásia, Europa, Leste do Mediterrâneo, e Pacífico do Oeste (ou, em inglês, como são mais conhecidos: Africa, Americas, South-East Asia, Europe, Eastern Mediterranean e Western Pacific). PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA 176 paradoxo de que sobre aqueles em piores condições e, portanto, maiores necessidades, é que recaem também as maiores dificuldades de acesso aos programas sociais, em geral e de saúde, em particular. O primeiro (mas também mais recente) amplo Relatório sobre Saúde na África, publicado em 2006, mostra inequivocamente as péssimas condições de vida e saúde vigentes no continente (OMS/AFRO, 2006). Baixa expectativa de vida; altas taxas de mortalidade materna e de crianças menores de 5 anos; alta prevalência de doenças infecto-parasitárias, entre as quais se destacam a malária, a AIDS, a tuberculose e outras doenças negligenciadas; desnutrição infantil e fome severas em muitos países e em quase todo subsaara imediato; elevadas perdas de vida por conflitos violentos sem resolução à vista ou em fase de eclosão e re-eclosão; ambiente físico hostil e degradado ou em degradação, secas e/ou inundações derivadas das importantes mudanças climáticas globais estão entre alguns dos muitos problemas de saúde ou de situações identificadas que impactam sobre a saúde. Os governos nacionais não dispõem de recursos necessários e/ou suficientes para enfrentar a avalanche de problemas sociais e de saúde, porque as economias são frágeis e dependentes e porque os governos de muitos países também não dispõem, nem de institucionalidade apropriada, nem de recursos humanos qualificados. O mencionado relatório afirma que sua mensagem central é: “African countries will not develop economically and socially without substantial improvements in the health of their people. The health care interventions – treatments, diagnostic and preventive methods – that are needed in this Region are known. The challenge for African countries and their partners is to deliver these to the people who need them, and the best way to do this is establish well-functioning health systems” (WHO/ AFRO, 2006). O fortalecimento dos sistemas de saúde em todas suas diversas e complexas dimensões, mais do que apenas o enfrentamento de problemas ou doenças específicas (entre as quais sempre se destacam HIV/AIDS, malária e tuberculose), como tem sido a regra até aqui, deve ser o componente dominante da ajuda internacional em saúde na África. COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE 177 África e a Cooperação Internacional Há um consenso absoluto entre os países africanos e na comunidade global sobre a necessidade de ajuda internacional para o desenvolvimento do Continente, em diversos campos da vida econômica e social, entre os quais certamente a saúde, como defende a União Africana com sua estratégia de New Partnership for Africa’s Development/Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD, 2001). Mas ajuda que lhes assegure compartilhamento, afirmação de soberania, protagonismo. E, portanto, uma imensa esperança na ‘cooperação Sul-Sul’ ou ‘cooperação entre países em desenvolvimento (CTPD)’ (ver quadro correspondente). Os africanos com frequência tem sido ‘ignorados’ pelas cooperações de países ou blocos de países desenvolvidos e por diversas ONGs, que chegam com ‘pacotes prontos’ e, muitas vezes, até com territórios em que vão atuar já definidos, sem considerar os eventuais planos de desenvolvimento ou saúde vigentes nos países. Estes aceitam tais programas de ajuda muitas vezes por falta de melhores opções, razão pela qual a ‘cooperação Sul-Sul’ corretamente desenvolvida – como, no geral, tem sido orientada a abordagem brasileira – poderia substituir a cooperação dominante, com evidentes vantagens para as nações africanas. A ‘cooperação para a saúde’ não tem como ser desarticulada da “cooperação para o desenvolvimento”. Quer dizer, sem saúde seguramente não haverá desenvolvimento e sem desenvolvimento, as condições de vida e saúde – que são entes interdependentes – também não melhorarão. Portanto, qualquer apoio internacional que pretenda ser eficaz precisa ser intersetorial, quer dizer, combinar harmonicamente ajuda para o desenvolvimento econômico com apoio para setores sociais como saúde, educação e agricultura e a promoção da democracia e estabilidade política, incluindo a construção da institucionalidade do Estado em geral e do setor saúde em particular. Em síntese, a articulação intersetorial é a chave para uma cooperação resolutiva na África. Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs) (UN, 2000), por exemplo, que são eminentemente intersetoriais, dariam conta de algumas questões africanas. Eles são resultantes do pacto universal, intergovernamental, firmado na Cúpula do Milênio, no ano 2000, e apresentam metas claras, que cobrem campos intersetoriais vitais, como são o enfrentamento da pobreza, alimentação e nutrição, educação, equidade de gênero, ambiente sustentável PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA 178 e diversos objetivos de saúde, como saúde materna e infantil e as principais doenças infecto-parasitárias. Além do mais, para atingí-los, propõe a criação de uma “aliança para o desenvolvimento”, que é o Objetivo 8. As críticas severas às formas vigentes de ajuda para o desenvolvimento propiciada pelos países desenvolvidos e organizações multilaterais, levou-os a realizarem um Fórum de Alto Nível, em 2005, em Paris, para “reformar” a ajuda para o desenvolvimento, procurando torná-la mais eficaz, na perspectiva da revisão qüinqüenal da Declaração do Milênio e dos ODMs, que ocorreria mais tarde, no mesmo ano. Deste evento, surgiu a “Declaração de Paris sobre a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento” (OECD, 2005) que, firmada por centenas de paises e dezenas de instituições globais, inclusive da sociedade civil (OECD, 2009), reitera a necessidade de ampliar a ajuda para o desenvolvimento, mas também melhorar sua eficácia, através das estratégias de: • Apropriação, através da qual os países parceiros exercem liderança efetiva sobre as suas políticas e estratégias de desenvolvimento e asseguram a coordenação das ações de desenvolvimento; • Alinhamento, pela qual os doadores baseiam todo o seu apoio nas estratégias nacionais de desenvolvimento, instituições e procedimentos dos países parceiros; • Harmonização, isto é, as ações dos doadores são mais coordenadas, transparentes e coletivamente eficazes; • Gestão centrada em resultados. A excelente Declaração e as adesões de inúmeros países e organizações às suas propostas, fariam supor um aumento na ajuda externa para o desenvolvimento e práticas mais adequadas, com repercussões positivas sobre os ODMs. Contudo, as conclusões dos dois últimos Relatórios sobre os ODMs em geral, incluindo o objetivo 8, são muito preocupantes. O Informe de 2007 (UN, 2007) afirma que a ajuda para o desenvolvimento vem decrescendo, apesar da renovação (retórica) dos compromissos dos países doadores; que os doadores se comprometeram a dobrar suas ajudas para a África, embora pouco tenha sido feito até o momento; e que o acesso preferencial aos mercados de países desenvolvidos reduziu-se para a maioria dos países em desenvolvimento. Já o Relatório de 2008 (UN, 2008a) acrescenta que a ajuda para o desenvolvimento caiu pelo segundo ano COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE 179 consecutivo, afetando os compromissos para 2010; que os subsídios agrícolas domésticos dos países ricos superam em muito o dinheiro usado na ajuda para o desenvolvimento; e que a baixa disponibilidade e os preços elevados são barreiras para o acesso a medicamentos essenciais em países em desenvolvimento. Em setembro de 2008, realizou-se em Acra, Gana, o 3º. Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda, que veio a gerar a ‘Agenda de Ação de Acra’ (UN, 2008b), bem como em Doha, em dezembro de 2008, realizou- se a Reunião de Análise do Financiamento para o Desenvolvimento, que produziu a ‘Declaração de Doha sobre o Financiamento para o Desenvolvimento’ (UN, 2008c), todas com referências específicas e ênfase especial na cooperação com a África. Todos estes elementos devem necessariamente ser tomados em conta pela cooperação brasileira em saúde com países da África, principalmente para evitar os erros crassos já cometidos por países que antes do nosso se aventuraram no apoio econômico e social ao continente. Cooperação Internacional em Saúde do Brasil com a África A cooperação técnica internacional em saúde do Brasil tem como focos principais a América do Sul e a CPLP, incluindo PALOP. Além dos PALOP, a cooperação tem focado alguns outros países na África, como África do Sul (no contexto de IBAS), Nigéria e, na África francofônica, Mali e Burkina Faso, exatamente dois países nos quais muito recentemente o Brasil abriu embaixadas. A cooperação Sul-Sul segundo o Brasil Antes de enfocar propriamente a cooperação internacional do Brasil com a África, cabe contextualizar a “Cooperação Sul-Sul” ou “Cooperação entre Países em Desenvolvimento” na política externa brasileira, segundo o Ministério das Relações Exteriores (MRE, 2008). No ano de 1987, com a criação da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), no MRE, estabeleceu-se efetivamente uma coordenação (CGPD) para tratar da Cooperação entre Países em Desenvolvimento (CTPD), também conhecida como Cooperação Sul-Sul ou Horizontal, com o objetivo de coordenar, negociar, aprovar, acompanhar e avaliar a cooperação para o desenvolvimento, em todas as PAULO M. BUSS & JOSÉ ROBERTO FERREIRA 180 áreas do conhecimento, recebida de outros países e organismos internacionais e aquela entre o Brasil e países em desenvolvimento. A partir de 2004, a cooperação brasileira entre países em desenvolvimento foi significativamente ampliada, pautando-se desde então pelas seguintes diretrizes: • Priorizar programas de cooperação técnica que favoreçam a intensificação das relações do Brasil com seus parceiros de maior interesse para a política exterior brasileira; • Apoiar projetos vinculados sobretudo a programas e prioridades nacionais de desenvolvimento dos países recipiendários; • Canalizar os esforços de CGPD para projetos de maior repercussão e âmbito de influência, com efeito multiplicador mais intenso; • Privilegiar projetos com maior alcance de resultados; • Apoiar, sempre que possível, projetos com contrapartida nacional e/ ou com participação efetiva de instituições parceiras; • Estabelecer parcerias preferencialmente com instituições genuinamente nacionais. À luz destas orientações governamentais, a CGPD concentrou suas ações com base nas seguintes prioridades: 1) Compromissos assumidos em viagens do Presidente da República e do Chanceler; 2) Países da América do Sul; 3) Países da África, em especial os PALOP, e Timor Leste; 4) Demais países da América Latina e Caribe; 5) Apoio à CPLP; e 6) Incremento das iniciativas de cooperação triangular com países desenvolvidos (através de suas respectivas agências) e organismos internacionais. A cooperação internacional em saúde do Brasil na África e no âmbito da CPLP Como sabemos, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) está composta de oito países, distribuídos em quatro Continentes. Cinco países estão na África e constituem os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP): Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. O Brasil, nas Américas, Portugal, na Europa e Timor-Leste, na Ásia, completam a CPLP. COOPERAÇÃO SUL-SUL: A EXPERIÊNCIA DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SAÚDE 181 Os países integrantes da CPLP apresentam grandes assimetrias entre si, como se pode verificar no quadro 1. Tais assimetrias existem não só em relação às suas populações, que variam de cerca de 189 milhões no Brasil a 155 mil em São Tomé e Príncipe, mas também nas suas economias: a renda per capita, por exemplo, varia de USD 21,5 mil em Portugal a apenas USD 729 no Timor-Leste, USD 830 em Guiné-Bissau e USD 1.200 em Moçambique. Verificam-se também grandes variações nos indicadores de saúde, como na mortalidade de crianças abaixo de 5 anos (260 por mil em Angola a 5 por mil em Portugal) e na expectativa de vida ao nascer (ao redor de cerca de 70 anos no Brasil e Portugal e abaixo de 50 anos em Angola e Moçambique). O modelo de cooperação em saúde adotado, mais recentemente, pelos Ministros da Saúde da CPLP – com a decisiva inspiração da FIOCRUZ, como instituição articuladora da cooperação internacional em saúde do Brasil – foi a elaboração compartilhada de um Programa Estratégico de Cooperação em Saúde da CPLP (PECS/CPLP), cuja estrutura é mostrada no quadro 2. A estrutura da cooperação em saúde da CPLP compreende o Conselho de Ministros da Saúde dos países membros, que indicaram ‘pontos focais’ para a elaboração do PECS/CPLP, cuja coordenação é feita pela Secretaria Executiva da CPLP, com o apoio técnico formal da Fundação Oswaldo Cruz (Brasil) e do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (Portugal). O Conselho de Ministros da Saúde reuniu-se em Praia, Cabo Verde (abril, 2008) e determinou a elaboração do Plano. Os “pontos focais” são as instâncias responsáveis por levantar a demanda e a possível oferta de cooperação em saúde dos países membros. Tal etapa já se realizou entre abril e setembro de 2008. Reunidos no Rio de Janeiro (setembro, 2008), os Ministros examinaram a versão preliminar do Plano (Anexo), baseado nas necessidades, demandas e ofertas e na