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Teoria Geral do Direito - parte I/Conpedi 02 com id.pdf
A Teoria da interpretação judicial para além do interpretativismo e do não-
interpretativismo.
The theory of judicial interpretation beyond interpretivism and non-interpretivism
Bernardo Gonçalves Fernandes
1
Resumo: O artigo tem como objetivo desenvolver uma análise das teorias da
interpretação norte-americanas que buscam superar a dicotomia interpretativismo X
não-interpretativismo tradicionalmente trabalhada na Hermenêutica jurídica
estadunidense. Para tal, faz-se um percurso que vai da delimitação dos termos ora em
debate, para posteriormente apresentar teorias contemporâneas que visam a superação
dos mesmos, tendo em vista a abertura para uma filosofia do direito atrelada à teorias da
justiça que levam em consideração a complexidade do fenômeno jurídico atualmente
em voga. Temas comuns aos teóricos do direito como procedimentalismo,
minimalismo, substancialismo, consequencialismo, pragmatismo econômico e
integridade na aplicação do direito são trazidos a cotejo para tal empreitada.
Palavras-chave: Interpretação constitucional; Interpretativismo; não-interpretativismo;
Teorias da Justiça; Teorias da Decisão.
Abstract: The article aims to develop an analysis of theories of interpretation U.S. that
seek to overcome the dichotomy interpretivism X non-interpretivism traditionally
worked in the U.S. legal hermeneutics. To this end, it is a path that goes to the
delimitation of the terms under debate for later present contemporary theories that aim
to overcome them, with a view to opening to a philosophy of law linked to theories of
justice that take into account the complexity of the legal phenomenon currently in
vogue. Themes common to theorists of law as proceduralism, minimalism,
substantialism, consequentialism, economic pragmatism and integrity in law
enforcement are brought to collation for such an undertaking.
Keywords: Constitutional interpretation; interpretivism; non-interpretivism; Theories
of Justice; Theories of Decision.
1) Introdução: A dicotomia: Interpretativistas X não interpretativistas
Quando se fala em Hermenêutica Constitucional, no interior do debate jurídico
norte-americano, o que primeiro vem à mente – até mesmo porque muitas obras
nacionais parecem não ir além – é o debate entre interpretativistas e não-
interpretativistas.
Esse debate que encontrou e ainda encontra adeptos de ambos os lados, é mais uma
daquelas dicotomias históricas e naturalizadas que parecem não nos abandonar, ou seja,
1
Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor Adjunto de Teoria da Constituição e
Direito Constitucional do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto III de Direito Penal, Teoria da Constituição e
Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS).
que insistem em permear as discussões jurídicas de forma reducionista e limitada, como
a velha questão do jusnaturalismo versus positivismo, ou do direito público versus
direito privado ou mesmo da voluntas legis versus voluntas legislatoris.
Todavia, nesse pequeno excurso, pretendemos demonstrar que o debate norte-
americano alcançou planos mais altos em termos de sofisticação,2 incorporando
conquistas evolutivas do movimento do giro hermenêutico-pragmático e, com isso, se
lançando para análises mais complexas, como, por exemplo, as questões do fundamento
e legitimidade do direito e das decisões judiciais.
Dessa forma, esse texto assume como movimento o seguinte percurso: partiremos
de uma reconstrução do primeiro debate, apresentando suas teses básicas, para, em
seguida, passarmos à análise de teses e autores mais complexos, que buscaram ir além
da dicotomia, enriquecendo as recentes teorias da justiça e da interpretação judicial.
A corrente, conhecida hoje como interpretativistas, vem defendendo, ainda, uma
posição conversadora – como faz, por exemplo, grandes expoentes como o juiz Robert
Bork e o Justice Antonin Scalia – na qual atestam que o intérprete, mas, principalmente,
os juízes, ao interpretar a Constituição, devem se limitar a captar o sentido dos preceitos
expressos ou, pelo menos, tidos como claramente implícitos (textura semântica).3 Sendo
assim, ao interpretar a Constituição, o leitor tem de ter os olhos voltados apenas para o
texto constitucional que se situa à sua frente, tendo como limite máximo de abertura
uma busca pela intenção dos fundadores.4 Alegam que dar um passo para além das
molduras do texto seria subverter o princípio do rule of Law, desnaturando-o na forma
de um direito feito por magistrados (law of judges). Isso se mostraria imperativo no
controle judicial dos atos legislativos, que deveria ser limitado à moldura constitucional
sob alegação de violação do princípio democrático (fato da lei ou ato legislativo ter sido
feito contando com apoio de uma maioria dos membros do órgão).
A segunda corrente, que se encontra em franco crescimento, de maneira geral,
ainda que pese uma constelação de divergências internas, preza mais pela concretização
dos direitos consagrados no texto constitucional que por sua interpretação formalista.
Princípios de justiça, de liberdade e igualdade deveriam falar mais alto, compondo o
2 O renomado autor, ex-professor de Yale e Harvard, John Hart Ely, considerado um dos maiores
expoentes do direito norte-americano, já dizia na obra Democracy and Distrust em 1980 (portanto,
há mais de 30 anos!) que o debate deveria ir além da discussão interpretativistas x não
interpretativistas.
3 É claro que o interpretativismo não pode ser confundido com literalismo, ou seja, a compreensão
apenas da dimensão literal do texto constitucional como limite hermenêutico.
4 SIFFERT, Paulo de Abreu, Breves notas sobre o constitucionalismo americano, p. 74.
“projeto” constitucional de uma sociedade que se preze democrática, ao invés de uma
subserviência cega a uma leitura redutora do princípio democrático.5 Nesse sentido,
enquanto os interpretativistas vão afirmar que a solução adequada, constitucionalmente,
para os dilemas e conflitos que surgem na seara jurídica deve ser buscada (e trabalhada)
na intenção dos criadores da Constituição, os não-interpretativistas, de modo geral, irão
buscar as respostas nos valores (e tradições) advindos da própria sociedade.
Todavia, como defendemos nesse ensaio, o debate constitucional ora trabalhado
não se esgota aqui. Há ainda uma gama de nuances e possibilidades hermenêuticas que
merecem nossa atenção.
Atualmente, existem inúmeros juristas e filósofos norte-americanos cujas teorias
ocupam lugar de destaque não só no cenário norte-americano, mas, sobretudo, no
cenário internacional. As suas teses que, literalmente, “ganharam o mundo” vêm
gerando, ao lado das anteriores teses do interpretativismo e não-interpretativismo,
frutíferas digressões acerca dos rumos da Hermenêutica Constitucional norte-americana.
Hermenêutica essa que, em tempos transconstitucionais6, é motivo de
reconhecimento e influência em Tribunais Constitucionais europeus e no próprio
Supremo Tribunal Federal pátrio7.
2) O Procedimentaismo de John Hart Ely
John Hart Ely ganhou celebridade por sua obra “Democracy and Distrust”, na qual
argumenta a
insuficiência (inconsistência) teórica das teses clássicas,8 notadamente em
5 Didaticamente teríamos que: “[...] O primeiro (corrente interpretativista) consistiria resumidamente,
numa compreensão de que o papel constitucional dos juízes está adstrito ao que está estatuído e
escrito na Constituição, sendo que princípios e valores não são vinculantes (o juiz não pode ampliar
o rol de direitos previstos expressamente na Constituição, pois isto acarretaria subjetivismo), ao
contrário do segundo (corrente não-interpretativista), onde existe a ideia de que as Cortes devem
basear seus julgamentos em elementos que vão além do mero texto, buscando referências por detrás
dos limites estritos do documento, vinculados a aspectos morais e valorativos.” HENNING LEAL,
Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 149.
6 Em linhas gerais, nos moldes desenvolvidos por Marcelo Neves, o transconstitucionalismo pode ser
definido como o entrelaçamento de ordens jurídicas diversas (estatais, transnacionais, internacionais
e até mesmo supranacionais) em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional. Portanto, o
fato de ordens jurídicas diferenciadas enfrentarem concomitantemente as mesmas questões de
natureza constitucional desenvolvendo cada dia mais “pontes de transição”, pode (e deve) ser
traduzido como transconstitucionalismo. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, Ed. Martins
Fontes, 2011.
7 Basta apenas observarmos que o número de citações nos julgados do STF de autores e teses norte-
americanas adotadas pela Suprema Corte dos EUA é cada dia mais volumoso, já alcançando o nível
dos doutrinadores do tradicional direito alemão.
8 John Hart Ely refuta ambas as teses clássicas. Nesse sentido, resumidamente: 1) contra os
interpretativistas (que adotam uma noção mais restrita de atuação do judiciário), sustenta o professor
face do papel que um juiz deve assumir, quando em uma situação de controle de
constitucionalidade das leis e atos normativos. Ao magistrado sempre pesa a presunção
de ilegitimidade, já que não é eleito ou possui responsabilidade política igual aos
membros do Congresso Nacional ou do Parlamento, que foram escolhidos e, pelo
menos em tese, representam o povo de um país. Ely, então, propõe que os Tribunais
Constitucionais compreendam melhor o seu papel se assumirem-se como “reforços da
democracia”,9 isso porque parte de uma concepção procedimental de democracia (ao
invés de uma concepção substantiva, que permitiria aos magistrados fazer escolhas que
pudessem ser fundamentadas em argumentos de origem moral ou ética), que se voltam
aos problemas de regulamentação dos procedimentos justos e iguais a todos. Porém, é
bom que se diga que, apesar da função reservada aos Tribunais ser, sobretudo, de
fiscalização e controle da regularidade e da adequada participação de todos no processo
político, ele atuaria de forma ativa em situações ou na ocorrência de eventuais
desvirtuamentos do processo político, nos quais a minoria não conseguisse se sustentar
com suas próprias forças.10
Portanto, afirma o ex-professor de Yale e Harvard que os Tribunais devem
desempenhar a função similar a de árbitros em um jogo de futebol (que não dizem quem
é o vencedor, apenas atuando no intuito de garantir que o jogo seja jogado de maneira
limpa, justa e em igualdades de condição),11 de modo a deixar a democracia seguir seu
curso, agindo apenas de modo a desobstruir os bloqueios que se formam no processo
democrático.12 Sendo assim, o Judiciário não tem (e nem deve!) autoridade para alterar
que o estrito respeito ao texto que fixa aplicação da Constituição no limite encontrado no próprio
texto exige um respeito à vontade da maioria expressa e traduzida na forma da lei. Ele então conclui
que a maioria pode muito bem conceder benefícios em detrimento da minoria. Assim sendo, apesar
do critério da maioria estar alocado no centro do sistema democrático americano, ele, segundo Ely,
não é e nem deve ser absolutizado. Nesse sentido, afirma que as minorias precisam ser protegidas
contra possíveis abusos que podem ocorrer em uma democracia representativa. 2) contra os não
interpretativistas, Ely se volta ao problema de quais seriam os modos de complementação e
integração do texto constitucional pelos magistrados. Ou seja, uma questão atinente às fontes nas
quais seriam retiradas as complementações e colmatações. Seriam do Direito natural, tradições,
razão, consenso, princípios, digressões morais? Nesse sentido, o elemento democrático (de uma
construção normativa fruto do sistema de representação popular) poderia ser firmemente abalado,
pois estaríamos sujeitos a subjetividades ou mesmo a arbitrariedades dos juízes com base em
critérios que não seriam dotados de certeza e segurança. Democracy and Distrust, p. 7 e p. 50-52 e
ss. Ver também: HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 150-15.
9 MONTEBELLO, Marianna, Estudo sobre a teoria da revisão judicial no constitucionalismo norte-
americano, p. 105.
10 ELY, John Hart, Democracy and Distrust, p. 169.
11 Nesse sentido, conforme Henning Leal (2007), a Suprema Corte (dos EUA) teria, então, na expressão
cunhada por Ulrich Haltern, uma função que se assemelha à de um “cão de guarda da democracia”. p.
157.
12 ELY, John Hart, Democracy and Distrust, p. 88.
decisões fruto de deliberações democráticas (legislativas), não cabendo a eles a tarefa de
uma pretensa interpretação valorativa da Constituição garantidora de direitos (já que
esses direitos devem ser especificados em uma instância política, não sendo da alçada
de uma instância jurídica), mas podem sim (os Tribunais) agir no intuito da defesa e da
preservação de direito relativos à comunicação e à participação que constroem a
vontade democrática nos processos políticos. Nesse sentido, “a posição de Ely se
apresenta com uma característica aparentemente contraditória, a partir do momento em
que fortalece e ao mesmo tempo limita a atuação da jurisdição constitucional. Por meio
da retração e limitação do aspecto procedimental, a atuação das Cortes é restringida e o
processo político fortalecido, porém, sem que isso implique a discriminação ou prejuízo
de minorias, que devem ter seus direitos fundamentais assegurados (no que a atuação
jurisdicional é reforçada). [...] trata-se de um modelo que intenciona, a um só tempo,
fortalecer e restringir a jurisdição constitucional por meio de um retorno a um
referencial de controle de natureza procedimental, em que o processo político pretende
ser reforçado sem que isso implique uma renúncia de proteção dos direitos das
minorias. 13
3) O minimalismo de Cass R. Sunstein
Cass R. Sunstein é outro expoente do Direito Constitucional norte-americano da
atualidade. Sua proposta (que é crítica ao judicial review14) se insere no seio de um
movimento que se autodenomina Minimalismo Judicial (judicial minimalism),15 que
tem por proposta uma retomada do papel que o Judiciário deveria ocupar em um Estado
que se considera democrático. Sendo assim, um dos seus principais interlocutores
será Ronald Dworkin, que na visão de Weithman,16 entre outros, coloca todo o peso
nas decisões dos juízes.17
13 HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta,
p. 157.
14 Controle de Constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário, no qual, o Judiciário na tradição
americana se apresenta como interprete último da Constituição.
15 PETERS, Christopher J., Assessing the New Judicial Minimalism.
16 WEITHMAN, Paul J., Review of Cass R. Sunstein’s One Case of at a Time.
17 Sinteticamente, respondemos à tal crítica aclarando que o magistrado não desempenha no pensamento
de Dworkin qualquer posição de privilegiado no curso de um debate sobre a interpretação jurídica.
Quando ele cunha a metáfora de Hércules – um superjuiz com conhecimento e paciência sobre humanas
– na realidade o que deseja é traçar as linhas das posturas de alguém comprometido com uma teoria
hermenêutica condizente com o giro linguístico, capaz de por em dúvida suas pré-compreensões, bem
como realizar o movimento da fusão de horizontes, atualizando o texto ao contexto do intérprete, mas
sem perder de vista que o texto, como obra que é, é fruto de uma construção de sentido coletiva que
Luíza
Realce
Como bem coloca Rogério Gesta Leal,18 os minimalistas são juristas que não
creem em nenhuma Teoria da Constituição e da Jurisdição como algo salvador ou
mesmo com fins emancipatórias, portanto, não concebem nenhum tipo de compromisso
social por parte do Judiciário, que deveria tão somente se concentrar na solução do caso
concreto que têm em mãos.
A ideia básica de Sunstein é que os juízes, no curso de suas sentenças, devem
deixar a questão em aberto, não tendo pressa em apresentar respostas substantivas e
conclusivas – ou mesmo brilhantes teses acadêmicas – para seus jurisdicionados.
Sunstein reconhece que o Congresso norte-americano compreende a dimensão
democrática bem melhor que a Suprema Corte e, por isso mesmo, é o mais autorizado
para dar respostas finais sobre todas as questões jurídicas. Assim, uma decisão
minimalista tem o mérito de deixar um espaço para que futuras reflexões se façam tanto
em nível nacional, estadual quanto em nível local.19
Para tanto, os magistrados devem entender que não tem a menor necessidade – nem
legitimidade – para decidir questões que não possam ser consideradas como essenciais
para a resolução do caso concreto que têm em mãos, bem como evitando a apreciação
de casos complexos que ainda não atingiram um nível de maturidade no curso das
decisões na sociedade, simplesmente negando o certiorari.20
Sunstein21 sustenta, então, que uma decisão minimalista deve apresentar como
características dois pontos: superficialidade (shallowness) e estreiteza ou restrição
(narrowness). Assim, objetiva que a Corte decida o caso que tem em mãos, ao invés de
realizar uma tentativa de estabelecer regras para aplicação de outros casos futuros ou
similares.22 Portanto, as decisões devem ser “estreitas em vez de largas” e “razas em vem de
ultrapassa a vontade e os desejos de seu criador. Aliás, aqui, um registro: é impressionante a dificuldade
da doutrina brasileira em entender que estamos diante de uma metáfora! Entre outras, como a do
romance em cadeia também desenvolvida por Dworkin e aqui também citada, que irão servir como mote
para a construção de sua tese do direito como integridade. Dworkin, inclusive é alvo de inúmeros mal
entendidos na doutrina pátria (não só em relação às metáforas)! Os absurdos (ou mal entendidos) vão
desde chamá-lo de jusnaturalista até intitulá-lo de ativista!
18 LEAL, Rogério Gesta, Perfis democrático-procedimentais da jurisdição comunitária, p. 247.
19 Michael Dorf (The Supreme Court 1997 term – The Limits of Socratic Deliberation) prefere referir a
essa postura judiciária como experimentalismo judiciário, uma vez que tal espaço para
complementação, tanto do Legislativo quanto das Cortes estaduais, permite uma maior ventilação do
problema a ser discutido por toda a sociedade em seus diversos níveis.
20 SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo. Direito à diferença, p. 63.
21 SUNSTEIN, Cass R., One case at a time, p. 10.
22 Um exemplo dado é o julgamento sobre a discriminação sexual no Instituto Militar da Virgínia (Virginia
Military Institute), em 1995. Ao adotar uma compreensão minimalista da decisão, a Suprema Corte não
tentaria estabelecer uma regra geral que pudesse finalizar qualquer discussão sobre a constitucionalidade
ou não da discriminação sexual de qualquer escola militar norte-americana que somente aceite alunos do
sexo masculino, apenas se pronunciaria no estrito caso do Estado da Virgínia.
Luíza
Realce
Luíza
Realce
profundas”. Nesses termos, “devem ser estreitas na medida em que a corte deve decidir
(como já citado) simplesmente o caso concreto sem antecipar como outros casos
semelhantes (ou análogos) seriam solucionados. E devem ser rasas, na medida em que não
devem tentar justificar a decisão por fundamentos que envolvam princípios constitucionais
básicos”. 23
4) O Constitucionalismo Populista de Mark Tushnet
O professor de Harvard Mark Tushnet é, atualmente, um dos principais críticos do
judicial review (controle de constitucionalidade) norte-americano, e em uma linha que
poderíamos chamar de mais radical, defende em seus estudos, a tese do intitulado
“constitucionalismo popular” ou posição populista (populist constitutional Law).
Segundo Tushnet, sua teoria é populista porque distribui a responsabilidade pelo
direito constitucional amplamente. Assim sendo, afirma que em uma “teoria populista
do direito constitucional, a intepretação constitucional feita pelas cortes não tem
nenhum peso normativo decorrente do fato de serem produzidas por Cortes.” 24
Com isso, postula-se a retirada da “Constituição dos tribunais”, na medida em que
os mesmos não teriam legitimidade para se manifestar de forma final (dar a última
palavra) no que tange a interpretação constitucional.25
Tushnet é um dos críticos do judicial review não pelo aspecto da “objeção
contramajoritária” (questionamento tradicional da legitimidade dos magistrados da
Suprema Corte, em face de sua origem não democrática, em decidirem questões
complexas de conteúdo das normas constitucionais), mas, sim, pela tese da “supremacia
judicial” (ou seja, a consideração que o judiciário se torna poder condutor acima dos
23 OLIVEIRA, Daniel de Almeida, Stephen Griffin e a teoria constitucional Americana, p.32, 2009.
SUNSTEIN, Cass R., One case at a time, p. 10-11.
24 TUSHNET, Mark .Taking the Constitution Away from the Courts, p.23, 1999.
25 TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts, 1999. TUSHNET, Mark. Popular
Constitucionalism as Political Law. Chicago: Chicago-Kent College of Law: 2006. Ver também:
WALDRON Jeremy. A Dignidade da Legislação, 2003. Esse autor (Professor em Nova York)
sustenta que o judiciário nem sempre será a instância mais adequada para resolver matérias
conflituosas (controvertidas) sobre os direitos fundamentais. A resolução dessas querelas pode ser
resolvida por instâncias de representação democrática (legislativas). Jeremy Waldron sustenta
basicamente que: a) a prática do judicial review é procedimentalmente antidemocrática; e b) não há
razão para supor que os direitos serão protegidos de maneira mais efetiva pelas cortes do que pelas
legislaturas. In: WALDRON, Jeremy. The Core the Case Against Judicial Review, In Yale Law
Jornal, V.115, n° 6, 2006. BERMAN, José Guilherme, Direito,
Desacordo e Judicial Review.p. 110,
2010. Outro autor, que sustenta a tese do constitucionalismo popular é o professor Lerry Kramer, In:
The People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. New York: Oxford
University Press, 2004.
demais poderes).
Nesses termos, Tushnet apresenta-se como um crítico da Suprema Corte no que
tange ao monopólio da mesma em dizer o que é (o teor) direito constitucional. Nesse
sentido entende que essa postura, acaba por retirar a importância das opiniões que são
prolatadas fora da Suprema Corte. Assim sendo, a definição do que é o direito
constitucional e de como devemos entender a Constituição só tem relevância se é
emitida pela Suprema Corte. A defesa, então, é pela ampliação das opiniões em torno
das questões constitucionais. 26
É interessante que, as digressões de Tushnet, atreladas a intitulada perspectiva
“populista constitucional”, na verdade, se aproximam, sim, de um viés tipicamente
conservador (sob a ótica da tradição americana). O mesmo chega a afirmar a defesa de
uma emenda constitucional visando abolir o controle de constitucionalidade realizado
pelo Judiciário (abolição do judicial review). 27
5) A Constitutional choices e a defesa do subtancialismo de Lawrence Tribe
Por último, é mister citar as digressões desenvolvidas pelo também jurista de
Harvard Lawrence Tribe. Tribe, em sua famosa obra “American Constitutional Law”,
bem como na também famosa coletânea Constitutional choices, critica, de forma
contundente as teorias intituladas de procedimentalistas.
Na sua visão, essas teorizações que visariam apenas a garantir mecanismos de
participação democrática (nos moldes defendidos, por exemplo, por Ely) seriam
insuficientes, na medida em que seria necessária uma perspectiva substantiva que
reconheça, na maioria das normas constitucionais e na sua aplicação, seu viés
axiologizante. Para o autor, a Constituição é uma conjunção de escolhas e de opções
26 Nesses termos: “Tushnet introduz uma distinção entre o que ele chama de constituição grossa (thick
contitution) e constituição delgada (thin constitution). Aquela seria composta por provisões
detalhadas acerca da organização do governo que, apesar de importantes, são indiferentes ao público,
ou seja, não costumam gerar controvérsias populares. Esta (Constituição delgada), por sua vez, é
composta pelas garantias fundamentais de igualdade, liberdade de expressão e liberdade. Este
conteúdo está previsto especialmente na Declaração de Independência e no Preambulo da
Constituição. A questão enfrentada por Tushnet é a de como esta Constituição é interpretada fora dos
Tribunais, em especial em comparação com a habilidade do Congresso dos EUA em realizar tal
interpretação. E sua conclusão é a de que, embora os parlamentares não raciocinem da mesma
maneira que os juízes, eles também atuam na direção de promover o significado dos valores
constitucionais, ainda que sem o estilo formal do mundo jurídico.” OLIVEIRA, Daniel de Almeida,
Críticas contemporâneas ao judicial review, p.62-63.
27 TUSNHET, Mark. Democracy v. Judicial Review. Is It Time Amend the Constitution? In. Dissent
Magazine, V. 51, n° 2, 2005 (acesso em 16.12.2010)
desenvolvidas por uma pluralidade de sujeitos. Nesses termos, as decisões que devem
ser tomadas guardam íntima correlação com a nossa inarredável inserção em uma
tradição, ou seja, essa seria um limite ou uma restrição à nossa capacidade decisória.
Porém, as deliberações, fruto de escolhas, não são e não devem levar a uma univocidade
(com as mesmas conclusões sendo levadas à cabo) de posturas constitucionais. Com
isso, Tribe afirma que as escolhas constitucionais devem ser principiológicas.28 Mas,
qual a base de tal postura principiológica? E em que estaria fundamentada sua
legitimidade?
Certo é que Tribe, em sua extensa obra, não terá a pretensão de construir uma
metodologia alternativa as existentes (como a praticada, atualmente, em alguns julgados
da Suprema Corte de “cunho administrativo”), que possa nos levar a escolhas
constitucionais adequadas e absolutamente determinadas (e inquestionáveis), na medida
em que, para o autor, “toda interpretação constitucional possui elementos de
indeterminação”. Com isso, a dificuldade estaria em que “a Constituição pressupõe
uma série indeterminável de escolhas, escolhas que se apresentam a todos nós, isto é,
todos nós somos chamados a decidir o que é a Constituição e o que ela abarca em sua
existência enquanto tal: texto, intenções (de quem?), premissas morais e políticas (de
que tipo?).”29 Porém, mesmo não havendo uma teoria da interpretação constitucional
totalmente viável em consistência e segurança, o professor de Harvard não se esquiva de
traçar algumas diretrizes que possam apontar possibilidades de redução do déficit
interpretativo hodierno nas suas mais variadas bases legitimadoras (como, por exemplo,
a da superada dicotomia: interpretativista e a não-interpretativista, ou mesmo a de
autores procedimentalistas ou minimalistas). Em instigante obra, de coautoria com
Michel Dorf, o autor descreve o projeto intitulado de “conversas constitucionais”
(diálogos constitucionais), no qual enfrenta, de forma veemente, uma série de
teorizações e estabelece certos parâmetros reflexivos, sobretudo a partir das críticas,
entre outras: a dicotomia hard cases (casos difíceis) e easy cases (casos simples),30 ou
28 Nesse sentido, corroborando com nosso entendimento: “Ao asseverar que tais escolhas devem ser
tomadas num sentido principiológico, Tribe tem como foco principal fazer uma crítica a
compreensão e operacionalização que as concebe como meros cálculos instrumentais de utilidade
entre o custo e os benefícios sociais, comumente adotadas pela Suprema Corte americana que,
segundo ele, tem, cada vez mais, se tornado uma administradora de orçamentos, de caráter
imediatista, ao pautar suas decisões neste jogo de custo/benefício, o que acaba por (só) negar, em
última instância, a responsabilidade com relação à escolha que lhe compete.” HENNING LEAL,
Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 179.
29 HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 187.
30 Segundo os autores, é um equívoco supor que os grandes problemas de interpretação aparecem
apenas nos casos difíceis, ou apenas quando o objeto tratado se refere a aspectos para os quais o
mesmo a superação da busca pela interpretação constitucional com base em posturas
objetivas ou subjetivas (da hermenêutica clássica).
Portanto, o autor (apesar de, em última instância, não concordarmos em vários
aspectos com suas digressões31) vai além das correntes interpretativistas e não-
interpretativistas e, com isso, explicita sua contribuição, justamente, conforme já dito,
na crítica às concepções de cunho procedimentalistas.
Assim sendo, Tribe, embora reconheça certo caráter procedimental em algumas
normas constitucionais (dispositivos de viés processual), não admite que seja
desconsiderado o caráter substantivo das constituições com os valores que lhes são
inerentes, sobretudo se os direitos fundamentais são postos no cerne do debate
constitucional. Por tudo, (embora, em nosso sentir, de difícil enquadramento) há uma
necessária vinculação entre processo e substância (procedimentalismo e
substancialismo) em sua teoria e, a partir daí, uma opção pela
defesa do
substancialismo.32
Porém, diferentemente de Tushnet, em momento algum Tribe advoga o fim do
judicial review. Pelo contrário, defende, o autor, a necessidade da manutenção da
Suprema Corte e da atuação (tradicional) do judiciário como mecanismo de defesa das
minorias (que poderiam ser prejudicadas em seus direitos), bem como da defesa do
equilíbrio entre os poderes e da própria democracia constitucional fundada nesse
modelo. 33
6) A análise econômica do direito de Richard Posner
texto é vago e ambíguo. (TRIBE, Lawrence; DORF, Michel, 2007, p. 38-45). Aqui, temos uma
interessante contribuição da hermenêutica filosófica que corrobora com o trabalhado pelos autores:
[...] a distinção entre easy cases e hard cases é um problema de compreensão, isto é, não há casos
simples ou difíceis em si. Somente há, na verdade, casos que demandam uma adequada
interpretação, que jamais é apenas produto de suficiências ônticas do texto. Em definitivo: não há
uma distinção estrutural entre casos simples e difíceis. Dito de outro modo, distinguir casos simples
dos casos difíceis, significa cindir o que não pode ser cindido: o compreender, com o qual operamos,
e que é condição de possibilidade para a interpretação. Afinal de que modo e quando podemos saber
se estamos em face de um easy case ou de um hard case? Já não seria um caso difícil decidir se um
caso é fácil ou difícil? (STRECK, Lenio. 2007, p. xxiv. In: TRIBE, Lawrence; DORF, Michel,
2007).
31 Sem dúvida, entre os autores trabalhados nos filiamos à perspectiva da hermenêutica crítica de
Ronald Dworkin. Ver em nosso: O poder judiciário e(m) crise, FERNANDES, Bernardo Gonçalves
e PEDRON, Flávio Quinaud. Ed. Lumen Juris, 2008.
32 TRIBE, Lawrence, American Constitutional Law, 2 ed., Cambridge: Fundation Press, 1988. TRIBE,
Lawrence. Constitutional Choices. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1985. In:
TRIBE, Lawrence; DORF, Michel, Hermenêutica constitucional, 2007.
33 OLIVEIRA, Daniel de Almeida, Críticas contemporâneas ao judicial review. p.66. TRIBE,
Lawrwnce.H., WALDRON, Jeremy e TUSHNET, Mark. On Judicial Review, In Dissent Magazine,
v.51, 2005, p.82-83 (acesso 16.12.2010).
O marco da análise econômica do direito está alocado na obra Economic Analysis
of Law lançada no início da década de 70 do século passado em Chicago por Richard
Posner. Esse trabalho foi dividido em 7 (sete) partes envolvendo temas como o direito
das empresas e dos mercados financeiros, a distribuição das riquezas e da arrecadação
tributária, o processo legal americano, bem como a natureza da argumentação jurídica
econômica (economic legal reasoning) 34.
O ponto fulcral de tal teorização é a de que o direito é um instrumento para a
consecução de fins sociais e, com isso, o fim central seria o da eficiência econômica.
Para tal empreitada, Posner considerará que a economia é a ciência por excelência das
escolhas racionais, afirmando em suas digressões que a economia guia a versão da
análise econômica do direto e que as pessoas são maximizadoras racionais de suas
satisfações. Assim sendo, todas as pessoas (com exceção de crianças pequenas e os
mentalmente retardados) em todas as suas atividades (exceto sob a influência de psicose
ou desarranjos mentais ocasionados por uso de drogas ou abuso de álcool) trabalham
com escolhas e devem maximizar as mesmas35.
A tese central da análise econômica do direito, então, poderia ser sintetizada em
uma perspectiva de cunho utilitarista, na qual a decisão de um juiz deve se pautar por
uma relação custo-benefício. Com isso, o direito só é perspectivo quando promove a
maximização das relações econômicas, sendo que a maximização da riqueza (wealth
maximization) deve orientar a atuação do magistrado36.
Observamos, aqui, uma base caudatária do intitulado pragmatismo jurídico norte-
americano, de matriz realista, que enxerga o direito apenas pela lógica exógena
(externa) de cunho consequencialista forte,37 que desnatura o código binário do direito.
Assim, o direito se apresenta, inexoravelmente, como um instrumental estratégico e
34
POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 6. ed. New York: Aspen, 2003.
35
POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 6. ed. New York: Aspen, 2003. Assim sendo, a Escola
de Chicago, conforme Posner, deixa assente a aplicação de análise micro-econômica no direito, partindo
de três premissas: (a) os indivíduos são maximizadores racionais de suas satisfações em comportamentos
fora do mercado e no mercado; (b) os indivíduos respondem aos incentivos de preços no comportamento
de mercado e fora do mercado; (c) regras e ações jurídicas podem ser avaliadas com base na eficiência, ao
ponto que as decisões judiciais devem promover a eficiência.
36
GODOY, Arnaldo. Direito e Economia: Introdução ao movimento Law and Economics. Revista
Jurídica, Brasília, v. 7, n. 73, jun/jul, 2005, p. 4. ROSA, Alexandre de Morais. Dialogos com a Law &
Economics, 2 ª Edição, 2011. POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 6. ed. New York: Aspen,
2003.
37
Sobre as críticas ao consequencialismo forte de linhagem ultra-utilitarista ver: SANDEL, Michael J.
Justiça, Ed. Civilização brasileira, 4ª Edição, 2011.
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indeterminado de qualquer base de legitimidade e justificação interna conduzindo a um
déficit de legitimidade e correção judicial. Sendo assim, Posner ao indicar o critério do
custo-benefício/maximização da riqueza estabelece um lugar para o sistema judicial de
garante de dogmas (como, por exemplo, a propriedade privada, contratos e etc) que
deslocam a legitimidade das decisões judiciais do direito para a parametricidade
econômica. As decisões jurídicas perdem, então, seu caráter deontológico se pautando
por uma relação de custos e impactos econômicos interconectados pela lógica da
eficiência. Ou seja, temos ai uma vertente do consequencialismo forte, que sustenta que
a decisão judicial deve ser tomada não com os olhos no passado (seguindo um viés, por
exemplo, interpretativista), mas sempre com os olhos voltados para o futuro (mas não
na vertente não-interpretativista), de modo a escolher, dentre as opções, aquela que
trouxer uma maior linha de vantagem que, para Posner deve ser sempre de cunho
econômico. Posner, que é Juiz Federal, será muito criticado por inúmeras de suas
posições. Uma delas chegou a fundamentar o acerto da Suprema Corte Americana na
decisão sobre a eleição Bush X Gore na qual por cinco votos a quatro, foi mantido o
resultado original do pleito ainda que sabidamente viciado no Estado da Florida38.
Segundo Posner, a decisão contrária pela recontagem de votos (mesmo se fosse
juridicamente coerente em virtude da possível fraude) causaria um enorme prejuízo as
instituições do país além, de uma excessiva instabilidade pela falta de uma decisão
sobre quem seria o futuro Presidente naquele período de reanalise da eleição.
Observamos que, que para o autor, se torna mais importante a avaliação das
consequências da decisão do que propriamente a juridicidade e normatividade da
mesma. Em tom crítico, temos que se os imperativos de mercado passam a guiar a
conduta judicial, o Direito passa a ser colonizado por outro sistema, com uma lógica
distinta,
lucro e prejuízo e, então, o Direito tende a desaparecer com todos os riscos
evidentes para a estabilização de uma sociedade democrática39.
7) A teoria da Integridade de Ronald Dworkin
É interessante, logo de início, pontuarmos, que o professor Ronald Dworkin,40 na
38 DWORKIN, Ronald. A Justiça de toga, Ed. Martins Fontes, 2011.
39
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. A resposta correta: Incursões jurídicas sobre as teorias da justiça,
p.219-220, 2011.
40 DWORKIN, Ronald. O império do direito, 1999.
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visão de alguns autores, como Gomes Canotilho,41 seria um dos principais
representantes do não-interpretativismo. Todavia, achamos que uma leitura que faça jus
ao projeto teórico do jurista da New York School of Law apresentaria uma abertura bem
maior, escapando a reduções drásticas que uma diferenciação dicotômica presa ao
debate clássico (interpretativistas x não-interpretativistas) estaria atrelada.
Entendemos que o projeto dworkiano é muito mais rico (e amplo) que o debate
anterior, principalmente, porque se assenta em uma compreensão do direito atrelada às
conquistas do giro hermenêutico-pragmático e intimamente preocupada com a questão
da busca por uma justificação da legitimidade do direito e das decisões jurídicas.
Para o jurista e filósofo norte-americano, o direito deve ser lido como parte de um
empreendimento coletivo e compartilhado por toda a sociedade. Os direitos, assim,
seriam frutos da história e da moralidade, no sentido de que observam uma construção
histórico-institucional a partir do compartilhamento, em uma mesma sociedade, de um
mesmo conjunto de princípios e o reconhecimento de iguais direitos e liberdades
subjetivas a todos os seus membros (comunidade de princípios42). Isso implica
reconhecer que todos que pertencem a uma mesma sociedade necessariamente
compartilham de um mesmo conjunto de direitos e deveres básicos; direito inclusive de
participar da construção e da atribuição de sentido a esses direitos, seja na seara do
Poder Legislativo, seja na seara do Poder Judiciário.
Logo, ninguém – e principalmente os magistrados – seriam livres para decidir
casos concretos levados ao Judiciário (ou seja, ele nega a existência da
discricionariedade na solução de um caso sub judice), nem poderia subordinar suas
decisões à persecução de metas coletivas (que beneficiam apenas uma parcela da
sociedade em detrimento de outra parcela) se direitos individuais (corporificados pelos
princípios jurídicos) estivessem em discussão, pois – assim como curingas em um jogo
de cartas – detêm primazia sobre as primeiras (metas coletivas), dado o seu caráter de
universalidade – como já dito, são válidos para todos os membros dessa sociedade43.
A compreensão de que a atividade decisória dos juízes não se produz no vácuo,
mas, sim, em constante diálogo com a história, revela as influências da hermenêutica
gadameriana. Todavia, Dworkin é defensor de uma interpretação construtiva, e, por isso
41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 6ª Edição, p.
1.182-1.183, 2003.
42 A comunidade de princípios se mostra como ideia fundamental na teoria Dworkiana, já que é
condição de possibilidade para as metáforas do Juiz Hércules e do romance em cadeia.
43 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. p. 178, 2011.
Luíza
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mesmo, de uma teoria hermenêutica crítica em que a decisão de um caso produz um
“acréscimo” em uma determinada tradição. Além disso, a construção da decisão do
caso, e consequentemente, da própria interpretação constitucional se mostra como algo
coletivo e aberto a uma evolução – e porque não, revisão – constante44.
Dworkin imagina uma metáfora (do romance em cadeia) na qual cada juiz é apenas
o autor de um capítulo em uma longa obra coletiva sobre um determinado direito
(princípio). Ele se encontra, então, não apenas vinculado – e não amarrado! – ao
passado, mas com o compromisso de ler tudo o que já foi feito por seus antecessores
para buscar continuar sua tarefa e redigir um esquema melhor – dotado do que ele
denomina integridade – dos princípios existentes e reconhecidos pela comunidade.
Resumindo a tese: a integridade nega que as manifestações do Direito sejam
meros relatos factuais voltados para o passado, como quer o convencionalismo atrelado
ao positivismo; ou programas instrumentais voltados para o futuro, como pretende o
pragmatismo atrelado ao realismo. Para o Direito como integridade, as afirmações
jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas voltadas tanto para o passado
quanto para o futuro. Nesses termos, “o direito como integridade, portanto, começa no
presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo
assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou
objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que
eles fizeram (...) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz
consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e
justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O
direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que ‘lei é
lei’, bem como o cinismo do novo ‘relativismo’. Considera esses dois pontos de vista
como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um
juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não
reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma
afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim, uma proposta
interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a
justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de
princípio que a integridade requer”.45
44 FERNANDES, Bernardo Gonçalves e PEDRON, Flávio Quinaud. O poder judiciário e(m) crise, Ed.
Lumen Juris, p. 210-224, 2008.
45 DWORKIN, Ronald, O império do direito, p. 274, 1999FERNANDES, Bernardo Gonçalves e
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Uma sociedade que aceite a integridade como virtude se transforma, segundo
Dworkin, em um tipo especial de comunidade que promove sua autoridade moral para
assumir e mobilizar o monopólio da força coercitiva. Logo, a teoria de Dworkin
(embora alguns autores brasileiros insistam em não entender!), nos traz pelo menos 4
(quatro) pontos que são merecedores de destaque, uma vez que são pertinentes a esse
debate: (1) a negativa da discricionariedade judicial (no sentido forte); (2) a negativa de
que decisões judiciais possam se apoiar em diretrizes políticas; (3) a importância da
noção de devido processo para a dimensão da integridade; e (4) a própria noção de
integridade, que levanta a exigência de que cada caso seja compreendido como parte de
uma história encadeada; não podendo, portanto, ser descartado sem uma razão baseada
em uma coerência de princípios.46
8) Conclusão
O giro científico do racionalismo crítico de Karl Popper, bem como o giro
hermenêutico-pragmático tributário de Wittgenstein e de Gadamer acabaram por nos
ensinar que paradoxalmente o
conhecimento produz desconhecimento, pois quando
conhecemos algo reduzimos a complexidade, ou seja, quando lançamos luzes sobre um
objeto de análise, escurecemos outros. Isso apenas caracteriza a ciência e o
conhecimento científico como produtos de uma condição humana, que hoje se sabe
(contra um racionalismo iluminista míope) precária, datada e passível constantemente
de refutação (pois falível).
E nesses termos, ainda assim, as velhas dicotomias insistem em rondar nossas
vidas, como que fantasmas que vão e voltam no devir da história. Apesar do relativo e
pretenso didatismo das mesmas em propedêuticas lições do despertar jurídico,
acreditamos, em uma visão menos preguiçosa e mais crítica, que elas mais velam do que
desvelam os processos aplicação do direito e as respectivas teorias da justiça altamente
complexas que permeiam a teoria do direito e a hermenêutica (crítica) subjacente às
mesma.
PEDRON, Flávio Quinaud. O poder judiciário e(m) crise, Ed. Lumen Juris, 2008. .
46 Para um aprofundamento nas teses de Dworkin, ver O poder judiciário e(m) crise, Ed. Lumen Juris,
2008. FERNANDES, Bernardo Gonçalves e PEDRON, Flávio Quinaud.
Esse texto nasceu de uma pergunta feita a Ronald Dworkin, um dos juristas mais
renomados do mundo e trabalhado no ensaio. Perquirido de forma acrítica pela
milésima vez em pleno século XXI se afinal de contas ele era um jusnaturalista ou um
positivista, respondeu em tom irônico: “Ora, se só existir isso, e se for para escolher sou
um jusnaturalista, embora, obviamente, não seja, aliás, muito pelo contrário!”
O mesmo aconteceria se a pergunta fosse em relação a preferência pela vontade do
legislador ou da lei (ou direito público versus direito privado), ou ao tema do ensaio
(interpretativismo e o não-interpretativismo), ou a qualquer outra dicotomia
incompatível com a complexidade de nossa epocalidade. Acreditamos que o
procedimentalismo fraco de Ely, o minimalismo de Susntein, o populismo
constitucional de Tushnet, o substancialismo de Tribe, o pragmatismo econômico de
Posner, bem como a teoria da integridade e a interpretação construtivista de Dworkin
buscam um ir além, que, sem dúvida, vem enriquecendo o debate norte-americano e, de
forma transconstitucional, causando inúmeras reflexões hermenêuticas em terrae
brasilis.
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Teoria Geral do Direito - parte I/Conven��o Europeia dos Direitos do Homem.pdf
Convenção Europeia
dos Direitos
do Homem
Convenção
Europeia
dos Direitos
do Homem
com as modificações introduzidas pelos
Protocolos nos 11 e 14
acompanhada do Protocolo adicional e dos
Protocolos nos 4, 6, 7, 12 e 13
3
O texto da Convenção inclui as modificações introduzidas
pelo Protocolo n° 14 (STCE n° 194), entrado em vigor
em 1 de Junho de 2010. O texto da Convenção foi
anteriormente modificado nos termos das disposições
do Protocolo n° 3 (STE n° 45), entrado
em vigor
em 21 de Setembro de 1970, do Protocolo n° 5 (STE n° 55),
entrado em vigor em 20 de Dezembro de 1971 e
do Protocolo n° 8 (STE n° 118), entrado em vigor
em 1 de Janeiro de 1990, incluindo ainda o texto do
Protocolo n° 2 (STE n° 44) que, nos termos do seu artigo 5°,
parágrafo 3°, fazia parte integrante da Convenção desde a
sua entrada em vigor em 21 de Setembro de 1970. Todas as
disposições modificadas ou acrescentadas por estes Protocolos
foram substituídas pelo Protocolo n° 11 (STE n° 155), a partir
da data da entrada em vigor deste, em 1 de Novembro
de 1998. A partir desta data, o Protocolo n° 9 (STE n° 140),
entrado em vigor em 1 de Outubro de 1994, foi revogado e
o Protocolo n° 10 (STE n° 146) ficou sem objecto.
O estado das assinaturas e ratificações da Convenção e seus
Protocolos, bem como a lista completa das declarações e
reservas, podem ser consultados em www.conventions.coe.int.
Apenas fazem fé as versões inglesa e francesa da Convenção. Esta
tradução não é uma versão oficial da Convenção.
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
Council of Europe
F-67075 Strasbourg cedex
www.echr.coe.int
SUMÁRIO
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem
e das Liberdades Fundamentais .......................................5
Protocolo adicional ......................................................33
Protocolo n° 4 .............................................................37
Protocolo n° 6 .............................................................41
Protocolo n° 7 .............................................................45
Protocolo n° 12 ...........................................................51
Protocolo n° 13 ...........................................................55
5
Convenção para a Protecção
dos Direitos do Homem
e das Liberdades Fundamentais
Roma, 4.11.1950
Os Governos signatários, Membros do Conselho da Europa,
Considerando a Declaração Universal dos Direitos do Homem
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em 10 de Dezembro de 1948,
Considerando que esta Declaração se destina a assegurar o
reconhecimento e aplicação universais e efectivos dos direitos
nela enunciados,
Considerando que a finalidade do Conselho da Europa é
realizar uma união mais estreita entre os seus Membros e que
um dos meios de alcançar esta finalidade é a protecção e
o desenvolvimento dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais,
Reafirmando o seu profundo apego a estas liberdades
fundamentais, que constituem as verdadeiras bases da justiça e
da paz no mundo e cuja preservação repousa essencialmente,
por um lado, num regime político verdadeiramente democrático
e, por outro, numa concepção comum e no comum respeito dos
direitos do homem,
Decididos, enquanto Governos de Estados Europeus animados
no mesmo espírito, possuindo um património comum de ideais
e tradições políticas, de respeito pela liberdade e pelo primado
do direito, a tomar as primeiras providências apropriadas para
6 7
assegurar a garantia colectiva de certo número de direitos
enunciados na Declaração Universal,
Convencionaram o seguinte:
ARTIGO 1°
Obrigação de respeitar os direitos do homem
As Altas Partes Contratantes reconhecem a qualquer pessoa
dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos
no título I da presente Convenção.
TÍTULO I
DIREITOS E LIBERDADES
ARTIGO 2°
Direito à vida
1. O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei.
Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, salvo
em execução de uma sentença capital pronunciada por um
tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei.
2. Não haverá violação do presente artigo quando a morte
resulte de recurso à força, tornado absolutamente necessário:
a) Para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra
uma violência ilegal;
b) Para efectuar uma detenção legal ou para impedir a
evasão de uma pessoa detida legalmente;
c) Para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta
ou uma insurreição.
ARTIGO 3°
Proibição da tortura
Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou
tratamentos desumanos ou degradantes.
ARTIGO 4°
Proibição da escravatura e do trabalho forçado
1. Ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão.
2. Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho
forçado ou obrigatório.
3. Não será considerado “trabalho forçado ou obrigatório”
no sentido do presente artigo:
a) Qualquer trabalho exigido normalmente a uma pessoa
submetida a detenção nas condições previstas pelo
artigo 5° da presente Convenção, ou enquanto estiver
em liberdade condicional;
b) Qualquer serviço de carácter militar ou, no caso
de objectores de consciência, nos países em que
a objecção de consciência for reconhecida como
legítima, qualquer outro serviço que substitua o serviço
militar obrigatório;
c) Qualquer serviço exigido no caso de crise ou de
calamidade que ameacem a vida ou o bem - estar da
comunidade;
d) Qualquer trabalho ou serviço que fizer parte das
obrigações cívicas normais.
8 9
ARTIGO 5°
Direito à liberdade e à segurança
1. Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança.
Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos
seguintes e de acordo com o procedimento legal:
a) Se for preso em consequência de condenação por
tribunal competente;
b) Se for preso ou detido legalmente, por desobediência a
uma decisão tomada, em conformidade com a lei, por
um tribunal, ou para garantir o cumprimento de uma
obrigação prescrita pela lei;
c) Se for preso e detido a fim de comparecer perante a
autoridade judicial competente, quando houver suspeita
razoável de ter cometido uma infracção, ou quando
houver motivos razoáveis para crer que é necessário
impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em
fuga depois de a ter cometido;
d) Se se tratar da detenção legal de um menor, feita
com o propósito de o educar sob vigilância, ou da
sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer
perante a autoridade competente;
e) Se se tratar da detenção legal de uma pessoa
susceptível de propagar uma doença contagiosa, de um
alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano ou
de um vagabundo;
f) Se se tratar de prisão ou detenção legal de uma pessoa
para lhe impedir a entrada ilegal no território ou contra
a qual está em curso um processo de expulsão ou de
extradição.
2. Qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve
prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e
de qualquer acusação formulada contra ela.
3. Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas
no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser
apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado
habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a
ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante
o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada
a uma garantia que assegure a comparência do interessado em
juízo.
4. Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou
detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este
se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade
da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for
ilegal.
5. Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em
condições contrárias às disposições deste artigo tem direito a
indemnização.
ARTIGO 6°
Direito a um processo equitativo
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja
examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável
por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela
lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos
seus
direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento
de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra
ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala
de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público
durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da
moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa
10 11
sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a
protecção da vida privada das partes no processo o exigirem,
ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal,
quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser
prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se
inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente
provada.
3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que
entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa
da acusação contra ele formulada;
b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a
preparação da sua defesa;
c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de
um defensor da sua escolha e, se não tiver meios
para remunerar um defensor, poder ser assistido
gratuitamente por um defensor oficioso, quando os
interesses da justiça o exigirem;
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de
acusação e obter a convocação e o interrogatório das
testemunhas de defesa nas mesmas condições que as
testemunhas de acusação;
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não
compreender ou não falar a língua usada no processo.
ARTIGO 7°
Princípio da legalidade
1. Ninguém pode ser condenado por uma acção ou uma
omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía
infracção, segundo o direito nacional ou internacional.
Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que
a aplicável no momento em que a infracção foi cometida.
2. O presente artigo não invalidará a sentença ou a pena de
uma pessoa culpada de uma acção ou de uma omissão que,
no momento em que foi cometida, constituía crime segundo
os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações
civilizadas.
ARTIGO 8°
Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida
privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no
exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver
prevista na lei e constituir uma providência que, numa
sociedade democrática, seja necessária para a segurança
nacional, para a segurança pública, para o bem - estar
económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das
infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a
protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
ARTIGO 9°
Liberdade de pensamento,
de consciência e de religião
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento,
de consciência e de religião; este direito implica a liberdade
de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade
de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou
colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do
ensino, de práticas e da celebração de ritos.
2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções,
individual ou colectivamente, não pode ser objecto de
12 13
outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem
disposições necessárias, numa sociedade democrática, à
segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral
públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.
ARTIGO 10°
Liberdade de expressão
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão.
Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade
de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que
possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e
sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede
que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de
cinematografia ou de televisão a um regime de autorização
prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica
deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas
formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela
lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade
democrática, para a segurança nacional, a integridade
territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a
prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a
protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a
divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a
autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
ARTIGO 11°
Liberdade de reunião e de associação
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião
pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de,
com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a defesa dos
seus interesses.
2. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições
que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias,
numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a
segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime,
a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos
e das liberdades de terceiros. O presente artigo não proíbe
que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes
direitos aos membros das forças armadas, da polícia ou da
administração do Estado.
ARTIGO 12°
Direito ao casamento
A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de
se casar e de constituir família, segundo as leis nacionais que
regem o exercício deste direito.
ARTIGO 13°
Direito a um recurso efectivo
Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na
presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso
perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver
sido cometida por pessoas que actuem no exercício das suas
funções oficiais.
ARTIGO 14°
Proibição de discriminação
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente
Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais
como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões
políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a
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uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer
outra situação.
ARTIGO 15°
Derrogação em caso de estado de necessidade
1. Em caso de guerra ou de outro perigo público que
ameace a vida da nação, qualquer Alta Parte Contratante
pode tomar providências que derroguem as obrigações
previstas na presente Convenção, na estrita medida em que o
exigir a situação, e em que tais providências não estejam em
contradição com as outras obrigações decorrentes do direito
internacional.
2. A disposição precedente não autoriza nenhuma
derrogação ao artigo 2°, salvo quanto ao caso de morte
resultante de actos lícitos de guerra, nem aos artigos 3°, 4°
(parágrafo 1) e 7°.
3. Qualquer Alta Parte Contratante que exercer este direito
de derrogação manterá completamente informado o Secretário-
Geral do Conselho da Europa das providências tomadas e
dos motivos que as provocaram. Deverá igualmente informar o
Secretário - Geral do Conselho da Europa da data em que essas
disposições tiverem deixado de estar em vigor e da data em
que as da Convenção voltarem a ter plena aplicação.
ARTIGO 16°
Restrições à actividade política dos estrangeiros
Nenhuma das disposições dos artigos 10°, 11° e 14° pode ser
considerada como proibição às Altas Partes Contratantes de
imporem restrições à actividade política dos estrangeiros.
ARTIGO 17°
Proibição do abuso de direito
Nenhuma das disposições da presente Convenção se pode
interpretar no sentido de implicar para
um Estado, grupo
ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a actividade ou
praticar actos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades
reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações
de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.
ARTIGO 18°
Limitação da aplicação de restrições aos direitos
As restrições feitas nos termos da presente Convenção aos
referidos direitos e liberdades só podem ser aplicadas para os
fins que foram previstas.
TÍTULO II
TRIBUNAL EUROPEU
DOS DIREITOS DO HOMEM
ARTIGO 19°
Criação do Tribunal
A fim de assegurar o respeito dos compromissos que resultam,
para as Altas Partes Contratantes, da presente Convenção e dos
seus protocolos, é criado um Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, a seguir designado “o Tribunal”, o qual funcionará a
título permanente.
16 17
ARTIGO 20°
Número de juízes
O Tribunal compõe-se de um número de juízes igual ao número
de Altas Partes Contratantes.
ARTIGO 21°
Condições para o exercício de funções
1. Os juízes deverão gozar da mais alta reputação moral e
reunir as condições requeridas para o exercício de altas funções
judiciais ou ser jurisconsultos de reconhecida competência.
2. Os juízes exercem as suas funções a título individual.
3. Durante o respectivo mandato, os juízes não poderão
exercer qualquer actividade incompatível com as exigências
de independência, imparcialidade ou disponibilidade exigidas
por uma actividade exercida a tempo inteiro. Qualquer questão
relativa à aplicação do disposto no presente número é decidida
pelo Tribunal.
ARTIGO 22°
Eleição dos juízes
Os juízes são eleitos pela Assembleia Parlamentar relativamente
a cada Alta Parte Contratante, por maioria dos votos expressos,
recaindo numa lista de três candidatos apresentados pela Alta
Parte Contratante.
ARTIGO 23°
Duração do mandato e destituição
1. Os juízes são eleitos por um período de nove anos. Não
são reelegíveis.
2. O mandato dos juízes cessará logo que estes atinjam a
idade de 70 anos.
3. Os juízes permanecerão em funções até serem substituídos.
Depois da sua substituição continuarão a ocupar-se dos assuntos
que já lhes tinham sido cometidos.
4. Nenhum juíz poderá ser afastado das suas funções, salvo
se os restantes juízes decidirem, por maioria de dois terços, que
o juiz em causa deixou de corresponder aos requisitos exigidos.
ARTIGO 24°
Secretaria e relatores
O Tribunal dispõe de uma secretaria, cujas tarefas e
organização serão definidas no regulamento do Tribunal.
Sempre que funcionar enquanto tribunal singular, o Tribunal
será assistido por relatores que exercerão as suas funções
sob autoridade do Presidente do Tribunal. Estes integram a
secretaria do Tribunal.
ARTIGO 25°
Assembleia plenária do Tribunal
O Tribunal, reunido em assembleia plenária:
a) Elegerá o seu presidente e um ou dois vice-presidentes
por um período de três anos. Todos eles são reelegíveis;
b) Criará secções, que funcionarão por período
determinado;
c) Elegerá os presidentes das secções do Tribunal, os
quais são reelegíveis;
d) Adoptará o regulamento do Tribunal;
e) Elegerá o secretário e um ou vários secretários-adjuntos;
18 19
f) Apresentará qualquer pedido nos termos do artigo 26°,
n° 2.
ARTIGO 26°
Tribunal singular, comités, secções e tribunal pleno
1. Para o exame dos assuntos que lhe sejam submetidos, o
Tribunal funcionará com juiz singular, em comités compostos
por 3 juízes, em secções compostas por 7 juízes e em tribunal
pleno composto por 17 juízes. As secções do tribunal constituem
os comités por período determinado.
2. A pedido da Assembleia Plenária do Tribunal, o Comité
de Ministros poderá, por decisão unânime e por período
determinado, reduzir para cinco o número de juízes das
secções.
3. Um juiz com assento na qualidade de juiz singular não
procederá à apreciação de qualquer petição formulada contra
a Alta Parte Contratante em nome da qual o juiz em causa
tenha sido eleito.
4. O juiz eleito por uma Alta Parte Contratante que seja parte
no diferendo será membro de direito da secção e do tribunal
pleno. Em caso de ausência deste juiz ou se ele não estiver em
condições de intervir, uma pessoa escolhida pelo Presidente do
Tribunal de uma lista apresentada previamente por essa Parte
intervirá na qualidade de juiz.
5. Integram igualmente o tribunal pleno o presidente do
Tribunal, os vice-presidentes, os presidentes das secções e outros
juízes designados em conformidade com o regulamento do
Tribunal. Se o assunto tiver sido deferido ao tribunal pleno nos
termos do artigo 43°, nenhum juiz da secção que haja proferido
a decisão poderá naquele intervir, salvo no que respeita ao
presidente da secção e ao juiz que decidiu em nome da Alta
Parte Contratante que seja Parte interessada.
ARTIGO 27°
Competência dos juízes singulares
1. Qualquer juiz singular pode declarar a inadmissibilidade
ou mandar arquivar qualquer petição formulada nos termos
do artigo 34° se essa decisão puder ser tomada sem posterior
apreciação.
2. A decisão é definitiva.
3. Se o juiz singular não declarar a inadmissibilidade ou não
mandar arquivar uma petição, o juiz em causa transmite-a a um
comité ou a uma secção para fins de posterior apreciação.
ARTIGO 28°
Competência dos comités
1. Um comité que conheça de uma petição individual
formulada nos termos do artigo 34° pode, por voto unânime:
a) Declarar a inadmissibilidade ou mandar arquivar a
mesma sempre que essa decisão puder ser tomada sem
posterior apreciação; ou
b) Declarar a admissibilidade da mesma e proferir ao
mesmo tempo uma sentença quanto ao fundo sempre
que a questão subjacente ao assunto e relativa à
interpretação ou à aplicação da Convenção ou dos
respectivos Protocolos for já objecto de jurisprudência
bem firmada do Tribunal.
2. As decisões e sentenças previstas pelo n° 1 são definitivas.
3. Se o juiz eleito pela Alta Parte Contratante, parte no
litígio, não for membro do comité, o comité pode, em qualquer
momento do processo, convidar o juiz em causa a ter assento
no lugar de um dos membros do comité, tendo em consideração
todos os factores relevantes, incluindo a questão de saber se
20 21
essa Parte contestou a aplicação do processo previsto no n° 1,
alínea b).
ARTIGO 29°
Decisões das secções quanto
à admissibilidade e ao fundo
1. Se nenhuma decisão tiver sido tomada nos termos dos
artigos 27° ou 28°, e se nenhuma sentença tiver sido proferida
nos termos do artigo 28°, uma das secções pronunciar-se-á
quanto à admissibilidade e ao fundo das petições individuais
formuladas nos termos do artigo 34°. A decisão quanto à
admissibilidade pode ser tomada em separado.
2. Uma das secções pronunciar-se-á quanto à admissibilidade
e ao fundo das petições estaduais formuladas nos termos do
artigo 33°. A decisão quanto à admissibilidade é tomada
em separado, salvo deliberações em contrário do Tribunal
relativamente a casos excepcionais.
ARTIGO 30°
Devolução da decisão a favor do tribunal pleno
Se um assunto pendente numa secção levantar uma questão
grave quanto à interpretação da Convenção ou dos seus
protocolos, ou se a solução de um litígio puder conduzir a
uma contradição com uma sentença já proferida pelo Tribunal,
a secção pode, antes de proferir a sua sentença, devolver a
decisão do litígio ao tribunal pleno, salvo se qualquer das
partes do mesmo a tal se opuser.
ARTIGO 31°
Atribuições do tribunal pleno
O tribunal pleno:
a) Pronunciar-se-á sobre as petições formuladas nos
termos do artigo 33° ou do artigo 34°, se a secção
tiver cessado de conhecer de um
assunto nos termos do
artigo 30° ou se o assunto lhe tiver sido cometido nos
termos do artigo 43°;
b) Pronunciar-se-á sobre as questões submetidas ao
Tribunal pelo Comité de Ministros nos termos do artigo
46°, n° 4; e
c) Apreciará os pedidos de parecer formulados nos termos
do artigo 47°.
ARTIGO 32°
Competência do Tribunal
1. A competência do Tribunal abrange todas as questões
relativas à interpretação e à aplicação da Convenção e dos
respectivos protocolos que lhe sejam submetidas nas condições
previstas pelos artigos 33°, 34°,46° e 47°.
2. O Tribunal decide sobre quaisquer contestações à sua
competência.
ARTIGO 33°
Assuntos interestaduais
Qualquer Alta Parte Contratante pode submeter ao Tribunal
qualquer violação das disposições da Convenção e dos seus
protocolos que creia poder ser imputada a outra Alta Parte
Contratante.
22 23
ARTIGO 34°
Petições individuais
O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular,
organização não governamental ou grupo de particulares
que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte
Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos
seus protocolos. As Altas Partes Contratantes comprometem - se
a não criar qualquer entrave ao exercício efectivo desse direito.
ARTIGO 35°
Condições de admissibilidade
1. O Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um
assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso internas,
em conformidade com os princípios de direito internacional
geralmente reconhecidos e num prazo de seis meses a contar
da data da decisão interna definitiva.
2. O Tribunal não conhecerá de qualquer petição individual
formulada em aplicação do disposto no artigo 34° se tal
petição:
a) For anónima;
b) For, no essencial, idêntica a uma petição anteriormente
examinada pelo Tribunal ou já submetida a outra
instância internacional de inquérito ou de decisão e não
contiver factos novos.
3. O Tribunal declarará a inadmissibilidade de qualquer
petição individual formulada nos termos do artigo 34° sempre
que considerar que:
a) A petição é incompatível com o disposto na Convenção
ou nos seus Protocolos, é manifestamente mal fundada
ou tem carácter abusivo; ou
b) O autor da petição não sofreu qualquer prejuízo
significativo, salvo se o respeito pelos direitos do
homem garantidos na Convenção e nos respectivos
Protocolos exigir uma apreciação da petição quanto ao
fundo e contanto que não se rejeite, por esse motivo,
qualquer questão que não tenha sido devidamente
apreciada por um tribunal interno.
4. O Tribunal rejeitará qualquer petição que considere
inadmissível nos termos do presente artigo. O Tribunal poderá
decidir nestes termos em qualquer momento do processo.
ARTIGO 36°
Intervenção de terceiros
1. Em qualquer assunto pendente numa secção ou no tribunal
pleno, a Alta Parte Contratante da qual o autor da petição seja
nacional terá o direito de formular observações por escrito ou
de participar nas audiências.
2. No interesse da boa administração da justiça, o
presidente do Tribunal pode convidar qualquer Alta Parte
Contratante que não seja parte no processo ou qualquer outra
pessoa interessada que não o autor da petição a apresentar
observações escritas ou a participar nas audiências.
3. Em qualquer assunto pendente numa secção ou no tribunal
pleno, o Comissário para os Direitos do Homem do Conselho
da Europa poderá formular observações por escrito e participar
nas audiências.
ARTIGO 37°
Arquivamento
1. O Tribunal pode decidir, em qualquer momento do
processo, arquivar uma petição se as circunstâncias permitirem
concluir que:
24 25
a) O requerente não pretende mais manter tal petição;
b) O litígio foi resolvido;
c) Por qualquer outro motivo constatado pelo Tribunal, não
se justifica prosseguir a apreciação da petição.
Contudo, o Tribunal dará seguimento à apreciação da petição
se o respeito pelos direitos do homem garantidos na Convenção
assim o exigir.
2. O Tribunal poderá decidir - se pelo desarquivamento
de uma petição se considerar que as circunstâncias assim o
justificam.
ARTIGO 38°
Apreciação contraditória do assunto
O Tribunal procederá a uma apreciação contraditória do
assunto em conjunto com os representantes das Partes e, se for
caso disso, realizará um inquérito para cuja eficaz condução
as Altas Partes Contratantes interessadas fornecerão todas as
facilidades necessárias.
ARTIGO 39°
Resoluções amigáveis
1. O Tribunal poderá, em qualquer momento do processo,
colocar-se à disposição dos interessados com o objectivo de
se alcançar uma resolução amigável do assunto, inspirada no
respeito pelos direitos do homem como tais reconhecidos pela
Convenção e pelos seus Protocolos.
2. O processo descrito no n° 1 do presente artigo é
confidencial.
3. Em caso de resolução amigável, o Tribunal arquivará o
assunto, proferindo, para o efeito, uma decisão que conterá
uma breve exposição dos factos e da solução adoptada.
4. Tal decisão será transmitida ao Comité de Ministros, o qual
velará pela execução dos termos da resolução amigável tais
como constam da decisão.
ARTIGO 40°
Audiência pública e acesso aos documentos
1. A audiência é pública, salvo se o Tribunal decidir em
contrário por força de circunstâncias excepcionais.
2. Os documentos depositados na secretaria ficarão acessíveis
ao público, salvo decisão em contrário do presidente do
Tribunal.
ARTIGO 41°
Reparação razoável
Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção
ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte
Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às
consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte
lesada uma reparação razoável, se necessário.
ARTIGO 42°
Decisões das secções
As decisões tomadas pelas secções tornam - se definitivas em
conformidade com o disposto no n° 2 do artigo 44°.
26 27
ARTIGO 43°
Devolução ao tribunal pleno
1. Num prazo de três meses a contar da data da sentença
proferida por uma secção, qualquer parte no assunto poderá,
em casos excepcionais, solicitar a devolução do assunto ao
tribunal pleno.
2. Um colectivo composto por cinco juízes do tribunal pleno
aceitará a petição, se o assunto levantar uma questão grave
quanto à interpretação ou à aplicação da Convenção ou dos
seus protocolos ou ainda se levantar uma questão grave de
carácter geral.
3. Se o colectivo aceitar a petição, o tribunal pleno
pronunciar-se- á sobre o assunto por meio de sentença.
ARTIGO 44°
Sentenças definitivas
1. A sentença do tribunal pleno é definitiva.
2. A sentença de uma secção pronunciar-se-á definitiva:
a) Se as partes declararem que não solicitarão a
devolução do assunto ao tribunal pleno;
b) Três meses após a data da sentença, se a devolução do
assunto ao tribunal pleno não for solicitada;
c) Se o colectivo do tribunal pleno rejeitar a petição de
devolução formulada nos termos do artigo 43°.
3. A sentença definitiva será publicada.
ARTIGO 45°
Fundamentação das sentenças e das decisões
1. As sentenças, bem como as decisões que declarem a
admissibilidade ou a inadmissibilidade das petições, serão
fundamentadas.
2. Se a sentença não expressar, no todo ou em parte, a
opinião unânime dos juízes, qualquer juiz terá o direito de lhe
juntar uma exposição da sua opinião divergente.
ARTIGO 46°
Força vinculativa e execução das sentenças
1. As Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as
sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem
partes.
2. A sentença definitiva do Tribunal será transmitida ao
Comité de Ministros, o qual
velará pela sua execução.
3. Sempre que o Comité de Ministros considerar que a
supervisão da execução de uma sentença definitiva está a ser
entravada por uma dificuldade de interpretação dessa sentença,
poderá dar conhecimento ao Tribunal a fim que o mesmo se
pronuncie sobre essa questão de interpretação. A decisão de
submeter a questão à apreciação do tribunal será tomada por
maioria de dois terços dos seus membros titulares.
4. Sempre que o Comité de Ministros considerar que uma Alta
Parte Contratante se recusa a respeitar uma sentença definitiva
num litígio em que esta seja parte, poderá, após notificação
dessa Parte e por decisão tomada por maioria de dois terços
dos seus membros titulares, submeter à apreciação do Tribunal
a questão sobre o cumprimento, por essa Parte, da sua
obrigação em conformidade com o n° 1.
28 29
5. Se o Tribunal constatar que houve violação do n° 1,
devolverá o assunto ao Comité de Ministros para fins de
apreciação das medidas a tomar. Se o Tribunal constatar que
não houve violação do n° 1, devolverá o assunto ao Comité de
Ministros, o qual decidir-se-á pela conclusão da sua apreciação.
ARTIGO 47°
Pareceres
1. A pedido do Comité de Ministros, o Tribunal pode emitir
pareceres sobre questões jurídicas relativas à interpretação da
Convenção e dos seus protocolos.
2. Tais pareceres não podem incidir sobre questões relativas
ao conteúdo ou à extensão dos direitos e liberdades definidos
no título I da Convenção e nos protocolos, nem sobre outras
questões que, em virtude do recurso previsto pela Convenção,
possam ser submetidas ao Tribunal ou ao Comité de Ministros.
3. A decisão do Comité de Ministros de solicitar um parecer
ao Tribunal será tomada por voto maioritário dos seus membros
titulares.
ARTIGO 48°
Competência consultiva do Tribunal
O Tribunal decidirá se o pedido de parecer apresentado pelo
Comité de Ministros cabe na sua competência consultiva, tal
como a define o artigo 47°.
ARTIGO 49°
Fundamentação dos pareceres
1. O parecer do Tribunal será fundamentado.
2. Se o parecer não expressar, no seu todo ou em parte,
a opinião unânime dos juízes, qualquer juiz tem o direito de
o fazer acompanhar de uma exposição com a sua opinião
divergente.
3. O parecer do Tribunal será comunicado ao Comité de
Ministros.
ARTIGO 50°
Despesas de funcionamento do Tribunal
As despesas de funcionamento do Tribunal serão suportadas
pelo Conselho da Europa.
ARTIGO 51°
Privilégios e imunidades dos juízes
Os juízes gozam, enquanto no exercício das suas funções, dos
privilégios e imunidades previstos no artigo 40° do Estatuto do
Conselho da Europa e nos acordos concluídos em virtude desse
artigo.
TÍTULO III
DISPOSIÇÕES DIVERSAS
ARTIGO 52°
Inquéritos do Secretário - Geral
Qualquer Alta Parte Contratante deverá fornecer, a
requerimento do Secretário-Geral do Conselho da Europa, os
esclarecimentos pertinentes sobre a forma como o seu direito
interno assegura a aplicação efectiva de quaisquer disposições
desta Convenção.
30 31
ARTIGO 53°
Salvaguarda dos direitos do homem
reconhecidos por outra via
Nenhuma das disposições da presente Convenção será
interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos
do homem e as liberdades fundamentais que tiverem sido
reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte
Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela
seja parte.
ARTIGO 54°
Poderes do Comité de Ministros
Nenhuma das disposições da presente Convenção afecta os
poderes conferidos ao Comité de Ministros pelo Estatuto do
Conselho da Europa.
ARTIGO 55°
Renúncia a outras formas de resolução de litígios
As Altas Partes Contratantes renunciam reciprocamente, salvo
acordo especial, a aproveitar-se dos tratados, convénios ou
declarações que entre si existirem, com o fim de resolver, por
via contenciosa, uma divergência de interpretação ou aplicação
da presente Convenção por processo de solução diferente dos
previstos na presente Convenção.
ARTIGO 56°
Aplicação territorial
1. Qualquer Estado pode, no momento da ratificação ou
em qualquer outro momento ulterior, declarar, em notificação
dirigida ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, que
a presente Convenção se aplicará, sob reserva do n° 4 do
presente artigo, a todos os territórios ou a quaisquer dos
territórios cujas relações internacionais assegura.
2. A Convenção será aplicada ao território ou territórios
designados na notificação, a partir do trigésimo dia seguinte à
data em que o Secretário - Geral do Conselho da Europa a tiver
recebido.
3. Nos territórios em causa, as disposições da presente
Convenção serão aplicáveis tendo em conta as necessidades
locais.
4. Qualquer Estado que tiver feito uma declaração de
conformidade com o primeiro parágrafo deste artigo pode, em
qualquer momento ulterior, declarar que aceita, a respeito de
um ou vários territórios em questão, a competência do Tribunal
para aceitar petições de pessoas singulares, de organizações
não governamentais ou de grupos de particulares, conforme
previsto pelo artigo 34° da Convenção.
ARTIGO 57°
Reservas
1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura desta
Convenção ou do depósito do seu instrumento de ratificação,
formular uma reserva a propósito de qualquer disposição da
Convenção, na medida em que uma lei então em vigor no seu
território estiver em discordância com aquela disposição. Este
artigo não autoriza reservas de carácter geral.
2. Toda a reserva feita em conformidade com o presente
artigo será acompanhada de uma breve descrição da lei em
causa.
32 33
ARTIGO 58°
Denúncia
1. Uma Alta Parte Contratante só pode denunciar a presente
Convenção ao fim do prazo de cinco anos a contar da data da
entrada em vigor da Convenção para a dita Parte, e mediante
um pré - aviso de seis meses, feito em notificação dirigida ao
Secretário - Geral do Conselho da Europa, o qual informará as
outras Partes Contratantes.
2. Esta denúncia não pode ter por efeito desvincular a
Alta Parte Contratante em causa das obrigações contidas na
presente Convenção no que se refere a qualquer facto que,
podendo constituir violação daquelas obrigações, tivesse
sido praticado pela dita Parte anteriormente à data em que a
denúncia produz efeito.
3. Sob a mesma reserva, deixará de ser parte na presente
Convenção qualquer Alta Parte Contratante que deixar de ser
membro do Conselho da Europa.
4. A Convenção poderá ser denunciada, nos termos dos
parágrafos precedentes, em relação a qualquer território a que
tiver sido declarada aplicável nos termos do artigo 56°.
ARTIGO 59°
Assinatura e ratificação
1. A presente Convenção está aberta à assinatura dos
membros do Conselho da Europa. Será ratificada. As
ratificações serão depositadas junto do Secretário - Geral do
Conselho da Europa.
2. A União Europeia poderá aderir à presente Convenção.
3. A presente Convenção entrará em vigor depois do depósito
de dez instrumentos de ratificação.
4. Para todo o signatário que a ratifique ulteriormente, a
Convenção entrará em vigor no momento em que se realizar o
depósito do instrumento de ratificação.
5. O Secretário-Geral do Conselho da Europa notificará
todos os membros do Conselho da Europa da entrada em
vigor da Convenção, dos nomes das Altas Partes Contratantes
que a tiverem ratificado, assim como do depósito de todo o
instrumento de ratificação que ulteriormente venha a ser feito.
Feito em Roma, aos 4 de Novembro de 1950, em francês
e em inglês, os dois textos fazendo igualmente fé, num só
exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da
Europa. O Secretário-Geral
enviará cópias conformes a todos
os signatários.
Protocolo adicional
à Convenção de Protecção dos
Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais
Paris, 20.3.1952
(Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos
termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada
deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998)
Os Governos signatários, Membros do Conselho da Europa,
Resolvidos a tomar providências apropriadas para assegurar
a garantia colectiva de direitos e liberdades, além dos que já
figuram no título I da Convenção de Protecção dos Direitos do
34 35
Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em
4 de Novembro de 1950 (abaixo designada “a Convenção”).
Convieram no seguinte:
ARTIGO 1°
Protecção da propriedade
Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao
respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que
é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas
condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito
internacional.
As condições precedentes entendem - se sem prejuízo do direito
que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem
necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo
com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de
impostos ou outras contribuições ou de multas.
ARTIGO 2°
Direito à instrução
A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado,
no exercício das funções que tem de assumir no campo da
educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar
aquela educação e ensino consoante as suas convicções
religiosas e filosóficas.
ARTIGO 3°
Direito a eleições livres
As Altas Partes Contratantes obrigam - se a organizar, com
intervalos razoáveis, eleições livres, por escrutínio secreto, em
condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo
na eleição do órgão legislativo.
ARTIGO 4°
Aplicação territorial
Qualquer Alta Parte Contratante pode, no momento da
assinatura ou da ratificação do presente Protocolo, ou em
qualquer momento posterior, endereçar ao Secretário - Geral
do Conselho da Europa uma declaração em que indique que as
disposições do presente Protocolo se aplicam a territórios cujas
relações internacionais assegura.
Qualquer Alta Parte Contratante que tiver feito uma declaração
nos termos do parágrafo anterior pode, a qualquer momento,
fazer uma nova declaração em que modifique os termos de
qualquer declaração anterior ou em que ponha fim à aplicação
do presente Protocolo em relação a qualquer dos territórios em
causa.
Uma declaração feita em conformidade com o presente artigo
será considerada como se tivesse sido feita em conformidade
com o parágrafo 1 do artigo 56° da Convenção.
ARTIGO 5°
Relações com a Convenção
As Altas Partes Contratantes consideram os artigos 1°, 2°,
3° e 4° do presente Protocolo como adicionais à Convenção
e todas as disposições da Convenção serão aplicadas em
consequência.
36 37
ARTIGO 6°
Assinatura e ratificação
O presente Protocolo está aberto à assinatura dos membros do
Conselho da Europa, signatários da Convenção; será ratificado
ao mesmo tempo que a Convenção ou depois da ratificação
desta. Entrará em vigor depois de depositados dez instrumentos
de ratificação. Para qualquer signatário que a ratifique
ulteriormente, o Protocolo entrará em vigor desde o momento
em que se fizer o depósito do instrumento de ratificação.
Os instrumentos de ratificação serão depositados junto do
Secretário -Geral do Conselho da Europa, o qual participará a
todos os Membros os nomes daqueles que o tiverem ratificado.
Feito em Paris, aos 20 de Março de 1952, em francês e em
inglês, os dois textos fazendo igualmente fé, num só exemplar,
que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa.
O Secretário - Geral enviará cópia conforme a cada um dos
Governos signatários.
Protocolo n° 4
em que se reconhecem certos direitos
e liberdades além dos que já figuram
na Convenção e no Protocolo
adicional à Convenção
Estrasburgo, 16.9.1963
(Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos
termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada
deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998)
Os Governos signatários, membros do Conselho da Europa,
Resolvidos a tomar as providências apropriadas para assegurar
a garantia colectiva de direitos e liberdades, além dos que
já figuram no título I da Convenção de Salvaguarda dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada
em Roma em 4 de Novembro de 1950 (abaixo designada
“a Convenção”), e nos artigos 1° a 3° do primeiro Protocolo
Adicional à Convenção, assinado em Paris
em 20 de Março de 1952,
Convieram no seguinte:
ARTIGO 1°
Proibição da prisão por dívidas
Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão
de não poder cumprir uma obrigação contratual.
38 39
ARTIGO 2°
Liberdade de circulação
1. Qualquer pessoa que se encontra em situação regular em
território de um Estado tem direito a nele circular livremente e a
escolher livremente a sua residência.
2. Toda a pessoa é livre de deixar um país qualquer, incluindo
o seu próprio.
3. O exercício destes direitos não pode ser objecto de
outras restrições senão as que, previstas pela lei, constituem
providências necessárias, numa sociedade democrática, para
a segurança nacional, a segurança pública, a manutenção da
ordem pública, a prevenção de infracções penais, a protecção
da saúde ou da moral ou a salvaguarda dos direitos e
liberdades de terceiros.
4. Os direitos reconhecidos no parágrafo 1 podem
igualmente, em certas zonas determinadas, ser objecto de
restrições que, previstas pela lei, se justifiquem pelo interesse
público numa sociedade democrática.
ARTIGO 3°
Proibição da expulsão de nacionais
1. Ninguém pode ser expulso, em virtude de disposição
individual ou colectiva, do território do Estado de que for
cidadão.
2. Ninguém pode ser privado do direito de entrar no território
do Estado de que for cidadão.
ARTIGO 4°
Proibição de expulsão colectiva de estrangeiros
São proibidas as expulsões colectivas de estrangeiros.
ARTIGO 5°
Aplicação territorial
1. Qualquer Alta Parte Contratante pode, no momento da
assinatura ou ratificação do presente Protocolo ou em qualquer
outro momento posterior, comunicar ao Secretário - Geral do
Conselho da Europa uma declaração na qual indique até que
ponto se obriga a aplicar as disposições do presente Protocolo
nos territórios que forem designados na dita declaração.
2. Qualquer Alta Parte Contratante que tiver feito uma
declaração nos termos do parágrafo precedente pode, quando
o desejar, fazer nova declaração para modificar os termos de
qualquer declaração anterior ou para pôr fim à aplicação do
presente Protocolo em relação a qualquer dos territórios em
causa.
3. Uma declaração feita em conformidade com este artigo
considerar - se - á como feita em conformidade com
o parágrafo 1 do artigo 56° da Convenção.
4. O território de qualquer Estado a que o presente Protocolo
se aplicar em virtude da sua ratificação ou da sua aceitação
pelo dito Estado e cada um dos territórios aos quais o Protocolo
se aplicar em virtude de declaração feita pelo mesmo Estado em
conformidade com o presente artigo serão considerados como
territórios diversos para os efeitos das referências ao território
de um Estado contidas nos artigos 2° e 3°.
5. Qualquer Estado que tiver feito uma declaração nos termos
do n° 1 ou 2 do presente artigo poderá, em qualquer momento
ulterior, declarar que aceita, relativamente a um ou vários dos
seus territórios referidos nessa declaração, a competência do
Tribunal
para conhecer das petições apresentadas por pessoas
singulares, organizações não governamentais ou grupos de
particulares, em conformidade com o artigo 34° da Convenção
40 41
relativamente aos artigos 1° a 4° do presente Protocolo ou
alguns de entre eles.
ARTIGO 6°
Relações com a Convenção
As Altas Partes Contratantes considerarão os artigos 1° a 5°
deste Protocolo como artigos adicionais à Convenção e todas as
disposições da Convenção se aplicarão em consequência.
ARTIGO 7°
Assinatura e ratificação
1. O presente Protocolo fica aberto à assinatura dos membros
do Conselho da Europa, signatários da Convenção; será
ratificado ao mesmo tempo que a Convenção ou depois
da ratificação desta. Entrará em vigor quando tiverem sido
depositados cinco instrumentos de ratificação. Para todo o
signatário que o ratificar ulteriormente, o Protocolo entrará
em vigor no momento em que depositar o seu instrumento de
ratificação.
2. O Secretário - Geral do Conselho da Europa terá
competência para receber o depósito dos instrumentos de
ratificação e notificará todos os membros dos nomes dos
Estados que a tiverem ratificado.
Em fé do que os abaixo assinados, para tal devidamente
autorizados, assinaram o presente Protocolo.
Feito em Estrasburgo, aos 16 de Setembro de 1963, em francês
e em inglês, os dois textos fazendo igualmente fé, num único
exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da
Europa. O Secretário -Geral enviará cópia conforme a cada um
dos Estados signatários.
Protocolo n° 6
à Convenção para a Protecção dos
Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais Relativo à abolição da
Pena de Morte
Estrasburgo, 28.4.1983
(Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos
termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada
deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998)
Os Estados membros do Conselho da Europa signatários do
presente Protocolo à Convenção para a Protecção dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma
em 4 de Novembro de 1950 (daqui em diante designada
“a Convenção”),
Considerando que a evolução verificada em vários Estados
membros do Conselho da Europa exprime uma tendência geral
a favor da abolição da pena de morte;
Acordaram no seguinte:
ARTIGO 1°
Abolição da pena de morte
A pena de morte é abolida. Ninguém pode ser condenado a tal
pena ou executado.
42 43
ARTIGO 2°
Pena de morte em tempo de guerra
Um Estado pode prever na sua legislação a pena de morte para
actos praticados em tempo de guerra ou de perigo iminente de
guerra; tal pena não será aplicada senão nos casos previstos
por esta legislação e de acordo com as suas disposições.
Este Estado comunicará ao Secretário - Geral do Conselho da
Europa as disposições correspondentes da legislação em causa.
ARTIGO 3°
Proibição de derrogações
Não é permitida qualquer derrogação às disposições
do presente Protocolo com fundamento no artigo 15° da
Convenção.
ARTIGO 4°
Proibição de reservas
Não são admitidas reservas às disposições do presente
Protocolo com fundamento no artigo 57° da Convenção.
ARTIGO 5°
Aplicação territorial
1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou
no momento do depósito do seu instrumento de ratificação,
de aceitação ou de aprovação, designar o território ou os
territórios a que se aplicará o presente Protocolo.
2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento posterior,
mediante declaração dirigida ao Secretário - Geral do Conselho
da Europa, alargar a aplicação deste Protocolo a qualquer
outro território designado na sua declaração. O Protocolo
entrará em vigor, no que respeita a esse território, no primeiro
dia do mês seguinte à data de recepção da declaração pelo
Secretário - Geral.
3. Qualquer declaração feita em aplicação dos dois números
anteriores poderá ser retirada, relativamente a qualquer
território designado nessa declaração, mediante notificação
dirigida ao Secretário - Geral. A retirada produzirá efeito no
primeiro dia do mês seguinte à data da recepção da notificação
pelo Secretário - Geral.
ARTIGO 6°
Relações com a Convenção
Os Estados partes consideram os artigos 1° a 5° do
presente Protocolo como artigos adicionais à Convenção e,
consequentemente, todas as disposições da Convenção são
aplicáveis.
ARTIGO 7°
Assinatura e ratificação
Este Protocolo fica aberto à assinatura dos Estados membros
do Conselho da Europa signatários da Convenção. Será
submetido a ratificação, aceitação ou aprovação. Um Estado
do Conselho da Europa não poderá ratificar, aceitar ou aprovar
este Protocolo sem ter simultânea ou anteriormente ratificado
a Convenção. Os instrumentos de ratificação, aceitação ou
aprovação serão depositados junto do Secretário - Geral do
Conselho da Europa.
44 45
ARTIGO 8°
Entrada em vigor
1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia
do mês seguinte à data em que cinco Estados membros do
Conselho da Europa tenham exprimido o seu consentimento em
ficarem vinculados pelo Protocolo, em conformidade com as
disposições do artigo 7°.
2. Relativamente a qualquer Estado membro que exprima
posteriormente o seu consentimento em ficar vinculado pelo
Protocolo, este entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte
à data de depósito do instrumento de ratificação, de aceitação
ou de aprovação.
ARTIGO 9°
Funções do depositário
O Secretário - Geral do Conselho da Europa notificará aos
Estados membros do Conselho:
a) Qualquer assinatura;
b) O depósito de qualquer instrumento de ratificação, de
aceitação ou de aprovação;
c) Qualquer data de entrada em vigor do presente
Protocolo, em conformidade com os artigos 5° e 8°;
d) Qualquer outro acto, notificação ou comunicação
relativos ao presente Protocolo.
Em fé do que, os abaixo assinados, devidamente autorizados
para este efeito, assinaram o presente Protocolo.
Feito em Estrasburgo, aos 28 dias de Abril de 1983, em francês
e em inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé, num único
exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da
Europa. O Secretário - Geral do Conselho da Europa dele
enviará cópia devidamente certificada a cada um dos Estados
membros do Conselho da Europa.
Protocolo n° 7
à Convenção para a Protecção
dos Direitos do Homem
e das Liberdades Fundamentais
Estrasburgo, 22.11.1984
(Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos
termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada
deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998)
Os Estados membros do Conselho da Europa, signatários do
presente Protocolo;
Decididos a tomar novas providências apropriadas para
assegurar a garantia colectiva de certos direitos e liberdades
pela Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e
das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de
Novembro de 1950 (abaixo designada “a Convenção”);
Convieram no seguinte:
ARTIGO 1°
Garantias processuais em caso
de expulsão de estrangeiros
1. Um estrangeiro que resida legalmente no território de um
Estado não pode ser expulso, a não ser em cumprimento de
46 47
uma decisão tomada em conformidade com a lei, e deve ter a
possibilidade de:
a) Fazer valer as razões que militam contra a sua
expulsão;
b) Fazer examinar o seu caso; e
c) Fazer - se representar, para esse fim, perante a
autoridade competente ou perante uma ou várias
pessoas designadas por essa autoridade.
2. Um estrangeiro pode ser expulso antes do exercício dos
direitos enumerados no n° 1, alíneas a), b) e c), deste artigo,
quando essa expulsão seja necessária no interesse da ordem
pública ou se
funde em razões de segurança nacional.
ARTIGO 2°
Direito a um duplo grau de jurisdição
em matéria penal
1. Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção
penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por
uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou
a condenação. O exercício deste direito, bem como os
fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados
pela lei.
2. Este direito pode ser objecto de excepções em relação a
infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando
o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela
mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no
seguimento de recurso contra a sua absolvição.
ARTIGO 3°
Direito a indemnização em caso de erro judiciário
Quando uma condenação penal definitiva é ulteriormente
anulada ou quando é concedido o indulto, porque um facto
novo ou recentemente revelado prova que se produziu um erro
judiciário, a pessoa que cumpriu uma pena em virtude dessa
condenação será indemnizada, em conformidade com a lei ou
com o processo em vigor no Estado em causa, a menos que se
prove que a não revelação em tempo útil de facto desconhecido
lhe é imputável no todo ou em parte.
ARTIGO 4°
Direito a não ser julgado
ou punido mais de uma vez
1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas
jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela
qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em
conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.
2. As disposições do número anterior não impedem a
reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal
do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados
ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o
resultado do julgamento.
3. Não é permitida qualquer derrogação ao presente artigo
com fundamento no artigo 15° da Convenção.
ARTIGO 5°
Igualdade entre os cônjuges
Os cônjuges gozam de igualdade de direitos e de
responsabilidades de carácter civil, entre si e nas relações com
os seus filhos, em relação ao casamento, na constância do
48 49
matrimónio e aquando da sua dissolução. O presente artigo
não impede os Estados de tomarem as medidas necessárias no
interesse dos filhos.
ARTIGO 6°
Aplicação territorial
1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou
no momento do depósito do seu instrumento de ratificação,
aceitação ou aprovação, designar o ou os territórios a que o
presente Protocolo se aplicará e declarar em que medida se
compromete a que as disposições do presente Protocolo sejam
aplicadas nesse ou nesses territórios.
2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento ulterior e
por meio de uma declaração dirigida ao Secretário - Geral
do Conselho da Europa, estender a aplicação do Protocolo
a qualquer outro território designado nessa declaração. O
Protocolo entrará em vigor, em relação a esse território, no
primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de dois
meses a partir da data de recepção dessa declaração pelo
Secretário – Geral.
3. Qualquer declaração feita nos termos dos números
anteriores pode ser retirada ou modificada em relação a
qualquer território nela designado, por meio de uma notificação
dirigida ao Secretário - Geral. A retirada ou a modificação
produz efeitos a partir do primeiro dia do mês seguinte ao
termo de um prazo de dois meses após a data de recepção da
notificação pelo Secretário - Geral.
4. Uma declaração feita nos termos do presente artigo será
considerada como tendo sido feita em conformidade com o n° 1
do artigo 56° da Convenção.
5. O território de qualquer Estado a que o presente Protocolo
se aplica, em virtude da sua ratificação, aceitação ou
aprovação pelo referido Estado, e cada um dos territórios a que
o Protocolo se aplica, em virtude de uma declaração subscrita
pelo referido Estado nos termos do presente artigo, podem ser
considerados territórios distintos para os efeitos da referência ao
território de um Estado feita no artigo 1°.
6. Qualquer Estado que tiver feito uma declaração em
conformidade com o n° 1 ou 2 do presente artigo poderá, em
qualquer momento ulterior, declarar que aceita, relativamente
a um ou vários dos seus territórios referidos nessa declaração,
a competência do Tribunal para conhecer das petições
apresentadas por pessoas singulares, organizações não
governamentais ou grupos de particulares, em conformidade
com o artigo 34° da Convenção relativamente aos artigos 1°
a 5° do presente Protocolo ou alguns de entre eles.
ARTIGO 7°
Relações com a Convenção
Os Estados Partes consideram os artigos 1° a 6° do presente
Protocolo como artigos adicionais à Convenção e todas as
disposições da Convenção se aplicarão em consequência.
ARTIGO 8°
Assinatura e ratificação
O presente Protocolo fica aberto à assinatura dos Estados
membros do Conselho da Europa, signatários da Convenção.
Ficará sujeito a ratificação, aceitação ou aprovação. Nenhum
Estado membro do Conselho da Europa poderá ratificar,
aceitar ou aprovar o presente Protocolo sem ter, simultânea
ou previamente, ratificado a Convenção. Os instrumentos de
ratificação, de aceitação ou de aprovação serão depositados
junto do Secretário - Geral do Conselho da Europa.
50 51
ARTIGO 9°
Entrada em vigor
1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia do
mês seguinte ao termo de um prazo de dois meses a partir da
data em que sete Estados membros do Conselho da Europa
tenham expresso o seu consentimento em estar vinculados pelo
Protocolo nos termos do artigo 8°.
2. Para o Estado membro que exprima ulteriormente o seu
consentimento em ficar vinculado pelo Protocolo, este entrará
em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo
de dois meses a partir da data do depósito do instrumento de
ratificação, aceitação ou aprovação.
ARTIGO 10°
Funções do depositário
O Secretário - Geral do Conselho da Europa notificará aos
Estados membros do Conselho da Europa:
a) Qualquer assinatura;
b) O depósito de qualquer instrumento de ratificação,
aceitação ou aprovação;
c) Qualquer data de entrada em vigor do presente
Protocolo nos termos dos artigos 6° e 9°;
d) Qualquer outro acto, notificação ou declaração
relacionados com o presente Protocolo.
Em fé do que os signatários, devidamente autorizados para este
efeito, assinaram o presente Protocolo.
Feito em Estrasburgo, a 22 de Novembro de 1984, em francês
e inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé, num único
exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho
da Europa. O Secretário - Geral do Conselho da Europa
enviará cópia autenticada a cada um dos Estados membros do
Conselho da Europa.
Protocolo n° 12
à Convenção para a Protecção
dos Direitos do Homem
e das Liberdades Fundamentais
Roma, 4.11.2000
Entrada em vigor na ordem internacional: 1 de abril de 2005.
Portugal ainda não ratificou o Protocolo nº 12. Série de tratados
europeus nº 177.
Os Estados membros do Conselho da Europa, signatários do
presente Protocolo,
Tendo em conta o princípio fundamental segundo o qual todas
as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a uma igual
protecção pela lei;
Decididos a tomar novas medidas para promover a igualdade
de todas as pessoas através da implementação colectiva de
uma interdição geral de discriminação prevista na Convenção
para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950
(adiante designada “a Convenção”);
Reafirmando que o princípio da não-discriminação não obsta
a que os Estados partes tomem medidas para promover uma
52 53
igualdade plena e efectiva, desde que tais
medidas sejam
objectiva e razoavelmente justificadas;
Acordam no seguinte:
ARTIGO 1º
Interdição geral de discriminação
1. O gozo de todo e qualquer direito previsto na lei deve ser
garantido sem discriminação alguma em razão, nomeadamente,
do sexo, raça, cor, língua, religião, convicções políticas ou
outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria
nacional, riqueza, nascimento ou outra situação.
2. Ninguém pode ser objecto de discriminação por parte
de qualquer autoridade pública com base nomeadamente nas
razões enunciadas no número 1 do presente artigo.
ARTIGO 2º
Aplicação territorial
1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou
do depósito do seu instrumento de ratificação, aceitação ou
aprovação, designar o ou os territórios a que estenderá a
aplicação do presente Protocolo.
2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento ulterior,
mediante declaração dirigida ao Secretário-Geral do Conselho
da Europa, tornar extensiva a aplicação do presente Protocolo a
qualquer outro território designado na declaração. O Protocolo
entrará em vigor, relativamente a esse território, no primeiro dia
do mês seguinte ao termo de um prazo de três meses a contar
da data de recepção da declaração pelo Secretário-Geral.
3. Qualquer declaração feita nos termos dos dois números
anteriores pode ser retirada ou modificada, relativamente a
qualquer território designado nessa declaração, mediante
notificação dirigida ao Secretário-Geral. A retirada ou a
modificação produz efeitos no primeiro dia do mês seguinte ao
termo de um prazo de três meses a contar da data de recepção
da notificação pelo Secretário-Geral.
4. Qualquer declaração feita em conformidade com o
presente artigo é considerada como tendo sido feita nos termos
do nº 1 do artigo 56º da Convenção.
5. Qualquer Estado que tenha feito uma declaração nos
termos do nº 1 ou do nº 2 do presente artigo pode, em
qualquer momento ulterior, declarar, relativamente a um
ou mais territórios designados nessa declaração que aceita
a competência do Tribunal para conhecer das petições
apresentadas por pessoas singulares, organizações não
governamentais ou grupos de particulares tal como previsto no
artigo 34º da Convenção, ao abrigo do artigo 1º do presente
Protocolo.
ARTIGO 3º
Relações com a Convenção
Os Estados Partes entendem os artigos 1º e 2º do presente
Protocolo como artigos adicionais à Convenção, sendo as
disposições da Convenção correspondentemente aplicadas.
ARTIGO 4º
Assinatura e ratificação
O presente Protocolo está aberto à assinatura dos Estados
membros do Conselho da Europa signatários da Convenção e
ficará sujeito a ratificação, aceitação ou aprovação. Nenhum
Estado membro do Conselho da Europa pode ratificar,
aceitar ou aprovar o presente Protocolo sem ter simultânea
ou previamente ratificado a Convenção. Os instrumentos de
54 55
ratificação, aceitação ou aprovação serão depositados junto do
Secretário-Geral do Conselho da Europa.
ARTIGO 5º
Entrada em vigor
1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia
do mês ao termo de um prazo de três meses a contar da data
em que dez Estados membros do Conselho da Europa tenham
expresso o seu consentimento em ficarem vinculados pelo
presente Protocolo, de acordo com o disposto no artigo 4º.
2. Relativamente a qualquer Estado membro que expresse
ulteriormente o seu consentimento em ficar vinculado pelo
presente Protocolo, este entrará em vigor no primeiro dia do
mês seguinte ao termo de um prazo de três meses a contar da
data de depósito do instrumento de ratificação, aceitação ou
aprovação.
ARTIGO 6º
Funções do Depositário
O Secretário-Geral do Conselho da Europa notificará todos os
Estados membros do Conselho da Europa:
a) de qualquer assinatura;
b) do depósito de qualquer instrumento de ratificação,
aceitação ou aprovação;
c) de qualquer data de entrada em vigor do presente
Protocolo em conformidade com os seus artigos 2º e 5º;
d) de qualquer acto, notificação ou comunicação relativos
ao presente Protocolo.
Em fé do que os abaixo assinados, devidamente autorizados
para o efeito, assinaram o presente Protocolo.
Feito em Roma, a 4 de Novembro de 2000, em francês e
em inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé num único
exemplar que será depositado nos arquivos do Conselho da
Europa. O Secretário-Geral do Conselho da Europa transmitirá
uma cópia autenticada a cada um dos Estados membros do
Conselho da Europa.
Protocolo n° 13
à Convenção para a Protecção dos
Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, Relativo à Abolição
da Pena de Morte em quaisquer
circunstâncias
Vilnius, 3.5.2002
Os Estados membros do Conselho da Europa, signatários do
presente Protocolo,
Convictos de que o direito à vida é um valor fundamental numa
sociedade democrática e que a abolição da pena de morte é
essencial à protecção deste direito e ao pleno reconhecimento
da dignidade inerente a todos os seres humanos;
Desejando reforçar a protecção do direito à vida garantido
pela Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, assinada em Roma
em 4 de Novembro de 1950 (a seguir designada “a
Convenção”);
56 57
Tendo em conta que o Protocolo n° 6 à Convenção, relativo à
abolição da pena de morte, assinado em Estrasburgo
em 28 de Abril de 1983, não exclui a aplicação da pena de
morte por actos cometidos em tempo de guerra ou de ameaça
iminente de guerra;
Resolvidos a dar o último passo para abolir a pena de morte em
quaisquer circunstâncias,
Acordam no seguinte:
ARTIGO 1°
Abolição da pena de morte
É abolida a pena de morte. Ninguém será condenado a tal
pena, nem executado.
ARTIGO 2°
Proibição de derrogações
As disposições do presente Protocolo não podem ser objecto de
qualquer derrogação ao abrigo do artigo 15° da Convenção.
ARTIGO 3°
Proibição de reservas
Não é admitida qualquer reserva ao presente Protocolo,
formulada ao abrigo do artigo 57° da Convenção.
ARTIGO 4°
Aplicação territorial
1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou do
depósito do respectivo instrumento de ratificação, aceitação
ou aprovação, designar o território ou os territórios a que se
aplicará o presente Protocolo.
2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento ulterior,
mediante declaração dirigida ao Secretário - Geral do Conselho
da Europa, tornar extensiva a aplicação do presente Protocolo a
qualquer outro território designado na declaração. O Protocolo
entrará em vigor, para esse território, no primeiro dia do mês
seguinte ao decurso de um período de três meses após a data
da recepção da declaração pelo Secretário - Geral.
3. Qualquer declaração formulada nos termos dos dois
números anteriores pode ser retirada ou modificada, no que
respeita a qualquer território designado naquela declaração,
mediante notificação dirigida ao Secretário - Geral. Tal retirada
ou modificação produzirá efeito no primeiro dia do mês
seguinte ao decurso de um período de três meses após a data
da recepção da notificação pelo Secretário - Geral.
ARTIGO 5°
Relações com a Convenção
Os Estados Partes consideram as disposições dos artigos 1°
a 4° do presente Protocolo adicionais à Convenção, aplicando-
se-lhes, em consequência, todas as disposições da Convenção.
ARTIGO 6°
Assinatura e ratificação
O presente Protocolo está aberto à assinatura dos Estados
membros do Conselho da Europa que tenham assinado a
Convenção. O Protocolo está sujeito a ratificação, aceitação ou
aprovação. Nenhum Estado membro do Conselho da Europa
poderá ratificar, aceitar ou aprovar o presente Protocolo
sem ter, simultânea ou anteriormente,
ratificado, assinado
58 59
ou aprovado a Convenção. Os instrumentos de ratificação,
de aceitação ou de aprovação serão depositados junto do
Secretário -Geral do Conselho da Europa.
ARTIGO 7°
Entrada em vigor
1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia do
mês seguinte ao termo de um período de três meses após a data
em que dez Estados membros do Conselho da Europa tenham
manifestado o seu consentimento em vincular-se pelo presente
Protocolo, nos termos do disposto no seu artigo 6°.
2. Para cada um dos Estados membros que manifestarem
ulteriormente o seu consentimento em vincular-se pelo presente
Protocolo, este entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte
ao termo de um período de três meses após a data do depósito,
por parte desse Estado, do seu instrumento de ratificação, de
aceitação ou de aprovação.
ARTIGO 8°
Funções do depositário
O Secretário - Geral do Conselho da Europa notificará todos os
Estados membros do Conselho da Europa :
a) De qualquer assinatura;
b) Do depósito de qualquer instrumento de ratificação, de
aceitação ou de aprovação;
c) De qualquer data de entrada em vigor do presente
Protocolo, nos termos dos artigos 4° e 7°;
d) De qualquer outro acto, notificação ou comunicação
relativos ao presente Protocolo.
Em fé do que, os abaixo assinados, devidamente autorizados
para o efeito, assinaram o presente Protocolo.
Feito em Vilnius, em 3 de Maio de 2002, em francês e em
inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé, num único
exemplar que será depositado nos arquivos do Conselho
da Europa. O Secretário – Geral do Conselho da Europa
transmitirá cópia autenticada do presente Protocolo a todos os
Estados membros.
Convenção Europeia
dos Direitos
do Homem
European Court of Human Rights
Council of Europe
F-67075 Strasbourg cedex
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Teoria Geral do Direito - parte I/curso de filosofia do direito.pdf
Teoria Geral do Direito - parte I/Dir Fundamentais_Menelick Neto_Guilherme Scotti.pdf
Os DireitOs FunDamentais
e a (in)Certeza DO DireitO
A Produtividade das Tensões
Principiológicas e a Superação do Sistema
de Regras
Belo Horizonte
2012
Menelick de Carvalho Netto
Guilherme Scotti
Prefácio
Vera Karam de Chueiri
Os DireitOs FunDamentais
e a (in)Certeza DO DireitO
A Produtividade das Tensões
Principiológicas e a Superação do Sistema
de Regras
1ª reimpressão
© 2011 editora Fórum Ltda.
2012 1ª reimpressão
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inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor.
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www.editoraforum.com.br – editoraforum@editoraforum.com.br
Carvalho Netto, Menelick de
Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões
principiológicas e a superação do sistema de regras / Menelick de Carvalho Netto;
Guilherme Scotti; prefácio de Vera Karam de Chueiri. 1. reimp. Belo Horizonte:
Fórum, 2012.
167 p.
isBn 978-85-7700-414-0
1. Filosofia do direito. 2. Direito constitucional. I. Scotti, Guilherme. II. Chueiri,
Vera Karam de. iii. título.
CDD: 340.1
CDu: 340.12
C331d
Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de
normas técnicas (aBnt):
CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza
do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras.
1. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 167 p. isBn 978-85-7700-414-0.
Sumário
Prefácio .............................................................................................7
Apresentação ................................................................................13
Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos
da Filosofia do Direito na Modernidade .....19
Capítulo 2
A Implosão e Superação do Projeto
Positivista no Direito ....................................................45
a implosão da teoria pura ..................................................45
O positivismo, os hard cases e a única resposta
correta de Dworkin ..............................................................55
O conceito de integridade na política ...............................61
O conceito de integridade no Direito ................................63
a teoria de Dworkin na perspectiva da teoria
discursiva do estado Democrático de Direito .................69
Dworkin e o realismo moral ..............................................71
a interpretação construtiva ................................................76
O papel dos princípios – Os estágios de Kohlberg .........82
Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade
Reflexiva .....................................................................................89
a modernidade da sociedade moderna ...........................89
Discursos éticos, morais e jurídicos – O bom e o justo ..... 101
razão prática, moral e Direito – uma leitura
contemporânea ...................................................................104
resgate discursivo da razão prática ................................104
a categoria do Direito na teoria discursiva ...................107
Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a Aplicação dos
Princípios.................................................................................115
O pós-positivismo como retórica: alexy e a
continuidade dos elementos centrais do positivismo
normativo e filosófico na aparente ruptura com o
positivismo jurídico – O retorno às regras .....................115
Limites internos e externos e o “conflito de valores” ..... 121
Pluralismo moral e incompatibilidade entre
princípios ............................................................................136
O conflito jurídico, os textos normativos e as
pretensões abusivas a direitos .........................................141
O stF e o caso ellwanger .................................................148
Capítulo 5
Afinal de Contas, o que uma Constituição
Constitui? ................................................................................157
Referências ..................................................................................163
Prefácio
O Direito Constitucional — e isso vale
também para o Brasil — tem protagonizado nas
três últimas décadas um papel interessante na
reflexão do direito e no exercício das suas práti-
cas. Grosso modo, interessante é aquilo que atrai
atenção. todavia, é nesta aparentemente simples
qualidade que está a absoluta importância do
livro — Os Direitos Fundamentais e a (in)certeza
do Direito: a produtividade das tensões principiológi-
cas e a superação do sistema de regras — que neste
momento se apresenta ao leitor. isto é, porque
o Direito Constitucional no limiar dos séculos
redefiniu o sentido do próprio direito e de suas
práticas, atraiu — e tem atraído — a atenção
dos seus intérpretes — falo de nós, o povo — na
medida em que compreender e interpretar o
Direito (Constitucional) é compreender e inter-
pretar a nós mesmos como comunidade. tarefa
complexa esta, pois a autocompreensão que temos
8 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
de nós mesmos como comunidade nos desacomoda
do lugar seguro de um mundo dado, ao qual ape-
nas assistimos como observadores externos, para
um mundo que se dá (ou se constrói) na medida
das nossas ações. e nossas ações não são lineares
ou isentas de tensões e contradições.
e é justamente aqui que reside o caráter
indispensável da reflexão que fazem os autores
Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti
quando nos deixam face a face com a (in)certeza
do direito para podermos radicalmente expe-
rienciar os direitos fundamentais. Dito de outra
maneira, os direitos só são fundamentais porque
cotidianamente se reinventam na concretude das
nossas vivências como “comunidade de pessoas
que se reconhecem reciprocamente como livres
e iguais” e isso não se dá sem tensões, ou como
dizem os autores, sem uma “eticidade reflexiva,
plural e fluída, apta a se voltar criticamente sobre
si mesma”.
Daí este livro ser um destes que faz toda a
diferença na produção recente em teoria cons-
titucional, assim como seus autores fazem toda
diferença no conhecimento que se tem produzido
em Direito Constitucional no Brasil e na américa
9Vera Karam de ChueiriPrefácio
Latina. Menelick de Carvalho Netto é certamente
um dos constitucionalistas críticos mais proemi-
nentes do Brasil, o qual tem formado gerações de
novíssimos constitucionalistas — como o próprio
Guilherme Scotti —, cuja intervenção teórica e
prática se vê nas principais escolas de direito do
Brasil, bem como nas instâncias decisórias do
parlamento, da jurisdição e do governo. É sempre
bom lembrar que, tradicionalmente, as escolas de
direito no Brasil são pouco ou quase nada reflexi-
vas, mas hoje estão profundamente afetadas por
uma nova eticidade e pelo radical compromisso
com o constitucionalismo e a democracia, graças
a intelectuais da monta dos autores desta obra.
Nova eticidade ou eticidade reflexiva, cons-
titucionalismo e democracia são o leitmotiv
do livro, o qual inicia discutindo a superação
do projeto positivista no direito, qual seja, a
necessária intrusão da moral e da política neste
e a consequente abertura (ou luminosidade)
que ela provoca. Daí a referência às teses de
Dworkin, a começar pela ressignificação que a
sua noção de princípio propõe ao direito, em
oposição ao centralismo das regras da tradição
positivista e, internamente, em relação à noção
10 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
de política. Devem os princípios e não as políticas
fundamentar as decisões judiciais, na medida em
que, como dizem os autores, aqueles “remetem
aos conteúdos morais dos direitos fundamentais”.
assim, ao aplicador e não ao legislador é dado,
no enfrentamento de cada caso e no argumento
da sua decisão (para cada caso), reconstruir o
direito vigente não sem interpretar as decisões
passadas, não sem levar em conta o contexto da
sua história institucional e os compromissos assu-
midos e compartilhados de liberdade e igualdade.
ao fazê-lo, o aplicador-intérprete oferece a única
decisão correta para aquele caso promovendo
assim, uma certa estabilidade, a qual, por sua
vez não se confunde com a segurança pretendida
pelos positivistas, mas, ao contrário, reafirma a
contingência do direito.
tal tarefa é tão difícil quanto o próprio caso
ao qual ela pretende dar uma resposta e a ilusão
de que o direito é uma narrativa fácil é própria
de uma compreensão precária das nossas práticas
jurídicas. Não por acaso afirmam os autores que
“as normas gerais e abstratas não são capazes de
regular as suas próprias condições de aplicação, e
que, portanto, a aplicação de um princípio, requer
11Vera Karam de ChueiriPrefácio
que, na unicidade específica e determinada do
caso concreto, diante das várias versões dos fatos
que se apresentem, se tenha o tempo todo também
em mente a norma geral ou princípio contrário, a
configurar uma tensão normativa rica e complexa
que opere como crivo para discernir, no caso, as
pretensões abusivas das legítimas”.
não há constitucionalismo e democracia fora
da tensão que os constitui, a qual reaparece no
momento da aplicação do direito, relativamente
às demandas que se colocam ao juiz, sobretudo as
de direitos fundamentais. neste sentido, o livro é
exemplar ao analisar a decisão do supremo tribu-
nal Federal no famoso caso ellwanger. isto, pois,
os autores são precisos ao apontar a insuficiência
da argumentação utilizada pela Corte com base na
ideia de ponderação (ou do que a Corte entende
por isso). ainda, apontam os autores que alguns
dos argumentos utilizados pelos ministros da
corte apoiados na ideia de ponderação, não são
propriamente assim, na medida em que, atentos
às especificidades do caso, evidenciam a natureza
abusiva da pretensão levantada pelo réu ao atri-
buir à prática do crime de racismo, o exercício do
direito à liberdade de expressão. não obstante,
12 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
quando tais argumentos insistem em recorrer à
ponderação para fundamentar a decisão acabam
banalizando os direitos fundamentais ao apre-
sentá-los como “simples opções valorativas em
abstrato do aplicador”.
Pois bem, está a comunidade em frente de uma
das mais sofisticadas e críticas reflexões que se tem
feito em filosofia e teoria constitucional no Brasil nos
últimos anos. Reflexão de quem vive (experiência) a
constituição e por isso mesmo só vê sentido em suas
práticas cotidianas de cidadão e professor de direito
se significadas por tal vivência, com todos os seus
riscos, perigos e incertezas. Definitivamente, certe-
zas não combinam com o exercício da cidadania, da
democracia e do constitucionalismo sendo muito
mais afeitas aos arranjos totalitários e autoritários.
Por fim, ficamos com a pergunta que trazem os
autores sobre o que uma constituição constitui.
interpretá-la é o que fará o leitor deste livro, porém,
não sem o prazer de uma narrativa escrita de
maneira escorreita à altura da última flor do Lácio.
Curitiba, janeiro de 2011.
Vera Karam de Chueiri
Professora de Direito Constitucional dos programas de
Graduação e Pós-Graduação da uFPr.
Apresentação
É com vistas a melhor compreender o nexo
interno que entre si guardam os direitos fun-
damentais e o caráter estruturalmente aberto e
indeterminado das normas gerais e abstratas
características do direito moderno, que convida-
mos o leitor a nos acompanhar na reconstrução
que empreendemos da trajetória
percorrida pela
teoria da interpretação jurídica da primeira para
a segunda metade do século XX. Percurso no qual
este nexo torna-se não apenas visível, mas parte
essencial da proposta de se lidar produtivamente
com o problema da indeterminação estrutural
do Direito. autores paradigmáticos do período,
como Hans Kelsen e Francesco Ferrara, por
um lado, e ronald Dworkin e robert alexy, de
outro, são aqui enfocados e trabalhados em pro-
fundidade. uma compreensão normativamente
consistente dos direitos fundamentais na ordem
constitucional de 1988 requer que se leve a sério
14 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
o disposto nos §§1º e 2º do art. 5º da Constituição
da república, ou seja, que o leitor, enquanto
intérprete e cidadão que é, seja capaz de alterar
sua postura diante dela, a assumir como sua
uma perspectiva de quem operou o giro linguís-
tico (hermenêutico/pragmático) no campo da
teoria constitucional.
a questão deixa de ser vista como um dado:
“o que é uma Constituição?”. A abordagem do
tema passa agora a ser determinada pela postura
de um participante interno que tem como foco
central a indagação acerca do que ela constitui, ou
seja, a comunidade de pessoas que se reconhecem
reciprocamente como livres e iguais na concretude
de suas vivências cotidianas, em suma: uma deter-
minada comunidade de princípios que se assume
como sujeito constitucional, capaz de reconstruir
permanentemente de forma crítica e reflexiva a
eticidade que recebe como legado das gerações
anteriores, precisamente restritos àqueles usos,
costumes e tradições que, naquele momento his-
tórico constitucional, acredita possam passar pelo
crivo do que entende ser o conteúdo da exigência
inegociável dos direitos fundamentais. Os direitos
fundamentais, ou seja, a igualdade e a autonomia
15apresentação
ou liberdade reciprocamente reconhecidas a todos
os membros da comunidade, passam a ser com-
preendidos, portanto, como princípios, a um só
tempo, opostos e complementares entre si. Por
isso mesmo, aptos a gerar tensões produtivas
e a, assim, instaurar socialmente uma eticidade
reflexiva capaz de se voltar criticamente sobre si
própria, colocando em xeque tanto preconceitos
e tradições naturalizados quanto a própria crença
no papel não principiológico e meramente con-
vencional das normas jurídicas. a complexi-
dade da tarefa interpretativa de aplicação desse
Direito geral e abstrato de natureza estruturalmente
indeterminada requer a superação tanto da crença
irracional de que textos racionalmente elabora-
dos pudessem por si sós reduzir a complexidade
social a ponto de tornar esse trabalho de interpre-
tação e aplicação do Direito uma tarefa mecânica
e automatizada, quanto do ceticismo decisionista
que retira dos direitos fundamentais seu papel de
“barreira de fogo” inegociável.
É a integridade do Direito a exigir atenção
permanente às especificidades únicas e irrepetí-
veis dos casos concretos, com vistas à promoção
simultânea das pretensões à justiça (Justice) e à
16 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
segurança jurídica (fairness), que também permite
que nos libertemos do mito da possibilidade de
decisão padrão capaz de se autoaplicar a todos
os casos semelhantes. Cada decisão que assim se
apresentar configurará, outra vez, como norma
geral e abstrata, estruturalmente indeterminada,
introdutora de maior complexidade social, vez
que na qualidade de orientação voltada ao futuro
também incentivará, por seu turno, pretensões
abusivas em relação a ela, as quais só poderão ser
desmascaradas mediante o exame reconstrutivo
e criterioso da unicidade irrepetível de cada caso
concreto que venha a se apresentar.
O convite à reflexão teorética acerca do
caminho percorrido pela teoria da interpretação
jurídica nas últimas décadas vincula-se ao fato de
que estamos plenamente convencidos de que esta
é uma condição academicamente indispensável
para alcançarmos apreender o efetivo significado
de que hoje passam a se revestir os direitos
fundamentais enquanto princípios que se con-
substanciam no nexo interno e constitutivo ina-
fastável da tensão entre o direito e a democracia,
a dimensão pública e a privada, a complexidade
social e a abertura simultânea da Constituição
17apresentação
tanto para o futuro e quanto para a reconstrução
do passado.
iniciemos, portanto, a reconstrução dessa
aventura, a um só tempo intelectual e viven-
cial, passível de ser reconhecida não somente
nos textos de estatura teórica e teorética mais
detidamente analisados, mas igualmente em
um sem número de outros bem como nas nar-
rativas e práticas cotidianas das sociedades que
os produziram.
Capítulo 1
Introdução – Caminhos e
Descaminhos da Filosofia do
Direito na Modernidade
a proposta da presente reflexão, muito
sinteticamente, é a de se levar a sério os §§1º e 2º
do art. 5º da Constituição da república que, para
uma compreensão normativa efetivamente con-
sistente, requerem um enfoque que opere o giro
linguístico (hermenêutico/pragmático) no campo
da teoria constitucional em especial, e do Direito
Público em geral, e desenvolva as suas consequên-
cias teoréticas e teóricas. Com este giro a questão
deixa de ser “o que é uma Constituição?”. A teoria
passa a operar agora a partir da postura de um
participante interno que tem como foco central o
que ela constitui, ou seja, a comunidade de pessoas
que se reconhecem reciprocamente como livres e
iguais na concretude de suas vivências cotidianas,
20 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
considerada sincrônica e diacronicamente. a
efetividade da Constituição deixa de ser abordada
a partir da dicotomia “ideal” x “real” típica de
toda a teoria da Constituição clássica,1 para ser
enfocada, de forma muito mais sustentável, rica
e produtiva, a partir do que Jürgen Habermas
denomina “tensão externa” entre “facticidade” e
a “validade” da Constituição.2
Com vistas a explicitar desde já o funda-
mento teorético aqui adotado, convém analisar
o próprio caminho trilhado pela Filosofia do
Direito nos três últimos séculos e a posição em que
ela hoje se coloca, ou seja, à centralidade que ela
volta a ocupar no cenário da reflexão filosófica,
reforçado ainda mais nos tempos de terror que
correm, ao afirmar o caráter indisponível dos
direitos humanos — bem como o vínculo interno
que guardam com a democracia — e a necessidade
inafastável de sua concretização mediante a ins-
titucionalização como direitos fundamentais nas
diversas ordens constitucionais.
A Filosofia do Direito assume um papel
central para a reflexão daqueles que inventaram a
1 sCHmitt, C. Teoría de la constitución. madrid: alianza, 1982.
2 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997.
21Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
idade moderna.3 a evidência racional dos direitos
naturais entendidos como princípios morais uni-
versais indisponíveis que expressavam a exigên-
cia do reconhecimento também institucional de
que todos os seres humanos nascem iguais, livres
e proprietários, no mínimo de si próprios, era uma
crença tão forte que literalmente provou-se capaz
de, antes mesmo de haver provocado a eclosão
da era das revoluções, já inocular um efeito dis-
solvente nas próprias bases da sociedade. essas
evidências passam a ser os critérios com base nos
quais a imóvel, sólida e absolutizada eticidade
tradicional torna-se uma eticidade reflexiva,4
plural e fluída, apta a se voltar criticamente sobre
si mesma, de tal sorte que nós, até hoje e cada
vez mais, escrutinamos, todos os dias, os nossos
usos, costumes e tradições para discernir os que
podem continuar a sê-lo, daqueles que, quando
questionados à luz do conteúdo de sentido
3 BLumenBerG, H. The Legitimacy of Modern Age. Cambridge: mit
Press, 1985
4 sobre o tema, vale conferir a discussão que Habermas travou com
richard Bernstein no simpósio ocorrido na Cardozo Law school,
publicado entre nós como um suplemento em HaBermas, J. A inclusão
do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. Para um
registro mais completo dos debates, cf. ROSENFELD, M.; ARATO,
a. Habermas on Law and Democracy: Critical exchanges. Berkeley:
university of California Press, 1998.
22 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
sempre renovado desses crivos, passam a ser
vistos como abusos e discriminações.
a evidência desses critérios universais
de justiça moral era então vista como devendo
reger, de fora, enquanto transcendente, a organi-
zação política e jurídica da sociedade. O direito
e a política deveriam se submeter à moral, às
exigências racionais universalizantes da moral
moderna de defesa da subjetividade. a vitória
institucional da crença nesses ideais traduziu-se
em distintas vivências regionais que culminam,
por vias diversas, com a adoção dos estados
constitucionais, no final do século XVIII e início
do XIX, marcando um ponto de inflexão a partir
do qual, paradoxalmente, a Filosofia do Direito
perderá a sua centralidade na reflexão filosófica.
a invenção da forma constitucional pelos norte-
americanos estabelece a diferença entre o Direito
Constitucional e o restante do Direito. É ela que
funda agora o Direito e a Política.
Assim é que, como afirma Niklas Luhmann,
a invenção da constituição formal pelos norte-
americanos possibilitou que a modernidade se
completasse no campo do Direito e da Política.
até então, o problema do fundamento do direito
23Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
remetia às exigências de adequação do direito
positivo às exigências morais do direito natural
moderno, ou seja, o fundamento de legitimidade
do direito e da política residia fora deles mesmos.
agora, a distinção entre o Direito Constitucional
e os demais direitos fundados pelo Direito Cons-
titucional oculta o fato paradoxal de que o Direito
Constitucional é Direito e permite a fundamenta-
ção autopoiética do próprio Direito.5
A Filosofia do Direito inicia então uma tra-
jetória de redução à teoria Geral do Direito, uma
disciplina técnica da formação especificamente
jurídica, que, por sua vez, encontrará seu ponto
máximo de inflexão tendencial na Teoria pura de
Hans Kelsen.6 a partir da segunda metade do
século XX a Filosofia do Direito volta a ocupar,
claro que de forma inteiramente distinta, um
lugar central na reflexão filosófica em autores tão
diversos quanto Paul ricouer,7 Jürgen Habermas,8
5 LuHmann, n. La costituzione come acquisizione evolutiva. In:
ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jörg. Il
futuro della costituzione. torino: einaudi, 1996.
6 KeLsen, H. Teoria pura do direito. são Paulo: martins Fontes, 1998.
7 riCOeur, P. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: instituto Piaget,
1997
8 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997.
24 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
Jacques Derrida9 e Giácomo marramao,10 para
citar apenas alguns. É a reflexão acerca dessa
trajetória que, acreditamos, muito pode contribuir
para melhor compreendermos os desafios que,
em tempos de terror, a Filosofia não pode deixar
de enfrentar e, portanto, a nova centralidade que
nela a Filosofia do Direito passa a ocupar.
muito embora no início dessa trajetória
a evidência racional pudesse funcionar como
critério tanto de verdade quanto de justiça, hoje
conhecemos a sua natureza puramente conven-
cional. O exercício do pensar filosófico aplicado
ao campo do Direito, marcado pelo seu alto grau
de reflexividade, volta-se tanto para o questio-
namento acerca das condições da produção do
conhecimento neste campo, ou seja, para o esta-
tuto epistemológico de uma Ciência do Direito,
configurando-se assim como uma Filosofia da
Ciência aplicada do Direito; como para as inda-
gações acerca da justiça, de uma sociedade justa
9 DerriDa, J. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. são
Paulo: martins Fontes, 2007.
10 MARRAMAO, G. Passato e futuro dei diritti umani – Dall’“ordine
posthobbesiano” al cosmopolitismo della differenza. In: COnGressO
naCiOnaL DO COnPeDi, 16., 2007, Belo Horizonte. Anais... Belo
Horizonte, 2007.
25Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
e de instituições justas, como uma Filosofia Moral
aplicada ao Direito.
a questão da justiça, em função dos pró-
prios critérios que inauguraram a modernidade,
renova-se como exercício de Filosofia do Direito
ao tematizá-la como problema a ser enfrentado
cotidianamente pelo exercício da democracia e da
prática do constitucionalismo.
O que conduz diversos autores a postularem
o rótulo de pós-modernidade, de modo a atribuir
uma especificidade estrutural tão grande aos tem-
pos em que vivemos quanto à havida na passa-
gem das sociedades tradicionais para a sociedade
moderna? É precisamente o reconhecimento das
pretensões excessivas atribuídas à racionalidade
humana na modernidade: a superação do mito
da razão moderna, que seria capaz de revelar
verdades eternas, imutáveis, a-históricas, bem
como o reconhecimento dos altos custos pagos
pela crença nesse mito.
na companhia de niklas Luhmann e Jürgen
Habermas, no entanto, preferimos reconhecer
nossos tempos como mais modernos do que
aqueles dos homens que cunharam esse termo
para designar a sua época, exatamente por não
26 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
mais acreditarmos naquela racionalidade mítica,
na ciência como saber absoluto. acreditamos que
vivemos, sim, em uma época ainda moderna,
em uma modernidade tardia, que pode ser mais
sábia, mais moderna, do que a própria moder-
nidade que a antecedeu, em razão do que fomos
capazes de aprender com as nossas próprias
vivências. a modernidade revela-se assim como
um projeto inacabado.
Por isso mesmo, para nós, científico é o saber
que se sabe precário, que não se julga absoluto,
que sabe ter de expor com plausibilidade a fun-
damentação de tudo o que afirma. Leis científicas,
por definição, são temporárias. Serão refutadas. A
refutação só prova que determinadas teses foram
científicas enquanto foram críveis, plausíveis,
para nós.
No nosso campo específico, o do conheci-
mento acerca do Direito, um grande complexo
de inferioridade marcava a reflexão teórica
jurídico-científica em relação à ciência da Física e
dos demais campos do conhecimento, sobretudo,
aos das demais ciências naturais e exatas, pois a
visível base convencional do direito moderno,
positivado e contingente, parecia impedir aqui
27Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
uma ciência que pudesse se apresentar como
conhecimento irrefutável, eterno e imutável. Hoje,
não mais precisamos ter qualquer complexo de
inferioridade, porque a base convencional de qual-
quer ciência tornou-se clara. todos se recordam de
como, recentemente, Plutão deixou de ser planeta
mediante a votação da comunidade científica dos
astrônomos. aliás, foi o modelo da comunidade
científica que pôde servir para repensarmos o pró-
prio conceito de democracia. O saber que se sabe
limitado funda-se no permanente debate público
acerca de seus próprios fundamentos e, assim, é
precário, contingente e sempre aprimorável. seus
fundamentos são históricos e datados. a nossa
racionalidade é, ela própria, um produto humano
e como tal porta todas as nossas características. O
projeto iluminista era um mito, precisamente por
divinizar a racionalidade humana.
É preciso realizar o iluminismo do ilumi-
nismo, para usar os termos de niklas Luhmann
(Der Aufklärung der Aufklärung). saber que a nossa
racionalidade é humana, sabê-la histórica, limi-
tada, datada, ela própria uma construção social
vinculada a determinadas tradições, práticas,
vivências, interesses e necessidades, no mais
28 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
das vezes naturalizados e apenas pressupostos.
O positivismo, no afã de eliminar os mitos, dando
curso ao projeto iluminista de iluminar as trevas,
pretendendo que tudo fossem luzes, criou o maior
dos mitos, o mito da ciência, do saber absoluto,
como se fôssemos capazes de produzir algo
eterno, imutável, perfeito, enfim, divino.
somos seres humanos, datados, com o olhar
marcado por aquilo que vivemos. só podemos ver
o que a nossa sociedade permite que vejamos, o
que a nossa vida concreta em sociedade permite
que vejamos. Qualquer luz necessariamente pro-
jeta sombras. se podemos ver muito bem alguns
aspectos é porque outros restam ofuscados pelo
brilho daqueles que enfocamos em destaque.
toda produção de conhecimento requer redução
de complexidade e, nessa medida, produz igual-
mente desconhecimento.
Podemos ver agora a modernidade da
sociedade moderna também no que diz respeito
à sua ciência. uma ciência que só é conhecimento
na medida em que se sabe precária, provisória.
um saber que, ao assumir a sua complexidade,
enfrenta seus riscos e os incorpora, lidando
com eles de forma a conhecê-los e a buscar
29Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
preveni-los, sabendo, de antemão, que não poderá
evitá-los totalmente.
O conhecimento produzido também pro-
duz, em igual medida, desconhecimento. neste
passo o conceito de paradigma científico em
thomas Kuhn11 pode muito nos esclarecer.
Paradigma é um conceito da filosofia da ciência de
Thomas Kuhn que, por sua vez, afirma ter sido
por influência de Gadamer, o autor de Verdade e
método12 — um autor vinculado à hermenêutica
filosófica, à reflexão do status do conhecimento
no terreno das chamadas ciências do espírito, das
ciências humanas, das ciências que têm por objeto
precisamente a interpretação de textos ou de
equivalentes a textos — que pensou em trabalhar
este conceito. Kuhn, em A estrutura das revoluções
científicas, avança a tese de que o conhecimento
não progride evolutiva e pacificamente, mas, ao
contrário, o progresso do conhecimento nas ciên-
cias, e é de se destacar que seu enfoque se centra
nas ciências ditas exatas ou da natureza, se daria
por rupturas, por grandes saltos, por profundas
alterações de paradigmas.
11 KuHn, t. s. A estrutura das revoluções científicas. são Paulo: Perspectiva,
1996.
12 GaDamer, H. G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997.
30 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
toda essa discussão de Kuhn encontra-se
também intimamente vinculada aos desenvolvi-
mentos da filosofia da linguagem, ao denominado
giro linguístico, hermenêutico e pragmático. nessa
época, a filosofia da linguagem estava a descobrir,
não somente com a contribuição da hermenêutica
de Gadamer, mas também desde a herança prag-
mática de Wittgenstein,13 o papel fundamental que
o silêncio exerce na linguagem.
É claro que tudo isso que estamos dizendo
o fazemos no pressuposto de que podemos ser
entendidos, mas esse é um pressuposto contra-
factual pois, na verdade, se formos verificar as
vivências das pessoas, essas são muito diversas
e a possibilidade de se ser efetivamente compre-
endido é pouco plausível. ao retirarmos do pano
de fundo tacitamente compartilhado de silêncio
qualquer palavra que consideremos de sentido
óbvio, trazendo-a para o universo do discurso,
como fizemos com o termo ciência, veremos que
acerca de seu significado não havia um acordo
racional mas mero preconceito, ou seja, uma
precompreensão irrefletida, um saber que se
13 WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. são Paulo: nova Cul-
tural, 2000.
31Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
acreditava absoluto e que, por isso mesmo, não
era saber algum. e conquanto efetivamente pos-
samos provar empiricamente que a comunicação
não se dá, ao fazê-lo, provamos unicamente que o
mal entendido é possível, o que portanto apenas
confirma o entendimento como regra geral. A
comunicação como tal, por meio da linguagem,
é muito improvável e, no entanto, ela se dá, nós
nos comunicamos graças a esse pano de fundo
compartilhado de silêncio que, é claro, é sentido
naturalizado. Daí a natureza contrafactual desse
pressuposto residir precisamente no paradoxo da
linguagem: “nós nos comunicamos porque não
nos comunicamos.” São exatamente essas pre-
compreensões que integram o pano de fundo da
linguagem que constituem o que Kuhn denomina
paradigma. esse pano de fundo compartilhado de
silêncio, na verdade, decorre de uma gramática
de práticas sociais que realizamos todos os dias
sem nos apercebermos dela e que molda o nosso
próprio modo de olhar, a um só tempo aguça
e torna precisa a nossa visão de determinados
aspectos, cegando-nos a outros, e isso é parte da
nossa condição humana. Para Kuhn, nós não temos
como sair de um paradigma, ou melhor, da
32 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
condição paradigmática, podemos sim trocar
de paradigmas, mas sempre que o advento de
novas gramáticas de práticas sociais permitirem
a troca de paradigma, esse vai ser um novo filtro,
como óculos que filtram o nosso olhar, que mol-
dam a forma como vemos a chamada realidade;
as normas performáticas decorrentes de nossas
vivências sociais concretas condicionam tudo
o que vemos e a forma como vemos. Por isso
mesmo, um olhar estrangeiro na ciência, de
fora daquela comunidade científica específica,
é sempre produtivo. normalmente, as grandes
descobertas vêm de alguém não habituado com
o paradigma tradicional.
ronald Dworkin, ao suceder Hart na cátedra
de teoria do Direito em Oxford, retoma a questão
da interpretação precisamente ali onde Kelsen
termina, mas da perspectiva oposta. A sua afir-
mação de uma única decisão correta para o caso
assenta-se na unicidade e irrepetibilidade que
marca cada caso. ressalta aqui a complexidade
do modelo de um ordenamento de princípios
(mesmo as regras aqui devem ser principiologi-
camente lidas), que se apresenta por inteiro e, a
um só tempo, composto por princípios opostos
33Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
em produtiva tensão reciprocamente constitutiva
e igualmente válidos que dependem do caso con-
creto para que seja possível discernir a pretensão
abusiva da correta que com base neles são levan-
tadas. Por isso mesmo, o caso em sua concretude
e irrepetibilidade deve ser reconstruído de todas
as perspectivas possíveis, consoante as próprias
pretensões a direito levantadas, no sentido de
se alcançar a norma adequada, a única capaz de
produzir justiça naquele caso específico. Essas
reflexões de Dworkin marcam o emergir de
um novo paradigma que vem, enquanto tal, de
forma cada vez mais difundida e internalizada
se afirmando através da constituição de um novo
senso comum social, de um novo pano de fundo
para a comunicação social, no qual são gestadas
pretensões e expectativas muito mais complexas,
profundas e rigorosas no que respeita ao projeto
de reencantamento com o Direito, seja como orde-
namento ou esfera própria da ação comunicativa,
do reconhecimento e do entendimento mútuo
dos cidadãos para o estabelecimento e a imple-
mentação da normativa que deve reger sua vida
em comum, seja como simples âmbito específico
de conhecimento e exercício profissionais. É esse
34 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
novo paradigma que tem sido denominado
pela Doutrina “Estado Democrático de Direito”
e que, no Brasil, foi inclusive constitucional-
mente consagrado.
ainda é de se registrar que a prevalência
do positivismo jurídico instrumentalizador do
paradigma do Estado Social se verifica não só
como marco teórico explícito, mas muito mais
como pano de fundo tacitamente acolhido que
chegou e ainda continua a conformar difusa
e eficazmente não apenas a prática dos vários
operadores jurídicos, mas a própria reprodução
desta prática ao determinar decisivamente o
caldo de cultura em que se dão o processo de
aprendizagem e de formação do profissional do
Direito. a profunda revisão doutrinária que tem
conduzido, de modo crescente e de par com as
marcantes alterações ocorridas nas duas ou três
últimas décadas em todos os âmbitos da vida
humana — resultantes da nova estrutura societá-
ria pluralista e hipercomplexa das denominadas
sociedades pós-industriais, da crítica aos excessos
da razão iluminista acolhida pela modernidade no
âmago do próprio conceito de ciência, do advento
de novas tecnologias e saberes, da exigência de
35Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
se rever a relação puramente predatória com a
natureza, do advento dos direitos de 3ª geração
e do fracasso do modelo do estado social — à
constituição desse novo paradigma, possibilita
e exige a recunhagem do próprio estatuto da
Ciência ou Teoria Geral do Direito, redefine e
amplia suas fronteiras, seus conceitos básicos e
seu próprio papel, bem como o papel, as tarefas
e a responsabilidade do profissional do Direito,
sobretudo, do Judiciário em sua relação cotidiana
com a efetividade dos ideais constitucionais como
implementação, concretização e efetivação da
Justiça e da cidadania.
Dworkin expressa no Direito o que passa a
ocorrer no âmbito da própria Filosofia a partir da
década de 1970. Verifica-se o movimento de reen-
cantamento com o Direito na Filosofia mesma.
A Filosofia do Direito passa a ser novamente
temática obrigatória dos filósofos. É claro que
desta vez, em um contexto de racionalidade limi-
tada, sobretudo após o evento de 11 de setembro,
a preocupação de autores de vertentes tão dis-
tintas como Jacques Derrida, Jürgen Habermas
e Paul ricoeur termina por encomendar à Filo-
sofia a reflexão acerca do significado da herança
36 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
jurídico-constitucional e a sua centralidade para
a preservação e o desenvolvimento de uma socie-
dade cada vez mais complexa, plural e inclusiva
em face da ameaça dos totalitarismos funda-
mentalistas (sejam orientais ou ocidentais, de
direita ou de esquerda). assim é que o retorno
da Filosofia do Direito como uma das dimensões
centrais da reflexão filosófica termina, parado-
xalmente, por nos enviar de volta à teoria da
Constituição, dos Direitos Fundamentais e da
interpretação Constitucional.
assim é que não mais podemos valida-
mente pretender transferir nossos problemas
para os textos. muitas alterações constitucionais
profundas verificaram-se na história do consti-
tucionalismo mediante alterações na gramática
das práticas sociais de tal sorte que passamos a
lê-los consoante a ressignificação dos próprios
direitos fundamentais.
“O passado é tão aberto quanto o futuro”,
afirma michel rosenfeld. assim é que cada
geração só é capaz de revisitá-lo sob a sua ótica,
sempre renovada, marcada, é claro, pela vivên-
cia herdada das gerações anteriores, bem assim
por seus próprios desafios, aflições, desejos e
37Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
temores — inerentes e constitutivos de sua
específica temporalidade social. neste texto,
procura-se explorar a distância conceitual que
nos separa, na história do constitucionalismo,
das gerações anteriores, que, de uma forma ou
de outra, tematizaram a relação entre a forma e
o conteúdo constitucionais como uma simples
relação de oposição antagônica.
Demarcar essa distância, acreditamos, é um
exercício de Teoria da Constituição, de reflexão
acerca da história do pensamento constitucional,
necessário para que se alcance uma compreensão
mais profunda do sentido complexo desta relação
que hoje, ainda que inconscientemente, tendemos
a compartilhar. Ou seja, se tendencialmente con-
tinuamos a vê-la como uma relação de oposição,
essa, contudo, não mais pode ser vista como
uma relação de simples oposição em que ambos
os termos reciprocamente se excluam, tal como
ocorre na relação de oposição entre preceitos no
modelo normativo em que se acredita que as
normas sejam capazes de regular suas condições
de aplicação, o das regras.
Ao contrário, sob o influxo da racionalidade
subjacente ao modelo normativo dos princípios,
38 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
sabemos que as normas gerais e abstratas não são
capazes de regular as suas próprias condições de
aplicação, e que, portanto, a aplicação de uma
norma, de um princípio, requer que, na unicidade
específica e determinada do caso concreto, diante
das várias versões dos fatos que se apresentem, se
tenha o tempo todo também em mente a norma
geral ou princípio contrário, a configurar uma
tensão normativa rica e complexa que opere como
crivo para discernir, no caso, as pretensões abu-
sivas das legítimas. nessa tensão, muito embora
efetivamente o significado das duas normas, sem
dúvida, seja oposto, a um só tempo, o significado
de cada uma delas delimita e matiza o da outra,
passando, assim, a conformá-lo profundamente,
de tal sorte que uma é recíproca e inafastavel-
mente constitutiva do sentido constitucional da
outra. uma boa aplicação do princípio da publi-
cidade, por exemplo, requer que sempre se tenha
em mente o da privacidade, e vice-versa.
No âmbito da filosofia política, da teoria
democrática e da teoria da Constituição, do ponto
de vista de uma perspectiva que busque se incor-
porar no processo de aprendizado possibilitado
pelas vivências constitucionais anteriores, que se
39Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito
na Modernidade
assuma como desenvolvida a partir dos novos
horizontes de sentido descortinados pelo para-
digma do estado Democrático de Direito, o mesmo
sucede com todos os pares de conceitos opos-
tos típicos da modernidade, até então também
enfocados como antagônicos e reciprocamente
excludentes. Cultura e natureza, público e pri-
vado, igualdade e liberdade, democracia e Cons-
tituição, forma e matéria constitucionais, para
citar apenas alguns, são termos cuja significação
atual é rica e complexa, decorrente da possibilidade
de vermos a relação, a um só tempo, de oposição
e complementaridade que guardam entre si. em
uma terminologia habermasiana, são conceitos ou
princípios co-originários e equiprimordiais.
autores que trabalham de forma extrema-
mente produtiva a exigência herdada do consti-
tucionalismo social de um enfoque materializado
do Direito Constitucional, como, por exemplo,
na espanha, Pablo Lucas Verdú (difusamente em
toda a sua obra, mais especificamente no volume
iV do Curso de direito político),14 no Brasil, Lênio
streck,15 enfocam o Direito Constitucional como
14 VerDÚ, P. L. Curso de derecho político. madrid: tecnos, 1984.
15 streCK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêu-
tica da construção do direito. Porto alegre: Livraria do advogado, 1999.
40 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
vida. e realmente, o Direito Constitucional é
vida — ou é vida ou não é nada! De outra vertente,
mesmo autores que, no campo da teoria jurídica,
adotaram posturas mais formalistas, como, por
exemplo, norberto Bobbio, no correr da última
década do século XX já denunciavam a história
do Direito Constitucional como “uma história
de promessas não-cumpridas”.16 a denúncia de
Bobbio delineia o horizonte do desafio posto a
nós, constitucionalistas e jusfilósofos do final
do século XX, início do XXi: sem abrir mão do
conhecimento crítico acerca das inegáveis possi-
bilidades de usos abusivos do Direito em geral,
do Constitucional em especial, resgatar, em um
contexto de racionalidade que se sabe limitada,
o reencantamento com o Direito e com a Demo-
cracia; enfim, com os direitos fundamentais e
com o constitucionalismo. exatamente por isso, a
atual doutrina do Direito é unânime em requerer
que o Direito em geral e, em especial, o Direito
Constitucional, sejam uma efetividade viva, ou
seja, que se traduzam na vivência cotidiana de
todos nós.
16 BOBBiO, n. A era dos direitos. rio de Janeiro: elsevier, 2004.
41Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
Os direitos fundamentais, tal como os
entendemos hoje, são o resultado de um pro-
cesso histórico tremendamente rico e complexo,
de uma história, a um só tempo, universal,
mas sempre individualizada; comum, mas sem-
pre plural.
em termos de características mais gerais é
possível divisar etapas tendenciais em um único
processo global de aprendizado social decorrente
das lutas pela afirmação do que acreditamos
sejam os direitos fundamentais e a negação viven-
cial e histórica dessas crenças.17 sempre, no entanto,
esta é uma história plural, matizada regional-
mente segundo as especificidades das tradições
herdadas em cada país. a irracionalidade do
excesso racionalista das pretensões iluministas
revela-se claramente na crença em fundamentos
últimos que podiam ser vistos como definitivos e
imutáveis, quando sabemos hoje que permanente
é somente o que é capaz de ter o seu significado
renovado conjuntamente com a constante trans-
formação da sociedade moderna. no contexto
de uma racionalidade que se sabe precária, os
17 HaBermas, J. O estado Democrático de Direito: uma amarração
paradoxal de princípios contraditórios?. In: HaBermas, J. Era das
transições. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 2003.
42 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
fundamentos revelam-se frágeis constructos
sociais, requerendo que os compreendamos como
conquistas históricas discursivas que, embora
estruturalmente inafastáveis do processo de
reprodução diuturna da sociedade moderna,
por si sós, não são definitivas, ao contrário,
encontram-se, elas próprias, em permanente
mutação, sujeitas ao retrocesso e sempre em
risco de serem manipuladas, abusadas.
Vimos a fragilidade da fundamentação que,
em nossa época, podemos plausivelmente ofe-
recer à noção de direitos humanos e de direitos
fundamentais e, claramente, prefiro essa expres-
são à outra, direitos naturais, por entendê-los
conquistas históricas, aquisições evolutivas
socialmente criadas, direitos institucionaliza-
dos em uma sociedade improvável, complexa.
na modernidade, vivemos em uma sociedade
instável, uma sociedade que se alimenta de sua
própria instabilidade, uma sociedade absoluta-
mente implausível.
aqui começamos a tratar explicitamente da
questão dos desafios postos hoje aos direitos fun-
damentais. O primeiro e grande desafio é saber-
mos que se, por um lado, os direitos fundamentais
43Capítulo 1
Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade
promovem a inclusão social, por outro e a um
só tempo, produzem exclusões fundamentais. a
qualquer afirmação de direitos corresponde uma
delimitação, ou seja, corresponde ao fechamento
do corpo daqueles titulados a esses direitos, à
demarcação do campo inicialmente invisível dos
excluídos de tais direitos. a nossa história consti-
tucional não somente comprova isso, como possi-
bilita que repostulemos a questão da identidade
constitucional como um processo permanente
em que se verifica uma constante tensão extrema-
mente rica e complexa entre a inclusão e a exclu-
são e que, ao dar visibilidade à exclusão, permite a
organização e a luta pela conquista de concepções
cada vez mais complexas e articuladas da afirma-
ção constitucional da igualdade e da liberdade
de todos. Este é um desafio à compreensão dos
direitos fundamentais; tomá-los como algo per-
manentemente aberto, ver a própria Constituição
formal como um processo permanente, e portanto
mutável, de afirmação da cidadania.
uma das preocupações centrais aqui presen-
tes volta-se para a possível contribuição de uma
ciência do Direito para a questão da eficácia e da
efetividade do Direito e da democracia. apenas
44 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
que, quando o problema é retomado de uma
perspectiva posterior ao giro linguístico, o papel
do conhecimento ou da ciência passa a ser bem
mais modesto e o da comunidade de princípios,
como um todo, reforçado. É claro que, muito
embora o enfoque tenha se tornado bem mais
complexo, continuamos a considerar central o
problema da tessitura aberta do Direito positivo e
a possível contribuição de uma teoria do Direito
ou, mais especificamente de uma Teoria da Cons-
tituição, para se não coibir, ao menos denunciar,
as leituras abusivas das autoridades encarregadas
de aplicá-lo. aliás, este é um dos papéis centrais
das academias no campo do Direito: proceder
ao controle discursivo das decisões do judiciário
como um todo, dos tribunais superiores em espe-
cial, trazendo para o debate científico e mesmo
público, as decisões que acreditam inconsistentes.
Capítulo 2
A Implosão e Superação do
Projeto Positivista no Direito
Sumário: a implosão da teoria pura – O positivismo, os hard
cases e a única resposta correta de Dworkin – O conceito de
integridade na política
– O conceito de integridade no Direito –
a teoria de Dworkin na perspectiva da teoria discursiva do
estado Democrático de Direito – Dworkin e o realismo moral – a
interpretação construtiva – O papel dos princípios – Os estágios
de Kohlberg
a implosão da teoria pura
O cenário político que privilegiou a afirmação
do positivismo tornava plausível a crença dos
juristas no poder regulatório de regras racio-
nalmente cunhadas por especialistas. a noção
linear de progresso, num contexto de relativa
homogeneidade moral e estabilidade de mer-
cado, se comparado com o século XX, tornava
46 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
possível a percepção do utilitarismo positivista
de Bentham como uma força capaz de combater
tradições morais reacionárias. Permitir que juízes
extraíssem princípios morais, a partir da leitura
da tradição jurídica, ressoaria conservadorismo
e anticientificidade.18
as teorias positivistas buscaram estabilizar
expectativas sem recorrer a tradições éticas como
suporte para a legitimidade das normas jurídicas.
Kelsen e Hart buscaram conceber o ordenamento
jurídico como sistema fechado de regras cuja
compreensão seja independente da política e da
moral. reduz-se o Direito a uma determinada
história institucional, com abstração de qualquer
princípio suprapositivo.19
O problema da legitimidade e das fontes
se resolve com a explicitação de regras de reco-
nhecimento, regras secundárias de identificação
do direito/não direito, ou seja, regras autorrefe-
rentes do ordenamento jurídico instituidoras de
autoridades e identificadoras de suas respectivas
18 DWORKIN, R. Hart’s Postscript and the Point of Political Philosophy.
In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press,
2006. p. 180.
19 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 250.
47Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
competências para decidir. a legitimidade das
normas refere-se portanto unicamente à sua proce-
dência, não à racionalidade de seu conteúdo. essa
regra de reconhecimento, porém, não pode ela
mesma ser fundamentada em outra regra jurídica,
devendo portanto ser reconhecida como um fato
histórico, como parte de uma determinada forma
de vida, aceita de forma autoevidente pelos pró-
prios participantes do “jogo de linguagem”.20
Como bem aponta Habermas, para o posi-
tivismo a noção de segurança jurídica se sobrepõe,
abarca, eclipsa a ideia de justiça enquanto preten-
são de correção normativa. a fundamentação das
normas jurídicas é puramente procedimental — de
forma bem distinta do procedimentalismo21 de
Habermas —, refere-se unicamente à sua gênese,
deixando o problema do conteúdo das normas
para outros âmbitos normativos ou científicos —
moral, política, sociologia, história etc.
20 Ibid., p. 251.
21 assim como Habermas, Dworkin compreende a relação entre forma e
conteúdo ou procedimento e substância no direito como algo marcado por
complementaridade, e não oposição. “aqueles que dizem que a expressão
‘devido processo substantivo’ consiste num oxímoro, porque substância e
processo são opostos, desconsideram o fato crucial de que uma demanda
por coerência de princípio, que traz óbvias conseqüências substantivas,
é parte essencial do que faz um processo de tomada de decisão ser
um processo jurídico” (DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In:
DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006).
48 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
a noção do ordenamento jurídico como
sistema de regras, tendo-se em vista a base teórica
linguística pressuposta pelos expoentes maiores
do positivismo científico, implica o reconheci-
mento de seu caráter impreciso, indeterminado
ou lacunoso. admitindo-se a estrutura aberta da
linguagem, a pretensão de regulação de todas as
possíveis condutas por meio de regras abstratas
se mostra inviável, cabendo ao sistema jurídico
lidar com essa indeterminação diante de sua
tarefa inescapável de decidir.
se também Kelsen parte do reconhecimento
da tessitura aberta dos textos legais e constitu-
cionais, ao contrário de Dworkin e dos autores
atuais, ele pretende eliminar ou reduzir essa
abertura que vê como um problema central para
todo o Direito.
Para o primeiro Kelsen, o da Teoria pura de
1933, a indeterminação dos textos legais e cons-
titucionais poderia ser solucionada ao se elimi-
nar o problema da arbitrariedade na aplicação
do Direito mediante a contribuição da Ciência
do Direito. a Teoria pura do direito, a ascética
Ciência do Direito kelseniana, deveria traçar o
quadro das leituras possíveis dos textos legais e
49Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
constitucionais, de tal sorte que o arbítrio inicial
transformar-se-ia em discricionariedade do apli-
cador. este último deveria escolher, determinar,
dentro do quadro dos sentidos possíveis de um
texto neutramente delineados pela doutrina, a
norma, ou seja, o sentido estatal, oficial, do texto.
Observadas as possibilidades interpretativas des-
critas sem qualquer juízo de valor pela doutrina
científica, a atividade da autoridade deixaria de
ser arbitrária para ser discricionária, ao proceder
ao juízo de valor, próprio da sua competência e,
portanto, dotada de poder vinculante, da escolha
da norma a ser aplicada no interior daquele qua-
dro de possibilidades normativas.
no entanto, na edição revista da Teoria pura
do direito, de 1960, Kelsen procede ao famoso giro
decisionista, alterando o capítulo oitavo da obra
dedicado à questão da interpretação. Precisa-
mente o que distingue, para Kelsen, a interpre-
tação científica da interpretação que denomina
autêntica, é o fato de a primeira ser neutra e de
não ter o poder de vincular as pessoas tão somente
em razão da pronúncia, como as autoridades
estatais competentes para decidir e aplicar a
norma jurídica o fazem. ele se indaga agora o que
50 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
aconteceria se a autoridade decidisse por um
sentido que não estivesse contido no interior do
quadro dos sentidos admissíveis traçado pela
doutrina, e responde: azar da Ciência do Direito,
é a autoridade que pode impor a observância das
normas e não o cientista. Kelsen buscara restringir
a natureza aberta dos textos mediante a contri-
buição de uma ciência neutra, seu fracasso, no
entanto, revela a ingenuidade com que buscou
enfrentar o problema da linguagem.
Para nós é óbvio que não há dicionário ou
gramática, por mais bem feita que seja, capaz de
congelar a linguagem. Dicionários e gramáticas
ficam defasados em pouquíssimo tempo diante
da força atribuidora de sentido da gramática das
práticas sociais em permanente transformação. a
linguagem é algo vivo e vivenciado que não se
deixa aprisionar.
Paradoxalmente, só podemos enfrentar de
fato os riscos quando assumimos sua inevitabi-
lidade, quando desistimos de exorcizá-los, de
eliminá-los, e passamos a buscar controlá-los; a
questão só pode ganhar um enfrentamento mais
consistente, possibilitando a criação de um instru-
mental de outro tipo para o controle do risco da
51Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
arbitrariedade inerente à atividade interpretativa,
quando se passou a assumir a natureza incontor-
navelmente aberta, indeterminada, de qualquer
texto. É a unicidade, a irrepetibilidade
da situação
de aplicação que pode assegurar a imparcialidade
e nunca o texto em si, ainda que apoiado em
outros textos supostamente neutros, como se esses
últimos, por alguma mágica, pudessem escapar
do turbilhão incessante da vida e das formas de
vida que marcam a nossa leitura do mundo. esse
turbilhão é, ele próprio, constitutivo do pano de
fundo compartilhado de silêncio que sustenta a
comunicação na linguagem, do mundo da vida,
que, mediatizado institucionalmente, possibilita
o advento de uma Constituição compartilhada
intersubjetivamente pela comunidade de cida-
dãos. Pano de fundo que contém os horizontes
de sentido dessa determinada comunidade
enraizados na gramática de suas práticas sociais,
incorporando um repositório de sentidos decor-
rentes tanto das práticas assentadas nas tradi-
ções quanto de novas práticas emancipatórias
e transformadoras.
tanto em Kelsen quanto em Hart, contudo,
a saída termina por ser decisionista. a própria
52 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
Ciência do Direito, como fica patente na obra
revista de Kelsen, pode apenas indicar, mas não
assegurar qualquer moldura de interpretações que
vincule as autoridades competentes para decidir —
capazes de realizar interpretações autênticas, pois
impositivas —, cujas decisões podem assim ter
fundamentos extrajurídicos:
a propósito, importa notar que, pela via
da interpretação autêntica, quer dizer, da
interpretação de uma norma pelo órgão jurídico
que a tem de aplicar, não somente se realiza uma
das possibilidades reveladas pela interpretação
cognoscitiva da mesma norma, como também
se pode produzir uma norma que se situe
completamente fora da moldura que a norma a
aplicar representa.22
O reconhecimento de Kelsen de que não
há nada a fazer se a autoridade encarregada de
aplicar o direito não se deixa submeter à mol-
dura das interpretações possíveis descrita pela
Ciência do Direito equivale, na verdade, à acei-
tação da possibilidade de arbítrio da autoridade
aplicadora como algo inafastável e incontrolável.
22 KeLsen, H. Teoria pura do direito. são Paulo: martins Fontes, 1998. p. 394.
53Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
a contribuição que se buscara alcançar com a
Teoria pura do direito, expressa em seu último capí-
tulo, perde-se agora de seu propósito original. O
sentido do texto normativo, ou seja, a norma, será
aquela que a autoridade afirma ser. A segurança
jurídica termina por não ser crível, nem mesmo
no âmbito do regulado pelas regras jurídicas
expressamente positivadas.
O positivismo jurídico de Hart concebe os
hard cases como casos que não podem ser solucio-
nados com recurso a uma regra jurídica suficien-
temente clara, cabendo portanto ao juiz fazer uso
de sua discricionariedade para decidir. ao fazê-lo
uma nova regra estaria sendo criada e aplicada
retroativamente, por mais que o juiz se esforçasse
para dar a entender que estaria simplesmente apli-
cando um direito pré-existente, tentando assim
salvaguardar a ficção da segurança jurídica.23
a ideia de certeza do direito como atividade
de mera cognição, ou seja, como desvelamento
racional do sentido pré-existente das normas, é
expressamente rejeitada por Kelsen:
23 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard
university Press, 1977. p. 81.
54 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
a teoria Pura destrói a visão segundo a qual
as normas podem ser criadas por meio da
cognição, uma concepção que decorre, em
última instância, da necessidade de se imaginar
o Direito como um sistema fixo que regula todos
os aspectos do comportamento humano e, em
especial, as atividades dos órgãos que aplicam
o Direito, sobretudo as de todos os tribunais.
a função desses últimos — e, assim, também a
interpretação — há de ser vista simplesmente
como o desvelamento das normas vigentes,
normas que, então, hão de ser simplesmente, de
uma certa maneira, reveladas. a teoria jurídica
tradicional, deliberadamente ou não, se esforça
por manter a ilusão da certeza jurídica.24
a teoria positivista da interpretação, ao
igualar em essência as tarefas legislativa e judi-
cial, especialmente diante de hard cases, nivela as
distintas lógicas subjacentes, causando uma pro-
funda confusão entre argumentos cuja distinção
24 KeLsen, H. On the theory of interpretation. Legal Studies, v. 10, n.
2, p. 132, 1990: “the Pure theory decimates the view that norms can
be created by way of cognition, a view that arises in the end from the
need to imagine the law as a fixed system governing every aspect of
human behavior, and governing in particular the activity of the organs
that apply the law, above all the courts. their function — and thus,
interpretation too — is to be seen simply as the discovery of existing
norms, norms, then, that are simply to be uncovered in a certain way.
The illusion of legal certainty is what traditional legal theory, wittingly
or not, is striving to maintain”.
55Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
é cara a toda a estrutura política das sociedades
modernas: argumentos de política e argumentos de
princípio. Os primeiros se referem à persecução de
objetivos e bens coletivos considerados relevantes
para o bem-estar de toda a comunidade, passí-
veis de transações e compromissos, enquanto os
segundos fundamentam decisões que resguar-
dam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo
assim um papel de garantia contramajoritária.25
O positivismo, os hard cases e a única resposta
correta de Dworkin
O argumento de Dworkin da única resposta
correta consiste na afirmação de que mesmo nos
casos considerados pelo positivismo como hard
cases, onde não há uma regra estabelecida dis-
pondo claramente sobre o caso, uma das partes
pode mesmo assim ter um direito preestabele-
cido de ter sua pretensão assegurada. Cabe ao
juiz descobrir quais são esses direitos, mas isso
não poderá ser obtido com auxílio de algum
método ou procedimento mecanicista. Dworkin
25 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously in Beijing. The New York Review
of Books, v. 49, n. 14, p. 82, 2002.
56 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
deixa claro que se trata primeiramente de uma
postura a ser adotada pelo aplicador diante da
situação concreta e com base nos princípios jurí-
dicos, entendidos em sua integridade,26 e não numa
garantia metodológica, o que significa que discor-
dâncias razoáveis sobre qual a resposta correta
para cada caso exigida pelo Direito podem ocorrer
entre os juízes, advogados, cidadãos, etc.27
nos casos em que nos pareça inequívoca
a atribuição de um direito a um requerente por
meio da clareza de uma norma expressa — ou
melhor, em que (ainda) não se sustentem argu-
mentos em contrário em face dos dispositivos
normativos invocados — fica claro que o que se
exige é a prevalência de um argumento de princí-
pio, mesmo que o direito em questão, previsto na
norma, tenha se originado de argumentos de polí-
tica, como, por exemplo, no caso de um subsídio
fiscal criado com o objetivo de promover o cres-
cimento de um setor específico da economia.
até aqui as diferenças não se mostram com
toda a sua força. em se tratando de um hard case,
26 sobre a integridade em Dworkin como teoria normativa da coerência,
cf. GÜntHer, K. un concepto normativo de coherencia para una
teoría de la argumentación jurídica. Doxa, n. 17/18, p. 271-302, 1995.
27 DWORKIN,
R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard
university Press, 1977. p. 81.
57Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
entretanto, surge a questão sobre a aplicabilidade
de cada tipo de argumento por parte do aplicador.
se os juízes atuam como legisladores delegados,
como na concepção positivista, então toda a gama
de argumentos de política está à sua disposi-
ção. um caso pode ser decidido, na ausência de
uma regra, de forma a promover, por exemplo, a
maximização de objetivos econômicos conside-
rados relevantes pelo juiz, ou a prevalência de
valores sociais considerados superiores, sem que
isso reflita necessariamente princípios jurídicos
enquanto comandos normativos deontológicos.
se, por outro lado, a tarefa jurisdicional se distin-
gue em essência da atividade legislativa, atuando
como um fórum de princípio, nos hard cases as
decisões também devem se basear em argumen-
tos de princípio.28
Dworkin rejeita a redução da legitimidade
do direito à simples textualidade legal, em termos
de uma gênese puramente formal do Direito,
como em Kelsen ou Hart. a diferenciação entre
direito, moral e política deve ser mantida, mas
isso se torna possível justamente pela tradução
28 DWORKIN, R. A Matter of Principle. Cambridge, mass.: Harvard
university Press, 1985. p. 69.
58 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
dos princípios morais e dos objetivos políticos
na linguagem propriamente jurídica, internali-
zando e ressignificando assim seus conteúdos no
direito positivo.29
a diferenciação interna ao direito entre
direitos e políticas, proposta por Dworkin, reforça
a distinção entre formas específicas de discursos,
buscando garantir a primazia dos argumentos de
princípios, que remetem aos conteúdos morais dos
direitos fundamentais, sobre a argumentação teleo-
lógica e pragmática de políticas cunhadas para a
realização de objetivos supostamente realizadores
de bens coletivos.30 É o Legislativo, assim, a porta
de entrada dos argumentos éticos e pragmáticos
próprios das políticas públicas, a serem incor-
porados no discurso judicial de forma seletiva e
condicionada, dado o papel de firewall atribuído
aos direitos fundamentais, com sua linguagem
deontológica, no ordenamento jurídico.31
29 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 257.
30 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard
university Press, 1977. p. 82 et seq.
31 robert alexy critica a distinção proposta por Dworkin entre princípios
e políticas por considerá-la “por demais estreita” (ALEXY, R. Teoria de
los derechos fundamentales. madrid: Centro de estudios Constitucionales,
1993. p. 111).
59Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
a insuficiência das crenças e posturas
positivistas torna-se ainda mais clara com a distin-
ção proposta por Dworkin entre regras e princí-
pios. a leitura positivista do direito como sistema
autossuficiente de regras, que pretendem regular
com alto grau de determinação suas situações de
aplicação, deixa escapar a dimensão central de
qualquer ordenamento jurídico pós-convencional:
sua estrutura principiológica, necessariamente in-
determinada em abstrato, embora determinável em
concreto, aberta hermeneuticamente à construção
intersubjetiva dos sentidos das normas universalis-
tas positivadas enquanto direitos fundamentais.32
importante ressaltar que num sistema principioló-
gico mesmo as regras, que especificam com maior
detalhe as suas hipóteses de aplicação, não são
capazes de esgotá-las; podem, portanto, ter sua
aplicação afastada diante de princípios, sempre
com base na análise e no cotejo das reconstruções
fáticas e das pretensões a direito levantadas pelas
partes na reconstrução das especificidades pró-
prias daquele determinado caso concreto.
32 essa característica da aplicação jurídica, mesmo se tratando de regras,
também não é captada da mesma forma na teoria de alexy. Cf. aLeXY,
r. sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, n. 5,
p. 139-151, 1988.
Luíza
Realce
60 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
a perspectiva decisionista a que chega o
positivismo em face da reconhecida indetermi-
nação das regras é rechaçada assim pelo caráter
normativo dos princípios jurídicos que, embora
muito gerais e abstratos, exigem do intérprete
densificação, com especial atenção à história
institucional e à sistematicidade do conjunto de
princípios reciprocamente vinculados do Direito.
essa exigência de Dworkin é bem apreendida
por Habermas:
Depois que o direito moderno se emancipou
de fundamentos sagrados e se distanciou de
contextos religiosos e metafísicos, não se torna
simplesmente contingente, como o positivismo
defende. entretanto, ele também não se encontra
simplesmente à disposição de objetivos do
poder político, como um medium sem estrutura
interna própria, como é defendido pelo realismo.
O momento da indisponibilidade, que se
afirma no sentido de validade deontológica
dos direitos, aponta, ao invés disso, para uma
averiguação — orientada por princípios — das
“únicas decisões corretas”.33
33 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 259.
61Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
É nesse sentido que pode Dworkin falar
da exigência de se buscar a única decisão correta
autorizada pelo ordenamento: não enquanto
mandamento inscrito a priori nas normas gerais e
abstratas, mas como postura a ser assumida pelo
aplicador em face das questões aparentemente
não reguladas apresentadas pelos hard cases, de
densificação dos sentidos abstratos em face de
um compartilhamento existente, embora sempre
passível de ser problematizado e polemizado,
do sentido vivencial dos princípios jurídicos,
presente naquela determinada comunidade
de princípios, tanto na assimilação prática dos
direitos pela sociedade em seu quotidiano, em
suas lutas, reivindicações por posições interpre-
tativas e em seu aprendizado histórico, quanto na
reafirmação institucional do sentido dessa história
pelos órgãos oficiais.
O conceito de integridade na política
Para Dworkin, é precisamente o conteúdo
moral incorporado ao Direito como direitos
fundamentais, funcionando como Direito e não
mais como moral, que garante o pluralismo e a
crescente complexidade da sociedade moderna.
Luíza
Realce
Luíza
Realce
Luíza
Realce
Luíza
Realce
62 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
essa relação é um suposto inafastável da
teoria do Direito de Dworkin. Para ele é tarefa de
uma comunidade concreta densificar, interpretar
reflexivamente, esses princípios. Essa comunidade
não mais pode compreender a si mesma como
um grupo de pessoas unidas apenas por razões
acidentais, externas e incontroláveis, históricas
ou territoriais (o estágio pré-convencional de
Kohlberg).34 tampouco não é mais capaz de se
ver como um grupo apenas por terem estado
submetidos às mesmas normas, decorrentes de
um procedimento aceito, a partir, por exemplo,
de uma regra de reconhecimento (o estágio con-
vencional de Kohlberg).
uma verdadeira comunidade, que Dworkin
denomina de princípios, é uma comunidade
especial. além de compartilhar esses princípios
comuns, eles a compreendem como uma co-
munidade de princípio, pois seus membros se
reconhecem reciprocamente como livres e iguais,
há um respeito pela diferença do outro que não
se confunde com a emoção moral, o altruísmo
ou o amor. as obrigações recíprocas dessa
34 sobre os estágios de desenvolvimento moral, ver o tópico “O papel dos
princípios – Os estágios de Kohlberg”.
63Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
comunidade decorrem dessa natureza especial
que lhe é constitutiva. não se obedece a essas
normas como realização de uma justiça global,
universal, no exemplo dado por Dworkin. tais
obrigações nascem justamente desse senso de per-
tencimento a uma comunidade que compartilha
os mesmos princípios.
O conceito de integridade no Direito
assim, para Dworkin, o Direito é um sis-
tema aberto de princípios e regras. Princípios
são normas abertas e que não buscam controlar
previamente sua própria aplicação. regras são
proposições normativas que buscam controlar
a sua aplicação, por isso, no segundo modelo
de comunidade, e na primeira fase do estágio
pós-convencional, conduziram a aplicação dos
próprios princípios a ser pensada e praticada
como uma aplicação que deveria se conformar
à típica das regras. Já os princípios, por sua vez,
conquanto sejam abertos e indeterminados, são,
porém, passíveis de serem densificados nas
situações concretas de aplicação segundo a sua
adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade
Luíza
Realce
Luíza
Realce
Luíza
Realce
64 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
das características do caso em tela, em termos de
sua capacidade de regência, sem produzir resí-
duos de injustiça, em face aos demais princípios.
Por isso mesmo, princípios contrários são
não somente opostos, mas se requerem comple-
mentarmente como parte da integridade com-
plexa do Direito no momento de sua aplicação,
nunca podem ser considerados isoladamente;
já as regras, em seu modo típico de aplicação,
ao invés, requerem a crença que hoje sabemos
implausível de que as normas, por si sós, seriam
capazes de regular as situações sempre indivi-
duais, concretas e infinitamente complexas da
vida, sem a mediação do aplicador. Por isso
puderam gerar a crença em uma concepção de
imparcialidade do aplicador que requereria a
sua cegueira às especificidades das situações
de aplicação, dando curso ao mito iluminista,
totalmente irracional, sabemos hoje, exatamente
pela confiança excessiva em uma racionalidade
sobre-humana, perfeita, eterna, isenta de todos
condicionantes que marcam nossa humanidade,
segundo o qual a elaboração de normas gerais
e abstratas perfeitas eliminaria o problema do
Direito, pois ao aplicador restaria apenas um
65Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
trabalho de aplicação mecânica e silogística dessas
mesmas normas às situações concretas de vida
sempre passíveis de serem reduzidas a situações
padrão. Desconhecia-se, precisamente, que o
advento de normas gerais e abstratas, válidas para
toda a sociedade, incrementam a complexidade
social em geral, e do direito em especial, sempre
abrindo a possibilidade, pelo simples fato de
terem sido positivadas, de que pretensões abu-
sivas de aplicação em situações concretas que,
na verdade, nunca se deixaram reger por elas,
venham a ser levantadas. aprendemos a duras
penas que racional é o saber que sabe da pre-
cariedade de nosso próprio saber e busca lidar
racionalmente com os riscos que ela acarreta.
O ponto de partida de Dworkin aqui, por-
tanto, é o da crítica ao excesso de racionalidade
inconsciente que marcava a visão anterior não só
do conceito de ciência mas do próprio conceito
de direito, de norma e de ordenamento jurídico, é
saber que uma norma geral e abstrata nunca
regulará por si só as situações de aplicação indi-
viduais e concretas, até mesmo pela incorporação
de maior complexidade ao ordenamento de prin-
cípios que a sua adoção necessariamente significa,
Luíza
Realce
Luíza
Realce
66 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
ao dar uma maior densidade aos princípios
constitucionais básicos e ao, simultaneamente,
abrir novas possibilidades de pretensões abusivas.
assim é que para ele, todas as normas, mesmo as
regras, que se constitucionalmente válidas nada
mais são do que densificações desses princípios
naquele campo específico de sua força irradiadora,
sejam sempre aplicadas de modo racional, ou melhor,
com a clareza de que, por si sós, nada regulam,
pois requerem a intermediação da sensibilidade do
intérprete capaz de reconstruir não o sentido de um
texto normativo tido como a priori aplicável, mas
aquela específica situação individual e concreta de
aplicação, em sua unicidade e irrepetibilidade, do
ponto de vista de todos os envolvidos, levando a
sério as pretensões a direitos, as pretensões norma-
tivas, levantadas por cada um deles, para garantir
a integridade do direito, ou seja, que se assegure
na decisão, a um só tempo, a aplicação de uma
norma previamente aprovada (fairness — aqui
empregada no sentido de respeito às regras do jogo,
algo próximo do que Kelsen denominava certeza
do direito) e a justiça no caso concreto, cada caso é
único e irrepetível. É nesse contexto que Dworkin
levanta a tese da única resposta correta.
Luíza
Realce
Luíza
Realce
67Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
A integridade do Direito significa, a um só
tempo, a densificação vivencial do ideal da comu-
nidade de princípio, ou seja, uma comunidade em
que seus membros se reconhecem reciprocamente
como livres e iguais e como coautores das leis que
fizeram para reger efetivamente a sua vida coti-
diana em comum, bem como, em uma dimensão
diacrônica, a leitura à melhor luz da sua história
institucional como um processo de aprendizado
em que cada geração busca, da melhor forma que
pode, vivenciar esse ideal. Desse segundo sentido
decorre a metáfora do romance em cadeia.
ao levarmos em conta a história constitu-
cional, podemos ver o que esse duro processo de
aprendizado institucional nos ensinou a respeito
dos direitos fundamentais à igualdade e à liber-
dade. a produtiva tensão constitutiva inerente a
esses princípios encontra-se presente em todas
as dicotomias clássicas típicas da modernidade,
como público e privado, soberania popular e
constitucionalismo, republicanismo e liberalismo,
etc., pois apenas aparentemente apresentam
uma natureza paradoxal. também aqui esses
pólos efetivamente opostos, são também, a
um só tempo, constitutivos um do outro, de
Luíza
Realce
68 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
tal sorte que instauram uma rica, produtiva e
permanente tensão, capaz de dotar a doutrina
constitucional da complexidade necessária para
enfrentar problemas que ela antes nem era capaz
de ver.
não há espaço público sem respeito aos
direitos privados à diferença, nem direitos pri-
vados que não sejam, em si mesmos, destinados
a preservar o respeito público às diferenças
individuais e coletivas na vida social. não há
democracia, soberania popular, sem a observância
dos limites constitucionais à vontade da maioria,
pois aí há, na verdade, ditadura; nem constitu-
cionalismo sem legitimidade popular, pois aí há
autoritarismo.
a igualdade do respeito às diferenças inclui
e, ao mesmo tempo, exclui. Sempre que afirma-
mos
quem somos nós, os titulares do direito à
igualdade, fechamos o sujeito constitucional que,
conforme nos ensina michel rosenfeld e requer o
§2º do art. 5 da Constituição da república, há que
sempre permanecer aberto ao reconhecimento
como igualdade de diferenças antes discrimi-
nadas e insustentáveis em um debate público
quando questionadas.
Luíza
Realce
69Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
a teoria de Dworkin na perspectiva da
teoria discursiva do estado Democrático
de Direito
a teoria jurídica de ronald Dworkin busca
superar os desafios e as perspectivas colocadas
pelas teorias hermenêuticas,35 realistas e positivistas.
Dworkin se propõe a lidar com o direito de uma
perspectiva deontológica — a pressupor a possibi-
lidade e necessidade da fundamentação das decisões
em termos de correção normativa —, atribuindo ao
ordenamento jurídico a dupla tarefa de garantir
simultaneamente os requisitos de segurança jurí-
dica (fairness e due process — respeito aos procedi-
mentos e às regras preestabelecidas) e de justiça
(correção normativa substantiva, tendo-se em
vista o conteúdo moral dos direitos fundamentais
democraticamente positivados):
De um lado, o princípio da segurança jurídica
exige decisões tomadas consistentemente, no
quadro da ordem jurídica estabelecida. (...)
35 segundo Habermas, a hermenêutica “(...) resolve o problema da
racionalidade da jurisprudência através da inserção contextualista
da razão no complexo histórico da tradição. e, nesta linha, a pré-
compreensão do juiz é determinada através dos topoi de um contexto
ético tradicional” (HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade
e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 248).
Luíza
Realce
Luíza
Realce
70 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
[a] história institucional do direito forma o
pano de fundo de toda a prática de decisão
atual. (...) De outro lado, a pretensão à legiti-
midade da ordem jurídica implica decisões, as
quais não podem limitar-se a concordar com o
tratamento de casos semelhantes no passado e
com o sistema jurídico vigente, pois devem ser
fundamentadas racionalmente.36
Concebendo o ordenamento jurídico como
composto fundamentalmente por princípios, que
estruturalmente não buscam esgotar de forma
autorreferencial suas possibilidades de aplica-
ção, Dworkin busca no interior do próprio direito
as respostas para questões supostamente apon-
tadoras de “lacunas” no ordenamento (ausência
de regramento específico). O recurso à história
institucional e ao pano de fundo compartilhado
de sentidos também se faz necessário mas, ao con-
trário da hermenêutica, esse arcabouço não deve
ser aprendido como tradição inescapável, já que a
própria atribuição de conteúdo moral (abstrato e
universal) aos direitos fundamentais positivados
oferece uma perspectiva crítica — um crivo de
36 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 246.
71Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
validade — para a consideração das tradições e
da possibilidade de sua recepção para a solução
de casos atuais.
Dworkin e o realismo moral
Valendo-se de uma linguagem própria da
tradição filosófica do realismo moral,37 38 Dworkin
pode afirmar que tais direitos humanos (moral
rights) “existem”, isso é, seu conteúdo pode ser
considerado “verdadeiro”39 — o que para a teoria
de Habermas só pode ser lido como expressão da
37 “aplicação do realismo aos juízos da ética e, entre outras coisas, aos
valores, obrigações e direitos que são apresentados nas teorias éticas.
a idéia principal é ver a verdade moral como algo fundado na natureza das
coisas, e não nas reações humanas, subjetivas e variáveis, às coisas. Como
acontece ao realismo em outras áreas, o realismo moral é suscetível de
muitas formulações diferentes. Podemos dizer que, de uma maneira
geral, o realismo tem a aspiração de proteger a objetividade dos juízos éticos
(opondo-se ao subjetivismo e ao relativismo); pode equiparar as
verdades morais às da matemática, pode ter a esperança de que elas
tenham aprovação divina (...), ou vê-las como algo que é garantido pela
natureza humana” (BLACKBURN, S. Realismo moral. In: BLaCKBurn,
s. Dicionário Oxford de filosofia. Consultoria da edição brasileira Danilo
marcondes. rio de Janeiro: Jorge zahar, 1997. p. 336, destacamos).
38 Jean Piaget considera o “realismo moral” como a concepção de existência das
regras morais de forma independente dos sujeitos, sendo típica do segundo
estágio de consciência normativa no desenvolvimento infantil, onde a
relação da criança com as normas é cunhada autoritariamente (GÜntHer,
K. The sense of appropriateness: application discourses in morality and
law. albany: state university of new York Press, 1993. p. 115.
39 DWORKIN, R. Objectivity and Truth: You’d Better Believe It. Philosophy
& Public Affairs, v. 25, n. 2, p. 87-139, 1996.
72 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
“validade” e da “legitimidade” de tais direitos, já
que normas situam-se primordialmente no plano
da validade, e não da faticidade:
ambos compartilhamos a crítica aos enfoques
não cognitivistas. mas, enquanto o professor
Dworkin adota a linguagem do realismo
moral, ou pelo menos não encontra nenhuma
razão para deixar de fazê-lo, eu acredito que se
deveria evitar falar sobre fatos morais. Creio que
a razão para tanto seja evidente, e gostaria de
formular de algum modo o ponto em disputa.
Não existe nada que corresponda à afirmação
“ninguém deveria participar de um extermínio
étnico”. Não há nenhum fato que corresponda
a uma afirmação como essa. Tais afirmações
não dizem como são as coisas ou como as
coisas estão conectadas entre si (para usar uma
expressão do nosso amigo rorty). elas nos
dizem o que devemos ou não devemos fazer.
em casos como esses, ao invés de levar adiante
um discurso que afirma a existência de fatos,
em lugar de dizer: “existem tais e tais direitos”,
prefiro dizer que nós criamos estes e aqueles
direitos, dos quais alguns, inclusive, merecem
reconhecimento universal.40
40 DWORKIN, R.; HABERMAS, J. et al. ¿impera el derecho sobre la
política?. Revista Argentina de Teoría Jurídica de la Universidad Torcuato
Di Tella, v. 1, n. 1, 1999. (grifei): “ambos compartimos la crítica a los
73Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
Para ambos os autores, portanto, a razão prática
implica a possibilidade de um ponto de vista moral,
universalista e deontológico, indicador da prevalên-
cia normativa do justo sobre o bom, a exigir que a
sociedade — por meio de suas instituições, no caso
do Direito — trate a todos os seus membros como
merecedores de igual respeito e consideração.41
Pouco importa o modo como Dworkin
entende a relação entre direito e moral: sua teoria
dos direitos exige uma compreensão deontológica de
pretensões de validade jurídicas. Com isso ele rompe
o círculo no qual se enreda a hermenêutica jurídica
com seu recurso a topoi historicamente comprovado
de um ethos transmitido. Dworkin interpreta o prin-
cípio hermenêutico de modo construtivista.
enfoques no cognitivistas. ahora bien, mientras que el profesor Dworkin
adopta el lenguaje del realismo moral, o al menos no encuentra
ninguna razón para evitarlo, yo creo que se debería evitar hablar sobre
hechos morales. Creo que la razón es evidente y quisiera formular de
algún modo el punto en disputa. no existe nada que
se corresponda
con la afirmación ‘nadie debería participar en un exterminio étnico’.
No hay ningún hecho que se corresponda con afirmaciones como ésta.
Tales afirmaciones no dicen cómo son las cosas o cómo las cosas están
conectadas entre sí (para usar una expresión de nuestro amigo rorty).
ellas nos dicen qué es lo que debemos o no debemos hacer. en estos
casos, en lugar de llevar adelante un discurso que afirma la existencia
de hechos; en lugar de decir: ‘hay tales y tales derechos’, prefiero decir
que nosotros creamos estos y aquellos derechos, de los cuales algunos
incluso merecen un reconocimiento universal”.
41 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 252 et seq.
Luíza
Realce
74 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
Como podemos perceber, se levarmos em
conta as distintas tradições e escolas teóricas, o
debate sobre a relação entre direito e moral de
Habermas e Dworkin redunda, no fim das contas,
essencialmente terminológico.
Para ambos os autores, portanto, é o conteúdo
moral traduzido para o código especificamente
jurídico que confere aos direitos fundamentais o
status de incondicionalidade em face dos demais
bens ou valores sociais. Da incondicionalidade
dos direitos resulta seu funcionamento como
trunfos em face de possíveis abusos justificados
com base em políticas de maximização de finali-
dades coletivas.
naturalmente a moral, no papel de uma medida
para o direito correto, tem a sua sede primariamente
na formação política da vontade do legislador
e na comunicação política da esfera pública.
Os exemplos apresentados para uma moral no
direito significam apenas que certos conteúdos
morais são traduzidos para o código do direito
e revestidos com um outro modo de validade.
Uma sobreposição dos conteúdos não modifica
a diferenciação entre direito e moral.42
42 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 256.
Luíza
Realce
75Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
A justificação de decisões jurídicas com base
em princípios de conteúdo moral, portanto, não é
extrajurídica na medida em que tais conteúdos pos-
sam ser identificados como assimilados aos princí-
pios fundamentais do próprio ordenamento.
além disso, deve-se ressaltar que o fato de
Dworkin entender os Direitos Humanos como
princípios universais, dotados de conteúdo moral,
não significa que a interpretação e densificação
dada a eles pelas diversas ordens jurídicas não
possa legitimamente variar. Para o autor torna-se
relevante a distinção entre interpretações de
boa-fé e de má-fé atribuídas pelos governos aos
direitos e às ações justificadas por eles; o com-
promisso, ao menos em princípio, com o respeito
pelos Direitos Humanos demonstrado por um
governo ou instituição mostra-se relevante para
a interpretação de seus atos.43 O direito humano
fundamental é, para Dworkin,44 o de ser tratado
pelas instituições detentoras de autoridade
com uma certa atitude ou postura, qual seja, a
43 sobre a postura de sistemático desrespeito pelos direitos humanos na
China, cf. DWORKIN, R. Taking Rights Seriously in Beijing. The New
York Review of Books, v. 49, n. 14, 2002.
44 DWORKIN, R. Is Democracy Possible Here?: Principles for a new Political
Debate. Princeton, n.J.: Princeton university Press, 2006. p. 35.
Luíza
Realce
76 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
que reflita o igual respeito e consideração pela
dignidade de cada um.45
a interpretação construtiva
em que pese a adoção da terminologia do
realismo moral, Dworkin se vale de uma postura
construtivista para lidar produtivamente com o
princípio hermenêutico, de modo a não permitir
que as tradições se legitimem de maneira autô-
noma e acrítica, pois exige a reflexividade ética
com base em uma noção universalista de direitos
fundamentais ou humanos (moral rights).46
a atitude interpretativa adotada e descrita
por Dworkin funciona do ponto de vista interno,
45 Dworkin compreende a dignidade humana como um princípio de duas
dimensões, correspondentes ao princípio de que cada pessoa deve
ser tratada como portadora de valor intrínseco (como na concepção
kantiana de “fim em si mesmo”), e ao princípio da responsabilidade
pessoal, segundo o qual cada pessoa tem especial responsabilidade
pela realização de seus objetivos de vida. (DWORKIN, R. Is Democracy
Possible Here?: Principles for a new Political Debate. Princeton, n.J.:
Princeton university Press, 2006. p. 9 et seq.)
46 norberto Bobbio ressalta o caráter intraduzível da distinção entre “legal
rights” e “moral rights”. Para o autor a expressão “moral rights” ocuparia
o lugar destinado a “direitos naturais” na tradição jurídica europeia
continental (BOBBiO, n. A era dos direitos. rio de Janeiro: elsevier, 2004.
p. 27). É de se ressaltar, entretanto, que é muitas vezes problemática a
identificação entre esses termos, e entendemos que, ao menos no caso
de Dworkin, faz mais sentido entender “moral rights” como direitos
fundamentais ou direitos humanos, a depender do contexto.
Luíza
Realce
77Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
dos próprios intérpretes. Diante da consciência
da condição linguístico-paradigmática de todo
saber, percebe-se que o próprio conceito de
interpretação é um conceito interpretativo; por isso
afirma Dworkin que “uma teoria da interpretação
é uma interpretação da prática dominante de usar
conceitos interpretativos”.47 essa circularidade é
inescapável, já que um ponto de vista completa-
mente externo, arquimediano,48 resta implausível.
a própria ideia de única resposta correta, é claro,
não poderá fugir a essa circularidade.
a interpretação construtiva é o modelo herme-
nêutico adotado por Dworkin para lidar com obras
de expressão humana, em especial o direito. em
contraste com a interpretação científica empírica, em
que se busca a interpretação de dados fáticos, e com
a interpretação conversacional, em que a intenção do
falante é o objeto central, Dworkin aponta a seme-
lhança entre a interpretação de uma prática social
e a interpretação artística, no sentido de que:
47 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 60.
48 A perspectiva filosófica arquimediana seria aquela típica da “meta-
ética” e de certas abordagens da filosofia do direito, como a de Hart,
que supostamente estudariam mas não participariam de algum aspecto
da vida social. Cf. DWORKIN, R. Hart’s Postscript and the Point of
Political Philosophy. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge,
mass.: Belknap Press, 2006. p. 141 et seq.
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78 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
ambas pretendem interpretar algo criado pelas
pessoas como uma entidade distinta delas, e não o
que as pessoas dizem, como na interpretação da
conversação, ou fatos não criados pelas pessoas,
como no caso da interpretação científica. (...)
atribuirei a ambas a designação de formas de
interpretação “criativa”.49
Os propósitos que estão em jogo na inter-
pretação criativa construtiva das obras de arte e
das práticas sociais, como o direito, são funda-
mentalmente os do intérprete, não os do autor.
atribui-se um propósito a um objeto ou a uma
prática, tornando-o o melhor possível em face de
seu
contexto temático. O que não quer dizer que
o objeto não imponha limites à interpretação; a
própria natureza intersubjetiva, paradigmática da
interpretação vai exigir condições de plausibilidade
para qualquer interpretação, especialmente em
face de uma história interpretativa minimamente
compartilhada. Sua validação é portanto, ao final,
discursiva na verificação de racionalidade. Por
isso afirma Dworkin que “do ponto de vista
construtivo, a interpretação criativa é um caso de
interação entre propósito e objeto.”50
49 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 61.
50 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 64.
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79Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
Dworkin retoma assim o debate sobre
hermenêutica travado entre Gadamer e Habermas51
para identificar, nas críticas desse, o aspecto cons-
trutivo da interpretação, verificado na suposição
da possibilidade de que os autores do objeto a ser
interpretado poderiam também aprender com os
intérpretes sobre o próprio objeto em questão, em
contraposição à postura de Gadamer, de subordi-
nação do intérprete ao autor; para Habermas have-
ria uma via de mão dupla na interpretação.52
Diante do reconhecimento do caráter pa-
radigmático do conhecimento pelas próprias
ciências, como em thomas Kuhn,53 Dworkin
sugere que, ao final, a interpretação criativa cons-
trutivamente enfocada nos permite compreender
melhor a tarefa de interpretação em qualquer
campo do saber, pois “toda interpretação tenta
tornar um objeto o melhor possível”,54 no contexto
51 essa rica discussão foi de grande relevância no posterior desenvolvi-
mento da teoria da ação comunicativa de Habermas. Cf. HaBermas,
J. a pretensão de universalidade da hermenêutica. In: HaBermas, J.
Dialética e hermenêutica. Porto alegre: L&Pm, 1987. p. 26-71.
52 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999.
p. 62, nota n. 2.
53 KuHn, t. s. A estrutura das revoluções científicas. são Paulo: Perspectiva,
1996.
54 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999.
p. 65.
Luíza
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80 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
do empreendimento travado, segundo seus
critérios específicos.
as pessoas traduzem o que outras disseram —
através da mesa de jantar bem como através
dos séculos — por meio de um processo de
interpretação construtiva que tem por objetivo
não espiar dentro dos crânios, mas sim elaborar
da melhor maneira possível o sentido de suas
falas e de outros comportamentos. trata-se de
um processo normativo, e não “empírico”.55
a noção de paradigma, ressalta Habermas,56
desempenha uma função central na teoria do
Direito de Dworkin ao formar o pano de fundo
de suporte a “teorias jurídicas” capazes de
reconstruir o ordenamento jurídico, sistemica-
mente estruturado em princípios, de que devem
se valer os aplicadores para buscar decisões corre-
tas que mostrem o direito como um todo em sua
melhor luz, como um empreendimento coletivo
55 DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In: DWORKIN, R. Justice in
Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 127: “People translate
what other people have said — across the dining table as well as across
the centuries — by a process of constructive interpretation that aims not
at intracranial peeks but at making the best sense possible of their speech
and other behavior. That is a normative, not an ‘empirical’, process”.
56 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de
Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 261.
81Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
legítimo de uma comunidade de princípios, que
trate a todos os seus membros como merecedores
de igual respeito e consideração.
Dworkin ressalta que não é em qualquer tipo
de comunidade que as ideias de única resposta
correta e integridade, baseadas em princípios,
terão lugar como elemento integrante de sua
moralidade política. num modelo de comunidade
de fato, em que as pessoas não se sentem vincula-
das por nenhuma responsabilidade em especial,
e num modelo de comunidade de regras, em que
a responsabilidade recíproca se baseia em meras
convenções contratuais, o tipo de vínculo existente
entre os cidadãos e de responsabilidade exigível
da comunidade não remete necessariamente a
princípios de conteúdo moral. a postura adotada
pelos membros da comunidade de fato pode ser
puramente estratégica; na comunidade de regras,
o puro pragmatismo é balizado por acordos de
tipo contratual, vistos como limites à ação; ape-
nas numa comunidade de princípios as normas
estabelecidas podem ganhar conteúdo universal e
serem vistas como condição de possibilidade para
a liberdade e a igualdade, para além de limites
Luíza
Realce
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82 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
convencionais, e passam a requerer a integridade
na compreensão de seus princípios.57
essa leitura de Dworkin sobre o tipo de vín-
culo intersubjetivo dos cidadãos e de sua postura
diante das normas, bem como sobre o papel dos
princípios numa comunidade política nos remete
à teoria dos estágios de desenvolvimento moral,
especialmente como desenvolvida por Lawrence
Kohlberg, que veremos a seguir.
O papel dos princípios – Os estágios de
Kohlberg
Os estudos realizados por Lawrence
Kohlberg na universidade de Chicago foram
de grande relevância para o desenvolvimento
de um corpo teórico analítico empiricamente
embasado capaz de comprovar o sentido prático
de teorias morais formalistas. em sua tese de
doutorado, onde estudou o desenvolvimento
moral em crianças e adolescentes de 10 a 16 anos,58
57 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999.
p. 252 et seq.
58 KOHLBerG, L. the Development of modes of moral thinking
and Choice in the Years 10 to 16. Department of Psychology. Chicago,
university of Chicago. Ph.D.: 491, 1958.
Luíza
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83Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
Kohlberg ampliou e desenvolveu conceitos sobre
o desenvolvimento cognitivo e moral trabalhados
por Jean Piaget. Posteriormente, estendeu seus
estudos empíricos para grupos de crianças e ado-
lescentes de diversas culturas ao redor do mundo,
comprovando o caráter universal das etapas de
desenvolvimento descobertas por ele.
trabalhando com a ideia de distintos
níveis de percepção do caráter heterônomo
ou autônomo das normas sociais, perceptí-
veis tanto no desenvolvimento dos indivíduos
quanto no das sociedades, a teoria de Kohlberg
delineia a diferença entre os níveis pré-conven-
cional, convencional e pós-convencional (vide
tabela 1), sendo cada nível subdividido em
dois estágios. Para o nosso tema mostram-se
relevantes especialmente os dois últimos
níveis, onde podemos localizar as compreen-
sões e teorias normativas59 mais relevantes nas
sociedades contemporâneas.
59 Em entrevistas realizadas com diversos filósofos, Kohlberg pôde
verificar que eles desenvolvem suas teorias de forma inter-relacionada
com seus respectivos estágios “naturais”, e todos eles argumentam
com base nos estágios 5 e 6, os mais elevados. Cf. KOHLBerG, L. the
Claim to moral adequacy of a Highest stage of moral Judgment. The
Journal of Philosophy, v. 70, n. 18, p. 630-646, 1973.
84 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade
das tensões...
Os aspectos mais relevantes de cada nível e
estágio estão resumidos na seguinte tabela, que
vale a pena transcrever:
taBeLa 1
Definição dos estágios morais60
(continua)
Níveis Estágios
I. Nível pré-con-
vencional
Neste nível a criança
responde às regras
e aos rótulos cultu-
rais de bom e mau,
de certo ou errado,
mas interpreta estes
rótulos nos termos
das consequências
físicas ou hedonis-
tas da ação (punição,
recompensa, troca de
favores) ou em ter-
mos do poder físico
daqueles que enun-
ciam as regras e os
rótulos. O nível é
dividido nos seguin-
tes dois estágios:
Estágio 1: A orientação pela punição-
e-obediência. As consequências físicas
da ação determinam se são boas ou ruins,
não obstante o significado ou o valor
humano destas consequências. O evitar a
punição e a deferência incontroversa ao
poder são avaliados por si sós, não nos
termos do respeito por uma ordem moral
subjacente a ser apoiada pela punição e
pela autoridade (este será o estágio 4).
Estágio 2: A orientação instrumental-
relativista. A ação correta consiste naquela
que satisfaz instrumentalmente as próprias
necessidades da pessoa e, ocasionalmente,
às necessidades de outras. As relações
humanas são vistas em termos semelhantes
aos das relações de mercado. Elementos
de fairness, de reciprocidade, e de com-
partilhamento igualitário estão presentes,
mas são interpretados sempre de uma
maneira físico-pragmática. Reciprocidade
é uma questão de “você coça as minhas
costas e eu coçarei as suas”, não de leal-
dade, gratidão ou justiça.
60 KOHLBerG, L. the Claim to moral adequacy of a Highest stage of
moral Judgment. The Journal of Philosophy, v. 70, n. 18, p. 631-632, 1973.
(tradução livre)
85Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
(continua)
Níveis Estágios
II. Nível convencional
Neste nível, manter as
expectativas da família,
do grupo, ou da nação
é percebido como algo
de valor por si só, não
importando as conse-
quências imediatas e
óbvias. É uma atitude
não somente de con-
formidade às expec-
tativas pessoais e à
ordem social, mas de
lealdade a ela, que bus-
ca ativamente manter,
apoiar e justificar a
ordem, e de se identifi-
car com as pessoas ou
grupo envolvidos por
ela. Neste nível, há os
seguintes dois estágios:
Estágio 3: A orientação pela concordân-
cia interpessoal ou do “bom menino –
boa menina”. O bom comportamento é
aquele que satisfaz ou ajuda a outros e é
aprovado por eles. Há grande conformação
às imagens estereotipadas do que seja o
comportamento da maioria ou “natural”. O
comportamento é julgado frequentemente
pela intenção — “ele teve boa intenção”
se torna importante pela primeira vez.
Ganha-se aprovação sendo “agradável.”
III. Nível pós-con-
vencional, autônomo,
ou principiológico
Neste nível há um
claro esforço no sen-
tido de definir os valo-
res morais e os prin-
cípios cuja validade
e aplicação se sepa-
rem da autoridade
dos grupos ou das
pessoas que os detêm
e apartada da própria
identificação do indiví-
duo com estes grupos.
Hás neste nível outra
vez dois estágios:
Estágio 5: A orientação legalista do con-
trato-social, geralmente com tons utilita-
ristas. A ação correta tende a ser definida
nos termos de direitos individuais gerais, e
de padrões que tenham sido criticamente
examinados e acordados pela sociedade
como um todo. Há uma clara consciência
do relativismo de valores e de opiniões pes-
soais e uma correspondente ênfase nas
regras procedimentais para a obtenção de
consenso. Com exceção do que é acordado
constitucional e democraticamente, o direito
é uma questão de “valores” e de “opiniões”
pessoais. O resultado é ênfase no “ponto de
vista legal,” mas enfatizando a possibili-
dade de se mudar o direito com base em
considerações racionais de utilidade social
Estágio 4: A orientação da “lei e
ordem”. Há uma orientação em direção à
autoridade, às regras fixas, e à manuten-
ção da ordem social. O comportamento
correto consiste em cumprir o seu dever,
mostrar respeito pela autoridade, e em
manter a ordem social estabelecida como
um bem em si mesmo.
86 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
(conclusão)
Níveis Estágios
(ao invés de congelá-lo nos termos do
estágio 4 “lei e ordem”). Fora da esfera
legal, o livre acordo e o contrato são o
elemento vinculante das obrigações. Esta
é a moralidade “oficial” do governo e da
constituição americanos.
Estágio 6: A orientação pelo princípio
ético-universal. O direito é definido pela
decisão de consciência de acordo com os
princípios éticos autodeterminados que
apelam à compreensividade lógica, à univer-
salidade, e à consistência. Estes princípios
são abstratos e éticos (a Regra de Ouro, o
imperativo categórico); não são regras morais
concretas como os Dez Mandamentos. Fun-
damentalmente, são princípios universais
de justiça, da reciprocidade e da igualdade
dos direitos humanos, e do respeito pela digni-
dade dos seres humanos como indivíduos.
Como podemos perceber, apenas no terceiro
nível, o pós-convencional, os princípios adquirem
papel central na autocompreensão normativa das
sociedades. ao estudarmos as teorias jurídicas
mais importantes da contemporaneidade, pode-
mos perceber como elas se localizam nos níveis e
estágios, combinando muitas vezes elementos de
mais de um deles. A distinção entre justificação e
aplicação, evidenciada por Klaus Günther, não foi
categorizada explicitamente por Kohlberg em sua
87Capítulo 2
a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito
teoria,61 mas, não obstante, podemos perceber a
relação entre essas formas argumentativas e os está-
gios de desenvolvimento moral. O positivismo
jurídico do século XX concebe a fundamentação
das normas jurídicas nos termos do estágio 5 — da
orientação legalista do contrato social. no plano
da criação de normas a flexibilidade política de
argumentos e a percepção pragmática sobre os
efeitos regulatórios se fazem presentes; entretanto,
no plano da aplicação, podemos identificar a
permanência de elementos típicos do estágio 4,
próprio do nível convencional.
estando a aplicação das normas restrita a
um sistema fechado de regras, não há espaço para
uma análise de aplicabilidade mais sofisticada,
que requer a compreensão da complexidade
principiológica do ordenamento e do vínculo
61 De acordo com Günther, “infelizmente Kohlberg não utiliza os
resultados de seu estudo sobre o desenvolvimento dos conceitos de
justiça para traçar a diferença, no estágio 6, entre a justificação e a
aplicação das normas sob condições de imparcialidade procedimental.
(...) entretanto, (...) ele não pode evitar ao menos uma distinção
implícita entre justificação e aplicação” (GÜNTHER, K. The sense of
Appropriateness: application Discourses in morality and Law. albany:
state university of new York Press, 1993. p. 135): “unfortunately,
Kohlberg does not use the results of his study on the development of
concepts of justice to differentiate at Stage 6 between the justification
and the application of norms under conditions of procedural
impartiality. (...) However (...), he cannot avoid at least an implicit
distinction between justification and application”.
88 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
existente entre o direito e a moralidade política,
elementos rechaçados pelo positivismo de Kelsen
e de Hart. Dessa forma a aplicação das normas
se percebe como uma atividade de manutenção
da “lei e ordem”,
percebidas como um bem em
si mesmo, algo típico do estágio 4. A sofisticação
atingida pela atividade de criação de normas não
é assim acompanhada no plano da aplicação,
cujo desafio não pode ser suplantado a partir de
uma criação racionalizada de normas, como hoje
podemos perceber.
apenas no estágio 6 o modelo de comuni-
dade de princípios, como descrito por Dworkin,
pode ter pleno curso. O tipo de obrigação existente
entre os cidadãos e entre a coletividade e seus
membros não mais se baseia apenas em acordos
de tipo contratual traduzidos em regras, enten-
didas como limites, mas remete a princípios de
conteúdo moral e com apelo universalista.
Luíza
Realce
Capítulo 3
Direitos Fundamentais e
Eticidade Reflexiva
Sumário: a modernidade da sociedade moderna – Discursos
éticos, morais e jurídicos – O bom e o justo – razão prática, moral
e Direito – uma leitura contemporânea – resgate discursivo da
razão prática – a categoria do Direito na teoria discursiva
a modernidade da sociedade moderna
a modernidade da sociedade moderna, como
demonstra Raffaele De Giorgi reside em sua com-
plexidade estrutural, decorrente de um processo de
diferenciação funcional que produziu subsistemas
sociais operacionalmente diferenciados.
no campo normativo, moral, Direito e política
se diferenciam, passam a cumprir funções especí-
ficas, que não mais se confundem, e que, por isso
mesmo, podem prestar-se serviços mútuos, pois
Luíza
Realce
90 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
conquanto diferenciadas guardam entre si, como
veremos, uma relação de complementaridade.
a religião passa a ser vista como um direito
individual, não mais podendo servir de funda-
mento absoluto e unitário para a rígida e estática
estrutura hierárquica das sociedades tradicionais
ou pré-modernas e que, dessa forma, perde a sua
força de elemento aglutinador central do amál-
gama normativo indiferenciado que regia essas
sociedades em que a reprodução da ordem de
privilégios era assegurada por naturalização divi-
nizada, por seu caráter inquestionável e imutável.
a liberdade religiosa e a correlata necessidade de
reconhecimento do pluralismo religioso acabaram
por contribuir decisivamente para o desencadea-
mento do estado constitucional. É no quadro
desse processo de diluição dos fundamentos
absolutos e unitários das sociedades tradicionais
e de afirmação do pluralismo religioso, político e
social que se dá a invenção do indivíduo.
a fonte da moral passa a ser interna ao indiví-
duo, inerente à sua racionalidade. Os costumes e as
tradições perdem a força transcendente tradicional
de revelarem a “essência imutável” da sociedade,
para se transformarem em meros usos passíveis de
Luíza
Realce
91Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
serem revistos e abandonados, configurando uma
nova eticidade de cunho reflexivo. A antiga fonte
da moral, os bons costumes são agora reflexiva-
mente definidos por essas exigências universais
e abstratas de reconhecimento da igualdade e da
liberdade a que por nascimento todos os homens
têm direito. a afirmação da natureza racional
do homem implica também no reconhecimento
do indivíduo enquanto sujeito universal, agente
moral, dono do seu próprio destino. assim é pos-
sível agora que se adote uma postura crítica em
relação às normas sociais. O reconhecimento do
outro pressupõe também uma reciprocidade, ou
seja, se todos são iguais e livres, todos são autô-
nomos. esses homens egoísticos e que passam a
se autodenominar modernos, que, é claro, vivem
e sempre viveram em sociedade, vão colocar-se a
questão, totalmente esclerótica e destituída de sen-
tido para todo o pensamento clássico e medieval,
como vamos viver em sociedade? Onde termina o
meu direito e começa o do outro?
a consagração dos direitos fundamentais
pressupõe a exigência moral, universal e abstrata,
do reconhecimento dessa igualdade e dessa liber-
dade como inerentes a todos os indivíduos que
Luíza
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92 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
hoje denominamos direitos humanos e que à
época os modernos conseguiram impor como o
novo conteúdo semântico da antiga expressão
“direito natural”.62
a forma constitucional (o caráter supralegal
da Constituição, condicionando a validade de
todas as demais leis) foi uma aquisição evolutiva
tardia no processo de modernização da sociedade.
Pode-se afirmar grosso modo que, no final do
século XViii, quando os norte-americanos a
inventaram buscavam garantir uma maior subor-
dinação do direito positivo à moral, aos direitos
naturais. niklas Luhmann demonstra que essa
aquisição evolutiva veio, ao contrário, completar o
processo de diferenciação do Direito e da política,
tornando historicamente dispensável o recurso
à ideia de direito natural para a justificação do
direito. A Constituição define as bases do Direito
(os direitos fundamentais), define as bases da polí-
tica (da organização política), e articula Direito e
política de tal sorte que, por serem distintos,
podem se prestar serviços mútuos, guardando entre
si uma relação funcional de complementaridade.
62 BLumenBerG, H. The Legitimacy of Modern Age. Cambridge: mit
Press, 1985.
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93Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
a política pode prestar ao Direito moderno (um
conjunto de normas gerais e abstratas) efetivi-
dade, tornando imperativa a sua coercibilidade,
mediante a atuação do aparato estatal; ao mesmo
tempo que recebe do Direito legitimidade ao se
deixar regular por ele.63
as formas de vida de uma comunidade, o
que se considera bem viver, seus valores comparti-
lhados — seu ethos —, constituem um componente
central para a formação da identidade comum,
da autocompreensão compartilhada intersubje-
tivamente. A pergunta “quem somos nós” passa,
primeiramente, por um discurso ético de definição
e assentamento de valores, ou seja, do que é “bom
para nós”, no todo e a longo prazo.
entretanto, em sociedades modernas,
descentralizadas, pluralistas e multiculturais, o
compartilhamento de valores e a identidade de
formas de vida não são suficientes para o assegu-
ramento da coesão social. “O que é bom para nós”
torna-se, cada vez mais, uma questão no mínimo
63 LUHMANN, N. Verfassung als Evolutionäre Errungenschaft. Rechthistorisches
Journal, v. iX, p. 176-220, 1990. tradução italiana de F. Fiore. LuHmann,
n. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: zaGreBeLsKY,
Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jörg. Il futuro della
costituzione. torino: einaudi, 1996.
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94 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
polêmica.64 não mais parece plausível, e sequer
desejável, conceber as noções de vida boa como
socialmente homogêneas.
a própria compreensão contemporânea de
democracia, ao contrário da concepção identitária65
que defendia Carl Schmitt, rejeita a integração éti-
ca homogênea como requisito de validade. Como
aponta Dworkin, em sua compreensão de democra-
cia como uma parceria política coletiva, a exigência de
responsabilidade coletiva por parte dos cidadãos
requer não a homogeneidade ética, mas sim o res-
peito pelos direitos de todos os indivíduos como
membros da sociedade, isto é, como cidadãos:
a integração ética na ação coletiva de uma
comunidade a qual alguém de algum modo
64 sobre o caráter aberto da identidade constitucional, conferir
rOsenFeLD, m. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte:
mandamentos, 2003.
65 “a igualdade democrática é, em essência, homogeneidade, e, por certo,
homogeneidade do povo. O conceito central da Democracia é Povo,
e não Humanidade. (...) Democracia (...) é identidade de dominadores
e dominados, dos que mandam e dos que obedecem” (SCHMITT, C.
Teoría de la constitución. madrid: alianza, 1982. p. 230), grifamos: “La
igualdad democrática es, en esencia, homogeneidad, y, por cierto,
homogeneidad del pueblo. el concepto central de la Democracia
es Pueblo, y no Humanidad. (...) Democracia (...) es identidad de
dominadores y dominados, de los que mandan y los que obedecen.”
Chantal Mouffe promove uma releitura crítica desse conceito
schmitiano de democracia em mOuFFe, C. Pensando a democracia
moderna com, e contra, Carl Schmitt. Cadernos da Escola do Legislativo,
Belo Horizonte, n. 2, p. 87-108, jul./dez. 1994.
Luíza
Realce
95Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
pertence não é sempre apropriada e às vezes é
perversa. Certamente teria sido perverso para as
vítimas judias do Holocausto compartilhar uma
culpa coletiva pela sua existência. (...) tampouco
é apropriada para aqueles indivíduos que a
comunidade não reconhece como membros
plenos, mesmo quando esses participam da
vida política. (...) a integração ética com os
atos coletivos de uma sociedade política se
mostra apropriada apenas para os cidadãos
tratados pela sociedade como membros plenos
e iguais.66
se não podemos mais recorrer a um modelo
de vida autêntica calcado na visão religiosa
predominante — que, agora, ao invés de norma
impositiva coletivamente exigível, se configura como
simples direito individual —, em qualquer discussão
política há, portanto, a concorrência de diversas
posições, calcadas em distintas cosmovisões.
66 DWORKIN, R. The Partnership Conception of Democracy. California
Law Review, 86, p. 453-458, 1998: “ethical integration in the collective
action of a community to which one in some sense belongs is not
always appropriate and is sometimes perverse. it would surely have
been perverse for the German Jewish victims of the Holocaust to
feel a shared shame for it. (...) nor is it appropriate for those whom
the community does not recognize as full members, even when they
participate in its political life. (...) ethical integration with the collective
acts of a political society is only appropriate, that is, for citizens whom
the society treats as full and equal members of it.”
96 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
sob uma visão da teoria do direito, o
multiculturalismo suscita em primeira linha
a questão sobre a neutralidade ética da ordem
jurídica e da política. (...) Questões éticas
não se deixam julgar sob o ponto de vista
“moral” que se pergunta se algo é “igualmente
bom para todos”; sobre o fundamento de
valorações intensas, pode-se avaliar bem melhor
o julgamento imparcial dessas questões com
base na autocompreensão e no projeto de vida
perspectivo de grupos em particular, ou seja,
com base no que seja “bom para nós”, mas a
partir da visão do todo manifestada por esses
grupos. Gramaticalmente, o que está inscrito
nas questões éticas é a referência à primeira
pessoa, e com isso a remissão à identidade (de
um indivíduo ou) de um grupo.67
a diferenciação entre um discurso jurí-
dico sobre normas — entendidas, com ronald
Dworkin, como uma ordem de princípios — e
discursos éticos sobre valores preferíveis é cen-
tral para a teoria discursiva do Direito, em que
argumentos teleológicos precisam se calcar em
direitos para que possam disputar espaço com
as alegações de direitos subjetivos. isto porque
67 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo:
Loyola, 2002. p. 243.
97Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
a precedência incondicional de argumentos de
princípio sobre argumentos de política é condição
para a manutenção do sistema dos direitos e do
próprio código jurídico deontológico:
a maneira de avaliar nossos valores e a maneira
de decidir o que “é bom para nós” e o que “há
de melhor” caso a caso, tudo isso se altera de
um dia para o outro. tão logo passássemos a
considerar o princípio da igualdade jurídica
meramente como um bem entre outros, os
direitos individuais poderiam ser sacrificados
caso a caso em favor de fins coletivos.68
a semelhança entre os códigos do Direito
e da moral, quanto à incondicionalidade de
suas normas, bem como o teor universalista dos
direitos fundamentais não afasta, entretanto, a
“impregnação ética” do Estado de Direito. A neu-
tralidade ética do direito, essencial em sociedades
pluralistas, não importa num desacoplamento
entre as formas de vida e o sistema dos direitos.
entretanto, da mesma forma como as normas
morais, de conteúdo universal, têm precedências
sobre determinados valores éticos, também os
68 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo:
Loyola, 2002. p. 356.
98 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
direitos fundamentais, no âmbito de aplicação
normativa, adquirem primazia quando confron-
tados com valores. tanto decisões pragmáticas de
realização de preferências quanto valores consti-
tutivos do autoentendimento de uma comunidade
devem passar pelo crivo da compatibilidade com
os direitos fundamentais; nesse sentido, só podem
encontrar guarida jurídica integral formas de
vida reflexivas, ou seja, não fundamentalistas. Do
ponto de vista constitucional, não há que se falar
em tolerância em face de tradições ou posturas
que visem eliminar formas de vida discrepantes —
o que não significa, convém esclarecer, que os
direitos fundamentais não possam validamente
corporificar-se de formas distintas nas diversas
tradições éticas.
sabemos hoje que não há espaço público sem
respeito aos direitos privados à diferença, nem
direitos privados que não sejam, em si mesmos,
destinados a preservar o respeito público às dife-
renças individuais e coletivas na vida social. não há
democracia, soberania popular, sem a observância
dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois
aí há, na verdade, ditadura; nem constitucionalismo
sem legitimidade popular, pois aí há autoritarismo.
Luíza
Realce
99Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
Os direitos fundamentais — afirmação de
liberdade e igualdade — são hoje constitutivos
da própria forma do direito — que não pode mais
ser entendido como uma “casca vazia”, capaz de
comportar qualquer ordem baseada na legalidade,
como no modelo kelseniano, que guarda uma
conexão interna com a Democracia. Democracia e
Constituição, longe de serem conceitos antagôni-
cos, se encontram e se ressignificam na concepção
de democracia como parceria política de Dworkin:
É essencial para a idéia de democracia que ela
possibilite o auto-governo, mas só podemos
defender essa conexão essencial [com os direitos]
se concebermos a democracia como algo mais do
que a regra da maioria. Devemos compreendê-la
como um tipo de parceria entre cidadãos que
pressupõe tanto direitos individuais quanto
procedimentos majoritários.69
Entretanto, a forma de densificação desses
direitos depende da compreensão que se adote
69 DWORKIN, R. The Partnership Conception of Democracy. California
Law Review, 86, p. 457, 1998: “it seems essential
to the idea of
democracy that democracy provides self-government, but we can
claim that essential connection only if we conceive democracy as
something more than majority rule. We must understand it as a kind of
partnership among citizens that presupposes individual rights as well
as majoritarian procedures”.
Luíza
Realce
100 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
em determinado local do espaço e do tempo e das
formas de vida específicas. Mas diante da defini-
ção sempre problemática do conteúdo dos direitos
que os cidadãos se atribuem reciprocamente numa
comunidade, o apelo a uma perspectiva mais
ampla de justificação, que remeta para além de um
determinado ethos é constitutivo do processo de
luta por reconhecimento de direitos.70 O aspecto
contramajoritário dos direitos fundamentais reside
exatamente na sua pretensão universalizante —
naquilo que deve ser garantido a cada cidadão
independentemente dos valores compartilhados
pela eventual maioria — possibilitando assim que
a tensão entre argumentos de apelo majoritário e
minoritário opere continuamente, de forma que
as posturas comunitárias ético-políticas não per-
cam sua reflexividade e, portanto, seus potenciais
inclusivos e emancipatórios.
Essa condição de reflexividade ética é essen-
cial, como vimos, para a ideia de comunidade de
princípios, de integridade e, portanto, para a ideia
de única resposta correta, permitindo que a cadeia
histórica do direito possa ser relida e reapropriada
tendo-se como crivo os direitos fundamentais.
70 Cf. HOnnetH, a. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos
conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
Luíza
Realce
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101Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
Discursos éticos, morais e jurídicos – O bom
e o justo
Valemo-nos aqui da diferenciação, feita por
Habermas, entre discursos pragmáticos, éticos e morais
como distintos usos para uma mesma forma de
racionalidade: a razão prática.71 interessa-nos, prin-
cipalmente, a distinção entre questões morais de
justiça e questões éticas de autoentendimento:
em um dos casos abordamos um problema sob
o ponto de vista que se pergunta sobre qual
a regulamentação mais adequada ao interesse
equânime de todos os atingidos (sobre “o que é
bom em igual medida para todos”); no outro caso,
ponderamos as alternativas de ação a partir da
perspectiva de indivíduos ou de coletividades
que querem se assegurar de sua identidade, bem
como saber que vida devem levar, à luz do que
são e do que gostariam de ser (ou seja, querem
saber “o que é bom para mim, ou para nós, no todo
e a longo prazo”).72
Os discursos jurídicos, por sua vez, incor-
poram argumentos das mais variadas ordens.
71 HaBermas, J. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática.
In: STEIN, E.; BONI, L. D. Dialética e liberdade. Porto alegre: Vozes.
1992. p. 288-304.
72 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo:
Loyola, 2002. p. 303.
102 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
enquanto argumentação prática, a argumentação
jurídica se vale, no plano da justificação das nor-
mas — que se dá, de maneira central, nas arenas
parlamentares —, tanto de discursos pragmáticos
quanto éticos e morais, além das negociações
reguladas por procedimentos.73
isso se revela no espectro amplo de razões que
desempenham um papel na formação racional
da opinião e da vontade do legislador político:
ao lado de ponderações morais, considerações
pragmáticas e dos resultados de negociações
justas e honestas, também as razões éticas
desempenham um papel nos aconselhamentos
e justificações de decisões políticas.74
uma vez integrados na norma jurídica, entre-
tanto, tais argumentos morais (que dizem respeito
ao que é justo), ético-políticos (referentes à auto-
compreensão valorativa dos cidadãos e aos proje-
tos de vida coletivos que pretendem empreender),
73 Contra um conceito “puramente dialógico” de processo legislativo,
conferir a réplica de Habermas a Frank michelman em rOsenFeLD,
M.; ARATO, A. Habermas on Law and Democracy: Critical exchanges.
Berkeley: university of California Press, 1998.
74 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são
Paulo: Loyola, 2002. p. 245.
103Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
bem como pragmáticos (de adequação de meios
a fins) passam a obedecer à lógica deontológica
dos discursos jurídicos, com seu código binário
de validade.75
O direito (com seu código jurídico/não jurí-
dico) é deontológico como a moral (cujo código
binário implica na distinção justo/injusto), mas
dessa se diferencia, para além de seu espectro
argumentativo, por ser um sistema de ação, além
de um sistema de conhecimento. Disso decorre que
o direito se compromete com resultados e neces-
sita de um aparato coercitivo que lhe empreste
efetividade. O direito não pode depender ape-
nas, como a moral, da motivação interna de cada
indivíduo. além disso, o ordenamento jurí-
dico se refere a uma comunidade política
concreta, a uma república de cidadãos. Dessa
forma, seu âmbito de universalidade é redu-
zido em relação à moral, que busca se referir
à humanidade.
75 “(...) a expressão ‘deontológico’ refere-se em primeiro lugar apenas a
um caráter obrigatório codificado de maneira binária. Normas são ou
válidas ou inválidas, enquanto valores concorrem pela primazia em
relação a outros valores e precisam ser situados caso a caso em uma
ordem transitiva” (HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria
política. são Paulo: Loyola, 2002. p. 356).
104 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
razão prática, moral e Direito – uma leitura
contemporânea
resgate discursivo da razão prática
Habermas resgata a tradição kantiana de
razão prática, compreendendo a moral como o âmbito
de atribuição de validade a normas universais. O
faz, entretanto, não mais nos termos de uma filosofia
da consciência — que tomava o sujeito cognoscente
como ponto de partida e referencial epistêmico —
mas de uma filosofia da linguagem — que se baseia
no caráter intersubjetivo de validação de todo
saber —, valendo-se de uma compreensão de racio-
nalidade comunicativa potencialmente emancipa-
dora, ancorada no mundo da vida, portanto gerada
e operada intersubjetivamente.
a teoria da ação comunicativa é mais ampla
que uma teoria da moral. ela é diferente
da filosofia prática como a conhecemos de
aristóteles e de Kant. ela não fundamenta
simplesmente normas morais ou ideais políticos.
ela tem, adicionalmente, um sentido descritivo,
identificando na própria prática cotidiana
a voz persistente da razão comunicativa,
mesmo em situações em que essa está
subjugada, distorcida e desfigurada. Insisto nos
potenciais de racionalidade da “Lebenswelt”
Luíza
Realce
105Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
(do mundo vivido), em que as fontes da
resistência conseguem regenerar-se, mesmo sob
condições desesperadoras.76
a validação discursiva das normas morais
resgata a herança universalista do imperativo cate-
górico de Kant, mas não é mais um procedimento
monológico a priori, pois passa a depender de um
discurso público a ser desenvolvido em condições
de liberdade e igualdade comunicativas. na ética
do discurso habermasiano o princípio verificador
da universalidade de pretensões
normativas é o
princípio “U”, assim enunciado: “todas as normas
válidas precisam atender à condição de que as
conseqüências e efeitos colaterais que presumi-
velmente resultarão da observância geral dessas
normas para a satisfação dos interesses de cada
indivíduo possam ser aceitas não-coercitivamente
por todos os envolvidos”.
Habermas sustenta o caráter universalista
dos direitos fundamentais — positivados nas
constituições modernas — contra pretensões
fortemente relativistas, bem como seu papel
76 HaBermas, J. Jürgen Habermas fala a Tempo Brasileiro. entrevista
concedida a Barbara Freitag. Revista Tempo Brasileiro, rio de Janeiro,
n. 98, p. 9, 1989.
Luíza
Realce
106 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
de precedência incondicionada diante de
argumentações ético-políticas, embora reconheça
a impregnação ética das diversas ordens jurídi-
cas como constitutiva das identidades coletivas.
Levando-se em conta que os princípios do
estado de Direito e os direitos fundamentais são
determinados em abstrato, Habermas ressalta,
todavia, que os mesmos só podem ser encon-
trados em constituições históricas e sistemas
políticos específicos.
através de sua teoria discursiva, Habermas
dá continuidade à pretensão universalista do ilu-
minismo de reconhecimento de igual dignidade
a toda pessoa, enquanto sujeito de direitos, numa
perspectiva política de igualitarismo liberal,77
77 Vera Karam de Chueiri assim define a moderna democracia liberal e a
sua articulação entre direitos e democracia: “modern liberal democracy
articulates two different traditions: the democratic and the liberal one.
the democratic tradition goes back to the ancient world and is ordinarily
identified with the right to directly participate in the administration of
the res publica. the most known picture of it is that of an assembly of
individuals to deliberate about their community’s (public) affairs. The
very idea of public has to do with this gathering for deliberating in a
place accessible to every man. However, the democratic picture gains
a new contour with the liberal trace. Liberalism, especially from the
nineteenth century on, implies the idea of representation in the domain
of the res publica, the idea of liberty and, accordingly, the idea of pluralism
(it is possible to have more than one notion of the good)” [CHUEIRI,
V. K. D. Before the law: Philosophy and Literature (the experience of
that Which one cannot Experience). Graduate Faculty of Political and Social
Science, new York, new school university, Ph.D.: 262, 2004].
Luíza
Realce
107Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
afinal “um acordo sobre normas (...) não depende
da estima mútua de performances culturais e
estilos de vida culturais, mas apenas da suposi-
ção de que toda pessoa, enquanto pessoa, tem o
mesmo valor”.78
a categoria do Direito na teoria discursiva
Levando-se em conta que os princípios do
estado de Direito e os direitos fundamentais são
determinados em abstrato, Habermas ressalta,
todavia, que os mesmos só podem ser encontrados
em constituições históricas e sistemas políticos
específicos. A interpretação e incorporação desses
princípios se dão em ordens jurídicas concretas.
segundo Habermas, para além de variantes na
realização de mesmos direitos ou dos mesmos
princípios, essas ordens jurídicas concretas refle-
tem também diferentes paradigmas.
Para o autor, os dois paradigmas jurídicos
mais bem sucedidos na história do direito moderno
são, respectivamente, o paradigma do estado Libe-
ral e o paradigma do estado social (welfare state).
78 HaBermas, J. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo:
Loyola, 2004. p. 326.
108 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
Cada um deles fornece um modelo vivenciado de
sociedade e de reprodução do poder político a par-
tir dos quais se pode compreender a complexidade
das relações entre autonomia privada e autonomia
pública historicamente concretizadas.79
em breve síntese, sobre o pano de fundo
paradigmático do estado Liberal, o papel do
estado e dos direitos fundamentais pode ser
resumido à garantia do indivíduo contra a inva-
são indevida do estado em sua esfera de liberdade
“natural”, tida como pré-política. Verifica-se a
preponderância da ideia de autonomia privada,
anterior e condicionante do exercício da autono-
mia pública. Já na concepção do estado social,
há uma mudança na “seta valorativa” do papel
do estado e dos direitos fundamentais (agora
responsável por prestações positivas de bens e
serviços aos cidadãos-clientes, de acordo com
as necessidades determinadas pela burocracia
estatal). Percebe-se a preponderância da ideia
de autonomia pública, onde a própria esfera pri-
vada é vista como delimitada pela noção de bem
comum, programada a partir de uma burocracia
79 sobre os paradigmas jurídicos modernos, cf. HaBermas, J. Direito
e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo
Brasileiro, 1997. cap. iX, p. 123-192.
109Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
tecnocrata. em ambas as concepções a noção de
público se remete unicamente ao estado.80
a liberdade, tal como a entendemos, requer
o respeito às diferenças e assim se assenta, pois
supõe o reconhecimento da igualdade de todos,
embora diferentes. esses princípios (igualdade e
liberdade), de início formais, reclamaram a sua
materialização em um segundo momento. essa
materialização foi buscada, no entanto, ao preço
da formalidade. e hoje vivemos um momento
em que sabemos que forma e matéria são equi-
primordiais, que a materialização, conquanto
importante, deve resultar do próprio processo
de afirmação dos sujeitos constitucionais e contar
com garantias processuais (formais) de partici-
pação e de controle por parte dos afetados pelas
medidas adotadas em seu nome, e, pelo menos
retoricamente, visando o seu bem-estar, sob
pena de se institucionalizar o oposto do que se
pretendera ou se afirmara pretender. Em outros
termos, essa exigência idealizante é uma exigência
de democracia e sabemos que a democracia é um
regime improvável, pois sempre requer que se
80 CarVaLHO nettO, m. D. requisitos pragmáticos da interpretação
jurídica sob o paradigma do estado Democrático de Direito. Revista de
Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, maio 1999.
Luíza
Realce
110 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
corra o risco ínsito às suas práticas, ou, do contrário,
instauramos a ditadura. nada pode prepará-la,
pode-se apenas buscar praticá-la e sempre de modo
tendencial, a construir instituições que possam lidar
com a possibilidade inafastável da burocratização,
da corrupção, das tentativas de golpe, etc.
Para Habermas nenhum desses dois mode-
los vivenciados é capaz de dar conta da comple-
xidade da sociedade contemporânea, bem como
do papel exercido pelo estado na efetivação dos
direitos fundamentais. Como compreender o
Direito como um meio legítimo de integração
social? Para que se possa compreender o sistema
do Direito de forma procedimentalista, os papéis
do estado e dos Direitos Fundamentais se tor-
nam mais complexos, requerendo uma análise
reconstrutiva que leve em consideração diferentes
pontos de vista disciplinares, onde o papel de
“observador” não se desliga do de cidadão, enten-
dido como coautor das normas que o regem.
a teoria discursiva do Direito e da Demo-
cracia rompe
com os modelos explicativos tra-
dicionais ao fundar a legitimidade do direito
moderno numa compreensão discursiva da
Democracia. Como demonstrado pela própria
Luíza
Realce
111Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
história institucional da modernidade, o direito
positivo, coercitivo, que se faz conhecer e impor
pelo aspecto da legalidade precisa, para ser legítimo,
ter sua gênese vinculada a procedimentos demo-
cráticos de formação da opinião e da vontade
que recebam os influxos comunicativos gerados
numa esfera pública política e onde um sistema
representativo não exclua a potencial participação
de cada cidadão, cujo status político não depende
de pré-requisitos (de renda, educação, nascimento
etc.). a essa relação entre positividade e legitimi-
dade Habermas denomina tensão interna entre
faticidade e validade, pois presente no interior
do próprio sistema do Direito.
Como resposta ao problema da legitimidade,
Habermas se vale então de um terceiro paradigma
jurídico (ou jurídico-político), capaz, por sua vez,
de absorver criticamente os outros dois. a concep-
ção procedimentalista do Direito importa numa
específica compreensão de justiça política:
(...) na razão prática corporalizada em procedi-
mentos e processos está inscrita a referência a
uma justiça (entendida tanto em sentido moral
quanto jurídico) que aponta para além do
ethos concreto de determinada comunidade
Luíza
Realce
112 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
ou da interpretação de mundo articulada em
determinada tradição ou forma de vida.81
no estado Democrático de Direito o poder
político, para ser legítimo, deve derivar do poder
comunicativo gerado a partir da esfera pública
política. O estado, embora ocupe o centro dessa
esfera pública, com os complexos parlamentares,
não mais se confunde com a mesma, em seu todo
(como se concebia nos paradigmas liberal e social,
especialmente nesse último). a sociedade civil,
seus movimentos sociais, organizações e asso-
ciações de toda ordem, os meios de comunicação
de massa, partidos políticos etc., compõem um
complexo mais ou menos institucionalizado de
formação, reprodução e canalização da opinião
pública e da vontade política que, filtrados por
sua pertinência, constituem o input dos órgãos
políticos estatais.
a oposição entre estado e sociedade, quanto
à titularidade da interpretação do sistema dos
direitos mostra-se agora falsa quando, tanto em
sua gênese quanto na reprodução e reconstrução
hermenêutica do sentido de suas normas, o
81 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são
Paulo: Loyola, 2002. p. 303.
Luíza
Realce
113Capítulo 3
Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva
Direito “pertence” a uma comunidade aberta de
intérpretes da Constituição (para dizermos com
Peter Häberle)82 ou a uma comunidade de princípios
(com ronald Dworkin).
também para Dworkin a correção normativa
possui um caráter deontológico e socialmente
enraizado. a moralidade política de uma comu-
nidade se fundamenta racional e vivencialmente,
sendo mais que uma mera expressão de vontades,
gostos, preferências ou interesses de determinados
indivíduos, grupos ou classes sociais. entretanto
Dworkin, assim como Habermas e Günther, relê
essa perspectiva kantiana das normas levando em
consideração a dimensão da aplicação normativa —
especialmente do Direito — como distinta da tarefa
de fundamentação. e essa mesma dimensão da
aplicação, que se apresenta de forma institucional,
na teoria de Dworkin supera uma perspectiva
monológica típica da filosofia do sujeito por supor
uma comunidade de princípios cujas instituições
atuam numa cadeia do direito, ou seja, com respeito à
integridade do direito, o que implica em que se leve
em consideração as decisões políticas e jurídicas
82 HaBerLe, P. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista
e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1997.
114 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
do passado em seu sentido performativo, para
além da textualidade:
a interpretação propriamente constitucional con-
sidera tanto o texto como a prática passada como
seu objeto: advogados e juízes confrontados com
uma questão constitucional contemporânea devem
buscar construir uma interpretação coerente, prin-
cipiológica e persuasiva do texto de dispositivos
específicos, da estrutura da Constituição como um
todo, e da nossa história constitucional. (...) Ou seja,
eles devem buscar a integridade constitucional.83
exatamente em função dessa dimensão
vivencial, pragmática dos princípios, assumidos
como componentes necessariamente presentes
na autocompreensão normativa das sociedades
pós-convencionais, em contextos epistemologica-
mente cientes da contingência e precariedade da
validade e verdade de proposições linguísticas,
não se atribui a eles uma natureza metafísica, mas
claramente social, histórica, intramundana.
83 DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In: DWORKIN, R. Justice
in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 118: “Proper
constitutional interpretation takes both text and past practice as its
object: lawyers and judges faced with a contemporary constitutional
issue must try to construct a coherent, principled and persuasive
interpretation of the text of particular clauses, the structure of the
Constitution as a whole, and our history under the Constitution. (...)
They must seek, that is, constitutional integrity”.
Luíza
Realce
Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação
dos Princípios
Sumário: O pós-positivismo como retórica: alexy e a continuidade
dos elementos centrais do positivismo normativo e filosófico na
aparente ruptura com o positivismo jurídico – O retorno às regras –
Limites internos e externos e o “conflito de valores” – Pluralismo
moral e incompatibilidade entre princípios – O conflito jurídico,
os textos normativos e as pretensões abusivas a direitos – O stF
e o caso ellwanger
O pós-positivismo como retórica: alexy
e a continuidade dos elementos centrais
do positivismo normativo e filosófico na
aparente ruptura com o positivismo jurídico –
O retorno às regras
uma outra leitura do papel dos princípios
jurídicos é feita por robert alexy, principal
representante da teoria axiológica dos direitos
116 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
fundamentais na alemanha, com grande
repercussão acadêmica e institucional no Brasil.
Valendo-se da distinção proposta por Dworkin
entre regras e princípios,84 alexy promove uma
leitura dessa dicotomia como sendo inerente à
estrutura das normas jurídicas,85 mantendo as
regras como normas precedentes aos princípios
na tarefa de aplicação:
a teoria dos princípios não diz que o catálogo
dos direitos fundamentais não contém regras;
isto é, que ela não contém definições precisas. Ela
afirma não apenas que os direitos fundamentais,
enquanto balizadores de definições precisas e
definitivas, têm estrutura de regras, como também
acentua que o nível de regras precede prima facie ao
nível dos princípios. O seu ponto decisivo é o de que
atrás e ao lado das regras existem princípios.86
as noções de lacuna e discricionariedade típi-
cas da concepção positivista das normas também
84 aLeXY, r. Teoria de los derechos fundamentales. madrid: Centro de
estudios Constitucionales, 1993. p. 87 et seq.
85 aLeXY, r. On the structure of Legal Principles. Ratio Juris, v. 13, n. 3,
p. 294-304, 2000.
86 robert alexy, em conferência proferida no rio de Janeiro em 1998,
transcrito e traduzido em menDes, G. F. Direitos fundamentais e
controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. são
Paulo: saraiva, 2004. p. 26, destacamos.
Luíza
Realce
117Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
são mantidas pela teoria das normas de alexy,
que rejeita a tese da única resposta correta. Para
o autor apenas uma implausível teoria “forte”
dos princípios, capaz de determinar a priori todas
as relações entre normas em todas as possíveis
situações de aplicação, poderia sustentar a tese
da única resposta correta:
a variante mais forte [de uma teoria dos princípios]
seria uma teoria que contivesse além de todos os
princípios, todas as relações de prioridade abstratas
e concretas entre eles e, portanto, determinasse
univocamente a decisão em cada um dos casos.
se fosse possível uma teoria dos princípios da
forma mais forte, seria certamente acertada a tese
de Dworkin da única resposta correta.87
além disso, a plausibilidade da única decisão
correta requereria, para alexy, um consenso, uma
irrestrita concordância entre a comunidade de
argumentação, numa situação ideal onde tempo,
informação e disposição fossem ilimitados.
87 aLeXY, r. sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica.
Doxa, n. 5, p. 145, 1988: “La variante más fuerte sería una teoría que
contuviera, además de todos los principios, todas las relaciones de
prioridad abstractas y concretas entre ellos y, por ello, determinara
unívocamente la decisión en cada uno de los casos. si fuera posible una
teoría de los principios de la forma más fuerte, sería sin duda acertada
la tesis de Dworkin de la única respuesta correcta”.
118 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
a questão da única resposta correta depende
essencialmente de se o discurso prático leva
a uma única resposta correta para cada caso.
Levaria a ela se a sua aplicação garantisse
sempre um consenso. um simples esboço já
mostra claramente que várias de suas exigências,
sob condições reais, só se podem cumprir de
maneira aproximada.88
Aqui fica claro que Alexy não compreende
bem a ideia de Dworkin da “única resposta cor-
reta”. Ela em definitivo não depende de um real
consenso sobre a sua correção, mas de uma pos-
tura hermenêutica diante do caso, dos princípios
jurídicos de todo o ordenamento e da história
institucional. Dworkin buscou deixar isso claro
desde o Levando os direitos a sério, em 1977:
essa teoria não defende que exista qualquer
procedimento mecânico que demonstre quais
são os direitos das partes nos casos difíceis. Pelo
contrário, o argumento supõe que juristas e juízes
88 aLeXY, r. sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica.
Doxa, n. 5, p. 150-151, 1988: “La cuestión de la única respuesta correcta
depende esencialmente de si el discurso práctico lleva a una única
respuesta correcta para cada caso. Llevaría a ello si su aplicación
garantizara siempre un consenso. Ya un simple esbozo muestra
claramente que varias de sus exigencias, bajo condiciones reales, sólo
se pueden cumplir de manera aproximada”.
Luíza
Realce
119Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
razoáveis irão muitas vezes divergir sobre os direitos,
assim como cidadãos e políticos divergem sobre
questões políticas. [essa discussão] descreve as
questões que juízes e juristas devem colocar para
si próprios, mas isso não garante que todos eles darão
a mesma resposta a essas questões.89
Como se percebe, ao contrário de alexy a
teoria de Dworkin não levanta a pretensão de
cunhar um procedimento metodológico “racio-
nal” capaz de fornecer a correção das decisões
jurídicas.90 Resta implausível, portanto, a afir-
mação feita por alexy de que a tese da única
resposta correta de Dworkin derivaria de um
“racionalismo metodológico”.91 Pelo contrário,
como vimos, a afirmação da possibilidade de
uma atividade cognoscente reside precisamente
89 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard
university Press, 1977. p. 81: “it is no part of this theory that any
mechanical procedure exists for demonstrating what the rights of
parties are in hard cases. On the contrary, the argument supposes
that reasonable lawyers and judges will often disagree about legal
rights, just as citizens and statesmen disagree about political rights.
this chapter describes the questions that judges and lawyers must put
to themselves, but it does not guarantee that they will all give these
questions the same answer”.
90 Cf. aLeXY, r. Discourse theory and Fundamental rights. In: menÉnDez,
Agustin J.; ERIKSEN, Erik O. Arguing Fundamental Rights. Dordrecht:
springer, 2006. p. 15-30.
91 aLeXY, r. Teoria de los derechos fundamentales. madrid: Centro de
estudios Constitucionales, 1993. p. 528.
120 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
no aprendizado decorrente da dificuldade das
tarefas de aplicação, sobretudo vivencialmente.
em Dworkin estamos certamente num terreno de
racionalidade que se sabe limitada. a postura, e
não o método, é determinante.
a tarefa propriamente de aplicação dos prin-
cípios é então recusada por alexy, ao considerá-la
como algo idêntico à legislação, uma atividade de
balanceamento de valores concorrentes, passíveis de
tratamento metodológico e sujeitos a hierarquiza-
ção. Direitos, entendidos como interesses, devem
assim ser sacrificados de acordo com seu grau
de relevância, e os princípios ensejam múltiplas
possibilidades de decisão correta disponíveis à
discricionariedade do aplicador.
Robert Alexy afirma apoiar-se em Dworkin
para, no entanto, retornar a uma concepção de
fórmulas metodológicas heurísticas, reduzindo
os princípios a políticas, ou seja, a normas de
aplicação gradual, retomando as regras como
normas capazes de, por si sós, regularem a sua
situação de aplicação, já que seriam aplicáveis na
base do tudo ou nada, como se a distinção entre
princípios e regras em Dworkin fosse simples-
mente morfológica. Os direitos fundamentais
Luíza
Realce
Luíza
Realce
121Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
que, em Dworkin, condicionam a legitimidade
das políticas públicas, na teoria de alexy, perdem
precisamente essa dimensão.
Limites internos e externos e o “conflito de
valores”
Valendo-se da teoria de robert alexy,
Gilmar mendes92 expõe concepções concorrentes
quanto à relação entre direito individual e restri-
ção. Para a teoria externa os direitos podem ser, a
princípio, ilimitados, sendo que sua conformação
com o restante do ordenamento jurídico se daria
mediante restrições externas ao próprio direito.
Já segundo a teoria interna direitos individuais e
restrições não seriam categorias autônomas, mas
o próprio conteúdo dos direitos implicaria em
limites inerentes ao seu conceito, e não em restri-
ções externas. Para o autor
se se considerar que os direitos individuais
consagram posições definitivas (Regras: Regel),
então é inevitável a aplicação da teoria interna.
Ao contrário, se se entender que eles definem
92 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:
estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 25.
Luíza
Realce
122 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs
Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
apenas posições prima facie (prima facie
Positionen: princípios), então há de se considerar
correta a teoria externa.93
também com base em alexy, mendes aponta
problemas numa teoria de interpretação que reduza
o papel do legislador a simplesmente declarar o
que já se encontra positivado nos direitos funda-
mentais, confirmando o juízo de ponderação feito
pelo constituinte, sendo que, de fato, para o autor,
autênticas limitações aos direitos individuais são
realizadas pelo legislador — limitações externas.
marca-se aqui a diferença entre as denomi-
nadas teorias interna e externa das limitações a
direitos. Pois da perspectiva interna a diferença
entre limitação e (re)definição de sentido carece
de força explicativa, desde que respeitada a
integridade do Direito, parâmetro que marca a
diferença entre interpretação constitucional e abuso
de direito. além disso, ao menos no âmbito dos
direitos fundamentais, a tensão entre abstração e
concretude inerente aos princípios de conteúdo
universal torna as atividades de criação e interpre-
tação internamente complementares, visto que a
93 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:
estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 26.
Luíza
Realce
123Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
densificação desses princípios pela via legislativa —
e, guardadas as especificidades do discurso de apli-
cação, também pela via judicial — envolve tanto
a confirmação da garantia fundamental quanto
inovação no complexo quadro do ordenamento
jurídico. isso porque numa concepção principio-
lógica da ordem constitucional a distinção entre
direitos enumerados e não enumerados94 se revela
problemática, pois a abertura semântica inerente
à complexidade plural do constitucionalismo
moderno não nos permite traçar uma moldura
interpretativa do conteúdo dos direitos funda-
mentais como numerus clausus.
É a integridade do direito, no exercício her-
menêutico que se volta tanto para o passado
quanto para o futuro, que marcará a diferença
entre densificação e descumprimento dos princí-
pios fundamentais, especialmente mediante a
capacidade e a sensibilidade do intérprete de, no
processo de densificação e concretização norma-
tivas, diante de uma situação concreta de apli-
cação, impor normas que se mostrem adequadas
a reger essa situação de modo a dar pleno curso
94 DWORKIN, R. The Concept of Unenumerated Rights. University of
Chicago Law Review, 59, p. 381-432, 1992.
Luíza
Realce
Luíza
Realce
124 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
ao Direito em sua integridade, a reforçar a crença
na efetividade da comunidade de princípios.
Mesmo em um contexto de filosofia da lingua-
gem, em que os supostos se assentam em termos
discursivos e não mais em uma suposta estrutura
da consciência humana, é o critério kantiano de
legitimidade normativa, o imperativo categórico,
a requerer como condição de validade da norma
a sua universalidade, que continua a ser o critério
basilar nos discursos de elaboração legislativa
ou de justificação normativa, apenas que agora
traduzido em termos discursivos: “legítimas são
as normas passíveis de serem aceitas por todos
os seus potenciais afetados”. Contudo, ainda que
uma norma passe por esse crivo, isso não mais
significa que ela deva ser aplicada a todos os
casos em que aparentemente poderia se aplicar
segundo a alegação dos próprios envolvidos. ao
contrário, como veremos, a legitimidade ou a
constitucionalidade de uma norma não significa,
por si só, que pretensões abusivas não possam ser
levantadas em relação à sua aplicação aos casos
concretos. Por isso mesmo, embora o uso abusivo
e instrumental do direito seja sempre possível,
encontramo-nos hoje em condições de exigir,
Luíza
Realce
125Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
na prática, que pretensões desse tipo não mais
possam encontrar guarida sob o Direito, refor-
çando a postura interna do cidadão que assume
os seus direitos como condição de possibilidade
da própria comunidade de princípios fundada
no igual respeito e consideração devido a todos
os seus membros.
O problema central da chamada teoria externa
é conceber os direitos como a princípio ilimitados,
carecedores de atos externos legislativos ou judi-
ciais para lhes emprestar limites, de forma consti-
tutiva. Ora, mesmo no silêncio do texto qualquer
direito, inclusive os clássicos direitos individuais,
só pode ser compreendido adequadamente como
parte de um ordenamento complexo.
toda nossa experiência histórica acumu-
lada, o aprendizado duramente vivido desde o
alvorecer da modernidade não mais nos permite
reforçar a crença ingênua, por exemplo, de que
os direitos “de primeira geração”, originalmente
afirmados no marco do paradigma constitucional
liberal como egoísmos anteriores à vida social,
ainda possam ser validamente compreendidos
como simples limites à ação, enfocados da pura
perspectiva externa do observador.
Luíza
Realce
126 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
essa mesma vivência geracional permite
que, no pano de fundo de compreensão que
compartilhamos, encontre-se disponível para
nós a condição de vermos a possibilidade de que
pretensões abusivas em relação a direitos gené-
rica e abstratamente prefigurados em lei tendam
a ser levantadas nos casos concretos, na vida
cotidiana, precisamente na tentativa de, a partir
da perspectiva de um observador externo que
apenas deseja obter vantagens a qualquer custo,
acobertar ações que, se, a primeira vista poderiam
passar como o simples exercício de um direito, na
verdade, já seriam condenáveis e não admissíveis
pelo próprio Direito quando considerado em seu
todo, em sua integridade. Pregar, por exemplo, a
eliminação ou mesmo a discriminação de pessoas
simplesmente por serem portadoras de determi-
nadas características supostamente raciais não é
exercício do direito de liberdade de expressão, é
preconceito que, em nosso ordenamento é crime, e
mais, crime imprescritível. exigir que a secretária
executiva cumpra o dever legal de fidelidade ao
seu chefe não a exime de (e muito menos a obriga
a) ser cúmplice de um desfalque, de um peculato
ou mesmo de um assassinato.
127Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
É que, na modernidade, a edição de normas
gerais, hoje sabemos bem, não elimina o problema
do Direito, tal como ansiado nos dois paradig-
mas anteriores e neles vivencialmente negado,
mas, pelo contrário, o inaugura. O problema do
Direito moderno, agora claramente visível graças
à vivência acumulada, é exatamente o enfrenta-
mento consistente do desafio de se aplicar ade-
quadamente normas gerais e abstratas a situações
de vida sempre individualizadas e concretas, à
denominada situação de aplicação, sempre única
e irrepetível, por definição. O Direito moderno,
enquanto conjunto de normas gerais e abstratas,
torna a sociedade mais e não menos complexa.
Complexidade que envolve uma faceta que não
mais pode se confundir com o exercício legítimo
de direitos, a das pretensões abusivas que a mera
edição em texto do direito na forma de norma
geral e abstrata incentiva. e isso porque ela (a
norma) pode e tende a ser enfocada também da
perspectiva de um mero observador interessado
em sempre levar vantagem, o que vem ressaltar
um aspecto central que hoje reveste os direitos
fundamentais enquanto princípios constitucionais
fundantes de uma comunidade de pessoas que se
Luíza
Realce
128 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
reconhecem como reciprocamente merecedoras
de igual respeito e consideração em todas as situa-
ções de vida concreta em que se encontrem e que
Konrad Hesse denominou a “força irradiadora
dos princípios”.
assim é que é precisamente a visibilidade
dessa força irradiadora dos princípios que nos
habilita a lidar de forma consistente com as
pretensões abusivas enquanto tais, não mais as
confundindo com o regular exercício de direi-
tos. Não somente não é suficiente tomarmos os
direitos como meros limites, mas torna-se clara
agora a exigência dworkiana de que sempre
sejam levados a sério, ou seja, de que sempre
sejam considerados como condição de possi-
bilidade da liberdade. esse conteúdo moral do
Direito só pode ter curso quando assumido da
perspectiva interna do participante, do cidadão.
muito embora, é claro, o conteúdo moral do
Direito não o transforme em moral, pois continua
a operar como Direito (visando regular o compor-
tamento externo das pessoas e não as suas cren-
ças internas), deve ser levado a sério no terreno
dos discursos de aplicação pois permite tratar
de forma consistente as pretensões abusivas,
Luíza
Realce
129Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
buscando coibir e não incentivar o uso estratégico
do Direito, que se mostra agora claramente como
um uso contrário ao próprio Direito, como um
abuso, um atentado contra a mesma comunidade
de princípios que o Direito institui, viabiliza e pela
integridade da qual deve zelar.
a tensão entre público e privado perpassa
qualquer direito, seja individual, coletivo ou difuso.
isso compõe o pano de fundo do estágio histórico
da nossa compreensão dos direitos, e se torna
indisponível quando da atribuição de sentido a
um direito como o de propriedade. independente
de menção expressa na Constituição, todo direito
individual deve cumprir uma função social, e isso
integra internamente seu próprio sentido para que
possa ser plausível.
essa leitura principiológica e sistêmica exi-
gida pela chamada teoria interna exerce força expli-
cativa mesmo para mendes que, embora advogue
a concepção externa de restrições, não raro afirma
interpretações que levam em conta os requisitos
de uma hermenêutica atenta ao sentido imanente
dos princípios num paradigma constitucional
democrático, para além das previsões textuais.
130 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
É o que se verifica em sua leitura do inciso LXVI
do art. 5º da Constituição:95
no que se refere à liberdade provisória,
também optou o constituinte, aparentemente,
por conferir amplo poder discricionário ao
legislador, autorizando que este defina os casos
em que seria aplicável o instituto. É quase certo
que a expressão literal aqui é má conselheira
e que todo o modelo de proteção à liberdade
instituído pela Constituição recomende uma
leitura invertida, segundo a qual haverá de
ser admitida a liberdade provisória, com
ou sem fiança, salvo em casos excepcionais,
especialmente definidos pelo legislador.96
Ora, qual o caráter externo da limitação da
restrição da liberdade provisória, senão o pró-
prio sentido (interno) dessa garantia no contexto
constitucional democrático, como densificação
dos princípios da liberdade e da igualdade?
naturalmente não nos referimos a esse caráter
interno como algo ontológico, transcendente,
95 “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir
liberdade provisória, com ou sem fiança;” (BRASIL. Constituição
(1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
96 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:
estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 34-35.
131Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
metassocial ou metalinguístico, visto que a
natureza dinâmica de qualquer semântica,
especialmente das normas, se tornou patente
após a virada linguístico-pragmática empreen-
dida pela Filosofia em meados do século XX,
cujos efeitos se espraiam por todos os campos do
saber. É claro que essa atribuição de sentido às
normas é sempre uma disputa acerca do seu sig-
nificado, já que, como qualquer texto, também os
normativos requerem a contribuição construtiva
dos intérpretes ou destinatários.
Quanto aos direitos fundamentais sem
expressa previsão de reserva legal, afirma
mendes que
também nesses direitos vislumbra-se o perigo
de conflitos em razão de abusos perpetrados por
eventuais titulares de direitos fundamentais.
mas, estando o legislador a princípio impedido
de “limitar” tais direitos, de forma a coibir
abusos, as “colisões de direitos” ou “entre
valores” poderiam ser impedidas mediante o
excepcional apelo “à unidade da Constituição e
à sua ordem de valores”, segundo interpretação
da Corte Constitucional alemã.97
97 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:
estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 40.
Luíza
Realce
132 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
se, por outro lado, adotarmos a concepção
segundo a qual nenhum Direito Constitucional
é “ilimitado”, em face da própria Constituição, a
tarefa interpretativa a ser adotada por qualquer
cidadão em geral e, mais ainda pelos órgãos
encarregados do desenvolvimento e da aplica-
ção do Direito, do legislador ao administrador,
culminando com o juiz, precisamente porque
enquanto atribuição de sentido a textos é sempre
conformadora dos seus conteúdos normativos,
deve levá-los em conta, sem que isso, portanto,
possa importar em qualquer redução do “âmbito
de proteção” de um direito, mas simplesmente
no controle que afirma como inadmissíveis juri-
dicamente as pretensões abusivas que certamente
serão levantadas em relação a ele. O direito,
entendido em sua integridade, não pode se vol-
tar contra o próprio direito. Por isso a figura da
colisão não retrata de maneira plausível a tensão
imanente ao ordenamento jurídico. além disso,
é de se lembrar que abusos no campo das pre-
tensões a direitos sempre se apresentarão como
pretensões legítimas e fundadas na própria regu-
lação legislativa. aliás, é precisamente a previsão
legislativa genérica e abstrata dos direitos que, por
133Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
si só, incentiva pretensões abusivas. no contexto
de uma racionalidade que se saiba limitada, por-
tanto, não há qualquer plausibilidade racional na
crença de que se possa eliminar pretensões abu-
sivas mediante a simples edição de mais normas
gerais e abstratas. É apenas no campo dos discur-
sos de aplicação, ao se levar a sério as pretensões
a direito nele levantadas, mediante o escrutínio
das especificidades daquele caso concreto, que
essas pretensões poderão ser qualificadas como
legítimas ou abusivas, inclusive aquelas calcadas
em previsões legais literais.
mais uma vez a distinção entre discursos
de justificação e discursos de aplicação é central
para que possamos compreender adequadamente
o próprio sentido (e os “limites”) de qualquer
direito. normas gerais e abstratas não são capa-
zes, por si só, de coibir a chamada fraudem legis,
como já percebia Francesco Ferrara:
Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na
observância
formal do ditame da lei, e na violação
substancial do seu espírito: tanturn sententiam
offendit et verba reservat. O fraudante, pela
combinação de meios indirectos, procura atingir
o mesmo resultado ou pelo menos um resultado
equivalente ao proibido; todavia, como a lei deve
Luíza
Realce
134 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
entender-se não segundo o seu teor literal, mas
no seu conteúdo espiritual, porque a disposição
quer realizar um fim e não a forma em que ele
pode manifestar-se, já se vê que, racionalmente
interpretada, a proibição deve negar eficácia
também àqueles outros meios que em outra
forma tendem a conseguir aquele efeito.98
sabemos hoje, portanto, que as leis gerais
e abstratas não eliminam o problema do Direito,
aliás, ao contrário do que igualmente puderam
acreditar os iluministas com a sua confiança exces-
siva na razão, elas inauguram o problema do
Direito moderno que é precisamente o da aplica-
ção de normas gerais e abstratas a situações sem-
pre particularizadas, determinadas e concretas.
É mais do que tempo de nos emanciparmos
da crença ingênua de que uma boa lei nos redi-
miria da tarefa de aplicá-la de forma adequada
à unicidade e irrepetibilidade características das
situações da vida, sempre individualizadas e
concretas. a fórmula da lei geral e abstrata foi
sem qualquer sombra de dúvida uma conquista
evolutiva inegável e a crença no poder dessa
98 Ferrara, F. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra: arménio
amado, 1963. p. 151.
Luíza
Realce
135Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
fórmula determinante para a configuração do
sistema jurídico moderno. a redução moderna
do Direito a um conjunto de normas gerais e
abstratas, no entanto, se foi capaz de subverter o
antigo regime e suas ordens de privilégios, e de
ser central para a instauração dessa nova socie-
dade sem fundamentos absolutos e imutáveis,
não reduziu, mas, pelo contrário, incrementou e
sofisticou a complexidade social.
Os movimentos constitucionalistas e a ideia
mesma de Constituição, no sentido moderno,
pressupõem a diluição da unidade e da orga-
nicidade típicas das sociedades tradicionais, ou
seja, a invenção do indivíduo, da sociedade civil,
o pluralismo religioso, político e social, a tensão
socialmente constitutiva entre o eu e o outro. De
fato, somente uma sociedade complexa, plural e
que se sabe cindida pela diversidade dos interes-
ses, formas de vida e estruturas de personalidade
dos seus membros requer uma Constituição,
como afirma Michel Rosenfeld, em uma sociedade
homogênea ela seria desnecessária.99
99 rOsenFeLD, m. Comprehensive pluralism is neither an overlapping
consensus nor a modus vivendi: a reply to Professors arato, avineri,
and michelman. Cardozo Law Review, v. 21, 1971-1997, 2000.
Luíza
Realce
136 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
Pluralismo moral e incompatibilidade entre
princípios
isaiah Berlin, um dos principais pensadores
liberais do século XX, defende uma concepção de
princípios (enquanto “valores morais”) onde se
verifica uma permanente e irreconciliável incom-
patibilidade, o que forçaria a sociedade a lidar,
necessariamente, com o sacrifício de princípios:
Claro é que os valores podem colidir. Valores
podem facilmente colidir no âmago de um único
indivíduo. e disso não se segue que alguns devam
ser verdadeiros e outros falsos. tanto a liberdade
quanto a igualdade estão entre os principais
objetivos perseguidos pelos seres humanos através
dos séculos. mas a liberdade total para os lobos é a
morte para os cordeiros. essas colisões de valores
estão em sua essência, e na essência do que somos.
(...) alguns dentre os maiores bens não podem
conviver. essa é uma verdade conceitual. estamos
condenados a escolher, e cada escolha pode trazer
uma perda irreparável.100
Contra Berlin, Dworkin busca defender
o tipo de “ideal holístico”, de “perfect whole”
100 BerLin, isaiah apud DWORKIN, R. Moral Pluralism. In: DWORKIN,
r. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 106.
Luíza
Realce
Luíza
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137Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
condenado por aquele como sendo sintoma de
uma “perigosa imaturidade moral e política”.
Berlin101 fala de uma “tendência natural” da maio-
ria dos pensadores a acreditar que tudo aquilo
que eles consideram bom deve estar conectado
ou ser compatível, sendo que a história pode nos
brindar com diversos exemplos da união artificial
de valores, especialmente no fomento de uma
união política contra inimigos em comum. Quanto
à dimensão do “perigo”, adverte Dworkin:
Assim como tiranos buscaram justificar terríveis
crimes apelando à idéia de que todos os valores
morais e políticos se juntam em alguma visão
harmônica de grande importância transcendente,
de tal sorte que a seu serviço o assassinato seja
justificado, também outros crimes morais foram
justificados com apelo à idéia oposta, de que
valores políticos importantes necessariamente
entram em conflito, que nenhuma escolha entre
eles pode ser defendida como a única correta, e
que, portanto, são inevitáveis sacrifícios de coisas
que consideramos de grande importância.102
(DWORKIN, 2006, p. 106)
101 BerLin, i. Liberty: incorporating four essays on Liberty. Oxford:
Oxford university Press, 2002. p. 175.
102 DWORKIN, R. Moral Pluralism. In: DWORKIN, R. Justice in Robes.
Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 106.
138 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
Para Dworkin a ideia de conflito de valores
tem servido no discurso político e no senso
comum como justificativa para a manutenção de
desigualdades sociais, já que qualquer medida
igualitária (por exemplo, de redistribuição ou
realocação de recursos por meio de tributos)
implicaria, segundo essa visão, numa “invasão”
na esfera da liberdade. além disso, o “pluralismo
de valores” pode ter efeito legitimador sobre
práticas de desrespeito aos direitos humanos no
plano internacional, sob o argumento de que cada
sociedade escolhe os valores que busca priorizar,
e que qualquer interferência quanto a isso seria
um ato de imperialismo.
mas os argumentos de isaiah Berlin, reco-
nhece Dworkin, são mais complexos e persuasi-
vos que os lugares-comuns antropológicos tão
difundidos atualmente no “pós-modernismo”,
que repetem o chavão de que cada sociedade se
organiza em torno de valores diferentes, o que
costuma se somar ao argumento cético sobre a
implausibilidade de se afirmarem valores como
“objetivos”. Para Berlin há valores que se possa
considerar como “objetivos”, mas tais “true
values” entram em conflito de forma insolúvel,
Luíza
Realce
139Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
conflitos esses não apenas entre as divergentes
percepções ou opiniões subjetivas sobre o sen-
tido dos valores, mas intrinsecamente entre os
valores mesmos.
Cada coisa é o que é: liberdade é liberdade, e não
igualdade, ou eqüidade, ou justiça ou cultura,
ou felicidade humana ou uma consciência
tranqüila. se a minha liberdade, ou de minha
classe ou nação, depende da miséria de vários
outros seres humanos, o sistema que a promove
é injusto e imoral. mas se eu reduzo ou perco
a minha liberdade de modo a minimizar a
vergonha de tal desigualdade, e com isso não
aumento materialmente a liberdade individual
de outros, uma perda absoluta de liberdade
ocorre. isso pode ser compensado por um
ganho em justiça, em felicidade ou em paz,
mas a perda remanesce, e é uma confusão de
valores dizer que apesar de a minha liberdade
individual “liberal” ser sacrificada, algum outro
tipo de liberdade — “social” ou “econômica” —
é incrementado. entretanto, é verdade que
a liberdade de alguns deve às vezes ser
restringida para assegurar a liberdade de
outros. Com base em que princípio isso deve
ser feito? se a liberdade é um valor sagrado,
intocável, não pode haver tal princípio. um ou
outro desses princípios ou regras em conflito
deve, em qualquer grau na prática, ceder: nem
140 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
sempre por razões que possam ser claramente
enunciadas, quanto mais generalizadas em
regras ou máximas universais. ainda assim, um
compromisso prático deve ser encontrado.103
Para Berlin, portanto, os conflitos não são
apenas contingentes, pois são consequência da
própria estrutura ou conceito dos valores, de
tal sorte que o ideal de harmonia não é apenas
inatingível, é incoerente, já que fazer valer um
valor implicaria necessariamente no compromisso
ou abandono de outro. e se estamos tratando de
valores essenciais, como igualdade e liberdade,
qualquer decisão política implicaria não apenas
103 BerLin, i. Liberty: incorporating four essays on Liberty. Oxford:
Oxford university Press, 2002. p. 172-173: “everything is what it is:
liberty is liberty, not equality or fairness or justice or culture, or human
happiness or a quiet conscience. if the liberty of myself or my class
or nation depends on the misery of a number of other human beings,
the system which promotes this is unjust and immoral. But if i curtail
or lose my freedom in order to lessen the shame of such inequality,
and do not thereby materially increase the individual liberty of others,
an absolute loss of liberty occurs. this may be compensated for by a
gain in justice or in happiness or in peace, but the loss remains, and
it is a confusion of values to say that although my ‘liberal’, individual
freedom may go by the board, some other kind of freedom — ‘social’
or ‘economic’ — is increased. Yet it remains true that the freedom of
some must at times be curtailed to secure the freedom of others. upon
what principle should this be done? if freedom is a sacred, untouchable
value, there can be no such principle. One or other of these conflicting
rules or principles must, at any rate in practice, yield: not always for
reasons which can be clearly stated, let alone generalized into rules or
universal maxims. Still, a practical compromise has to be found”.
Luíza
Realce
141Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
em desapontar algumas expectativas em proveito
de outras, mas na violação de direitos de pessoas,
sendo inevitável, na visão de Berlin, que uma
comunidade política falhará, irremediavelmente,
em suas responsabilidades, de uma forma ou de
outra. seu argumento não é o da incerteza, ou seja,
de que muitas vezes não sabemos qual a decisão
correta a se tomar, mas o de que muitas vezes
sabemos que nenhuma decisão é correta.104
O conflito jurídico, os textos normativos e as
pretensões abusivas a direitos
Vera Karam de Chueiri, referindo-se como
exemplo a dois princípios expressamente alber-
gados pela Constituição brasileira, compartilha
também a noção de incompatibilidade entre
princípios contrários, o que levaria necessaria-
mente a disputa para além da arena jurídica e
à impossibilidade de se chegar a uma decisão
juridicamente correta:
a correção da resposta correta de Hércules
pode também se revelar problemática pelo fato
104 DWORKIN, R. Moral Pluralism. In: DWORKIN, R. Justice in Robes.
Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 110.
Luíza
Realce
142 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
de que a coerência ou integridade requerida
do sistema jurídico comumente não pode ser
alcançada por meio do modelo interpretativo
pensado por Dworkin. É possível que, em
face de princípios que não sejam coerentes
entre si, por exemplo, entre o princípio da
propriedade privada e o princípio da função
social da propriedade, Hércules não conseguisse
construir uma resposta coerente, pondo em
risco a idéia de certeza do direito e o requisito
de aplicação legítima do direito (nos termos
postos por Dworkin), já que ele teria que buscar
uma resposta fora do sistema jurídico, nas lutas
travadas na arena política.105
assim como Berlin, e com base na teoria
agonística106 de Chantal Mouffe, Chueiri parece
105 CHueiri, V. K. D. Before the law: Philosophy and Literature (the
Experience of that Which one cannot Experience). Graduate Faculty of
Political and Social Science, new York, new school university, Ph.D.: f. 216,
2004: “The rightness of Hercules’ right answer can also be problematic by
the fact that the required coherence or integrity of the system of law is not
often achieved by means of the interpretive model thought by Dworkin.
it is possible that in face of principles that are not coherent among
themselves, for instance, between the principle of private property and the
principle of property’s social function, Hercules could fail in constructing
a coherent answer jeopardizing the idea of legal certainty and the claim
to a legitimate application of law (in the terms put by Dworkin), as far
as he would have to look for an answer outside the legal system, in the
struggles that take place in the political arena”.
106 “uma abordagem que revele a impossibilidade de se estabelecer um
consenso sem exclusão é de fundamental importância para a política
democrática. ao nos alertar contra a ilusão de que uma democracia
plenamente realizada pudesse ser materializada, ela nos força a
143Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
desconsiderar a diferença qualitativa existente
entre os conflitos de valores políticos e a tensão
entre normas próprias dos princípios jurídicos e
morais. Por certo se levarmos em consideração os
interesses em jogo em disputas como a do exemplo
apresentado pela autora — entre latifundiários
e trabalhadores sem-terra —, dificilmente pode-
remos encontrar compatibilidade entre eles, já
que claramente se antagonizam. essa é uma das
principais diferenças entre o Direito e a moral: o
direito não pode exigir que se adote a perspectiva
interna e cooperativa das normas, possibilitando
sempre que as atitudes sejam guiadas pragmati-
camente por interesses, embora mantenha como
requisito de legitimidade a possibilidade de sua
obediência por simples respeito às normas, mas
não mais que a possibilidade. Fica claro mais uma
manter viva a contestação democrática. uma abordagem democrática
‘agonística’ é capaz de perceber a verdadeira natureza de suas
fronteiras e reconhece as formas de exclusão que elas incorporam, ao
invés de tentar disfarçá-las sob o véu de racionalidade ou moralidade”
(mOuFFe, C. Deliberative Democracy or agonistic Pluralism?.
Social Research, v. 66, n. 3, p. 745-758, 1999): “an aproach that reveals
the impossibility of establishing a consensus without exclusion is of
fundamental importance for democratic politics. By warning us against
the illusion that a fully achieved democracy could ever be instantiated,
it forces us to keep the democratic contestation alive. An ‘agonistic’
democratic approach acknowledges the real nature of its frontiers and
recognizes the forms of exclusion that they embody, instead of trying
to disguise them under the veil
of rationality or morality”.
Luíza
Realce
144 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
vez o problema de se considerar normas jurídicas
como equivalentes a interesses ou valores. seme-
lhante é a leitura de Gilmar mendes, referindo-se
à jurisprudência da corte constitucional alemã,
quanto à relação entre direitos e interesses em se
tratando de conflitos como esse:
Como acentuado pelo Bundesverfassungsgericht,
a faculdade confiada ao legislador de regular o
direito de propriedade obriga-o a “compatibilizar
o espaço de liberdade do indivíduo no âmbito
da ordem de propriedade com o interesse da
comunidade”. Essa necessidade de ponderação
entre o interesse individual e o interesse
da comunidade é, todavia, comum a todos
os direitos fundamentais, não sendo uma
especificidade do direito de propriedade.107
É próprio da esfera normativa deontológica,
especialmente no caso do direito, o requisito de
se lidar com normas contrárias em permanente
tensão sem que isso implique em contradição.
Pelo contrário, como afirma Habermas, inspirado
por Dworkin, os opostos aqui são equiprimordiais
e complementares, reciprocamente constitutivos
107 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade:
estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 20.
145Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
dos respectivos sentidos. não se trata de uma
questão puramente semântica: valores e nor-
mas acarretam tarefas interpretativas diversas,
exigindo das instituições sociais tratamentos
respectivamente distintos. Conflitos de valores
e interesses requerem mediações e soluções ins-
titucionais que devem levar necessariamente em
consideração argumentos de política, por meio de
discursos pragmáticos e ético-políticos (como, por
exemplo, em políticas públicas de reforma agrária
levadas a efeito pela administração).
Já a exegese a ser dada aos princípios da
propriedade privada e da função social da pro-
priedade, em discursos de aplicação próprios da
atividade judicial, não equivale a um juízo de
preferência sobre interesses conflitantes, mas na
busca do sentido que, diante das especificidades
do caso concreto e da complexidade normativa
envolvida, ofereça uma resposta coerente com
a Constituição e o ordenamento como um todo,
entendidos, é claro, à luz da compreensão que
compartilhamos dos direitos fundamentais
de liberdade e igualdade que reciprocamente
nos reconhecemos enquanto constituição viva,
enquanto comunidade de princípios. no caso,
Luíza
Realce
146 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
verifica-se que desde o esgotamento do paradigma
constitucional liberal os direitos privados, como
o da propriedade, não mais podem implicar a
tutela, a título de direito, de pretensões egoísticas
anteriores e contrárias à própria vida social, pois
os direitos individuais, coletivos e difusos de
todos os demais membros da coletividade
impõem condições para seu exercício legítimo.
Dessa forma, precisamente porque os prin-
cípios são normas abertas, normas que não bus-
cam regular sua situação de aplicação, para bem
interpretá-los é preciso que os tomemos na
integridade do Direito, ou seja, que sempre
enfoquemos um determinado princípio tendo em
vista também, no mínimo, o princípio oposto, de
sorte a podermos ver a relação de tensão produ-
tiva ou de equiprimordialidade que, na verdade,
guardam entre si, a matizar recíproca, decisiva e
constitutivamente os significados um do outro.
assim é que, por um lado, o direito individual
de propriedade não pode ser válida e legitima-
mente compreendido de forma a inviabilizar
a sua função social — daí a previsão constitu-
cional de taxação progressiva de propriedades
Luíza
Realce
147Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
improdutivas,108 por exemplo —, bem como,
por outro, o direito da coletividade de atribuir
funções socialmente relevantes aos bens apro-
priáveis não pode simplesmente desconsiderar a
propriedade particular — não é outro o sentido,
por exemplo, da exigência constitucional de inde-
nização em caso de desapropriação.109 mais uma
vez a diferença entre argumentos de princípio e
argumentos de política revela-se fundamental
para a compreensão do papel e dos limites da
atividade governamental diante dos direitos
dos cidadãos:
a maioria dos atos legítimos de qualquer
governo envolve a negociação de interesses de
diferentes pessoas; tais atos beneficiam alguns
cidadãos e desfavorecem outros para que se
incremente o bem-estar da comunidade como
um todo. (...) mas certos interesses de pessoas
em particular são tão importantes que seria
errado — moralmente errado — que a
comunidade os sacrificasse apenas para as-
segurar um benefício generalizado. Direitos
políticos demarcam e protegem esses interesses
particularmente importantes. um direito
108 art. 153, §4º, i da Constituição da república.
109 art. 5º, XXiV da Constituição da república.
Luíza
Realce
148 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
político, podemos dizer, é um trunfo sobre o
tipo de argumento de negociação que normal-
mente justifica a ação política.110
O stF e o caso ellwanger
À luz de uma teoria deontológica dos
direitos seria possível uma decisão correta, ainda
que fundamentada em termos axiológicos de
ponderação de valores? a fundamentação de uma
decisão vazada em termos de conflitos de direitos,
reduzidos a meros valores, não é expressa em
termos de pretensões controversas em relação
a direitos que seriam indisponíveis. Comporta
assim uma descrição inadequada da controvérsia
que pode conduzir a decisões que anulem direitos
em favor de preferências pessoais do julgador.
Contudo, a nosso ver, isso não impede, por si só,
que a decisão tomada seja a decisão correta.
110 DWORKIN, R. Is Democracy Possible Here?: Principles for a new Political
Debate. Princeton, n.J.: Princeton university Press, 2006. p. 31: “most
legitimate acts of any government involve trade-offs of different people’s
interests; these acts benefit some citizens and disadvantage others in order
to improve the community’s well-being as a whole. (...) But certain interests
of particular people are so important that it would be wrong — morally
wrong — for the community to sacrifice those interests just to secure an
overall benefit. Political rights mark off and protect these particularly
important interests. a political right, we may say, is a trump over the kind
of trade-off argument that normally justifies political action.”
149Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
a decisão do Habeas Corpus nº 82.425/rs,111
conhecido como “caso Ellwanger”, ilustra bem
essa hipótese. a discussão girou em torno da apli-
cação de princípios e, na atual linguagem do stF,
buscou-se realizar uma argumentação baseada na
“ponderação” ou “balanceamento” de valores,
tanto por parte da maioria (especialmente no voto
do ministro Gilmar mendes) quanto da minoria
(em especial o ministro marco aurélio).
estabelecendo os argumentos que pre-
valeceriam na decisão final, o Ministro Gilmar
mendes, em seu voto, buscou se basear no prin-
cípio da proporcionalidade para a construção
de sua fundamentação. analisando complexa
e sistemicamente o ordenamento jurídico, com
especial atenção aos instrumentos internacionais
subscritos pelo Brasil, conclui o ministro
pela
inviabilidade de se atribuir interpretação outra
à Constituição:
assim não vejo como se atribuir ao texto
constitucional significado diverso, isto é, que
111 BrasiL. HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo.
Crime imprescritível. Conceituação. abrangência constitucional. Limites.
Ordem denegada. relator orig.: min. moreira alves. relator para o acórdão:
min. maurício Corrêa. <www.stf.gov.br>, supremo tribunal Federal, 2003.
150 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
o conceito jurídico de racismo não se divorcia
do conceito histórico, sociológico e cultural
assente em referências supostamente raciais,
aqui incluído o anti-semitismo.112
Mas o ministro identifica como um problema
de conflito entre direitos as pretensões controver-
sas das partes, na medida em que “a discriminação
racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de
expressão compromete um dos pilares do sistema
democrático, a própria idéia de igualdade”, e
menciona decisão da Corte europeia de Direitos
Humanos onde, com a aplicação do princípio da
proporcionalidade, se confrontou a liberdade de
expressão com a proibição de abuso de direito, tendo
prevalecido, no caso, a liberdade de expressão.
Cabe o questionamento sobre a adequação
dessa descrição do problema. trata-se de um
conflito entre direitos, ou de um conflito entre
pretensões e interesses? O exercício legítimo de
um direito, como o da liberdade de expressão,
pode configurar, ao mesmo tempo, uma violação
de direitos, uma ilegalidade? nesse sentido é a
crítica de Marcelo Cattoni:
112 Ibid.
151Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
Afinal, ou nós estamos diante de uma conduta
ilícita, abusiva, criminosa, ou, então, do exercício
regular, e não abusivo, de um direito. (...) Como
é que uma conduta pode ser considerada,
ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de
um direito à liberdade de expressão) e como
ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade
humana), sem quebrar o caráter deontológico,
normativo, do Direito? Como se houvesse uma
conduta meio lícita, meio ilícita?113
apesar da terminologia utilizada pelo
ministro em sua fundamentação, entendemos
que seus argumentos se mostram sólidos da pers-
pectiva da justiça como correção normativa, pois
de modo algum são argumentos de ponderação.
senão vejamos, quando com base na análise das
especificidades do caso concreto afirma “a dis-
criminação racial levada a efeito pelo exercício da
liberdade de expressão compromete um dos pilares
do sistema democrático, a própria idéia de igualdade”,
na verdade, evidencia a natureza abusiva da
pretensão levantada pelo réu, em sua defesa, de
buscar dar à prática do crime imprescritível de
113 OLIVEIRA, M. A. Cattoni de. O caso Ellwanger: uma crítica à ponderação
de valores e interesses na jurisprudência recente do supremo tribunal
Federal. Belo Horizonte, 2006. p. 7.
152 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
racismo a roupagem de um mero exercício do
direito à liberdade de expressão, quando ressalta
a discrepância dessa pretensão em face da inte-
gridade do Direito. O problema aqui é apenas no
nível descritivo já que embora expressamente,
para efeitos da decisão, desqualifique a preten-
são levantada pelo réu por abusiva, continua a
descrever, paradoxalmente, o crime praticado tal
como pretendera o réu, ou seja, como exercício
da liberdade de expressão. essa contradição, no
nível da descrição, é precisamente o que possi-
bilita dar à argumentação a aparência de uma
ponderação, exigindo a afirmação da validade e
da relevância no ordenamento em geral da norma
a ser descartada, já que em nada aplicável ao
caso, a não ser como estratégia abusiva de defesa
do réu. A própria decisão, por fim, termina por
reconhecer que tal pretensão não seria alcançada
pelo “âmbito de proteção” da norma. O preço
do acolhimento dessa contradição para dar à
argumentação a aparência de uma ponderação é
o enfraquecimento da própria argumentação ao
banalizar os direitos fundamentais indisponíveis
apresentando-os como simples opções valorativas
em abstrato do aplicador. Para tanto é preciso que
153Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
não se dê o devido destaque aos motivos concretos
fundantes da decisão que decorre da análise das
pretensões levantadas diante das especificida-
des únicas daquele caso concreto e em face da
integridade do Direito como um todo. assim, a
consequência perversa de, no nível apenas da
argumentação, não se afirmar expressamente o
caráter indisponível dos direitos fundamentais, o
seu papel de garantia dos cidadãos, é possibilitar
que decisões opostas se coloquem sem qualquer
fundamento mais profundo no exame do caso
concreto. Com isso, a fundamentação de todas as
possíveis posições dos aplicadores desloca-se do
terreno do cotejo de adequabilidade das pretensões
levantadas pelas partes em face das peculiaridades
do caso concreto e da integridade do Direito, para
o campo das preferências valorativas disponíveis, o
que reduz a indisponibilidade dos direitos funda-
mentais a uma discussão acerca de seu âmbito de
abrangência. É exatamente tudo isso que foi dito
acerca do custo de se buscar dar à fundamentação
uma feição ponderativa que podemos consta-
tar no trecho a seguir transcrito, conjuntamente
com o fato de que o sentido nele atribuído como
constitucionalmente válido ao direito à liberdade
154 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
de expressão é coerente com as exigências do
ordenamento jurídico em sua integridade:
não se contesta, por certo, a proteção conferida
pelo constituinte à liberdade de expressão. não
se pode negar, outrossim, o seu significado
inexcedível para o sistema democrático.
todavia, é inegável que essa liberdade não alcança
a intolerância racial e o estímulo à violência, tal como
afirmado no acórdão condenatório.114
a mesma postura se percebe na passagem
de martin Kriele transcrita no voto, ao evidenciar
a conexão interna entre direitos fundamentais
e democracia:
O uso da liberdade que prejudica e finalmente
destrói a liberdade de outros não está protegido
pelo direito fundamental. Se faz parte dos fins
de um direito assegurar as condições para uma
democracia, então o uso dessa liberdade que
elimina tais condições não está protegido pelo
direito fundamental.115
114 BrasiL. HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-
semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. abrangência constitu-
cional. Limites. Ordem denegada. relator orig.: min. moreira alves.
relator para o acórdão: min. maurício Corrêa. <www.stf.gov.br>,
supremo tribunal Federal, 2003.
115 KrieLe, martin. Introducción a la teoría del Estado. Buenos aires: De
Palma, 1980. p. 475 apud Ibid.
155Capítulo 4
O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios
a revisita à nossa história institucional
recente nos autoriza, assim, a afirmar a potencia-
lidade democrática presente no incremento dos
fragmentos de racionalidade que têm informado
decisões também no âmbito do judiciário. Pois,
apesar dos problemas de descrição normativa
presentes em suas fundamentações, essas deci-
sões, enquanto tais, revelam-se como as únicas
corretas no sentido dworkiano. em que pese,
como vimos, o prejuízo trazido para o aprofun-
damento do debate interno das cortes acerca do
papel dos direitos fundamentais como garantias
dos cidadãos, podem,
ainda assim, se provar
capazes de discernir, no caso concreto — dado à
força normativa desses fragmentos de racionali-
dade e à eventual sensibilidade do aplicador —, a
pretensão legítima das abusivas e de negar curso
a essas últimas. exatamente por isso, é que são
capazes de funcionar como orientação de correção
normativa para a sociedade como um todo, de
sorte a possibilitar ao Direito um enfrentamento
consistente da tendência ao uso abusivo e mera-
mente instrumental do próprio Direito. aspecto
que, apesar dos problemas, ao fim e ao cabo, for-
talece as possibilidades de consolidação de uma
156 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
democracia, ainda que “inesperada,” para usar o
termo de Bernardo sorj,116 ao fornecer plausibili-
dade à exigência do igual respeito e consideração
devidos a todos os membros da comunidade
jurídico-política inaugurada em 5 de outubro de
1988 e ressignificada recorrentemente consoante
o disposto no §2º do seu art 5º.
116 sOrJ, B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e
desigualdade social. rio de Janeiro: Jorge zahar, 2004.
Capítulo 5
Afinal de Contas, o que uma
Constituição Constitui?
ao discutir com richard Posner porque
não aceita a distinção entre direitos explícitos
e implícitos (“direitos enumerados” e “direitos
não-enumerados”), Ronald Dworkin afirma que
conquanto a linguagem da Constituição, mais
especificamente, da declaração de direitos, do
Bill of Rights, empregue no mais das vezes os
termos mais abstratos possíveis dos padrões de
“correção política” (political morality), ela pode
parecer, em alguns contextos, preocupada exclu-
sivamente com os procedimentos. Ou seja, ela não
imporia qualquer limite ao conteúdo das leis que
governos viessem a adotar, ela apenas estipula-
ria como o governo poderia promulgar e impor
qualquer conteúdo nas leis a adotar. nesse passo,
salienta que
158 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
a história jurídica rejeitou essa interpretação
estreita e, no entanto, no momento em que
entendemos que os dispositivos constitucionais
são tão substantivos quanto procedimentais,
o seu âmbito revela-se de uma amplitude
espantosa (breathtaking). Pois fica claro então,
que a declaração de direitos (Bill of rights) não
ordena nada menos do que a determinação de
que o governo trate a todos os sujeitos ao seu
domínio com igual respeito e consideração,
vedando-o de infringir as suas mais básicas
liberdades, as liberdades essenciais, ou como
disse o ministro Cardozo a idéia mesma de
liberdade ordenada.117
Para Dworkin, a Constituição constitui assim
uma comunidade fundada sobre princípios. mas
o que significa uma comunidade que se alicerça
sobre o reconhecimento recíproco da igualdade e
da liberdade de todos e cada um de seus membros?
Qual a natureza desses princípios de conteúdo
moral, seria também moral e não jurídica?
retomar os textos resultantes da discus-
são entre ronald Dworkin e richard Posner
permite-nos aprofundar na complexa relação
117 DWORKIN, R. The Concept of Unenumerated Rights. University of
Chicago Law Review, 59, p. 381, 1992.
159Capítulo 5
Afinal de Contas, o que uma Constituição Constitui?
complementar que, na visão do primeiro autor,
entre si guardam a moral, o Direito e a política.
Básica para que possamos efetivamente compre-
ender todo o potencial reconstrutivo, inclusivo
e democrático, de sua doutrina, que, no Brasil, é
recorrentemente mal compreendida em razão de
traduções muito pouco cuidadosas.
Para richard Posner não seria possível falar
de uma moral que transcendesse a moral indivi-
dual ou de princípios morais universais. a moral
seria particular, local. ela depende de tradições,
de uma cultura, não sendo possível estabele-
cer um denominador moral comum. não seria
possível, por total ausência de critérios, julgar
imoral, por exemplo, a discriminação dos judeus,
dos comunistas ou dos portadores de sofrimento
mental pelos nazistas. Quando reprovamos ati-
tudes como essas, o fazemos a partir de nosso
próprio ponto de vista. Para ele, no contexto das
sociedades modernas só se poderia falar em plu-
ralismo moral. Portanto, analisar o direito à luz
da moral não seria possível, pois os juízes não
podem decidir com base em suas crenças morais
e nem poderiam, dado o pluralismo intrínseco
à sociedade moderna. Posner posiciona-se,
Luíza
Realce
Luíza
Realce
Luíza
Realce
160 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
assim, frontalmente contra o que ele denomina
moralismo acadêmico, à defesa da existência
de uma moral universal. Dentre os autores que
Posner designa moralistas acadêmicos ele inclui
com destaque ronald Dworkin, com a sua teoria
da única resposta correta.
O que Posner denomina pluralismo moral,
é, como vimos, na verdade, efetivamente pres-
suposto da democracia e do constitucionalismo.
Por herança do liberalismo, reconhece-se precisa-
mente a possibilidade de distintas visões de mundo
concorrentes conviverem simultaneamente.
Contudo, contra Posner, há que se notar
que essa pluralidade de visões de mundo só se
torna possível a partir do reconhecimento da
igualdade e da liberdade dos indivíduos. ao se
declarar que todos os homens são livres e iguais
por nascimento, as constituições e declarações de
direitos não pretenderam dizer que todos os norte-
americanos ou todos os franceses seriam mate-
rialmente iguais. a ideia é que todos os homens,
precisamente por serem homens, nascem livres
e iguais. a moral pós-convencional é, pois, prin-
cipiológica, reflexiva. É uma moral de princípios
Luíza
Realce
Luíza
Realce
Luíza
Realce
161Capítulo 5
Afinal de Contas, o que uma Constituição Constitui?
extremamente abstratos, objetivos, universais, e
que guardam uma tensão entre si.
essa moral moderna, contudo, por ser
extremamente abstrata, universal e interna, é
por demais “fraca”, etérea, para impor, por si
só, comportamentos vinculantes, obrigatórios.
nesse contexto, retomamos a afirmação de
richard Posner, segundo a qual ainda que exis-
tissem princípios universais, esses não teriam a
menor utilidade, uma vez que não seria possível
extrair desses princípios soluções para os casos
concretos. O autor, contudo, ignora, ou acredita
impossível, a relação entre o Direito e a moral. De
fato, a moral moderna é extremamente abstrata.
Contudo, ao serem acolhidos como conteúdo do
Direito, esses princípios extremamente abstratos
ganham densidade como direitos fundamentais,
tornando-se obrigatórios, impondo comporta-
mentos externos.
Direito e moral relacionam-se, não em um sen-
tido de sujeição do Direito à moral, guardam, como
vimos, uma relação de complementaridade. em que
o Direito, ao recepcionar o abstrato conteúdo moral,
fornece à moral maior densidade e concretude,
recebendo da moral, por sua vez, legitimidade.
Luíza
Realce
Luíza
Realce
Luíza
Realce
162 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões...
Desse modo é que esse conteúdo quando
incorporado ao Direito como direitos fundamen-
tais, como princípios constitucionais, ou seja,
como a igualdade reciprocamente reconhecida de
modo constitucional a todos e por todos os cida-
dãos, bem como, ao mesmo tempo, a todos e por
todos é também reconhecida reciprocamente a
liberdade, só pode significar, como histórica e
muito concretamente pudemos aprender, a
igualdade do respeito às diferenças, pois embora
tenhamos diferentes condições sociais e materiais,
distintas cores de pele, diferentes credos reli-
giosos, pertençamos a gêneros distintos ou não
tenhamos as mesmas orientações sexuais, deve-
mos nos respeitar ainda assim como se iguais fôs-
semos, não importando todas essas diferenças.
Luíza
Realce
Luíza
Realce
Luíza
Realce
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esta obra foi composta em fonte Palatino Linotype, corpo 12
e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa)
pela Paulinelli Servicos Gráficos Ltda.
Belo Horizonte/mG, março de 2012.
Teoria Geral do Direito - parte I/Fontes do Direito - Ra�ssa.docx
Fontes do Direito:
1. Materiais: Fatores que criam o Direito: econômicos, sociológicos, naturais; Extrajudiciais.
2. Formais: "Lugares"onde se encontra o Direito;
2.1 Escritas: Leis no sentido amplo + leis no sentido estrito + jurisprudência
2.2. Não-escritas: Costumes, Princípios gerais do Direito, vontade dos particulares
2.3 Indiretas: Doutrina
LEIS NO SENTIDO AMPLO (MATERIAL): leis sentido estrito + outras espécies normativas; Must sources
escritas, entram em vigor por decisão das autoridades competentes, elaboradas de acordo com algum procedimento fixado em norma superior. Visam regulamentar a organização da sociedade:
Leis no sentido estrito: Leis Complementares, Ordinárias e Delegadas. Origem do Legislativo. Devem ser gerais, abstratas e impessoais.
LC: m. absoluta das Casas legislativas, sanção Presidente, matérias indicadas na própria CF.
LO: m. simples, sanção do Presidente, qualquer matéria que não seja de competência privativa de outras autoridades.
LD: elaborada pelo Presidente após autorização do Congresso por meio de Resolução. P
demais espécies normativas: CF, EC, MP, Decreto Legislativo, Resol., instruções, portarias, circulares, regulamentos, etc.
CF: regras básicas de organização social, econômica, do Estado. Produto do poder constituinte originário.
EC: cria novas normas na CF ou revoga existentes. Não pode abolir cláusulas pétreas. Aprovada por 3/5 de cada Casa Legislativa, votada em 2 turnos.
Obs. CF/88 é considerada rígida.
MP: Editadas pelo Executivo, SEM a autorização do Legislativo (serão apreciadas pelo legislativo somente após sua criação e para convertê-las em lei). Possuem força de lei. Há limitações quanto às matérias de MP's.
DL: SEM sanção do Executivo. Matéria de exclusiva competência do Congresso Nacional
Resolução: SEM sanção do Presidente. Assuntos de exclusiva competência da CD, SF ou CN.
Decretos: elaborados pelo Presidente para concretizar leis. Não podem inovar o orden. jurídico.
Instrução: Ministro de Estado. Regulamentar execução de leis, decretos, regulamentos.
Portaria, circular, ordem de serviço: autoridades do Executivo para orientar a administração na execução das leis.
Tratados Internacionais: fontes do direito nacional e internacional. Têm força de LO federal (m. simples). Há previsão de que se forem aprovados por 3/5 em 2 turnos terão força de EC.
Jurisprudência: conjunto de decisões uniformes dos tribunais a casos semelhantes. Apresenta maior força vinculante que as decisões isoladas dos juízes e tribunais. (Should sources).
- Súmulas: é um tipo de formalização da jurisprudência dos tribunais. Podem ser vinculantes (must sources) ou não (should sources).
Súmulas Vinculantes:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei
Obs. 1) Se Súmula for descumprida, seja ela vinculante ou não, caberá recurso. Se ela for Vinculante, cabe reclamação ao STF.
2) Em geral, as decisões isoladas dos juízes e tribunais possuem efeito vinculante apenas ao caso em questão (efeito intra partes), porém o Art. 102, §1º fala sobre decisões vinculantes (precedentes vinculantes) aos órgãos do judiciário e ao poder Executivo; São do tipo Must sources:" As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. "
Costumes: fonte espontânea do direito. Hábito da obediência, aceitação pela comunidade, mutável no tempo. São fontes subsidiárias do direito (casos de lacunas)
Princípios gerais do direito: fontes subsidiárias; São vagos, imprecisos, contraditórios (ex. ordem pública x liberdade individual) . May sources.
Doutrina: Análise científica do Direito. Interpretação de professores universitários, pesquisadores. Escritos possuem pouca força jurídica (may sources) pois são opiniões pessoais dos autores. Segundo Dimitri, é uma fonte formal indireta. Para Thomas, não faz parte das fontes formais.
Teoria Geral do Direito - parte I/Fontes do Direito.docx
Fontes do Direito
Fontes Materiais:
Eventos, fatos, fenômenos da natureza, atos, fatores extrajurídicos, sociológicos que influem na produção do direito.
Fontes Formais
Atos autorizados pelo sistema jurídico a criar direitos.
Fontes Formais Diretas Escritas
Constituição: É o produto do poder constituinte originário e entra em vigor mediante uma decisão dos detentores do poder político. Ela fixa as regras básicas de organização do poder estatal e da vida social e econômica e configura as relações do Estado com os indivíduos e os outros Estados do mundo. É o texto normativo que possui a maior força jurídica no âmbito do ordenamento nacional, devendo todas as demais espécies normativas e atos de autoridades do Estado estar em conformidade com os mandamentos constitucionais.
Emendas à Constituição: Esta espécie normativa altera o texto da Constituição, criando novas normas ou revogando as existentes. Deve ser aprovada pela Congresso Nacional, sendo exigido o voto de três quintos dos deputados e senadores e a observância de uma série de requisitos processuais. Seu poder é limitado, não podendo abolir as normas fundamentais da Constituição, as clausulas petreas.
Leis:
Lei ordinária: Deve ser aprovada pela maioria simples (metade + 1 dos presentes )do Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República. Regulamenta qualquer assunto que não seja de competência privatica de outras autoridades. Processo legislativo é idêntico ao da Lei Complementar, mas o coro de aprovação é diferente.
Lei Complementar: Tem coro de aprovoção e especificidade das matérias diferentes da lei ordinária. Exige maioria absoluta (metade +1 dos membros totais). Limita-se a regulamentar assuntos importantes, indicados pela própria Constituição.
- Não há hierarquia entre elas pois possuem o mesmo fundamento de validade.
- Se uma invade a competência da outra? Quando era pra ser ordinária mas foi complementar é válida pelo quorum, mas o contrário é inconstitucional.
Lei Delegada: Ato normativo elaborado pelo Presidente após autorização do Congresso por meio de resolução. Possui mesma força da lei ordinária e suas matéroas são restritas.
Tratados Internacionais: Normas criadas por acordo internacional com participação de autoridades brasileiras. Incorporam-se ao direito brasileiro mediante lei ou ato equivalente a Emenda Constitucional.
Medida Provisória: Atos normativos que, apesar de criados pelo Poder Executivo sem autorização do Legislativo, possuem força de lei formal.
Pode ser editada pelo Presidente em casos de relevância e urgência, para introduzir um novo regulamento ou revogar leis ordinárias anteriores. Deve ser aprovada pelo Congresso Nacional no prazo de 120 dias após sua edição. Se for aprovada converte-se em lei ordinária, se não, perde sua validade.
Decreto Legislativo: Ato normativo emitido pelo Congresso Nacional que não necessita de sanção do Presidente. Regulamenta assuntos de exclusivca competência do Congresso Nacional. Ex: autorizar referendo.
Resolução: Ato normativo utilizados em assuntos de exclusiva competência da Câmara dos Deputados, Senado ou do Congresso Nacional. Não necessita sanção do Presidente. Ex: eleição dos membros do Conselho da República pela Câmara dos Deputados.
Decreto e Regulamento: Normas elaboradas pelo Presidente da República com o objetivo de concretizar as leis no sentido formal, providenciando o necessário para sua aplicação.
Instrução: Norma emitida por um Ministro de Estado para regulamentar a execução de leis, decretos e regulamentos.
Portaria, Circular, Ordens de Serviço: Normas criadas por autoridades do Poder Executivo para orientar a atividade da administração na execução das leis.
Súmula Vinculante: Súmulas editadas pelo STF vinculando os demais tribunais e o Poder Executivo. Limita a liberdade decisória dos julgadores e agiliza os processos.
Jurisprudência: Fonte escrita do direito moderno que se encontra nas decisões dos tribunais, as sentenças e acórdãos.
Fontes Formais Diretas Não Escritas
Costumes: Reiteração constante e uniforme de uma conduta, convicção de esta ser obrigatória. Espécies:
- segundo a lei: a lei se reporta expressamente aos costumes e reconhece a sua obrigatoriedade; é admitido em nosso ordenamento;
-na falta da lei: a lei deixa lacunas que são preenchidas pelo costume; também é admitido em nosso ordenamento;
-contra a lei: o costume contraria o que dispõe a lei; corrente majoritária não o aceita em nosso Direito.
Princípios Gerais: Fonte do direito á qual se recorre em caso de silêncio do legislador. Assim como os costumes são fontes subsidiárias do direito, sendo aplicáveis em caso de faltas de normas escritas. São abstratos e genéricos, não permitindo decidir com certeza sobre sua aplicação no âmbito de uma subsunção. E é muito constante ocorrer uma colisão entre um ou mais princípios.
Vontade dos Particulares: A doutrina reconhece que a vontade dos particulares constitui fonte formal de direito e a denomida de normação privada ou poder negocial.
Fontes Formais Indiretas
Doutrina: Interpretação da lei feita pelos estudiosos da matéria. Não possui formalmente força jurídica, são interpretações pessoais sobre o direito em vigor.
Precedentes judiciais e súmula não vinculante: ?
Teoria Geral do Direito - parte I/Metodologia_de_Savigny.pdf
A METODOLOGIA DE SAVIGNY
1. No Curso de Inverno (1802), Savigny afirmava que a ciência da legislação (ciência do
Direito) é primeiro uma ciência histórica e depois também uma ciência filosófica; a ciência
do Direito deve ser a um só tempo e integralmente histórica e filosófica.
2. O termo “filosófico” significa, nestas lições, algo sistemático, não implicando aceitação dos
princípios jusnaturalistas tradicionais, mas a idéia de uma unidade imanente, orientação que
é comum ao Direito e à Filosofia (influência de Hegel).
3. A legislação acontece no tempo e isso leva a um conceito de história do Direito
estreitamente ligada com a história do Estado e com a história dos povos. Por isso, deve-se
distinguir uma elaboração interpretativa do Direito das elaborações histórica e filosófica.
4. Para uma elaboração interpretativa, o intérprete precisa colocar-se na posição do legislador e
deixar que se formem na sua mente os respectivos ditamos (influência de Schleiermacher).
Para atingir este objetivo, a interpretação precisa de três elementos: gramatical
(particularidades de cada texto); lógico (significado de cada texto para o conjunto), e
histórico (circunstâncias concretas do aparecimento da lei).
5. Uma elaboração histórica deve tomar o sistema no seu todo e pensá-lo como algo
progressivo; uma elaboração sistemática (filosófica) deve interessar-se pelo múltiplo na sua
articulação, tanto seguindo o desenvolvimento dos conceitos quanto a exposição das regras
jurídicas segundo o seu nexo interno.
6. Nesses primeiros estudos, Savigny rejeita tanto a interpretação extensiva quanto a restritiva,
demonstrando simpatia pelo positivismo legalista, ao afirmar que uma interpretação
ampliadora ou extensiva da letra da lei é uma criação artificial do intérprete. Mesmo quando
o legislador indica a razão da lei, diz Savigny, não o faz como parte da regra, mas apenas
como um modo de esclarecimento, daí não poder ser utilizada como conteúdo para a
interpretação.
7. Rejeita igualmente a interpretação teleológica, dizendo que o juiz deve ater-se ao que as
palavras da lei preceituam, segundo o seu sentido gramatical e lógico, dentro do contexto
sistemático. O juiz não tem de aperfeiçoar a lei de modo criativo, tem apenas que executá-la.
O aperfeiçoamento da lei é possível, mas deve ser obra do legislador, não do intérprete.
8. O intérprete poderá, no entanto, usar a analogia como regra especial para casos não
regulados. Tal procedimento não é nem restritivo nem extensivo da lei, na medida em que
nada acrescenta a esta, mas é a própria legislação que por si própria se complementa.
9. Essas idéias foram profundamente alteradas quando Savigny passou a considerar como fonte
originária do Direito o “volksgeist” (espírito do povo), a comum convicção jurídica do povo,
o que ocorreu pela primeira vez na sua obra “Sobre a vocação do nosso tempo para a ciência
da legislação”, onde afirma que a lei não brota por uma dedução lógica, mas por um
sentimento e uma intuição (valorização dos costumes). Brota das típicas formas de conduta
que são observadas pelo conjunto dos cidadãos, ou seja, as próprias relações da vida são
reconhecidas como típicas do ponto de vista do Direito (importância do cotidiano).
10. Estas relações de vida (por ex: matrimônio, pátrio poder, propriedade, compra-e-venda)
constituem-se nos 'institutos jurídicos', que estão na origem e na fundamentação do Direito,
na medida em que se organizam como uma ordem social juridicamente vinculante.Estes
institutos jurídicos se transformam no tempo no conjunto das relações humanas e nunca são
inteiramente expostos pelo somatório das normas que lhes dizem respeito. Por isso, não são
as normas que produzem os institutos jurídicos mas, antes, são essas regras que se extraem
da intuição global dos mesmos institutos. É, pois, na intuição dos institutos jurídicos que as
regras encontram seu último fundamento. Foi também a intuição dos institutos jurídicos que
norteou o legislador na formulação das normas.
11. Assim como o legislador precisa ter sempre presente a intuição integral do instituto jurídico
ao estabelecer a preceituação abstrata da lei, assim quem vai aplicar a lei precisa restituir-lhe
o nexo orgânico do qual a lei mostra apenas um segmento. Isto quer dizer que o pensamento
Luíza
Realce
jurídico deve sempre movimentar-se entre os planos concreto e abstrato, de modo a sempre
conciliar intuição e conceito, onde a intuição representa o todo (fonte originária) e o
conceito (a regra constituída) abrange somente um aspecto parcial, que precisa sempre ser
alargado e retificado por intermédio da intuição.
12. Karl Larenz afirma que Savigny não explanou suficientemente este processo global que
caracteriza a sua metodologia, não conseguiu mostrar como se faz o trânsito da intuição do
instituto para a sua forma abstrata traduzida na regra
jurídica e, por fim, para a intuição
originária. (Esta idéia somente foi melhor esclarecida com a teoria de Gadamer sobre o
círculo da compreensão, surgida no século XX. Larenz tenta descobrir um caminho pela
análise lógica, mas não vislumbra saída.)
13. A falta de aprofundamento dessa metodologia proposta por Savigny, permitiu uma
interpretação formalista do seu pensamento, preparando o caminho para o formalismo
conceitual da Jurisprudência dos Conceitos.
14. No seu pensamento da maturidade, Savigny afastou-se daquela preferência positivista e
legalista que defendera nos escritos da juventude. Ao dizer que o intérprete deve procurar
repetir em seu espírito a atividade do legislador pela qual a lei surgiu, como que deixando a
lei 'surgir' novamente, isto significa bem mais do que uma repetição de ações. Ao contrário,
exige do intérprete uma atividade pensante própria, que o levará além do que o próprio
legislador histórico teria pensado e colocado nas palavras da lei. Nessa atividade espiritual
deve o intérprete, tal como o legislador, deixar-se orientar pela intuição do instituto jurídico,
isto é, deve procurar, por trás dos pensamentos do legislador, o pensamento jurídico objetivo
que se realiza no instituto jurídico. Admite assim uma interpretação restritiva ou extensiva
da lei, antes rejeitada. É o início da teoria subjetivista da interpretação, que será
desenvolvida depois principalmente por Windscheid e Bierling.
15. Da mesma forma, retoma Savigny a importância da interpretação teleológica, ao valorizar o
fim ou a razão de ser da lei, admitindo a sua utilização no trabalho interpretativo, ainda que
sempre com grande precaução. Quando a lei contém uma determinação genérica, deve
atentar-se não apenas para o nexo interno, mas também o fim especial desta lei, na medida
em que este seja comprovável. Isso torna possível alcançar o verdadeiro 'pensamento da lei',
efetivando uma retificação que impeça a aplicação da norma em contradição com os seus
fins.
Fonte: Metodologia da Ciência do Direito – Karl Larenz
Resumo elaborado pelo Prof. Antonio Carlos Machado
Fortaleza, janeiro de 2008.
Teoria Geral do Direito - parte I/Minimalismo sunstein vermeule p tgd.docx
O modelo de minimalismo judicial de Sunstein e Vermeule
1. A defesa do modelo minimalista e formalista de interpretação do direito por Cass Sunstein e Adrian Vermeule
Em sua teoria "institucionalista" da interpretação, Adrian Vermeule sustenta que nenhuma teoria interpretativa pode ser defendida sem cuidadosas considerações empíricas acerca das capacidades interpretativas das instituições e dos efeitos sistêmicos que a alocação de poder de decisão gera para a sociedade.
O autor adota um ceticismo quanto ao que ele denominou de teorias do tipo ideal (first-best theories) da interpretação constitucional, que tentam "deduzir regras operativas de interpretação diretamente dos mais elevados compromissos conceituais da constituição", como as concepções de "democracia, ou estado de direito, ou constitucionalismo, ou uma perspectiva teórica sobre a autoridade do direito ou a natureza da linguagem jurídica". A despeito de admitir que qualquer teoria da interpretação, incluindo o seu próprio modelo formalista, exige algum tipo de teoria valorativa que contenha uma descrição do "que torna as consequencias de uma decisão boas ou más", ele entende que teorias gerais da democracia ou de qualquer outro conceito político são muito abstratas para ajudar a escolher entre alternativas interpretativas plausíveis que possam estar disponíveis para o intérprete. Nenhuma teoria do tipo ideal pode, "nem mesmo em princípio, levar a quaisquer conclusões sobre o desenho institucional dos processos de decisão interpretativa", uma vez que "questões empíricas sempre e necessariamente intervêm entre as premissas de alto grau de abstração, de um lado, e as conclusões sobre os processos de decisão que devem ser usados no nível operacional do sistema jurídico, de outro lado". A introdução de uma "análise institucional", portanto, se torna uma condição necessária, ainda que não suficiente, para a valoração dos métodos de interpretação, e será incompleta qualquer teoria interpretativa que careça de um exame empírico tanto das capacidades interpretativas das instituições às quais se confia a interpretação da constituição, quanto dos efeitos sistêmicos das "interações entre as instituições". [1: Vermeule, Adrian. Judging Under Uncertainty. Cambridge, MA: Belknap. 2006, p. 2. ][2: Idem, p. 71. ][3: Idem, p. 13. ][4: Idem, p. 81.][5: Idem, p. 85.][6: Idem, p. 13.]
Sem embargo, essa "virada institucional" está baseada também em uma segunda pretensão que é mais ambiciosa, segundo a qual em alguns casos "uma análise não-ideal (second-best assessment) de questões institucionais pode não apenas ser necessária, mas também suficiente para resolver conflitos sobre teorias interpretativas, já que pessoas com diferentes premissas teóricas podem concordar quanto a uma estratégia interpretativa particular no nível operacional. [7: Idem, p. 82.]
Este argumento está baseado na possibilidade de um "acordo não completamente teorizado" ("incompletely theorized agreement") no sentido defendido por Cass Sunstein. De acordo com essa visão, pessoas que discordem sobre princípios morais abstratos podem tentar realizar uma "descida conceitual", é dizer, uma descida para "um nível mais baixo de abstração" com vistas a alcançar um consenso sobre "resultados concretos" ao invés de abstrações gerais. De acordo com Sunstein,
"O acordo sobre esses pontos, mais particulares do que os seus fundamentos justificadores, é incompletamente teorizado no sentido de que os participantes relevantes estão de acordo quanto à prática ou ao resultado sem concordar quanto à teoria mais geral que leva até ela. Muitas vezes as pessoas podem chegar a um acordo sobre um argumento descendo o nível da discussão para princípios específicos ou de nível de generalidade intermediário. Eles podem concordar que uma regra - proteger dissidentes políticos, permitir que trabalhadores pratiquem suas religiões - faça sentido mesmo não concordando inteiramente nos fundamentos de suas crenças".[8: Idem, p. 51.]
A possibilidade de acordos incompletamente teorizados sobre a teoria da interpretação correta para uma determinada instituição, portanto, permite aos teóricos pôr de lado as teorias valorativas nas quais eles devam basear suas decisões no nível operacional. Isso implica que a "análise institucional pode até mesmo capacitar os intérpretes para escolher doutrinas particulares antes, ou no lugar de, escolher uma teoria valorativa que especifique o que conta como uma consequência boa ou má de uma prática interpretativa". A título de exemplo, Vermeule acredita que [9: Idem, p. 82-83. ]
"Se, diante de certa descobertas empíricas, ficar claro que a história legislativa deve ser excluída segundo qualquer teoria geral que especifique o que é uma interpretação boa ou má, então no se que refere à questão interpretativa, não haveria necessidade de se escolher uma teoria fundamental". [10: Idem, p. 83.]
A proposta de Vermeule é, portanto, admitidamente antiteorética, pois ele sustenta que a maior parte das desavenças teóricas nos debates metainterpretativos (é dizer, nos debates sobre a escolha das teorias da interpretação) devem ser "descartadas por irrelevantes no que concerne aos problemas operacionais"[11: Idem, p. 63.]
Uma análise empírica da performance de um método de interpretação para nossas instituições deve, portanto, se afastar de elucubrações teóricas e prover uma resposta razoável para pelo menos as seguintes questões, que lidam com dados empíricos relevantes para se determinar a aptidão das instituições para a interpretação jurídica:
1) A primeira questão, como argumentam Sunstein e Vermeule, é "se e em que medida decisões formalistas
que produzem erros claros serão corrigidas pelo legislador, e se as correções terão custos baixos ou elevados".[12: Sunstein, Cass; Vermeule, Adrian. "Interpretation and Institutions". Michigan Law Review, vol. 101, 2003, p. 885-ss, esp. p. 917.]
2) A segunda questão, por sua vez, é "se um judiciário não formalista irá elevar muito os custos de decisão para os tribunais, litigantes e as pessoas que procuram consultoria jurídica. Uma questão importante aqui envolve o planejamento; se propostas não formalistas tornam o planejamento impossível ou difícil, há um sério problema". [13: Idem, p. 918. ]
3) Finalmente, a terceira questão é "se um judiciário formalista ou não formalista, em um ou outro domínio, irá produzir erros e injustiças".[14: Idem, p. 918-9.]
Essas questões, para Vermeule, se referem principalmente às "capacidades institucionais" e aos "efeitos sistêmicos" das teorias da interpretação, que segundo a sua proposta são as variáveis mais importantes que devem ser consideradas para se estabelecer uma teoria da interpretação.
Se essa estratégia meta-interpretativa for consistentemente empregada, então Vermeule pensa que os intérpretes não terão dificuldades para concluir que os juízes devem adotar um método formalista de interpretação jurídica, seguindo "o significado claro e específico dos textos jurídicos, onde esses textos tenham significados claros e específicos", e adotando "as interpretações oferecidas pelos legisladores e agências regulatórias, onde os textos legislativos careçam de significados claros e específicos". Ao se interpretar a constituição, os juízes devem "evitar pretensões de alto grau de abstração sobre o constitucionalismo, a democracia, a natureza do direito" e "aplicar os textos constitucionais claros e específicos de acordo com o seu significado superficial", já que esse procedimento "irá produzir as melhores consequências práticas para as instituições jurídicas". [15: Vermeule, Judging Under Uncertainty, cit., p. 1. ][16: Idem, p. 33.]
Embora Vermeule ofereça outras considerações institucionais para fundamentar esse método formalista de interpretação constitucional, minha impressão é de que o seu argumento principal para essa visão é a (empiricamente verificável) "superioridade epistêmica" dos legisladores sobre os tribunais, o que deveria levar os juízes a defender uma "constituição codificada ou enrijecida" e a interpretar os textos constitucionais no mais baixo nível possível de abstração, ao invés de seguir o conselho de Dworkin e ler os princípios morais da constituição no seu "mas elevado nível possível de generalidade".[17: Vermeule, Adrian. Law and the Limits of Reason. Oxford: OUP, 2009, pp. 11-12, 90. ][18: Idem, p. 187.][19: Dworkin, Ronald. Freedom's Law ;The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge, MA: Belknap, 1999, p. 7.]
Segundo a compreensão de Vermeule sobre as instituições, "os principais fatores determinantes da performance epistêmica, para grupos, são a numerosidade, a diversidade e a competência mediana dos seus membros. Todas essas variáveis, no juízo de Vermeule, apontam para a superioridade epistêmica dos legisladores sobre os juízes. Primeiramente, "há muito mais legisladores em uma típica legislatura nacional do que juízes em altas cortes constitucionais", e essa numerosidade é "um importante recurso espitemológico". [20: Vermeule, Law and the Limits of Reason, cit., p. 90.][21: Idem, p. 11.]
Em segundo lugar, as legislaturas são "mais representativas do que os tribunais, e a representação produz conhecimento". Vermeule segue a Bentham na premissa de que a representação "dá aos legisladores mais informações sobre as condições locais e os juízos sociais e as preferências sociais, informações essas que os juízes não podem pretender ser capazes de compreender". Enquanto o legislador tem o benefício de um entendimento mais preciso dos juízos sociais e das preferências da sociedade em questões políticas particulares, os juízes são via de regra servidores públicos falíveis e mal informados que padecem de um maior risco de erro quanto eles enfrentam o desafio de examinar juízos abstratos sobre valores e políticas. A ideia de se buscar a "história legislativa" de um texto, por exemplo, está sujeita ao risco de erro judicial porque os juízes "carecem da capacidade completa de remediar a ausência de informação decorrente do elevado volume de história legislativa".[22: Idem, p.11 (tradução alterada).][23: Idem, p. 11-12, 90.][24: Vermeule, Judging Under Uncertainty., ][25: Idem, p. 111. ]
E finalmente, e como Vermeule diz "fundamentalmente", os legisladores têm uma superioridade epistêmica devida a sua diversidade maior do que a de um típico judiciário moderno. A "diversidade profissional dos legisladores reduz o 'pensamento de grupo' ("groupthinking) - isto é, a correlação positiva de preconceitos entre os membros do grupo tomador de decisões - e isso é uma importante fonte de força epistemológica". [26: Vermeule, Law and the Limits of Reason, cit., 11. ]
Uma instituição mais diversificada e mais numerosa, portanto, pode superar a performance de um grupo menos diversificado de experts ultra-competentes, tal como um sistema judicial encabeçado por uma corte de apelação com vários membros.[27: Idem, p. 12.]
Isso leva a uma rígida defesa do formalismo judicial, ainda que esse formalismo seja compensado por um método mais permissivo para a interpretação das leis pelas agências reguladoras e pela administração.[28: Sunstein; Vermeule. "Interpretation and Institutions", cit., p. 925-932.]
Vermeule e Sunstein sustentam, portanto, com fundamento na ideia de acordos não completamente teorizados, uma postura minimalista do judiciário, que é chamado a decidir "um caso de cada vez", deixando sem solução as questões laterais e evitando prolatar decisões que possam servir de base para grandes construções doutrinárias. Deve, também, buscar limitar a discricionariedade judicial e elevar o grau de previsibilidade, atendo-se à letra e ao sentido superficial dos textos legislativos. [29: Sunstein, Cass. One Case at a Time - Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge, MA: Belknap, 2001, p. 4-ss.]
2. A réplica de autores como Dworkin
A concepção de Sunstein está exposta a uma objeção fundada que foi aduzida por Dworkin em seus escritos críticos ao pragmatismo de Chicago. Com efeito, Dworkin acusa Sunstein de defender um argumento antiteórico que produz uma espécie de paralisia do processo democrático, uma vez que este depende de discussão e deliberação para florescer. A estratégia de adoção de "acordos teorizados de forma incompleta" teria o grave inconveniente de retirar de cada ator social a responsabilidade de justificar publicamente as suas decisões. Como o leitor provavelmente depreende das lições anteriores, a ideia de Sustein de que a deliberação deve ser evitada é incompatível com a teoria da argumentação de MacCormick, uma vez que este último autor considera a divergência um elemento essencial para o Estado de Direito. Nesse sentido, "a indeterminação do direito não é meramente (embora também seja) um resultado do fato de que os estados comunicam os seus materiais jurídicos em uma linguagem natural ('oficial'), e esta linguagem está atingida por ambiguidade, vagueza ou textura aberta. Ela também deriva do, e é também ampliada pelo, reconhecimento dos 'direitos da defesa' em todo o contexto de litigiosidade criminal ou civil". Apenas uma argumentação que se oriente pela ideia de uma coerência com os princípios fundamentais do sistema poderia trazer essa indeterminação do direito para um nível tolerável. E essa ideia de coerência aponta para uma "reconstrução racional" do sentido dos materiais (fontes) jurídicos. Seguindo expressamente a Dworkin, MacCormick sustenta que a reconstrução racional desses materiais "é um método de lidar com a interpretação e a elucidação de grandes corpos de dados e materiais no contexto das humanidades". Essa tarefa
de interpretação e elucidação, por sua vez, "envolve a seleção desses materiais envolvidos na massa ainda não analisada e a reconstrução deles de um modo que os torne compreensíveis porque são partes de um todo coerente e bem ordenado". [30: Dworkin, Ronald. Justice in Robes. Cambridge, MA: Belknap, 2006, p. 66. ][31: MacCormick, Neil. Rhetoric and the Rules of Law. Oxford: OUP, 2005, p. 26. ][32: Idem, p. 29.]
Teoria Geral do Direito - parte I/NOTAS SOBRE A TEORIA DOS PRINC�PIOS DE ROBERT ALEXY.pdf
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NOTAS SOBRE A TEORIA DOS PRINCÍPIOS DE ROBERT ALEXY
Natália Braga Ferreira*
RESUMO
O artigo pretende analisar o tema da colisão de princípios constitucionais a partir do estudo da
teoria dos princípios de Robert Alexy, com o objetivo de demonstrar os principais
fundamentos e críticas a essa teoria, que aponta a ponderação como a a solução mais
adequada para a colisão de principios. Apesar das objeções existentes, é possível através da
ponderação obter, na maioria dos casos, uma solução adequada à colisão de princípios,
garantindo sua normatividade e preservando a Constituição.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Constitucional; Teoria dos Princípios; Colisão de Princípios; Ponderação; Robert
Alexy.
NOTES ON THE THEORY OF PRINCIPLES OF ROBERT ALEXY
ABSTRACT
This article aims to analyze the theme of the collision of constitutional principles, based upon
the theory of Robert Alexy. The main object is to demonstrate the basis as well as the
criticism to his theory, which defends ponderation as the most adequate solution to the
problem generated by the collision of principles. Despite the objections, it is possible to
guarantee by means of ponderation an optimal answer to the collision of principles, at least in
most of the judicial cases. If this is true, a solution capable of sustaining the normativity of the
constitutional principles - and the normativity of the Constituion itself - may be achieved.
KEYWORDS
Constitutional Law; Theory of Principles; Collision of Principles; Ponderation; Robert Alexy
*
Advogada. Especialista em Direito, Estado e Constituição. Bacharel em Direito pelo UNICEUB. Pesquisadora
do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Colaboradora da Defensoria Pública da União.
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1-INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar o tema da colisão de princípios
sob o prisma jusfilosófico de Robert Alexy. A relevância do tema se justifica diante da virada
ocorrida principalmente a partir da segunda metade do século XX, quando os juristas
europeus passaram a reconhecer o caráter normativo dos princípios inscritos na Constituição,
que deixaram de ser considerados meras recomendações morais, tal como postulado pelos
teóricos positivistas.
A partir do momento em que os princípios, assim como as regras, são
aceitos como espécies do gênero norma, surge um novo problema: o que fazer quando dois
princípios constitucionais (e, portanto, de mesma hierarquia) representarem interesses
contraditórios? Se, por exemplo, face a um caso concreto, o direito à intimidade conflitar com
a liberdade de expressão, deve o juiz realizar uma escolha binária? Ou será que a colisão de
princípios transcende os critérios clássicos de resolução de antinomias entre regras?
Na filosofia do direito contemporânea, uma das respostas mais consistentes
ao referido problema foi formulada por Robert Alexy, que aponta a ponderação como o pilar
que permite não apenas resolver eventuais colisões de princípios, como também manter sua
normatividade sem que sejam excluídos do ordenamento jurídico. Não é por outra razão que
aprofundar seu pensamento constitui um imperativo para todos aqueles que pretendam
conceber o ordenamento constitucional como algo mais que um rol exaustivo de regras.
2- A DISTINÇÃO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS SOB A ÓTICA DE ROBERT
ALEXY
A metodologia jurídica tradicional utilizava-se de critérios como
generalidade e abstração para diferenciar regras e princípios, deixando de lado qualquer
consideração de ordem qualitativa. Essa é a forma de distinção, por exemplo, utilizada por
Norberto Bobbio, quando ele define os princípios como “normas fundamentais ou
generalíssimas do sistema, as normas mais gerais”(BOBBIO: 2003, p.81).
Considerando critérios dessa ordem, Alexy afirma haver três teses acerca da
distinção entre regras e princípios. A primeira alega a impossibilidade de divisão das normas
em classes de regras e princípios, devido a pluralidade existente. Já a segunda é sustentada
pelos que consideram que pode haver uma distinção relevante entre regras e princípios, mas
que essa distinção é meramente de grau. Por fim, a terceira afirma que as normas podem
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dividir-se em regras e princípios, porém a diferença não é meramente gradual, mas também
qualitativa.
Para o autor alemão, a última tese é a correta, pois apresenta o que ele
denomina de critério qualitativo, o qual permite distinguir com precisão as regras e os
princípios.
Essa forma de distinção proposta por Alexy parte da dicotomia entre regras
e princípios elaborada por Ronald Dworkin. Para Dworkin, a distinção entre regras e
princípios tem natureza lógica e pode ser definida pela natureza da orientação que oferecem
para o caso. Assim, as regras são aplicadas da maneira do tudo-ou-nada, de forma que “dados
os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela
fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”
(DWORKIN: 2002, p.39). Portanto, a partir do momento em que uma regra é considerada
válida e seus pressupostos são verificados concretamente, a sua aplicação deve ocorrer de
forma imediata.
Dworkin não descarta a hipótese de que as regras possam ser excepcionadas
por alguma circunstância, entretanto, ele aduz que o enunciado da regra só estará completo se
contiver todas essas exceções. Por outro lado, ele defende que a aplicação dos princípios
ocorre de uma maneira mais complexa, pois embora eles possam orientar a direção do
intérprete, não basta que as condições sejam dadas para que os resultados jurídicos sejam
determinados de modo binário.
Outro ponto colocado por Dworkin é que os princípios possuem uma
dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Assim, enquanto o
conflito de regras é resolvido através da utilização de critérios clássicos como a hierarquia ou
a especialidade, declarando-se a invalidade de uma delas, o conflito de princípios é
solucionado sem que um deles seja retirado do ordenamento jurídico, devendo ser observada a
importância ou força relativa de cada um deles, no caso concreto.
Nesse contexto, embora os princípios indiquem uma direção a ser seguida,
continua sendo necessária uma decisão particular e a construção de uma linha de interpretação
acerca das condições presentes no caso, pois pode haver outros princípios que indiquem uma
direção contrária. Nesse sentido, Dworkin conclui que a prevalência de um princípio em um
caso concreto, depende das condições que estarão presentes e que do fato dele não ser
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aplicado não poderá seguir uma conclusão imediata de que ele deve ser retirado do
ordenamento jurídico.
Embora o critério acima tenha sido utilizado como ponto de partida para a
distinção qualitativa elaborada por Robert Alexy, o autor ressalta que Dworkin não chegou ao
núcleo da distinção entre as duas espécies normativas: a concepção de princípios como
mandamentos de otimização.
2.1. Os princípios como mandamentos de otimização e a especificidade de seu caráter