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Teoria Geral do Direito - parte I/Conpedi 02 com id.pdf A Teoria da interpretação judicial para além do interpretativismo e do não- interpretativismo. The theory of judicial interpretation beyond interpretivism and non-interpretivism Bernardo Gonçalves Fernandes 1 Resumo: O artigo tem como objetivo desenvolver uma análise das teorias da interpretação norte-americanas que buscam superar a dicotomia interpretativismo X não-interpretativismo tradicionalmente trabalhada na Hermenêutica jurídica estadunidense. Para tal, faz-se um percurso que vai da delimitação dos termos ora em debate, para posteriormente apresentar teorias contemporâneas que visam a superação dos mesmos, tendo em vista a abertura para uma filosofia do direito atrelada à teorias da justiça que levam em consideração a complexidade do fenômeno jurídico atualmente em voga. Temas comuns aos teóricos do direito como procedimentalismo, minimalismo, substancialismo, consequencialismo, pragmatismo econômico e integridade na aplicação do direito são trazidos a cotejo para tal empreitada. Palavras-chave: Interpretação constitucional; Interpretativismo; não-interpretativismo; Teorias da Justiça; Teorias da Decisão. Abstract: The article aims to develop an analysis of theories of interpretation U.S. that seek to overcome the dichotomy interpretivism X non-interpretivism traditionally worked in the U.S. legal hermeneutics. To this end, it is a path that goes to the delimitation of the terms under debate for later present contemporary theories that aim to overcome them, with a view to opening to a philosophy of law linked to theories of justice that take into account the complexity of the legal phenomenon currently in vogue. Themes common to theorists of law as proceduralism, minimalism, substantialism, consequentialism, economic pragmatism and integrity in law enforcement are brought to collation for such an undertaking. Keywords: Constitutional interpretation; interpretivism; non-interpretivism; Theories of Justice; Theories of Decision. 1) Introdução: A dicotomia: Interpretativistas X não interpretativistas Quando se fala em Hermenêutica Constitucional, no interior do debate jurídico norte-americano, o que primeiro vem à mente – até mesmo porque muitas obras nacionais parecem não ir além – é o debate entre interpretativistas e não- interpretativistas. Esse debate que encontrou e ainda encontra adeptos de ambos os lados, é mais uma daquelas dicotomias históricas e naturalizadas que parecem não nos abandonar, ou seja, 1 Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor Adjunto de Teoria da Constituição e Direito Constitucional do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto III de Direito Penal, Teoria da Constituição e Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS). que insistem em permear as discussões jurídicas de forma reducionista e limitada, como a velha questão do jusnaturalismo versus positivismo, ou do direito público versus direito privado ou mesmo da voluntas legis versus voluntas legislatoris. Todavia, nesse pequeno excurso, pretendemos demonstrar que o debate norte- americano alcançou planos mais altos em termos de sofisticação,2 incorporando conquistas evolutivas do movimento do giro hermenêutico-pragmático e, com isso, se lançando para análises mais complexas, como, por exemplo, as questões do fundamento e legitimidade do direito e das decisões judiciais. Dessa forma, esse texto assume como movimento o seguinte percurso: partiremos de uma reconstrução do primeiro debate, apresentando suas teses básicas, para, em seguida, passarmos à análise de teses e autores mais complexos, que buscaram ir além da dicotomia, enriquecendo as recentes teorias da justiça e da interpretação judicial. A corrente, conhecida hoje como interpretativistas, vem defendendo, ainda, uma posição conversadora – como faz, por exemplo, grandes expoentes como o juiz Robert Bork e o Justice Antonin Scalia – na qual atestam que o intérprete, mas, principalmente, os juízes, ao interpretar a Constituição, devem se limitar a captar o sentido dos preceitos expressos ou, pelo menos, tidos como claramente implícitos (textura semântica).3 Sendo assim, ao interpretar a Constituição, o leitor tem de ter os olhos voltados apenas para o texto constitucional que se situa à sua frente, tendo como limite máximo de abertura uma busca pela intenção dos fundadores.4 Alegam que dar um passo para além das molduras do texto seria subverter o princípio do rule of Law, desnaturando-o na forma de um direito feito por magistrados (law of judges). Isso se mostraria imperativo no controle judicial dos atos legislativos, que deveria ser limitado à moldura constitucional sob alegação de violação do princípio democrático (fato da lei ou ato legislativo ter sido feito contando com apoio de uma maioria dos membros do órgão). A segunda corrente, que se encontra em franco crescimento, de maneira geral, ainda que pese uma constelação de divergências internas, preza mais pela concretização dos direitos consagrados no texto constitucional que por sua interpretação formalista. Princípios de justiça, de liberdade e igualdade deveriam falar mais alto, compondo o 2 O renomado autor, ex-professor de Yale e Harvard, John Hart Ely, considerado um dos maiores expoentes do direito norte-americano, já dizia na obra Democracy and Distrust em 1980 (portanto, há mais de 30 anos!) que o debate deveria ir além da discussão interpretativistas x não interpretativistas. 3 É claro que o interpretativismo não pode ser confundido com literalismo, ou seja, a compreensão apenas da dimensão literal do texto constitucional como limite hermenêutico. 4 SIFFERT, Paulo de Abreu, Breves notas sobre o constitucionalismo americano, p. 74. “projeto” constitucional de uma sociedade que se preze democrática, ao invés de uma subserviência cega a uma leitura redutora do princípio democrático.5 Nesse sentido, enquanto os interpretativistas vão afirmar que a solução adequada, constitucionalmente, para os dilemas e conflitos que surgem na seara jurídica deve ser buscada (e trabalhada) na intenção dos criadores da Constituição, os não-interpretativistas, de modo geral, irão buscar as respostas nos valores (e tradições) advindos da própria sociedade. Todavia, como defendemos nesse ensaio, o debate constitucional ora trabalhado não se esgota aqui. Há ainda uma gama de nuances e possibilidades hermenêuticas que merecem nossa atenção. Atualmente, existem inúmeros juristas e filósofos norte-americanos cujas teorias ocupam lugar de destaque não só no cenário norte-americano, mas, sobretudo, no cenário internacional. As suas teses que, literalmente, “ganharam o mundo” vêm gerando, ao lado das anteriores teses do interpretativismo e não-interpretativismo, frutíferas digressões acerca dos rumos da Hermenêutica Constitucional norte-americana. Hermenêutica essa que, em tempos transconstitucionais6, é motivo de reconhecimento e influência em Tribunais Constitucionais europeus e no próprio Supremo Tribunal Federal pátrio7. 2) O Procedimentaismo de John Hart Ely John Hart Ely ganhou celebridade por sua obra “Democracy and Distrust”, na qual argumenta a insuficiência (inconsistência) teórica das teses clássicas,8 notadamente em 5 Didaticamente teríamos que: “[...] O primeiro (corrente interpretativista) consistiria resumidamente, numa compreensão de que o papel constitucional dos juízes está adstrito ao que está estatuído e escrito na Constituição, sendo que princípios e valores não são vinculantes (o juiz não pode ampliar o rol de direitos previstos expressamente na Constituição, pois isto acarretaria subjetivismo), ao contrário do segundo (corrente não-interpretativista), onde existe a ideia de que as Cortes devem basear seus julgamentos em elementos que vão além do mero texto, buscando referências por detrás dos limites estritos do documento, vinculados a aspectos morais e valorativos.” HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 149. 6 Em linhas gerais, nos moldes desenvolvidos por Marcelo Neves, o transconstitucionalismo pode ser definido como o entrelaçamento de ordens jurídicas diversas (estatais, transnacionais, internacionais e até mesmo supranacionais) em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional. Portanto, o fato de ordens jurídicas diferenciadas enfrentarem concomitantemente as mesmas questões de natureza constitucional desenvolvendo cada dia mais “pontes de transição”, pode (e deve) ser traduzido como transconstitucionalismo. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, Ed. Martins Fontes, 2011. 7 Basta apenas observarmos que o número de citações nos julgados do STF de autores e teses norte- americanas adotadas pela Suprema Corte dos EUA é cada dia mais volumoso, já alcançando o nível dos doutrinadores do tradicional direito alemão. 8 John Hart Ely refuta ambas as teses clássicas. Nesse sentido, resumidamente: 1) contra os interpretativistas (que adotam uma noção mais restrita de atuação do judiciário), sustenta o professor face do papel que um juiz deve assumir, quando em uma situação de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Ao magistrado sempre pesa a presunção de ilegitimidade, já que não é eleito ou possui responsabilidade política igual aos membros do Congresso Nacional ou do Parlamento, que foram escolhidos e, pelo menos em tese, representam o povo de um país. Ely, então, propõe que os Tribunais Constitucionais compreendam melhor o seu papel se assumirem-se como “reforços da democracia”,9 isso porque parte de uma concepção procedimental de democracia (ao invés de uma concepção substantiva, que permitiria aos magistrados fazer escolhas que pudessem ser fundamentadas em argumentos de origem moral ou ética), que se voltam aos problemas de regulamentação dos procedimentos justos e iguais a todos. Porém, é bom que se diga que, apesar da função reservada aos Tribunais ser, sobretudo, de fiscalização e controle da regularidade e da adequada participação de todos no processo político, ele atuaria de forma ativa em situações ou na ocorrência de eventuais desvirtuamentos do processo político, nos quais a minoria não conseguisse se sustentar com suas próprias forças.10 Portanto, afirma o ex-professor de Yale e Harvard que os Tribunais devem desempenhar a função similar a de árbitros em um jogo de futebol (que não dizem quem é o vencedor, apenas atuando no intuito de garantir que o jogo seja jogado de maneira limpa, justa e em igualdades de condição),11 de modo a deixar a democracia seguir seu curso, agindo apenas de modo a desobstruir os bloqueios que se formam no processo democrático.12 Sendo assim, o Judiciário não tem (e nem deve!) autoridade para alterar que o estrito respeito ao texto que fixa aplicação da Constituição no limite encontrado no próprio texto exige um respeito à vontade da maioria expressa e traduzida na forma da lei. Ele então conclui que a maioria pode muito bem conceder benefícios em detrimento da minoria. Assim sendo, apesar do critério da maioria estar alocado no centro do sistema democrático americano, ele, segundo Ely, não é e nem deve ser absolutizado. Nesse sentido, afirma que as minorias precisam ser protegidas contra possíveis abusos que podem ocorrer em uma democracia representativa. 2) contra os não interpretativistas, Ely se volta ao problema de quais seriam os modos de complementação e integração do texto constitucional pelos magistrados. Ou seja, uma questão atinente às fontes nas quais seriam retiradas as complementações e colmatações. Seriam do Direito natural, tradições, razão, consenso, princípios, digressões morais? Nesse sentido, o elemento democrático (de uma construção normativa fruto do sistema de representação popular) poderia ser firmemente abalado, pois estaríamos sujeitos a subjetividades ou mesmo a arbitrariedades dos juízes com base em critérios que não seriam dotados de certeza e segurança. Democracy and Distrust, p. 7 e p. 50-52 e ss. Ver também: HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 150-15. 9 MONTEBELLO, Marianna, Estudo sobre a teoria da revisão judicial no constitucionalismo norte- americano, p. 105. 10 ELY, John Hart, Democracy and Distrust, p. 169. 11 Nesse sentido, conforme Henning Leal (2007), a Suprema Corte (dos EUA) teria, então, na expressão cunhada por Ulrich Haltern, uma função que se assemelha à de um “cão de guarda da democracia”. p. 157. 12 ELY, John Hart, Democracy and Distrust, p. 88. decisões fruto de deliberações democráticas (legislativas), não cabendo a eles a tarefa de uma pretensa interpretação valorativa da Constituição garantidora de direitos (já que esses direitos devem ser especificados em uma instância política, não sendo da alçada de uma instância jurídica), mas podem sim (os Tribunais) agir no intuito da defesa e da preservação de direito relativos à comunicação e à participação que constroem a vontade democrática nos processos políticos. Nesse sentido, “a posição de Ely se apresenta com uma característica aparentemente contraditória, a partir do momento em que fortalece e ao mesmo tempo limita a atuação da jurisdição constitucional. Por meio da retração e limitação do aspecto procedimental, a atuação das Cortes é restringida e o processo político fortalecido, porém, sem que isso implique a discriminação ou prejuízo de minorias, que devem ter seus direitos fundamentais assegurados (no que a atuação jurisdicional é reforçada). [...] trata-se de um modelo que intenciona, a um só tempo, fortalecer e restringir a jurisdição constitucional por meio de um retorno a um referencial de controle de natureza procedimental, em que o processo político pretende ser reforçado sem que isso implique uma renúncia de proteção dos direitos das minorias. 13 3) O minimalismo de Cass R. Sunstein Cass R. Sunstein é outro expoente do Direito Constitucional norte-americano da atualidade. Sua proposta (que é crítica ao judicial review14) se insere no seio de um movimento que se autodenomina Minimalismo Judicial (judicial minimalism),15 que tem por proposta uma retomada do papel que o Judiciário deveria ocupar em um Estado que se considera democrático. Sendo assim, um dos seus principais interlocutores será Ronald Dworkin, que na visão de Weithman,16 entre outros, coloca todo o peso nas decisões dos juízes.17 13 HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 157. 14 Controle de Constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário, no qual, o Judiciário na tradição americana se apresenta como interprete último da Constituição. 15 PETERS, Christopher J., Assessing the New Judicial Minimalism. 16 WEITHMAN, Paul J., Review of Cass R. Sunstein’s One Case of at a Time. 17 Sinteticamente, respondemos à tal crítica aclarando que o magistrado não desempenha no pensamento de Dworkin qualquer posição de privilegiado no curso de um debate sobre a interpretação jurídica. Quando ele cunha a metáfora de Hércules – um superjuiz com conhecimento e paciência sobre humanas – na realidade o que deseja é traçar as linhas das posturas de alguém comprometido com uma teoria hermenêutica condizente com o giro linguístico, capaz de por em dúvida suas pré-compreensões, bem como realizar o movimento da fusão de horizontes, atualizando o texto ao contexto do intérprete, mas sem perder de vista que o texto, como obra que é, é fruto de uma construção de sentido coletiva que Luíza Realce Como bem coloca Rogério Gesta Leal,18 os minimalistas são juristas que não creem em nenhuma Teoria da Constituição e da Jurisdição como algo salvador ou mesmo com fins emancipatórias, portanto, não concebem nenhum tipo de compromisso social por parte do Judiciário, que deveria tão somente se concentrar na solução do caso concreto que têm em mãos. A ideia básica de Sunstein é que os juízes, no curso de suas sentenças, devem deixar a questão em aberto, não tendo pressa em apresentar respostas substantivas e conclusivas – ou mesmo brilhantes teses acadêmicas – para seus jurisdicionados. Sunstein reconhece que o Congresso norte-americano compreende a dimensão democrática bem melhor que a Suprema Corte e, por isso mesmo, é o mais autorizado para dar respostas finais sobre todas as questões jurídicas. Assim, uma decisão minimalista tem o mérito de deixar um espaço para que futuras reflexões se façam tanto em nível nacional, estadual quanto em nível local.19 Para tanto, os magistrados devem entender que não tem a menor necessidade – nem legitimidade – para decidir questões que não possam ser consideradas como essenciais para a resolução do caso concreto que têm em mãos, bem como evitando a apreciação de casos complexos que ainda não atingiram um nível de maturidade no curso das decisões na sociedade, simplesmente negando o certiorari.20 Sunstein21 sustenta, então, que uma decisão minimalista deve apresentar como características dois pontos: superficialidade (shallowness) e estreiteza ou restrição (narrowness). Assim, objetiva que a Corte decida o caso que tem em mãos, ao invés de realizar uma tentativa de estabelecer regras para aplicação de outros casos futuros ou similares.22 Portanto, as decisões devem ser “estreitas em vez de largas” e “razas em vem de ultrapassa a vontade e os desejos de seu criador. Aliás, aqui, um registro: é impressionante a dificuldade da doutrina brasileira em entender que estamos diante de uma metáfora! Entre outras, como a do romance em cadeia também desenvolvida por Dworkin e aqui também citada, que irão servir como mote para a construção de sua tese do direito como integridade. Dworkin, inclusive é alvo de inúmeros mal entendidos na doutrina pátria (não só em relação às metáforas)! Os absurdos (ou mal entendidos) vão desde chamá-lo de jusnaturalista até intitulá-lo de ativista! 18 LEAL, Rogério Gesta, Perfis democrático-procedimentais da jurisdição comunitária, p. 247. 19 Michael Dorf (The Supreme Court 1997 term – The Limits of Socratic Deliberation) prefere referir a essa postura judiciária como experimentalismo judiciário, uma vez que tal espaço para complementação, tanto do Legislativo quanto das Cortes estaduais, permite uma maior ventilação do problema a ser discutido por toda a sociedade em seus diversos níveis. 20 SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo. Direito à diferença, p. 63. 21 SUNSTEIN, Cass R., One case at a time, p. 10. 22 Um exemplo dado é o julgamento sobre a discriminação sexual no Instituto Militar da Virgínia (Virginia Military Institute), em 1995. Ao adotar uma compreensão minimalista da decisão, a Suprema Corte não tentaria estabelecer uma regra geral que pudesse finalizar qualquer discussão sobre a constitucionalidade ou não da discriminação sexual de qualquer escola militar norte-americana que somente aceite alunos do sexo masculino, apenas se pronunciaria no estrito caso do Estado da Virgínia. Luíza Realce Luíza Realce profundas”. Nesses termos, “devem ser estreitas na medida em que a corte deve decidir (como já citado) simplesmente o caso concreto sem antecipar como outros casos semelhantes (ou análogos) seriam solucionados. E devem ser rasas, na medida em que não devem tentar justificar a decisão por fundamentos que envolvam princípios constitucionais básicos”. 23 4) O Constitucionalismo Populista de Mark Tushnet O professor de Harvard Mark Tushnet é, atualmente, um dos principais críticos do judicial review (controle de constitucionalidade) norte-americano, e em uma linha que poderíamos chamar de mais radical, defende em seus estudos, a tese do intitulado “constitucionalismo popular” ou posição populista (populist constitutional Law). Segundo Tushnet, sua teoria é populista porque distribui a responsabilidade pelo direito constitucional amplamente. Assim sendo, afirma que em uma “teoria populista do direito constitucional, a intepretação constitucional feita pelas cortes não tem nenhum peso normativo decorrente do fato de serem produzidas por Cortes.” 24 Com isso, postula-se a retirada da “Constituição dos tribunais”, na medida em que os mesmos não teriam legitimidade para se manifestar de forma final (dar a última palavra) no que tange a interpretação constitucional.25 Tushnet é um dos críticos do judicial review não pelo aspecto da “objeção contramajoritária” (questionamento tradicional da legitimidade dos magistrados da Suprema Corte, em face de sua origem não democrática, em decidirem questões complexas de conteúdo das normas constitucionais), mas, sim, pela tese da “supremacia judicial” (ou seja, a consideração que o judiciário se torna poder condutor acima dos 23 OLIVEIRA, Daniel de Almeida, Stephen Griffin e a teoria constitucional Americana, p.32, 2009. SUNSTEIN, Cass R., One case at a time, p. 10-11. 24 TUSHNET, Mark .Taking the Constitution Away from the Courts, p.23, 1999. 25 TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts, 1999. TUSHNET, Mark. Popular Constitucionalism as Political Law. Chicago: Chicago-Kent College of Law: 2006. Ver também: WALDRON Jeremy. A Dignidade da Legislação, 2003. Esse autor (Professor em Nova York) sustenta que o judiciário nem sempre será a instância mais adequada para resolver matérias conflituosas (controvertidas) sobre os direitos fundamentais. A resolução dessas querelas pode ser resolvida por instâncias de representação democrática (legislativas). Jeremy Waldron sustenta basicamente que: a) a prática do judicial review é procedimentalmente antidemocrática; e b) não há razão para supor que os direitos serão protegidos de maneira mais efetiva pelas cortes do que pelas legislaturas. In: WALDRON, Jeremy. The Core the Case Against Judicial Review, In Yale Law Jornal, V.115, n° 6, 2006. BERMAN, José Guilherme, Direito, Desacordo e Judicial Review.p. 110, 2010. Outro autor, que sustenta a tese do constitucionalismo popular é o professor Lerry Kramer, In: The People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. New York: Oxford University Press, 2004. demais poderes). Nesses termos, Tushnet apresenta-se como um crítico da Suprema Corte no que tange ao monopólio da mesma em dizer o que é (o teor) direito constitucional. Nesse sentido entende que essa postura, acaba por retirar a importância das opiniões que são prolatadas fora da Suprema Corte. Assim sendo, a definição do que é o direito constitucional e de como devemos entender a Constituição só tem relevância se é emitida pela Suprema Corte. A defesa, então, é pela ampliação das opiniões em torno das questões constitucionais. 26 É interessante que, as digressões de Tushnet, atreladas a intitulada perspectiva “populista constitucional”, na verdade, se aproximam, sim, de um viés tipicamente conservador (sob a ótica da tradição americana). O mesmo chega a afirmar a defesa de uma emenda constitucional visando abolir o controle de constitucionalidade realizado pelo Judiciário (abolição do judicial review). 27 5) A Constitutional choices e a defesa do subtancialismo de Lawrence Tribe Por último, é mister citar as digressões desenvolvidas pelo também jurista de Harvard Lawrence Tribe. Tribe, em sua famosa obra “American Constitutional Law”, bem como na também famosa coletânea Constitutional choices, critica, de forma contundente as teorias intituladas de procedimentalistas. Na sua visão, essas teorizações que visariam apenas a garantir mecanismos de participação democrática (nos moldes defendidos, por exemplo, por Ely) seriam insuficientes, na medida em que seria necessária uma perspectiva substantiva que reconheça, na maioria das normas constitucionais e na sua aplicação, seu viés axiologizante. Para o autor, a Constituição é uma conjunção de escolhas e de opções 26 Nesses termos: “Tushnet introduz uma distinção entre o que ele chama de constituição grossa (thick contitution) e constituição delgada (thin constitution). Aquela seria composta por provisões detalhadas acerca da organização do governo que, apesar de importantes, são indiferentes ao público, ou seja, não costumam gerar controvérsias populares. Esta (Constituição delgada), por sua vez, é composta pelas garantias fundamentais de igualdade, liberdade de expressão e liberdade. Este conteúdo está previsto especialmente na Declaração de Independência e no Preambulo da Constituição. A questão enfrentada por Tushnet é a de como esta Constituição é interpretada fora dos Tribunais, em especial em comparação com a habilidade do Congresso dos EUA em realizar tal interpretação. E sua conclusão é a de que, embora os parlamentares não raciocinem da mesma maneira que os juízes, eles também atuam na direção de promover o significado dos valores constitucionais, ainda que sem o estilo formal do mundo jurídico.” OLIVEIRA, Daniel de Almeida, Críticas contemporâneas ao judicial review, p.62-63. 27 TUSNHET, Mark. Democracy v. Judicial Review. Is It Time Amend the Constitution? In. Dissent Magazine, V. 51, n° 2, 2005 (acesso em 16.12.2010) desenvolvidas por uma pluralidade de sujeitos. Nesses termos, as decisões que devem ser tomadas guardam íntima correlação com a nossa inarredável inserção em uma tradição, ou seja, essa seria um limite ou uma restrição à nossa capacidade decisória. Porém, as deliberações, fruto de escolhas, não são e não devem levar a uma univocidade (com as mesmas conclusões sendo levadas à cabo) de posturas constitucionais. Com isso, Tribe afirma que as escolhas constitucionais devem ser principiológicas.28 Mas, qual a base de tal postura principiológica? E em que estaria fundamentada sua legitimidade? Certo é que Tribe, em sua extensa obra, não terá a pretensão de construir uma metodologia alternativa as existentes (como a praticada, atualmente, em alguns julgados da Suprema Corte de “cunho administrativo”), que possa nos levar a escolhas constitucionais adequadas e absolutamente determinadas (e inquestionáveis), na medida em que, para o autor, “toda interpretação constitucional possui elementos de indeterminação”. Com isso, a dificuldade estaria em que “a Constituição pressupõe uma série indeterminável de escolhas, escolhas que se apresentam a todos nós, isto é, todos nós somos chamados a decidir o que é a Constituição e o que ela abarca em sua existência enquanto tal: texto, intenções (de quem?), premissas morais e políticas (de que tipo?).”29 Porém, mesmo não havendo uma teoria da interpretação constitucional totalmente viável em consistência e segurança, o professor de Harvard não se esquiva de traçar algumas diretrizes que possam apontar possibilidades de redução do déficit interpretativo hodierno nas suas mais variadas bases legitimadoras (como, por exemplo, a da superada dicotomia: interpretativista e a não-interpretativista, ou mesmo a de autores procedimentalistas ou minimalistas). Em instigante obra, de coautoria com Michel Dorf, o autor descreve o projeto intitulado de “conversas constitucionais” (diálogos constitucionais), no qual enfrenta, de forma veemente, uma série de teorizações e estabelece certos parâmetros reflexivos, sobretudo a partir das críticas, entre outras: a dicotomia hard cases (casos difíceis) e easy cases (casos simples),30 ou 28 Nesse sentido, corroborando com nosso entendimento: “Ao asseverar que tais escolhas devem ser tomadas num sentido principiológico, Tribe tem como foco principal fazer uma crítica a compreensão e operacionalização que as concebe como meros cálculos instrumentais de utilidade entre o custo e os benefícios sociais, comumente adotadas pela Suprema Corte americana que, segundo ele, tem, cada vez mais, se tornado uma administradora de orçamentos, de caráter imediatista, ao pautar suas decisões neste jogo de custo/benefício, o que acaba por (só) negar, em última instância, a responsabilidade com relação à escolha que lhe compete.” HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 179. 29 HENNING LEAL, Mônica Clarissa, Jurisdição constitucional aberta, p. 187. 30 Segundo os autores, é um equívoco supor que os grandes problemas de interpretação aparecem apenas nos casos difíceis, ou apenas quando o objeto tratado se refere a aspectos para os quais o mesmo a superação da busca pela interpretação constitucional com base em posturas objetivas ou subjetivas (da hermenêutica clássica). Portanto, o autor (apesar de, em última instância, não concordarmos em vários aspectos com suas digressões31) vai além das correntes interpretativistas e não- interpretativistas e, com isso, explicita sua contribuição, justamente, conforme já dito, na crítica às concepções de cunho procedimentalistas. Assim sendo, Tribe, embora reconheça certo caráter procedimental em algumas normas constitucionais (dispositivos de viés processual), não admite que seja desconsiderado o caráter substantivo das constituições com os valores que lhes são inerentes, sobretudo se os direitos fundamentais são postos no cerne do debate constitucional. Por tudo, (embora, em nosso sentir, de difícil enquadramento) há uma necessária vinculação entre processo e substância (procedimentalismo e substancialismo) em sua teoria e, a partir daí, uma opção pela defesa do substancialismo.32 Porém, diferentemente de Tushnet, em momento algum Tribe advoga o fim do judicial review. Pelo contrário, defende, o autor, a necessidade da manutenção da Suprema Corte e da atuação (tradicional) do judiciário como mecanismo de defesa das minorias (que poderiam ser prejudicadas em seus direitos), bem como da defesa do equilíbrio entre os poderes e da própria democracia constitucional fundada nesse modelo. 33 6) A análise econômica do direito de Richard Posner texto é vago e ambíguo. (TRIBE, Lawrence; DORF, Michel, 2007, p. 38-45). Aqui, temos uma interessante contribuição da hermenêutica filosófica que corrobora com o trabalhado pelos autores: [...] a distinção entre easy cases e hard cases é um problema de compreensão, isto é, não há casos simples ou difíceis em si. Somente há, na verdade, casos que demandam uma adequada interpretação, que jamais é apenas produto de suficiências ônticas do texto. Em definitivo: não há uma distinção estrutural entre casos simples e difíceis. Dito de outro modo, distinguir casos simples dos casos difíceis, significa cindir o que não pode ser cindido: o compreender, com o qual operamos, e que é condição de possibilidade para a interpretação. Afinal de que modo e quando podemos saber se estamos em face de um easy case ou de um hard case? Já não seria um caso difícil decidir se um caso é fácil ou difícil? (STRECK, Lenio. 2007, p. xxiv. In: TRIBE, Lawrence; DORF, Michel, 2007). 31 Sem dúvida, entre os autores trabalhados nos filiamos à perspectiva da hermenêutica crítica de Ronald Dworkin. Ver em nosso: O poder judiciário e(m) crise, FERNANDES, Bernardo Gonçalves e PEDRON, Flávio Quinaud. Ed. Lumen Juris, 2008. 32 TRIBE, Lawrence, American Constitutional Law, 2 ed., Cambridge: Fundation Press, 1988. TRIBE, Lawrence. Constitutional Choices. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1985. In: TRIBE, Lawrence; DORF, Michel, Hermenêutica constitucional, 2007. 33 OLIVEIRA, Daniel de Almeida, Críticas contemporâneas ao judicial review. p.66. TRIBE, Lawrwnce.H., WALDRON, Jeremy e TUSHNET, Mark. On Judicial Review, In Dissent Magazine, v.51, 2005, p.82-83 (acesso 16.12.2010). O marco da análise econômica do direito está alocado na obra Economic Analysis of Law lançada no início da década de 70 do século passado em Chicago por Richard Posner. Esse trabalho foi dividido em 7 (sete) partes envolvendo temas como o direito das empresas e dos mercados financeiros, a distribuição das riquezas e da arrecadação tributária, o processo legal americano, bem como a natureza da argumentação jurídica econômica (economic legal reasoning) 34. O ponto fulcral de tal teorização é a de que o direito é um instrumento para a consecução de fins sociais e, com isso, o fim central seria o da eficiência econômica. Para tal empreitada, Posner considerará que a economia é a ciência por excelência das escolhas racionais, afirmando em suas digressões que a economia guia a versão da análise econômica do direto e que as pessoas são maximizadoras racionais de suas satisfações. Assim sendo, todas as pessoas (com exceção de crianças pequenas e os mentalmente retardados) em todas as suas atividades (exceto sob a influência de psicose ou desarranjos mentais ocasionados por uso de drogas ou abuso de álcool) trabalham com escolhas e devem maximizar as mesmas35. A tese central da análise econômica do direito, então, poderia ser sintetizada em uma perspectiva de cunho utilitarista, na qual a decisão de um juiz deve se pautar por uma relação custo-benefício. Com isso, o direito só é perspectivo quando promove a maximização das relações econômicas, sendo que a maximização da riqueza (wealth maximization) deve orientar a atuação do magistrado36. Observamos, aqui, uma base caudatária do intitulado pragmatismo jurídico norte- americano, de matriz realista, que enxerga o direito apenas pela lógica exógena (externa) de cunho consequencialista forte,37 que desnatura o código binário do direito. Assim, o direito se apresenta, inexoravelmente, como um instrumental estratégico e 34 POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 6. ed. New York: Aspen, 2003. 35 POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 6. ed. New York: Aspen, 2003. Assim sendo, a Escola de Chicago, conforme Posner, deixa assente a aplicação de análise micro-econômica no direito, partindo de três premissas: (a) os indivíduos são maximizadores racionais de suas satisfações em comportamentos fora do mercado e no mercado; (b) os indivíduos respondem aos incentivos de preços no comportamento de mercado e fora do mercado; (c) regras e ações jurídicas podem ser avaliadas com base na eficiência, ao ponto que as decisões judiciais devem promover a eficiência. 36 GODOY, Arnaldo. Direito e Economia: Introdução ao movimento Law and Economics. Revista Jurídica, Brasília, v. 7, n. 73, jun/jul, 2005, p. 4. ROSA, Alexandre de Morais. Dialogos com a Law & Economics, 2 ª Edição, 2011. POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 6. ed. New York: Aspen, 2003. 37 Sobre as críticas ao consequencialismo forte de linhagem ultra-utilitarista ver: SANDEL, Michael J. Justiça, Ed. Civilização brasileira, 4ª Edição, 2011. Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce indeterminado de qualquer base de legitimidade e justificação interna conduzindo a um déficit de legitimidade e correção judicial. Sendo assim, Posner ao indicar o critério do custo-benefício/maximização da riqueza estabelece um lugar para o sistema judicial de garante de dogmas (como, por exemplo, a propriedade privada, contratos e etc) que deslocam a legitimidade das decisões judiciais do direito para a parametricidade econômica. As decisões jurídicas perdem, então, seu caráter deontológico se pautando por uma relação de custos e impactos econômicos interconectados pela lógica da eficiência. Ou seja, temos ai uma vertente do consequencialismo forte, que sustenta que a decisão judicial deve ser tomada não com os olhos no passado (seguindo um viés, por exemplo, interpretativista), mas sempre com os olhos voltados para o futuro (mas não na vertente não-interpretativista), de modo a escolher, dentre as opções, aquela que trouxer uma maior linha de vantagem que, para Posner deve ser sempre de cunho econômico. Posner, que é Juiz Federal, será muito criticado por inúmeras de suas posições. Uma delas chegou a fundamentar o acerto da Suprema Corte Americana na decisão sobre a eleição Bush X Gore na qual por cinco votos a quatro, foi mantido o resultado original do pleito ainda que sabidamente viciado no Estado da Florida38. Segundo Posner, a decisão contrária pela recontagem de votos (mesmo se fosse juridicamente coerente em virtude da possível fraude) causaria um enorme prejuízo as instituições do país além, de uma excessiva instabilidade pela falta de uma decisão sobre quem seria o futuro Presidente naquele período de reanalise da eleição. Observamos que, que para o autor, se torna mais importante a avaliação das consequências da decisão do que propriamente a juridicidade e normatividade da mesma. Em tom crítico, temos que se os imperativos de mercado passam a guiar a conduta judicial, o Direito passa a ser colonizado por outro sistema, com uma lógica distinta, lucro e prejuízo e, então, o Direito tende a desaparecer com todos os riscos evidentes para a estabilização de uma sociedade democrática39. 7) A teoria da Integridade de Ronald Dworkin É interessante, logo de início, pontuarmos, que o professor Ronald Dworkin,40 na 38 DWORKIN, Ronald. A Justiça de toga, Ed. Martins Fontes, 2011. 39 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. A resposta correta: Incursões jurídicas sobre as teorias da justiça, p.219-220, 2011. 40 DWORKIN, Ronald. O império do direito, 1999. Luíza Realce Luíza Realce visão de alguns autores, como Gomes Canotilho,41 seria um dos principais representantes do não-interpretativismo. Todavia, achamos que uma leitura que faça jus ao projeto teórico do jurista da New York School of Law apresentaria uma abertura bem maior, escapando a reduções drásticas que uma diferenciação dicotômica presa ao debate clássico (interpretativistas x não-interpretativistas) estaria atrelada. Entendemos que o projeto dworkiano é muito mais rico (e amplo) que o debate anterior, principalmente, porque se assenta em uma compreensão do direito atrelada às conquistas do giro hermenêutico-pragmático e intimamente preocupada com a questão da busca por uma justificação da legitimidade do direito e das decisões jurídicas. Para o jurista e filósofo norte-americano, o direito deve ser lido como parte de um empreendimento coletivo e compartilhado por toda a sociedade. Os direitos, assim, seriam frutos da história e da moralidade, no sentido de que observam uma construção histórico-institucional a partir do compartilhamento, em uma mesma sociedade, de um mesmo conjunto de princípios e o reconhecimento de iguais direitos e liberdades subjetivas a todos os seus membros (comunidade de princípios42). Isso implica reconhecer que todos que pertencem a uma mesma sociedade necessariamente compartilham de um mesmo conjunto de direitos e deveres básicos; direito inclusive de participar da construção e da atribuição de sentido a esses direitos, seja na seara do Poder Legislativo, seja na seara do Poder Judiciário. Logo, ninguém – e principalmente os magistrados – seriam livres para decidir casos concretos levados ao Judiciário (ou seja, ele nega a existência da discricionariedade na solução de um caso sub judice), nem poderia subordinar suas decisões à persecução de metas coletivas (que beneficiam apenas uma parcela da sociedade em detrimento de outra parcela) se direitos individuais (corporificados pelos princípios jurídicos) estivessem em discussão, pois – assim como curingas em um jogo de cartas – detêm primazia sobre as primeiras (metas coletivas), dado o seu caráter de universalidade – como já dito, são válidos para todos os membros dessa sociedade43. A compreensão de que a atividade decisória dos juízes não se produz no vácuo, mas, sim, em constante diálogo com a história, revela as influências da hermenêutica gadameriana. Todavia, Dworkin é defensor de uma interpretação construtiva, e, por isso 41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 6ª Edição, p. 1.182-1.183, 2003. 42 A comunidade de princípios se mostra como ideia fundamental na teoria Dworkiana, já que é condição de possibilidade para as metáforas do Juiz Hércules e do romance em cadeia. 43 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. p. 178, 2011. Luíza Realce mesmo, de uma teoria hermenêutica crítica em que a decisão de um caso produz um “acréscimo” em uma determinada tradição. Além disso, a construção da decisão do caso, e consequentemente, da própria interpretação constitucional se mostra como algo coletivo e aberto a uma evolução – e porque não, revisão – constante44. Dworkin imagina uma metáfora (do romance em cadeia) na qual cada juiz é apenas o autor de um capítulo em uma longa obra coletiva sobre um determinado direito (princípio). Ele se encontra, então, não apenas vinculado – e não amarrado! – ao passado, mas com o compromisso de ler tudo o que já foi feito por seus antecessores para buscar continuar sua tarefa e redigir um esquema melhor – dotado do que ele denomina integridade – dos princípios existentes e reconhecidos pela comunidade. Resumindo a tese: a integridade nega que as manifestações do Direito sejam meros relatos factuais voltados para o passado, como quer o convencionalismo atrelado ao positivismo; ou programas instrumentais voltados para o futuro, como pretende o pragmatismo atrelado ao realismo. Para o Direito como integridade, as afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas voltadas tanto para o passado quanto para o futuro. Nesses termos, “o direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (...) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que ‘lei é lei’, bem como o cinismo do novo ‘relativismo’. Considera esses dois pontos de vista como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim, uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer”.45 44 FERNANDES, Bernardo Gonçalves e PEDRON, Flávio Quinaud. O poder judiciário e(m) crise, Ed. Lumen Juris, p. 210-224, 2008. 45 DWORKIN, Ronald, O império do direito, p. 274, 1999FERNANDES, Bernardo Gonçalves e Luíza Realce Luíza Realce Uma sociedade que aceite a integridade como virtude se transforma, segundo Dworkin, em um tipo especial de comunidade que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar o monopólio da força coercitiva. Logo, a teoria de Dworkin (embora alguns autores brasileiros insistam em não entender!), nos traz pelo menos 4 (quatro) pontos que são merecedores de destaque, uma vez que são pertinentes a esse debate: (1) a negativa da discricionariedade judicial (no sentido forte); (2) a negativa de que decisões judiciais possam se apoiar em diretrizes políticas; (3) a importância da noção de devido processo para a dimensão da integridade; e (4) a própria noção de integridade, que levanta a exigência de que cada caso seja compreendido como parte de uma história encadeada; não podendo, portanto, ser descartado sem uma razão baseada em uma coerência de princípios.46 8) Conclusão O giro científico do racionalismo crítico de Karl Popper, bem como o giro hermenêutico-pragmático tributário de Wittgenstein e de Gadamer acabaram por nos ensinar que paradoxalmente o conhecimento produz desconhecimento, pois quando conhecemos algo reduzimos a complexidade, ou seja, quando lançamos luzes sobre um objeto de análise, escurecemos outros. Isso apenas caracteriza a ciência e o conhecimento científico como produtos de uma condição humana, que hoje se sabe (contra um racionalismo iluminista míope) precária, datada e passível constantemente de refutação (pois falível). E nesses termos, ainda assim, as velhas dicotomias insistem em rondar nossas vidas, como que fantasmas que vão e voltam no devir da história. Apesar do relativo e pretenso didatismo das mesmas em propedêuticas lições do despertar jurídico, acreditamos, em uma visão menos preguiçosa e mais crítica, que elas mais velam do que desvelam os processos aplicação do direito e as respectivas teorias da justiça altamente complexas que permeiam a teoria do direito e a hermenêutica (crítica) subjacente às mesma. PEDRON, Flávio Quinaud. O poder judiciário e(m) crise, Ed. Lumen Juris, 2008. . 46 Para um aprofundamento nas teses de Dworkin, ver O poder judiciário e(m) crise, Ed. Lumen Juris, 2008. FERNANDES, Bernardo Gonçalves e PEDRON, Flávio Quinaud. Esse texto nasceu de uma pergunta feita a Ronald Dworkin, um dos juristas mais renomados do mundo e trabalhado no ensaio. Perquirido de forma acrítica pela milésima vez em pleno século XXI se afinal de contas ele era um jusnaturalista ou um positivista, respondeu em tom irônico: “Ora, se só existir isso, e se for para escolher sou um jusnaturalista, embora, obviamente, não seja, aliás, muito pelo contrário!” O mesmo aconteceria se a pergunta fosse em relação a preferência pela vontade do legislador ou da lei (ou direito público versus direito privado), ou ao tema do ensaio (interpretativismo e o não-interpretativismo), ou a qualquer outra dicotomia incompatível com a complexidade de nossa epocalidade. Acreditamos que o procedimentalismo fraco de Ely, o minimalismo de Susntein, o populismo constitucional de Tushnet, o substancialismo de Tribe, o pragmatismo econômico de Posner, bem como a teoria da integridade e a interpretação construtivista de Dworkin buscam um ir além, que, sem dúvida, vem enriquecendo o debate norte-americano e, de forma transconstitucional, causando inúmeras reflexões hermenêuticas em terrae brasilis. Referências Bibliográficas CANOTILHO, José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2003. CRUZ, Álvaro Ricardo Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. ______. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. A resposta correta: Incursões jurídicas sobre as teorias da justiça. Ed. Arraes, 2011. DORF, Michael. The Supreme Court 1997 term – the limits of socratic deliberation. Harvard Law Review, Cambridge: Harvard University, n. 4. 1998. DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _______. Sovereign virtue. Cambridge: Harvard University Press, 2000. ______. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. Is democracy possible here?: principles for a new political debate. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2006. _____ A Justiça de Toga. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. FERNANDES, Bernardo Gonçalves; QUINAUD PEDRON, Flávio. Poder judiciário e(m) crise: reflexões de teoria da constituição e teoria geral do processo sobre o acesso à justiça e as recentes reformas do poder judiciário à luz de: Ronald Dworkin, Klaus Günther e Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 3 Ed. Lumen juris, 2011. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Fundamentos de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2001. GODOY, Arnaldo. Direito e Economia: Introdução ao movimento Law and Economics. Revista Jurídica, Brasília, v. 7, n. 73, jun/jul, 2005. HENNIG LEAL, Mônica Clarissa. Jurisdição constitucional aberta. reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. KRAMER, Lerry. The People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. New York: Oxford University Press, 2004. 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Teoria Geral do Direito - parte I/Conven��o Europeia dos Direitos do Homem.pdf Convenção Europeia dos Direitos do Homem Convenção Europeia dos Direitos do Homem com as modificações introduzidas pelos Protocolos nos 11 e 14 acompanhada do Protocolo adicional e dos Protocolos nos 4, 6, 7, 12 e 13 3 O texto da Convenção inclui as modificações introduzidas pelo Protocolo n° 14 (STCE n° 194), entrado em vigor em 1 de Junho de 2010. O texto da Convenção foi anteriormente modificado nos termos das disposições do Protocolo n° 3 (STE n° 45), entrado em vigor em 21 de Setembro de 1970, do Protocolo n° 5 (STE n° 55), entrado em vigor em 20 de Dezembro de 1971 e do Protocolo n° 8 (STE n° 118), entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1990, incluindo ainda o texto do Protocolo n° 2 (STE n° 44) que, nos termos do seu artigo 5°, parágrafo 3°, fazia parte integrante da Convenção desde a sua entrada em vigor em 21 de Setembro de 1970. Todas as disposições modificadas ou acrescentadas por estes Protocolos foram substituídas pelo Protocolo n° 11 (STE n° 155), a partir da data da entrada em vigor deste, em 1 de Novembro de 1998. A partir desta data, o Protocolo n° 9 (STE n° 140), entrado em vigor em 1 de Outubro de 1994, foi revogado e o Protocolo n° 10 (STE n° 146) ficou sem objecto. O estado das assinaturas e ratificações da Convenção e seus Protocolos, bem como a lista completa das declarações e reservas, podem ser consultados em www.conventions.coe.int. Apenas fazem fé as versões inglesa e francesa da Convenção. Esta tradução não é uma versão oficial da Convenção. Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Council of Europe F-67075 Strasbourg cedex www.echr.coe.int SUMÁRIO Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais .......................................5 Protocolo adicional ......................................................33 Protocolo n° 4 .............................................................37 Protocolo n° 6 .............................................................41 Protocolo n° 7 .............................................................45 Protocolo n° 12 ...........................................................51 Protocolo n° 13 ...........................................................55 5 Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais Roma, 4.11.1950 Os Governos signatários, Membros do Conselho da Europa, Considerando a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, Considerando que esta Declaração se destina a assegurar o reconhecimento e aplicação universais e efectivos dos direitos nela enunciados, Considerando que a finalidade do Conselho da Europa é realizar uma união mais estreita entre os seus Membros e que um dos meios de alcançar esta finalidade é a protecção e o desenvolvimento dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, Reafirmando o seu profundo apego a estas liberdades fundamentais, que constituem as verdadeiras bases da justiça e da paz no mundo e cuja preservação repousa essencialmente, por um lado, num regime político verdadeiramente democrático e, por outro, numa concepção comum e no comum respeito dos direitos do homem, Decididos, enquanto Governos de Estados Europeus animados no mesmo espírito, possuindo um património comum de ideais e tradições políticas, de respeito pela liberdade e pelo primado do direito, a tomar as primeiras providências apropriadas para 6 7 assegurar a garantia colectiva de certo número de direitos enunciados na Declaração Universal, Convencionaram o seguinte: ARTIGO 1° Obrigação de respeitar os direitos do homem As Altas Partes Contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção. TÍTULO I DIREITOS E LIBERDADES ARTIGO 2° Direito à vida 1. O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei. 2. Não haverá violação do presente artigo quando a morte resulte de recurso à força, tornado absolutamente necessário: a) Para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal; b) Para efectuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida legalmente; c) Para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição. ARTIGO 3° Proibição da tortura Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes. ARTIGO 4° Proibição da escravatura e do trabalho forçado 1. Ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão. 2. Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou obrigatório. 3. Não será considerado “trabalho forçado ou obrigatório” no sentido do presente artigo: a) Qualquer trabalho exigido normalmente a uma pessoa submetida a detenção nas condições previstas pelo artigo 5° da presente Convenção, ou enquanto estiver em liberdade condicional; b) Qualquer serviço de carácter militar ou, no caso de objectores de consciência, nos países em que a objecção de consciência for reconhecida como legítima, qualquer outro serviço que substitua o serviço militar obrigatório; c) Qualquer serviço exigido no caso de crise ou de calamidade que ameacem a vida ou o bem - estar da comunidade; d) Qualquer trabalho ou serviço que fizer parte das obrigações cívicas normais. 8 9 ARTIGO 5° Direito à liberdade e à segurança 1. Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal: a) Se for preso em consequência de condenação por tribunal competente; b) Se for preso ou detido legalmente, por desobediência a uma decisão tomada, em conformidade com a lei, por um tribunal, ou para garantir o cumprimento de uma obrigação prescrita pela lei; c) Se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido; d) Se se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância, ou da sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente; e) Se se tratar da detenção legal de uma pessoa susceptível de propagar uma doença contagiosa, de um alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano ou de um vagabundo; f) Se se tratar de prisão ou detenção legal de uma pessoa para lhe impedir a entrada ilegal no território ou contra a qual está em curso um processo de expulsão ou de extradição. 2. Qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela. 3. Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo. 4. Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal. 5. Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem direito a indemnização. ARTIGO 6° Direito a um processo equitativo 1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa 10 11 sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça. 2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada. 3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada; b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa; c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem; d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação; e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo. ARTIGO 7° Princípio da legalidade 1. Ninguém pode ser condenado por uma acção ou uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infracção, segundo o direito nacional ou internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infracção foi cometida. 2. O presente artigo não invalidará a sentença ou a pena de uma pessoa culpada de uma acção ou de uma omissão que, no momento em que foi cometida, constituía crime segundo os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas. ARTIGO 8° Direito ao respeito pela vida privada e familiar 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros. ARTIGO 9° Liberdade de pensamento, de consciência e de religião 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou colectivamente, não pode ser objecto de 12 13 outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem. ARTIGO 10° Liberdade de expressão 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. 2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial. ARTIGO 11° Liberdade de reunião e de associação 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a defesa dos seus interesses. 2. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros. O presente artigo não proíbe que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes direitos aos membros das forças armadas, da polícia ou da administração do Estado. ARTIGO 12° Direito ao casamento A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de se casar e de constituir família, segundo as leis nacionais que regem o exercício deste direito. ARTIGO 13° Direito a um recurso efectivo Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que actuem no exercício das suas funções oficiais. ARTIGO 14° Proibição de discriminação O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a 14 15 uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação. ARTIGO 15° Derrogação em caso de estado de necessidade 1. Em caso de guerra ou de outro perigo público que ameace a vida da nação, qualquer Alta Parte Contratante pode tomar providências que derroguem as obrigações previstas na presente Convenção, na estrita medida em que o exigir a situação, e em que tais providências não estejam em contradição com as outras obrigações decorrentes do direito internacional. 2. A disposição precedente não autoriza nenhuma derrogação ao artigo 2°, salvo quanto ao caso de morte resultante de actos lícitos de guerra, nem aos artigos 3°, 4° (parágrafo 1) e 7°. 3. Qualquer Alta Parte Contratante que exercer este direito de derrogação manterá completamente informado o Secretário- Geral do Conselho da Europa das providências tomadas e dos motivos que as provocaram. Deverá igualmente informar o Secretário - Geral do Conselho da Europa da data em que essas disposições tiverem deixado de estar em vigor e da data em que as da Convenção voltarem a ter plena aplicação. ARTIGO 16° Restrições à actividade política dos estrangeiros Nenhuma das disposições dos artigos 10°, 11° e 14° pode ser considerada como proibição às Altas Partes Contratantes de imporem restrições à actividade política dos estrangeiros. ARTIGO 17° Proibição do abuso de direito Nenhuma das disposições da presente Convenção se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a actividade ou praticar actos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção. ARTIGO 18° Limitação da aplicação de restrições aos direitos As restrições feitas nos termos da presente Convenção aos referidos direitos e liberdades só podem ser aplicadas para os fins que foram previstas. TÍTULO II TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM ARTIGO 19° Criação do Tribunal A fim de assegurar o respeito dos compromissos que resultam, para as Altas Partes Contratantes, da presente Convenção e dos seus protocolos, é criado um Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a seguir designado “o Tribunal”, o qual funcionará a título permanente. 16 17 ARTIGO 20° Número de juízes O Tribunal compõe-se de um número de juízes igual ao número de Altas Partes Contratantes. ARTIGO 21° Condições para o exercício de funções 1. Os juízes deverão gozar da mais alta reputação moral e reunir as condições requeridas para o exercício de altas funções judiciais ou ser jurisconsultos de reconhecida competência. 2. Os juízes exercem as suas funções a título individual. 3. Durante o respectivo mandato, os juízes não poderão exercer qualquer actividade incompatível com as exigências de independência, imparcialidade ou disponibilidade exigidas por uma actividade exercida a tempo inteiro. Qualquer questão relativa à aplicação do disposto no presente número é decidida pelo Tribunal. ARTIGO 22° Eleição dos juízes Os juízes são eleitos pela Assembleia Parlamentar relativamente a cada Alta Parte Contratante, por maioria dos votos expressos, recaindo numa lista de três candidatos apresentados pela Alta Parte Contratante. ARTIGO 23° Duração do mandato e destituição 1. Os juízes são eleitos por um período de nove anos. Não são reelegíveis. 2. O mandato dos juízes cessará logo que estes atinjam a idade de 70 anos. 3. Os juízes permanecerão em funções até serem substituídos. Depois da sua substituição continuarão a ocupar-se dos assuntos que já lhes tinham sido cometidos. 4. Nenhum juíz poderá ser afastado das suas funções, salvo se os restantes juízes decidirem, por maioria de dois terços, que o juiz em causa deixou de corresponder aos requisitos exigidos. ARTIGO 24° Secretaria e relatores O Tribunal dispõe de uma secretaria, cujas tarefas e organização serão definidas no regulamento do Tribunal. Sempre que funcionar enquanto tribunal singular, o Tribunal será assistido por relatores que exercerão as suas funções sob autoridade do Presidente do Tribunal. Estes integram a secretaria do Tribunal. ARTIGO 25° Assembleia plenária do Tribunal O Tribunal, reunido em assembleia plenária: a) Elegerá o seu presidente e um ou dois vice-presidentes por um período de três anos. Todos eles são reelegíveis; b) Criará secções, que funcionarão por período determinado; c) Elegerá os presidentes das secções do Tribunal, os quais são reelegíveis; d) Adoptará o regulamento do Tribunal; e) Elegerá o secretário e um ou vários secretários-adjuntos; 18 19 f) Apresentará qualquer pedido nos termos do artigo 26°, n° 2. ARTIGO 26° Tribunal singular, comités, secções e tribunal pleno 1. Para o exame dos assuntos que lhe sejam submetidos, o Tribunal funcionará com juiz singular, em comités compostos por 3 juízes, em secções compostas por 7 juízes e em tribunal pleno composto por 17 juízes. As secções do tribunal constituem os comités por período determinado. 2. A pedido da Assembleia Plenária do Tribunal, o Comité de Ministros poderá, por decisão unânime e por período determinado, reduzir para cinco o número de juízes das secções. 3. Um juiz com assento na qualidade de juiz singular não procederá à apreciação de qualquer petição formulada contra a Alta Parte Contratante em nome da qual o juiz em causa tenha sido eleito. 4. O juiz eleito por uma Alta Parte Contratante que seja parte no diferendo será membro de direito da secção e do tribunal pleno. Em caso de ausência deste juiz ou se ele não estiver em condições de intervir, uma pessoa escolhida pelo Presidente do Tribunal de uma lista apresentada previamente por essa Parte intervirá na qualidade de juiz. 5. Integram igualmente o tribunal pleno o presidente do Tribunal, os vice-presidentes, os presidentes das secções e outros juízes designados em conformidade com o regulamento do Tribunal. Se o assunto tiver sido deferido ao tribunal pleno nos termos do artigo 43°, nenhum juiz da secção que haja proferido a decisão poderá naquele intervir, salvo no que respeita ao presidente da secção e ao juiz que decidiu em nome da Alta Parte Contratante que seja Parte interessada. ARTIGO 27° Competência dos juízes singulares 1. Qualquer juiz singular pode declarar a inadmissibilidade ou mandar arquivar qualquer petição formulada nos termos do artigo 34° se essa decisão puder ser tomada sem posterior apreciação. 2. A decisão é definitiva. 3. Se o juiz singular não declarar a inadmissibilidade ou não mandar arquivar uma petição, o juiz em causa transmite-a a um comité ou a uma secção para fins de posterior apreciação. ARTIGO 28° Competência dos comités 1. Um comité que conheça de uma petição individual formulada nos termos do artigo 34° pode, por voto unânime: a) Declarar a inadmissibilidade ou mandar arquivar a mesma sempre que essa decisão puder ser tomada sem posterior apreciação; ou b) Declarar a admissibilidade da mesma e proferir ao mesmo tempo uma sentença quanto ao fundo sempre que a questão subjacente ao assunto e relativa à interpretação ou à aplicação da Convenção ou dos respectivos Protocolos for já objecto de jurisprudência bem firmada do Tribunal. 2. As decisões e sentenças previstas pelo n° 1 são definitivas. 3. Se o juiz eleito pela Alta Parte Contratante, parte no litígio, não for membro do comité, o comité pode, em qualquer momento do processo, convidar o juiz em causa a ter assento no lugar de um dos membros do comité, tendo em consideração todos os factores relevantes, incluindo a questão de saber se 20 21 essa Parte contestou a aplicação do processo previsto no n° 1, alínea b). ARTIGO 29° Decisões das secções quanto à admissibilidade e ao fundo 1. Se nenhuma decisão tiver sido tomada nos termos dos artigos 27° ou 28°, e se nenhuma sentença tiver sido proferida nos termos do artigo 28°, uma das secções pronunciar-se-á quanto à admissibilidade e ao fundo das petições individuais formuladas nos termos do artigo 34°. A decisão quanto à admissibilidade pode ser tomada em separado. 2. Uma das secções pronunciar-se-á quanto à admissibilidade e ao fundo das petições estaduais formuladas nos termos do artigo 33°. A decisão quanto à admissibilidade é tomada em separado, salvo deliberações em contrário do Tribunal relativamente a casos excepcionais. ARTIGO 30° Devolução da decisão a favor do tribunal pleno Se um assunto pendente numa secção levantar uma questão grave quanto à interpretação da Convenção ou dos seus protocolos, ou se a solução de um litígio puder conduzir a uma contradição com uma sentença já proferida pelo Tribunal, a secção pode, antes de proferir a sua sentença, devolver a decisão do litígio ao tribunal pleno, salvo se qualquer das partes do mesmo a tal se opuser. ARTIGO 31° Atribuições do tribunal pleno O tribunal pleno: a) Pronunciar-se-á sobre as petições formuladas nos termos do artigo 33° ou do artigo 34°, se a secção tiver cessado de conhecer de um assunto nos termos do artigo 30° ou se o assunto lhe tiver sido cometido nos termos do artigo 43°; b) Pronunciar-se-á sobre as questões submetidas ao Tribunal pelo Comité de Ministros nos termos do artigo 46°, n° 4; e c) Apreciará os pedidos de parecer formulados nos termos do artigo 47°. ARTIGO 32° Competência do Tribunal 1. A competência do Tribunal abrange todas as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção e dos respectivos protocolos que lhe sejam submetidas nas condições previstas pelos artigos 33°, 34°,46° e 47°. 2. O Tribunal decide sobre quaisquer contestações à sua competência. ARTIGO 33° Assuntos interestaduais Qualquer Alta Parte Contratante pode submeter ao Tribunal qualquer violação das disposições da Convenção e dos seus protocolos que creia poder ser imputada a outra Alta Parte Contratante. 22 23 ARTIGO 34° Petições individuais O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos. As Altas Partes Contratantes comprometem - se a não criar qualquer entrave ao exercício efectivo desse direito. ARTIGO 35° Condições de admissibilidade 1. O Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso internas, em conformidade com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos e num prazo de seis meses a contar da data da decisão interna definitiva. 2. O Tribunal não conhecerá de qualquer petição individual formulada em aplicação do disposto no artigo 34° se tal petição: a) For anónima; b) For, no essencial, idêntica a uma petição anteriormente examinada pelo Tribunal ou já submetida a outra instância internacional de inquérito ou de decisão e não contiver factos novos. 3. O Tribunal declarará a inadmissibilidade de qualquer petição individual formulada nos termos do artigo 34° sempre que considerar que: a) A petição é incompatível com o disposto na Convenção ou nos seus Protocolos, é manifestamente mal fundada ou tem carácter abusivo; ou b) O autor da petição não sofreu qualquer prejuízo significativo, salvo se o respeito pelos direitos do homem garantidos na Convenção e nos respectivos Protocolos exigir uma apreciação da petição quanto ao fundo e contanto que não se rejeite, por esse motivo, qualquer questão que não tenha sido devidamente apreciada por um tribunal interno. 4. O Tribunal rejeitará qualquer petição que considere inadmissível nos termos do presente artigo. O Tribunal poderá decidir nestes termos em qualquer momento do processo. ARTIGO 36° Intervenção de terceiros 1. Em qualquer assunto pendente numa secção ou no tribunal pleno, a Alta Parte Contratante da qual o autor da petição seja nacional terá o direito de formular observações por escrito ou de participar nas audiências. 2. No interesse da boa administração da justiça, o presidente do Tribunal pode convidar qualquer Alta Parte Contratante que não seja parte no processo ou qualquer outra pessoa interessada que não o autor da petição a apresentar observações escritas ou a participar nas audiências. 3. Em qualquer assunto pendente numa secção ou no tribunal pleno, o Comissário para os Direitos do Homem do Conselho da Europa poderá formular observações por escrito e participar nas audiências. ARTIGO 37° Arquivamento 1. O Tribunal pode decidir, em qualquer momento do processo, arquivar uma petição se as circunstâncias permitirem concluir que: 24 25 a) O requerente não pretende mais manter tal petição; b) O litígio foi resolvido; c) Por qualquer outro motivo constatado pelo Tribunal, não se justifica prosseguir a apreciação da petição. Contudo, o Tribunal dará seguimento à apreciação da petição se o respeito pelos direitos do homem garantidos na Convenção assim o exigir. 2. O Tribunal poderá decidir - se pelo desarquivamento de uma petição se considerar que as circunstâncias assim o justificam. ARTIGO 38° Apreciação contraditória do assunto O Tribunal procederá a uma apreciação contraditória do assunto em conjunto com os representantes das Partes e, se for caso disso, realizará um inquérito para cuja eficaz condução as Altas Partes Contratantes interessadas fornecerão todas as facilidades necessárias. ARTIGO 39° Resoluções amigáveis 1. O Tribunal poderá, em qualquer momento do processo, colocar-se à disposição dos interessados com o objectivo de se alcançar uma resolução amigável do assunto, inspirada no respeito pelos direitos do homem como tais reconhecidos pela Convenção e pelos seus Protocolos. 2. O processo descrito no n° 1 do presente artigo é confidencial. 3. Em caso de resolução amigável, o Tribunal arquivará o assunto, proferindo, para o efeito, uma decisão que conterá uma breve exposição dos factos e da solução adoptada. 4. Tal decisão será transmitida ao Comité de Ministros, o qual velará pela execução dos termos da resolução amigável tais como constam da decisão. ARTIGO 40° Audiência pública e acesso aos documentos 1. A audiência é pública, salvo se o Tribunal decidir em contrário por força de circunstâncias excepcionais. 2. Os documentos depositados na secretaria ficarão acessíveis ao público, salvo decisão em contrário do presidente do Tribunal. ARTIGO 41° Reparação razoável Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário. ARTIGO 42° Decisões das secções As decisões tomadas pelas secções tornam - se definitivas em conformidade com o disposto no n° 2 do artigo 44°. 26 27 ARTIGO 43° Devolução ao tribunal pleno 1. Num prazo de três meses a contar da data da sentença proferida por uma secção, qualquer parte no assunto poderá, em casos excepcionais, solicitar a devolução do assunto ao tribunal pleno. 2. Um colectivo composto por cinco juízes do tribunal pleno aceitará a petição, se o assunto levantar uma questão grave quanto à interpretação ou à aplicação da Convenção ou dos seus protocolos ou ainda se levantar uma questão grave de carácter geral. 3. Se o colectivo aceitar a petição, o tribunal pleno pronunciar-se- á sobre o assunto por meio de sentença. ARTIGO 44° Sentenças definitivas 1. A sentença do tribunal pleno é definitiva. 2. A sentença de uma secção pronunciar-se-á definitiva: a) Se as partes declararem que não solicitarão a devolução do assunto ao tribunal pleno; b) Três meses após a data da sentença, se a devolução do assunto ao tribunal pleno não for solicitada; c) Se o colectivo do tribunal pleno rejeitar a petição de devolução formulada nos termos do artigo 43°. 3. A sentença definitiva será publicada. ARTIGO 45° Fundamentação das sentenças e das decisões 1. As sentenças, bem como as decisões que declarem a admissibilidade ou a inadmissibilidade das petições, serão fundamentadas. 2. Se a sentença não expressar, no todo ou em parte, a opinião unânime dos juízes, qualquer juiz terá o direito de lhe juntar uma exposição da sua opinião divergente. ARTIGO 46° Força vinculativa e execução das sentenças 1. As Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do Tribunal nos litígios em que forem partes. 2. A sentença definitiva do Tribunal será transmitida ao Comité de Ministros, o qual velará pela sua execução. 3. Sempre que o Comité de Ministros considerar que a supervisão da execução de uma sentença definitiva está a ser entravada por uma dificuldade de interpretação dessa sentença, poderá dar conhecimento ao Tribunal a fim que o mesmo se pronuncie sobre essa questão de interpretação. A decisão de submeter a questão à apreciação do tribunal será tomada por maioria de dois terços dos seus membros titulares. 4. Sempre que o Comité de Ministros considerar que uma Alta Parte Contratante se recusa a respeitar uma sentença definitiva num litígio em que esta seja parte, poderá, após notificação dessa Parte e por decisão tomada por maioria de dois terços dos seus membros titulares, submeter à apreciação do Tribunal a questão sobre o cumprimento, por essa Parte, da sua obrigação em conformidade com o n° 1. 28 29 5. Se o Tribunal constatar que houve violação do n° 1, devolverá o assunto ao Comité de Ministros para fins de apreciação das medidas a tomar. Se o Tribunal constatar que não houve violação do n° 1, devolverá o assunto ao Comité de Ministros, o qual decidir-se-á pela conclusão da sua apreciação. ARTIGO 47° Pareceres 1. A pedido do Comité de Ministros, o Tribunal pode emitir pareceres sobre questões jurídicas relativas à interpretação da Convenção e dos seus protocolos. 2. Tais pareceres não podem incidir sobre questões relativas ao conteúdo ou à extensão dos direitos e liberdades definidos no título I da Convenção e nos protocolos, nem sobre outras questões que, em virtude do recurso previsto pela Convenção, possam ser submetidas ao Tribunal ou ao Comité de Ministros. 3. A decisão do Comité de Ministros de solicitar um parecer ao Tribunal será tomada por voto maioritário dos seus membros titulares. ARTIGO 48° Competência consultiva do Tribunal O Tribunal decidirá se o pedido de parecer apresentado pelo Comité de Ministros cabe na sua competência consultiva, tal como a define o artigo 47°. ARTIGO 49° Fundamentação dos pareceres 1. O parecer do Tribunal será fundamentado. 2. Se o parecer não expressar, no seu todo ou em parte, a opinião unânime dos juízes, qualquer juiz tem o direito de o fazer acompanhar de uma exposição com a sua opinião divergente. 3. O parecer do Tribunal será comunicado ao Comité de Ministros. ARTIGO 50° Despesas de funcionamento do Tribunal As despesas de funcionamento do Tribunal serão suportadas pelo Conselho da Europa. ARTIGO 51° Privilégios e imunidades dos juízes Os juízes gozam, enquanto no exercício das suas funções, dos privilégios e imunidades previstos no artigo 40° do Estatuto do Conselho da Europa e nos acordos concluídos em virtude desse artigo. TÍTULO III DISPOSIÇÕES DIVERSAS ARTIGO 52° Inquéritos do Secretário - Geral Qualquer Alta Parte Contratante deverá fornecer, a requerimento do Secretário-Geral do Conselho da Europa, os esclarecimentos pertinentes sobre a forma como o seu direito interno assegura a aplicação efectiva de quaisquer disposições desta Convenção. 30 31 ARTIGO 53° Salvaguarda dos direitos do homem reconhecidos por outra via Nenhuma das disposições da presente Convenção será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos do homem e as liberdades fundamentais que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela seja parte. ARTIGO 54° Poderes do Comité de Ministros Nenhuma das disposições da presente Convenção afecta os poderes conferidos ao Comité de Ministros pelo Estatuto do Conselho da Europa. ARTIGO 55° Renúncia a outras formas de resolução de litígios As Altas Partes Contratantes renunciam reciprocamente, salvo acordo especial, a aproveitar-se dos tratados, convénios ou declarações que entre si existirem, com o fim de resolver, por via contenciosa, uma divergência de interpretação ou aplicação da presente Convenção por processo de solução diferente dos previstos na presente Convenção. ARTIGO 56° Aplicação territorial 1. Qualquer Estado pode, no momento da ratificação ou em qualquer outro momento ulterior, declarar, em notificação dirigida ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, que a presente Convenção se aplicará, sob reserva do n° 4 do presente artigo, a todos os territórios ou a quaisquer dos territórios cujas relações internacionais assegura. 2. A Convenção será aplicada ao território ou territórios designados na notificação, a partir do trigésimo dia seguinte à data em que o Secretário - Geral do Conselho da Europa a tiver recebido. 3. Nos territórios em causa, as disposições da presente Convenção serão aplicáveis tendo em conta as necessidades locais. 4. Qualquer Estado que tiver feito uma declaração de conformidade com o primeiro parágrafo deste artigo pode, em qualquer momento ulterior, declarar que aceita, a respeito de um ou vários territórios em questão, a competência do Tribunal para aceitar petições de pessoas singulares, de organizações não governamentais ou de grupos de particulares, conforme previsto pelo artigo 34° da Convenção. ARTIGO 57° Reservas 1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura desta Convenção ou do depósito do seu instrumento de ratificação, formular uma reserva a propósito de qualquer disposição da Convenção, na medida em que uma lei então em vigor no seu território estiver em discordância com aquela disposição. Este artigo não autoriza reservas de carácter geral. 2. Toda a reserva feita em conformidade com o presente artigo será acompanhada de uma breve descrição da lei em causa. 32 33 ARTIGO 58° Denúncia 1. Uma Alta Parte Contratante só pode denunciar a presente Convenção ao fim do prazo de cinco anos a contar da data da entrada em vigor da Convenção para a dita Parte, e mediante um pré - aviso de seis meses, feito em notificação dirigida ao Secretário - Geral do Conselho da Europa, o qual informará as outras Partes Contratantes. 2. Esta denúncia não pode ter por efeito desvincular a Alta Parte Contratante em causa das obrigações contidas na presente Convenção no que se refere a qualquer facto que, podendo constituir violação daquelas obrigações, tivesse sido praticado pela dita Parte anteriormente à data em que a denúncia produz efeito. 3. Sob a mesma reserva, deixará de ser parte na presente Convenção qualquer Alta Parte Contratante que deixar de ser membro do Conselho da Europa. 4. A Convenção poderá ser denunciada, nos termos dos parágrafos precedentes, em relação a qualquer território a que tiver sido declarada aplicável nos termos do artigo 56°. ARTIGO 59° Assinatura e ratificação 1. A presente Convenção está aberta à assinatura dos membros do Conselho da Europa. Será ratificada. As ratificações serão depositadas junto do Secretário - Geral do Conselho da Europa. 2. A União Europeia poderá aderir à presente Convenção. 3. A presente Convenção entrará em vigor depois do depósito de dez instrumentos de ratificação. 4. Para todo o signatário que a ratifique ulteriormente, a Convenção entrará em vigor no momento em que se realizar o depósito do instrumento de ratificação. 5. O Secretário-Geral do Conselho da Europa notificará todos os membros do Conselho da Europa da entrada em vigor da Convenção, dos nomes das Altas Partes Contratantes que a tiverem ratificado, assim como do depósito de todo o instrumento de ratificação que ulteriormente venha a ser feito. Feito em Roma, aos 4 de Novembro de 1950, em francês e em inglês, os dois textos fazendo igualmente fé, num só exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa. O Secretário-Geral enviará cópias conformes a todos os signatários. Protocolo adicional à Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais Paris, 20.3.1952 (Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998) Os Governos signatários, Membros do Conselho da Europa, Resolvidos a tomar providências apropriadas para assegurar a garantia colectiva de direitos e liberdades, além dos que já figuram no título I da Convenção de Protecção dos Direitos do 34 35 Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (abaixo designada “a Convenção”). Convieram no seguinte: ARTIGO 1° Protecção da propriedade Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional. As condições precedentes entendem - se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas. ARTIGO 2° Direito à instrução A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas. ARTIGO 3° Direito a eleições livres As Altas Partes Contratantes obrigam - se a organizar, com intervalos razoáveis, eleições livres, por escrutínio secreto, em condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo na eleição do órgão legislativo. ARTIGO 4° Aplicação territorial Qualquer Alta Parte Contratante pode, no momento da assinatura ou da ratificação do presente Protocolo, ou em qualquer momento posterior, endereçar ao Secretário - Geral do Conselho da Europa uma declaração em que indique que as disposições do presente Protocolo se aplicam a territórios cujas relações internacionais assegura. Qualquer Alta Parte Contratante que tiver feito uma declaração nos termos do parágrafo anterior pode, a qualquer momento, fazer uma nova declaração em que modifique os termos de qualquer declaração anterior ou em que ponha fim à aplicação do presente Protocolo em relação a qualquer dos territórios em causa. Uma declaração feita em conformidade com o presente artigo será considerada como se tivesse sido feita em conformidade com o parágrafo 1 do artigo 56° da Convenção. ARTIGO 5° Relações com a Convenção As Altas Partes Contratantes consideram os artigos 1°, 2°, 3° e 4° do presente Protocolo como adicionais à Convenção e todas as disposições da Convenção serão aplicadas em consequência. 36 37 ARTIGO 6° Assinatura e ratificação O presente Protocolo está aberto à assinatura dos membros do Conselho da Europa, signatários da Convenção; será ratificado ao mesmo tempo que a Convenção ou depois da ratificação desta. Entrará em vigor depois de depositados dez instrumentos de ratificação. Para qualquer signatário que a ratifique ulteriormente, o Protocolo entrará em vigor desde o momento em que se fizer o depósito do instrumento de ratificação. Os instrumentos de ratificação serão depositados junto do Secretário -Geral do Conselho da Europa, o qual participará a todos os Membros os nomes daqueles que o tiverem ratificado. Feito em Paris, aos 20 de Março de 1952, em francês e em inglês, os dois textos fazendo igualmente fé, num só exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa. O Secretário - Geral enviará cópia conforme a cada um dos Governos signatários. Protocolo n° 4 em que se reconhecem certos direitos e liberdades além dos que já figuram na Convenção e no Protocolo adicional à Convenção Estrasburgo, 16.9.1963 (Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998) Os Governos signatários, membros do Conselho da Europa, Resolvidos a tomar as providências apropriadas para assegurar a garantia colectiva de direitos e liberdades, além dos que já figuram no título I da Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (abaixo designada “a Convenção”), e nos artigos 1° a 3° do primeiro Protocolo Adicional à Convenção, assinado em Paris em 20 de Março de 1952, Convieram no seguinte: ARTIGO 1° Proibição da prisão por dívidas Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual. 38 39 ARTIGO 2° Liberdade de circulação 1. Qualquer pessoa que se encontra em situação regular em território de um Estado tem direito a nele circular livremente e a escolher livremente a sua residência. 2. Toda a pessoa é livre de deixar um país qualquer, incluindo o seu próprio. 3. O exercício destes direitos não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas pela lei, constituem providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a manutenção da ordem pública, a prevenção de infracções penais, a protecção da saúde ou da moral ou a salvaguarda dos direitos e liberdades de terceiros. 4. Os direitos reconhecidos no parágrafo 1 podem igualmente, em certas zonas determinadas, ser objecto de restrições que, previstas pela lei, se justifiquem pelo interesse público numa sociedade democrática. ARTIGO 3° Proibição da expulsão de nacionais 1. Ninguém pode ser expulso, em virtude de disposição individual ou colectiva, do território do Estado de que for cidadão. 2. Ninguém pode ser privado do direito de entrar no território do Estado de que for cidadão. ARTIGO 4° Proibição de expulsão colectiva de estrangeiros São proibidas as expulsões colectivas de estrangeiros. ARTIGO 5° Aplicação territorial 1. Qualquer Alta Parte Contratante pode, no momento da assinatura ou ratificação do presente Protocolo ou em qualquer outro momento posterior, comunicar ao Secretário - Geral do Conselho da Europa uma declaração na qual indique até que ponto se obriga a aplicar as disposições do presente Protocolo nos territórios que forem designados na dita declaração. 2. Qualquer Alta Parte Contratante que tiver feito uma declaração nos termos do parágrafo precedente pode, quando o desejar, fazer nova declaração para modificar os termos de qualquer declaração anterior ou para pôr fim à aplicação do presente Protocolo em relação a qualquer dos territórios em causa. 3. Uma declaração feita em conformidade com este artigo considerar - se - á como feita em conformidade com o parágrafo 1 do artigo 56° da Convenção. 4. O território de qualquer Estado a que o presente Protocolo se aplicar em virtude da sua ratificação ou da sua aceitação pelo dito Estado e cada um dos territórios aos quais o Protocolo se aplicar em virtude de declaração feita pelo mesmo Estado em conformidade com o presente artigo serão considerados como territórios diversos para os efeitos das referências ao território de um Estado contidas nos artigos 2° e 3°. 5. Qualquer Estado que tiver feito uma declaração nos termos do n° 1 ou 2 do presente artigo poderá, em qualquer momento ulterior, declarar que aceita, relativamente a um ou vários dos seus territórios referidos nessa declaração, a competência do Tribunal para conhecer das petições apresentadas por pessoas singulares, organizações não governamentais ou grupos de particulares, em conformidade com o artigo 34° da Convenção 40 41 relativamente aos artigos 1° a 4° do presente Protocolo ou alguns de entre eles. ARTIGO 6° Relações com a Convenção As Altas Partes Contratantes considerarão os artigos 1° a 5° deste Protocolo como artigos adicionais à Convenção e todas as disposições da Convenção se aplicarão em consequência. ARTIGO 7° Assinatura e ratificação 1. O presente Protocolo fica aberto à assinatura dos membros do Conselho da Europa, signatários da Convenção; será ratificado ao mesmo tempo que a Convenção ou depois da ratificação desta. Entrará em vigor quando tiverem sido depositados cinco instrumentos de ratificação. Para todo o signatário que o ratificar ulteriormente, o Protocolo entrará em vigor no momento em que depositar o seu instrumento de ratificação. 2. O Secretário - Geral do Conselho da Europa terá competência para receber o depósito dos instrumentos de ratificação e notificará todos os membros dos nomes dos Estados que a tiverem ratificado. Em fé do que os abaixo assinados, para tal devidamente autorizados, assinaram o presente Protocolo. Feito em Estrasburgo, aos 16 de Setembro de 1963, em francês e em inglês, os dois textos fazendo igualmente fé, num único exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa. O Secretário -Geral enviará cópia conforme a cada um dos Estados signatários. Protocolo n° 6 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais Relativo à abolição da Pena de Morte Estrasburgo, 28.4.1983 (Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998) Os Estados membros do Conselho da Europa signatários do presente Protocolo à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (daqui em diante designada “a Convenção”), Considerando que a evolução verificada em vários Estados membros do Conselho da Europa exprime uma tendência geral a favor da abolição da pena de morte; Acordaram no seguinte: ARTIGO 1° Abolição da pena de morte A pena de morte é abolida. Ninguém pode ser condenado a tal pena ou executado. 42 43 ARTIGO 2° Pena de morte em tempo de guerra Um Estado pode prever na sua legislação a pena de morte para actos praticados em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra; tal pena não será aplicada senão nos casos previstos por esta legislação e de acordo com as suas disposições. Este Estado comunicará ao Secretário - Geral do Conselho da Europa as disposições correspondentes da legislação em causa. ARTIGO 3° Proibição de derrogações Não é permitida qualquer derrogação às disposições do presente Protocolo com fundamento no artigo 15° da Convenção. ARTIGO 4° Proibição de reservas Não são admitidas reservas às disposições do presente Protocolo com fundamento no artigo 57° da Convenção. ARTIGO 5° Aplicação territorial 1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou no momento do depósito do seu instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação, designar o território ou os territórios a que se aplicará o presente Protocolo. 2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento posterior, mediante declaração dirigida ao Secretário - Geral do Conselho da Europa, alargar a aplicação deste Protocolo a qualquer outro território designado na sua declaração. O Protocolo entrará em vigor, no que respeita a esse território, no primeiro dia do mês seguinte à data de recepção da declaração pelo Secretário - Geral. 3. Qualquer declaração feita em aplicação dos dois números anteriores poderá ser retirada, relativamente a qualquer território designado nessa declaração, mediante notificação dirigida ao Secretário - Geral. A retirada produzirá efeito no primeiro dia do mês seguinte à data da recepção da notificação pelo Secretário - Geral. ARTIGO 6° Relações com a Convenção Os Estados partes consideram os artigos 1° a 5° do presente Protocolo como artigos adicionais à Convenção e, consequentemente, todas as disposições da Convenção são aplicáveis. ARTIGO 7° Assinatura e ratificação Este Protocolo fica aberto à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa signatários da Convenção. Será submetido a ratificação, aceitação ou aprovação. Um Estado do Conselho da Europa não poderá ratificar, aceitar ou aprovar este Protocolo sem ter simultânea ou anteriormente ratificado a Convenção. Os instrumentos de ratificação, aceitação ou aprovação serão depositados junto do Secretário - Geral do Conselho da Europa. 44 45 ARTIGO 8° Entrada em vigor 1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte à data em que cinco Estados membros do Conselho da Europa tenham exprimido o seu consentimento em ficarem vinculados pelo Protocolo, em conformidade com as disposições do artigo 7°. 2. Relativamente a qualquer Estado membro que exprima posteriormente o seu consentimento em ficar vinculado pelo Protocolo, este entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte à data de depósito do instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação. ARTIGO 9° Funções do depositário O Secretário - Geral do Conselho da Europa notificará aos Estados membros do Conselho: a) Qualquer assinatura; b) O depósito de qualquer instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação; c) Qualquer data de entrada em vigor do presente Protocolo, em conformidade com os artigos 5° e 8°; d) Qualquer outro acto, notificação ou comunicação relativos ao presente Protocolo. Em fé do que, os abaixo assinados, devidamente autorizados para este efeito, assinaram o presente Protocolo. Feito em Estrasburgo, aos 28 dias de Abril de 1983, em francês e em inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé, num único exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa. O Secretário - Geral do Conselho da Europa dele enviará cópia devidamente certificada a cada um dos Estados membros do Conselho da Europa. Protocolo n° 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais Estrasburgo, 22.11.1984 (Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998) Os Estados membros do Conselho da Europa, signatários do presente Protocolo; Decididos a tomar novas providências apropriadas para assegurar a garantia colectiva de certos direitos e liberdades pela Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (abaixo designada “a Convenção”); Convieram no seguinte: ARTIGO 1° Garantias processuais em caso de expulsão de estrangeiros 1. Um estrangeiro que resida legalmente no território de um Estado não pode ser expulso, a não ser em cumprimento de 46 47 uma decisão tomada em conformidade com a lei, e deve ter a possibilidade de: a) Fazer valer as razões que militam contra a sua expulsão; b) Fazer examinar o seu caso; e c) Fazer - se representar, para esse fim, perante a autoridade competente ou perante uma ou várias pessoas designadas por essa autoridade. 2. Um estrangeiro pode ser expulso antes do exercício dos direitos enumerados no n° 1, alíneas a), b) e c), deste artigo, quando essa expulsão seja necessária no interesse da ordem pública ou se funde em razões de segurança nacional. ARTIGO 2° Direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal 1. Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei. 2. Este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição. ARTIGO 3° Direito a indemnização em caso de erro judiciário Quando uma condenação penal definitiva é ulteriormente anulada ou quando é concedido o indulto, porque um facto novo ou recentemente revelado prova que se produziu um erro judiciário, a pessoa que cumpriu uma pena em virtude dessa condenação será indemnizada, em conformidade com a lei ou com o processo em vigor no Estado em causa, a menos que se prove que a não revelação em tempo útil de facto desconhecido lhe é imputável no todo ou em parte. ARTIGO 4° Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez 1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado. 2. As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento. 3. Não é permitida qualquer derrogação ao presente artigo com fundamento no artigo 15° da Convenção. ARTIGO 5° Igualdade entre os cônjuges Os cônjuges gozam de igualdade de direitos e de responsabilidades de carácter civil, entre si e nas relações com os seus filhos, em relação ao casamento, na constância do 48 49 matrimónio e aquando da sua dissolução. O presente artigo não impede os Estados de tomarem as medidas necessárias no interesse dos filhos. ARTIGO 6° Aplicação territorial 1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou no momento do depósito do seu instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação, designar o ou os territórios a que o presente Protocolo se aplicará e declarar em que medida se compromete a que as disposições do presente Protocolo sejam aplicadas nesse ou nesses territórios. 2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento ulterior e por meio de uma declaração dirigida ao Secretário - Geral do Conselho da Europa, estender a aplicação do Protocolo a qualquer outro território designado nessa declaração. O Protocolo entrará em vigor, em relação a esse território, no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de dois meses a partir da data de recepção dessa declaração pelo Secretário – Geral. 3. Qualquer declaração feita nos termos dos números anteriores pode ser retirada ou modificada em relação a qualquer território nela designado, por meio de uma notificação dirigida ao Secretário - Geral. A retirada ou a modificação produz efeitos a partir do primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de dois meses após a data de recepção da notificação pelo Secretário - Geral. 4. Uma declaração feita nos termos do presente artigo será considerada como tendo sido feita em conformidade com o n° 1 do artigo 56° da Convenção. 5. O território de qualquer Estado a que o presente Protocolo se aplica, em virtude da sua ratificação, aceitação ou aprovação pelo referido Estado, e cada um dos territórios a que o Protocolo se aplica, em virtude de uma declaração subscrita pelo referido Estado nos termos do presente artigo, podem ser considerados territórios distintos para os efeitos da referência ao território de um Estado feita no artigo 1°. 6. Qualquer Estado que tiver feito uma declaração em conformidade com o n° 1 ou 2 do presente artigo poderá, em qualquer momento ulterior, declarar que aceita, relativamente a um ou vários dos seus territórios referidos nessa declaração, a competência do Tribunal para conhecer das petições apresentadas por pessoas singulares, organizações não governamentais ou grupos de particulares, em conformidade com o artigo 34° da Convenção relativamente aos artigos 1° a 5° do presente Protocolo ou alguns de entre eles. ARTIGO 7° Relações com a Convenção Os Estados Partes consideram os artigos 1° a 6° do presente Protocolo como artigos adicionais à Convenção e todas as disposições da Convenção se aplicarão em consequência. ARTIGO 8° Assinatura e ratificação O presente Protocolo fica aberto à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa, signatários da Convenção. Ficará sujeito a ratificação, aceitação ou aprovação. Nenhum Estado membro do Conselho da Europa poderá ratificar, aceitar ou aprovar o presente Protocolo sem ter, simultânea ou previamente, ratificado a Convenção. Os instrumentos de ratificação, de aceitação ou de aprovação serão depositados junto do Secretário - Geral do Conselho da Europa. 50 51 ARTIGO 9° Entrada em vigor 1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de dois meses a partir da data em que sete Estados membros do Conselho da Europa tenham expresso o seu consentimento em estar vinculados pelo Protocolo nos termos do artigo 8°. 2. Para o Estado membro que exprima ulteriormente o seu consentimento em ficar vinculado pelo Protocolo, este entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de dois meses a partir da data do depósito do instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação. ARTIGO 10° Funções do depositário O Secretário - Geral do Conselho da Europa notificará aos Estados membros do Conselho da Europa: a) Qualquer assinatura; b) O depósito de qualquer instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação; c) Qualquer data de entrada em vigor do presente Protocolo nos termos dos artigos 6° e 9°; d) Qualquer outro acto, notificação ou declaração relacionados com o presente Protocolo. Em fé do que os signatários, devidamente autorizados para este efeito, assinaram o presente Protocolo. Feito em Estrasburgo, a 22 de Novembro de 1984, em francês e inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé, num único exemplar, que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa. O Secretário - Geral do Conselho da Europa enviará cópia autenticada a cada um dos Estados membros do Conselho da Europa. Protocolo n° 12 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais Roma, 4.11.2000 Entrada em vigor na ordem internacional: 1 de abril de 2005. Portugal ainda não ratificou o Protocolo nº 12. Série de tratados europeus nº 177. Os Estados membros do Conselho da Europa, signatários do presente Protocolo, Tendo em conta o princípio fundamental segundo o qual todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a uma igual protecção pela lei; Decididos a tomar novas medidas para promover a igualdade de todas as pessoas através da implementação colectiva de uma interdição geral de discriminação prevista na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950 (adiante designada “a Convenção”); Reafirmando que o princípio da não-discriminação não obsta a que os Estados partes tomem medidas para promover uma 52 53 igualdade plena e efectiva, desde que tais medidas sejam objectiva e razoavelmente justificadas; Acordam no seguinte: ARTIGO 1º Interdição geral de discriminação 1. O gozo de todo e qualquer direito previsto na lei deve ser garantido sem discriminação alguma em razão, nomeadamente, do sexo, raça, cor, língua, religião, convicções políticas ou outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou outra situação. 2. Ninguém pode ser objecto de discriminação por parte de qualquer autoridade pública com base nomeadamente nas razões enunciadas no número 1 do presente artigo. ARTIGO 2º Aplicação territorial 1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou do depósito do seu instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação, designar o ou os territórios a que estenderá a aplicação do presente Protocolo. 2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento ulterior, mediante declaração dirigida ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, tornar extensiva a aplicação do presente Protocolo a qualquer outro território designado na declaração. O Protocolo entrará em vigor, relativamente a esse território, no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de três meses a contar da data de recepção da declaração pelo Secretário-Geral. 3. Qualquer declaração feita nos termos dos dois números anteriores pode ser retirada ou modificada, relativamente a qualquer território designado nessa declaração, mediante notificação dirigida ao Secretário-Geral. A retirada ou a modificação produz efeitos no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de três meses a contar da data de recepção da notificação pelo Secretário-Geral. 4. Qualquer declaração feita em conformidade com o presente artigo é considerada como tendo sido feita nos termos do nº 1 do artigo 56º da Convenção. 5. Qualquer Estado que tenha feito uma declaração nos termos do nº 1 ou do nº 2 do presente artigo pode, em qualquer momento ulterior, declarar, relativamente a um ou mais territórios designados nessa declaração que aceita a competência do Tribunal para conhecer das petições apresentadas por pessoas singulares, organizações não governamentais ou grupos de particulares tal como previsto no artigo 34º da Convenção, ao abrigo do artigo 1º do presente Protocolo. ARTIGO 3º Relações com a Convenção Os Estados Partes entendem os artigos 1º e 2º do presente Protocolo como artigos adicionais à Convenção, sendo as disposições da Convenção correspondentemente aplicadas. ARTIGO 4º Assinatura e ratificação O presente Protocolo está aberto à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa signatários da Convenção e ficará sujeito a ratificação, aceitação ou aprovação. Nenhum Estado membro do Conselho da Europa pode ratificar, aceitar ou aprovar o presente Protocolo sem ter simultânea ou previamente ratificado a Convenção. Os instrumentos de 54 55 ratificação, aceitação ou aprovação serão depositados junto do Secretário-Geral do Conselho da Europa. ARTIGO 5º Entrada em vigor 1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia do mês ao termo de um prazo de três meses a contar da data em que dez Estados membros do Conselho da Europa tenham expresso o seu consentimento em ficarem vinculados pelo presente Protocolo, de acordo com o disposto no artigo 4º. 2. Relativamente a qualquer Estado membro que expresse ulteriormente o seu consentimento em ficar vinculado pelo presente Protocolo, este entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um prazo de três meses a contar da data de depósito do instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação. ARTIGO 6º Funções do Depositário O Secretário-Geral do Conselho da Europa notificará todos os Estados membros do Conselho da Europa: a) de qualquer assinatura; b) do depósito de qualquer instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação; c) de qualquer data de entrada em vigor do presente Protocolo em conformidade com os seus artigos 2º e 5º; d) de qualquer acto, notificação ou comunicação relativos ao presente Protocolo. Em fé do que os abaixo assinados, devidamente autorizados para o efeito, assinaram o presente Protocolo. Feito em Roma, a 4 de Novembro de 2000, em francês e em inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé num único exemplar que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa. O Secretário-Geral do Conselho da Europa transmitirá uma cópia autenticada a cada um dos Estados membros do Conselho da Europa. Protocolo n° 13 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, Relativo à Abolição da Pena de Morte em quaisquer circunstâncias Vilnius, 3.5.2002 Os Estados membros do Conselho da Europa, signatários do presente Protocolo, Convictos de que o direito à vida é um valor fundamental numa sociedade democrática e que a abolição da pena de morte é essencial à protecção deste direito e ao pleno reconhecimento da dignidade inerente a todos os seres humanos; Desejando reforçar a protecção do direito à vida garantido pela Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (a seguir designada “a Convenção”); 56 57 Tendo em conta que o Protocolo n° 6 à Convenção, relativo à abolição da pena de morte, assinado em Estrasburgo em 28 de Abril de 1983, não exclui a aplicação da pena de morte por actos cometidos em tempo de guerra ou de ameaça iminente de guerra; Resolvidos a dar o último passo para abolir a pena de morte em quaisquer circunstâncias, Acordam no seguinte: ARTIGO 1° Abolição da pena de morte É abolida a pena de morte. Ninguém será condenado a tal pena, nem executado. ARTIGO 2° Proibição de derrogações As disposições do presente Protocolo não podem ser objecto de qualquer derrogação ao abrigo do artigo 15° da Convenção. ARTIGO 3° Proibição de reservas Não é admitida qualquer reserva ao presente Protocolo, formulada ao abrigo do artigo 57° da Convenção. ARTIGO 4° Aplicação territorial 1. Qualquer Estado pode, no momento da assinatura ou do depósito do respectivo instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação, designar o território ou os territórios a que se aplicará o presente Protocolo. 2. Qualquer Estado pode, em qualquer momento ulterior, mediante declaração dirigida ao Secretário - Geral do Conselho da Europa, tornar extensiva a aplicação do presente Protocolo a qualquer outro território designado na declaração. O Protocolo entrará em vigor, para esse território, no primeiro dia do mês seguinte ao decurso de um período de três meses após a data da recepção da declaração pelo Secretário - Geral. 3. Qualquer declaração formulada nos termos dos dois números anteriores pode ser retirada ou modificada, no que respeita a qualquer território designado naquela declaração, mediante notificação dirigida ao Secretário - Geral. Tal retirada ou modificação produzirá efeito no primeiro dia do mês seguinte ao decurso de um período de três meses após a data da recepção da notificação pelo Secretário - Geral. ARTIGO 5° Relações com a Convenção Os Estados Partes consideram as disposições dos artigos 1° a 4° do presente Protocolo adicionais à Convenção, aplicando- se-lhes, em consequência, todas as disposições da Convenção. ARTIGO 6° Assinatura e ratificação O presente Protocolo está aberto à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa que tenham assinado a Convenção. O Protocolo está sujeito a ratificação, aceitação ou aprovação. Nenhum Estado membro do Conselho da Europa poderá ratificar, aceitar ou aprovar o presente Protocolo sem ter, simultânea ou anteriormente, ratificado, assinado 58 59 ou aprovado a Convenção. Os instrumentos de ratificação, de aceitação ou de aprovação serão depositados junto do Secretário -Geral do Conselho da Europa. ARTIGO 7° Entrada em vigor 1. O presente Protocolo entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um período de três meses após a data em que dez Estados membros do Conselho da Europa tenham manifestado o seu consentimento em vincular-se pelo presente Protocolo, nos termos do disposto no seu artigo 6°. 2. Para cada um dos Estados membros que manifestarem ulteriormente o seu consentimento em vincular-se pelo presente Protocolo, este entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um período de três meses após a data do depósito, por parte desse Estado, do seu instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação. ARTIGO 8° Funções do depositário O Secretário - Geral do Conselho da Europa notificará todos os Estados membros do Conselho da Europa : a) De qualquer assinatura; b) Do depósito de qualquer instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação; c) De qualquer data de entrada em vigor do presente Protocolo, nos termos dos artigos 4° e 7°; d) De qualquer outro acto, notificação ou comunicação relativos ao presente Protocolo. Em fé do que, os abaixo assinados, devidamente autorizados para o efeito, assinaram o presente Protocolo. Feito em Vilnius, em 3 de Maio de 2002, em francês e em inglês, fazendo ambos os textos igualmente fé, num único exemplar que será depositado nos arquivos do Conselho da Europa. O Secretário – Geral do Conselho da Europa transmitirá cópia autenticada do presente Protocolo a todos os Estados membros. Convenção Europeia dos Direitos do Homem European Court of Human Rights Council of Europe F-67075 Strasbourg cedex Des ign : © EC HR - P hot o: © Sh utt ers toc k www.echr.coe.int P O R Teoria Geral do Direito - parte I/curso de filosofia do direito.pdf Teoria Geral do Direito - parte I/Dir Fundamentais_Menelick Neto_Guilherme Scotti.pdf Os DireitOs FunDamentais e a (in)Certeza DO DireitO A Produtividade das Tensões Principiológicas e a Superação do Sistema de Regras Belo Horizonte 2012 Menelick de Carvalho Netto Guilherme Scotti Prefácio Vera Karam de Chueiri Os DireitOs FunDamentais e a (in)Certeza DO DireitO A Produtividade das Tensões Principiológicas e a Superação do Sistema de Regras 1ª reimpressão © 2011 editora Fórum Ltda. 2012 1ª reimpressão É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor. Conselho Editorial adilson abreu Dallari andré ramos tavares Carlos Ayres Britto Carlos mário da silva Velloso Carlos Pinto Coelho Motta Cármen Lúcia antunes rocha Clovis Beznos Cristiana Fortini Diogo de Figueiredo moreira neto egon Bockmann moreira emerson Gabardo Fabrício Motta Fernando rossi Flávio Henrique unes Pereira Floriano de azevedo marques neto Gustavo Justino de Oliveira Jorge ulisses Jacoby Fernandes José nilo de Castro Juarez Freitas Lúcia Valle Figueiredo (in memoriam) Luciano Ferraz Lúcio Delfino márcio Cammarosano maria sylvia zanella Di Pietro Oswaldo Othon de Pontes saraiva Filho Paulo modesto romeu Felipe Bacellar Filho sérgio Guerra Luís Cláudio rodrigues Ferreira Presidente e editor Coordenação editorial: Olga m. a. sousa revisão: Luiz Fernando de andrada Pacheco Bibliotecária: tatiana augusta Duarte – CrB 2842 – 6ª região Projeto gráfico: Walter Santos Capa e formatação: Bruno Lopes av. afonso Pena, 2770 – 15º/16º andares – Funcionários – CeP 30130-007 Belo Horizonte – minas Gerais – tel.: (31) 2121.4900 / 2121.4949 www.editoraforum.com.br – editoraforum@editoraforum.com.br Carvalho Netto, Menelick de Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras / Menelick de Carvalho Netto; Guilherme Scotti; prefácio de Vera Karam de Chueiri. 1. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 167 p. isBn 978-85-7700-414-0 1. Filosofia do direito. 2. Direito constitucional. I. Scotti, Guilherme. II. Chueiri, Vera Karam de. iii. título. CDD: 340.1 CDu: 340.12 C331d Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de normas técnicas (aBnt): CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. 1. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 167 p. isBn 978-85-7700-414-0. Sumário Prefácio .............................................................................................7 Apresentação ................................................................................13 Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade .....19 Capítulo 2 A Implosão e Superação do Projeto Positivista no Direito ....................................................45 a implosão da teoria pura ..................................................45 O positivismo, os hard cases e a única resposta correta de Dworkin ..............................................................55 O conceito de integridade na política ...............................61 O conceito de integridade no Direito ................................63 a teoria de Dworkin na perspectiva da teoria discursiva do estado Democrático de Direito .................69 Dworkin e o realismo moral ..............................................71 a interpretação construtiva ................................................76 O papel dos princípios – Os estágios de Kohlberg .........82 Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva .....................................................................................89 a modernidade da sociedade moderna ...........................89 Discursos éticos, morais e jurídicos – O bom e o justo ..... 101 razão prática, moral e Direito – uma leitura contemporânea ...................................................................104 resgate discursivo da razão prática ................................104 a categoria do Direito na teoria discursiva ...................107 Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a Aplicação dos Princípios.................................................................................115 O pós-positivismo como retórica: alexy e a continuidade dos elementos centrais do positivismo normativo e filosófico na aparente ruptura com o positivismo jurídico – O retorno às regras .....................115 Limites internos e externos e o “conflito de valores” ..... 121 Pluralismo moral e incompatibilidade entre princípios ............................................................................136 O conflito jurídico, os textos normativos e as pretensões abusivas a direitos .........................................141 O stF e o caso ellwanger .................................................148 Capítulo 5 Afinal de Contas, o que uma Constituição Constitui? ................................................................................157 Referências ..................................................................................163 Prefácio O Direito Constitucional — e isso vale também para o Brasil — tem protagonizado nas três últimas décadas um papel interessante na reflexão do direito e no exercício das suas práti- cas. Grosso modo, interessante é aquilo que atrai atenção. todavia, é nesta aparentemente simples qualidade que está a absoluta importância do livro — Os Direitos Fundamentais e a (in)certeza do Direito: a produtividade das tensões principiológi- cas e a superação do sistema de regras — que neste momento se apresenta ao leitor. isto é, porque o Direito Constitucional no limiar dos séculos redefiniu o sentido do próprio direito e de suas práticas, atraiu — e tem atraído — a atenção dos seus intérpretes — falo de nós, o povo — na medida em que compreender e interpretar o Direito (Constitucional) é compreender e inter- pretar a nós mesmos como comunidade. tarefa complexa esta, pois a autocompreensão que temos 8 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... de nós mesmos como comunidade nos desacomoda do lugar seguro de um mundo dado, ao qual ape- nas assistimos como observadores externos, para um mundo que se dá (ou se constrói) na medida das nossas ações. e nossas ações não são lineares ou isentas de tensões e contradições. e é justamente aqui que reside o caráter indispensável da reflexão que fazem os autores Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti quando nos deixam face a face com a (in)certeza do direito para podermos radicalmente expe- rienciar os direitos fundamentais. Dito de outra maneira, os direitos só são fundamentais porque cotidianamente se reinventam na concretude das nossas vivências como “comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais” e isso não se dá sem tensões, ou como dizem os autores, sem uma “eticidade reflexiva, plural e fluída, apta a se voltar criticamente sobre si mesma”. Daí este livro ser um destes que faz toda a diferença na produção recente em teoria cons- titucional, assim como seus autores fazem toda diferença no conhecimento que se tem produzido em Direito Constitucional no Brasil e na américa 9Vera Karam de ChueiriPrefácio Latina. Menelick de Carvalho Netto é certamente um dos constitucionalistas críticos mais proemi- nentes do Brasil, o qual tem formado gerações de novíssimos constitucionalistas — como o próprio Guilherme Scotti —, cuja intervenção teórica e prática se vê nas principais escolas de direito do Brasil, bem como nas instâncias decisórias do parlamento, da jurisdição e do governo. É sempre bom lembrar que, tradicionalmente, as escolas de direito no Brasil são pouco ou quase nada reflexi- vas, mas hoje estão profundamente afetadas por uma nova eticidade e pelo radical compromisso com o constitucionalismo e a democracia, graças a intelectuais da monta dos autores desta obra. Nova eticidade ou eticidade reflexiva, cons- titucionalismo e democracia são o leitmotiv do livro, o qual inicia discutindo a superação do projeto positivista no direito, qual seja, a necessária intrusão da moral e da política neste e a consequente abertura (ou luminosidade) que ela provoca. Daí a referência às teses de Dworkin, a começar pela ressignificação que a sua noção de princípio propõe ao direito, em oposição ao centralismo das regras da tradição positivista e, internamente, em relação à noção 10 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... de política. Devem os princípios e não as políticas fundamentar as decisões judiciais, na medida em que, como dizem os autores, aqueles “remetem aos conteúdos morais dos direitos fundamentais”. assim, ao aplicador e não ao legislador é dado, no enfrentamento de cada caso e no argumento da sua decisão (para cada caso), reconstruir o direito vigente não sem interpretar as decisões passadas, não sem levar em conta o contexto da sua história institucional e os compromissos assu- midos e compartilhados de liberdade e igualdade. ao fazê-lo, o aplicador-intérprete oferece a única decisão correta para aquele caso promovendo assim, uma certa estabilidade, a qual, por sua vez não se confunde com a segurança pretendida pelos positivistas, mas, ao contrário, reafirma a contingência do direito. tal tarefa é tão difícil quanto o próprio caso ao qual ela pretende dar uma resposta e a ilusão de que o direito é uma narrativa fácil é própria de uma compreensão precária das nossas práticas jurídicas. Não por acaso afirmam os autores que “as normas gerais e abstratas não são capazes de regular as suas próprias condições de aplicação, e que, portanto, a aplicação de um princípio, requer 11Vera Karam de ChueiriPrefácio que, na unicidade específica e determinada do caso concreto, diante das várias versões dos fatos que se apresentem, se tenha o tempo todo também em mente a norma geral ou princípio contrário, a configurar uma tensão normativa rica e complexa que opere como crivo para discernir, no caso, as pretensões abusivas das legítimas”. não há constitucionalismo e democracia fora da tensão que os constitui, a qual reaparece no momento da aplicação do direito, relativamente às demandas que se colocam ao juiz, sobretudo as de direitos fundamentais. neste sentido, o livro é exemplar ao analisar a decisão do supremo tribu- nal Federal no famoso caso ellwanger. isto, pois, os autores são precisos ao apontar a insuficiência da argumentação utilizada pela Corte com base na ideia de ponderação (ou do que a Corte entende por isso). ainda, apontam os autores que alguns dos argumentos utilizados pelos ministros da corte apoiados na ideia de ponderação, não são propriamente assim, na medida em que, atentos às especificidades do caso, evidenciam a natureza abusiva da pretensão levantada pelo réu ao atri- buir à prática do crime de racismo, o exercício do direito à liberdade de expressão. não obstante, 12 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... quando tais argumentos insistem em recorrer à ponderação para fundamentar a decisão acabam banalizando os direitos fundamentais ao apre- sentá-los como “simples opções valorativas em abstrato do aplicador”. Pois bem, está a comunidade em frente de uma das mais sofisticadas e críticas reflexões que se tem feito em filosofia e teoria constitucional no Brasil nos últimos anos. Reflexão de quem vive (experiência) a constituição e por isso mesmo só vê sentido em suas práticas cotidianas de cidadão e professor de direito se significadas por tal vivência, com todos os seus riscos, perigos e incertezas. Definitivamente, certe- zas não combinam com o exercício da cidadania, da democracia e do constitucionalismo sendo muito mais afeitas aos arranjos totalitários e autoritários. Por fim, ficamos com a pergunta que trazem os autores sobre o que uma constituição constitui. interpretá-la é o que fará o leitor deste livro, porém, não sem o prazer de uma narrativa escrita de maneira escorreita à altura da última flor do Lácio. Curitiba, janeiro de 2011. Vera Karam de Chueiri Professora de Direito Constitucional dos programas de Graduação e Pós-Graduação da uFPr. Apresentação É com vistas a melhor compreender o nexo interno que entre si guardam os direitos fun- damentais e o caráter estruturalmente aberto e indeterminado das normas gerais e abstratas características do direito moderno, que convida- mos o leitor a nos acompanhar na reconstrução que empreendemos da trajetória percorrida pela teoria da interpretação jurídica da primeira para a segunda metade do século XX. Percurso no qual este nexo torna-se não apenas visível, mas parte essencial da proposta de se lidar produtivamente com o problema da indeterminação estrutural do Direito. autores paradigmáticos do período, como Hans Kelsen e Francesco Ferrara, por um lado, e ronald Dworkin e robert alexy, de outro, são aqui enfocados e trabalhados em pro- fundidade. uma compreensão normativamente consistente dos direitos fundamentais na ordem constitucional de 1988 requer que se leve a sério 14 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... o disposto nos §§1º e 2º do art. 5º da Constituição da república, ou seja, que o leitor, enquanto intérprete e cidadão que é, seja capaz de alterar sua postura diante dela, a assumir como sua uma perspectiva de quem operou o giro linguís- tico (hermenêutico/pragmático) no campo da teoria constitucional. a questão deixa de ser vista como um dado: “o que é uma Constituição?”. A abordagem do tema passa agora a ser determinada pela postura de um participante interno que tem como foco central a indagação acerca do que ela constitui, ou seja, a comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais na concretude de suas vivências cotidianas, em suma: uma deter- minada comunidade de princípios que se assume como sujeito constitucional, capaz de reconstruir permanentemente de forma crítica e reflexiva a eticidade que recebe como legado das gerações anteriores, precisamente restritos àqueles usos, costumes e tradições que, naquele momento his- tórico constitucional, acredita possam passar pelo crivo do que entende ser o conteúdo da exigência inegociável dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, ou seja, a igualdade e a autonomia 15apresentação ou liberdade reciprocamente reconhecidas a todos os membros da comunidade, passam a ser com- preendidos, portanto, como princípios, a um só tempo, opostos e complementares entre si. Por isso mesmo, aptos a gerar tensões produtivas e a, assim, instaurar socialmente uma eticidade reflexiva capaz de se voltar criticamente sobre si própria, colocando em xeque tanto preconceitos e tradições naturalizados quanto a própria crença no papel não principiológico e meramente con- vencional das normas jurídicas. a complexi- dade da tarefa interpretativa de aplicação desse Direito geral e abstrato de natureza estruturalmente indeterminada requer a superação tanto da crença irracional de que textos racionalmente elabora- dos pudessem por si sós reduzir a complexidade social a ponto de tornar esse trabalho de interpre- tação e aplicação do Direito uma tarefa mecânica e automatizada, quanto do ceticismo decisionista que retira dos direitos fundamentais seu papel de “barreira de fogo” inegociável. É a integridade do Direito a exigir atenção permanente às especificidades únicas e irrepetí- veis dos casos concretos, com vistas à promoção simultânea das pretensões à justiça (Justice) e à 16 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... segurança jurídica (fairness), que também permite que nos libertemos do mito da possibilidade de decisão padrão capaz de se autoaplicar a todos os casos semelhantes. Cada decisão que assim se apresentar configurará, outra vez, como norma geral e abstrata, estruturalmente indeterminada, introdutora de maior complexidade social, vez que na qualidade de orientação voltada ao futuro também incentivará, por seu turno, pretensões abusivas em relação a ela, as quais só poderão ser desmascaradas mediante o exame reconstrutivo e criterioso da unicidade irrepetível de cada caso concreto que venha a se apresentar. O convite à reflexão teorética acerca do caminho percorrido pela teoria da interpretação jurídica nas últimas décadas vincula-se ao fato de que estamos plenamente convencidos de que esta é uma condição academicamente indispensável para alcançarmos apreender o efetivo significado de que hoje passam a se revestir os direitos fundamentais enquanto princípios que se con- substanciam no nexo interno e constitutivo ina- fastável da tensão entre o direito e a democracia, a dimensão pública e a privada, a complexidade social e a abertura simultânea da Constituição 17apresentação tanto para o futuro e quanto para a reconstrução do passado. iniciemos, portanto, a reconstrução dessa aventura, a um só tempo intelectual e viven- cial, passível de ser reconhecida não somente nos textos de estatura teórica e teorética mais detidamente analisados, mas igualmente em um sem número de outros bem como nas nar- rativas e práticas cotidianas das sociedades que os produziram. Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade a proposta da presente reflexão, muito sinteticamente, é a de se levar a sério os §§1º e 2º do art. 5º da Constituição da república que, para uma compreensão normativa efetivamente con- sistente, requerem um enfoque que opere o giro linguístico (hermenêutico/pragmático) no campo da teoria constitucional em especial, e do Direito Público em geral, e desenvolva as suas consequên- cias teoréticas e teóricas. Com este giro a questão deixa de ser “o que é uma Constituição?”. A teoria passa a operar agora a partir da postura de um participante interno que tem como foco central o que ela constitui, ou seja, a comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais na concretude de suas vivências cotidianas, 20 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... considerada sincrônica e diacronicamente. a efetividade da Constituição deixa de ser abordada a partir da dicotomia “ideal” x “real” típica de toda a teoria da Constituição clássica,1 para ser enfocada, de forma muito mais sustentável, rica e produtiva, a partir do que Jürgen Habermas denomina “tensão externa” entre “facticidade” e a “validade” da Constituição.2 Com vistas a explicitar desde já o funda- mento teorético aqui adotado, convém analisar o próprio caminho trilhado pela Filosofia do Direito nos três últimos séculos e a posição em que ela hoje se coloca, ou seja, à centralidade que ela volta a ocupar no cenário da reflexão filosófica, reforçado ainda mais nos tempos de terror que correm, ao afirmar o caráter indisponível dos direitos humanos — bem como o vínculo interno que guardam com a democracia — e a necessidade inafastável de sua concretização mediante a ins- titucionalização como direitos fundamentais nas diversas ordens constitucionais. A Filosofia do Direito assume um papel central para a reflexão daqueles que inventaram a 1 sCHmitt, C. Teoría de la constitución. madrid: alianza, 1982. 2 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. 21Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade idade moderna.3 a evidência racional dos direitos naturais entendidos como princípios morais uni- versais indisponíveis que expressavam a exigên- cia do reconhecimento também institucional de que todos os seres humanos nascem iguais, livres e proprietários, no mínimo de si próprios, era uma crença tão forte que literalmente provou-se capaz de, antes mesmo de haver provocado a eclosão da era das revoluções, já inocular um efeito dis- solvente nas próprias bases da sociedade. essas evidências passam a ser os critérios com base nos quais a imóvel, sólida e absolutizada eticidade tradicional torna-se uma eticidade reflexiva,4 plural e fluída, apta a se voltar criticamente sobre si mesma, de tal sorte que nós, até hoje e cada vez mais, escrutinamos, todos os dias, os nossos usos, costumes e tradições para discernir os que podem continuar a sê-lo, daqueles que, quando questionados à luz do conteúdo de sentido 3 BLumenBerG, H. The Legitimacy of Modern Age. Cambridge: mit Press, 1985 4 sobre o tema, vale conferir a discussão que Habermas travou com richard Bernstein no simpósio ocorrido na Cardozo Law school, publicado entre nós como um suplemento em HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. Para um registro mais completo dos debates, cf. ROSENFELD, M.; ARATO, a. Habermas on Law and Democracy: Critical exchanges. Berkeley: university of California Press, 1998. 22 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... sempre renovado desses crivos, passam a ser vistos como abusos e discriminações. a evidência desses critérios universais de justiça moral era então vista como devendo reger, de fora, enquanto transcendente, a organi- zação política e jurídica da sociedade. O direito e a política deveriam se submeter à moral, às exigências racionais universalizantes da moral moderna de defesa da subjetividade. a vitória institucional da crença nesses ideais traduziu-se em distintas vivências regionais que culminam, por vias diversas, com a adoção dos estados constitucionais, no final do século XVIII e início do XIX, marcando um ponto de inflexão a partir do qual, paradoxalmente, a Filosofia do Direito perderá a sua centralidade na reflexão filosófica. a invenção da forma constitucional pelos norte- americanos estabelece a diferença entre o Direito Constitucional e o restante do Direito. É ela que funda agora o Direito e a Política. Assim é que, como afirma Niklas Luhmann, a invenção da constituição formal pelos norte- americanos possibilitou que a modernidade se completasse no campo do Direito e da Política. até então, o problema do fundamento do direito 23Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade remetia às exigências de adequação do direito positivo às exigências morais do direito natural moderno, ou seja, o fundamento de legitimidade do direito e da política residia fora deles mesmos. agora, a distinção entre o Direito Constitucional e os demais direitos fundados pelo Direito Cons- titucional oculta o fato paradoxal de que o Direito Constitucional é Direito e permite a fundamenta- ção autopoiética do próprio Direito.5 A Filosofia do Direito inicia então uma tra- jetória de redução à teoria Geral do Direito, uma disciplina técnica da formação especificamente jurídica, que, por sua vez, encontrará seu ponto máximo de inflexão tendencial na Teoria pura de Hans Kelsen.6 a partir da segunda metade do século XX a Filosofia do Direito volta a ocupar, claro que de forma inteiramente distinta, um lugar central na reflexão filosófica em autores tão diversos quanto Paul ricouer,7 Jürgen Habermas,8 5 LuHmann, n. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jörg. Il futuro della costituzione. torino: einaudi, 1996. 6 KeLsen, H. Teoria pura do direito. são Paulo: martins Fontes, 1998. 7 riCOeur, P. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: instituto Piaget, 1997 8 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. 24 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Jacques Derrida9 e Giácomo marramao,10 para citar apenas alguns. É a reflexão acerca dessa trajetória que, acreditamos, muito pode contribuir para melhor compreendermos os desafios que, em tempos de terror, a Filosofia não pode deixar de enfrentar e, portanto, a nova centralidade que nela a Filosofia do Direito passa a ocupar. muito embora no início dessa trajetória a evidência racional pudesse funcionar como critério tanto de verdade quanto de justiça, hoje conhecemos a sua natureza puramente conven- cional. O exercício do pensar filosófico aplicado ao campo do Direito, marcado pelo seu alto grau de reflexividade, volta-se tanto para o questio- namento acerca das condições da produção do conhecimento neste campo, ou seja, para o esta- tuto epistemológico de uma Ciência do Direito, configurando-se assim como uma Filosofia da Ciência aplicada do Direito; como para as inda- gações acerca da justiça, de uma sociedade justa 9 DerriDa, J. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. são Paulo: martins Fontes, 2007. 10 MARRAMAO, G. Passato e futuro dei diritti umani – Dall’“ordine posthobbesiano” al cosmopolitismo della differenza. In: COnGressO naCiOnaL DO COnPeDi, 16., 2007, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 2007. 25Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade e de instituições justas, como uma Filosofia Moral aplicada ao Direito. a questão da justiça, em função dos pró- prios critérios que inauguraram a modernidade, renova-se como exercício de Filosofia do Direito ao tematizá-la como problema a ser enfrentado cotidianamente pelo exercício da democracia e da prática do constitucionalismo. O que conduz diversos autores a postularem o rótulo de pós-modernidade, de modo a atribuir uma especificidade estrutural tão grande aos tem- pos em que vivemos quanto à havida na passa- gem das sociedades tradicionais para a sociedade moderna? É precisamente o reconhecimento das pretensões excessivas atribuídas à racionalidade humana na modernidade: a superação do mito da razão moderna, que seria capaz de revelar verdades eternas, imutáveis, a-históricas, bem como o reconhecimento dos altos custos pagos pela crença nesse mito. na companhia de niklas Luhmann e Jürgen Habermas, no entanto, preferimos reconhecer nossos tempos como mais modernos do que aqueles dos homens que cunharam esse termo para designar a sua época, exatamente por não 26 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... mais acreditarmos naquela racionalidade mítica, na ciência como saber absoluto. acreditamos que vivemos, sim, em uma época ainda moderna, em uma modernidade tardia, que pode ser mais sábia, mais moderna, do que a própria moder- nidade que a antecedeu, em razão do que fomos capazes de aprender com as nossas próprias vivências. a modernidade revela-se assim como um projeto inacabado. Por isso mesmo, para nós, científico é o saber que se sabe precário, que não se julga absoluto, que sabe ter de expor com plausibilidade a fun- damentação de tudo o que afirma. Leis científicas, por definição, são temporárias. Serão refutadas. A refutação só prova que determinadas teses foram científicas enquanto foram críveis, plausíveis, para nós. No nosso campo específico, o do conheci- mento acerca do Direito, um grande complexo de inferioridade marcava a reflexão teórica jurídico-científica em relação à ciência da Física e dos demais campos do conhecimento, sobretudo, aos das demais ciências naturais e exatas, pois a visível base convencional do direito moderno, positivado e contingente, parecia impedir aqui 27Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade uma ciência que pudesse se apresentar como conhecimento irrefutável, eterno e imutável. Hoje, não mais precisamos ter qualquer complexo de inferioridade, porque a base convencional de qual- quer ciência tornou-se clara. todos se recordam de como, recentemente, Plutão deixou de ser planeta mediante a votação da comunidade científica dos astrônomos. aliás, foi o modelo da comunidade científica que pôde servir para repensarmos o pró- prio conceito de democracia. O saber que se sabe limitado funda-se no permanente debate público acerca de seus próprios fundamentos e, assim, é precário, contingente e sempre aprimorável. seus fundamentos são históricos e datados. a nossa racionalidade é, ela própria, um produto humano e como tal porta todas as nossas características. O projeto iluminista era um mito, precisamente por divinizar a racionalidade humana. É preciso realizar o iluminismo do ilumi- nismo, para usar os termos de niklas Luhmann (Der Aufklärung der Aufklärung). saber que a nossa racionalidade é humana, sabê-la histórica, limi- tada, datada, ela própria uma construção social vinculada a determinadas tradições, práticas, vivências, interesses e necessidades, no mais 28 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... das vezes naturalizados e apenas pressupostos. O positivismo, no afã de eliminar os mitos, dando curso ao projeto iluminista de iluminar as trevas, pretendendo que tudo fossem luzes, criou o maior dos mitos, o mito da ciência, do saber absoluto, como se fôssemos capazes de produzir algo eterno, imutável, perfeito, enfim, divino. somos seres humanos, datados, com o olhar marcado por aquilo que vivemos. só podemos ver o que a nossa sociedade permite que vejamos, o que a nossa vida concreta em sociedade permite que vejamos. Qualquer luz necessariamente pro- jeta sombras. se podemos ver muito bem alguns aspectos é porque outros restam ofuscados pelo brilho daqueles que enfocamos em destaque. toda produção de conhecimento requer redução de complexidade e, nessa medida, produz igual- mente desconhecimento. Podemos ver agora a modernidade da sociedade moderna também no que diz respeito à sua ciência. uma ciência que só é conhecimento na medida em que se sabe precária, provisória. um saber que, ao assumir a sua complexidade, enfrenta seus riscos e os incorpora, lidando com eles de forma a conhecê-los e a buscar 29Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade preveni-los, sabendo, de antemão, que não poderá evitá-los totalmente. O conhecimento produzido também pro- duz, em igual medida, desconhecimento. neste passo o conceito de paradigma científico em thomas Kuhn11 pode muito nos esclarecer. Paradigma é um conceito da filosofia da ciência de Thomas Kuhn que, por sua vez, afirma ter sido por influência de Gadamer, o autor de Verdade e método12 — um autor vinculado à hermenêutica filosófica, à reflexão do status do conhecimento no terreno das chamadas ciências do espírito, das ciências humanas, das ciências que têm por objeto precisamente a interpretação de textos ou de equivalentes a textos — que pensou em trabalhar este conceito. Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas, avança a tese de que o conhecimento não progride evolutiva e pacificamente, mas, ao contrário, o progresso do conhecimento nas ciên- cias, e é de se destacar que seu enfoque se centra nas ciências ditas exatas ou da natureza, se daria por rupturas, por grandes saltos, por profundas alterações de paradigmas. 11 KuHn, t. s. A estrutura das revoluções científicas. são Paulo: Perspectiva, 1996. 12 GaDamer, H. G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997. 30 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... toda essa discussão de Kuhn encontra-se também intimamente vinculada aos desenvolvi- mentos da filosofia da linguagem, ao denominado giro linguístico, hermenêutico e pragmático. nessa época, a filosofia da linguagem estava a descobrir, não somente com a contribuição da hermenêutica de Gadamer, mas também desde a herança prag- mática de Wittgenstein,13 o papel fundamental que o silêncio exerce na linguagem. É claro que tudo isso que estamos dizendo o fazemos no pressuposto de que podemos ser entendidos, mas esse é um pressuposto contra- factual pois, na verdade, se formos verificar as vivências das pessoas, essas são muito diversas e a possibilidade de se ser efetivamente compre- endido é pouco plausível. ao retirarmos do pano de fundo tacitamente compartilhado de silêncio qualquer palavra que consideremos de sentido óbvio, trazendo-a para o universo do discurso, como fizemos com o termo ciência, veremos que acerca de seu significado não havia um acordo racional mas mero preconceito, ou seja, uma precompreensão irrefletida, um saber que se 13 WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. são Paulo: nova Cul- tural, 2000. 31Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade acreditava absoluto e que, por isso mesmo, não era saber algum. e conquanto efetivamente pos- samos provar empiricamente que a comunicação não se dá, ao fazê-lo, provamos unicamente que o mal entendido é possível, o que portanto apenas confirma o entendimento como regra geral. A comunicação como tal, por meio da linguagem, é muito improvável e, no entanto, ela se dá, nós nos comunicamos graças a esse pano de fundo compartilhado de silêncio que, é claro, é sentido naturalizado. Daí a natureza contrafactual desse pressuposto residir precisamente no paradoxo da linguagem: “nós nos comunicamos porque não nos comunicamos.” São exatamente essas pre- compreensões que integram o pano de fundo da linguagem que constituem o que Kuhn denomina paradigma. esse pano de fundo compartilhado de silêncio, na verdade, decorre de uma gramática de práticas sociais que realizamos todos os dias sem nos apercebermos dela e que molda o nosso próprio modo de olhar, a um só tempo aguça e torna precisa a nossa visão de determinados aspectos, cegando-nos a outros, e isso é parte da nossa condição humana. Para Kuhn, nós não temos como sair de um paradigma, ou melhor, da 32 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... condição paradigmática, podemos sim trocar de paradigmas, mas sempre que o advento de novas gramáticas de práticas sociais permitirem a troca de paradigma, esse vai ser um novo filtro, como óculos que filtram o nosso olhar, que mol- dam a forma como vemos a chamada realidade; as normas performáticas decorrentes de nossas vivências sociais concretas condicionam tudo o que vemos e a forma como vemos. Por isso mesmo, um olhar estrangeiro na ciência, de fora daquela comunidade científica específica, é sempre produtivo. normalmente, as grandes descobertas vêm de alguém não habituado com o paradigma tradicional. ronald Dworkin, ao suceder Hart na cátedra de teoria do Direito em Oxford, retoma a questão da interpretação precisamente ali onde Kelsen termina, mas da perspectiva oposta. A sua afir- mação de uma única decisão correta para o caso assenta-se na unicidade e irrepetibilidade que marca cada caso. ressalta aqui a complexidade do modelo de um ordenamento de princípios (mesmo as regras aqui devem ser principiologi- camente lidas), que se apresenta por inteiro e, a um só tempo, composto por princípios opostos 33Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade em produtiva tensão reciprocamente constitutiva e igualmente válidos que dependem do caso con- creto para que seja possível discernir a pretensão abusiva da correta que com base neles são levan- tadas. Por isso mesmo, o caso em sua concretude e irrepetibilidade deve ser reconstruído de todas as perspectivas possíveis, consoante as próprias pretensões a direito levantadas, no sentido de se alcançar a norma adequada, a única capaz de produzir justiça naquele caso específico. Essas reflexões de Dworkin marcam o emergir de um novo paradigma que vem, enquanto tal, de forma cada vez mais difundida e internalizada se afirmando através da constituição de um novo senso comum social, de um novo pano de fundo para a comunicação social, no qual são gestadas pretensões e expectativas muito mais complexas, profundas e rigorosas no que respeita ao projeto de reencantamento com o Direito, seja como orde- namento ou esfera própria da ação comunicativa, do reconhecimento e do entendimento mútuo dos cidadãos para o estabelecimento e a imple- mentação da normativa que deve reger sua vida em comum, seja como simples âmbito específico de conhecimento e exercício profissionais. É esse 34 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... novo paradigma que tem sido denominado pela Doutrina “Estado Democrático de Direito” e que, no Brasil, foi inclusive constitucional- mente consagrado. ainda é de se registrar que a prevalência do positivismo jurídico instrumentalizador do paradigma do Estado Social se verifica não só como marco teórico explícito, mas muito mais como pano de fundo tacitamente acolhido que chegou e ainda continua a conformar difusa e eficazmente não apenas a prática dos vários operadores jurídicos, mas a própria reprodução desta prática ao determinar decisivamente o caldo de cultura em que se dão o processo de aprendizagem e de formação do profissional do Direito. a profunda revisão doutrinária que tem conduzido, de modo crescente e de par com as marcantes alterações ocorridas nas duas ou três últimas décadas em todos os âmbitos da vida humana — resultantes da nova estrutura societá- ria pluralista e hipercomplexa das denominadas sociedades pós-industriais, da crítica aos excessos da razão iluminista acolhida pela modernidade no âmago do próprio conceito de ciência, do advento de novas tecnologias e saberes, da exigência de 35Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade se rever a relação puramente predatória com a natureza, do advento dos direitos de 3ª geração e do fracasso do modelo do estado social — à constituição desse novo paradigma, possibilita e exige a recunhagem do próprio estatuto da Ciência ou Teoria Geral do Direito, redefine e amplia suas fronteiras, seus conceitos básicos e seu próprio papel, bem como o papel, as tarefas e a responsabilidade do profissional do Direito, sobretudo, do Judiciário em sua relação cotidiana com a efetividade dos ideais constitucionais como implementação, concretização e efetivação da Justiça e da cidadania. Dworkin expressa no Direito o que passa a ocorrer no âmbito da própria Filosofia a partir da década de 1970. Verifica-se o movimento de reen- cantamento com o Direito na Filosofia mesma. A Filosofia do Direito passa a ser novamente temática obrigatória dos filósofos. É claro que desta vez, em um contexto de racionalidade limi- tada, sobretudo após o evento de 11 de setembro, a preocupação de autores de vertentes tão dis- tintas como Jacques Derrida, Jürgen Habermas e Paul ricoeur termina por encomendar à Filo- sofia a reflexão acerca do significado da herança 36 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... jurídico-constitucional e a sua centralidade para a preservação e o desenvolvimento de uma socie- dade cada vez mais complexa, plural e inclusiva em face da ameaça dos totalitarismos funda- mentalistas (sejam orientais ou ocidentais, de direita ou de esquerda). assim é que o retorno da Filosofia do Direito como uma das dimensões centrais da reflexão filosófica termina, parado- xalmente, por nos enviar de volta à teoria da Constituição, dos Direitos Fundamentais e da interpretação Constitucional. assim é que não mais podemos valida- mente pretender transferir nossos problemas para os textos. muitas alterações constitucionais profundas verificaram-se na história do consti- tucionalismo mediante alterações na gramática das práticas sociais de tal sorte que passamos a lê-los consoante a ressignificação dos próprios direitos fundamentais. “O passado é tão aberto quanto o futuro”, afirma michel rosenfeld. assim é que cada geração só é capaz de revisitá-lo sob a sua ótica, sempre renovada, marcada, é claro, pela vivên- cia herdada das gerações anteriores, bem assim por seus próprios desafios, aflições, desejos e 37Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade temores — inerentes e constitutivos de sua específica temporalidade social. neste texto, procura-se explorar a distância conceitual que nos separa, na história do constitucionalismo, das gerações anteriores, que, de uma forma ou de outra, tematizaram a relação entre a forma e o conteúdo constitucionais como uma simples relação de oposição antagônica. Demarcar essa distância, acreditamos, é um exercício de Teoria da Constituição, de reflexão acerca da história do pensamento constitucional, necessário para que se alcance uma compreensão mais profunda do sentido complexo desta relação que hoje, ainda que inconscientemente, tendemos a compartilhar. Ou seja, se tendencialmente con- tinuamos a vê-la como uma relação de oposição, essa, contudo, não mais pode ser vista como uma relação de simples oposição em que ambos os termos reciprocamente se excluam, tal como ocorre na relação de oposição entre preceitos no modelo normativo em que se acredita que as normas sejam capazes de regular suas condições de aplicação, o das regras. Ao contrário, sob o influxo da racionalidade subjacente ao modelo normativo dos princípios, 38 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... sabemos que as normas gerais e abstratas não são capazes de regular as suas próprias condições de aplicação, e que, portanto, a aplicação de uma norma, de um princípio, requer que, na unicidade específica e determinada do caso concreto, diante das várias versões dos fatos que se apresentem, se tenha o tempo todo também em mente a norma geral ou princípio contrário, a configurar uma tensão normativa rica e complexa que opere como crivo para discernir, no caso, as pretensões abu- sivas das legítimas. nessa tensão, muito embora efetivamente o significado das duas normas, sem dúvida, seja oposto, a um só tempo, o significado de cada uma delas delimita e matiza o da outra, passando, assim, a conformá-lo profundamente, de tal sorte que uma é recíproca e inafastavel- mente constitutiva do sentido constitucional da outra. uma boa aplicação do princípio da publi- cidade, por exemplo, requer que sempre se tenha em mente o da privacidade, e vice-versa. No âmbito da filosofia política, da teoria democrática e da teoria da Constituição, do ponto de vista de uma perspectiva que busque se incor- porar no processo de aprendizado possibilitado pelas vivências constitucionais anteriores, que se 39Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade assuma como desenvolvida a partir dos novos horizontes de sentido descortinados pelo para- digma do estado Democrático de Direito, o mesmo sucede com todos os pares de conceitos opos- tos típicos da modernidade, até então também enfocados como antagônicos e reciprocamente excludentes. Cultura e natureza, público e pri- vado, igualdade e liberdade, democracia e Cons- tituição, forma e matéria constitucionais, para citar apenas alguns, são termos cuja significação atual é rica e complexa, decorrente da possibilidade de vermos a relação, a um só tempo, de oposição e complementaridade que guardam entre si. em uma terminologia habermasiana, são conceitos ou princípios co-originários e equiprimordiais. autores que trabalham de forma extrema- mente produtiva a exigência herdada do consti- tucionalismo social de um enfoque materializado do Direito Constitucional, como, por exemplo, na espanha, Pablo Lucas Verdú (difusamente em toda a sua obra, mais especificamente no volume iV do Curso de direito político),14 no Brasil, Lênio streck,15 enfocam o Direito Constitucional como 14 VerDÚ, P. L. Curso de derecho político. madrid: tecnos, 1984. 15 streCK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêu- tica da construção do direito. Porto alegre: Livraria do advogado, 1999. 40 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... vida. e realmente, o Direito Constitucional é vida — ou é vida ou não é nada! De outra vertente, mesmo autores que, no campo da teoria jurídica, adotaram posturas mais formalistas, como, por exemplo, norberto Bobbio, no correr da última década do século XX já denunciavam a história do Direito Constitucional como “uma história de promessas não-cumpridas”.16 a denúncia de Bobbio delineia o horizonte do desafio posto a nós, constitucionalistas e jusfilósofos do final do século XX, início do XXi: sem abrir mão do conhecimento crítico acerca das inegáveis possi- bilidades de usos abusivos do Direito em geral, do Constitucional em especial, resgatar, em um contexto de racionalidade que se sabe limitada, o reencantamento com o Direito e com a Demo- cracia; enfim, com os direitos fundamentais e com o constitucionalismo. exatamente por isso, a atual doutrina do Direito é unânime em requerer que o Direito em geral e, em especial, o Direito Constitucional, sejam uma efetividade viva, ou seja, que se traduzam na vivência cotidiana de todos nós. 16 BOBBiO, n. A era dos direitos. rio de Janeiro: elsevier, 2004. 41Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade Os direitos fundamentais, tal como os entendemos hoje, são o resultado de um pro- cesso histórico tremendamente rico e complexo, de uma história, a um só tempo, universal, mas sempre individualizada; comum, mas sem- pre plural. em termos de características mais gerais é possível divisar etapas tendenciais em um único processo global de aprendizado social decorrente das lutas pela afirmação do que acreditamos sejam os direitos fundamentais e a negação viven- cial e histórica dessas crenças.17 sempre, no entanto, esta é uma história plural, matizada regional- mente segundo as especificidades das tradições herdadas em cada país. a irracionalidade do excesso racionalista das pretensões iluministas revela-se claramente na crença em fundamentos últimos que podiam ser vistos como definitivos e imutáveis, quando sabemos hoje que permanente é somente o que é capaz de ter o seu significado renovado conjuntamente com a constante trans- formação da sociedade moderna. no contexto de uma racionalidade que se sabe precária, os 17 HaBermas, J. O estado Democrático de Direito: uma amarração paradoxal de princípios contraditórios?. In: HaBermas, J. Era das transições. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 2003. 42 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... fundamentos revelam-se frágeis constructos sociais, requerendo que os compreendamos como conquistas históricas discursivas que, embora estruturalmente inafastáveis do processo de reprodução diuturna da sociedade moderna, por si sós, não são definitivas, ao contrário, encontram-se, elas próprias, em permanente mutação, sujeitas ao retrocesso e sempre em risco de serem manipuladas, abusadas. Vimos a fragilidade da fundamentação que, em nossa época, podemos plausivelmente ofe- recer à noção de direitos humanos e de direitos fundamentais e, claramente, prefiro essa expres- são à outra, direitos naturais, por entendê-los conquistas históricas, aquisições evolutivas socialmente criadas, direitos institucionaliza- dos em uma sociedade improvável, complexa. na modernidade, vivemos em uma sociedade instável, uma sociedade que se alimenta de sua própria instabilidade, uma sociedade absoluta- mente implausível. aqui começamos a tratar explicitamente da questão dos desafios postos hoje aos direitos fun- damentais. O primeiro e grande desafio é saber- mos que se, por um lado, os direitos fundamentais 43Capítulo 1 Introdução – Caminhos e Descaminhos da Filosofia do Direito na Modernidade promovem a inclusão social, por outro e a um só tempo, produzem exclusões fundamentais. a qualquer afirmação de direitos corresponde uma delimitação, ou seja, corresponde ao fechamento do corpo daqueles titulados a esses direitos, à demarcação do campo inicialmente invisível dos excluídos de tais direitos. a nossa história consti- tucional não somente comprova isso, como possi- bilita que repostulemos a questão da identidade constitucional como um processo permanente em que se verifica uma constante tensão extrema- mente rica e complexa entre a inclusão e a exclu- são e que, ao dar visibilidade à exclusão, permite a organização e a luta pela conquista de concepções cada vez mais complexas e articuladas da afirma- ção constitucional da igualdade e da liberdade de todos. Este é um desafio à compreensão dos direitos fundamentais; tomá-los como algo per- manentemente aberto, ver a própria Constituição formal como um processo permanente, e portanto mutável, de afirmação da cidadania. uma das preocupações centrais aqui presen- tes volta-se para a possível contribuição de uma ciência do Direito para a questão da eficácia e da efetividade do Direito e da democracia. apenas 44 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... que, quando o problema é retomado de uma perspectiva posterior ao giro linguístico, o papel do conhecimento ou da ciência passa a ser bem mais modesto e o da comunidade de princípios, como um todo, reforçado. É claro que, muito embora o enfoque tenha se tornado bem mais complexo, continuamos a considerar central o problema da tessitura aberta do Direito positivo e a possível contribuição de uma teoria do Direito ou, mais especificamente de uma Teoria da Cons- tituição, para se não coibir, ao menos denunciar, as leituras abusivas das autoridades encarregadas de aplicá-lo. aliás, este é um dos papéis centrais das academias no campo do Direito: proceder ao controle discursivo das decisões do judiciário como um todo, dos tribunais superiores em espe- cial, trazendo para o debate científico e mesmo público, as decisões que acreditam inconsistentes. Capítulo 2 A Implosão e Superação do Projeto Positivista no Direito Sumário: a implosão da teoria pura – O positivismo, os hard cases e a única resposta correta de Dworkin – O conceito de integridade na política – O conceito de integridade no Direito – a teoria de Dworkin na perspectiva da teoria discursiva do estado Democrático de Direito – Dworkin e o realismo moral – a interpretação construtiva – O papel dos princípios – Os estágios de Kohlberg a implosão da teoria pura O cenário político que privilegiou a afirmação do positivismo tornava plausível a crença dos juristas no poder regulatório de regras racio- nalmente cunhadas por especialistas. a noção linear de progresso, num contexto de relativa homogeneidade moral e estabilidade de mer- cado, se comparado com o século XX, tornava 46 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... possível a percepção do utilitarismo positivista de Bentham como uma força capaz de combater tradições morais reacionárias. Permitir que juízes extraíssem princípios morais, a partir da leitura da tradição jurídica, ressoaria conservadorismo e anticientificidade.18 as teorias positivistas buscaram estabilizar expectativas sem recorrer a tradições éticas como suporte para a legitimidade das normas jurídicas. Kelsen e Hart buscaram conceber o ordenamento jurídico como sistema fechado de regras cuja compreensão seja independente da política e da moral. reduz-se o Direito a uma determinada história institucional, com abstração de qualquer princípio suprapositivo.19 O problema da legitimidade e das fontes se resolve com a explicitação de regras de reco- nhecimento, regras secundárias de identificação do direito/não direito, ou seja, regras autorrefe- rentes do ordenamento jurídico instituidoras de autoridades e identificadoras de suas respectivas 18 DWORKIN, R. Hart’s Postscript and the Point of Political Philosophy. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 180. 19 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 250. 47Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito competências para decidir. a legitimidade das normas refere-se portanto unicamente à sua proce- dência, não à racionalidade de seu conteúdo. essa regra de reconhecimento, porém, não pode ela mesma ser fundamentada em outra regra jurídica, devendo portanto ser reconhecida como um fato histórico, como parte de uma determinada forma de vida, aceita de forma autoevidente pelos pró- prios participantes do “jogo de linguagem”.20 Como bem aponta Habermas, para o posi- tivismo a noção de segurança jurídica se sobrepõe, abarca, eclipsa a ideia de justiça enquanto preten- são de correção normativa. a fundamentação das normas jurídicas é puramente procedimental — de forma bem distinta do procedimentalismo21 de Habermas —, refere-se unicamente à sua gênese, deixando o problema do conteúdo das normas para outros âmbitos normativos ou científicos — moral, política, sociologia, história etc. 20 Ibid., p. 251. 21 assim como Habermas, Dworkin compreende a relação entre forma e conteúdo ou procedimento e substância no direito como algo marcado por complementaridade, e não oposição. “aqueles que dizem que a expressão ‘devido processo substantivo’ consiste num oxímoro, porque substância e processo são opostos, desconsideram o fato crucial de que uma demanda por coerência de princípio, que traz óbvias conseqüências substantivas, é parte essencial do que faz um processo de tomada de decisão ser um processo jurídico” (DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006). 48 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... a noção do ordenamento jurídico como sistema de regras, tendo-se em vista a base teórica linguística pressuposta pelos expoentes maiores do positivismo científico, implica o reconheci- mento de seu caráter impreciso, indeterminado ou lacunoso. admitindo-se a estrutura aberta da linguagem, a pretensão de regulação de todas as possíveis condutas por meio de regras abstratas se mostra inviável, cabendo ao sistema jurídico lidar com essa indeterminação diante de sua tarefa inescapável de decidir. se também Kelsen parte do reconhecimento da tessitura aberta dos textos legais e constitu- cionais, ao contrário de Dworkin e dos autores atuais, ele pretende eliminar ou reduzir essa abertura que vê como um problema central para todo o Direito. Para o primeiro Kelsen, o da Teoria pura de 1933, a indeterminação dos textos legais e cons- titucionais poderia ser solucionada ao se elimi- nar o problema da arbitrariedade na aplicação do Direito mediante a contribuição da Ciência do Direito. a Teoria pura do direito, a ascética Ciência do Direito kelseniana, deveria traçar o quadro das leituras possíveis dos textos legais e 49Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito constitucionais, de tal sorte que o arbítrio inicial transformar-se-ia em discricionariedade do apli- cador. este último deveria escolher, determinar, dentro do quadro dos sentidos possíveis de um texto neutramente delineados pela doutrina, a norma, ou seja, o sentido estatal, oficial, do texto. Observadas as possibilidades interpretativas des- critas sem qualquer juízo de valor pela doutrina científica, a atividade da autoridade deixaria de ser arbitrária para ser discricionária, ao proceder ao juízo de valor, próprio da sua competência e, portanto, dotada de poder vinculante, da escolha da norma a ser aplicada no interior daquele qua- dro de possibilidades normativas. no entanto, na edição revista da Teoria pura do direito, de 1960, Kelsen procede ao famoso giro decisionista, alterando o capítulo oitavo da obra dedicado à questão da interpretação. Precisa- mente o que distingue, para Kelsen, a interpre- tação científica da interpretação que denomina autêntica, é o fato de a primeira ser neutra e de não ter o poder de vincular as pessoas tão somente em razão da pronúncia, como as autoridades estatais competentes para decidir e aplicar a norma jurídica o fazem. ele se indaga agora o que 50 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... aconteceria se a autoridade decidisse por um sentido que não estivesse contido no interior do quadro dos sentidos admissíveis traçado pela doutrina, e responde: azar da Ciência do Direito, é a autoridade que pode impor a observância das normas e não o cientista. Kelsen buscara restringir a natureza aberta dos textos mediante a contri- buição de uma ciência neutra, seu fracasso, no entanto, revela a ingenuidade com que buscou enfrentar o problema da linguagem. Para nós é óbvio que não há dicionário ou gramática, por mais bem feita que seja, capaz de congelar a linguagem. Dicionários e gramáticas ficam defasados em pouquíssimo tempo diante da força atribuidora de sentido da gramática das práticas sociais em permanente transformação. a linguagem é algo vivo e vivenciado que não se deixa aprisionar. Paradoxalmente, só podemos enfrentar de fato os riscos quando assumimos sua inevitabi- lidade, quando desistimos de exorcizá-los, de eliminá-los, e passamos a buscar controlá-los; a questão só pode ganhar um enfrentamento mais consistente, possibilitando a criação de um instru- mental de outro tipo para o controle do risco da 51Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito arbitrariedade inerente à atividade interpretativa, quando se passou a assumir a natureza incontor- navelmente aberta, indeterminada, de qualquer texto. É a unicidade, a irrepetibilidade da situação de aplicação que pode assegurar a imparcialidade e nunca o texto em si, ainda que apoiado em outros textos supostamente neutros, como se esses últimos, por alguma mágica, pudessem escapar do turbilhão incessante da vida e das formas de vida que marcam a nossa leitura do mundo. esse turbilhão é, ele próprio, constitutivo do pano de fundo compartilhado de silêncio que sustenta a comunicação na linguagem, do mundo da vida, que, mediatizado institucionalmente, possibilita o advento de uma Constituição compartilhada intersubjetivamente pela comunidade de cida- dãos. Pano de fundo que contém os horizontes de sentido dessa determinada comunidade enraizados na gramática de suas práticas sociais, incorporando um repositório de sentidos decor- rentes tanto das práticas assentadas nas tradi- ções quanto de novas práticas emancipatórias e transformadoras. tanto em Kelsen quanto em Hart, contudo, a saída termina por ser decisionista. a própria 52 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Ciência do Direito, como fica patente na obra revista de Kelsen, pode apenas indicar, mas não assegurar qualquer moldura de interpretações que vincule as autoridades competentes para decidir — capazes de realizar interpretações autênticas, pois impositivas —, cujas decisões podem assim ter fundamentos extrajurídicos: a propósito, importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.22 O reconhecimento de Kelsen de que não há nada a fazer se a autoridade encarregada de aplicar o direito não se deixa submeter à mol- dura das interpretações possíveis descrita pela Ciência do Direito equivale, na verdade, à acei- tação da possibilidade de arbítrio da autoridade aplicadora como algo inafastável e incontrolável. 22 KeLsen, H. Teoria pura do direito. são Paulo: martins Fontes, 1998. p. 394. 53Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito a contribuição que se buscara alcançar com a Teoria pura do direito, expressa em seu último capí- tulo, perde-se agora de seu propósito original. O sentido do texto normativo, ou seja, a norma, será aquela que a autoridade afirma ser. A segurança jurídica termina por não ser crível, nem mesmo no âmbito do regulado pelas regras jurídicas expressamente positivadas. O positivismo jurídico de Hart concebe os hard cases como casos que não podem ser solucio- nados com recurso a uma regra jurídica suficien- temente clara, cabendo portanto ao juiz fazer uso de sua discricionariedade para decidir. ao fazê-lo uma nova regra estaria sendo criada e aplicada retroativamente, por mais que o juiz se esforçasse para dar a entender que estaria simplesmente apli- cando um direito pré-existente, tentando assim salvaguardar a ficção da segurança jurídica.23 a ideia de certeza do direito como atividade de mera cognição, ou seja, como desvelamento racional do sentido pré-existente das normas, é expressamente rejeitada por Kelsen: 23 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard university Press, 1977. p. 81. 54 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... a teoria Pura destrói a visão segundo a qual as normas podem ser criadas por meio da cognição, uma concepção que decorre, em última instância, da necessidade de se imaginar o Direito como um sistema fixo que regula todos os aspectos do comportamento humano e, em especial, as atividades dos órgãos que aplicam o Direito, sobretudo as de todos os tribunais. a função desses últimos — e, assim, também a interpretação — há de ser vista simplesmente como o desvelamento das normas vigentes, normas que, então, hão de ser simplesmente, de uma certa maneira, reveladas. a teoria jurídica tradicional, deliberadamente ou não, se esforça por manter a ilusão da certeza jurídica.24 a teoria positivista da interpretação, ao igualar em essência as tarefas legislativa e judi- cial, especialmente diante de hard cases, nivela as distintas lógicas subjacentes, causando uma pro- funda confusão entre argumentos cuja distinção 24 KeLsen, H. On the theory of interpretation. Legal Studies, v. 10, n. 2, p. 132, 1990: “the Pure theory decimates the view that norms can be created by way of cognition, a view that arises in the end from the need to imagine the law as a fixed system governing every aspect of human behavior, and governing in particular the activity of the organs that apply the law, above all the courts. their function — and thus, interpretation too — is to be seen simply as the discovery of existing norms, norms, then, that are simply to be uncovered in a certain way. The illusion of legal certainty is what traditional legal theory, wittingly or not, is striving to maintain”. 55Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito é cara a toda a estrutura política das sociedades modernas: argumentos de política e argumentos de princípio. Os primeiros se referem à persecução de objetivos e bens coletivos considerados relevantes para o bem-estar de toda a comunidade, passí- veis de transações e compromissos, enquanto os segundos fundamentam decisões que resguar- dam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo assim um papel de garantia contramajoritária.25 O positivismo, os hard cases e a única resposta correta de Dworkin O argumento de Dworkin da única resposta correta consiste na afirmação de que mesmo nos casos considerados pelo positivismo como hard cases, onde não há uma regra estabelecida dis- pondo claramente sobre o caso, uma das partes pode mesmo assim ter um direito preestabele- cido de ter sua pretensão assegurada. Cabe ao juiz descobrir quais são esses direitos, mas isso não poderá ser obtido com auxílio de algum método ou procedimento mecanicista. Dworkin 25 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously in Beijing. The New York Review of Books, v. 49, n. 14, p. 82, 2002. 56 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... deixa claro que se trata primeiramente de uma postura a ser adotada pelo aplicador diante da situação concreta e com base nos princípios jurí- dicos, entendidos em sua integridade,26 e não numa garantia metodológica, o que significa que discor- dâncias razoáveis sobre qual a resposta correta para cada caso exigida pelo Direito podem ocorrer entre os juízes, advogados, cidadãos, etc.27 nos casos em que nos pareça inequívoca a atribuição de um direito a um requerente por meio da clareza de uma norma expressa — ou melhor, em que (ainda) não se sustentem argu- mentos em contrário em face dos dispositivos normativos invocados — fica claro que o que se exige é a prevalência de um argumento de princí- pio, mesmo que o direito em questão, previsto na norma, tenha se originado de argumentos de polí- tica, como, por exemplo, no caso de um subsídio fiscal criado com o objetivo de promover o cres- cimento de um setor específico da economia. até aqui as diferenças não se mostram com toda a sua força. em se tratando de um hard case, 26 sobre a integridade em Dworkin como teoria normativa da coerência, cf. GÜntHer, K. un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica. Doxa, n. 17/18, p. 271-302, 1995. 27 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard university Press, 1977. p. 81. 57Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito entretanto, surge a questão sobre a aplicabilidade de cada tipo de argumento por parte do aplicador. se os juízes atuam como legisladores delegados, como na concepção positivista, então toda a gama de argumentos de política está à sua disposi- ção. um caso pode ser decidido, na ausência de uma regra, de forma a promover, por exemplo, a maximização de objetivos econômicos conside- rados relevantes pelo juiz, ou a prevalência de valores sociais considerados superiores, sem que isso reflita necessariamente princípios jurídicos enquanto comandos normativos deontológicos. se, por outro lado, a tarefa jurisdicional se distin- gue em essência da atividade legislativa, atuando como um fórum de princípio, nos hard cases as decisões também devem se basear em argumen- tos de princípio.28 Dworkin rejeita a redução da legitimidade do direito à simples textualidade legal, em termos de uma gênese puramente formal do Direito, como em Kelsen ou Hart. a diferenciação entre direito, moral e política deve ser mantida, mas isso se torna possível justamente pela tradução 28 DWORKIN, R. A Matter of Principle. Cambridge, mass.: Harvard university Press, 1985. p. 69. 58 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... dos princípios morais e dos objetivos políticos na linguagem propriamente jurídica, internali- zando e ressignificando assim seus conteúdos no direito positivo.29 a diferenciação interna ao direito entre direitos e políticas, proposta por Dworkin, reforça a distinção entre formas específicas de discursos, buscando garantir a primazia dos argumentos de princípios, que remetem aos conteúdos morais dos direitos fundamentais, sobre a argumentação teleo- lógica e pragmática de políticas cunhadas para a realização de objetivos supostamente realizadores de bens coletivos.30 É o Legislativo, assim, a porta de entrada dos argumentos éticos e pragmáticos próprios das políticas públicas, a serem incor- porados no discurso judicial de forma seletiva e condicionada, dado o papel de firewall atribuído aos direitos fundamentais, com sua linguagem deontológica, no ordenamento jurídico.31 29 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 257. 30 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard university Press, 1977. p. 82 et seq. 31 robert alexy critica a distinção proposta por Dworkin entre princípios e políticas por considerá-la “por demais estreita” (ALEXY, R. Teoria de los derechos fundamentales. madrid: Centro de estudios Constitucionales, 1993. p. 111). 59Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito a insuficiência das crenças e posturas positivistas torna-se ainda mais clara com a distin- ção proposta por Dworkin entre regras e princí- pios. a leitura positivista do direito como sistema autossuficiente de regras, que pretendem regular com alto grau de determinação suas situações de aplicação, deixa escapar a dimensão central de qualquer ordenamento jurídico pós-convencional: sua estrutura principiológica, necessariamente in- determinada em abstrato, embora determinável em concreto, aberta hermeneuticamente à construção intersubjetiva dos sentidos das normas universalis- tas positivadas enquanto direitos fundamentais.32 importante ressaltar que num sistema principioló- gico mesmo as regras, que especificam com maior detalhe as suas hipóteses de aplicação, não são capazes de esgotá-las; podem, portanto, ter sua aplicação afastada diante de princípios, sempre com base na análise e no cotejo das reconstruções fáticas e das pretensões a direito levantadas pelas partes na reconstrução das especificidades pró- prias daquele determinado caso concreto. 32 essa característica da aplicação jurídica, mesmo se tratando de regras, também não é captada da mesma forma na teoria de alexy. Cf. aLeXY, r. sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, n. 5, p. 139-151, 1988. Luíza Realce 60 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... a perspectiva decisionista a que chega o positivismo em face da reconhecida indetermi- nação das regras é rechaçada assim pelo caráter normativo dos princípios jurídicos que, embora muito gerais e abstratos, exigem do intérprete densificação, com especial atenção à história institucional e à sistematicidade do conjunto de princípios reciprocamente vinculados do Direito. essa exigência de Dworkin é bem apreendida por Habermas: Depois que o direito moderno se emancipou de fundamentos sagrados e se distanciou de contextos religiosos e metafísicos, não se torna simplesmente contingente, como o positivismo defende. entretanto, ele também não se encontra simplesmente à disposição de objetivos do poder político, como um medium sem estrutura interna própria, como é defendido pelo realismo. O momento da indisponibilidade, que se afirma no sentido de validade deontológica dos direitos, aponta, ao invés disso, para uma averiguação — orientada por princípios — das “únicas decisões corretas”.33 33 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 259. 61Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito É nesse sentido que pode Dworkin falar da exigência de se buscar a única decisão correta autorizada pelo ordenamento: não enquanto mandamento inscrito a priori nas normas gerais e abstratas, mas como postura a ser assumida pelo aplicador em face das questões aparentemente não reguladas apresentadas pelos hard cases, de densificação dos sentidos abstratos em face de um compartilhamento existente, embora sempre passível de ser problematizado e polemizado, do sentido vivencial dos princípios jurídicos, presente naquela determinada comunidade de princípios, tanto na assimilação prática dos direitos pela sociedade em seu quotidiano, em suas lutas, reivindicações por posições interpre- tativas e em seu aprendizado histórico, quanto na reafirmação institucional do sentido dessa história pelos órgãos oficiais. O conceito de integridade na política Para Dworkin, é precisamente o conteúdo moral incorporado ao Direito como direitos fundamentais, funcionando como Direito e não mais como moral, que garante o pluralismo e a crescente complexidade da sociedade moderna. Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce 62 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... essa relação é um suposto inafastável da teoria do Direito de Dworkin. Para ele é tarefa de uma comunidade concreta densificar, interpretar reflexivamente, esses princípios. Essa comunidade não mais pode compreender a si mesma como um grupo de pessoas unidas apenas por razões acidentais, externas e incontroláveis, históricas ou territoriais (o estágio pré-convencional de Kohlberg).34 tampouco não é mais capaz de se ver como um grupo apenas por terem estado submetidos às mesmas normas, decorrentes de um procedimento aceito, a partir, por exemplo, de uma regra de reconhecimento (o estágio con- vencional de Kohlberg). uma verdadeira comunidade, que Dworkin denomina de princípios, é uma comunidade especial. além de compartilhar esses princípios comuns, eles a compreendem como uma co- munidade de princípio, pois seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais, há um respeito pela diferença do outro que não se confunde com a emoção moral, o altruísmo ou o amor. as obrigações recíprocas dessa 34 sobre os estágios de desenvolvimento moral, ver o tópico “O papel dos princípios – Os estágios de Kohlberg”. 63Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito comunidade decorrem dessa natureza especial que lhe é constitutiva. não se obedece a essas normas como realização de uma justiça global, universal, no exemplo dado por Dworkin. tais obrigações nascem justamente desse senso de per- tencimento a uma comunidade que compartilha os mesmos princípios. O conceito de integridade no Direito assim, para Dworkin, o Direito é um sis- tema aberto de princípios e regras. Princípios são normas abertas e que não buscam controlar previamente sua própria aplicação. regras são proposições normativas que buscam controlar a sua aplicação, por isso, no segundo modelo de comunidade, e na primeira fase do estágio pós-convencional, conduziram a aplicação dos próprios princípios a ser pensada e praticada como uma aplicação que deveria se conformar à típica das regras. Já os princípios, por sua vez, conquanto sejam abertos e indeterminados, são, porém, passíveis de serem densificados nas situações concretas de aplicação segundo a sua adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce 64 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... das características do caso em tela, em termos de sua capacidade de regência, sem produzir resí- duos de injustiça, em face aos demais princípios. Por isso mesmo, princípios contrários são não somente opostos, mas se requerem comple- mentarmente como parte da integridade com- plexa do Direito no momento de sua aplicação, nunca podem ser considerados isoladamente; já as regras, em seu modo típico de aplicação, ao invés, requerem a crença que hoje sabemos implausível de que as normas, por si sós, seriam capazes de regular as situações sempre indivi- duais, concretas e infinitamente complexas da vida, sem a mediação do aplicador. Por isso puderam gerar a crença em uma concepção de imparcialidade do aplicador que requereria a sua cegueira às especificidades das situações de aplicação, dando curso ao mito iluminista, totalmente irracional, sabemos hoje, exatamente pela confiança excessiva em uma racionalidade sobre-humana, perfeita, eterna, isenta de todos condicionantes que marcam nossa humanidade, segundo o qual a elaboração de normas gerais e abstratas perfeitas eliminaria o problema do Direito, pois ao aplicador restaria apenas um 65Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito trabalho de aplicação mecânica e silogística dessas mesmas normas às situações concretas de vida sempre passíveis de serem reduzidas a situações padrão. Desconhecia-se, precisamente, que o advento de normas gerais e abstratas, válidas para toda a sociedade, incrementam a complexidade social em geral, e do direito em especial, sempre abrindo a possibilidade, pelo simples fato de terem sido positivadas, de que pretensões abu- sivas de aplicação em situações concretas que, na verdade, nunca se deixaram reger por elas, venham a ser levantadas. aprendemos a duras penas que racional é o saber que sabe da pre- cariedade de nosso próprio saber e busca lidar racionalmente com os riscos que ela acarreta. O ponto de partida de Dworkin aqui, por- tanto, é o da crítica ao excesso de racionalidade inconsciente que marcava a visão anterior não só do conceito de ciência mas do próprio conceito de direito, de norma e de ordenamento jurídico, é saber que uma norma geral e abstrata nunca regulará por si só as situações de aplicação indi- viduais e concretas, até mesmo pela incorporação de maior complexidade ao ordenamento de prin- cípios que a sua adoção necessariamente significa, Luíza Realce Luíza Realce 66 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... ao dar uma maior densidade aos princípios constitucionais básicos e ao, simultaneamente, abrir novas possibilidades de pretensões abusivas. assim é que para ele, todas as normas, mesmo as regras, que se constitucionalmente válidas nada mais são do que densificações desses princípios naquele campo específico de sua força irradiadora, sejam sempre aplicadas de modo racional, ou melhor, com a clareza de que, por si sós, nada regulam, pois requerem a intermediação da sensibilidade do intérprete capaz de reconstruir não o sentido de um texto normativo tido como a priori aplicável, mas aquela específica situação individual e concreta de aplicação, em sua unicidade e irrepetibilidade, do ponto de vista de todos os envolvidos, levando a sério as pretensões a direitos, as pretensões norma- tivas, levantadas por cada um deles, para garantir a integridade do direito, ou seja, que se assegure na decisão, a um só tempo, a aplicação de uma norma previamente aprovada (fairness — aqui empregada no sentido de respeito às regras do jogo, algo próximo do que Kelsen denominava certeza do direito) e a justiça no caso concreto, cada caso é único e irrepetível. É nesse contexto que Dworkin levanta a tese da única resposta correta. Luíza Realce Luíza Realce 67Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito A integridade do Direito significa, a um só tempo, a densificação vivencial do ideal da comu- nidade de princípio, ou seja, uma comunidade em que seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como coautores das leis que fizeram para reger efetivamente a sua vida coti- diana em comum, bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz da sua história institucional como um processo de aprendizado em que cada geração busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse ideal. Desse segundo sentido decorre a metáfora do romance em cadeia. ao levarmos em conta a história constitu- cional, podemos ver o que esse duro processo de aprendizado institucional nos ensinou a respeito dos direitos fundamentais à igualdade e à liber- dade. a produtiva tensão constitutiva inerente a esses princípios encontra-se presente em todas as dicotomias clássicas típicas da modernidade, como público e privado, soberania popular e constitucionalismo, republicanismo e liberalismo, etc., pois apenas aparentemente apresentam uma natureza paradoxal. também aqui esses pólos efetivamente opostos, são também, a um só tempo, constitutivos um do outro, de Luíza Realce 68 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... tal sorte que instauram uma rica, produtiva e permanente tensão, capaz de dotar a doutrina constitucional da complexidade necessária para enfrentar problemas que ela antes nem era capaz de ver. não há espaço público sem respeito aos direitos privados à diferença, nem direitos pri- vados que não sejam, em si mesmos, destinados a preservar o respeito público às diferenças individuais e coletivas na vida social. não há democracia, soberania popular, sem a observância dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois aí há, na verdade, ditadura; nem constitu- cionalismo sem legitimidade popular, pois aí há autoritarismo. a igualdade do respeito às diferenças inclui e, ao mesmo tempo, exclui. Sempre que afirma- mos quem somos nós, os titulares do direito à igualdade, fechamos o sujeito constitucional que, conforme nos ensina michel rosenfeld e requer o §2º do art. 5 da Constituição da república, há que sempre permanecer aberto ao reconhecimento como igualdade de diferenças antes discrimi- nadas e insustentáveis em um debate público quando questionadas. Luíza Realce 69Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito a teoria de Dworkin na perspectiva da teoria discursiva do estado Democrático de Direito a teoria jurídica de ronald Dworkin busca superar os desafios e as perspectivas colocadas pelas teorias hermenêuticas,35 realistas e positivistas. Dworkin se propõe a lidar com o direito de uma perspectiva deontológica — a pressupor a possibi- lidade e necessidade da fundamentação das decisões em termos de correção normativa —, atribuindo ao ordenamento jurídico a dupla tarefa de garantir simultaneamente os requisitos de segurança jurí- dica (fairness e due process — respeito aos procedi- mentos e às regras preestabelecidas) e de justiça (correção normativa substantiva, tendo-se em vista o conteúdo moral dos direitos fundamentais democraticamente positivados): De um lado, o princípio da segurança jurídica exige decisões tomadas consistentemente, no quadro da ordem jurídica estabelecida. (...) 35 segundo Habermas, a hermenêutica “(...) resolve o problema da racionalidade da jurisprudência através da inserção contextualista da razão no complexo histórico da tradição. e, nesta linha, a pré- compreensão do juiz é determinada através dos topoi de um contexto ético tradicional” (HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 248). Luíza Realce Luíza Realce 70 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... [a] história institucional do direito forma o pano de fundo de toda a prática de decisão atual. (...) De outro lado, a pretensão à legiti- midade da ordem jurídica implica decisões, as quais não podem limitar-se a concordar com o tratamento de casos semelhantes no passado e com o sistema jurídico vigente, pois devem ser fundamentadas racionalmente.36 Concebendo o ordenamento jurídico como composto fundamentalmente por princípios, que estruturalmente não buscam esgotar de forma autorreferencial suas possibilidades de aplica- ção, Dworkin busca no interior do próprio direito as respostas para questões supostamente apon- tadoras de “lacunas” no ordenamento (ausência de regramento específico). O recurso à história institucional e ao pano de fundo compartilhado de sentidos também se faz necessário mas, ao con- trário da hermenêutica, esse arcabouço não deve ser aprendido como tradição inescapável, já que a própria atribuição de conteúdo moral (abstrato e universal) aos direitos fundamentais positivados oferece uma perspectiva crítica — um crivo de 36 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 246. 71Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito validade — para a consideração das tradições e da possibilidade de sua recepção para a solução de casos atuais. Dworkin e o realismo moral Valendo-se de uma linguagem própria da tradição filosófica do realismo moral,37 38 Dworkin pode afirmar que tais direitos humanos (moral rights) “existem”, isso é, seu conteúdo pode ser considerado “verdadeiro”39 — o que para a teoria de Habermas só pode ser lido como expressão da 37 “aplicação do realismo aos juízos da ética e, entre outras coisas, aos valores, obrigações e direitos que são apresentados nas teorias éticas. a idéia principal é ver a verdade moral como algo fundado na natureza das coisas, e não nas reações humanas, subjetivas e variáveis, às coisas. Como acontece ao realismo em outras áreas, o realismo moral é suscetível de muitas formulações diferentes. Podemos dizer que, de uma maneira geral, o realismo tem a aspiração de proteger a objetividade dos juízos éticos (opondo-se ao subjetivismo e ao relativismo); pode equiparar as verdades morais às da matemática, pode ter a esperança de que elas tenham aprovação divina (...), ou vê-las como algo que é garantido pela natureza humana” (BLACKBURN, S. Realismo moral. In: BLaCKBurn, s. Dicionário Oxford de filosofia. Consultoria da edição brasileira Danilo marcondes. rio de Janeiro: Jorge zahar, 1997. p. 336, destacamos). 38 Jean Piaget considera o “realismo moral” como a concepção de existência das regras morais de forma independente dos sujeitos, sendo típica do segundo estágio de consciência normativa no desenvolvimento infantil, onde a relação da criança com as normas é cunhada autoritariamente (GÜntHer, K. The sense of appropriateness: application discourses in morality and law. albany: state university of new York Press, 1993. p. 115. 39 DWORKIN, R. Objectivity and Truth: You’d Better Believe It. Philosophy & Public Affairs, v. 25, n. 2, p. 87-139, 1996. 72 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... “validade” e da “legitimidade” de tais direitos, já que normas situam-se primordialmente no plano da validade, e não da faticidade: ambos compartilhamos a crítica aos enfoques não cognitivistas. mas, enquanto o professor Dworkin adota a linguagem do realismo moral, ou pelo menos não encontra nenhuma razão para deixar de fazê-lo, eu acredito que se deveria evitar falar sobre fatos morais. Creio que a razão para tanto seja evidente, e gostaria de formular de algum modo o ponto em disputa. Não existe nada que corresponda à afirmação “ninguém deveria participar de um extermínio étnico”. Não há nenhum fato que corresponda a uma afirmação como essa. Tais afirmações não dizem como são as coisas ou como as coisas estão conectadas entre si (para usar uma expressão do nosso amigo rorty). elas nos dizem o que devemos ou não devemos fazer. em casos como esses, ao invés de levar adiante um discurso que afirma a existência de fatos, em lugar de dizer: “existem tais e tais direitos”, prefiro dizer que nós criamos estes e aqueles direitos, dos quais alguns, inclusive, merecem reconhecimento universal.40 40 DWORKIN, R.; HABERMAS, J. et al. ¿impera el derecho sobre la política?. Revista Argentina de Teoría Jurídica de la Universidad Torcuato Di Tella, v. 1, n. 1, 1999. (grifei): “ambos compartimos la crítica a los 73Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito Para ambos os autores, portanto, a razão prática implica a possibilidade de um ponto de vista moral, universalista e deontológico, indicador da prevalên- cia normativa do justo sobre o bom, a exigir que a sociedade — por meio de suas instituições, no caso do Direito — trate a todos os seus membros como merecedores de igual respeito e consideração.41 Pouco importa o modo como Dworkin entende a relação entre direito e moral: sua teoria dos direitos exige uma compreensão deontológica de pretensões de validade jurídicas. Com isso ele rompe o círculo no qual se enreda a hermenêutica jurídica com seu recurso a topoi historicamente comprovado de um ethos transmitido. Dworkin interpreta o prin- cípio hermenêutico de modo construtivista. enfoques no cognitivistas. ahora bien, mientras que el profesor Dworkin adopta el lenguaje del realismo moral, o al menos no encuentra ninguna razón para evitarlo, yo creo que se debería evitar hablar sobre hechos morales. Creo que la razón es evidente y quisiera formular de algún modo el punto en disputa. no existe nada que se corresponda con la afirmación ‘nadie debería participar en un exterminio étnico’. No hay ningún hecho que se corresponda con afirmaciones como ésta. Tales afirmaciones no dicen cómo son las cosas o cómo las cosas están conectadas entre sí (para usar una expresión de nuestro amigo rorty). ellas nos dicen qué es lo que debemos o no debemos hacer. en estos casos, en lugar de llevar adelante un discurso que afirma la existencia de hechos; en lugar de decir: ‘hay tales y tales derechos’, prefiero decir que nosotros creamos estos y aquellos derechos, de los cuales algunos incluso merecen un reconocimiento universal”. 41 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 252 et seq. Luíza Realce 74 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Como podemos perceber, se levarmos em conta as distintas tradições e escolas teóricas, o debate sobre a relação entre direito e moral de Habermas e Dworkin redunda, no fim das contas, essencialmente terminológico. Para ambos os autores, portanto, é o conteúdo moral traduzido para o código especificamente jurídico que confere aos direitos fundamentais o status de incondicionalidade em face dos demais bens ou valores sociais. Da incondicionalidade dos direitos resulta seu funcionamento como trunfos em face de possíveis abusos justificados com base em políticas de maximização de finali- dades coletivas. naturalmente a moral, no papel de uma medida para o direito correto, tem a sua sede primariamente na formação política da vontade do legislador e na comunicação política da esfera pública. Os exemplos apresentados para uma moral no direito significam apenas que certos conteúdos morais são traduzidos para o código do direito e revestidos com um outro modo de validade. Uma sobreposição dos conteúdos não modifica a diferenciação entre direito e moral.42 42 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 256. Luíza Realce 75Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito A justificação de decisões jurídicas com base em princípios de conteúdo moral, portanto, não é extrajurídica na medida em que tais conteúdos pos- sam ser identificados como assimilados aos princí- pios fundamentais do próprio ordenamento. além disso, deve-se ressaltar que o fato de Dworkin entender os Direitos Humanos como princípios universais, dotados de conteúdo moral, não significa que a interpretação e densificação dada a eles pelas diversas ordens jurídicas não possa legitimamente variar. Para o autor torna-se relevante a distinção entre interpretações de boa-fé e de má-fé atribuídas pelos governos aos direitos e às ações justificadas por eles; o com- promisso, ao menos em princípio, com o respeito pelos Direitos Humanos demonstrado por um governo ou instituição mostra-se relevante para a interpretação de seus atos.43 O direito humano fundamental é, para Dworkin,44 o de ser tratado pelas instituições detentoras de autoridade com uma certa atitude ou postura, qual seja, a 43 sobre a postura de sistemático desrespeito pelos direitos humanos na China, cf. DWORKIN, R. Taking Rights Seriously in Beijing. The New York Review of Books, v. 49, n. 14, 2002. 44 DWORKIN, R. Is Democracy Possible Here?: Principles for a new Political Debate. Princeton, n.J.: Princeton university Press, 2006. p. 35. Luíza Realce 76 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... que reflita o igual respeito e consideração pela dignidade de cada um.45 a interpretação construtiva em que pese a adoção da terminologia do realismo moral, Dworkin se vale de uma postura construtivista para lidar produtivamente com o princípio hermenêutico, de modo a não permitir que as tradições se legitimem de maneira autô- noma e acrítica, pois exige a reflexividade ética com base em uma noção universalista de direitos fundamentais ou humanos (moral rights).46 a atitude interpretativa adotada e descrita por Dworkin funciona do ponto de vista interno, 45 Dworkin compreende a dignidade humana como um princípio de duas dimensões, correspondentes ao princípio de que cada pessoa deve ser tratada como portadora de valor intrínseco (como na concepção kantiana de “fim em si mesmo”), e ao princípio da responsabilidade pessoal, segundo o qual cada pessoa tem especial responsabilidade pela realização de seus objetivos de vida. (DWORKIN, R. Is Democracy Possible Here?: Principles for a new Political Debate. Princeton, n.J.: Princeton university Press, 2006. p. 9 et seq.) 46 norberto Bobbio ressalta o caráter intraduzível da distinção entre “legal rights” e “moral rights”. Para o autor a expressão “moral rights” ocuparia o lugar destinado a “direitos naturais” na tradição jurídica europeia continental (BOBBiO, n. A era dos direitos. rio de Janeiro: elsevier, 2004. p. 27). É de se ressaltar, entretanto, que é muitas vezes problemática a identificação entre esses termos, e entendemos que, ao menos no caso de Dworkin, faz mais sentido entender “moral rights” como direitos fundamentais ou direitos humanos, a depender do contexto. Luíza Realce 77Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito dos próprios intérpretes. Diante da consciência da condição linguístico-paradigmática de todo saber, percebe-se que o próprio conceito de interpretação é um conceito interpretativo; por isso afirma Dworkin que “uma teoria da interpretação é uma interpretação da prática dominante de usar conceitos interpretativos”.47 essa circularidade é inescapável, já que um ponto de vista completa- mente externo, arquimediano,48 resta implausível. a própria ideia de única resposta correta, é claro, não poderá fugir a essa circularidade. a interpretação construtiva é o modelo herme- nêutico adotado por Dworkin para lidar com obras de expressão humana, em especial o direito. em contraste com a interpretação científica empírica, em que se busca a interpretação de dados fáticos, e com a interpretação conversacional, em que a intenção do falante é o objeto central, Dworkin aponta a seme- lhança entre a interpretação de uma prática social e a interpretação artística, no sentido de que: 47 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 60. 48 A perspectiva filosófica arquimediana seria aquela típica da “meta- ética” e de certas abordagens da filosofia do direito, como a de Hart, que supostamente estudariam mas não participariam de algum aspecto da vida social. Cf. DWORKIN, R. Hart’s Postscript and the Point of Political Philosophy. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 141 et seq. Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce 78 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como no caso da interpretação científica. (...) atribuirei a ambas a designação de formas de interpretação “criativa”.49 Os propósitos que estão em jogo na inter- pretação criativa construtiva das obras de arte e das práticas sociais, como o direito, são funda- mentalmente os do intérprete, não os do autor. atribui-se um propósito a um objeto ou a uma prática, tornando-o o melhor possível em face de seu contexto temático. O que não quer dizer que o objeto não imponha limites à interpretação; a própria natureza intersubjetiva, paradigmática da interpretação vai exigir condições de plausibilidade para qualquer interpretação, especialmente em face de uma história interpretativa minimamente compartilhada. Sua validação é portanto, ao final, discursiva na verificação de racionalidade. Por isso afirma Dworkin que “do ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação entre propósito e objeto.”50 49 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 61. 50 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 64. Luíza Realce 79Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito Dworkin retoma assim o debate sobre hermenêutica travado entre Gadamer e Habermas51 para identificar, nas críticas desse, o aspecto cons- trutivo da interpretação, verificado na suposição da possibilidade de que os autores do objeto a ser interpretado poderiam também aprender com os intérpretes sobre o próprio objeto em questão, em contraposição à postura de Gadamer, de subordi- nação do intérprete ao autor; para Habermas have- ria uma via de mão dupla na interpretação.52 Diante do reconhecimento do caráter pa- radigmático do conhecimento pelas próprias ciências, como em thomas Kuhn,53 Dworkin sugere que, ao final, a interpretação criativa cons- trutivamente enfocada nos permite compreender melhor a tarefa de interpretação em qualquer campo do saber, pois “toda interpretação tenta tornar um objeto o melhor possível”,54 no contexto 51 essa rica discussão foi de grande relevância no posterior desenvolvi- mento da teoria da ação comunicativa de Habermas. Cf. HaBermas, J. a pretensão de universalidade da hermenêutica. In: HaBermas, J. Dialética e hermenêutica. Porto alegre: L&Pm, 1987. p. 26-71. 52 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 62, nota n. 2. 53 KuHn, t. s. A estrutura das revoluções científicas. são Paulo: Perspectiva, 1996. 54 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 65. Luíza Realce 80 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... do empreendimento travado, segundo seus critérios específicos. as pessoas traduzem o que outras disseram — através da mesa de jantar bem como através dos séculos — por meio de um processo de interpretação construtiva que tem por objetivo não espiar dentro dos crânios, mas sim elaborar da melhor maneira possível o sentido de suas falas e de outros comportamentos. trata-se de um processo normativo, e não “empírico”.55 a noção de paradigma, ressalta Habermas,56 desempenha uma função central na teoria do Direito de Dworkin ao formar o pano de fundo de suporte a “teorias jurídicas” capazes de reconstruir o ordenamento jurídico, sistemica- mente estruturado em princípios, de que devem se valer os aplicadores para buscar decisões corre- tas que mostrem o direito como um todo em sua melhor luz, como um empreendimento coletivo 55 DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 127: “People translate what other people have said — across the dining table as well as across the centuries — by a process of constructive interpretation that aims not at intracranial peeks but at making the best sense possible of their speech and other behavior. That is a normative, not an ‘empirical’, process”. 56 HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. p. 261. 81Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito legítimo de uma comunidade de princípios, que trate a todos os seus membros como merecedores de igual respeito e consideração. Dworkin ressalta que não é em qualquer tipo de comunidade que as ideias de única resposta correta e integridade, baseadas em princípios, terão lugar como elemento integrante de sua moralidade política. num modelo de comunidade de fato, em que as pessoas não se sentem vincula- das por nenhuma responsabilidade em especial, e num modelo de comunidade de regras, em que a responsabilidade recíproca se baseia em meras convenções contratuais, o tipo de vínculo existente entre os cidadãos e de responsabilidade exigível da comunidade não remete necessariamente a princípios de conteúdo moral. a postura adotada pelos membros da comunidade de fato pode ser puramente estratégica; na comunidade de regras, o puro pragmatismo é balizado por acordos de tipo contratual, vistos como limites à ação; ape- nas numa comunidade de princípios as normas estabelecidas podem ganhar conteúdo universal e serem vistas como condição de possibilidade para a liberdade e a igualdade, para além de limites Luíza Realce Luíza Realce 82 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... convencionais, e passam a requerer a integridade na compreensão de seus princípios.57 essa leitura de Dworkin sobre o tipo de vín- culo intersubjetivo dos cidadãos e de sua postura diante das normas, bem como sobre o papel dos princípios numa comunidade política nos remete à teoria dos estágios de desenvolvimento moral, especialmente como desenvolvida por Lawrence Kohlberg, que veremos a seguir. O papel dos princípios – Os estágios de Kohlberg Os estudos realizados por Lawrence Kohlberg na universidade de Chicago foram de grande relevância para o desenvolvimento de um corpo teórico analítico empiricamente embasado capaz de comprovar o sentido prático de teorias morais formalistas. em sua tese de doutorado, onde estudou o desenvolvimento moral em crianças e adolescentes de 10 a 16 anos,58 57 DWORKIN, R. O império do direito. são Paulo: martins Fontes, 1999. p. 252 et seq. 58 KOHLBerG, L. the Development of modes of moral thinking and Choice in the Years 10 to 16. Department of Psychology. Chicago, university of Chicago. Ph.D.: 491, 1958. Luíza Realce Luíza Realce 83Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito Kohlberg ampliou e desenvolveu conceitos sobre o desenvolvimento cognitivo e moral trabalhados por Jean Piaget. Posteriormente, estendeu seus estudos empíricos para grupos de crianças e ado- lescentes de diversas culturas ao redor do mundo, comprovando o caráter universal das etapas de desenvolvimento descobertas por ele. trabalhando com a ideia de distintos níveis de percepção do caráter heterônomo ou autônomo das normas sociais, perceptí- veis tanto no desenvolvimento dos indivíduos quanto no das sociedades, a teoria de Kohlberg delineia a diferença entre os níveis pré-conven- cional, convencional e pós-convencional (vide tabela 1), sendo cada nível subdividido em dois estágios. Para o nosso tema mostram-se relevantes especialmente os dois últimos níveis, onde podemos localizar as compreen- sões e teorias normativas59 mais relevantes nas sociedades contemporâneas. 59 Em entrevistas realizadas com diversos filósofos, Kohlberg pôde verificar que eles desenvolvem suas teorias de forma inter-relacionada com seus respectivos estágios “naturais”, e todos eles argumentam com base nos estágios 5 e 6, os mais elevados. Cf. KOHLBerG, L. the Claim to moral adequacy of a Highest stage of moral Judgment. The Journal of Philosophy, v. 70, n. 18, p. 630-646, 1973. 84 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Os aspectos mais relevantes de cada nível e estágio estão resumidos na seguinte tabela, que vale a pena transcrever: taBeLa 1 Definição dos estágios morais60 (continua) Níveis Estágios I. Nível pré-con- vencional Neste nível a criança responde às regras e aos rótulos cultu- rais de bom e mau, de certo ou errado, mas interpreta estes rótulos nos termos das consequências físicas ou hedonis- tas da ação (punição, recompensa, troca de favores) ou em ter- mos do poder físico daqueles que enun- ciam as regras e os rótulos. O nível é dividido nos seguin- tes dois estágios: Estágio 1: A orientação pela punição- e-obediência. As consequências físicas da ação determinam se são boas ou ruins, não obstante o significado ou o valor humano destas consequências. O evitar a punição e a deferência incontroversa ao poder são avaliados por si sós, não nos termos do respeito por uma ordem moral subjacente a ser apoiada pela punição e pela autoridade (este será o estágio 4). Estágio 2: A orientação instrumental- relativista. A ação correta consiste naquela que satisfaz instrumentalmente as próprias necessidades da pessoa e, ocasionalmente, às necessidades de outras. As relações humanas são vistas em termos semelhantes aos das relações de mercado. Elementos de fairness, de reciprocidade, e de com- partilhamento igualitário estão presentes, mas são interpretados sempre de uma maneira físico-pragmática. Reciprocidade é uma questão de “você coça as minhas costas e eu coçarei as suas”, não de leal- dade, gratidão ou justiça. 60 KOHLBerG, L. the Claim to moral adequacy of a Highest stage of moral Judgment. The Journal of Philosophy, v. 70, n. 18, p. 631-632, 1973. (tradução livre) 85Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito (continua) Níveis Estágios II. Nível convencional Neste nível, manter as expectativas da família, do grupo, ou da nação é percebido como algo de valor por si só, não importando as conse- quências imediatas e óbvias. É uma atitude não somente de con- formidade às expec- tativas pessoais e à ordem social, mas de lealdade a ela, que bus- ca ativamente manter, apoiar e justificar a ordem, e de se identifi- car com as pessoas ou grupo envolvidos por ela. Neste nível, há os seguintes dois estágios: Estágio 3: A orientação pela concordân- cia interpessoal ou do “bom menino – boa menina”. O bom comportamento é aquele que satisfaz ou ajuda a outros e é aprovado por eles. Há grande conformação às imagens estereotipadas do que seja o comportamento da maioria ou “natural”. O comportamento é julgado frequentemente pela intenção — “ele teve boa intenção” se torna importante pela primeira vez. Ganha-se aprovação sendo “agradável.” III. Nível pós-con- vencional, autônomo, ou principiológico Neste nível há um claro esforço no sen- tido de definir os valo- res morais e os prin- cípios cuja validade e aplicação se sepa- rem da autoridade dos grupos ou das pessoas que os detêm e apartada da própria identificação do indiví- duo com estes grupos. Hás neste nível outra vez dois estágios: Estágio 5: A orientação legalista do con- trato-social, geralmente com tons utilita- ristas. A ação correta tende a ser definida nos termos de direitos individuais gerais, e de padrões que tenham sido criticamente examinados e acordados pela sociedade como um todo. Há uma clara consciência do relativismo de valores e de opiniões pes- soais e uma correspondente ênfase nas regras procedimentais para a obtenção de consenso. Com exceção do que é acordado constitucional e democraticamente, o direito é uma questão de “valores” e de “opiniões” pessoais. O resultado é ênfase no “ponto de vista legal,” mas enfatizando a possibili- dade de se mudar o direito com base em considerações racionais de utilidade social Estágio 4: A orientação da “lei e ordem”. Há uma orientação em direção à autoridade, às regras fixas, e à manuten- ção da ordem social. O comportamento correto consiste em cumprir o seu dever, mostrar respeito pela autoridade, e em manter a ordem social estabelecida como um bem em si mesmo. 86 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... (conclusão) Níveis Estágios (ao invés de congelá-lo nos termos do estágio 4 “lei e ordem”). Fora da esfera legal, o livre acordo e o contrato são o elemento vinculante das obrigações. Esta é a moralidade “oficial” do governo e da constituição americanos. Estágio 6: A orientação pelo princípio ético-universal. O direito é definido pela decisão de consciência de acordo com os princípios éticos autodeterminados que apelam à compreensividade lógica, à univer- salidade, e à consistência. Estes princípios são abstratos e éticos (a Regra de Ouro, o imperativo categórico); não são regras morais concretas como os Dez Mandamentos. Fun- damentalmente, são princípios universais de justiça, da reciprocidade e da igualdade dos direitos humanos, e do respeito pela digni- dade dos seres humanos como indivíduos. Como podemos perceber, apenas no terceiro nível, o pós-convencional, os princípios adquirem papel central na autocompreensão normativa das sociedades. ao estudarmos as teorias jurídicas mais importantes da contemporaneidade, pode- mos perceber como elas se localizam nos níveis e estágios, combinando muitas vezes elementos de mais de um deles. A distinção entre justificação e aplicação, evidenciada por Klaus Günther, não foi categorizada explicitamente por Kohlberg em sua 87Capítulo 2 a implosão e superação do Projeto Positivista no Direito teoria,61 mas, não obstante, podemos perceber a relação entre essas formas argumentativas e os está- gios de desenvolvimento moral. O positivismo jurídico do século XX concebe a fundamentação das normas jurídicas nos termos do estágio 5 — da orientação legalista do contrato social. no plano da criação de normas a flexibilidade política de argumentos e a percepção pragmática sobre os efeitos regulatórios se fazem presentes; entretanto, no plano da aplicação, podemos identificar a permanência de elementos típicos do estágio 4, próprio do nível convencional. estando a aplicação das normas restrita a um sistema fechado de regras, não há espaço para uma análise de aplicabilidade mais sofisticada, que requer a compreensão da complexidade principiológica do ordenamento e do vínculo 61 De acordo com Günther, “infelizmente Kohlberg não utiliza os resultados de seu estudo sobre o desenvolvimento dos conceitos de justiça para traçar a diferença, no estágio 6, entre a justificação e a aplicação das normas sob condições de imparcialidade procedimental. (...) entretanto, (...) ele não pode evitar ao menos uma distinção implícita entre justificação e aplicação” (GÜNTHER, K. The sense of Appropriateness: application Discourses in morality and Law. albany: state university of new York Press, 1993. p. 135): “unfortunately, Kohlberg does not use the results of his study on the development of concepts of justice to differentiate at Stage 6 between the justification and the application of norms under conditions of procedural impartiality. (...) However (...), he cannot avoid at least an implicit distinction between justification and application”. 88 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... existente entre o direito e a moralidade política, elementos rechaçados pelo positivismo de Kelsen e de Hart. Dessa forma a aplicação das normas se percebe como uma atividade de manutenção da “lei e ordem”, percebidas como um bem em si mesmo, algo típico do estágio 4. A sofisticação atingida pela atividade de criação de normas não é assim acompanhada no plano da aplicação, cujo desafio não pode ser suplantado a partir de uma criação racionalizada de normas, como hoje podemos perceber. apenas no estágio 6 o modelo de comuni- dade de princípios, como descrito por Dworkin, pode ter pleno curso. O tipo de obrigação existente entre os cidadãos e entre a coletividade e seus membros não mais se baseia apenas em acordos de tipo contratual traduzidos em regras, enten- didas como limites, mas remete a princípios de conteúdo moral e com apelo universalista. Luíza Realce Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva Sumário: a modernidade da sociedade moderna – Discursos éticos, morais e jurídicos – O bom e o justo – razão prática, moral e Direito – uma leitura contemporânea – resgate discursivo da razão prática – a categoria do Direito na teoria discursiva a modernidade da sociedade moderna a modernidade da sociedade moderna, como demonstra Raffaele De Giorgi reside em sua com- plexidade estrutural, decorrente de um processo de diferenciação funcional que produziu subsistemas sociais operacionalmente diferenciados. no campo normativo, moral, Direito e política se diferenciam, passam a cumprir funções especí- ficas, que não mais se confundem, e que, por isso mesmo, podem prestar-se serviços mútuos, pois Luíza Realce 90 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... conquanto diferenciadas guardam entre si, como veremos, uma relação de complementaridade. a religião passa a ser vista como um direito individual, não mais podendo servir de funda- mento absoluto e unitário para a rígida e estática estrutura hierárquica das sociedades tradicionais ou pré-modernas e que, dessa forma, perde a sua força de elemento aglutinador central do amál- gama normativo indiferenciado que regia essas sociedades em que a reprodução da ordem de privilégios era assegurada por naturalização divi- nizada, por seu caráter inquestionável e imutável. a liberdade religiosa e a correlata necessidade de reconhecimento do pluralismo religioso acabaram por contribuir decisivamente para o desencadea- mento do estado constitucional. É no quadro desse processo de diluição dos fundamentos absolutos e unitários das sociedades tradicionais e de afirmação do pluralismo religioso, político e social que se dá a invenção do indivíduo. a fonte da moral passa a ser interna ao indiví- duo, inerente à sua racionalidade. Os costumes e as tradições perdem a força transcendente tradicional de revelarem a “essência imutável” da sociedade, para se transformarem em meros usos passíveis de Luíza Realce 91Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva serem revistos e abandonados, configurando uma nova eticidade de cunho reflexivo. A antiga fonte da moral, os bons costumes são agora reflexiva- mente definidos por essas exigências universais e abstratas de reconhecimento da igualdade e da liberdade a que por nascimento todos os homens têm direito. a afirmação da natureza racional do homem implica também no reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito universal, agente moral, dono do seu próprio destino. assim é pos- sível agora que se adote uma postura crítica em relação às normas sociais. O reconhecimento do outro pressupõe também uma reciprocidade, ou seja, se todos são iguais e livres, todos são autô- nomos. esses homens egoísticos e que passam a se autodenominar modernos, que, é claro, vivem e sempre viveram em sociedade, vão colocar-se a questão, totalmente esclerótica e destituída de sen- tido para todo o pensamento clássico e medieval, como vamos viver em sociedade? Onde termina o meu direito e começa o do outro? a consagração dos direitos fundamentais pressupõe a exigência moral, universal e abstrata, do reconhecimento dessa igualdade e dessa liber- dade como inerentes a todos os indivíduos que Luíza Realce Luíza Realce 92 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... hoje denominamos direitos humanos e que à época os modernos conseguiram impor como o novo conteúdo semântico da antiga expressão “direito natural”.62 a forma constitucional (o caráter supralegal da Constituição, condicionando a validade de todas as demais leis) foi uma aquisição evolutiva tardia no processo de modernização da sociedade. Pode-se afirmar grosso modo que, no final do século XViii, quando os norte-americanos a inventaram buscavam garantir uma maior subor- dinação do direito positivo à moral, aos direitos naturais. niklas Luhmann demonstra que essa aquisição evolutiva veio, ao contrário, completar o processo de diferenciação do Direito e da política, tornando historicamente dispensável o recurso à ideia de direito natural para a justificação do direito. A Constituição define as bases do Direito (os direitos fundamentais), define as bases da polí- tica (da organização política), e articula Direito e política de tal sorte que, por serem distintos, podem se prestar serviços mútuos, guardando entre si uma relação funcional de complementaridade. 62 BLumenBerG, H. The Legitimacy of Modern Age. Cambridge: mit Press, 1985. Luíza Realce Luíza Realce 93Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva a política pode prestar ao Direito moderno (um conjunto de normas gerais e abstratas) efetivi- dade, tornando imperativa a sua coercibilidade, mediante a atuação do aparato estatal; ao mesmo tempo que recebe do Direito legitimidade ao se deixar regular por ele.63 as formas de vida de uma comunidade, o que se considera bem viver, seus valores comparti- lhados — seu ethos —, constituem um componente central para a formação da identidade comum, da autocompreensão compartilhada intersubje- tivamente. A pergunta “quem somos nós” passa, primeiramente, por um discurso ético de definição e assentamento de valores, ou seja, do que é “bom para nós”, no todo e a longo prazo. entretanto, em sociedades modernas, descentralizadas, pluralistas e multiculturais, o compartilhamento de valores e a identidade de formas de vida não são suficientes para o assegu- ramento da coesão social. “O que é bom para nós” torna-se, cada vez mais, uma questão no mínimo 63 LUHMANN, N. Verfassung als Evolutionäre Errungenschaft. Rechthistorisches Journal, v. iX, p. 176-220, 1990. tradução italiana de F. Fiore. LuHmann, n. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: zaGreBeLsKY, Gustavo; PORTINARO, Pier Paolo; LUTHER, Jörg. Il futuro della costituzione. torino: einaudi, 1996. Luíza Realce Luíza Realce 94 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... polêmica.64 não mais parece plausível, e sequer desejável, conceber as noções de vida boa como socialmente homogêneas. a própria compreensão contemporânea de democracia, ao contrário da concepção identitária65 que defendia Carl Schmitt, rejeita a integração éti- ca homogênea como requisito de validade. Como aponta Dworkin, em sua compreensão de democra- cia como uma parceria política coletiva, a exigência de responsabilidade coletiva por parte dos cidadãos requer não a homogeneidade ética, mas sim o res- peito pelos direitos de todos os indivíduos como membros da sociedade, isto é, como cidadãos: a integração ética na ação coletiva de uma comunidade a qual alguém de algum modo 64 sobre o caráter aberto da identidade constitucional, conferir rOsenFeLD, m. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: mandamentos, 2003. 65 “a igualdade democrática é, em essência, homogeneidade, e, por certo, homogeneidade do povo. O conceito central da Democracia é Povo, e não Humanidade. (...) Democracia (...) é identidade de dominadores e dominados, dos que mandam e dos que obedecem” (SCHMITT, C. Teoría de la constitución. madrid: alianza, 1982. p. 230), grifamos: “La igualdad democrática es, en esencia, homogeneidad, y, por cierto, homogeneidad del pueblo. el concepto central de la Democracia es Pueblo, y no Humanidad. (...) Democracia (...) es identidad de dominadores y dominados, de los que mandan y los que obedecen.” Chantal Mouffe promove uma releitura crítica desse conceito schmitiano de democracia em mOuFFe, C. Pensando a democracia moderna com, e contra, Carl Schmitt. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 2, p. 87-108, jul./dez. 1994. Luíza Realce 95Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva pertence não é sempre apropriada e às vezes é perversa. Certamente teria sido perverso para as vítimas judias do Holocausto compartilhar uma culpa coletiva pela sua existência. (...) tampouco é apropriada para aqueles indivíduos que a comunidade não reconhece como membros plenos, mesmo quando esses participam da vida política. (...) a integração ética com os atos coletivos de uma sociedade política se mostra apropriada apenas para os cidadãos tratados pela sociedade como membros plenos e iguais.66 se não podemos mais recorrer a um modelo de vida autêntica calcado na visão religiosa predominante — que, agora, ao invés de norma impositiva coletivamente exigível, se configura como simples direito individual —, em qualquer discussão política há, portanto, a concorrência de diversas posições, calcadas em distintas cosmovisões. 66 DWORKIN, R. The Partnership Conception of Democracy. California Law Review, 86, p. 453-458, 1998: “ethical integration in the collective action of a community to which one in some sense belongs is not always appropriate and is sometimes perverse. it would surely have been perverse for the German Jewish victims of the Holocaust to feel a shared shame for it. (...) nor is it appropriate for those whom the community does not recognize as full members, even when they participate in its political life. (...) ethical integration with the collective acts of a political society is only appropriate, that is, for citizens whom the society treats as full and equal members of it.” 96 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... sob uma visão da teoria do direito, o multiculturalismo suscita em primeira linha a questão sobre a neutralidade ética da ordem jurídica e da política. (...) Questões éticas não se deixam julgar sob o ponto de vista “moral” que se pergunta se algo é “igualmente bom para todos”; sobre o fundamento de valorações intensas, pode-se avaliar bem melhor o julgamento imparcial dessas questões com base na autocompreensão e no projeto de vida perspectivo de grupos em particular, ou seja, com base no que seja “bom para nós”, mas a partir da visão do todo manifestada por esses grupos. Gramaticalmente, o que está inscrito nas questões éticas é a referência à primeira pessoa, e com isso a remissão à identidade (de um indivíduo ou) de um grupo.67 a diferenciação entre um discurso jurí- dico sobre normas — entendidas, com ronald Dworkin, como uma ordem de princípios — e discursos éticos sobre valores preferíveis é cen- tral para a teoria discursiva do Direito, em que argumentos teleológicos precisam se calcar em direitos para que possam disputar espaço com as alegações de direitos subjetivos. isto porque 67 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. p. 243. 97Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva a precedência incondicional de argumentos de princípio sobre argumentos de política é condição para a manutenção do sistema dos direitos e do próprio código jurídico deontológico: a maneira de avaliar nossos valores e a maneira de decidir o que “é bom para nós” e o que “há de melhor” caso a caso, tudo isso se altera de um dia para o outro. tão logo passássemos a considerar o princípio da igualdade jurídica meramente como um bem entre outros, os direitos individuais poderiam ser sacrificados caso a caso em favor de fins coletivos.68 a semelhança entre os códigos do Direito e da moral, quanto à incondicionalidade de suas normas, bem como o teor universalista dos direitos fundamentais não afasta, entretanto, a “impregnação ética” do Estado de Direito. A neu- tralidade ética do direito, essencial em sociedades pluralistas, não importa num desacoplamento entre as formas de vida e o sistema dos direitos. entretanto, da mesma forma como as normas morais, de conteúdo universal, têm precedências sobre determinados valores éticos, também os 68 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. p. 356. 98 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... direitos fundamentais, no âmbito de aplicação normativa, adquirem primazia quando confron- tados com valores. tanto decisões pragmáticas de realização de preferências quanto valores consti- tutivos do autoentendimento de uma comunidade devem passar pelo crivo da compatibilidade com os direitos fundamentais; nesse sentido, só podem encontrar guarida jurídica integral formas de vida reflexivas, ou seja, não fundamentalistas. Do ponto de vista constitucional, não há que se falar em tolerância em face de tradições ou posturas que visem eliminar formas de vida discrepantes — o que não significa, convém esclarecer, que os direitos fundamentais não possam validamente corporificar-se de formas distintas nas diversas tradições éticas. sabemos hoje que não há espaço público sem respeito aos direitos privados à diferença, nem direitos privados que não sejam, em si mesmos, destinados a preservar o respeito público às dife- renças individuais e coletivas na vida social. não há democracia, soberania popular, sem a observância dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois aí há, na verdade, ditadura; nem constitucionalismo sem legitimidade popular, pois aí há autoritarismo. Luíza Realce 99Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva Os direitos fundamentais — afirmação de liberdade e igualdade — são hoje constitutivos da própria forma do direito — que não pode mais ser entendido como uma “casca vazia”, capaz de comportar qualquer ordem baseada na legalidade, como no modelo kelseniano, que guarda uma conexão interna com a Democracia. Democracia e Constituição, longe de serem conceitos antagôni- cos, se encontram e se ressignificam na concepção de democracia como parceria política de Dworkin: É essencial para a idéia de democracia que ela possibilite o auto-governo, mas só podemos defender essa conexão essencial [com os direitos] se concebermos a democracia como algo mais do que a regra da maioria. Devemos compreendê-la como um tipo de parceria entre cidadãos que pressupõe tanto direitos individuais quanto procedimentos majoritários.69 Entretanto, a forma de densificação desses direitos depende da compreensão que se adote 69 DWORKIN, R. The Partnership Conception of Democracy. California Law Review, 86, p. 457, 1998: “it seems essential to the idea of democracy that democracy provides self-government, but we can claim that essential connection only if we conceive democracy as something more than majority rule. We must understand it as a kind of partnership among citizens that presupposes individual rights as well as majoritarian procedures”. Luíza Realce 100 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... em determinado local do espaço e do tempo e das formas de vida específicas. Mas diante da defini- ção sempre problemática do conteúdo dos direitos que os cidadãos se atribuem reciprocamente numa comunidade, o apelo a uma perspectiva mais ampla de justificação, que remeta para além de um determinado ethos é constitutivo do processo de luta por reconhecimento de direitos.70 O aspecto contramajoritário dos direitos fundamentais reside exatamente na sua pretensão universalizante — naquilo que deve ser garantido a cada cidadão independentemente dos valores compartilhados pela eventual maioria — possibilitando assim que a tensão entre argumentos de apelo majoritário e minoritário opere continuamente, de forma que as posturas comunitárias ético-políticas não per- cam sua reflexividade e, portanto, seus potenciais inclusivos e emancipatórios. Essa condição de reflexividade ética é essen- cial, como vimos, para a ideia de comunidade de princípios, de integridade e, portanto, para a ideia de única resposta correta, permitindo que a cadeia histórica do direito possa ser relida e reapropriada tendo-se como crivo os direitos fundamentais. 70 Cf. HOnnetH, a. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce 101Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva Discursos éticos, morais e jurídicos – O bom e o justo Valemo-nos aqui da diferenciação, feita por Habermas, entre discursos pragmáticos, éticos e morais como distintos usos para uma mesma forma de racionalidade: a razão prática.71 interessa-nos, prin- cipalmente, a distinção entre questões morais de justiça e questões éticas de autoentendimento: em um dos casos abordamos um problema sob o ponto de vista que se pergunta sobre qual a regulamentação mais adequada ao interesse equânime de todos os atingidos (sobre “o que é bom em igual medida para todos”); no outro caso, ponderamos as alternativas de ação a partir da perspectiva de indivíduos ou de coletividades que querem se assegurar de sua identidade, bem como saber que vida devem levar, à luz do que são e do que gostariam de ser (ou seja, querem saber “o que é bom para mim, ou para nós, no todo e a longo prazo”).72 Os discursos jurídicos, por sua vez, incor- poram argumentos das mais variadas ordens. 71 HaBermas, J. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. In: STEIN, E.; BONI, L. D. Dialética e liberdade. Porto alegre: Vozes. 1992. p. 288-304. 72 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. p. 303. 102 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... enquanto argumentação prática, a argumentação jurídica se vale, no plano da justificação das nor- mas — que se dá, de maneira central, nas arenas parlamentares —, tanto de discursos pragmáticos quanto éticos e morais, além das negociações reguladas por procedimentos.73 isso se revela no espectro amplo de razões que desempenham um papel na formação racional da opinião e da vontade do legislador político: ao lado de ponderações morais, considerações pragmáticas e dos resultados de negociações justas e honestas, também as razões éticas desempenham um papel nos aconselhamentos e justificações de decisões políticas.74 uma vez integrados na norma jurídica, entre- tanto, tais argumentos morais (que dizem respeito ao que é justo), ético-políticos (referentes à auto- compreensão valorativa dos cidadãos e aos proje- tos de vida coletivos que pretendem empreender), 73 Contra um conceito “puramente dialógico” de processo legislativo, conferir a réplica de Habermas a Frank michelman em rOsenFeLD, M.; ARATO, A. Habermas on Law and Democracy: Critical exchanges. Berkeley: university of California Press, 1998. 74 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. p. 245. 103Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva bem como pragmáticos (de adequação de meios a fins) passam a obedecer à lógica deontológica dos discursos jurídicos, com seu código binário de validade.75 O direito (com seu código jurídico/não jurí- dico) é deontológico como a moral (cujo código binário implica na distinção justo/injusto), mas dessa se diferencia, para além de seu espectro argumentativo, por ser um sistema de ação, além de um sistema de conhecimento. Disso decorre que o direito se compromete com resultados e neces- sita de um aparato coercitivo que lhe empreste efetividade. O direito não pode depender ape- nas, como a moral, da motivação interna de cada indivíduo. além disso, o ordenamento jurí- dico se refere a uma comunidade política concreta, a uma república de cidadãos. Dessa forma, seu âmbito de universalidade é redu- zido em relação à moral, que busca se referir à humanidade. 75 “(...) a expressão ‘deontológico’ refere-se em primeiro lugar apenas a um caráter obrigatório codificado de maneira binária. Normas são ou válidas ou inválidas, enquanto valores concorrem pela primazia em relação a outros valores e precisam ser situados caso a caso em uma ordem transitiva” (HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. p. 356). 104 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... razão prática, moral e Direito – uma leitura contemporânea resgate discursivo da razão prática Habermas resgata a tradição kantiana de razão prática, compreendendo a moral como o âmbito de atribuição de validade a normas universais. O faz, entretanto, não mais nos termos de uma filosofia da consciência — que tomava o sujeito cognoscente como ponto de partida e referencial epistêmico — mas de uma filosofia da linguagem — que se baseia no caráter intersubjetivo de validação de todo saber —, valendo-se de uma compreensão de racio- nalidade comunicativa potencialmente emancipa- dora, ancorada no mundo da vida, portanto gerada e operada intersubjetivamente. a teoria da ação comunicativa é mais ampla que uma teoria da moral. ela é diferente da filosofia prática como a conhecemos de aristóteles e de Kant. ela não fundamenta simplesmente normas morais ou ideais políticos. ela tem, adicionalmente, um sentido descritivo, identificando na própria prática cotidiana a voz persistente da razão comunicativa, mesmo em situações em que essa está subjugada, distorcida e desfigurada. Insisto nos potenciais de racionalidade da “Lebenswelt” Luíza Realce 105Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva (do mundo vivido), em que as fontes da resistência conseguem regenerar-se, mesmo sob condições desesperadoras.76 a validação discursiva das normas morais resgata a herança universalista do imperativo cate- górico de Kant, mas não é mais um procedimento monológico a priori, pois passa a depender de um discurso público a ser desenvolvido em condições de liberdade e igualdade comunicativas. na ética do discurso habermasiano o princípio verificador da universalidade de pretensões normativas é o princípio “U”, assim enunciado: “todas as normas válidas precisam atender à condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que presumi- velmente resultarão da observância geral dessas normas para a satisfação dos interesses de cada indivíduo possam ser aceitas não-coercitivamente por todos os envolvidos”. Habermas sustenta o caráter universalista dos direitos fundamentais — positivados nas constituições modernas — contra pretensões fortemente relativistas, bem como seu papel 76 HaBermas, J. Jürgen Habermas fala a Tempo Brasileiro. entrevista concedida a Barbara Freitag. Revista Tempo Brasileiro, rio de Janeiro, n. 98, p. 9, 1989. Luíza Realce 106 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... de precedência incondicionada diante de argumentações ético-políticas, embora reconheça a impregnação ética das diversas ordens jurídi- cas como constitutiva das identidades coletivas. Levando-se em conta que os princípios do estado de Direito e os direitos fundamentais são determinados em abstrato, Habermas ressalta, todavia, que os mesmos só podem ser encon- trados em constituições históricas e sistemas políticos específicos. através de sua teoria discursiva, Habermas dá continuidade à pretensão universalista do ilu- minismo de reconhecimento de igual dignidade a toda pessoa, enquanto sujeito de direitos, numa perspectiva política de igualitarismo liberal,77 77 Vera Karam de Chueiri assim define a moderna democracia liberal e a sua articulação entre direitos e democracia: “modern liberal democracy articulates two different traditions: the democratic and the liberal one. the democratic tradition goes back to the ancient world and is ordinarily identified with the right to directly participate in the administration of the res publica. the most known picture of it is that of an assembly of individuals to deliberate about their community’s (public) affairs. The very idea of public has to do with this gathering for deliberating in a place accessible to every man. However, the democratic picture gains a new contour with the liberal trace. Liberalism, especially from the nineteenth century on, implies the idea of representation in the domain of the res publica, the idea of liberty and, accordingly, the idea of pluralism (it is possible to have more than one notion of the good)” [CHUEIRI, V. K. D. Before the law: Philosophy and Literature (the experience of that Which one cannot Experience). Graduate Faculty of Political and Social Science, new York, new school university, Ph.D.: 262, 2004]. Luíza Realce 107Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva afinal “um acordo sobre normas (...) não depende da estima mútua de performances culturais e estilos de vida culturais, mas apenas da suposi- ção de que toda pessoa, enquanto pessoa, tem o mesmo valor”.78 a categoria do Direito na teoria discursiva Levando-se em conta que os princípios do estado de Direito e os direitos fundamentais são determinados em abstrato, Habermas ressalta, todavia, que os mesmos só podem ser encontrados em constituições históricas e sistemas políticos específicos. A interpretação e incorporação desses princípios se dão em ordens jurídicas concretas. segundo Habermas, para além de variantes na realização de mesmos direitos ou dos mesmos princípios, essas ordens jurídicas concretas refle- tem também diferentes paradigmas. Para o autor, os dois paradigmas jurídicos mais bem sucedidos na história do direito moderno são, respectivamente, o paradigma do estado Libe- ral e o paradigma do estado social (welfare state). 78 HaBermas, J. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004. p. 326. 108 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Cada um deles fornece um modelo vivenciado de sociedade e de reprodução do poder político a par- tir dos quais se pode compreender a complexidade das relações entre autonomia privada e autonomia pública historicamente concretizadas.79 em breve síntese, sobre o pano de fundo paradigmático do estado Liberal, o papel do estado e dos direitos fundamentais pode ser resumido à garantia do indivíduo contra a inva- são indevida do estado em sua esfera de liberdade “natural”, tida como pré-política. Verifica-se a preponderância da ideia de autonomia privada, anterior e condicionante do exercício da autono- mia pública. Já na concepção do estado social, há uma mudança na “seta valorativa” do papel do estado e dos direitos fundamentais (agora responsável por prestações positivas de bens e serviços aos cidadãos-clientes, de acordo com as necessidades determinadas pela burocracia estatal). Percebe-se a preponderância da ideia de autonomia pública, onde a própria esfera pri- vada é vista como delimitada pela noção de bem comum, programada a partir de uma burocracia 79 sobre os paradigmas jurídicos modernos, cf. HaBermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1997. cap. iX, p. 123-192. 109Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva tecnocrata. em ambas as concepções a noção de público se remete unicamente ao estado.80 a liberdade, tal como a entendemos, requer o respeito às diferenças e assim se assenta, pois supõe o reconhecimento da igualdade de todos, embora diferentes. esses princípios (igualdade e liberdade), de início formais, reclamaram a sua materialização em um segundo momento. essa materialização foi buscada, no entanto, ao preço da formalidade. e hoje vivemos um momento em que sabemos que forma e matéria são equi- primordiais, que a materialização, conquanto importante, deve resultar do próprio processo de afirmação dos sujeitos constitucionais e contar com garantias processuais (formais) de partici- pação e de controle por parte dos afetados pelas medidas adotadas em seu nome, e, pelo menos retoricamente, visando o seu bem-estar, sob pena de se institucionalizar o oposto do que se pretendera ou se afirmara pretender. Em outros termos, essa exigência idealizante é uma exigência de democracia e sabemos que a democracia é um regime improvável, pois sempre requer que se 80 CarVaLHO nettO, m. D. requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, maio 1999. Luíza Realce 110 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... corra o risco ínsito às suas práticas, ou, do contrário, instauramos a ditadura. nada pode prepará-la, pode-se apenas buscar praticá-la e sempre de modo tendencial, a construir instituições que possam lidar com a possibilidade inafastável da burocratização, da corrupção, das tentativas de golpe, etc. Para Habermas nenhum desses dois mode- los vivenciados é capaz de dar conta da comple- xidade da sociedade contemporânea, bem como do papel exercido pelo estado na efetivação dos direitos fundamentais. Como compreender o Direito como um meio legítimo de integração social? Para que se possa compreender o sistema do Direito de forma procedimentalista, os papéis do estado e dos Direitos Fundamentais se tor- nam mais complexos, requerendo uma análise reconstrutiva que leve em consideração diferentes pontos de vista disciplinares, onde o papel de “observador” não se desliga do de cidadão, enten- dido como coautor das normas que o regem. a teoria discursiva do Direito e da Demo- cracia rompe com os modelos explicativos tra- dicionais ao fundar a legitimidade do direito moderno numa compreensão discursiva da Democracia. Como demonstrado pela própria Luíza Realce 111Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva história institucional da modernidade, o direito positivo, coercitivo, que se faz conhecer e impor pelo aspecto da legalidade precisa, para ser legítimo, ter sua gênese vinculada a procedimentos demo- cráticos de formação da opinião e da vontade que recebam os influxos comunicativos gerados numa esfera pública política e onde um sistema representativo não exclua a potencial participação de cada cidadão, cujo status político não depende de pré-requisitos (de renda, educação, nascimento etc.). a essa relação entre positividade e legitimi- dade Habermas denomina tensão interna entre faticidade e validade, pois presente no interior do próprio sistema do Direito. Como resposta ao problema da legitimidade, Habermas se vale então de um terceiro paradigma jurídico (ou jurídico-político), capaz, por sua vez, de absorver criticamente os outros dois. a concep- ção procedimentalista do Direito importa numa específica compreensão de justiça política: (...) na razão prática corporalizada em procedi- mentos e processos está inscrita a referência a uma justiça (entendida tanto em sentido moral quanto jurídico) que aponta para além do ethos concreto de determinada comunidade Luíza Realce 112 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... ou da interpretação de mundo articulada em determinada tradição ou forma de vida.81 no estado Democrático de Direito o poder político, para ser legítimo, deve derivar do poder comunicativo gerado a partir da esfera pública política. O estado, embora ocupe o centro dessa esfera pública, com os complexos parlamentares, não mais se confunde com a mesma, em seu todo (como se concebia nos paradigmas liberal e social, especialmente nesse último). a sociedade civil, seus movimentos sociais, organizações e asso- ciações de toda ordem, os meios de comunicação de massa, partidos políticos etc., compõem um complexo mais ou menos institucionalizado de formação, reprodução e canalização da opinião pública e da vontade política que, filtrados por sua pertinência, constituem o input dos órgãos políticos estatais. a oposição entre estado e sociedade, quanto à titularidade da interpretação do sistema dos direitos mostra-se agora falsa quando, tanto em sua gênese quanto na reprodução e reconstrução hermenêutica do sentido de suas normas, o 81 HaBermas, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. são Paulo: Loyola, 2002. p. 303. Luíza Realce 113Capítulo 3 Direitos Fundamentais e Eticidade Reflexiva Direito “pertence” a uma comunidade aberta de intérpretes da Constituição (para dizermos com Peter Häberle)82 ou a uma comunidade de princípios (com ronald Dworkin). também para Dworkin a correção normativa possui um caráter deontológico e socialmente enraizado. a moralidade política de uma comu- nidade se fundamenta racional e vivencialmente, sendo mais que uma mera expressão de vontades, gostos, preferências ou interesses de determinados indivíduos, grupos ou classes sociais. entretanto Dworkin, assim como Habermas e Günther, relê essa perspectiva kantiana das normas levando em consideração a dimensão da aplicação normativa — especialmente do Direito — como distinta da tarefa de fundamentação. e essa mesma dimensão da aplicação, que se apresenta de forma institucional, na teoria de Dworkin supera uma perspectiva monológica típica da filosofia do sujeito por supor uma comunidade de princípios cujas instituições atuam numa cadeia do direito, ou seja, com respeito à integridade do direito, o que implica em que se leve em consideração as decisões políticas e jurídicas 82 HaBerLe, P. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. 114 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... do passado em seu sentido performativo, para além da textualidade: a interpretação propriamente constitucional con- sidera tanto o texto como a prática passada como seu objeto: advogados e juízes confrontados com uma questão constitucional contemporânea devem buscar construir uma interpretação coerente, prin- cipiológica e persuasiva do texto de dispositivos específicos, da estrutura da Constituição como um todo, e da nossa história constitucional. (...) Ou seja, eles devem buscar a integridade constitucional.83 exatamente em função dessa dimensão vivencial, pragmática dos princípios, assumidos como componentes necessariamente presentes na autocompreensão normativa das sociedades pós-convencionais, em contextos epistemologica- mente cientes da contingência e precariedade da validade e verdade de proposições linguísticas, não se atribui a eles uma natureza metafísica, mas claramente social, histórica, intramundana. 83 DWORKIN, R. Originalism and Fidelity. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 118: “Proper constitutional interpretation takes both text and past practice as its object: lawyers and judges faced with a contemporary constitutional issue must try to construct a coherent, principled and persuasive interpretation of the text of particular clauses, the structure of the Constitution as a whole, and our history under the Constitution. (...) They must seek, that is, constitutional integrity”. Luíza Realce Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios Sumário: O pós-positivismo como retórica: alexy e a continuidade dos elementos centrais do positivismo normativo e filosófico na aparente ruptura com o positivismo jurídico – O retorno às regras – Limites internos e externos e o “conflito de valores” – Pluralismo moral e incompatibilidade entre princípios – O conflito jurídico, os textos normativos e as pretensões abusivas a direitos – O stF e o caso ellwanger O pós-positivismo como retórica: alexy e a continuidade dos elementos centrais do positivismo normativo e filosófico na aparente ruptura com o positivismo jurídico – O retorno às regras uma outra leitura do papel dos princípios jurídicos é feita por robert alexy, principal representante da teoria axiológica dos direitos 116 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... fundamentais na alemanha, com grande repercussão acadêmica e institucional no Brasil. Valendo-se da distinção proposta por Dworkin entre regras e princípios,84 alexy promove uma leitura dessa dicotomia como sendo inerente à estrutura das normas jurídicas,85 mantendo as regras como normas precedentes aos princípios na tarefa de aplicação: a teoria dos princípios não diz que o catálogo dos direitos fundamentais não contém regras; isto é, que ela não contém definições precisas. Ela afirma não apenas que os direitos fundamentais, enquanto balizadores de definições precisas e definitivas, têm estrutura de regras, como também acentua que o nível de regras precede prima facie ao nível dos princípios. O seu ponto decisivo é o de que atrás e ao lado das regras existem princípios.86 as noções de lacuna e discricionariedade típi- cas da concepção positivista das normas também 84 aLeXY, r. Teoria de los derechos fundamentales. madrid: Centro de estudios Constitucionales, 1993. p. 87 et seq. 85 aLeXY, r. On the structure of Legal Principles. Ratio Juris, v. 13, n. 3, p. 294-304, 2000. 86 robert alexy, em conferência proferida no rio de Janeiro em 1998, transcrito e traduzido em menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 26, destacamos. Luíza Realce 117Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios são mantidas pela teoria das normas de alexy, que rejeita a tese da única resposta correta. Para o autor apenas uma implausível teoria “forte” dos princípios, capaz de determinar a priori todas as relações entre normas em todas as possíveis situações de aplicação, poderia sustentar a tese da única resposta correta: a variante mais forte [de uma teoria dos princípios] seria uma teoria que contivesse além de todos os princípios, todas as relações de prioridade abstratas e concretas entre eles e, portanto, determinasse univocamente a decisão em cada um dos casos. se fosse possível uma teoria dos princípios da forma mais forte, seria certamente acertada a tese de Dworkin da única resposta correta.87 além disso, a plausibilidade da única decisão correta requereria, para alexy, um consenso, uma irrestrita concordância entre a comunidade de argumentação, numa situação ideal onde tempo, informação e disposição fossem ilimitados. 87 aLeXY, r. sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, n. 5, p. 145, 1988: “La variante más fuerte sería una teoría que contuviera, además de todos los principios, todas las relaciones de prioridad abstractas y concretas entre ellos y, por ello, determinara unívocamente la decisión en cada uno de los casos. si fuera posible una teoría de los principios de la forma más fuerte, sería sin duda acertada la tesis de Dworkin de la única respuesta correcta”. 118 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... a questão da única resposta correta depende essencialmente de se o discurso prático leva a uma única resposta correta para cada caso. Levaria a ela se a sua aplicação garantisse sempre um consenso. um simples esboço já mostra claramente que várias de suas exigências, sob condições reais, só se podem cumprir de maneira aproximada.88 Aqui fica claro que Alexy não compreende bem a ideia de Dworkin da “única resposta cor- reta”. Ela em definitivo não depende de um real consenso sobre a sua correção, mas de uma pos- tura hermenêutica diante do caso, dos princípios jurídicos de todo o ordenamento e da história institucional. Dworkin buscou deixar isso claro desde o Levando os direitos a sério, em 1977: essa teoria não defende que exista qualquer procedimento mecânico que demonstre quais são os direitos das partes nos casos difíceis. Pelo contrário, o argumento supõe que juristas e juízes 88 aLeXY, r. sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, n. 5, p. 150-151, 1988: “La cuestión de la única respuesta correcta depende esencialmente de si el discurso práctico lleva a una única respuesta correcta para cada caso. Llevaría a ello si su aplicación garantizara siempre un consenso. Ya un simple esbozo muestra claramente que varias de sus exigencias, bajo condiciones reales, sólo se pueden cumplir de manera aproximada”. Luíza Realce 119Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios razoáveis irão muitas vezes divergir sobre os direitos, assim como cidadãos e políticos divergem sobre questões políticas. [essa discussão] descreve as questões que juízes e juristas devem colocar para si próprios, mas isso não garante que todos eles darão a mesma resposta a essas questões.89 Como se percebe, ao contrário de alexy a teoria de Dworkin não levanta a pretensão de cunhar um procedimento metodológico “racio- nal” capaz de fornecer a correção das decisões jurídicas.90 Resta implausível, portanto, a afir- mação feita por alexy de que a tese da única resposta correta de Dworkin derivaria de um “racionalismo metodológico”.91 Pelo contrário, como vimos, a afirmação da possibilidade de uma atividade cognoscente reside precisamente 89 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass.: Harvard university Press, 1977. p. 81: “it is no part of this theory that any mechanical procedure exists for demonstrating what the rights of parties are in hard cases. On the contrary, the argument supposes that reasonable lawyers and judges will often disagree about legal rights, just as citizens and statesmen disagree about political rights. this chapter describes the questions that judges and lawyers must put to themselves, but it does not guarantee that they will all give these questions the same answer”. 90 Cf. aLeXY, r. Discourse theory and Fundamental rights. In: menÉnDez, Agustin J.; ERIKSEN, Erik O. Arguing Fundamental Rights. Dordrecht: springer, 2006. p. 15-30. 91 aLeXY, r. Teoria de los derechos fundamentales. madrid: Centro de estudios Constitucionales, 1993. p. 528. 120 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... no aprendizado decorrente da dificuldade das tarefas de aplicação, sobretudo vivencialmente. em Dworkin estamos certamente num terreno de racionalidade que se sabe limitada. a postura, e não o método, é determinante. a tarefa propriamente de aplicação dos prin- cípios é então recusada por alexy, ao considerá-la como algo idêntico à legislação, uma atividade de balanceamento de valores concorrentes, passíveis de tratamento metodológico e sujeitos a hierarquiza- ção. Direitos, entendidos como interesses, devem assim ser sacrificados de acordo com seu grau de relevância, e os princípios ensejam múltiplas possibilidades de decisão correta disponíveis à discricionariedade do aplicador. Robert Alexy afirma apoiar-se em Dworkin para, no entanto, retornar a uma concepção de fórmulas metodológicas heurísticas, reduzindo os princípios a políticas, ou seja, a normas de aplicação gradual, retomando as regras como normas capazes de, por si sós, regularem a sua situação de aplicação, já que seriam aplicáveis na base do tudo ou nada, como se a distinção entre princípios e regras em Dworkin fosse simples- mente morfológica. Os direitos fundamentais Luíza Realce Luíza Realce 121Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios que, em Dworkin, condicionam a legitimidade das políticas públicas, na teoria de alexy, perdem precisamente essa dimensão. Limites internos e externos e o “conflito de valores” Valendo-se da teoria de robert alexy, Gilmar mendes92 expõe concepções concorrentes quanto à relação entre direito individual e restri- ção. Para a teoria externa os direitos podem ser, a princípio, ilimitados, sendo que sua conformação com o restante do ordenamento jurídico se daria mediante restrições externas ao próprio direito. Já segundo a teoria interna direitos individuais e restrições não seriam categorias autônomas, mas o próprio conteúdo dos direitos implicaria em limites inerentes ao seu conceito, e não em restri- ções externas. Para o autor se se considerar que os direitos individuais consagram posições definitivas (Regras: Regel), então é inevitável a aplicação da teoria interna. Ao contrário, se se entender que eles definem 92 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 25. Luíza Realce 122 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... apenas posições prima facie (prima facie Positionen: princípios), então há de se considerar correta a teoria externa.93 também com base em alexy, mendes aponta problemas numa teoria de interpretação que reduza o papel do legislador a simplesmente declarar o que já se encontra positivado nos direitos funda- mentais, confirmando o juízo de ponderação feito pelo constituinte, sendo que, de fato, para o autor, autênticas limitações aos direitos individuais são realizadas pelo legislador — limitações externas. marca-se aqui a diferença entre as denomi- nadas teorias interna e externa das limitações a direitos. Pois da perspectiva interna a diferença entre limitação e (re)definição de sentido carece de força explicativa, desde que respeitada a integridade do Direito, parâmetro que marca a diferença entre interpretação constitucional e abuso de direito. além disso, ao menos no âmbito dos direitos fundamentais, a tensão entre abstração e concretude inerente aos princípios de conteúdo universal torna as atividades de criação e interpre- tação internamente complementares, visto que a 93 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 26. Luíza Realce 123Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios densificação desses princípios pela via legislativa — e, guardadas as especificidades do discurso de apli- cação, também pela via judicial — envolve tanto a confirmação da garantia fundamental quanto inovação no complexo quadro do ordenamento jurídico. isso porque numa concepção principio- lógica da ordem constitucional a distinção entre direitos enumerados e não enumerados94 se revela problemática, pois a abertura semântica inerente à complexidade plural do constitucionalismo moderno não nos permite traçar uma moldura interpretativa do conteúdo dos direitos funda- mentais como numerus clausus. É a integridade do direito, no exercício her- menêutico que se volta tanto para o passado quanto para o futuro, que marcará a diferença entre densificação e descumprimento dos princí- pios fundamentais, especialmente mediante a capacidade e a sensibilidade do intérprete de, no processo de densificação e concretização norma- tivas, diante de uma situação concreta de apli- cação, impor normas que se mostrem adequadas a reger essa situação de modo a dar pleno curso 94 DWORKIN, R. The Concept of Unenumerated Rights. University of Chicago Law Review, 59, p. 381-432, 1992. Luíza Realce Luíza Realce 124 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... ao Direito em sua integridade, a reforçar a crença na efetividade da comunidade de princípios. Mesmo em um contexto de filosofia da lingua- gem, em que os supostos se assentam em termos discursivos e não mais em uma suposta estrutura da consciência humana, é o critério kantiano de legitimidade normativa, o imperativo categórico, a requerer como condição de validade da norma a sua universalidade, que continua a ser o critério basilar nos discursos de elaboração legislativa ou de justificação normativa, apenas que agora traduzido em termos discursivos: “legítimas são as normas passíveis de serem aceitas por todos os seus potenciais afetados”. Contudo, ainda que uma norma passe por esse crivo, isso não mais significa que ela deva ser aplicada a todos os casos em que aparentemente poderia se aplicar segundo a alegação dos próprios envolvidos. ao contrário, como veremos, a legitimidade ou a constitucionalidade de uma norma não significa, por si só, que pretensões abusivas não possam ser levantadas em relação à sua aplicação aos casos concretos. Por isso mesmo, embora o uso abusivo e instrumental do direito seja sempre possível, encontramo-nos hoje em condições de exigir, Luíza Realce 125Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios na prática, que pretensões desse tipo não mais possam encontrar guarida sob o Direito, refor- çando a postura interna do cidadão que assume os seus direitos como condição de possibilidade da própria comunidade de princípios fundada no igual respeito e consideração devido a todos os seus membros. O problema central da chamada teoria externa é conceber os direitos como a princípio ilimitados, carecedores de atos externos legislativos ou judi- ciais para lhes emprestar limites, de forma consti- tutiva. Ora, mesmo no silêncio do texto qualquer direito, inclusive os clássicos direitos individuais, só pode ser compreendido adequadamente como parte de um ordenamento complexo. toda nossa experiência histórica acumu- lada, o aprendizado duramente vivido desde o alvorecer da modernidade não mais nos permite reforçar a crença ingênua, por exemplo, de que os direitos “de primeira geração”, originalmente afirmados no marco do paradigma constitucional liberal como egoísmos anteriores à vida social, ainda possam ser validamente compreendidos como simples limites à ação, enfocados da pura perspectiva externa do observador. Luíza Realce 126 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... essa mesma vivência geracional permite que, no pano de fundo de compreensão que compartilhamos, encontre-se disponível para nós a condição de vermos a possibilidade de que pretensões abusivas em relação a direitos gené- rica e abstratamente prefigurados em lei tendam a ser levantadas nos casos concretos, na vida cotidiana, precisamente na tentativa de, a partir da perspectiva de um observador externo que apenas deseja obter vantagens a qualquer custo, acobertar ações que, se, a primeira vista poderiam passar como o simples exercício de um direito, na verdade, já seriam condenáveis e não admissíveis pelo próprio Direito quando considerado em seu todo, em sua integridade. Pregar, por exemplo, a eliminação ou mesmo a discriminação de pessoas simplesmente por serem portadoras de determi- nadas características supostamente raciais não é exercício do direito de liberdade de expressão, é preconceito que, em nosso ordenamento é crime, e mais, crime imprescritível. exigir que a secretária executiva cumpra o dever legal de fidelidade ao seu chefe não a exime de (e muito menos a obriga a) ser cúmplice de um desfalque, de um peculato ou mesmo de um assassinato. 127Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios É que, na modernidade, a edição de normas gerais, hoje sabemos bem, não elimina o problema do Direito, tal como ansiado nos dois paradig- mas anteriores e neles vivencialmente negado, mas, pelo contrário, o inaugura. O problema do Direito moderno, agora claramente visível graças à vivência acumulada, é exatamente o enfrenta- mento consistente do desafio de se aplicar ade- quadamente normas gerais e abstratas a situações de vida sempre individualizadas e concretas, à denominada situação de aplicação, sempre única e irrepetível, por definição. O Direito moderno, enquanto conjunto de normas gerais e abstratas, torna a sociedade mais e não menos complexa. Complexidade que envolve uma faceta que não mais pode se confundir com o exercício legítimo de direitos, a das pretensões abusivas que a mera edição em texto do direito na forma de norma geral e abstrata incentiva. e isso porque ela (a norma) pode e tende a ser enfocada também da perspectiva de um mero observador interessado em sempre levar vantagem, o que vem ressaltar um aspecto central que hoje reveste os direitos fundamentais enquanto princípios constitucionais fundantes de uma comunidade de pessoas que se Luíza Realce 128 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... reconhecem como reciprocamente merecedoras de igual respeito e consideração em todas as situa- ções de vida concreta em que se encontrem e que Konrad Hesse denominou a “força irradiadora dos princípios”. assim é que é precisamente a visibilidade dessa força irradiadora dos princípios que nos habilita a lidar de forma consistente com as pretensões abusivas enquanto tais, não mais as confundindo com o regular exercício de direi- tos. Não somente não é suficiente tomarmos os direitos como meros limites, mas torna-se clara agora a exigência dworkiana de que sempre sejam levados a sério, ou seja, de que sempre sejam considerados como condição de possi- bilidade da liberdade. esse conteúdo moral do Direito só pode ter curso quando assumido da perspectiva interna do participante, do cidadão. muito embora, é claro, o conteúdo moral do Direito não o transforme em moral, pois continua a operar como Direito (visando regular o compor- tamento externo das pessoas e não as suas cren- ças internas), deve ser levado a sério no terreno dos discursos de aplicação pois permite tratar de forma consistente as pretensões abusivas, Luíza Realce 129Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios buscando coibir e não incentivar o uso estratégico do Direito, que se mostra agora claramente como um uso contrário ao próprio Direito, como um abuso, um atentado contra a mesma comunidade de princípios que o Direito institui, viabiliza e pela integridade da qual deve zelar. a tensão entre público e privado perpassa qualquer direito, seja individual, coletivo ou difuso. isso compõe o pano de fundo do estágio histórico da nossa compreensão dos direitos, e se torna indisponível quando da atribuição de sentido a um direito como o de propriedade. independente de menção expressa na Constituição, todo direito individual deve cumprir uma função social, e isso integra internamente seu próprio sentido para que possa ser plausível. essa leitura principiológica e sistêmica exi- gida pela chamada teoria interna exerce força expli- cativa mesmo para mendes que, embora advogue a concepção externa de restrições, não raro afirma interpretações que levam em conta os requisitos de uma hermenêutica atenta ao sentido imanente dos princípios num paradigma constitucional democrático, para além das previsões textuais. 130 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... É o que se verifica em sua leitura do inciso LXVI do art. 5º da Constituição:95 no que se refere à liberdade provisória, também optou o constituinte, aparentemente, por conferir amplo poder discricionário ao legislador, autorizando que este defina os casos em que seria aplicável o instituto. É quase certo que a expressão literal aqui é má conselheira e que todo o modelo de proteção à liberdade instituído pela Constituição recomende uma leitura invertida, segundo a qual haverá de ser admitida a liberdade provisória, com ou sem fiança, salvo em casos excepcionais, especialmente definidos pelo legislador.96 Ora, qual o caráter externo da limitação da restrição da liberdade provisória, senão o pró- prio sentido (interno) dessa garantia no contexto constitucional democrático, como densificação dos princípios da liberdade e da igualdade? naturalmente não nos referimos a esse caráter interno como algo ontológico, transcendente, 95 “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança;” (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). 96 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 34-35. 131Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios metassocial ou metalinguístico, visto que a natureza dinâmica de qualquer semântica, especialmente das normas, se tornou patente após a virada linguístico-pragmática empreen- dida pela Filosofia em meados do século XX, cujos efeitos se espraiam por todos os campos do saber. É claro que essa atribuição de sentido às normas é sempre uma disputa acerca do seu sig- nificado, já que, como qualquer texto, também os normativos requerem a contribuição construtiva dos intérpretes ou destinatários. Quanto aos direitos fundamentais sem expressa previsão de reserva legal, afirma mendes que também nesses direitos vislumbra-se o perigo de conflitos em razão de abusos perpetrados por eventuais titulares de direitos fundamentais. mas, estando o legislador a princípio impedido de “limitar” tais direitos, de forma a coibir abusos, as “colisões de direitos” ou “entre valores” poderiam ser impedidas mediante o excepcional apelo “à unidade da Constituição e à sua ordem de valores”, segundo interpretação da Corte Constitucional alemã.97 97 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 40. Luíza Realce 132 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... se, por outro lado, adotarmos a concepção segundo a qual nenhum Direito Constitucional é “ilimitado”, em face da própria Constituição, a tarefa interpretativa a ser adotada por qualquer cidadão em geral e, mais ainda pelos órgãos encarregados do desenvolvimento e da aplica- ção do Direito, do legislador ao administrador, culminando com o juiz, precisamente porque enquanto atribuição de sentido a textos é sempre conformadora dos seus conteúdos normativos, deve levá-los em conta, sem que isso, portanto, possa importar em qualquer redução do “âmbito de proteção” de um direito, mas simplesmente no controle que afirma como inadmissíveis juri- dicamente as pretensões abusivas que certamente serão levantadas em relação a ele. O direito, entendido em sua integridade, não pode se vol- tar contra o próprio direito. Por isso a figura da colisão não retrata de maneira plausível a tensão imanente ao ordenamento jurídico. além disso, é de se lembrar que abusos no campo das pre- tensões a direitos sempre se apresentarão como pretensões legítimas e fundadas na própria regu- lação legislativa. aliás, é precisamente a previsão legislativa genérica e abstrata dos direitos que, por 133Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios si só, incentiva pretensões abusivas. no contexto de uma racionalidade que se saiba limitada, por- tanto, não há qualquer plausibilidade racional na crença de que se possa eliminar pretensões abu- sivas mediante a simples edição de mais normas gerais e abstratas. É apenas no campo dos discur- sos de aplicação, ao se levar a sério as pretensões a direito nele levantadas, mediante o escrutínio das especificidades daquele caso concreto, que essas pretensões poderão ser qualificadas como legítimas ou abusivas, inclusive aquelas calcadas em previsões legais literais. mais uma vez a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação é central para que possamos compreender adequadamente o próprio sentido (e os “limites”) de qualquer direito. normas gerais e abstratas não são capa- zes, por si só, de coibir a chamada fraudem legis, como já percebia Francesco Ferrara: Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na observância formal do ditame da lei, e na violação substancial do seu espírito: tanturn sententiam offendit et verba reservat. O fraudante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir o mesmo resultado ou pelo menos um resultado equivalente ao proibido; todavia, como a lei deve Luíza Realce 134 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... entender-se não segundo o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proibição deve negar eficácia também àqueles outros meios que em outra forma tendem a conseguir aquele efeito.98 sabemos hoje, portanto, que as leis gerais e abstratas não eliminam o problema do Direito, aliás, ao contrário do que igualmente puderam acreditar os iluministas com a sua confiança exces- siva na razão, elas inauguram o problema do Direito moderno que é precisamente o da aplica- ção de normas gerais e abstratas a situações sem- pre particularizadas, determinadas e concretas. É mais do que tempo de nos emanciparmos da crença ingênua de que uma boa lei nos redi- miria da tarefa de aplicá-la de forma adequada à unicidade e irrepetibilidade características das situações da vida, sempre individualizadas e concretas. a fórmula da lei geral e abstrata foi sem qualquer sombra de dúvida uma conquista evolutiva inegável e a crença no poder dessa 98 Ferrara, F. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra: arménio amado, 1963. p. 151. Luíza Realce 135Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios fórmula determinante para a configuração do sistema jurídico moderno. a redução moderna do Direito a um conjunto de normas gerais e abstratas, no entanto, se foi capaz de subverter o antigo regime e suas ordens de privilégios, e de ser central para a instauração dessa nova socie- dade sem fundamentos absolutos e imutáveis, não reduziu, mas, pelo contrário, incrementou e sofisticou a complexidade social. Os movimentos constitucionalistas e a ideia mesma de Constituição, no sentido moderno, pressupõem a diluição da unidade e da orga- nicidade típicas das sociedades tradicionais, ou seja, a invenção do indivíduo, da sociedade civil, o pluralismo religioso, político e social, a tensão socialmente constitutiva entre o eu e o outro. De fato, somente uma sociedade complexa, plural e que se sabe cindida pela diversidade dos interes- ses, formas de vida e estruturas de personalidade dos seus membros requer uma Constituição, como afirma Michel Rosenfeld, em uma sociedade homogênea ela seria desnecessária.99 99 rOsenFeLD, m. Comprehensive pluralism is neither an overlapping consensus nor a modus vivendi: a reply to Professors arato, avineri, and michelman. Cardozo Law Review, v. 21, 1971-1997, 2000. Luíza Realce 136 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Pluralismo moral e incompatibilidade entre princípios isaiah Berlin, um dos principais pensadores liberais do século XX, defende uma concepção de princípios (enquanto “valores morais”) onde se verifica uma permanente e irreconciliável incom- patibilidade, o que forçaria a sociedade a lidar, necessariamente, com o sacrifício de princípios: Claro é que os valores podem colidir. Valores podem facilmente colidir no âmago de um único indivíduo. e disso não se segue que alguns devam ser verdadeiros e outros falsos. tanto a liberdade quanto a igualdade estão entre os principais objetivos perseguidos pelos seres humanos através dos séculos. mas a liberdade total para os lobos é a morte para os cordeiros. essas colisões de valores estão em sua essência, e na essência do que somos. (...) alguns dentre os maiores bens não podem conviver. essa é uma verdade conceitual. estamos condenados a escolher, e cada escolha pode trazer uma perda irreparável.100 Contra Berlin, Dworkin busca defender o tipo de “ideal holístico”, de “perfect whole” 100 BerLin, isaiah apud DWORKIN, R. Moral Pluralism. In: DWORKIN, r. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 106. Luíza Realce Luíza Realce 137Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios condenado por aquele como sendo sintoma de uma “perigosa imaturidade moral e política”. Berlin101 fala de uma “tendência natural” da maio- ria dos pensadores a acreditar que tudo aquilo que eles consideram bom deve estar conectado ou ser compatível, sendo que a história pode nos brindar com diversos exemplos da união artificial de valores, especialmente no fomento de uma união política contra inimigos em comum. Quanto à dimensão do “perigo”, adverte Dworkin: Assim como tiranos buscaram justificar terríveis crimes apelando à idéia de que todos os valores morais e políticos se juntam em alguma visão harmônica de grande importância transcendente, de tal sorte que a seu serviço o assassinato seja justificado, também outros crimes morais foram justificados com apelo à idéia oposta, de que valores políticos importantes necessariamente entram em conflito, que nenhuma escolha entre eles pode ser defendida como a única correta, e que, portanto, são inevitáveis sacrifícios de coisas que consideramos de grande importância.102 (DWORKIN, 2006, p. 106) 101 BerLin, i. Liberty: incorporating four essays on Liberty. Oxford: Oxford university Press, 2002. p. 175. 102 DWORKIN, R. Moral Pluralism. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 106. 138 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Para Dworkin a ideia de conflito de valores tem servido no discurso político e no senso comum como justificativa para a manutenção de desigualdades sociais, já que qualquer medida igualitária (por exemplo, de redistribuição ou realocação de recursos por meio de tributos) implicaria, segundo essa visão, numa “invasão” na esfera da liberdade. além disso, o “pluralismo de valores” pode ter efeito legitimador sobre práticas de desrespeito aos direitos humanos no plano internacional, sob o argumento de que cada sociedade escolhe os valores que busca priorizar, e que qualquer interferência quanto a isso seria um ato de imperialismo. mas os argumentos de isaiah Berlin, reco- nhece Dworkin, são mais complexos e persuasi- vos que os lugares-comuns antropológicos tão difundidos atualmente no “pós-modernismo”, que repetem o chavão de que cada sociedade se organiza em torno de valores diferentes, o que costuma se somar ao argumento cético sobre a implausibilidade de se afirmarem valores como “objetivos”. Para Berlin há valores que se possa considerar como “objetivos”, mas tais “true values” entram em conflito de forma insolúvel, Luíza Realce 139Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios conflitos esses não apenas entre as divergentes percepções ou opiniões subjetivas sobre o sen- tido dos valores, mas intrinsecamente entre os valores mesmos. Cada coisa é o que é: liberdade é liberdade, e não igualdade, ou eqüidade, ou justiça ou cultura, ou felicidade humana ou uma consciência tranqüila. se a minha liberdade, ou de minha classe ou nação, depende da miséria de vários outros seres humanos, o sistema que a promove é injusto e imoral. mas se eu reduzo ou perco a minha liberdade de modo a minimizar a vergonha de tal desigualdade, e com isso não aumento materialmente a liberdade individual de outros, uma perda absoluta de liberdade ocorre. isso pode ser compensado por um ganho em justiça, em felicidade ou em paz, mas a perda remanesce, e é uma confusão de valores dizer que apesar de a minha liberdade individual “liberal” ser sacrificada, algum outro tipo de liberdade — “social” ou “econômica” — é incrementado. entretanto, é verdade que a liberdade de alguns deve às vezes ser restringida para assegurar a liberdade de outros. Com base em que princípio isso deve ser feito? se a liberdade é um valor sagrado, intocável, não pode haver tal princípio. um ou outro desses princípios ou regras em conflito deve, em qualquer grau na prática, ceder: nem 140 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... sempre por razões que possam ser claramente enunciadas, quanto mais generalizadas em regras ou máximas universais. ainda assim, um compromisso prático deve ser encontrado.103 Para Berlin, portanto, os conflitos não são apenas contingentes, pois são consequência da própria estrutura ou conceito dos valores, de tal sorte que o ideal de harmonia não é apenas inatingível, é incoerente, já que fazer valer um valor implicaria necessariamente no compromisso ou abandono de outro. e se estamos tratando de valores essenciais, como igualdade e liberdade, qualquer decisão política implicaria não apenas 103 BerLin, i. Liberty: incorporating four essays on Liberty. Oxford: Oxford university Press, 2002. p. 172-173: “everything is what it is: liberty is liberty, not equality or fairness or justice or culture, or human happiness or a quiet conscience. if the liberty of myself or my class or nation depends on the misery of a number of other human beings, the system which promotes this is unjust and immoral. But if i curtail or lose my freedom in order to lessen the shame of such inequality, and do not thereby materially increase the individual liberty of others, an absolute loss of liberty occurs. this may be compensated for by a gain in justice or in happiness or in peace, but the loss remains, and it is a confusion of values to say that although my ‘liberal’, individual freedom may go by the board, some other kind of freedom — ‘social’ or ‘economic’ — is increased. Yet it remains true that the freedom of some must at times be curtailed to secure the freedom of others. upon what principle should this be done? if freedom is a sacred, untouchable value, there can be no such principle. One or other of these conflicting rules or principles must, at any rate in practice, yield: not always for reasons which can be clearly stated, let alone generalized into rules or universal maxims. Still, a practical compromise has to be found”. Luíza Realce 141Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios em desapontar algumas expectativas em proveito de outras, mas na violação de direitos de pessoas, sendo inevitável, na visão de Berlin, que uma comunidade política falhará, irremediavelmente, em suas responsabilidades, de uma forma ou de outra. seu argumento não é o da incerteza, ou seja, de que muitas vezes não sabemos qual a decisão correta a se tomar, mas o de que muitas vezes sabemos que nenhuma decisão é correta.104 O conflito jurídico, os textos normativos e as pretensões abusivas a direitos Vera Karam de Chueiri, referindo-se como exemplo a dois princípios expressamente alber- gados pela Constituição brasileira, compartilha também a noção de incompatibilidade entre princípios contrários, o que levaria necessaria- mente a disputa para além da arena jurídica e à impossibilidade de se chegar a uma decisão juridicamente correta: a correção da resposta correta de Hércules pode também se revelar problemática pelo fato 104 DWORKIN, R. Moral Pluralism. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. Cambridge, mass.: Belknap Press, 2006. p. 110. Luíza Realce 142 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... de que a coerência ou integridade requerida do sistema jurídico comumente não pode ser alcançada por meio do modelo interpretativo pensado por Dworkin. É possível que, em face de princípios que não sejam coerentes entre si, por exemplo, entre o princípio da propriedade privada e o princípio da função social da propriedade, Hércules não conseguisse construir uma resposta coerente, pondo em risco a idéia de certeza do direito e o requisito de aplicação legítima do direito (nos termos postos por Dworkin), já que ele teria que buscar uma resposta fora do sistema jurídico, nas lutas travadas na arena política.105 assim como Berlin, e com base na teoria agonística106 de Chantal Mouffe, Chueiri parece 105 CHueiri, V. K. D. Before the law: Philosophy and Literature (the Experience of that Which one cannot Experience). Graduate Faculty of Political and Social Science, new York, new school university, Ph.D.: f. 216, 2004: “The rightness of Hercules’ right answer can also be problematic by the fact that the required coherence or integrity of the system of law is not often achieved by means of the interpretive model thought by Dworkin. it is possible that in face of principles that are not coherent among themselves, for instance, between the principle of private property and the principle of property’s social function, Hercules could fail in constructing a coherent answer jeopardizing the idea of legal certainty and the claim to a legitimate application of law (in the terms put by Dworkin), as far as he would have to look for an answer outside the legal system, in the struggles that take place in the political arena”. 106 “uma abordagem que revele a impossibilidade de se estabelecer um consenso sem exclusão é de fundamental importância para a política democrática. ao nos alertar contra a ilusão de que uma democracia plenamente realizada pudesse ser materializada, ela nos força a 143Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios desconsiderar a diferença qualitativa existente entre os conflitos de valores políticos e a tensão entre normas próprias dos princípios jurídicos e morais. Por certo se levarmos em consideração os interesses em jogo em disputas como a do exemplo apresentado pela autora — entre latifundiários e trabalhadores sem-terra —, dificilmente pode- remos encontrar compatibilidade entre eles, já que claramente se antagonizam. essa é uma das principais diferenças entre o Direito e a moral: o direito não pode exigir que se adote a perspectiva interna e cooperativa das normas, possibilitando sempre que as atitudes sejam guiadas pragmati- camente por interesses, embora mantenha como requisito de legitimidade a possibilidade de sua obediência por simples respeito às normas, mas não mais que a possibilidade. Fica claro mais uma manter viva a contestação democrática. uma abordagem democrática ‘agonística’ é capaz de perceber a verdadeira natureza de suas fronteiras e reconhece as formas de exclusão que elas incorporam, ao invés de tentar disfarçá-las sob o véu de racionalidade ou moralidade” (mOuFFe, C. Deliberative Democracy or agonistic Pluralism?. Social Research, v. 66, n. 3, p. 745-758, 1999): “an aproach that reveals the impossibility of establishing a consensus without exclusion is of fundamental importance for democratic politics. By warning us against the illusion that a fully achieved democracy could ever be instantiated, it forces us to keep the democratic contestation alive. An ‘agonistic’ democratic approach acknowledges the real nature of its frontiers and recognizes the forms of exclusion that they embody, instead of trying to disguise them under the veil of rationality or morality”. Luíza Realce 144 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... vez o problema de se considerar normas jurídicas como equivalentes a interesses ou valores. seme- lhante é a leitura de Gilmar mendes, referindo-se à jurisprudência da corte constitucional alemã, quanto à relação entre direitos e interesses em se tratando de conflitos como esse: Como acentuado pelo Bundesverfassungsgericht, a faculdade confiada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a “compatibilizar o espaço de liberdade do indivíduo no âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade”. Essa necessidade de ponderação entre o interesse individual e o interesse da comunidade é, todavia, comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma especificidade do direito de propriedade.107 É próprio da esfera normativa deontológica, especialmente no caso do direito, o requisito de se lidar com normas contrárias em permanente tensão sem que isso implique em contradição. Pelo contrário, como afirma Habermas, inspirado por Dworkin, os opostos aqui são equiprimordiais e complementares, reciprocamente constitutivos 107 menDes, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. são Paulo: saraiva, 2004. p. 20. 145Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios dos respectivos sentidos. não se trata de uma questão puramente semântica: valores e nor- mas acarretam tarefas interpretativas diversas, exigindo das instituições sociais tratamentos respectivamente distintos. Conflitos de valores e interesses requerem mediações e soluções ins- titucionais que devem levar necessariamente em consideração argumentos de política, por meio de discursos pragmáticos e ético-políticos (como, por exemplo, em políticas públicas de reforma agrária levadas a efeito pela administração). Já a exegese a ser dada aos princípios da propriedade privada e da função social da pro- priedade, em discursos de aplicação próprios da atividade judicial, não equivale a um juízo de preferência sobre interesses conflitantes, mas na busca do sentido que, diante das especificidades do caso concreto e da complexidade normativa envolvida, ofereça uma resposta coerente com a Constituição e o ordenamento como um todo, entendidos, é claro, à luz da compreensão que compartilhamos dos direitos fundamentais de liberdade e igualdade que reciprocamente nos reconhecemos enquanto constituição viva, enquanto comunidade de princípios. no caso, Luíza Realce 146 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... verifica-se que desde o esgotamento do paradigma constitucional liberal os direitos privados, como o da propriedade, não mais podem implicar a tutela, a título de direito, de pretensões egoísticas anteriores e contrárias à própria vida social, pois os direitos individuais, coletivos e difusos de todos os demais membros da coletividade impõem condições para seu exercício legítimo. Dessa forma, precisamente porque os prin- cípios são normas abertas, normas que não bus- cam regular sua situação de aplicação, para bem interpretá-los é preciso que os tomemos na integridade do Direito, ou seja, que sempre enfoquemos um determinado princípio tendo em vista também, no mínimo, o princípio oposto, de sorte a podermos ver a relação de tensão produ- tiva ou de equiprimordialidade que, na verdade, guardam entre si, a matizar recíproca, decisiva e constitutivamente os significados um do outro. assim é que, por um lado, o direito individual de propriedade não pode ser válida e legitima- mente compreendido de forma a inviabilizar a sua função social — daí a previsão constitu- cional de taxação progressiva de propriedades Luíza Realce 147Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios improdutivas,108 por exemplo —, bem como, por outro, o direito da coletividade de atribuir funções socialmente relevantes aos bens apro- priáveis não pode simplesmente desconsiderar a propriedade particular — não é outro o sentido, por exemplo, da exigência constitucional de inde- nização em caso de desapropriação.109 mais uma vez a diferença entre argumentos de princípio e argumentos de política revela-se fundamental para a compreensão do papel e dos limites da atividade governamental diante dos direitos dos cidadãos: a maioria dos atos legítimos de qualquer governo envolve a negociação de interesses de diferentes pessoas; tais atos beneficiam alguns cidadãos e desfavorecem outros para que se incremente o bem-estar da comunidade como um todo. (...) mas certos interesses de pessoas em particular são tão importantes que seria errado — moralmente errado — que a comunidade os sacrificasse apenas para as- segurar um benefício generalizado. Direitos políticos demarcam e protegem esses interesses particularmente importantes. um direito 108 art. 153, §4º, i da Constituição da república. 109 art. 5º, XXiV da Constituição da república. Luíza Realce 148 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... político, podemos dizer, é um trunfo sobre o tipo de argumento de negociação que normal- mente justifica a ação política.110 O stF e o caso ellwanger À luz de uma teoria deontológica dos direitos seria possível uma decisão correta, ainda que fundamentada em termos axiológicos de ponderação de valores? a fundamentação de uma decisão vazada em termos de conflitos de direitos, reduzidos a meros valores, não é expressa em termos de pretensões controversas em relação a direitos que seriam indisponíveis. Comporta assim uma descrição inadequada da controvérsia que pode conduzir a decisões que anulem direitos em favor de preferências pessoais do julgador. Contudo, a nosso ver, isso não impede, por si só, que a decisão tomada seja a decisão correta. 110 DWORKIN, R. Is Democracy Possible Here?: Principles for a new Political Debate. Princeton, n.J.: Princeton university Press, 2006. p. 31: “most legitimate acts of any government involve trade-offs of different people’s interests; these acts benefit some citizens and disadvantage others in order to improve the community’s well-being as a whole. (...) But certain interests of particular people are so important that it would be wrong — morally wrong — for the community to sacrifice those interests just to secure an overall benefit. Political rights mark off and protect these particularly important interests. a political right, we may say, is a trump over the kind of trade-off argument that normally justifies political action.” 149Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios a decisão do Habeas Corpus nº 82.425/rs,111 conhecido como “caso Ellwanger”, ilustra bem essa hipótese. a discussão girou em torno da apli- cação de princípios e, na atual linguagem do stF, buscou-se realizar uma argumentação baseada na “ponderação” ou “balanceamento” de valores, tanto por parte da maioria (especialmente no voto do ministro Gilmar mendes) quanto da minoria (em especial o ministro marco aurélio). estabelecendo os argumentos que pre- valeceriam na decisão final, o Ministro Gilmar mendes, em seu voto, buscou se basear no prin- cípio da proporcionalidade para a construção de sua fundamentação. analisando complexa e sistemicamente o ordenamento jurídico, com especial atenção aos instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil, conclui o ministro pela inviabilidade de se atribuir interpretação outra à Constituição: assim não vejo como se atribuir ao texto constitucional significado diverso, isto é, que 111 BrasiL. HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. relator orig.: min. moreira alves. relator para o acórdão: min. maurício Corrêa. <www.stf.gov.br>, supremo tribunal Federal, 2003. 150 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... o conceito jurídico de racismo não se divorcia do conceito histórico, sociológico e cultural assente em referências supostamente raciais, aqui incluído o anti-semitismo.112 Mas o ministro identifica como um problema de conflito entre direitos as pretensões controver- sas das partes, na medida em que “a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria idéia de igualdade”, e menciona decisão da Corte europeia de Direitos Humanos onde, com a aplicação do princípio da proporcionalidade, se confrontou a liberdade de expressão com a proibição de abuso de direito, tendo prevalecido, no caso, a liberdade de expressão. Cabe o questionamento sobre a adequação dessa descrição do problema. trata-se de um conflito entre direitos, ou de um conflito entre pretensões e interesses? O exercício legítimo de um direito, como o da liberdade de expressão, pode configurar, ao mesmo tempo, uma violação de direitos, uma ilegalidade? nesse sentido é a crítica de Marcelo Cattoni: 112 Ibid. 151Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios Afinal, ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abusiva, criminosa, ou, então, do exercício regular, e não abusivo, de um direito. (...) Como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito? Como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita?113 apesar da terminologia utilizada pelo ministro em sua fundamentação, entendemos que seus argumentos se mostram sólidos da pers- pectiva da justiça como correção normativa, pois de modo algum são argumentos de ponderação. senão vejamos, quando com base na análise das especificidades do caso concreto afirma “a dis- criminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria idéia de igualdade”, na verdade, evidencia a natureza abusiva da pretensão levantada pelo réu, em sua defesa, de buscar dar à prática do crime imprescritível de 113 OLIVEIRA, M. A. Cattoni de. O caso Ellwanger: uma crítica à ponderação de valores e interesses na jurisprudência recente do supremo tribunal Federal. Belo Horizonte, 2006. p. 7. 152 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... racismo a roupagem de um mero exercício do direito à liberdade de expressão, quando ressalta a discrepância dessa pretensão em face da inte- gridade do Direito. O problema aqui é apenas no nível descritivo já que embora expressamente, para efeitos da decisão, desqualifique a preten- são levantada pelo réu por abusiva, continua a descrever, paradoxalmente, o crime praticado tal como pretendera o réu, ou seja, como exercício da liberdade de expressão. essa contradição, no nível da descrição, é precisamente o que possi- bilita dar à argumentação a aparência de uma ponderação, exigindo a afirmação da validade e da relevância no ordenamento em geral da norma a ser descartada, já que em nada aplicável ao caso, a não ser como estratégia abusiva de defesa do réu. A própria decisão, por fim, termina por reconhecer que tal pretensão não seria alcançada pelo “âmbito de proteção” da norma. O preço do acolhimento dessa contradição para dar à argumentação a aparência de uma ponderação é o enfraquecimento da própria argumentação ao banalizar os direitos fundamentais indisponíveis apresentando-os como simples opções valorativas em abstrato do aplicador. Para tanto é preciso que 153Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios não se dê o devido destaque aos motivos concretos fundantes da decisão que decorre da análise das pretensões levantadas diante das especificida- des únicas daquele caso concreto e em face da integridade do Direito como um todo. assim, a consequência perversa de, no nível apenas da argumentação, não se afirmar expressamente o caráter indisponível dos direitos fundamentais, o seu papel de garantia dos cidadãos, é possibilitar que decisões opostas se coloquem sem qualquer fundamento mais profundo no exame do caso concreto. Com isso, a fundamentação de todas as possíveis posições dos aplicadores desloca-se do terreno do cotejo de adequabilidade das pretensões levantadas pelas partes em face das peculiaridades do caso concreto e da integridade do Direito, para o campo das preferências valorativas disponíveis, o que reduz a indisponibilidade dos direitos funda- mentais a uma discussão acerca de seu âmbito de abrangência. É exatamente tudo isso que foi dito acerca do custo de se buscar dar à fundamentação uma feição ponderativa que podemos consta- tar no trecho a seguir transcrito, conjuntamente com o fato de que o sentido nele atribuído como constitucionalmente válido ao direito à liberdade 154 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... de expressão é coerente com as exigências do ordenamento jurídico em sua integridade: não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcedível para o sistema democrático. todavia, é inegável que essa liberdade não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, tal como afirmado no acórdão condenatório.114 a mesma postura se percebe na passagem de martin Kriele transcrita no voto, ao evidenciar a conexão interna entre direitos fundamentais e democracia: O uso da liberdade que prejudica e finalmente destrói a liberdade de outros não está protegido pelo direito fundamental. Se faz parte dos fins de um direito assegurar as condições para uma democracia, então o uso dessa liberdade que elimina tais condições não está protegido pelo direito fundamental.115 114 BrasiL. HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti- semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. abrangência constitu- cional. Limites. Ordem denegada. relator orig.: min. moreira alves. relator para o acórdão: min. maurício Corrêa. <www.stf.gov.br>, supremo tribunal Federal, 2003. 115 KrieLe, martin. Introducción a la teoría del Estado. Buenos aires: De Palma, 1980. p. 475 apud Ibid. 155Capítulo 4 O Pós-Positivismo e a aplicação dos Princípios a revisita à nossa história institucional recente nos autoriza, assim, a afirmar a potencia- lidade democrática presente no incremento dos fragmentos de racionalidade que têm informado decisões também no âmbito do judiciário. Pois, apesar dos problemas de descrição normativa presentes em suas fundamentações, essas deci- sões, enquanto tais, revelam-se como as únicas corretas no sentido dworkiano. em que pese, como vimos, o prejuízo trazido para o aprofun- damento do debate interno das cortes acerca do papel dos direitos fundamentais como garantias dos cidadãos, podem, ainda assim, se provar capazes de discernir, no caso concreto — dado à força normativa desses fragmentos de racionali- dade e à eventual sensibilidade do aplicador —, a pretensão legítima das abusivas e de negar curso a essas últimas. exatamente por isso, é que são capazes de funcionar como orientação de correção normativa para a sociedade como um todo, de sorte a possibilitar ao Direito um enfrentamento consistente da tendência ao uso abusivo e mera- mente instrumental do próprio Direito. aspecto que, apesar dos problemas, ao fim e ao cabo, for- talece as possibilidades de consolidação de uma 156 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... democracia, ainda que “inesperada,” para usar o termo de Bernardo sorj,116 ao fornecer plausibili- dade à exigência do igual respeito e consideração devidos a todos os membros da comunidade jurídico-política inaugurada em 5 de outubro de 1988 e ressignificada recorrentemente consoante o disposto no §2º do seu art 5º. 116 sOrJ, B. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. rio de Janeiro: Jorge zahar, 2004. Capítulo 5 Afinal de Contas, o que uma Constituição Constitui? ao discutir com richard Posner porque não aceita a distinção entre direitos explícitos e implícitos (“direitos enumerados” e “direitos não-enumerados”), Ronald Dworkin afirma que conquanto a linguagem da Constituição, mais especificamente, da declaração de direitos, do Bill of Rights, empregue no mais das vezes os termos mais abstratos possíveis dos padrões de “correção política” (political morality), ela pode parecer, em alguns contextos, preocupada exclu- sivamente com os procedimentos. Ou seja, ela não imporia qualquer limite ao conteúdo das leis que governos viessem a adotar, ela apenas estipula- ria como o governo poderia promulgar e impor qualquer conteúdo nas leis a adotar. nesse passo, salienta que 158 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... a história jurídica rejeitou essa interpretação estreita e, no entanto, no momento em que entendemos que os dispositivos constitucionais são tão substantivos quanto procedimentais, o seu âmbito revela-se de uma amplitude espantosa (breathtaking). Pois fica claro então, que a declaração de direitos (Bill of rights) não ordena nada menos do que a determinação de que o governo trate a todos os sujeitos ao seu domínio com igual respeito e consideração, vedando-o de infringir as suas mais básicas liberdades, as liberdades essenciais, ou como disse o ministro Cardozo a idéia mesma de liberdade ordenada.117 Para Dworkin, a Constituição constitui assim uma comunidade fundada sobre princípios. mas o que significa uma comunidade que se alicerça sobre o reconhecimento recíproco da igualdade e da liberdade de todos e cada um de seus membros? Qual a natureza desses princípios de conteúdo moral, seria também moral e não jurídica? retomar os textos resultantes da discus- são entre ronald Dworkin e richard Posner permite-nos aprofundar na complexa relação 117 DWORKIN, R. The Concept of Unenumerated Rights. University of Chicago Law Review, 59, p. 381, 1992. 159Capítulo 5 Afinal de Contas, o que uma Constituição Constitui? complementar que, na visão do primeiro autor, entre si guardam a moral, o Direito e a política. Básica para que possamos efetivamente compre- ender todo o potencial reconstrutivo, inclusivo e democrático, de sua doutrina, que, no Brasil, é recorrentemente mal compreendida em razão de traduções muito pouco cuidadosas. Para richard Posner não seria possível falar de uma moral que transcendesse a moral indivi- dual ou de princípios morais universais. a moral seria particular, local. ela depende de tradições, de uma cultura, não sendo possível estabele- cer um denominador moral comum. não seria possível, por total ausência de critérios, julgar imoral, por exemplo, a discriminação dos judeus, dos comunistas ou dos portadores de sofrimento mental pelos nazistas. Quando reprovamos ati- tudes como essas, o fazemos a partir de nosso próprio ponto de vista. Para ele, no contexto das sociedades modernas só se poderia falar em plu- ralismo moral. Portanto, analisar o direito à luz da moral não seria possível, pois os juízes não podem decidir com base em suas crenças morais e nem poderiam, dado o pluralismo intrínseco à sociedade moderna. Posner posiciona-se, Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce 160 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... assim, frontalmente contra o que ele denomina moralismo acadêmico, à defesa da existência de uma moral universal. Dentre os autores que Posner designa moralistas acadêmicos ele inclui com destaque ronald Dworkin, com a sua teoria da única resposta correta. O que Posner denomina pluralismo moral, é, como vimos, na verdade, efetivamente pres- suposto da democracia e do constitucionalismo. Por herança do liberalismo, reconhece-se precisa- mente a possibilidade de distintas visões de mundo concorrentes conviverem simultaneamente. Contudo, contra Posner, há que se notar que essa pluralidade de visões de mundo só se torna possível a partir do reconhecimento da igualdade e da liberdade dos indivíduos. ao se declarar que todos os homens são livres e iguais por nascimento, as constituições e declarações de direitos não pretenderam dizer que todos os norte- americanos ou todos os franceses seriam mate- rialmente iguais. a ideia é que todos os homens, precisamente por serem homens, nascem livres e iguais. a moral pós-convencional é, pois, prin- cipiológica, reflexiva. É uma moral de princípios Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce 161Capítulo 5 Afinal de Contas, o que uma Constituição Constitui? extremamente abstratos, objetivos, universais, e que guardam uma tensão entre si. essa moral moderna, contudo, por ser extremamente abstrata, universal e interna, é por demais “fraca”, etérea, para impor, por si só, comportamentos vinculantes, obrigatórios. nesse contexto, retomamos a afirmação de richard Posner, segundo a qual ainda que exis- tissem princípios universais, esses não teriam a menor utilidade, uma vez que não seria possível extrair desses princípios soluções para os casos concretos. O autor, contudo, ignora, ou acredita impossível, a relação entre o Direito e a moral. De fato, a moral moderna é extremamente abstrata. Contudo, ao serem acolhidos como conteúdo do Direito, esses princípios extremamente abstratos ganham densidade como direitos fundamentais, tornando-se obrigatórios, impondo comporta- mentos externos. Direito e moral relacionam-se, não em um sen- tido de sujeição do Direito à moral, guardam, como vimos, uma relação de complementaridade. em que o Direito, ao recepcionar o abstrato conteúdo moral, fornece à moral maior densidade e concretude, recebendo da moral, por sua vez, legitimidade. Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce 162 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... Desse modo é que esse conteúdo quando incorporado ao Direito como direitos fundamen- tais, como princípios constitucionais, ou seja, como a igualdade reciprocamente reconhecida de modo constitucional a todos e por todos os cida- dãos, bem como, ao mesmo tempo, a todos e por todos é também reconhecida reciprocamente a liberdade, só pode significar, como histórica e muito concretamente pudemos aprender, a igualdade do respeito às diferenças, pois embora tenhamos diferentes condições sociais e materiais, distintas cores de pele, diferentes credos reli- giosos, pertençamos a gêneros distintos ou não tenhamos as mesmas orientações sexuais, deve- mos nos respeitar ainda assim como se iguais fôs- semos, não importando todas essas diferenças. Luíza Realce Luíza Realce Luíza Realce referências aLeXY, r. Discourse theory and Fundamental rights. In: MENÉNDEZ, Agustin J.; ERIKSEN, Erik O. Arguing Fundamental Rights. Dordrecht: springer, 2006. aLeXY, r. On the structure of Legal Principles. 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Ordem denegada. relator orig.: min. moreira alves. relator para o acórdão: min. maurício Corrêa. <www.stf.gov.br>, supremo tribunal Federal, 2003. 164 Menelick de Carvalho Netto, Guilherme ScottiOs Direitos Fundamentais e a (in)Certeza do Direito – a Produtividade das tensões... CarVaLHO nettO, m. D. requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, maio 1999. CHueiri, V. K. D. Before the law: Philosophy and Literature (the Experience of that Which one cannot Experience). Graduate Faculty of Political and Social Science, new York, new school university, Ph.D.: 262, 2004. DerriDa, J. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. são Paulo: martins Fontes, 2007. DWORKIN, R. A Matter of Principle. Cambridge, mass.: Harvard university Press, 1985. DWORKIN, R. Hart’s Postscript and the Point of Political Philosophy. In: DWORKIN, R. Justice in Robes. 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Formais: "Lugares"onde se encontra o Direito; 2.1 Escritas: Leis no sentido amplo + leis no sentido estrito + jurisprudência 2.2. Não-escritas: Costumes, Princípios gerais do Direito, vontade dos particulares 2.3 Indiretas: Doutrina LEIS NO SENTIDO AMPLO (MATERIAL): leis sentido estrito + outras espécies normativas; Must sources escritas, entram em vigor por decisão das autoridades competentes, elaboradas de acordo com algum procedimento fixado em norma superior. Visam regulamentar a organização da sociedade: Leis no sentido estrito: Leis Complementares, Ordinárias e Delegadas. Origem do Legislativo. Devem ser gerais, abstratas e impessoais. LC: m. absoluta das Casas legislativas, sanção Presidente, matérias indicadas na própria CF. LO: m. simples, sanção do Presidente, qualquer matéria que não seja de competência privativa de outras autoridades. LD: elaborada pelo Presidente após autorização do Congresso por meio de Resolução. P demais espécies normativas: CF, EC, MP, Decreto Legislativo, Resol., instruções, portarias, circulares, regulamentos, etc. CF: regras básicas de organização social, econômica, do Estado. Produto do poder constituinte originário. EC: cria novas normas na CF ou revoga existentes. Não pode abolir cláusulas pétreas. Aprovada por 3/5 de cada Casa Legislativa, votada em 2 turnos. Obs. CF/88 é considerada rígida. MP: Editadas pelo Executivo, SEM a autorização do Legislativo (serão apreciadas pelo legislativo somente após sua criação e para convertê-las em lei). Possuem força de lei. Há limitações quanto às matérias de MP's. DL: SEM sanção do Executivo. Matéria de exclusiva competência do Congresso Nacional Resolução: SEM sanção do Presidente. Assuntos de exclusiva competência da CD, SF ou CN. Decretos: elaborados pelo Presidente para concretizar leis. Não podem inovar o orden. jurídico. Instrução: Ministro de Estado. Regulamentar execução de leis, decretos, regulamentos. Portaria, circular, ordem de serviço: autoridades do Executivo para orientar a administração na execução das leis. Tratados Internacionais: fontes do direito nacional e internacional. Têm força de LO federal (m. simples). Há previsão de que se forem aprovados por 3/5 em 2 turnos terão força de EC. Jurisprudência: conjunto de decisões uniformes dos tribunais a casos semelhantes. Apresenta maior força vinculante que as decisões isoladas dos juízes e tribunais. (Should sources). - Súmulas: é um tipo de formalização da jurisprudência dos tribunais. Podem ser vinculantes (must sources) ou não (should sources). Súmulas Vinculantes: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei Obs. 1) Se Súmula for descumprida, seja ela vinculante ou não, caberá recurso. Se ela for Vinculante, cabe reclamação ao STF. 2) Em geral, as decisões isoladas dos juízes e tribunais possuem efeito vinculante apenas ao caso em questão (efeito intra partes), porém o Art. 102, §1º fala sobre decisões vinculantes (precedentes vinculantes) aos órgãos do judiciário e ao poder Executivo; São do tipo Must sources:" As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. " Costumes: fonte espontânea do direito. Hábito da obediência, aceitação pela comunidade, mutável no tempo. São fontes subsidiárias do direito (casos de lacunas) Princípios gerais do direito: fontes subsidiárias; São vagos, imprecisos, contraditórios (ex. ordem pública x liberdade individual) . May sources. Doutrina: Análise científica do Direito. Interpretação de professores universitários, pesquisadores. Escritos possuem pouca força jurídica (may sources) pois são opiniões pessoais dos autores. Segundo Dimitri, é uma fonte formal indireta. Para Thomas, não faz parte das fontes formais. Teoria Geral do Direito - parte I/Fontes do Direito.docx Fontes do Direito Fontes Materiais: Eventos, fatos, fenômenos da natureza, atos, fatores extrajurídicos, sociológicos que influem na produção do direito. Fontes Formais Atos autorizados pelo sistema jurídico a criar direitos. Fontes Formais Diretas Escritas Constituição: É o produto do poder constituinte originário e entra em vigor mediante uma decisão dos detentores do poder político. Ela fixa as regras básicas de organização do poder estatal e da vida social e econômica e configura as relações do Estado com os indivíduos e os outros Estados do mundo. É o texto normativo que possui a maior força jurídica no âmbito do ordenamento nacional, devendo todas as demais espécies normativas e atos de autoridades do Estado estar em conformidade com os mandamentos constitucionais. Emendas à Constituição: Esta espécie normativa altera o texto da Constituição, criando novas normas ou revogando as existentes. Deve ser aprovada pela Congresso Nacional, sendo exigido o voto de três quintos dos deputados e senadores e a observância de uma série de requisitos processuais. Seu poder é limitado, não podendo abolir as normas fundamentais da Constituição, as clausulas petreas. Leis: Lei ordinária: Deve ser aprovada pela maioria simples (metade + 1 dos presentes )do Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República. Regulamenta qualquer assunto que não seja de competência privatica de outras autoridades. Processo legislativo é idêntico ao da Lei Complementar, mas o coro de aprovação é diferente. Lei Complementar: Tem coro de aprovoção e especificidade das matérias diferentes da lei ordinária. Exige maioria absoluta (metade +1 dos membros totais). Limita-se a regulamentar assuntos importantes, indicados pela própria Constituição. - Não há hierarquia entre elas pois possuem o mesmo fundamento de validade. - Se uma invade a competência da outra? Quando era pra ser ordinária mas foi complementar é válida pelo quorum, mas o contrário é inconstitucional. Lei Delegada: Ato normativo elaborado pelo Presidente após autorização do Congresso por meio de resolução. Possui mesma força da lei ordinária e suas matéroas são restritas. Tratados Internacionais: Normas criadas por acordo internacional com participação de autoridades brasileiras. Incorporam-se ao direito brasileiro mediante lei ou ato equivalente a Emenda Constitucional. Medida Provisória: Atos normativos que, apesar de criados pelo Poder Executivo sem autorização do Legislativo, possuem força de lei formal. Pode ser editada pelo Presidente em casos de relevância e urgência, para introduzir um novo regulamento ou revogar leis ordinárias anteriores. Deve ser aprovada pelo Congresso Nacional no prazo de 120 dias após sua edição. Se for aprovada converte-se em lei ordinária, se não, perde sua validade. Decreto Legislativo: Ato normativo emitido pelo Congresso Nacional que não necessita de sanção do Presidente. Regulamenta assuntos de exclusivca competência do Congresso Nacional. Ex: autorizar referendo. Resolução: Ato normativo utilizados em assuntos de exclusiva competência da Câmara dos Deputados, Senado ou do Congresso Nacional. Não necessita sanção do Presidente. Ex: eleição dos membros do Conselho da República pela Câmara dos Deputados. Decreto e Regulamento: Normas elaboradas pelo Presidente da República com o objetivo de concretizar as leis no sentido formal, providenciando o necessário para sua aplicação. Instrução: Norma emitida por um Ministro de Estado para regulamentar a execução de leis, decretos e regulamentos. Portaria, Circular, Ordens de Serviço: Normas criadas por autoridades do Poder Executivo para orientar a atividade da administração na execução das leis. Súmula Vinculante: Súmulas editadas pelo STF vinculando os demais tribunais e o Poder Executivo. Limita a liberdade decisória dos julgadores e agiliza os processos. Jurisprudência: Fonte escrita do direito moderno que se encontra nas decisões dos tribunais, as sentenças e acórdãos. Fontes Formais Diretas Não Escritas Costumes: Reiteração constante e uniforme de uma conduta, convicção de esta ser obrigatória. Espécies: - segundo a lei: a lei se reporta expressamente aos costumes e reconhece a sua obrigatoriedade; é admitido em nosso ordenamento; -na falta da lei: a lei deixa lacunas que são preenchidas pelo costume; também é admitido em nosso ordenamento; -contra a lei: o costume contraria o que dispõe a lei; corrente majoritária não o aceita em nosso Direito. Princípios Gerais: Fonte do direito á qual se recorre em caso de silêncio do legislador. Assim como os costumes são fontes subsidiárias do direito, sendo aplicáveis em caso de faltas de normas escritas. São abstratos e genéricos, não permitindo decidir com certeza sobre sua aplicação no âmbito de uma subsunção. E é muito constante ocorrer uma colisão entre um ou mais princípios. Vontade dos Particulares: A doutrina reconhece que a vontade dos particulares constitui fonte formal de direito e a denomida de normação privada ou poder negocial. Fontes Formais Indiretas Doutrina: Interpretação da lei feita pelos estudiosos da matéria. Não possui formalmente força jurídica, são interpretações pessoais sobre o direito em vigor. Precedentes judiciais e súmula não vinculante: ? Teoria Geral do Direito - parte I/Metodologia_de_Savigny.pdf A METODOLOGIA DE SAVIGNY 1. No Curso de Inverno (1802), Savigny afirmava que a ciência da legislação (ciência do Direito) é primeiro uma ciência histórica e depois também uma ciência filosófica; a ciência do Direito deve ser a um só tempo e integralmente histórica e filosófica. 2. O termo “filosófico” significa, nestas lições, algo sistemático, não implicando aceitação dos princípios jusnaturalistas tradicionais, mas a idéia de uma unidade imanente, orientação que é comum ao Direito e à Filosofia (influência de Hegel). 3. A legislação acontece no tempo e isso leva a um conceito de história do Direito estreitamente ligada com a história do Estado e com a história dos povos. Por isso, deve-se distinguir uma elaboração interpretativa do Direito das elaborações histórica e filosófica. 4. Para uma elaboração interpretativa, o intérprete precisa colocar-se na posição do legislador e deixar que se formem na sua mente os respectivos ditamos (influência de Schleiermacher). Para atingir este objetivo, a interpretação precisa de três elementos: gramatical (particularidades de cada texto); lógico (significado de cada texto para o conjunto), e histórico (circunstâncias concretas do aparecimento da lei). 5. Uma elaboração histórica deve tomar o sistema no seu todo e pensá-lo como algo progressivo; uma elaboração sistemática (filosófica) deve interessar-se pelo múltiplo na sua articulação, tanto seguindo o desenvolvimento dos conceitos quanto a exposição das regras jurídicas segundo o seu nexo interno. 6. Nesses primeiros estudos, Savigny rejeita tanto a interpretação extensiva quanto a restritiva, demonstrando simpatia pelo positivismo legalista, ao afirmar que uma interpretação ampliadora ou extensiva da letra da lei é uma criação artificial do intérprete. Mesmo quando o legislador indica a razão da lei, diz Savigny, não o faz como parte da regra, mas apenas como um modo de esclarecimento, daí não poder ser utilizada como conteúdo para a interpretação. 7. Rejeita igualmente a interpretação teleológica, dizendo que o juiz deve ater-se ao que as palavras da lei preceituam, segundo o seu sentido gramatical e lógico, dentro do contexto sistemático. O juiz não tem de aperfeiçoar a lei de modo criativo, tem apenas que executá-la. O aperfeiçoamento da lei é possível, mas deve ser obra do legislador, não do intérprete. 8. O intérprete poderá, no entanto, usar a analogia como regra especial para casos não regulados. Tal procedimento não é nem restritivo nem extensivo da lei, na medida em que nada acrescenta a esta, mas é a própria legislação que por si própria se complementa. 9. Essas idéias foram profundamente alteradas quando Savigny passou a considerar como fonte originária do Direito o “volksgeist” (espírito do povo), a comum convicção jurídica do povo, o que ocorreu pela primeira vez na sua obra “Sobre a vocação do nosso tempo para a ciência da legislação”, onde afirma que a lei não brota por uma dedução lógica, mas por um sentimento e uma intuição (valorização dos costumes). Brota das típicas formas de conduta que são observadas pelo conjunto dos cidadãos, ou seja, as próprias relações da vida são reconhecidas como típicas do ponto de vista do Direito (importância do cotidiano). 10. Estas relações de vida (por ex: matrimônio, pátrio poder, propriedade, compra-e-venda) constituem-se nos 'institutos jurídicos', que estão na origem e na fundamentação do Direito, na medida em que se organizam como uma ordem social juridicamente vinculante.Estes institutos jurídicos se transformam no tempo no conjunto das relações humanas e nunca são inteiramente expostos pelo somatório das normas que lhes dizem respeito. Por isso, não são as normas que produzem os institutos jurídicos mas, antes, são essas regras que se extraem da intuição global dos mesmos institutos. É, pois, na intuição dos institutos jurídicos que as regras encontram seu último fundamento. Foi também a intuição dos institutos jurídicos que norteou o legislador na formulação das normas. 11. Assim como o legislador precisa ter sempre presente a intuição integral do instituto jurídico ao estabelecer a preceituação abstrata da lei, assim quem vai aplicar a lei precisa restituir-lhe o nexo orgânico do qual a lei mostra apenas um segmento. Isto quer dizer que o pensamento Luíza Realce jurídico deve sempre movimentar-se entre os planos concreto e abstrato, de modo a sempre conciliar intuição e conceito, onde a intuição representa o todo (fonte originária) e o conceito (a regra constituída) abrange somente um aspecto parcial, que precisa sempre ser alargado e retificado por intermédio da intuição. 12. Karl Larenz afirma que Savigny não explanou suficientemente este processo global que caracteriza a sua metodologia, não conseguiu mostrar como se faz o trânsito da intuição do instituto para a sua forma abstrata traduzida na regra jurídica e, por fim, para a intuição originária. (Esta idéia somente foi melhor esclarecida com a teoria de Gadamer sobre o círculo da compreensão, surgida no século XX. Larenz tenta descobrir um caminho pela análise lógica, mas não vislumbra saída.) 13. A falta de aprofundamento dessa metodologia proposta por Savigny, permitiu uma interpretação formalista do seu pensamento, preparando o caminho para o formalismo conceitual da Jurisprudência dos Conceitos. 14. No seu pensamento da maturidade, Savigny afastou-se daquela preferência positivista e legalista que defendera nos escritos da juventude. Ao dizer que o intérprete deve procurar repetir em seu espírito a atividade do legislador pela qual a lei surgiu, como que deixando a lei 'surgir' novamente, isto significa bem mais do que uma repetição de ações. Ao contrário, exige do intérprete uma atividade pensante própria, que o levará além do que o próprio legislador histórico teria pensado e colocado nas palavras da lei. Nessa atividade espiritual deve o intérprete, tal como o legislador, deixar-se orientar pela intuição do instituto jurídico, isto é, deve procurar, por trás dos pensamentos do legislador, o pensamento jurídico objetivo que se realiza no instituto jurídico. Admite assim uma interpretação restritiva ou extensiva da lei, antes rejeitada. É o início da teoria subjetivista da interpretação, que será desenvolvida depois principalmente por Windscheid e Bierling. 15. Da mesma forma, retoma Savigny a importância da interpretação teleológica, ao valorizar o fim ou a razão de ser da lei, admitindo a sua utilização no trabalho interpretativo, ainda que sempre com grande precaução. Quando a lei contém uma determinação genérica, deve atentar-se não apenas para o nexo interno, mas também o fim especial desta lei, na medida em que este seja comprovável. Isso torna possível alcançar o verdadeiro 'pensamento da lei', efetivando uma retificação que impeça a aplicação da norma em contradição com os seus fins. Fonte: Metodologia da Ciência do Direito – Karl Larenz Resumo elaborado pelo Prof. Antonio Carlos Machado Fortaleza, janeiro de 2008. Teoria Geral do Direito - parte I/Minimalismo sunstein vermeule p tgd.docx O modelo de minimalismo judicial de Sunstein e Vermeule 1. A defesa do modelo minimalista e formalista de interpretação do direito por Cass Sunstein e Adrian Vermeule Em sua teoria "institucionalista" da interpretação, Adrian Vermeule sustenta que nenhuma teoria interpretativa pode ser defendida sem cuidadosas considerações empíricas acerca das capacidades interpretativas das instituições e dos efeitos sistêmicos que a alocação de poder de decisão gera para a sociedade. O autor adota um ceticismo quanto ao que ele denominou de teorias do tipo ideal (first-best theories) da interpretação constitucional, que tentam "deduzir regras operativas de interpretação diretamente dos mais elevados compromissos conceituais da constituição", como as concepções de "democracia, ou estado de direito, ou constitucionalismo, ou uma perspectiva teórica sobre a autoridade do direito ou a natureza da linguagem jurídica". A despeito de admitir que qualquer teoria da interpretação, incluindo o seu próprio modelo formalista, exige algum tipo de teoria valorativa que contenha uma descrição do "que torna as consequencias de uma decisão boas ou más", ele entende que teorias gerais da democracia ou de qualquer outro conceito político são muito abstratas para ajudar a escolher entre alternativas interpretativas plausíveis que possam estar disponíveis para o intérprete. Nenhuma teoria do tipo ideal pode, "nem mesmo em princípio, levar a quaisquer conclusões sobre o desenho institucional dos processos de decisão interpretativa", uma vez que "questões empíricas sempre e necessariamente intervêm entre as premissas de alto grau de abstração, de um lado, e as conclusões sobre os processos de decisão que devem ser usados no nível operacional do sistema jurídico, de outro lado". A introdução de uma "análise institucional", portanto, se torna uma condição necessária, ainda que não suficiente, para a valoração dos métodos de interpretação, e será incompleta qualquer teoria interpretativa que careça de um exame empírico tanto das capacidades interpretativas das instituições às quais se confia a interpretação da constituição, quanto dos efeitos sistêmicos das "interações entre as instituições". [1: Vermeule, Adrian. Judging Under Uncertainty. Cambridge, MA: Belknap. 2006, p. 2. ][2: Idem, p. 71. ][3: Idem, p. 13. ][4: Idem, p. 81.][5: Idem, p. 85.][6: Idem, p. 13.] Sem embargo, essa "virada institucional" está baseada também em uma segunda pretensão que é mais ambiciosa, segundo a qual em alguns casos "uma análise não-ideal (second-best assessment) de questões institucionais pode não apenas ser necessária, mas também suficiente para resolver conflitos sobre teorias interpretativas, já que pessoas com diferentes premissas teóricas podem concordar quanto a uma estratégia interpretativa particular no nível operacional. [7: Idem, p. 82.] Este argumento está baseado na possibilidade de um "acordo não completamente teorizado" ("incompletely theorized agreement") no sentido defendido por Cass Sunstein. De acordo com essa visão, pessoas que discordem sobre princípios morais abstratos podem tentar realizar uma "descida conceitual", é dizer, uma descida para "um nível mais baixo de abstração" com vistas a alcançar um consenso sobre "resultados concretos" ao invés de abstrações gerais. De acordo com Sunstein, "O acordo sobre esses pontos, mais particulares do que os seus fundamentos justificadores, é incompletamente teorizado no sentido de que os participantes relevantes estão de acordo quanto à prática ou ao resultado sem concordar quanto à teoria mais geral que leva até ela. Muitas vezes as pessoas podem chegar a um acordo sobre um argumento descendo o nível da discussão para princípios específicos ou de nível de generalidade intermediário. Eles podem concordar que uma regra - proteger dissidentes políticos, permitir que trabalhadores pratiquem suas religiões - faça sentido mesmo não concordando inteiramente nos fundamentos de suas crenças".[8: Idem, p. 51.] A possibilidade de acordos incompletamente teorizados sobre a teoria da interpretação correta para uma determinada instituição, portanto, permite aos teóricos pôr de lado as teorias valorativas nas quais eles devam basear suas decisões no nível operacional. Isso implica que a "análise institucional pode até mesmo capacitar os intérpretes para escolher doutrinas particulares antes, ou no lugar de, escolher uma teoria valorativa que especifique o que conta como uma consequência boa ou má de uma prática interpretativa". A título de exemplo, Vermeule acredita que [9: Idem, p. 82-83. ] "Se, diante de certa descobertas empíricas, ficar claro que a história legislativa deve ser excluída segundo qualquer teoria geral que especifique o que é uma interpretação boa ou má, então no se que refere à questão interpretativa, não haveria necessidade de se escolher uma teoria fundamental". [10: Idem, p. 83.] A proposta de Vermeule é, portanto, admitidamente antiteorética, pois ele sustenta que a maior parte das desavenças teóricas nos debates metainterpretativos (é dizer, nos debates sobre a escolha das teorias da interpretação) devem ser "descartadas por irrelevantes no que concerne aos problemas operacionais"[11: Idem, p. 63.] Uma análise empírica da performance de um método de interpretação para nossas instituições deve, portanto, se afastar de elucubrações teóricas e prover uma resposta razoável para pelo menos as seguintes questões, que lidam com dados empíricos relevantes para se determinar a aptidão das instituições para a interpretação jurídica: 1) A primeira questão, como argumentam Sunstein e Vermeule, é "se e em que medida decisões formalistas que produzem erros claros serão corrigidas pelo legislador, e se as correções terão custos baixos ou elevados".[12: Sunstein, Cass; Vermeule, Adrian. "Interpretation and Institutions". Michigan Law Review, vol. 101, 2003, p. 885-ss, esp. p. 917.] 2) A segunda questão, por sua vez, é "se um judiciário não formalista irá elevar muito os custos de decisão para os tribunais, litigantes e as pessoas que procuram consultoria jurídica. Uma questão importante aqui envolve o planejamento; se propostas não formalistas tornam o planejamento impossível ou difícil, há um sério problema". [13: Idem, p. 918. ] 3) Finalmente, a terceira questão é "se um judiciário formalista ou não formalista, em um ou outro domínio, irá produzir erros e injustiças".[14: Idem, p. 918-9.] Essas questões, para Vermeule, se referem principalmente às "capacidades institucionais" e aos "efeitos sistêmicos" das teorias da interpretação, que segundo a sua proposta são as variáveis mais importantes que devem ser consideradas para se estabelecer uma teoria da interpretação. Se essa estratégia meta-interpretativa for consistentemente empregada, então Vermeule pensa que os intérpretes não terão dificuldades para concluir que os juízes devem adotar um método formalista de interpretação jurídica, seguindo "o significado claro e específico dos textos jurídicos, onde esses textos tenham significados claros e específicos", e adotando "as interpretações oferecidas pelos legisladores e agências regulatórias, onde os textos legislativos careçam de significados claros e específicos". Ao se interpretar a constituição, os juízes devem "evitar pretensões de alto grau de abstração sobre o constitucionalismo, a democracia, a natureza do direito" e "aplicar os textos constitucionais claros e específicos de acordo com o seu significado superficial", já que esse procedimento "irá produzir as melhores consequências práticas para as instituições jurídicas". [15: Vermeule, Judging Under Uncertainty, cit., p. 1. ][16: Idem, p. 33.] Embora Vermeule ofereça outras considerações institucionais para fundamentar esse método formalista de interpretação constitucional, minha impressão é de que o seu argumento principal para essa visão é a (empiricamente verificável) "superioridade epistêmica" dos legisladores sobre os tribunais, o que deveria levar os juízes a defender uma "constituição codificada ou enrijecida" e a interpretar os textos constitucionais no mais baixo nível possível de abstração, ao invés de seguir o conselho de Dworkin e ler os princípios morais da constituição no seu "mas elevado nível possível de generalidade".[17: Vermeule, Adrian. Law and the Limits of Reason. Oxford: OUP, 2009, pp. 11-12, 90. ][18: Idem, p. 187.][19: Dworkin, Ronald. Freedom's Law ;The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge, MA: Belknap, 1999, p. 7.] Segundo a compreensão de Vermeule sobre as instituições, "os principais fatores determinantes da performance epistêmica, para grupos, são a numerosidade, a diversidade e a competência mediana dos seus membros. Todas essas variáveis, no juízo de Vermeule, apontam para a superioridade epistêmica dos legisladores sobre os juízes. Primeiramente, "há muito mais legisladores em uma típica legislatura nacional do que juízes em altas cortes constitucionais", e essa numerosidade é "um importante recurso espitemológico". [20: Vermeule, Law and the Limits of Reason, cit., p. 90.][21: Idem, p. 11.] Em segundo lugar, as legislaturas são "mais representativas do que os tribunais, e a representação produz conhecimento". Vermeule segue a Bentham na premissa de que a representação "dá aos legisladores mais informações sobre as condições locais e os juízos sociais e as preferências sociais, informações essas que os juízes não podem pretender ser capazes de compreender". Enquanto o legislador tem o benefício de um entendimento mais preciso dos juízos sociais e das preferências da sociedade em questões políticas particulares, os juízes são via de regra servidores públicos falíveis e mal informados que padecem de um maior risco de erro quanto eles enfrentam o desafio de examinar juízos abstratos sobre valores e políticas. A ideia de se buscar a "história legislativa" de um texto, por exemplo, está sujeita ao risco de erro judicial porque os juízes "carecem da capacidade completa de remediar a ausência de informação decorrente do elevado volume de história legislativa".[22: Idem, p.11 (tradução alterada).][23: Idem, p. 11-12, 90.][24: Vermeule, Judging Under Uncertainty., ][25: Idem, p. 111. ] E finalmente, e como Vermeule diz "fundamentalmente", os legisladores têm uma superioridade epistêmica devida a sua diversidade maior do que a de um típico judiciário moderno. A "diversidade profissional dos legisladores reduz o 'pensamento de grupo' ("groupthinking) - isto é, a correlação positiva de preconceitos entre os membros do grupo tomador de decisões - e isso é uma importante fonte de força epistemológica". [26: Vermeule, Law and the Limits of Reason, cit., 11. ] Uma instituição mais diversificada e mais numerosa, portanto, pode superar a performance de um grupo menos diversificado de experts ultra-competentes, tal como um sistema judicial encabeçado por uma corte de apelação com vários membros.[27: Idem, p. 12.] Isso leva a uma rígida defesa do formalismo judicial, ainda que esse formalismo seja compensado por um método mais permissivo para a interpretação das leis pelas agências reguladoras e pela administração.[28: Sunstein; Vermeule. "Interpretation and Institutions", cit., p. 925-932.] Vermeule e Sunstein sustentam, portanto, com fundamento na ideia de acordos não completamente teorizados, uma postura minimalista do judiciário, que é chamado a decidir "um caso de cada vez", deixando sem solução as questões laterais e evitando prolatar decisões que possam servir de base para grandes construções doutrinárias. Deve, também, buscar limitar a discricionariedade judicial e elevar o grau de previsibilidade, atendo-se à letra e ao sentido superficial dos textos legislativos. [29: Sunstein, Cass. One Case at a Time - Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge, MA: Belknap, 2001, p. 4-ss.] 2. A réplica de autores como Dworkin A concepção de Sunstein está exposta a uma objeção fundada que foi aduzida por Dworkin em seus escritos críticos ao pragmatismo de Chicago. Com efeito, Dworkin acusa Sunstein de defender um argumento antiteórico que produz uma espécie de paralisia do processo democrático, uma vez que este depende de discussão e deliberação para florescer. A estratégia de adoção de "acordos teorizados de forma incompleta" teria o grave inconveniente de retirar de cada ator social a responsabilidade de justificar publicamente as suas decisões. Como o leitor provavelmente depreende das lições anteriores, a ideia de Sustein de que a deliberação deve ser evitada é incompatível com a teoria da argumentação de MacCormick, uma vez que este último autor considera a divergência um elemento essencial para o Estado de Direito. Nesse sentido, "a indeterminação do direito não é meramente (embora também seja) um resultado do fato de que os estados comunicam os seus materiais jurídicos em uma linguagem natural ('oficial'), e esta linguagem está atingida por ambiguidade, vagueza ou textura aberta. Ela também deriva do, e é também ampliada pelo, reconhecimento dos 'direitos da defesa' em todo o contexto de litigiosidade criminal ou civil". Apenas uma argumentação que se oriente pela ideia de uma coerência com os princípios fundamentais do sistema poderia trazer essa indeterminação do direito para um nível tolerável. E essa ideia de coerência aponta para uma "reconstrução racional" do sentido dos materiais (fontes) jurídicos. Seguindo expressamente a Dworkin, MacCormick sustenta que a reconstrução racional desses materiais "é um método de lidar com a interpretação e a elucidação de grandes corpos de dados e materiais no contexto das humanidades". Essa tarefa de interpretação e elucidação, por sua vez, "envolve a seleção desses materiais envolvidos na massa ainda não analisada e a reconstrução deles de um modo que os torne compreensíveis porque são partes de um todo coerente e bem ordenado". [30: Dworkin, Ronald. Justice in Robes. Cambridge, MA: Belknap, 2006, p. 66. ][31: MacCormick, Neil. Rhetoric and the Rules of Law. Oxford: OUP, 2005, p. 26. ][32: Idem, p. 29.] Teoria Geral do Direito - parte I/NOTAS SOBRE A TEORIA DOS PRINC�PIOS DE ROBERT ALEXY.pdf 117 NOTAS SOBRE A TEORIA DOS PRINCÍPIOS DE ROBERT ALEXY Natália Braga Ferreira* RESUMO O artigo pretende analisar o tema da colisão de princípios constitucionais a partir do estudo da teoria dos princípios de Robert Alexy, com o objetivo de demonstrar os principais fundamentos e críticas a essa teoria, que aponta a ponderação como a a solução mais adequada para a colisão de principios. Apesar das objeções existentes, é possível através da ponderação obter, na maioria dos casos, uma solução adequada à colisão de princípios, garantindo sua normatividade e preservando a Constituição. PALAVRAS-CHAVE Direito Constitucional; Teoria dos Princípios; Colisão de Princípios; Ponderação; Robert Alexy. NOTES ON THE THEORY OF PRINCIPLES OF ROBERT ALEXY ABSTRACT This article aims to analyze the theme of the collision of constitutional principles, based upon the theory of Robert Alexy. The main object is to demonstrate the basis as well as the criticism to his theory, which defends ponderation as the most adequate solution to the problem generated by the collision of principles. Despite the objections, it is possible to guarantee by means of ponderation an optimal answer to the collision of principles, at least in most of the judicial cases. If this is true, a solution capable of sustaining the normativity of the constitutional principles - and the normativity of the Constituion itself - may be achieved. KEYWORDS Constitutional Law; Theory of Principles; Collision of Principles; Ponderation; Robert Alexy * Advogada. Especialista em Direito, Estado e Constituição. Bacharel em Direito pelo UNICEUB. Pesquisadora do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Colaboradora da Defensoria Pública da União. 118 1-INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo analisar o tema da colisão de princípios sob o prisma jusfilosófico de Robert Alexy. A relevância do tema se justifica diante da virada ocorrida principalmente a partir da segunda metade do século XX, quando os juristas europeus passaram a reconhecer o caráter normativo dos princípios inscritos na Constituição, que deixaram de ser considerados meras recomendações morais, tal como postulado pelos teóricos positivistas. A partir do momento em que os princípios, assim como as regras, são aceitos como espécies do gênero norma, surge um novo problema: o que fazer quando dois princípios constitucionais (e, portanto, de mesma hierarquia) representarem interesses contraditórios? Se, por exemplo, face a um caso concreto, o direito à intimidade conflitar com a liberdade de expressão, deve o juiz realizar uma escolha binária? Ou será que a colisão de princípios transcende os critérios clássicos de resolução de antinomias entre regras? Na filosofia do direito contemporânea, uma das respostas mais consistentes ao referido problema foi formulada por Robert Alexy, que aponta a ponderação como o pilar que permite não apenas resolver eventuais colisões de princípios, como também manter sua normatividade sem que sejam excluídos do ordenamento jurídico. Não é por outra razão que aprofundar seu pensamento constitui um imperativo para todos aqueles que pretendam conceber o ordenamento constitucional como algo mais que um rol exaustivo de regras. 2- A DISTINÇÃO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS SOB A ÓTICA DE ROBERT ALEXY A metodologia jurídica tradicional utilizava-se de critérios como generalidade e abstração para diferenciar regras e princípios, deixando de lado qualquer consideração de ordem qualitativa. Essa é a forma de distinção, por exemplo, utilizada por Norberto Bobbio, quando ele define os princípios como “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais”(BOBBIO: 2003, p.81). Considerando critérios dessa ordem, Alexy afirma haver três teses acerca da distinção entre regras e princípios. A primeira alega a impossibilidade de divisão das normas em classes de regras e princípios, devido a pluralidade existente. Já a segunda é sustentada pelos que consideram que pode haver uma distinção relevante entre regras e princípios, mas que essa distinção é meramente de grau. Por fim, a terceira afirma que as normas podem 119 dividir-se em regras e princípios, porém a diferença não é meramente gradual, mas também qualitativa. Para o autor alemão, a última tese é a correta, pois apresenta o que ele denomina de critério qualitativo, o qual permite distinguir com precisão as regras e os princípios. Essa forma de distinção proposta por Alexy parte da dicotomia entre regras e princípios elaborada por Ronald Dworkin. Para Dworkin, a distinção entre regras e princípios tem natureza lógica e pode ser definida pela natureza da orientação que oferecem para o caso. Assim, as regras são aplicadas da maneira do tudo-ou-nada, de forma que “dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (DWORKIN: 2002, p.39). Portanto, a partir do momento em que uma regra é considerada válida e seus pressupostos são verificados concretamente, a sua aplicação deve ocorrer de forma imediata. Dworkin não descarta a hipótese de que as regras possam ser excepcionadas por alguma circunstância, entretanto, ele aduz que o enunciado da regra só estará completo se contiver todas essas exceções. Por outro lado, ele defende que a aplicação dos princípios ocorre de uma maneira mais complexa, pois embora eles possam orientar a direção do intérprete, não basta que as condições sejam dadas para que os resultados jurídicos sejam determinados de modo binário. Outro ponto colocado por Dworkin é que os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Assim, enquanto o conflito de regras é resolvido através da utilização de critérios clássicos como a hierarquia ou a especialidade, declarando-se a invalidade de uma delas, o conflito de princípios é solucionado sem que um deles seja retirado do ordenamento jurídico, devendo ser observada a importância ou força relativa de cada um deles, no caso concreto. Nesse contexto, embora os princípios indiquem uma direção a ser seguida, continua sendo necessária uma decisão particular e a construção de uma linha de interpretação acerca das condições presentes no caso, pois pode haver outros princípios que indiquem uma direção contrária. Nesse sentido, Dworkin conclui que a prevalência de um princípio em um caso concreto, depende das condições que estarão presentes e que do fato dele não ser 120 aplicado não poderá seguir uma conclusão imediata de que ele deve ser retirado do ordenamento jurídico. Embora o critério acima tenha sido utilizado como ponto de partida para a distinção qualitativa elaborada por Robert Alexy, o autor ressalta que Dworkin não chegou ao núcleo da distinção entre as duas espécies normativas: a concepção de princípios como mandamentos de otimização. 2.1. Os princípios como mandamentos de otimização e a especificidade de seu caráter