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Para Saulo, 
que honrará nossa Brodowski, 
lembrança afetuosa do 
Portinari 
Brodowski 1953 
S A U L O R A M O S 
 
 
 
 
 
 
CÓDIGO DA VIDA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
8a reimpressão 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Copyright © Saulo Ramos, 2007 
 
Coordenação editorial: Pascoal Soto 
Preparação de texto: Fabiana Medina 
Revisão: Tulio Kawata 
Diagramação: Nobuca Rachi 
Capa: 6P Marketing & Propaganda 
 
 
 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 
 
Ramos, Saulo 
Código da vida / Saulo Ramos. — São Paulo : 
Editora Planeta do Brasil, 2007. 
 
Bibliografia 
ISBN 978-85-7665-279-3 
 
1. Juristas — Autobiografia 2. Memórias autobiográficas 
3. Ramos, Saulo I. Título. 
 
07-2513 CDD-923.4 
 
Índices para catálogo sistemático: 
1. Juristas : Memórias : Autobiografia 923.4 
 
 
 
 
Esta obra é uma autobiografia, 
sendo de inteira responsabilidade do autor 
as informações nela contidas. 
 
 
 
 
 
 
hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee 
 
 
 
 
 
2007 
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Planeta do Brasil Ltda. 
Avenida Francisco Matarazzo, 1500 — 3º andar — conj. 32B 
Edifício New York 
05001-100 — São Paulo-SP 
vendas@editoraplaneta.com.br 
 
CCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAA CCCCCCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA 
Saulo: 
Acho que esta citação de Rivarol foi feita pensando no seu livro: 
“O gênio e o talento: o historiador e o romancista fazem entre eles 
uma troca de verdades, de ficções e de cores para dar vida ao que 
não é mais.” 
Beijos do amigo de sempre, 
JÔ SOARES 
 
OOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS DDDDDDDDOOOOOOOO LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVRRRRRRRROOOOOOOO 
Quando chegou aos meus ouvidos a notícia de que Saulo 
Ramos, um dos nossos mais ilustres juristas, estava próximo de 
concluir um livro, confesso que hesitei. Num primeiro momento, 
imaginei se tratar de um livro puramente acadêmico, dirigido aos 
especialistas da área do Direito. Mas a notícia me havia sido dada 
por Jô Soares, conhecido no meio editorial como um grande 
descobridor de tesouros. Sem maiores delongas, pedi os manuscritos 
e me embrenhei na leitura do catatau: sim, os manuscritos somavam 
mais de seiscentas páginas. 
Mas foi exatamente neste momento que começou o meu 
drama... Durante quase duas semanas, esses manuscritos me 
acompanharam de maneira implacável. Carreguei-os para todos os 
lugares, dos mais óbvios aos inconfessáveis. Desde o momento em 
que li suas primeiras páginas, interromper a leitura me doía. Percebi 
que estava diante de um daqueles livros que nós, editores, desejamos 
em nossos melhores sonhos. 
Código da Vida é livro para ser degustado demoradamente. 
Nele, a pretexto de contar, com todos os detalhes, um caso 
curiosíssimo que viveu como advogado, Saulo Ramos entremeia essa 
história de suspense absolutamente verídica com sua história de 
vida, desde a infância nas cidades paulistas de Brodowski e 
Cravinhos, até os dias de hoje. 
Desobedecendo todas as obviedades da estrutura tradicional 
das biografias, Saulo Ramos constrói uma obra de qualidade 
espantosa, seja pela riqueza vocabular de sua linguagem, seja pela 
maestria com que utiliza os recursos literários de uma narrativa. 
Mas, como se isso não bastasse, a vida de Saulo Ramos tem 
ingredientes dignos das mais importantes biografias já publicadas no 
Brasil. 
Como o menino do interior chegou a Consultor Geral da 
República e a Ministro da Justiça? Saulo, às vezes, responsabiliza o 
acaso, as coincidências. Será? 
Os fatos que o autor presenciou na vida pública brasileira têm 
início no ano de 1961, quando o advogado recém-formado passa a 
exercer a função de oficial de gabinete do Presidente Jânio Quadros 
em Brasília. A partir daí, o Brasil experimentou tantas tragédias, 
tantas conquistas, tantos conflitos, tantas ilusões, tantas 
desilusões... Saulo Ramos, às vezes como espectador, às vezes como 
personagem dos fatos, às vezes como crítico, nos conta tudo, quase 
sempre sob um novo ângulo, e ainda nos revela fatos até hoje 
guardados em segredo. 
Respire fundo, leitor. Você tem uma grande história nas mãos. 
 
PASCOAL SOTO 
Este livro foi escrito sob coação. 
Denuncio os coatores: 
Jô Soares, 
Ovídio Rocha Barros Sandoval, 
José Maria Costa e 
Napoleão Sabóia. 
Explicação necessária 
Não raramente, os escritórios de advocacia cuidam de casos 
que, na vida real, ultrapassam, em emoção e suspense, os romances 
de ficção, os filmes de mistério, drama, ação e comédia, as novelas de 
televisão. Mas acabam nos arquivos. O sigilo profissional impõe aos 
advogados o dever do silêncio eterno. O público jamais conhecerá 
essas histórias fascinantes dos dramas humanos vividos nos 
processos que correram em segredo de justiça. 
Resolvi contornar essa regra ética, sem quebrá-la. Neste livro, 
narro um desses casos, trocando os nomes das pessoas. É 
impactante.1 Uma senhora acusa o ex-marido de praticar atos 
obscenos com os próprios filhos menores e propõe contra ele ação 
judicial para extinguir seu direito de ver as crianças. O juiz concede 
medida liminar e proíbe o pai de ter qualquer contato com os 
menores. 
Desesperado, o pai procura um advogado, que se recusa a 
defendê-lo. A prova é cruel: uma gravação. Os filhos contam atos 
terríveis e imorais que foram forçados a praticar. 
Ameaçando suicidar-se, o cliente pede socorro ao meu 
escritório. Meus companheiros e eu aceitamos a causa. Começa 
nesse instante uma longa, fantástica e emocionante história de 
conflitos incríveis. Ódio, psicose, amor. Atuação de um Magistrado 
excepcional e de um Curador de Família exemplar, expoentes do 
Judiciário brasileiro. Advogados trabalhando como detetives. 
Batalhas de inteligência, raciocínio, jogos de deduções. Enigmas que 
atormentam os profissionais do Direito, mas eles sabem como 
 
1 A palavra “impactante” não existe nos dicionários. Com perdão dos ilustres cultores 
da nossa querida língua, inculta e bela, os dicionários estão atrasados. 
resolvê-los. 
A morosidade no andamento dos processos judiciais e a 
dificuldade na cuidadosa produção de provas permitem-me jogar 
com um tempo virtual e, assim, interromper a narração em vários 
pontos, aproveitando para contar fatos da vida pública de nosso país, 
alguns dos quais os brasileiros não conhecem em detalhes. Claro que 
me limito àqueles com os quais o destino fez minha vida cruzar. 
Descrevo as espantosas circunstâncias em que tudo isso se deu. 
Algumas cheias de mistérios, que até hoje não entendi. Talvez os 
leitores saibam explicar, decifrando os códigos da vida, que nada têm 
com o DNA, mas que formulam questões em torno dos imprevisíveis 
caminhos dos destinos. 
Fui um menino pobre do interior de São Paulo. Comecei a vida 
como caminhoneiro, ingressei no jornalismo e, depois, na advocacia 
pela mão de um gênio: Vicente Ráo, por meio de intriga urdida por 
um grande poeta, Guilherme de Almeida. Como pôde isso ter 
acontecido? 
A advocacia foi meu sacerdócio, minha desgastante e suave 
obsessão. Irresistível é o fascínio de lutar pela defesa do direito de 
alguém. Salvar liberdades, honras, patrimônios de toda espécie, 
materiais e morais. Poder ajudar na cura de feridas abertas na alma 
dos injustiçados, pobres ou ricos. Foi um longo caminho, com 
muitas pedras no meio, inclusive as atiradas contra mim, que usei 
na construção deste livro. 
No trajeto,
porém, conheci Jânio Quadros, bebendo caipirinha 
num bar do Guarujá, e, depois, presenciei a tragédia de sua 
renúncia à Presidência da República, o que resultou em regime 
militar durante 21 anos. Conheço detalhes inéditos. Por que eu 
estava lá? É um dos códigos da vida que preciso decifrar. 
Os processos judiciais enfrentados na ditadura. Florestan 
Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Vladimir Herzog, 
cadernetas Prestes. Impossibilidade de defender os acusados 
mediante invocação do Direito. Processo que fiz desaparecer. 
Humilhação da Igreja Católica perante os militares. 
Fatos e coincidências vão acontecendo. Conheci Mário Covas, 
lancei-o, a pedido de Jânio, candidato a prefeito de Santos. Perdeu a 
eleição. O candidato eleito morreu antes da posse. Demanda no 
Judiciário contra a investidura do vice. Vinte e cinco anos depois, 
ocorre caso semelhante com a doença de Tancredo Neves, e vem a 
oposição à posse de José Sarney. Novamente, Mário Covas e eu 
envolvidos pelo destino no desate da questão, ele de um lado, eu do 
outro. Por que eu estava lá? Fico um pouco arrepiado, por não 
desvendar a codificação que esses fatos desenham em minha vida. 
Vem a Assembléia Nacional Constituinte, ocorrência mais 
importante da história contemporânea do Brasil. O que aconteceu 
nos bastidores? Tentativa de golpe parlamentar de Estado, quando 
os canhões dos militares ainda estavam fumegando. E muitos 
tramavam voltar ao poder. Eu estava lá. O que fiz e por quê? 
Aceitei participar do Governo Sarney. Passei a viver espantos 
sucessivos. O Brasil não tinha advogados para defender a União. 
Coisa fantástica! O país dos bacharéis sem defensores judiciais. E 
não havia, igualmente, lei que regulasse a licitação pública e o 
contrato administrativo. O Brasil era um país incrível. Como poderia 
existir sem esse mínimo de disciplina jurídica? Dá para acreditar? 
Não tinha sequer uma lei de defesa dos direitos dos deficientes 
físicos! Não possuía nada que protegesse os bens de família, a não 
ser uma velharia complicada do antigo Código Civil. 
Tantos e tão diversos problemas tive que resolver. Eram 
deficiências do meu país. Já que eu estava lá, o melhor era procurar 
as soluções em vez de perguntar o porquê de estar lá. 
Por que um menino do interior chegou a Consultor Geral da 
República e a Ministro da Justiça, quando desejava apenas ser 
advogado? 
Impeachment de Fernando Collor. Processo no Supremo 
Tribunal Federal. Advogado do Senado da República, o que sofri para 
vencer aquela causa! Fatos que nunca vieram a público. Terminado o 
julgamento, pensei comigo: isso nunca mais vai acontecer no Brasil. 
Imperdoável ingenuidade. Aconteceu e, pior, a tal ponto que o 
processo de Collor poderia hoje passar para o juizado de pequenas 
causas. 
Conto tudo, mas procuro ser breve, porque o principal é a 
história das crianças submetidas a um simbólico, mas feroz, tiroteio 
entre os pais separados. O julgamento emocionante, conduzido por 
um juiz fabuloso. E o incrível desfecho da história mais de vinte anos 
depois em Londres, cidade predileta dos escritores de mistérios 
policiais. 
Aproveito para narrar, sem quebra da ética, algumas histórias 
curiosas de várias pessoas célebres com as quais me envolvi no 
exercício profissional: Roberto Carlos, Che Guevara, José Sarney, 
Sérgio Armando Frazão, Ronaldo Cunha Lima, Alceni Guerra, 
Eurícledes Formiga, José Frederico Marques, Mário Simonsen, 
Juscelino Kubitschek, Lázaro Brandão, Celso da Rocha Miranda e 
outros. 
Espero que tais fatos esclareçam algumas interrogações 
daqueles que os viram acontecer e sejam úteis para as novas 
gerações, que ainda dependem dos historiadores, nem sempre muito 
fiéis, segundo tenho visto em isoladas manifestações de jornais. Mas 
advirto: os fatos são aqui narrados numa espantosa desordem 
cronológica, porém fielmente. Detesto a manipulação do passado e o 
mascaramento de versões. 
Agora elucido: não pedi a nenhum dos meus amigos para 
redigir prefácio a este livro. Por quê? Para não comprometê-los. Nas 
minhas narrativas, faço críticas amargas a ministros do Supremo 
Tribunal. Cheguei a mandar um deles à merda. Censuro 
severamente políticos, suas mazelas e mediocridades, e as tentativas 
de golpe na Constituinte. Denuncio os agentes da ditadura que 
cruzaram meu caminho. Qualquer amigo que prefaciasse este livro 
poderia ser considerado pelos criticados como avalista das 
chibatadas desferidas contra essa gente. 
Claro que examino, com repulsa, a putrefação do governo Lula 
e a patriótica corrupção do Partido dos Trabalhadores, que fundou, 
afundando-se, a escola da imoralidade para fazer o bem público e 
que acabou na vida privada de seus agentes batendo uma lamentável 
espécie de recorde na história brasileira das grandes vergonhas. Ou 
da falta delas, inclusive a de deixar os pobres cada vez mais pobres 
para industrializar esmolas em troca de votos. A descompostura, a 
desonra, a rapinagem e a iniqüidade da corrupção, explicada como 
singela esperteza eleitoral não contabilizada e por costumeira.2 
Esperteza eleitoral vitoriosa para mais uma temporada de 
incontáveis desastres “nunca antes neste país” ocorridos. 
Todos os fatos aqui narrados são absolutamente verdadeiros, 
com nomes fictícios nas causas de Direito Privado. Nas questões 
públicas, os nomes dos políticos são expressamente mencionados. 
Mas, em mim, há um pouco de lirismo na paixão pela 
advocacia, embora tenha ela complicado minha existência com os 
fatos históricos dos quais participei. Lidei com todos os códigos — 
penal, civil, de processos, de defesa do consumidor, até com o código 
de Hamurabi — e acabei tendo que lidar com o código da vida. A 
história compõe a genética da nação. Pertenço ao meu país com 
todas as minhas entranhas. Não há mais tempo de mudar. Daí o 
dever de registrar o código da vida, a minha. 
 
2 O cacófato é proposital. 
1 
Não gosto de correr na estrada. Ia de Serra Negra para São 
Paulo. Trocar o ar puro pela poluição. Paciência. O caso era 
dramático. A advocacia é quase sempre dramática. Minha secretária, 
nervosa, dissera pelo telefone que havia chegado um homem 
desejando consultar-me. Agitado, inquieto, visivelmente perturbado, 
de boa aparência, bem trajado, espalhou pânico no escritório. 
Ameaçou suicidar-se, caso eu não o atendesse. Não deu outra 
explicação. Sentou-se na sala de espera e lá permaneceu, 
aguardando que eu chegasse para atendê-lo. Não aceitou café nem 
quis ler jornal. Minha secretária estava apavorada. 
Na estrada, o guarda rodoviário fez sinal para eu parar. Olhei o 
velocímetro: 100 quilômetros. Na Via Anhangüera, a velocidade 
máxima é 110. Estacionei no acostamento e peguei os documentos 
no porta-luvas. Baixei o vidro. Ele aproximou-se com educação: 
— Bom dia. 
— Bom dia. 
Estendi-lhe os documentos do carro. 
— Não precisa — disse ele, olhando para o banco de trás, como 
se estivesse procurando alguém escondido. 
— Não precisa? O senhor me pára e não vai verificar meus 
documentos? 
Dei uma olhada no acostamento. Desconfiei da história. Podia 
ser assalto. Bandido disfarçado de guarda. Mas ele estava só. A 
viatura estacionada sob uma árvore era autêntica, e não havia 
ninguém mais por perto. 
— Tenho certeza de que estão em ordem — disse ele com 
educação. — Seu carro é Mercedes, o senhor me parece um homem 
de respeito. Não andaria com documentos irregulares. 
— Então, por que me parou? 
— O telefone celular. Pareceu-me que o senhor estava falando 
ao celular, quando se aproximava. O senhor sabe que acaba de sair 
uma portaria proibindo o uso do celular
aos motoristas enquanto 
dirigem? Onde está seu telefone móvel? 
— Não tenho. 
— Como não tem? Dono de uma Mercedes, aparência de 
homem de negócios, e não tem celular? 
— Para começar, seu guarda, o senhor nem sabe se eu sou o 
dono deste carro, porque não quis ver os documentos. E, para 
continuar, posso parecer homem de negócios, mas sou advogado e 
detesto celular. Vou corrigir minha resposta: tenho, mas não trago! 
Se quiser, pode me revistar e fique à vontade para revistar o carro. 
Quer que abra o porta-malas? — o exagero foi proposital, para 
desabafar. 
Ele continuava olhando para todos os cantos do carro. Deixei o 
porta-luvas aberto, ao pegar os documentos, que ele não quis 
conferir. 
— Não, absolutamente. Nossa ordem é flagrar motoristas 
falando ao celular e não propriamente apreender o aparelho. 
— Então me parece decidido — disse eu, já um pouco 
impaciente. — Se não tenho o celular, não poderia estar falando. 
— Mas tenho certeza de que o senhor estava falando, pois 
segurava o volante com uma das mãos e fazia gestos com a outra! 
— E qual delas segurava o celular? 
— O senhor deve ter daqueles aparelhos chamados de “mãos 
livres”, que permitem conversar sem segurar o telefone, mas que 
tiram a atenção do motorista da mesma maneira. 
— “Seu” guarda, eu podia estar falando sozinho. Costumo 
discutir muito comigo mesmo. Ou podia estar rezando. Veja aí, 
pendurada no retrovisor, a imagem da santa. 
— Eu também sou devoto de Nossa Senhora Aparecida — disse 
ele, olhando a imagem com certa reverência. 
Recusou-se a revistar-me. É evidente que não vira coisa 
alguma. Apenas chutou. Era a primeira semana da proibição baixada 
pelo Denatran, e, na cabeça dele, um Mercedes certamente teria um 
motorista com celular. Mas desistiu. Disse que eu podia prosseguir 
viagem, despediu-se com um até logo e ainda fez continência. 
Arranquei, sentindo-me um pouco esperto demais e feliz com o 
meu celular, que não tocou durante a conversa com o guarda. 
Aparelho moderno. É instalado em um compartimento inacessível do 
carro, mas controlado por botões no volante. Na verdade, minha 
resistência era uma ligeira rebeldia contra as instruções do 
Denatran, proibindo o uso de celulares no trânsito e por portaria. 
Minha formação de advogado não admite proibição alguma, senão 
em virtude de lei. E o próprio Denatran, que implementei quando fui 
Ministro da Justiça, levando para dirigi-lo o Dr. Nerval Ferreira 
Braga,3 está hoje abusando com essa história de legislar por 
portaria. 
O meu telefone móvel, de alta tecnologia, ainda tinha esta 
vantagem: era invisível. Claro que posso abrir o compartimento, 
desplugá-lo e levá-lo comigo no bolso da camisa ou do paletó. É 
pequeno e leve. 
Incrível como esses aparelhos, que tiram fotos nítidas, 
mandam e recebem mensagens pela Internet, com minúsculo teclado 
que permite digitação de pequenos recados, torpedos e e-mails, estão 
evoluindo a cada dia. Fotografam, filmam e recebem televisão. 
Mudaram o mundo. Fizeram desmoronar até mesmo as antigas 
teorias criminalistas de que, em bom sistema prisional, seria possível 
a recuperação dos criminosos de alta periculosidade. De dentro dos 
presídios, os grandes delinqüentes continuam conectados com o 
crime, comandando assaltos, extorsões, assassinatos, falsos 
seqüestros. Tudo através de inocentes telefones celulares. 
Aliás, hoje pode-se levar no bolso nossa vida digital, Internet, e-
 
3 Nerval Ferreira Braga Filho, delegado de polícia aposentado, foi Delegado Geral da 
Polícia de São Paulo e diretor do Denatran, Ministério da Justiça, no Governo Sarney. 
mail, música, TV, filmes, fotos, arquivos de documentos e até 
telefone. Estes novos tempos são feitos de um susto atrás do outro. 
O homem moderno é obrigado a ter olhos dilatados. O telefone 
celular, na era eletrônica, lembra o canivete suíço na era mecânica: 
servia para tudo. Hoje, somente em pescaria. 
A Internet já reúne um bilhão de pessoas, internautas, e 
funciona admiravelmente por não ser controlada por ninguém.4 É 
verdade que alguns países desejam administrar a rede mundial. Já 
estão tentando isso por meio de organismos ligados à ONU. Há um 
japonês, chamado Yoshio Utsumi, secretário-geral da União 
Internacional de Telecomunicações, que não faz outra coisa senão 
conspirar contra a liberdade da Internet. Seu interesse: evitar a 
expansão chinesa, embora finja que defende direitos de todos os 
povos. Aliás, os chineses estão conquistando os mercados do mundo 
e, não contentes com isso, ainda roubaram a glória de Colombo na 
descoberta da América. Dizem que foi um navegador chamado Zheng 
He quem esteve por estas bandas setenta anos antes do nosso herói 
genovês. Modernamente, a China, além do crescimento espantoso, 
tanto do PIB, quanto da miséria nas áreas campesinas, construiu a 
mais intrincada equação do século XXI: regime comunista com uma 
das maiores bolsas de valores do mundo, instrumento tipicamente 
capitalista. 
Ocorreu-me uma pergunta: o que tem tudo isso a ver com o 
meu telefone celular? Não fosse a existência dele, eu não saberia que, 
no meu escritório em São Paulo, havia um homem ameaçando 
suicidar-se. E nem que a Bolsa de Xangai, da China comunista, 
quase conseguiu quebrar as bolsas do resto do mundo capitalista. 
 
4 Uma entidade privada, chamada Icann (Internet Corporation for Assigned Names and 
Numbers — Corporação da Internet para a Designação de Nomes e Números), sem 
fins lucrativos, faz a administração técnica dos endereços da web. Tem sede na 
Califórnia, nos Estados Unidos, embora a Internet que hoje conhecemos, a www 
(World Wide Web), tenha sido inventada por uma instituição suíça, de Genebra, a 
maior organização científica do mundo, Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire 
(CERN). Essa agora criou o grande colisor de hádrons (LHC), enorme acelerador de 
partículas que vai colidir prótons em busca da existência de outras dimensões. 
2 
Quando eu era menino, na fazenda de meu pai, em Cravinhos, 
fizemos uma festa com a chegada do primeiro telefone. Antes, 
fincaram quilômetros de postes, pelos quais passava o fio que ligava 
a fazenda à cidade. Foi um primo meu, chamado Moacir, quem levou 
o primeiro telefone para ser instalado na ponta do fio, que já chegara 
à nossa casa. 
Pregaram-no na parede, diante de meus olhos arregalados. Era 
uma caixa retangular, de madeira, com o bocal para falar e um cone 
de baquelite para ouvir, que ficava pendurado num gancho, à 
esquerda da caixa. Tinha, do outro lado, a manivela, que devia ser 
rodada com força, dando-lhe várias voltas, para acionar a energia de 
baterias enormes, instaladas na parte inferior da caixa. 
Ainda me lembro: o nosso número era 45. 
Qualquer pessoa, lá da cidade ou de outra fazenda, que 
quisesse falar em casa, deveria pedir para a telefonista ligar no 45. 
Essa regra, porém, não era muito severa. Em geral, a gente 
acionava a manivela, a telefonista atendia e perguntava “com quem 
quer falar”. Bastava dizer o nome da pessoa ou informar o local: a 
farmácia, o armazém, o bar do cinema, o Dr. Palma, médico da 
cidade, o Salomão barbeiro, apaixonado por teatro, excelente 
declamador à moda antiga. 
O Salomão, é verdade, que grande artista perdido na província! 
Em seu salão de barbeiro (hoje cabeleireiro), declamava poesia 
enquanto trabalhava com tesoura, pente e pincel, em largos gestos 
dramáticos, que se multiplicavam nos espelhos de sua barbearia, o 
Salão do Salomão. Um dia, estava fazendo a barba de um cliente, 
enquanto declamava o “Vozes d’África”, de Castro Alves e, ao dizer 
“Deus,
ó Deus, onde estás que não respondes?”, abriu o braço com 
tal força que a espuma do sabão de barba caiu no rosto do freguês 
da cadeira ao lado. Filme de pastelão, tal e qual. Furioso, o freguês 
atingido virou-se para ele e gritou: 
— Mande esse Castro Alves à puta que o pariu! — Levantou-se, 
enxugou o rosto, desvencilhou-se da toalha e foi embora. O outro 
barbeiro era o irmão do Salomão: quieto, nunca falava nada. Naquele 
dia, ficou com a tesoura na mão, parada no ar, e perdeu o cliente. 
Era comum a telefonista meter-se na conversa, dependendo do 
tema. Um dia, minha prima conversava com uma amiga, a respeito 
de um paquera das duas: 
— Mas ele está firme com a Sônia. Não vai dar para ir ao baile 
com ele no sábado. 
— Pode ir. Aquele caso com a Sônia já era. Desde o começo, foi 
fogo de palha. A Adelaide me contou que eles acabaram. 
A conversa ia render, quando a telefonista entrou na linha: 
— Vocês duas precisam tomar cuidado. O Adalberto (era o cara 
sobre o qual elas falavam) é muito sem-vergonha. É verdade que ele 
acabou com a Sônia, mas hoje mesmo telefonou para a Adalgisa e 
combinou com ela ir ao baile, logo em seguida da conversa que teve 
com você, Delsa. 
Delsa era a minha prima. 
Um dia, a gente precisava falar com urgência, não me lembro 
com quem. Meu pai acionava a manivela, e nada. Nenhuma 
telefonista respondia. Meu tio, que havia trabalhado na companhia 
telefônica de Sertãozinho, ensinou uma solução drástica: ligar um 
cabo elétrico ao fio do telefone. Com isso, lá no centro telefônico, 
todos os plugues cairiam de uma vez só. O sistema funcionava com 
cabos que lembravam cordas coloridas. Cada assinante tinha um 
terminal composto de um cabo e de um buraco. Quando um 
assinante queria falar com o outro, a telefonista puxava o cabo dele e 
enfiava no buraco do assinante chamado. Assim, conectava as 
linhas, e a ligação funcionava. No centro telefônico, era fácil imaginar 
a loucura durante as ligações simultâneas: os cabos todos trançados 
de um assinante ao outro, da esquerda para a direita, da direita para 
a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima — uma 
verdadeira macarronada. Em meio a tudo isso, as telefonistas ainda 
encontravam tempo para ouvir conversas de namorados. 
Ainda me lembro quando o delegado de polícia de Cravinhos 
disse ao meu pai: “Assunto reservado, não converse pelo telefone. A 
Gertrudes escuta tudo” 
Para mim, a primeira definição de interceptação telefônica, que 
popularmente passou a chamar-se “grampo”, tinha um nome: era a 
Gertrudes. 
Perigo, quando caíam tempestades. Em dia de raio, não se 
falava ao telefone. 
A não ser no telefone que inventamos, estendendo um barbante 
entre duas metades de uma caixa vazia de pó-de-arroz. Bem 
esticadas, dava para ouvir o que se falava numa das metades da 
caixa. Por esse processo, dei a minha primeira cantada numa 
menina: 
— Iracema, está me ouvindo? 
— Estou. 
— Quer me namorar? 
— Quero. 
— Posso lhe dar um beijo? 
— Pode. 
— O que mais? 
— Tudo o que você quiser. 
Senti um calafrio. Tive uma inundação de testosterona (que 
hoje sei chamar-se cetona esteroidal hidroxilada), ou seja, tesão, e, 
com igual intensidade, um acesso de timidez. Mas, depois, soube que 
o Tonho, filho do Zé do Eliazé, estava namorando a Iracema. Deixei 
para lá. 
3 
Essas lembranças me distraíam mais do que qualquer 
conversa em meu celular, que o guarda procurava. As coisas 
mudaram, menos as cantadas dos jovens pelo telefone. 
Olhei para a santa pendurada no retrovisor e descobri que ela 
havia colaborado comigo para enganar o guarda. Estava, por simples 
coincidência, cobrindo o discreto microfone pelo qual se falava ao 
telefone móvel. 
Pobre do guarda. Fora enganado em tudo. A santa também não 
era Nossa Senhora Aparecida, embora a imagem fosse a mesma. Era 
a Santa Preta da igreja da cidade de Einsledeln, cantão de Schwyz, 
na Suíça alemã. Minha mulher comprara a pequena imagem e deu-
lhe a incumbência de me proteger. Dizem que a estátua de madeira 
de Nossa Senhora ficou preta porque passou séculos recebendo a 
fuligem das velas na igreja medieval daquela cidade suíça. As 
gerações posteriores passaram a acreditar na Santa Preta. Os 
franceses invadiram a Suíça e roubaram a imagem da santa. Não 
respeitaram nem a neutralidade, nem a fé dos helvéticos. 
Os suíços, naquela região, são extremamente católicos, e a 
reação popular foi tamanha, que o governo francês mandou fazer 
outra imagem igual e a entregou à igreja. Era de madeira, mas limpa. 
Protestos gerais. Então, pintaram a imagem de preto. E fizeram 
várias réplicas. Uma delas, dizem, foi trazida ao Brasil. Talvez seja a 
que mais tarde foi encontrada no Rio Paraíba. Os historiadores estão 
devendo essa pesquisa ao povo brasileiro. E mais: dizem que a 
imagem original está hoje na Áustria. 
Aí meu telefone tocou. Atendi. Era minha secretária, Dona 
Dayse. 
— Ele continua aqui, no escritório. O senhor ainda vai 
demorar? 
— Diga que estou chegando a São Paulo. Terei que enfrentar a 
Marginal. Mas creio que dentro de uma hora estarei aí. 
— Pelo amor de Deus, Dr. Saulo, venha logo, porque o homem 
continua desesperado. Ele disse, em voz calma, mas muito firme, que 
vai se matar. Nós estamos todas desesperadas, com medo de que ele 
faça uma loucura no escritório. 
— Avise que estou chegando. 
O trânsito na Marginal Pinheiros movia-se a dez quilômetros 
por hora, sem se importar com o homem que queria matar-se diante 
de minhas secretárias. Lembrei-me da troca de cartas entre 
Fernando Pessoa e Sá-Carneiro, que, em Paris, escrevia para o amigo 
em Lisboa, anunciando que iria suicidar-se. Pessoa chegou a 
escrever aquele célebre poema: “Se te queres matar, por que não te 
queres matar?”. 
O problema é que Sá-Carneiro se matou. 
4 
— Sua secretária informou-lhe a gravidade do meu problema? 
— Não. Ela apenas me disse que o senhor falou em suicídio. 
Isso, por si só, é grave. Qual o motivo dessa decisão? 
— É verdade. Desculpe-me. Para ela, apenas disse que me 
matarei, se o senhor não aceitar a minha causa. 
— Posso fazer-lhe uma pergunta? 
— Pode. 
— Como o senhor se chama? 
— Olavo Brás. 
O desespero atropelara tanto aquele homem, que começou a 
falar de seu problema sem se apresentar, pensando que minha 
secretária soubesse de tudo sem ele haver contado nada. Estava 
realmente atordoado. E eu ia travando um diálogo dramático com 
um desconhecido. Olavo Brás, repetiu. Lembrei-me de Bilac, que se 
chamava Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, verso alexandrino 
perfeito, nome do poeta que sabia ouvir e entender estrelas, um tipo 
de loucura lírica, mais tranqüila. Esse outro Olavo falava em 
suicídio, tema diferente e traumatizante para mim. 
— O senhor precisa explicar-me a gravidade do seu problema, 
para que eu avalie a possibilidade de ajudá-lo. 
O homem tinha no olhar o brilho típico do desespero, sem 
lágrima, quase metálico, numa mistura de aflito e determinado. 
Depois de muitos anos, a gente aprende a distinguir a linguagem dos 
olhos. Há muita diferença entre os que fingem estar desesperados, 
ou supõem que estão, esperando convencer o advogado ou comovê-
lo, e aqueles que realmente estão em situações que os atormentam, 
uns com maior, outros com menor intensidade. Somente a 
experiência capacita o advogado, que não é psiquiatra, a diferenciar 
um tipo do outro. 
Ali, na minha frente, estava realmente um homem em 
desespero contido, mas forte, pedindo socorro. Olhava para os lados 
e para trás, como se temesse a entrada de alguém na minha sala 
fechada. Com a mão trêmula, tirou um cartão de visita e o
estendeu 
para mim. Li. Era presidente de uma empresa, da qual eu nunca 
havia ouvido falar. 
— Separei-me de minha mulher — começou ele — e ela ficou 
com a guarda das crianças: um menino de nove anos e uma menina 
de sete. Foi-me assegurado o direito de visita, e, duas vezes por mês, 
eu podia passar o fim de semana com as crianças. 
— Podia? 
— Podia e não posso mais. Minha ex-mulher entrou com uma 
ação para anular meu direito de visita e impedir-me de ver meus 
filhos pelo resto da vida. 
— Isso não existe! — disse eu sem querer, pois, em geral, não 
faço comentário algum antes que o cliente conclua suas histórias, 
por mais longas que sejam. Na advocacia, o sofá sempre começa 
sendo divã. É preciso ouvir tudo, para depois separar as emoções 
daquilo que possa merecer análise jurídica. 
— Foi a mesma coisa dita pelo advogado que aceitou defender-
me nesse processo. O juiz havia dado uma liminar, impedindo, já de 
início, que eu visitasse as crianças. 
Narrou-me que o advogado, de posse de sua procuração, fora 
ao fórum inteirar-se do problema. Ele ficara no escritório do colega, 
esperando. Quando o advogado chegou, contou-me ele, foi 
imediatamente “para cima de mim”, que estava sentado no corredor 
e, aos gritos, disse: 
— O senhor ponha-se daqui para fora. Não aceito sua causa e 
já renunciei à procuração logo depois que examinei a prova dos 
autos. O senhor é um monstro! — Entrou em sua sala e bateu a 
porta. Fiquei apavorado. Nunca podia supor que isso aconteceria 
entre cliente e advogado recém-contratado. Ao menos uma 
explicação. Creio que eu teria direito a uma explicação! 
Conheço o advogado que ele contratara. De excelente conceito 
profissional, colega amável e, pelo que eu sabia até aquele momento, 
dedicado a seus clientes, batalhador. Não era do tipo explosivo que 
acabara de ser descrito pelo homem que ia suicidar-se, caso me 
recusasse a aceitar sua causa. 
Nesse momento, como não era de estranhar, veio a crise de 
choro. A determinação inicial e fria de seu olhar desabou. O homem 
caiu em extremas convulsões, soluços profundos. Eu mesmo, para 
não constrangê-lo com a presença de minha secretária, fui buscar 
um copo de água com açúcar e uma toalha de rosto. Pensei, então, 
comigo que algo de muito sério estava para me ser dito, caso ele não 
sofresse um enfarto durante a crise de choro convulsivo que durou 
uma eternidade. 
5 
Particularmente, tenho repugnância em ouvir falar de suicídio. 
Quando morava em Santos, nos meus tempos de jornalismo, uma 
jovem muito bonita namorava um amigo meu, que se hospedava na 
casa dela, pois sua mãe alugava quartos para “rapazes solteiros de 
boa família”. Alugou um quarto, e não deu outra: namoro. 
Um dia, avisaram-me que a moça havia se suicidado. Tomara 
formicida. Notícia traumática. Resolvi ir ao necrotério, onde estava 
sendo velada, pois conheci sua mãe, mulher que fazia grandes 
sacrifícios para a filha estudar, vestir-se bem, ser educada. Não 
podia deixar de ser solidário e dar um apoio àquela senhora, sempre 
muito amável comigo, quando ia a sua casa visitar meu amigo. Ao 
chegar ao velório, levei um susto. Dois parentes da moça vieram para 
cima de mim, desferindo golpes com seus guarda-chuvas (em Santos 
quase sempre chovia) e, aos gritos, acusando-me de ser o culpado 
pela morte da jovem. Tive que sair correndo com a máxima 
velocidade que os vinte e poucos anos me permitiam. Fiquei 
atordoado. É horrível sofrer agressão física e moral e ser acusado, 
aos berros, de algo tão maluco como aquilo. Tudo se passou muito 
rápido, de forma estarrecedora; mas foi a primeira e terrível sensação 
de injustiça que senti. Que sufoco! 
Depois, fiquei sabendo que a moça confidenciara a uma colega 
ser apaixonada por mim e iria tomar um pouquinho só daquele 
veneno, para chamar atenção sobre seu drama de amor. O 
pouquinho só lhe causou a morte. A colega contou para a família que 
o gesto extremo fora praticado por minha causa. Daí a confusão geral 
e as guarda-chuvadas que tomei no velório. Situação insólita e 
ridícula. Procurei meu amigo que, terminando o namoro, se mudara 
de lá, antes da tragédia. Ele me assegurou que jamais notara nada. 
Que a tal “paixão” por mim, se verdadeira, ficara bem dissimulada 
enquanto ele era o namorado. Mistérios da juventude, dramas da 
alma. 
Como jornalista, já comecei a profissão sob o impacto do 
suicídio de Getúlio Vargas, que alvoroçara a redação de A Tribuna de 
Santos, naquele dia fatídico de agosto de 1954. Episódio triste e 
chocante de uma de nossas muitas crises políticas. Um fato nada 
tinha a ver com o outro, mas suicídio era assunto que passara a me 
horrorizar. Como alguém pode condenar-se à morte e ser o próprio 
carrasco executor de tão drástica sanção? O suicida não dá direito de 
defesa a sua vítima — ele próprio — quando está ausente, isto é, fora 
de si. Creio que, na história da humanidade, o único suicídio 
tolerável de que se tem notícia foi o de Hitler. Automerecido. Mesmo 
porque Hitler não fazia parte da humanidade. 
Com essas idéias mórbidas sobre suicídio, resolvi participar de 
algo que me acenava com a imortalidade: fundar a Academia 
Santista de Letras.5 
6 
Depois de um longo suspiro, o homem, ainda em soluços, 
continuou: 
— Perdi a paciência, entrei na sala do advogado e, também aos 
gritos, pedi explicação. Disse-lhe que eu tinha direito de saber por 
que ele abandonava minha causa e ainda me xingava de monstro. 
Soluçando menos, contou que o advogado se dispusera a 
explicar e lhe dissera ter ouvido uma gravação em fita cassete, que 
era uma excrescência. Falara que as crianças tiveram suas vozes 
gravadas contando para a mãe, em detalhes, que o pai praticava com 
elas atos obscenos, sexo oral e mantinha relações sexuais com sua 
amante na frente delas, convidando-as a tirar a roupa e a deitar-se 
com o casal. Eram submetidas a carícias e outras barbaridades. 
— Tudo gravado, doutor! Com as vozes delas! 
— Como o senhor tem certeza de que são delas as vozes? 
— Depois que o advogado me disse, fui ao fórum. Quando me 
identifiquei, os funcionários quase me lincharam. Segredo de 
Justiça? Todos sabiam. O escrivão não queria deixar-me ouvir a fita. 
Dizia que não havia aparelho para tocá-la naquele instante. Nesse 
momento, o juiz estava saindo para ir embora. Eu gritei para ele: 
— Doutor, é mentira. Tenho o direito de ouvir essa maldita fita! 
 
5 Comigo fundaram a Academia Santista de Letras, Álvaro Augusto Lopes, Archimedes 
Bava, Cid Silveira, Clóvis Pereira de Carvalho, Durval Ferreira, Edmundo Amaral, 
Jaime Franco Rodrigues Junot, Maria José Aranha de Rezende, Mariano Laet 
Gomes, Monsenhor Primo Viera e Nicanor Ortiz. O aceno da imortalidade foi ilusão. 
Todos morreram. Resto eu com a pergunta incômoda: quando? 
— Quem é esse senhor? — perguntou o juiz ao escrivão. 
— Aquele cujo direito de visitas Vossa Excelência suspendeu 
em liminar. 
— Por que o senhor não contrata um advogado? 
— Contratei, e ele veio aqui, ouviu a fita, desistiu de minha 
causa e ainda me chamou de monstro. 
— Para encurtar a conversa — continuou ele —, o juiz me 
olhou com certo nojo, mas autorizou o escrivão a permitir-me ouvir a 
fita. Doutor, eram as vozes das crianças. Autênticas. Eram elas 
contando aquelas obscenidades. Não sei como fizeram isso com elas. 
Meus filhos, minhas crianças, falando aquelas coisas horríveis e 
falando de mim, dizendo que as forçara a fazer aquilo. 
Àquela altura, já não era somente o homem que estava 
abalado. Eu mesmo, que, ao longo de minha vida profissional, já 
ouvira e vira tanta coisa inexplicável, estava chocado
com a história. 
Agora entendia por que meu colega se recusara a continuar na 
causa. Sua formação moral não tolerava um fato como aquele. 
Faltou-lhe, porém, a dúvida: era verdade? Todo acusado 
merece, de início, o benefício da dúvida. 
O homem em minha frente concluiu: 
— Por isso, doutor, se o senhor não aceitar minha causa, não 
tenho outra forma de provar minha inocência, a não ser escrever 
uma carta dizendo ser tudo mentira e, em seguida, suicidar-me. Não 
posso viver com essa carga e não quero que meus filhos cresçam 
convivendo com essa mãe maluca, que as faz contar essas safadezas 
que elas nem conhecem. São crianças puras, ainda inocentes. O mal 
maior não está na acusação; está no fato de despertar na cabeça 
delas esses atos obscenos. 
Dito isso, ficou em silêncio, olhando para mim. Um mudo 
pedido de socorro, que entendi como não sendo para ele, mas para 
os filhos. No fundo de minha alma, senti que o homem não era 
culpado. 
Aceitei a causa e impus, como primeira condição, o banimento 
da idéia de suicídio. Não fosse a gravidade da situação, eu lhe teria 
dito algo de comédia cinematográfica: se você se suicidar, eu te mato. 
Mas retive a piada. Previ que a luta seria árdua, e ninguém poderia 
cogitar de fuga. Morto, o que poderia fazer pelos filhos? Aí, sim, é que 
a mãe, por ele chamada de maluca, iria educar as crianças e sobre 
elas influir pelo resto da infância e da juventude. Não se falaria mais 
em suicídio. Nunca mais. Nada de deserção da vida, mesmo que ela 
seja “un oignon q’on épluche en pleurant”.6 
7 
Fuga e deserção também me traumatizavam. Jornalista com 
alguma experiência, advogado recém-formado, meu primeiro cargo 
“político” foi como oficial de gabinete do Presidente Jânio Quadros 
em Brasília, ano zero, isto é, ano inaugural, 1961. Deus, como passa 
o tempo! E como se alteram as gentes e os natais. Pelé não joga mais 
futebol, e o próprio futebol quase acabou. Restaram apenas 
cusparadas, muita porrada, campeonatos fraudados. Ou um 
presunçoso como Carlos Alberto Parreira, que se passa por técnico e, 
na sua incomensurável teimosia e ignorância, fez, em 2006, 180 
milhões de brasileiros chorarem pela segunda vez diante da França, 
com uma seleção de velhinhos prontos para o asilo. Até o segredo de 
Watergate, do Washington Post, não existe mais: já se sabe quem é o 
“Garganta Profunda”: o vice-diretor do FBI, Mark Felt. Conseguiu a 
renúncia de Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, por 
informações passadas a jornalistas. E esses guardaram o segredo da 
fonte durante trinta anos. “Garganta Profunda” era um filme pornô 
da época. A política norte-americana é um filme pornô até hoje. 
Henry Kissinger, ex-chanceler dos Estados Unidos, bem conceituou o 
problema de sua terra, ao dizer: “Cerca de 90% dos políticos 
existentes dão aos 10% restantes uma péssima reputação”. 
 
6 “A vida é uma cebola que se descasca chorando”. Armand Masson. 
Jânio chamou-me em seu gabinete e, entregando-me dezenas 
de anotações, deu a ordem do dia: 
— Estude tudo, com atenção. E, amanhã, vá para Porto Alegre 
preparar a reunião de governadores, que realizarei na capital gaúcha. 
Fique de olho no governador Leonel Brizola. É um político 
complicado, que não gosta de paulistas. 
No dia seguinte, sexta-feira, 25 de agosto, tomei, cedinho, um 
avião para São Paulo. Aproveitei para marcar um almoço com a 
família. O vôo para o Sul sairia no fim da tarde. Meu velho pai ainda 
acreditava na salvação do Brasil pela lavoura (hoje chamada de 
agronegócio), e não da lavoura pelo Brasil. Cafeicultor teimoso, 
abarrotava-me de conselhos sobre o que deveria ser feito em favor do 
café, responsável por mais da metade dos parcos quatro ou cinco 
bilhões de dólares de nossas exportações. Mas, naquele dia, o almoço 
gorou. Quando cheguei ao aeroporto, havia um oficial militar me 
esperando com instruções para cancelar a viagem a Porto Alegre. 
Deveria eu pegar José Aparecido de Oliveira, secretário particular do 
Presidente, que estava num hotel na Rua do Arouche (até hoje não 
sei o que ele fazia lá), convocar o Castro Neves, Ministro do Trabalho, 
e irmos todos para a base aérea de Cumbica. Dadas as ordens, o 
oficial me cochichou, em tom absolutamente reservado: 
— O Presidente renunciou. 
Liguei o rádio do carro. Chiava muito. Creio que ainda era à 
válvula. Mas todas as estações transmitiam, nas vozes de locutores 
aflitos: 
— Jânio Quadros acaba de renunciar à Presidência da 
República. Auro de Moura Andrade pede que deputados e senadores 
permaneçam em Brasília e convida para voltar os que já viajaram. 
Convocada sessão extraordinária do Congresso Nacional! 
Disse ao oficial que podia falar normalmente. Era 
desnecessário cochichar. O segredo tornara-se público. José 
Aparecido de Oliveira, Castro Neves e eu fomos para Cumbica. No 
trajeto, lembro que José Aparecido exclamou: “O chefe só sabe um 
jeito. Toca tudo à base de renúncia!”. 
Para os que não se lembram, a ironia referia-se à renúncia à 
candidatura em plena campanha eleitoral. Depois de renunciar à 
renúncia da candidatura, Jânio fora eleito com esmagadora votação 
contra o Marechal Lott, que Juscelino, sob coação, lançara 
candidato. Durante a campanha, diziam que o marechal era homem 
culto, falava vários idiomas. Jânio não se perturbava e, com a 
irreverente ironia de sempre, dizia: “Com essas qualidades, pode ser 
candidato a porteiro de hotel. Militar no governo? Jamais. Somente o 
velho De Gaulle, herói de guerra, que, depois de renunciar, voltou ao 
poder nos braços do povo”. 
Em Cumbica, a agitação era enorme. Havia um ajudante-de-
ordens do Presidente, major do Exército, que, reservadamente, 
chamava os mais íntimos para um canto. Abrindo a túnica e a 
camisa, mostrava a faixa da Presidência da República, que havia 
escondido e colocado em si mesmo. Coisas do inconsciente. Lembro 
que insistimos com o major para devolver a faixa. Estava irredutível e 
disse que somente devolveria com ordem do chefe. O chefe, porém, 
não sabia da história da faixa. Desistimos. A confusão era muita, 
para nos preocuparmos com a faixa e com o major. 
O debate entre os grandes, contudo, concentrava-se nos 
aspectos jurídicos da renúncia. Eu não era ouvido, mesmo porque 
em Direito não tinha qualquer autoridade. Como advogado, era 
calouro, a despeito de haver trabalhado no escritório do mestre 
Vicente Ráo, de onde saíra para Brasília no ano zero. 
A tese de Pedroso Horta, Ministro da Justiça, que se mantinha 
em Brasília no meio da confusão política, era ingênua: o Congresso 
deveria deliberar sobre a renúncia, aceitando-a ou rejeitando-a, como 
se fosse um pedido de demissão de servidor público. Horta esperava 
que, durante os debates, o povo viesse às ruas clamar pela rejeição 
do “pedido”. Jânio então repetiria o “fico” de D. Pedro, com algumas 
pequenas exigências, pequeninas — reforma constitucional, 
competência para o Presidente da República legislar por meio de 
decretos-leis e outras miudezas institucionais, as quais, tempos 
depois, o Brasil teve de engolir a força. 
Não se pode julgar o entendimento de Pedroso Horta com 
muita severidade. Se o sistema brasileiro considera a renúncia como 
manifestação de vontade unilateral, bastante em si mesma, na 
América Latina nem sempre é assim. 
Na Bolívia, a renúncia do Presidente da República é submetida 
à aprovação do Parlamento, o que acaba, quando rejeitada, em voto 
de confiança. Coisa de parlamentarismo. Extravagâncias da 
latinidade. Mas, naquele país vizinho, o povo resolveu ouvir a voz da 
maioria indígena, oprimida desde o descobrimento, e elegeu
um índio 
aimará para Presidente da República. Evo Morales é a volta de Tupak 
Katari,7 e vamos torcer para que faça o país dar pelo menos dois 
passos para a frente. Começou tomando a Petrobrás e, com o auxílio 
de Hugo Chávez, da Venezuela, enrolou completamente a cabeça do 
Lula, se é que ele a tem. Se o petróleo é nosso, a Petrobrás também 
é. Com todo o seu esquerdismo, Lula acabou entreguista, porque 
entregou bens brasileiros aos bolivianos. Ser entreguista não é 
entregar apenas aos norte-americanos, mas aos estrangeiros em 
geral, mesmo que pobres. Se for para emprestar a Deus, que se dê 
aos pobres brasileiros, tão nossos como o petróleo. 
Evo Morales convocou uma Constituinte claramente derivada 
da Constituição vigente, pela qual ele próprio foi eleito. Os membros 
da Constituinte decidiram transformá-la em originária e 
fundamental, ou fundante. Bobagem perigosa por ser golpe 
assemblear de Estado. 
É a América Latina. 
 
7 Tupak Katari, líder indígena boliviano, comandou, no século XIX, um cerco à cidade 
de La Paz, tentando uma revolução contra a opressão sofrida pelo seu povo. Foi 
preso e amarrado a dois cavalos, postos para correr em direções contrárias. Seu 
corpo foi partido em dois pedaços. Quando estava sendo preso aos cavalos, gritou 
que voltaria e que seria milhões. Evo Morales pretende ser a reencarnação de Tupak, 
com uma força a mais: é cocaleiro, lidera os cultivadores de coca. Na briga com o 
Brasil, parece que afinou, não por temor ao governo brasileiro, mas porque os 
traficantes do Rio de Janeiro ameaçaram importar somente da Colômbia. Índio quer 
pipoca! 
A Constituição do Peru, em 1992, ainda conservava o art. 307, 
proibindo o golpe de Estado e, com romântica ingenuidade, dizendo 
que, na hipótese de ser violada a democracia, todos os atos de uma 
provável ditadura são nulos e, quando restabelecido o regime de 
liberdades, os ditadores e seus colaboradores devem ser severamente 
punidos. Pode? 
Passei a entender por que Jânio tanto falava em De Gaulle, que 
renunciara à chefia do Governo da França e voltara aclamado pelo 
povo, impondo uma Constituição nova, aprovada em plebiscito, e não 
pelo Parlamento. E mais: escrita todinha pelo genial jurista Debret. O 
êxito do velho marechal francês fascinou os políticos de sua geração. 
Quando Jânio foi eleito, fazia apenas dois anos que De Gaulle voltara 
ao poder, depois de uma renúncia espetacular. A diferença consistia 
em que De Gaulle, entre a renúncia e a volta, levara seis anos. E 
Jânio quis conseguir resultado semelhante em seis horas. 
Mesmo sem ser chamado, meti-me na discussão e, claro, 
igualmente emocionado, como todos se achavam naquele instante, 
expliquei nervosamente e em voz alta, quase aos gritos, que renúncia 
de mandato eletivo em nada se comparava com pedido de demissão 
de servidor público. Era pessoal, ato autônomo de vontade, 
unilateral, renúncia de mandato, igual à renúncia de procuração que 
o primeiro advogado do Sr. Olavo Brás fizera para abandonar sua 
causa. 
E a renúncia da Presidência da República entregue ao 
Congresso Nacional constituía apenas uma comunicação de 
afastamento definitivo do cargo, para que não se caracterizasse o 
abandono. A partir daí, aplicava-se o processo constitucional de 
substituição. O substituto era João Goulart. Estava na China. O 
cargo seria, então, assumido interinamente pelo presidente da Câ-
mara, Deputado Ranieri Mazzili, até que o Vice-Presidente voltasse 
ao território nacional e fosse empossado. 
Fui fuzilado por muitos olhares. Então, sugeri que ouvissem o 
professor Vicente Ráo. Jânio mandou consultar o mestre. E conferiu. 
O advogado calouro tinha razão, o que, aliás, não chegava a ser 
grande proeza jurídica, pois era o óbvio em Direito Constitucional. 
Logo a seguir, a teoria funcionou na prática: Auro de Moura 
Andrade, presidente do Congresso Nacional, cumpriu a Constituição, 
declarou extinto o mandato de Jânio, deu posse a Mazzili para o 
exercício interino da Presidência da República. O resto todo mundo 
sabe. 
Jânio, ainda em Cumbica, pediu-me para providenciar uma 
passagem de navio para a Inglaterra, de preferência num cargueiro 
modesto, que tivesse cabine de passageiro. Passei a missão para 
Oswaldo Martins, líder sindical em Santos, e para Mário Covas, 
meus companheiros do movimento janista naquela querida cidade 
marítima. Providenciaram. Embarque alguns dias depois. Enquanto 
isso, Jânio ficaria na casa de um amigo no Guarujá. 
Ao nos despedirmos, ainda em Cumbica, perguntei-lhe se 
podia fazer uma última sugestão. Qual? 
— Mande o major devolver a faixa! 
Aos gritos e broncas, deu sua última ordem ao ajudante 
militar, acusando-o de estar tramando um ridículo golpe de Estado. 
Acabamos, nós que assistíamos à cena, sentindo pena do ajudante-
de-ordens. Anos depois, instalada a ditadura, Jânio foi cassado. Fui 
visitá-lo, em gesto de solidariedade. Lembramos daquela passagem 
em Cumbica. E ele me disse: 
— Foram buscar a faixa de volta, com uma diferença. Em 
1961, houve uma tentativa de furto por parte de um oficial. Agora, 
consumou-se um roubo à mão armada. Você acha que eu tive culpa? 
— Mais ou menos — disse eu, que estava ali para confortar um 
amigo com os direitos políticos cassados. 
— Mas você é testemunha de que eu mandei devolver a faixa! 
Por isso me cassaram. Foi vingança do major. 
— Nada disso, meu caro. Você, que é formado em Direito, mas 
não advoga, confiou na solução do Horta, que jurava por Deus ser 
necessária a aprovação do Congresso no caso de renúncia do 
Presidente da República. Veja o que pode causar um erro de 
advogado. 
— Mas o Pedroso Horta é um excelente advogado. 
— É. Creio ser um dos melhores advogados criminalistas do 
país. O problema, porém, é o Direito Constitucional, no qual a 
maioria dos criminalistas fica apenas em habeas corpus e no direito 
de ampla defesa. 
Desde aquela época, tenho muito medo ao ver um colega, 
advogado criminalista, no Ministério da Justiça. E torço para que 
não tenha de resolver questão de alta relevância institucional. 
Meu cliente, Olavo Brás, esperava que a procuração fosse 
datilografada, enquanto eu divagava nas memórias provocadas pela 
idéia de suicídio e por lembranças da renúncia de Jânio Quadros. 
Minha secretária estendeu-lhe o papel, ele assinou, e ela indagou 
onde poderia reconhecer sua firma. 
Quando ia sair, perguntei-lhe: 
— O senhor já ouviu falar de Sofocleto? 
— Não. Quem é? 
— Um escritor espanhol que nos deixou a seguinte frase, 
bastante curiosa: “Gostaria de suicidar-me, mas é muito perigoso”. 
Ele sorriu e foi embora. 
8 
Fui pessoalmente ao fórum e pedi vista dos autos fora de 
cartório, devidamente autorizado pelo juiz, um jovem muito correto, 
inteligente e de impecável formação humana e jurídica. Já o conhecia 
havia tempos e o admirava. Falamos um pouco sobre o caso. 
— Seu cliente — observou ele — disse que o outro advogado 
renunciou ao mandato. Duvidou de sua inocência? 
— Não sei. Ficou chocado ao ouvir a fita — respondi. — E a 
mim disse que, se eu não aceitasse sua defesa, ele se mataria. 
— Não me diga! E o senhor sentiu-se coagido? 
— De forma alguma. Vou estudar o processo e depois me 
manifestar para apreciação de Vossa Excelência. Ainda me restam 
alguns dias de prazo. Aceitei a causa porque acredito sem hesitação 
na inocência dele. 
— Doutor — disse o juiz —, deixe a sustentação oral para os 
debates. Por enquanto, vou apenas deferir seu requerimento para 
retirar os autos, levando as fitas anexadas. Cuidado com elas, 
embora tenhamos cópias no cofre do cartório. 
— E estas anexadas aos
autos são as cópias ou as originais? 
— Já começou a questionar a prova? São as originais. Boa 
sorte. 
Saí de lá como velho advogado, carregando eu mesmo o 
processo, que ainda não era volumoso. Durante boa parte de minha 
vida profissional, fiz isso, não me utilizando dos serviços de 
funcionário para o transporte dos autos, salvo quando eram muitos 
volumes. Não era fácil vir da Praça João Mendes até a Rua Sete de 
Abril, do outro lado do Viaduto do Chá. Além de a distância ficar 
maior com o passar dos anos, em épocas mais recentes começaram a 
surgir os trombadinhas. De quando em vez, eu era sorteado por um 
ou dois deles. 
Os assaltos tinham formas variadas. Havia os que vinham 
correndo e enfiavam a mão nos bolsos dos passantes com uma 
rapidez incrível. Conseguiam enfiar as mãos nos dois bolsos da 
calça, e ainda sobrava para o bolso interno do paletó. Tudo em 
segundos. Havia aqueles que vinham de frente correndo, trombavam 
com a gente e fugiam. No chão, éramos socorridos pelos que 
enfiavam as mãos nos bolsos, faziam a limpeza e corriam. Depois, 
passava um que parecia o auditor da operação, perguntando se 
haviam levado muitos valores e quanto. 
— Dez mil dólares — respondi, como um repentista, ao 
“auditor”, que se mostrou espantado e feliz ao mesmo tempo. — 
Havia acabado de trocar no banco, porque vou viajar hoje. Dez mil 
dólares! Veja que prejuízo! 
Como não era verdade, alguém, naquele submundo, deve ter 
sofrido no acerto de contas. Espero que não tenha sido assassinado. 
— O senhor não irá mais sozinho ao fórum — foi o veredicto 
dos meus companheiros de escritório. 
Minha mesa de trabalho estava lotada de processos. Todos com 
prazo a cumprir. Abri um espaço e comecei a ler o processo do meu 
quase-suicida. A petição inicial era obra de demolição moral do meu 
cliente. Ouvi a fita. O impacto foi maior do que aquele sofrido na rua 
pelo assalto dos trombadinhas. Chamei meus estagiários e comecei: 
— Quero que levantem tudo sobre a vida dessa mulher. Tudo: 
a que horas acorda, o que toma no café-da-manhã, com quem ela 
sai, as amigas, os amigos, o que ela faz, o que ela lê, o que ela pensa. 
Quero tudo sob a coordenação do Dr. Nerval. E convoquem o Sinval 
para amanhã de manhã. 
Sinval era um exímio perito, policial aposentado e, dentre suas 
várias especialidades, era muito bom em examinar gravações de 
vozes. Tinha um aparelho, leitor de espectro, que mostrava em verde 
as ondas sonoras das vozes, a curva senoidal, os mínimos incidentes 
ocorridos com o processo de gravação de áudio. Detectava tudo, sons 
de primeiro, de segundo e até de terceiro plano. . 
Minha secretária veio avisar a chegada de uma senhora, que 
havia marcado uma entrevista com antecedência. Recebi-a. 
— Doutor, tenho um problema muito sério: meu ex-marido 
acaba de me tirar a guarda de meu filho. 
— Por quê? 
— Gravou minhas conversas pelo telefone com alguns 
namorados meus, e o advogado dele usou isso para demonstrar que 
eu não tenho idoneidade para educar meu filho. 
Ah! Meu Deus! Hoje não é meu dia. Com voz calma, movido por 
um idiota impulso impensado, indaguei: 
— A senhora não está pensando em se matar, não? 
— O que é isso, doutor? — respondeu com um ar de espanto, 
creio que duvidando de minha sanidade mental. — Não, senhor! 
Quero meu filho de volta. 
Chamei à minha sala meu colega Paulo de Tarso Santos, 
excelente advogado com predileção pelo Direito de Família, que 
estava com todo o pique para trabalhar. 
— A senhora vai ser atendida pelo Dr. Paulo de Tarso, 
especialista em Direito de Família. Conte tudo a ele. Não esconda 
nada. 
Saíram. 
9 
Paulo houvera militado na política, fora deputado federal, 
prefeito de Brasília no Governo Jânio Quadros, Ministro da Educação 
no Governo Jango Goulart e, na ditadura de 1964, seus direitos 
políticos foram cassados. Exilou-se no Chile. 
Vicente Ráo, dono do escritório, nosso chefe e mestre no 
Direito, um dia, em pleno regime militar, recebeu um pedido do 
ditador de turno, o General Costa e Silva. Precisava de orientação 
para estender a soberania marítima brasileira para duzentas milhas 
marítimas, porque já haviam descoberto a existência de imensas 
jazidas de petróleo na plataforma litorânea. Era tradição histórica a 
soberania das nações no limite de três milhas marítimas (cada milha 
equivale a 1.852 metros), o alcance de um tiro de canhão a partir do 
litoral. Isso valeu até o início do século XX. Depois foi resolvido 
estender o tiro de canhão para doze milhas, em razão de conflitos em 
torno da pesca. Foi quando tivemos a Guerra das Lagostas contra os 
pescadores franceses. 
Na ONU, uma interminável discussão sobre a Convenção das 
Nações Unidas quanto aos Direitos do Mar estava sendo 
vagarosamente travada desde 1950, com muitas complicações. Uma 
delas era o reconhecimento da zona econômica exclusiva de duzentas 
milhas, sem se confundir com mar territorial. E havia uma enorme 
resistência das nações mais poderosas à alteração daquele limite ou 
à introdução de novidades, porque elas pretendiam, é claro, ter o 
direito de extrair petróleo dessas plataformas continentais, enquanto 
consideradas internacionais. E essas plataformas, hoje se sabe, vão 
muito além das duzentas milhas. 
Por uma dessas ironias do destino, o Professor Ráo era amigo 
do General Costa e Silva, conhecimento travado em São Paulo, 
quando o militar fora comandante do Segundo Exército. Falo em 
ironia, porque a inteligência de um não combina com a mediocridade 
do outro; mas essas coisas acontecem. Quando Costa e Silva foi 
“eleito” Presidente da República, pediu ao Professor Vicente Ráo que 
escrevesse seu discurso de posse, transmitido pela televisão. A cada 
trecho que o público presente à solenidade aplaudia, Ráo, que 
assistia em sua casa à transmissão, levantava-se da cadeira e fazia 
uma mesura, agradecendo. Além de gênio, era um gozador. 
O problema agora era a soberania marítima, e não mais o 
discurso. Ráo estudou o caso, e a solução foi o Governo nomeá-lo 
presidente da Comissão Jurídica Interamericana, órgão da OEA — 
Organização dos Estados Americanos —, com sede no Rio de Janeiro. 
Bagunçou nosso escritório, pois passamos a trabalhar todos em 
pesquisas sobre o assunto. Ficamos sem o chefe por muito tempo. 
Tivemos que fazer pesquisas intermináveis. Não havia Internet, nem 
computador, nem o Google. O trabalho era feito na “enxada”, 
cavoucando nos livros, arquivos, jornais velhos, bibliotecas. Mas 
achamos um precedente: a Inglaterra havia estendido sua soberania 
para cento e cinqüenta milhas numa ilha qualquer, não me lembro 
mais onde, dentre tantas que o Império Britânico tinha pelos mares 
do mundo, creio que no Oceano Índico. Com isso, Ráo conseguiu 
obter, depois de trabalhar membro por membro da Comissão, uma 
declaração que proclamava ser legítimo o direito de estenderem as 
nações americanas sua soberania para além das doze milhas. E 
ainda fez uma ressalva: “desde que não colidisse com nações 
próximas”, caso de Cuba, próxima ao México e aos Estados Unidos. 
Aprovada a declaração por unanimidade dos embaixadores 
membros da OEA, o embaixador do México quis recuar, porque 
estaria contrariando seu país, cuja Constituição fixava em 12 milhas 
a soberania mexicana em seus mares. Ráo convenceu o nervoso 
embaixador de que a declaração era de princípios e de que ele estaria 
apenas sendo um homem de vanguarda na futura reforma da 
Constituição de seu país. Sossegou a fera. 
A essa altura, Costa e Silva já havia saído do Governo, e o novo 
Presidente da República era o General Garrastazu Médici. 
Editada a declaração da Comissão Jurídica Interamericana,
passou-se a ter o ato de um organismo internacional que 
legitimamente autorizava a alteração da extensão da soberania 
marítima. Médici baixou o Decreto-Lei nº 1.098, de 25 de março de 
1970, que estendeu o mar territorial do Brasil para duzentas milhas, 
“a partir da linha da beira-mar do litoral continental e insular 
brasileiro”. Nada de esperar a ONU e a convenção sobre zona econô-
mica exclusiva. Foi-se direto para as duzentas milhas de mar 
territorial. Estava incluída a ilha de Fernando de Noronha. 
Alargamos nossas fronteiras pelo mar afora. Ninguém declarou 
guerra ao Brasil. 
Logo em seguida, o General Médici ligou para o Professor Ráo. 
A ligação foi feita pelo Ministro e Chanceler Vasco Leitão da Cunha. 
E Médici disse ao jurista e advogado que seu serviço, prestado à 
pátria, era inestimável, não havia honorários que o pagassem. 
— Há, sim senhor — respondeu o professor. — Tenho um ex-
aluno exilado no Chile, com família grande, filhos, que precisa voltar 
ao Brasil. O nome dele? Paulo de Tarso Santos. 
Tempos diferentes aqueles da ditadura. Todos os processos 
foram arquivados. E Paulo voltou. O irmão dele, Maurício Santos, 
trabalhava no escritório. Era um ótimo companheiro. E, com a 
mineiridade de ambos, foi fácil encaixar o Paulo na equipe. Passou a 
trabalhar conosco. Felicidade geral. As duzentas milhas de nosso 
mar territorial deram-nos um excelente colega de trabalho, além de 
darem ao Brasil ricos poços de petróleo na plataforma marítima. Mas 
houve complicação. E que complicação! 
10 
Passou o tempo, e Gama e Silva, ex-Ministro da Justiça, 
responsável pela edição do AI-5, voltou da Embaixada do Brasil em 
Portugal, para onde fora nomeado na troca de ditadores. Prêmio 
pelos relevantes serviços. Também havia sido aluno do Professor 
Ráo. Não deu outra: pediu ao mestre para trabalhar uns tempos no 
escritório, até voltar a ter condições de reabrir sua própria banca. 
Ráo chamou-me e decretou: 
— Arrume uma sala para o Gama. Ele vai trabalhar conosco. 
Fiquei em pânico. Nada poderia causar-me tanto desespero. O 
autor do ato mais autoritário da ditadura viria para o nosso 
escritório? E nós, que escrevemos tanto contra a ditadura em nossas 
razões em quase todos os processos! Eu iria enlouquecer! No sufoco, 
respondi: 
— Não temos sala, professor — sem muita esperança de ser 
ouvido. — Todas estão ocupadas com dois advogados em cada uma, 
salvo a minha e a do Paulo de Tarso, que é muito pequena. 
— Ponha o Gama junto com o Paulo. 
— Mas, professor, pelo amor de Deus, o Gama cassou os 
direitos políticos do Paulo. Como vamos juntar cassador e cassado 
na mesma sala? 
— Aqui no escritório não existe política. Não me interessa o que 
cada um deles fez no passado recente ou remoto. Aqui se trabalha 
em advocacia e se cultiva o Direito. É isso que os dois têm que fazer. 
Ponha-os na mesma sala. 
E assim foi feito. Deram-se bem. Um dia, o Gama perguntou ao 
Paulo: 
— Você não recebe pensão de deputado cassado? 
— Não. Isso existe? 
— Claro. Você não sabe que, pressionado pelos militares para 
efetuar as cassações, eu criei a pensão para os cassados? Era uma 
forma de minorar as conseqüências da perda dos mandatos. Você me 
passe uma procuração, que eu mesmo vou requerer a pensão. Será 
mais rápido. Ainda conheço muita gente por lá. 
— Agradeço a informação, meu caro Gama — respondeu o 
Paulo. — Mas procuração não passo. 
Como advogado, o ex-ministro começava bem em nosso meio, 
ao dizer “pressionado pelos militares...”. 
Um outro colega, Maércio de Abreu Sampaio, disse-me, não sei 
se por ingenuidade ou mordacidade: 
— Temos que acreditar. Não podemos duvidar de um 
companheiro de trabalho. 
Acabou sendo um dos grandes amigos do filho do ex-ministro, 
Luiz Antônio Gama e Silva Filho, que também trabalhou no escritório 
e se tornou um excelente profissional, orientado pelo próprio 
Maércio. Sem política. 
11 
Saindo do escritório, na Rua Sete de Abril, ao fim do 
expediente, eu ia para o Prédio do Zarvos, na esquina da Rua São 
Luís com a Consolação. Ali ficava o estacionamento onde todos 
guardávamos nossos carros. Costumávamos ir juntos, advogados e 
estagiários, não apenas pelo papo durante o trajeto, mas para evitar 
trombadinhas. 
Paulo de Tarso me perguntou sobre o caso do Olavo Brás. 
— Vai ser duro. Já li o processo. Depois convocarei uma 
reunião para discutirmos. — E devolvi: 
— E o caso da mulher que perdeu a guarda do filho? 
— Creio ser mais preconceito do que direito do pai. A mulher 
tem realmente uma vida discutível, mas fora de casa. Sai para suas 
aventuras ou romances. Em casa, tem empregada, e ali, segundo 
apurei, comporta-se bem. Não exerce, assim, nenhuma influência 
maléfica na educação da criança. Vamos precisar de uma prova 
testemunhal muito forte. 
— Não será difícil convencer juizes e desembargadores, todos 
bem nascidos e com boas famílias, de que o filho de puta também 
tem direito a mãe. 
Paulo dava risadas com os meus nomes feios. Ele era incapaz 
de dizer palavrão. Ao nosso lado, ia o colega Nerval Ferreira Braga, 
grande amigo dele do tempo de infância, aquele que era delegado de 
polícia aposentado e tinha sido Delegado Geral do Estado de São 
Paulo. Trabalhava conosco por indicação do próprio Paulo. Nerval 
interveio no diálogo: 
— Quem mais pode amar o filho da puta do que a mãe que o 
pariu? 
Foi demais para o Paulo. 
— Vocês são uns bocas-sujas incorrigíveis. 
Chegamos ao estacionamento. Paulo pediu seu carro. Nerval e 
eu fomos ao restaurante Paddock, no mesmo andar do 
estacionamento, onde tomávamos nosso uísque de aperitivo antes de 
ir para casa. Às vezes, encontrávamos ali o Zé do Pé, boêmio 
paulistano famoso nas noitadas da capital.8 Naquela noite, ele estava 
lá: 
— Dr. Saulo — disse-me ele, quando entrei, levantando-se de 
sua mesa, como sempre, rodeado de boêmios. — O senhor é um 
advogado fantástico. Vendi uns bois de um sujeito, fazendeiro rico, 
 
8 José Paulo Freire. 
que não me quis pagar a comissão. Fui dormir aborrecido e sonhei 
que devia consultar o senhor e, em sonho, consultei. O senhor me 
aconselhou a conversar com o sujeito, levando dois amigos que 
servissem de testemunhas. Acordei, segui seu conselho, e o sujeito 
confirmou tudo na frente dos meus amigos; mas insistiu em dizer 
que não pagava a comissão, porque não tinha contrato. 
— E daí? 
— Daí, mandei um amigo comum dizer a ele que cobraria a 
comissão em juízo, que eu tinha as duas testemunhas e que o 
senhor seria meu advogado. E ele pagou. 
— E meus honorários, você vai pagar? — perguntei de 
brincadeira. 
— Fique tranqüilo — respondeu ele, convidando-nos a sentar. 
— Na próxima vez que sonhar, eu pago. 
Mas Nerval e eu fomos para outra mesa do restaurante. 
Precisava que meu colega, ex-delegado de polícia, entrasse no caso 
do Olavo Brás. Para isso, ele contaria com a ajuda de seu inseparável 
companheiro Carlos Edson Strasburg, nosso colega de escritório, 
que, apesar do nome pomposo de jurista austríaco, era chamado de 
Casé. 
Eu queria dos dois uma investigação completa: vida do casal 
antes da separação, período posterior, comportamento de ambos. 
Nós mesmos teríamos que descobrir quem poderia testemunhar, já 
que testemunhas trazidas pelos clientes nem sempre ajudam o 
bastante. Acabam sendo testemunhas de canonização. Só elogiam a 
santidade da parte. Precisávamos de fatos, e fatos relevantes, 
capazes de influir na decisão da lide, mediante a demonstração 
inequívoca de que nosso cliente não era culpado. 
— Deixe comigo. Amanhã chamo o Casé, e começamos. 
Tomamos o último gole,
despedimo-nos do Zé do Pé e saímos. 
Eu estava ansioso por chegar em casa, onde, mesmo a altas 
horas da noite, esperava-me, com paciência oriental, meu caseiro, 
Kazuo Kanashiro. Serviu-me um uísque com “bastante gelo”, antes 
do jantar. 
12 
— Já descobri uma coisa que me intrigou — disse Nerval, 
quando entrou em minha sala. 
— O quê? 
— A mulher do senhor Olavo aprontou durante o casamento, e 
ele parece que perdoou. 
— Aprontou o quê? 
— Adultério, dormiu com outro, corneou o bicho. 
— Céus! 
— Você esperava o que de uma mulher dessas? 
— Não, não, não. Meu espanto é com a segunda parte da 
informação. Ele haver perdoado. 
— Eu disse que parece haver perdoado, e não que perdoou. 
Ainda vou apurar. 
— Isso não terá grande utilidade no caso. Coitado do cliente. 
Mas apure tudo. E como você já conseguiu descobrir isso? 
— Eu sou polícia, meu caro. Ela é de uma família rica, tem 
muitos conhecidos, vive na alta sociedade de São Paulo. Estou 
conversando com muita gente que a conhece e freqüenta os mesmos 
lugares. Esse tipo de coisa não é difícil descobrir. Essa gente fala 
muito e sabe de tudo. É gente contrária ao Mário Quintana. 
— O que tem a ver o Mario Quintana com este caso? 
— Ele afirmou que sempre se sentia isolado nas reuniões 
sociais, porque o excesso de gente impedia de ver as pessoas. Coisa 
de poeta. Os fofoqueiros vêem tudo. 
Nerval adorava poesia. Não combinava muito com a carreira 
brilhante que teve na polícia e com a própria polícia, mas sabia de 
cor centenas de poemas, além de músicas sertanejas. Basta dizer 
que um de seus amigos era João Pacífico, autor de Cabocla Teresa, 
freqüentador do escritório para uma cachacinha no fim de tarde. 
Acabamos pagando um salário para o poeta sertanejo durante uma 
boa temporada, porque com direito autoral ia morrer de fome. E de 
sede. Difícil foi contabilizar o pagamento. Justificamos: assessor 
cultural. 
Nesse momento, entrou Paulo de Tarso: 
— Vocês estavam falando de Mário Quintana? Pensei que aqui 
só se conversasse sobre Direito! 
— Calma, Paulo. As coisas às vezes se cruzam. Você se lembra 
de que uma vez fomos acusados de haver roubado o revólver de Fidel 
Castro, quando estivemos em Havana? Os fatos mais inesperados 
nos surpreendem de repente. 
13 
Jânio Quadros era candidato a Presidente da República e me 
telefonou, dizendo que faria uma viagem a Cuba, cuja revolução 
vitoriosa fascinara a nossa geração. E me convidou. Muita gente boa 
na comitiva: Rubem Braga, Fernando Sabino e, entre outros,9 Carlão 
Mesquita, a alegria da turma tanto nos vôos, como nos hotéis e nas 
repetidas reuniões com os políticos cubanos. Todos americanistas 
convictos, desde o dia em que Fidel Castro desfilara triunfante em 
Nova York, sob chuva de papel picado, até porque a revolução contra 
Fulgêncio Batista fora consentida (e financiada) por Washington. 
Nessa viagem, conheci Paulo de Tarso Santos. 
Em Havana, o embaixador brasileiro, Vasco Leitão da Cunha 
(aquele que viria a ser Ministro das Relações Exteriores do Governo 
Médici), ofereceu um jantar para a caravana e em homenagem a 
Fidel Castro e a Che Guevara, nossos heróis. Quando chegaram as 
 
9 Castelinho, Márcio Moreira Alves, Castejon Branco, Hélio Fernandes, Murilo Mello 
Filho, Villas-Boas Corrêa, Afonso Arinos, Quintanilha Ribeiro, José Aparecido, 
Murilo Costa Rego, Juracy Magalhães Júnior, Castilho Cabral, Cid Sampaio, 
Augusto Marzagão. 
duas ilustres figuras, uma depois da outra, os brasileiros cercaram 
Che, muito mais carismático, embora de uma simplicidade 
comovente. Fidel era posudo, falava pelos cotovelos, ostentando a 
farda militar, e, ao chegar (bem depois do Che), deixou o revólver no 
banheiro de entrada da Embaixada, como nos tempos de baile do 
faroeste americano. Da reunião, dois fatos ficaram registrados na 
minha memória: a inveja sem disfarce que Fidel tinha de Guevara, 
inveja ostensivamente aristotélica, e um susto geral: roubaram o 
revólver do Fidel, que saiu furioso e xingando os brasileiros, sob as 
desculpas do embaixador e os tapinhas nas costas dados pelo Jânio. 
Era evidentemente um ato de gozação, e, por isso, todos nós, 
quando voltamos para o Hotel Rivera, caímos em cima do Carlão. Só 
podia ser ele. Jurou inocência. Alguns levantaram a hipótese de ter 
sido o repórter Tico-Tico. E ninguém ficou sabendo quem foi, a não 
ser Eduardo Lago, hoje diplomata aposentado, que se nega a contar 
o fim da história. Tenho certeza de que ele sabe. Quando Fidel 
gritava tratar-se de uma relíquia de Sierra Maestra, alguém informou 
ser mentira: a arma era um parabélum russo 9 mm, presente recente 
do embaixador soviético Anastas Mikoyan, que estava iniciando seu 
processo de sedução do enrustido ditador. Uma plaqueta no cabo da 
arma comprovava a origem: a dedicatória do diplomata soviético. E 
ficamos sabendo disso porque o “ladrão” do revólver devolveu-o ao 
Embaixador Vasco Leitão da Cunha, que fez um embrulho para 
presente e mandou entregar a Fidel a relíquia “de la Sierra Maestra”, 
relíquia soviética.10 
O tempo passou. Jânio foi eleito Presidente da República e 
renunciou. Rubem Braga e Carlão Mesquita morreram, deixando-nos 
com saudades imensas. Cuba tornou-se comunista e baluarte do 
 
10 Edmilson Caminha, em seu livro Brasil e Cuba, informa que o ilustre jornalista 
Villas-Bôas Corrêa ficou furioso comigo porque seria minha a versão de que ele 
atribuiu a autoria do furto do revólver de Fidel ao repórter Tico-Tico. Estou inocente 
nessa coisa. Ao contrário: quando soube dessa história, desmenti-a com veemência, 
mesmo porque eu conhecia há muito tempo a história correta. Aquela versão 
estapafúrdia partiu de um grupo de assessores de Augusto Nunes, quando colhiam 
material para um livro sobre Jânio Quadros. Creio que o livro não foi escrito. Com o 
material trabalhado por aqueles assessores, o livro seria imprestável. 
antiamericanismo da América Latina, antes de Hugo Chávez na 
Venezuela. Fernando Sabino ficou rico, publicando um livro sobre 
Zélia Cardoso de Mello no Governo Collor. Depois também morreu. 
As saudades aumentam e torturam. 
14 
Jamais deixei de acompanhar com atenção a política de Cuba, 
sobretudo as relações entre Fidel e Guevara. Che era um comunista 
romântico e sonhador, certo de que poderia repetir a proeza de Sierra 
Maestra em outros países, mesmo sem o consentimento dos 
americanos... Depois de uma incursão malograda na África, teve a 
idéia de fazer guerrilha na Bolívia. Planejou tudo em Havana, até o 
treinamento dos guerrilheiros que o acompanhariam, entre eles Juan 
Pablo Chang Navarro e Julio Dagmino Pacheco. Fidel Castro 
conhecia os planos em todos os detalhes, inclusive locais de ação e 
alternativas de deslocamento. 
Na Bolívia, era Ministro de Estado um tal Dr. Antônio 
Arguedas, temível e violento perseguidor de esquerdistas, o Bush dos 
pobres, e, tal como o Bush rico, também apaixonado por dinheiro. 
Coordenou a caçada a Che Guevara, com assessoria da CIA, 
por ele especialmente convidada. E foi direto ao lugar onde Che 
estava escondido na selva, sem errar um milímetro, mais certeiro que 
os mísseis modernos guiados por satélite. O “míssil” parece ter sido 
uma guerrilheira de origem alemã, mas de nacionalidade argentina, 
que vivia em Cuba desde 1961 e se chamava Tânia. Tânia Bunke, 
nome de guerrilha.11 Ela chegou a La Paz, alugou um jipe e foi direto 
 
11 Haydée Tamara Bunke Bíder, nome verdadeiro da guerrilheira, morreu em uma 
emboscada em 31 de agosto de 1967, um mês antes da morte de Guevara, que
sua 
imprudência ajudou a consumar. Imprudência convenientemente estimulada por 
Fidel Castro. A emboscada foi efetuada quando Tânia e outros companheiros de 
Guevara atravessavam os rios Acero e Oro, em Vado del Yeso, no Vallegrande. 
Alguns dizem que Tânia chamava-se Laura Gutierrez Bauer. Haydée ou Laura, a 
guerrilheira celebrizou-se como Tânia. Seu corpo foi encontrado às margens do Rio 
Grande. 
ao esconderijo de Che. 
Em filme de espionagem, nada pode haver de mais óbvio. 
Intrigante é o fato de que Guevara, em sua ingenuidade, registrou em 
seu diário essa “imprudência” de Tânia. E a observação consta 
apenas da primeira edição do livro. Nas demais edições, 
desapareceu. Mistérios que compõem os indecifráveis códigos da 
vida. Houve quem sustentasse a versão de que o artista plástico 
argentino Ciro Bustos teria sido responsável pela traição a Guevara. 
Não se sabe bem se isso é verdade. Mas, se for, a localização de 
Guevara na selva boliviana era conhecida apenas por Fidel Castro. 
Isso é verdade indiscutível. 
E Ciro Bustos teria que ter trabalhado com Tânia, a enviada 
pelo ditador cubano e que fez várias viagens para a Bolívia, via 
Buenos Aires. A última foi a viagem da delação. Nem ela sabia que 
estava sendo esperada e pagou com sua própria vida pela 
imprudência registrada por Che Guevara. 
No dia 9 de outubro de 1967, Guevara, depois de ferido na 
perna, foi amarrado a uma cadeira. Ali permaneceu até vir a ordem 
de execução dada pelo próprio presidente da Bolívia, um sargentão, o 
General René Barrientos,12 colega de Fidel Castro. O assassinato, 
com um tiro no peito, foi executado por um suboficial chamado 
Mario Terán. 
Guevara teve as mãos cirurgicamente extraídas e guardadas 
em formol. O tal Arguedas ficou com elas. No ano seguinte, esse 
mesmo Arguedas abandonou a Bolívia e foi viver, adivinhem onde? 
Em Cuba! Levou as mãos de Guevara, dizendo que as entregaria à 
viúva, um gesto macabro e repulsivo que ninguém entendeu. Mais 
parece a prova de que se serviam os pistoleiros do nosso Nordeste 
para receber recompensa pelos contratos executados. Não mereceu a 
menor censura de Fidel e, em Cuba, passou a viver com regalias, a 
tal ponto que se desconfiou ter sido ele um agente do ditador cubano 
 
12 Barrientos morreu carbonizado dois anos depois, quando seu helicóptero explodiu 
ao bater em fios telegráficos. 
na Bolívia. Confiram os jornais de Lisboa, julho de 1968, e O Estado 
de S. Paulo, de 28 de novembro de 1995. 
Na aventura boliviana, ao lado de Guevara, lutou o francês 
Régis Debray, preso e depois libertado. Na França, em 1996, Debray 
publicou um livro (Loués soient nos seigneurs — Louvados sejam 
nossos senhores), criticando Fidel Castro e suscitando dúvidas sobre 
como o esconderijo de Guevara foi encontrado pelos militares 
bolivianos. 
Quatro meses depois, uma senhorita chamada Aleida, que se 
proclama filha de Guevara, em entrevista ao jornal Clarín, de Buenos 
Aires, acusou Debray de haver delatado a localização de Guevara na 
Bolívia (Folha de S. Paulo, 3 de setembro de 1996). Em carta ao Le 
Monde, jornal de Paris, Debray fez uma revelação curiosa: a versão 
foi encomendada por Cuba, e a senhorita Aleida é fortemente ligada a 
Fidel Castro. Che está morto. Não pode desmentir ninguém mais. 
Segundo a revista Forbes, o ditador cubano hoje é dono de 
quinhentos milhões de dólares. Não sei o que fará com tanto 
dinheiro. Não tem privacidade para gastá-lo. Compra consciências e 
versões. Faz remessas a movimentos políticos da América Latina. 
Contudo, acabou num hospital, com cirurgia no intestino, depois de 
47 anos de ditadura em defesa da liberdade. Fidel nasceu no dia 13 
de agosto. Não é definitivamente um dia de sorte. 
No mês de abril de 2003, Fidel Castro mandou fuzilar três 
cubanos que pretendiam fugir de Cuba e tomaram um barco de 
passageiros, cuja gasolina acabou e, como a própria ilha, ficou à 
deriva no mar do Caribe. Acusados de terrorismo, foram (los três 
negritos, como disse Fidel) assassinados rapidamente, sem direito a 
processo judicial. No outro lado da ilha, numa base militar chamada 
Guantánamo, que pertence aos Estados Unidos, atualmente sob a 
direção de Bush, estão presos homens do Afeganistão, acusados de 
terrorismo e em condições subumanas, sem direito a qualquer 
medida judicial, por não estar tal base em território norte-americano. 
Que ilha infeliz! 
Qual a diferença entre Bush e Fidel Castro no uso do pretexto 
de terrorismo para justificar atos de banditismo? Creio que Bush é 
melhor (vejam que tristeza!), porque sobre ele não paira nenhuma 
suspeita de haver contribuído para a morte de um amigo que, talvez, 
pudesse evitar sua perpetuação no poder, embora Sadam Hussein 
tenha sido amigo do Bush pai e cria dos Estados Unidos, os quais, 
apesar dos pesares, mantêm eleições mal apuradas e bem pagas, 
mas democráticas, com alguns assassinatos sempre inexplicáveis. 
Aliás, são inexplicáveis os assassinatos que eliminam alvos temidos 
pelos políticos, como também aconteceu no Brasil anos depois com 
os prefeitos petistas de Campinas e de Santo André. Não há Sherlock 
Holmes que desvende as óbvias responsabilidades criminais. 
Bush tem mais charme para cultivar as coisas do mal. 
Proclama-se Presidente da Guerra, manda matar mais de cem mil 
pessoas no Iraque e se posiciona contra a eutanásia de uma mulher 
que, há quinze anos, tinha vida apenas vegetativa. Vai à Igreja. 
Canta música gospel. É verdade que estarreceu a humanidade ao 
autorizar a CIA a cometer um crime novo. Seqüestrar pessoas e levá-
las a outros países para serem torturadas e interrogadas. Ainda não 
se sabe como isso vai acabar. Mas nomeada já foi: operação 
“rendição extraordinária”, com envolvimento de várias empresas 
aéreas que alugavam seus aviões para transporte clandestino das 
vítimas do seqüestro secreto. Não satisfeito, Bush declarou a 
supremacia dos Estados Unidos sobre o espaço sideral. É o dono do 
Universo. Deus que se cuide, sobretudo por ser brasileiro. Bush veio 
ao Brasil para desmentir essa antiga crença nossa. Aqui, negociou 
com Lula a produção de etanol, álcool para substituir o petróleo 
como combustível de carro. De álcool ambos entendem bastante. 
Lula ficou tão embriagado com a possibilidade de o Brasil se 
transformar em maior produtor de álcool combustível no mundo, que 
declarou: “os usineiros, antes bandidos (na opinião dele), passaram a 
heróis nacionais e mundiais”. 
Quanto a Fidel Castro, até Saramago, escritor português 
comunista, que, por isso mesmo, ganhou o Prêmio Nobel de 
Literatura (eu preferia Jorge Amado, muito melhor, e que com ele 
concorreu no mesmo ano),13 declarou não mais querer saber de Fidel 
Castro, a quem apoiava como ídolo. Vamos repetir Debray: Louvados 
sejam nossos senhores! E louvado seja aquele que furtou o revólver 
de Fidel na Embaixada do Brasil em Havana, gesto simbólico de 
desarmamento de um perigoso e irrecuperável ditador, e também 
mentiroso, mas que, infelizmente, continua no poder há meio século. 
Ao internar-se no hospital, passou o poder ao seu irmão Raúl Castro. 
Na ditadura cubana, a sucessão é consangüínea: dá-se entre irmãos 
germanos.14 
Aqui estou eu divagando sobre coisas da política, mas é 
inevitável, porque, de certa forma e em certa época, as pessoas desse 
teatro esbarraram em mim ou trombaram comigo na surpreendente 
trajetória que a vida me reservou, nesses mundos de muitos 
acontecidos e destinos que se cruzaram com o meu, um menino do 
interior, pescador de bagre e com alguma capacidade de sonhar. 
15 
Minha secretária anunciou a chegada de Sinval. Pedi que o
Paulo e o Nerval me deixassem a sós com o perito, pois ele não 
gostava de conversar “em público”. Era cheio de cuidados. 
Sinval entrou na sala: 
— Ainda não redigi o laudo. Mas examinei detalhadamente a 
 
13 A academia sueca é completamente maluca ao contemplar com o Prêmio Nobel 
algumas figuras lamentáveis, como aquele Fo, da Itália, e o escritor alemão Günter 
Grass, nazista que foi oficial da Waffen-SS, tropa de elite e espionagem de Hitler, 
John Mather e George Smoot, porque teriam comprovado a ocorrência do big bang, 
criador do Universo, tão verdade como a de seus antecessores que asseguravam 
estar a Terra sobre as costas de um elefante. É isso o big bang: o elefante tropeçou 
na cordas cósmicas e soltou um pum. E ainda dizem que ocorreu a 13,7 bilhões de 
anos. Gostaram do “vírgula sete”? 
14 Dicionário Aurélio — Germano: diz-se de irmãos que procedem do mesmo pai e da 
mesma mãe. 
fita cassete. Não há montagem, nem adulteração. 
Senti um calafrio percorrer-me o corpo. Ele percebeu minha 
aflição: 
— Mas espere — disse com bastante calma. — A gravação 
indica com clareza haver uma interrupção entre as perguntas feitas 
pela mãe às crianças e as respostas que estão gravadas. 
— Como você identificou esse detalhe? 
— No gráfico do som. Há uma interrupção entre cada pergunta 
e a respectiva resposta, ao contrário das gravações contínuas, em 
que as oscilações do som não se interrompem, inclusive registrando 
o som ambiente. Enquanto não se gravam vozes, registram-se os 
ruídos, por mais leves que sejam, sem espaçamento de intervalos. 
Nestes, nos espaçamentos, os picos da curva senoidal são menores, 
mas continuam ativos. Na gravação examinada, a interrupção brusca 
demonstra que, a cada pergunta, alguém apertou o botão de pausa 
ou parada. E a resposta foi gravada depois dessa interrupção. 
— Ah! Maldita mulher! Durante a pausa, ela ditava a resposta 
que a criança devia dar? 
— É isso. Meu laudo vai afirmar a existência de interrupção 
entre a pergunta e a resposta, detalhe que se repete durante toda a 
gravação. Demonstrarei claramente que houve esse expediente, de 
modo repetido, a cada pergunta. Com esse dado técnico, pelo menos 
crio a dúvida. Agora, provar que a mãe, depois de fazer a pergunta, 
ditava a resposta é problema seu. 
Comecei a pensar em como produzir essa prova. Mais uma vez 
tinha que triturar meus neurônios, uns pobres coitados eternamente 
condenados a buscar e encontrar soluções. Somente as crianças 
podiam informar; mas, como ouvi-las em audiência? A mulher, em 
depoimento pessoal, jamais confessaria, por mais habilidade que 
tivéssemos na formulação de perguntas, que não são feitas 
diretamente, e sim por intermédio do juiz, dando tempo para o 
interrogado pensar na melhor forma de mentir. 
 
16 
Voltei a me lembrar de Jânio, agora em virtude de uma ação 
judicial que ele nos pediu para mover contra o livro publicado por 
Adelaide Carraro. Ela incluíra um capítulo sobre ele, descrevendo 
situações comprometedoras, atos libidinosos misturados com 
paixões e romances. Jânio gritava furioso: “Nem conheço essa 
mulher!”. Fizemos as perguntas de praxe: “Alguém veio pedir 
dinheiro para não publicar essa coisa? Ela se comunicou com você, 
dizendo que o livro ia sair?” Nada. Tudo negativo. O livro, em outros 
capítulos, envolvia vários políticos de fama no cenário nacional. A 
autora tinha sido, segundo sua narrativa, amante de todos. Que 
fôlego! 
Propusemos a ação. Naquele tempo, ainda não tínhamos os 
avanços processuais de hoje, com as medidas cautelares preventivas 
aplicáveis a cada situação de ameaça de irreparável lesão, seguidas 
pela ação principal, que pode ser de danos morais ou de abstenção 
de prática de ato, conforme o caso. A ação foi penal mediante queixa, 
acusando-a de difamação e injúria contra homem público, e pedimos 
a apreensão e a destruição do “corpo de delito”, isto é, do livro. 
Conseguimos apreender toda a edição por medida preventiva, sem 
que fosse ouvida a parte contrária. Exercitamos a inteira liberdade 
de prensa. 
O processo foi distribuído ao magistrado Edmond Acar, bom 
juiz, mas que costumava dizer alguns palavrões nas audiências, 
tanto para as partes, como para os advogados e para o promotor. 
Veio o dia da audiência. Chegamos reverentes e nos sentamos. Então 
o juiz se virou para Adelaide e gritou: 
— Você fique de pé. Na minha vara, puta não senta! 
Perdemos a fala. Aquilo era uma explosão terrorista. 
— Excelência, solicito, por favor, que minha cliente seja 
respeitada! —- disse, educadamente, o advogado de defesa. 
— Estou tratando sua cliente, meu caro doutor, da mesma 
forma como ela tratou as pessoas que incluiu nesse livro infamante! 
E com o mesmo vocabulário! Se o senhor quer, pode ditar seu 
protesto diretamente ao escrevente. 
O advogado ficou em silêncio. Começou-se pelo interrogatório 
da ré. E o juiz perguntou: 
— Quem escreveu esse livro para você? 
— Eu mesma — respondeu ela com convicção. 
— Muito bem! — disse o juiz — Pode sentar-se. 
E mandou entregar à ré um papel em branco e uma caneta 
esferográfica. Pegou o livro, abriu-o numa página qualquer, deu-o à 
interrogada e mandou que ela lesse as dez primeiras linhas da 
página aberta. Em seguida, recolheu o livro e ordenou: 
— Agora, escreva neste papel o que você acabou de ler. Não é 
preciso escrever exatamente, mas escreva o que lhe vier na memória. 
Adelaide Carraro olhava o papel, com a caneta na mão. E nada. 
Passaram-se longos minutos. A sala, em silêncio. O juiz ficou 
folheando o livro e, de quando em vez, olhava para ela. Nada. 
Nenhuma linha. 
Subitamente, ele deu um estrondoso tapa na mesa e perguntou 
aos berros: 
— Quem escreveu esse livro para você? 
— Acindino Campos — respondeu a ré, já apavorada. 
— O que ele faz? 
— É jornalista. 
O juiz, com ares de vitorioso, olhou para nós e disse: 
— Estão vendo? A polícia bate, tortura pessoas para obter 
confissões. Aqui o réu confessa apenas sob um tratamento 
psicológico adequado. 
Contrariando todas as regras formais do processo penal, o juiz 
dispensou ouvir as testemunhas, as alegações e os prazos, e 
sentenciou, julgando a queixa procedente. Condenou a ré por 
difamação. Embora o Código Penal mandasse aplicar pena e multa 
(na época, de cinqüenta centavos a três cruzeiros), o juiz aplicou 
somente a multa — três cruzeiros pela difamação — e absolveu a ré 
da acusação de injúria. E deferiu em parte o pedido de destruição do 
livro. Mandou extrair dele apenas o capítulo referente a Jânio 
Quadros e permitiu a circulação do livro com as demais vítimas, 
porque nenhuma delas havia pedido proteção judicial. A ré e seu 
advogado aceitaram, pois estavam felizes com a liberação da grande 
obra. Adelaide Carraro, mesmo sem o capítulo sobre Jânio, esperava 
ganhar dinheiro com aquilo. E não houve recurso. Vencemos a causa 
numa rápida prestação jurisdicional, inteiramente fora da lei 
processual, mas sumamente prática, 
17 
Lembrei-me ainda de outro caso, referente a um livro escrito 
pelo ex-mordomo do cantor Roberto Carlos, no qual eram narradas 
intimidades da vida do artista, deslavadamente mentirosas. Feriram 
fundo o sentimento do cantor. O título do livro era O Rei e Eu. Dessa 
vez, para impedir a lesão, usamos o Direito Processual Civil, em ação 
de abstenção da prática de ato cumulada com o pedido de destruição 
do livro. A Constituição então vigente não assegurava as liberdades 
plenas inauguradas em 1988. Houve apreensão cautelar. O processo 
seguiu seus trâmites legais até o julgamento final pelo Tribunal de 
Justiça, e vencemos. O livro acabou sendo condenado
à fogueira, 
muito antes do ano que é o título da obra de George Orwell. A 
incineração foi realizada nos fornos da Prefeitura de São Paulo. 
Roberto Carlos é uma criatura de lindos sentimentos. Alma 
pura, contagiada de primavera e luz. Além da religiosidade extrema, 
é de uma bondade comovente com todas as pessoas. Bom filho, bom 
pai, bom tudo. Quando ganhamos a causa contra seu ex-mordomo, 
mostrou-se preocupado: 
— Ele foi condenado? Vai preso? Eu não queria isso, bicho! 
Não queria mesmo! 
— Calma, Roberto. A condenação foi civil, isto é, ele foi proibido 
de escrever sobre você, e o livro foi queimado. Pronto, acabou! Resta 
a condenação por danos e em honorários. Nem você vai cobrar os 
danos, nem eu cobro os honorários contra ele. Está bem assim? 
Mesmo assim, ficou triste. Seu ex-funcionário havia falado o 
diabo da vida dele. Roberto se preocupava em saber se a condenação 
envolvia prisão do réu. Afinal, réu é para ser preso. As pessoas às 
vezes confundem a condenação civil com a penal, embora muito tipo 
de condenação civil bem que podia resultar numa temporada atrás 
das grades. Mas as responsabilidades são independentes. 
18 
Conheci Roberto Carlos quando ele estava negociando com sua 
gravadora a renovação de contrato, no Brasil, para a produção de 
seus discos. Ainda era o tempo do vinil, o velho bolachão. Procurou-
me, não me lembro quem o aconselhou, para assessorá-lo nas 
negociações. O advogado da gravadora era um profissional de alto 
respeito, meu amigo e colega de muitos anos, Agilberto Figueiredo 
Santos, que foi formidável na condução dos entendimentos iniciais e 
me advertiu: 
— Os diretores da gravadora, aqui no Brasil, ganham 
honorários na proporção inversa daquilo que conseguem tirar do 
cantor contratado. Quanto menos a gravadora paga ao cantor, mais 
os diretores ganham. Sugiro que você vá negociar este contrato em 
Nova York, na sede da empresa. 
Falei com o cliente, e fomos para os Estados Unidos, eu, 
movido pela coragem ofertada por Deus, pois não falo uma palavra 
de inglês. Sou da velha geração do francês e, claro, perdi, por isso, a 
globalização subseqüente, fundada no idioma de Walt Whitman. 
Mas, em Nova York, podia, naquele tempo, contar com um 
valioso apoio, o Embaixador Sérgio Armando Frazão, que servia na 
ONU e falava, sem sotaque, vários idiomas. Meu velho amigo, 
companheiro dos tempos do governo de Jânio Quadros, pôs à minha 
disposição uma funcionária sua, americana, craque em português 
com sotaque brasileiro, além de ser altamente competente. 
Meticuloso como era, Frazão deu licença não remunerada para 
aquela senhora me assessorar por uma semana. Ela adorou, mesmo 
porque a assessoria incluía longas reuniões com Roberto Carlos, de 
quem era fã incondicional desde os tempos em que passara 
temporadas no Brasil, para aperfeiçoar seu português. 
As discussões com os diretores da gravadora eram 
complicadas. O presidente da companhia parecia mais afável e, de 
certa forma, impaciente com as dificuldades que seus colegas de 
diretoria criavam a cada momento. Tinha pressa. Viagem marcada 
para Londres dentro de alguns dias, não queria que a coisa se 
prolongasse muito. Os advogados deles, a cada dia de negociação, 
faziam uma minuta de contrato que, ao mesmo tempo, servia de ata 
das reuniões, mas tudo muito complicado e longo demais, detalhista, 
mania dos causídicos americanos. Eu escrevia outra minuta em 
português, minha assessora traduzia para o inglês, ela mesma 
datilografava, e a discussão prosseguia. 
De repente, chegavam as seis horas da tarde, e todo mundo 
desaparecia: datilógrafas, secretárias, advogados. Fim do expediente. 
Tínhamos que continuar no dia seguinte. Sem sequer um bye-bye. 
Sumiam. 
Na manhã de um desses dias seguintes, estávamos na sala de 
reuniões tomando um cafezinho, à espera do presidente da empresa. 
Aproximei-me da janela, no vigésimo andar do prédio, e vi, entre os 
arranha-céus de Nova York, o prédio da Basf. Disse, então, ao 
Roberto: 
— Olha como é bonito o prédio da Basf! 
Minha assessora aproximou-se discretamente e me avisou que 
os diretores, que ouviram meu comentário sem compreender, 
conversaram entre si, dando a entender que eu me referia a alguma 
outra proposta de contratação do Roberto pela Basf, empresa alemã 
concorrente deles. Eu disse para a assessora afastar-se com calma, 
pegar sua xícara de café e traduzir para eles meu comentário: 
— De fato — disse ela aos americanos —, o Dr. Ramos está 
comentando com o seu cliente a vantagem da proposta da Basf, mas 
não deseja incluir esse argumento nas discussões com os senhores. 
Não acha elegante usar esse tipo de pressão. É apenas consideração 
entre eles para a decisão a ser tomada hoje. 
O clima melhorou demais. O presidente chegou e avisou que 
teríamos que fechar as negociações porque, no dia seguinte, viajaria 
para Londres. Ele queria assinar pessoalmente o contrato. Mas ainda 
permanecia uma pendência quanto ao percentual do valor de face 
dos discos a ser recebido pelo artista. Havia uns cálculos 
atrapalhados. O valor de saída da fábrica era um, e o de venda nas 
lojas era outro. Queriam que Roberto recebesse pelo menor, o preço 
de fábrica. Durante a discussão, o presidente da companhia 
titubeou. Percebi imediatamente, prática de advogado, quando 
alguém hesita em dizer a verdade. No final da reunião, com o auxílio 
da minha intérprete, reuni alguns argumentos e desferi uma 
saraivada de razões para ele aceitar minha proposta. Ele sorriu, 
dando a entender que concordaria. Fomos almoçar. Roberto, alguns 
amigos dele, minha assessora e eu. 
No restaurante, outro problema. E grave. Roberto me chamou 
de lado e falou baixinho, para que ninguém mais ouvisse: 
— Bicho, obrigado por tudo que você está fazendo. Mas hoje 
não assino o contrato, mesmo se você conseguir todas as vantagens 
que exigiu. 
— Por quê? 
— Porque hoje é dia 13. Não assino nada no dia 13. 
Esperei alguns segundos para absorver o impacto da confissão 
e ponderei: 
— Veja bem. O presidente vai viajar amanhã. Tenho a 
impressão de que ele está quase concordando com nossa proposta. 
E, se ele concordar, temos que datilografar a versão final do contrato 
e assinar hoje. Amanhã, aqueles outros diretores vão criar caso. Sei 
não! 
Roberto ficou irredutível. Preferia esperar o presidente voltar na 
semana seguinte. Enquanto isso, ficaríamos em Nova York. Com 
milhares de assuntos pendentes em São Paulo, eu não podia nem 
pensar na hipótese. 
Voltamos à gravadora. A reunião demorou a começar. Outros 
assuntos ocuparam o presidente em outra sala. Os advogados já 
tinham o contrato datilografado com dezenas de cláusulas já 
impugnadas por nós, que voltaram a ser redigidas por eles. 
Deselegância irritante. Eles se acham gênios. Comecei a discutir com 
os diretores sem muita paciência. Minha intérprete ia traduzindo 
com fidelidade. Anunciaram que o presidente da companhia chegaria 
dentro de instantes. E os instantes foram passando. Quando chegou, 
aconteceu algo fantástico: os relógios marcaram 18 horas, e a sala 
esvaziou-se. Advogados, diretores, datilógrafas, todos saíram. 
O presidente pediu as desculpas de seu estoque e, quando ia 
propor o adiamento para o dia seguinte, na primeira hora, cedinho, 
antes de seu vôo para Londres, minha intérprete teve uma idéia 
genial. Disse ao presidente que faltava apenas datilografar o acordo 
acertado e que ela se dispunha a fazê-lo. Ele aceitou, mandou servir 
café e ficou conversando com Roberto, que já falava razoavelmente 
bem o inglês. Fiquei ao lado da assessora, alteramos todas as 
cláusulas que nos aborreciam, fixamos os honorários
do Roberto 
sobre o valor de face na venda ao público, e, rapidinho, rapidinho, o 
contrato estava na mesa para ser assinado, em várias vias, nas duas 
línguas, inglês e português. Lembrei-me ainda de redigir o foro de 
eleição: Judiciário brasileiro. 
Chamei o Roberto de lado e disse com firmeza: 
— Você acredita em Deus? 
— Claro, bicho! 
— Então reze, ponha na sua cabeça que foi Deus quem criou o 
dia 13 e nos deu a oportunidade de escrever o contrato tal qual nós 
quisemos, sem nenhum diretor ou advogado para atrapalhar. 
Roberto rezou, fez o sinal-da-cruz e assinou. O presidente nos 
cumprimentou, e saímos todos felizes. As condições eram 
sensacionais. Fiquei sabendo depois que os diretores quiseram criar 
caso, mas o presidente acabou com a festa: 
— Assinei, está assinado, não se fala mais no assunto! 
19 
Fui agradecer ao embaixador Sérgio Frazão pelo apoio dado 
com a disponibilidade de sua genial secretária, e comentamos os 
fatos ocorridos. 
— Você sempre está envolvido no meio de mágicas — disse ele. 
É verdade. Quando fui convidado por Jânio Quadros, para 
assessorá-lo na Presidência da República e, sobretudo, na política do 
café, o Brasil tinha a tradição de nomear para o IBC — Instituto 
Brasileiro do Café — os líderes rurais, fazendeiros e produtores, ou 
presidentes das associações cafeeiras. O café era muito importante 
para o país naquela época. Ainda é. Mas, em 1961, a exportação 
desse produto representava três bilhões de dólares num total de 
quatro a cinco bilhões. Recomendei que fosse nomeado para o cargo 
um diplomata, bom negociador internacional. A política do café tinha 
que se voltar para a conquista do mercado externo. Com esse perfil, 
encontramos o ministro de segunda classe do Itamaraty, Sérgio 
Armando Frazão. 
Trabalhamos juntos nos sete meses do Governo Jânio. Fizemos 
tudo o que era possível. Acabamos com o confisco cambial que 
pesava sobre a exportação do produto, para felicidade geral da 
cafeicultura. Criamos incentivos para a produção de qualidade, a fim 
de enfrentar a concorrência do café colombiano e atender à exigência 
da maioria dos consumidores de café por esse mundo afora. 
Provocamos a inclusão dos importadores no acordo internacional do 
café, para que eles ajudassem a vigiar os exportadores que 
fraudavam suas cotas fixadas pelo acordo internacional. 
Essa questão foi tema de uma discussão brava numa reunião 
dos países produtores integrantes da OEA, realizada em Punta del 
Este, no Uruguai. Nos debates, tive forte discussão com o 
representante da Costa Rica, pois ele reagiu furiosamente a uma 
acusação minha contra a fraude às cotas de exportação praticadas 
por seu país. Eu tinha até a lista das empresas norte-americanas 
que importavam o café costarriquenho fora da cota. 
Os demais países produtores, iguais vítimas da fraude, 
passaram a dar apartes em meu apoio. E, de repente, uma voz se 
levantou na sala dos debates: 
— Proponho que se encerre esta discussão com um imediato 
voto de censura à Costa Rica e voto de prestígio ao Brasil. 
Era o representante de Cuba: Che Guevara. 
Estava ele no auge do seu romântico prestígio internacional. 
Costa Rica foi massacrada pelo plenário. 
Naquela noite, Frazão e eu fomos jantar com Guevara. No dia 
seguinte, cedo, o Ministro Clemente Mariani, chefe da nossa 
delegação, convocou-me para comunicar: 
— Recebi ordens do Presidente Jânio, para informar ao Che 
que ele será condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul e para 
convidá-lo a ir a Brasília, a fim de receber a condecoração logo após 
a reunião da OEA. Isso vai ser uma bomba. Os Estados Unidos vão 
nos devorar. 
Frazão estava junto. Perspicaz e de uma inteligência invejável, 
matou a charada: 
— Ministro — disse ele ao Clemente Mariani —, não se 
preocupe. O Presidente Kennedy vai adorar o fato. Ele está lutando 
no Congresso norte-americano para aprovar verbas destinadas a um 
programa de ajuda à América Latina, chamado Aliança para o 
Progresso. Esse gesto do Brasil vai assustar os congressistas 
republicanos contrários a Kennedy, e a verba será aprovada. Ali as 
coisas funcionam à base do medo. 
Frazão tinha razão. O melhor combustível para tocar 
americanos é o medo. Naquele tempo, o medo era do comunismo na 
América Latina. O programa foi aprovado. Porém, ao final, depois do 
assassinato de Kennedy, como quase tudo em matéria de verba na 
América Latina, terminou em corrupção, confirmando nossa gloriosa 
latinidade. 
Mas, em Punta del Este, conseguimos incluir no Acordo 
Internacional do Café os países consumidores, que passariam a 
ajudar no controle das cotas dos exportadores. Sérgio Frazão foi o 
herói dessa conquista. 
Por que ele falou em mágicas? 
20 
Um dia, propus a Jânio que promovesse o Ministro Frazão, 
Presidente do IBC, a ministro de primeira classe, isto é, a 
embaixador, para que ele tivesse, nas rodadas internacionais, o 
mesmo status dos demais negociadores, sobretudo o da Colômbia, 
cujo representante era um embaixador de altíssimo prestígio. Se não 
me engano, chamava-se Jaramillo. Promoção no Itamaraty é sempre 
uma guerra. Vencidas as batalhas todas, Jânio autorizou, o decreto 
foi datilografado e, antes da assinatura do Presidente da República, 
foi referendado pelo Ministro das Relações Exteriores, o Chanceler 
Afonso Arinos. 
A Casa Civil mandou cópia para o Diário Oficial, e a promoção 
foi publicada. Mas, no dia seguinte, Jânio renunciou ao mandato de 
Presidente da República e partiu para São Paulo. O país entrou em 
polvorosa. Naquele dia, em meio à confusão, Quintanilha Ribeiro, 
Ministro Chefe da Casa Civil, recolheu tudo o que estava sobre sua 
mesa e voou para São Paulo. No meio dessa papelada, estava — 
supúnhamos — o decreto de promoção de Sérgio Armando Frazão 
sem a assinatura do Jânio. E o Chico, como chamávamos o 
Quintanilha, nem notou. 
Depois da posse de Jango Goulart, alguém levantou a questão 
no governo. Sempre existe alguém para descobrir essas coisas. Havia 
a publicação no Diário Oficial, mas o decreto original desaparecera. 
Frazão, que continuou no IBC, telefonou-me preocupado, pois essa 
formalidade poderia anular sua promoção. Jânio já havia voltado do 
seu exílio voluntário em Londres. 
Fui para a casa do Quintanilha, e ele me informou que todos os 
papéis da Casa Civil tinham sido devolvidos, assim que passada a 
crise da posse de Jango. Não estava com ele. Senti um calafrio. 
Mas havia uma esperança. Vários auxiliares do Chico também 
haviam recolhido papéis da Casa Civil. Procurei-os todos. Enfim, com 
um deles, Ara-ripe Serpa, lá estava o decreto. Peguei-o, enfiei na 
minha pasta e fui procurar o Jânio, que estava na casa de Dona 
Leonor, mãe dele, em um apartamento modesto na Praça da 
República, em São Paulo. 
— Você se esqueceu de assinar este papel — disse, quando 
entrei. 
Leu, meditou e perguntou: 
— Você quer que eu assine agora? Não será uma falsidade 
ideológica? 
— Deixa disso, Jânio. Trata-se apenas do aperfeiçoamento 
formal de um ato já publicado no Diário Oficial. E está com o 
referendo do Ministro de Estado da época. 
— Bem, você foi o único que acertou na conceituação jurídica 
dos efeitos da minha renúncia. Confio nos seus conhecimentos de 
Direito. 
E assinou. Agradeci os elogios que, partindo dele, nunca se 
sabia se eram verdadeiros ou simples ironias. Mas saí aliviado, com 
um problema conseqüente: como fazer o decreto chegar ao escaninho 
em que devia estar desde agosto de 1961? 
Consegui um jeitinho. E o decreto descansa lá, sem ser 
perturbado. É um dos fatos mágicos a que se referiu Frazão, nosso 
Embaixador na ONU, em Nova York, de
onde, tempos depois, saiu, 
homenageado em um mesmo ato por árabes e judeus, mágica que 
conseguiu por suas habilidades diplomáticas extraordinárias.15 
21 
Em São Paulo, eu tinha um amigo mais velho, experiente, meio 
filósofo, meio paranormal, digno de ser personagem de Paulo Coelho. 
Não era advogado, mas sempre analisava as coisas com muito bom 
senso ou sob intensa explosão sentimental. Fascinava-me ouvi-lo. 
Quando podia, passava pela casa dele para um papo e falava dos 
meus casos, para ele analisar à sua maneira. Chamava-se Gervásio. 
Falava em cachoeira. Somente depois do discurso, dava chance 
ao interlocutor. Em uma das muitas vezes, tive que ouvir, no 
passado, uma longa dissertação sobre o assassinato de Kennedy, do 
irmão, os métodos da CIA, a burrice dos comunistas, as ditaduras 
latino-americanas, a vigarice de Fidel Castro, a indústria do medo 
das bombas nucleares da União Soviética. Mas analisava tudo muito 
bem. E continua assim até hoje. Há pouco tempo, estivemos juntos 
e, não sei por que, talvez a propósito da indústria da atual guerra 
contra o terrorismo, o novo inimigo da humanidade que tudo 
justifica, falei nos métodos dos anarquistas do século XIX. Pronto. 
Ele despejou: 
— Depois, passamos a assistir aos suicídios dos terroristas 
árabes no Oriente Médio e à barbaridade daqueles suicídios em 
aviões seqüestrados pelo bando de Bin Laden contra as torres 
gêmeas de Nova York, contra o Pentágono, e o terceiro avião, que se 
 
15 Sérgio Armando Frazão teve um filho, Armando Sérgio, que ingressou na carreira 
diplomática, tornou-se embaixador e honra a tradição da família servindo o Brasil 
no exterior. 
estatelou, provavelmente em virtude da reação dos passageiros. 
Ninguém se conforma com tal violência e idiotice. Bin Laden 
conseguiu, com esse processo, além da morte de milhares de ino-
centes, o crescimento político de um George Bush, político americano 
medíocre, como há decênios os Estados Unidos não tinham na 
Presidência. Virou herói diante da matança e, como marqueteiro 
macabro, aproveitou o impacto das mortes para criar naquele país a 
exploração do medo, mantendo-se no poder para exercitar a doutrina 
da guerra preventiva, isto é, para atacar países que, em sua opinião, 
sejam perigosos para a segurança americana e alimentar a insaciável 
fome de dinheiro da indústria de armas e de petróleo. E ninguém 
explicou até hoje por que não se encontraram destroços do avião 
atirado contra o Pentágono. 
22 
Sem tomar fôlego, Gervásio continuou: 
— O terrorismo, em conseqüência, aumentou, sobretudo 
depois da guerra do Iraque, com a utilização mais forte de homens 
suicidas, que carregam de explosivos carros e caminhões, ou se 
vestem de bombas, para explodir ônibus e centros de diversão 
popular, matar crianças, idosos, mulheres, gente inocente. E 
provocar respostas descomedidas, como o bombardeio de bairros 
inteiros, sob a justificativa de que abrigam terroristas. Hoje, qualquer 
assassinato, como faz Israel na Palestina, ou no Líbano, é 
plenamente justificado moral, religiosa e juridicamente, se assim é 
feito como um direito de defesa exercido contra o terrorismo. Se você 
manda um míssil contra uma casa de palestinos, basta dizer que ali 
se abriga um terrorista. Não há reprovação alguma. E pensar que 
isso se faz em nome dos judeus, que todos nós defendemos contra o 
nazismo, que fazia precisamente isso com eles! Tanto que um dos 
meus heróis nesse mundo é o Simon Wiesenthal, o caçador de 
nazistas. Até esse putão do Putin proibiu, na Rússia, eleição direta 
para governadores de província, invocando o perigo do terrorismo. 
Quis interromper para fazer um comentário, mas Gervásio 
virou sua bússola para o Oriente Médio e metralhou: 
— O Oriente Médio está desorientado. Agora surgiu o 
Presidente do Irã, um tal de Mohamoud Ahmadinejad, um maluco, 
declarando que Israel deve ser varrido do mapa. Ou transferido para 
a Europa. E que o holocausto não existiu. Foi tudo mentira. Faltou 
dizer que Hitler desentendeu-se com os judeus apenas porque 
desejou ser Papa. Realmente está desorientado o Oriente Médio. 
Israel perdeu Ariel Sharon. Derrame cerebral. E os palestinos 
aderiram de vez ao terrorismo, elegendo, por maioria absoluta, os 
membros do Hamas16 para o parlamento deles. Derrame intestinal. 
Não tem mais conversa. Israel de um lado e do outro o terrorismo, 
como governo formalmente constituído sob falsa coabitação para 
receber ajuda de países europeus. Depois vem o Hezbollah, no 
Líbano, e declara guerra a Israel. 
— Hizbollah. 
— Não me importa se é “Hez” ou “Hiz”, mas são uns 
energúmenos, todos com z de zebra. E Israel, um Estado 
democrático, aceita a declaração de guerra daquele grupelho de 
bandidos fanáticos e passa a matar crianças no sul do Líbano. Tem 
razão o capitão Amir Fester, do exército israelense, que se recusou à 
convocação para combater no sul libanês: sinto que fui chamado para 
uma guerra idiota, onde estão morrendo civis e tudo poderia acabar 
com um simples cessar-fogo. Foi para a cadeia por insubordinação. 
Parou de falar. Fixou os olhos num ponto invisível da sala 
como se quisesse enxergar através da parede. O assunto era árido 
por definição. Nosso mundo, o ocidental, não entende bem a 
civilização árabe. Sobretudo suas doutrinas religiosas. Um jornal da 
 
16 Hamas — Movimento de Resistência Islâmica, milícia armada, que luta pelo 
desaparecimento de Israel e promove os atos terroristas em território do país 
vizinho. Derrotou o Fatah, partido político fundado por Iasser Arafat, e que estava 
no governo palestino tentando negociar a paz com Israel por meios pacíficos. 
Dinamarca publicou uma caricatura do profeta Maomé, e as 
populações mulçumanas se revoltaram. Incendiaram embaixadas. 
Governos romperam relações com países da Europa. Na Arábia 
Saudita, um time de futebol, com jogadores brasileiros, hospedou-se 
num hotel em Meca para um jogo com o time local. A polícia religiosa 
descobriu. Expulsou os brasileiros de seus quartos e da cidade. 
Eram três horas da madrugada. Somente voltaram na hora do jogo. 
Tiveram que ficar na cidade vizinha. O jogo se realizou na hora 
marcada e terminou em 0x0. Mas o time teve seus diretores presos e 
foi rebaixado para a segunda divisão. Os ocidentais não sabem disso: 
quem não é mulçumano não pode entrar em Meca, onde nasceu o 
profeta Maomé. E muito menos se hospedar em seus hotéis. 
— Vivemos um período complicado da história humana. Sujo e 
burro — comentei. 
— Detesto sujeira e não tolero burrice — arrematou Gervásio. 
— A humanidade deu uma demonstração maravilhosa de 
solidariedade para com o povo da Ásia, na tragédia do tsunami, o 
maremoto que matou quase 300 mil pessoas em vários países. O que 
está acontecendo? Há ladrões que roubam os donativos e 
descaradamente os vendem em mercados. E o Bush? Ofereceu 35 
milhões de dólares para ajudar. Depois, passou para 350 milhões. 
Você sabe quanto ele gasta no Iraque, para matar pessoas? 
— Não. 
— Cinco bilhões de dólares por mês! Cinco bilhões a cada 
trinta dias! E, para ajudar a Ásia, manda 350 milhões. Um homem 
desses é eleito pelo povo americano duas vezes. Agora, ele vai dizer 
que a reeleição aprovou todos os seus atos na política externa. 
Guerra, torturas, Abu Ghraib, Guantánamo. Aquela história das 
armas de destruição em massa no arsenal de Sadam, informada pelo 
serviço de espionagem do governo Bush, apresentada agora com 
“desculpe, foi engano!”, poderá agüentar uma investigação no futuro? 
O serviço secreto inglês cometendo o mesmo erro com os James 
Bonds da vida?
Um dia, vão descobrir que o 11 de Setembro foi 
conluio entre Bush e Bin Laden. Basta perguntar a quem aproveitou 
o crime. O enforcamento de Sadam Hussein, depois de um simulacro 
de processo penal, foi, na verdade, uma queima de arquivo, pois 
Sadam, cria dos Estados Unidos, poderia abrir a boca se não o 
mandassem para a forca logo em seguida. O recurso de apelação 
nem tramitou. 
— Você é contra a condenação de Sadam, ditador sanguinário, 
brutal, maluco? 
— Ninguém seria contra a condenação se o julgamento fosse 
realizado dentro das leis internacionais. E ele condenado, talvez, à 
prisão perpétua, como se fez com os nazistas em Nuremberg. Com o 
passar dos anos, Sadam começaria a falar. Por isso Bush mandou 
enforcá-lo rapidinho. 
23 
Depois afirmou que tudo no Governo Bush está direcionado 
para as empresas de Dick Cheney, o vice, ganharem dinheiro, tanto 
na guerra do Iraque, como nos escombros de Nova Orleans. Mas 
acentuou que o vice-presidente dos Estados Unidos é sádico, 
incentiva e comanda a política de tortura, assessorado por um 
tarado: Stephen Cambone, bandido perigoso que integra o governo 
norte-americano. Tudo isso ficou muito claro nas revelações da 
general Janis Karpinsky, em seu livro One Woman’s Army,17 em que 
acusa a tortura de inocentes, como se fosse legal torturar culpados. 
Fala com a autoridade de quem foi a comandante-em-chefe da prisão 
Abu Ghraib, em Bagdá, no Iraque. 
Aliás, a imprensa tem sido condescendente com a roubalheira 
no Iraque. Por que os Estados Unidos destinaram bilhões de dólares 
para a guerra e em seguida bilhões de dólares para a “reconstrução” 
do país? A verba destinada ao armamento é embolsada pelos 
 
17 “Exército de uma mulher só”. 
espertos. Ninguém confere quantos tiros deu uma metralhadora. Em 
futuro próximo, vamos ver os casos cabeludos que serão revelados 
pelo SIGIR, um organismo criado pelo Congresso dos Estados Unidos 
para investigar as patifarias financeiras (as outras, todos conhecem). 
Uma delas, dentre milhares, já foi descoberta. A construção da 
Academia de Polícia em Bagdá, que custou 75 milhões de dólares, 
verba fácil, urgente, tudo em nome da segurança. No dia da 
inauguração foi interditada. Era tudo falso. Parede, encanamento, 
teto, piso. O dinheiro sumiu e deixaram lá um maquetão para fingir 
de obra acabada. Guerra também serve para isso. 
Gervásio continuou: 
— Esse sujeito, o Bush, é o mal em putrefação. Somente 
entende de matar e de guerra. Veja a sua ineficácia para a paz, sua 
incompetência para salvar as vítimas do furacão Katrina, que 
destruiu Nova Orleans. O país mais poderoso do mundo deixou 
centenas de pessoas morrendo ao desabrigo, feridos apodrecendo, 
famintos e sedentos saqueando uns aos outros. Um horror. O que fez 
Bush? Foi à televisão pedir contribuições, ajuda. Seu governo não 
tem recursos para socorrer gente em seu próprio território, porque 
gasta tudo . matando gente nos territórios estrangeiros. Os norte-
americanos são uns cretinos. Reelegeram um homem desses, depois 
de admitirem sua eleição fraudada pelo Governador da Flórida, seu 
irmão. 
— Nem todos — respondi. — Bush ganhou por uma diferença 
mínima: 2%. 
— Mas ganhou! Logo, naquele país, a maioria é burra. Todo 
medroso é burro. Creio, porém, no Judiciário deles. Chegará o dia 
em que algum juiz ou tribunal haverá de declarar a 
inconstitucionalidade das prisões sem direito de defesa para os 
presos acusados de terrorismo. Tal como a Suprema Corte dos 
Estados Unidos declarou inconstitucional o julgamento pelos tri-
bunais militares criados por George W. Bush, seguindo o voto 
magnífico do Juiz David Souter, que estraçalhou com a histeria 
policial da Casa Branca. Bush é catástrofe em tudo. A humanidade 
conseguiu celebrar o mais importante acordo internacional de todos 
os tempos: o Protocolo de Kyoto. Receita para salvar o planeta. Bush 
é contra, sob aplausos de muitos americanos. Pode? 
— É por isso que Vicente Ráo dizia: o americano é o português 
que deu certo. E você tem razão. Enquanto houver democracia, o 
Judiciário é a esperança. 
— E não é de hoje que esses políticos se sustentam, explorando 
o medo dos idiotas de seus cidadãos. Você se lembra? A humanidade 
viveu, durante muito tempo, sob o medo das ogivas atômicas da 
União Soviética. No final, fizeram um aborto na montanha. Resultou 
em vários ratos, inclusive um bêbado. Agora é o terrorismo, menos 
perigoso que as ogivas, e até um dos ratos abortados, o Putin, usa a 
nova moda para ter mais poderes. Você soube o que disse Philip 
Zimbardo, um dos maiores psicólogos norte-americanos e um dos 
autores da Teoria da Janela Quebrada? 
— Não. 
— Pois toma lá. Veja que análise perfeita: “O governo Bush 
manipula a ansiedade nacional causada pelo 11 de Setembro a 
serviço de suas próprias ambições políticas. Essa administração só foi 
reeleita porque criou o que chamamos de ‘Síndrome do Estresse Pós-
Traumático’. Não precisamos de um ataque terrorista, estamos 
fazendo todo o trabalho para eles”. 
Esperou um pouco, tomou fôlego e me perguntou se eu 
conhecia o dramaturgo e poeta inglês Harold Pinter. 
— Claro — disse eu. — Foi o ganhador do prêmio Nobel de 
Literatura em 2005. Mas não conheço a obra dele. 
— É quase um Shakespeare do século passado. No seu 
discurso perante a Academia Sueca, na solenidade de entrega do 
prêmio Nobel, ele disse que a literatura é uma forma compulsiva de 
busca da verdade, ao contrário dos políticos, que buscam apenas o 
poder, e, para isso, o primeiro valor que matam é precisamente a 
verdade. Aproveitou para chamar Bush e Tony Blair de bandidos, 
dizendo que deveriam ser julgados como criminosos de guerra. 
— Deu uma enorme colher de chá para os árabes, pois no 
momento não há outras guerras além das do Iraque e do 
Afeganistão, além do mal-estar com o mundo islâmico. Ou Harold 
Pinter estava se referindo às guerras preventivas, aquelas que, na 
cabeça de Bush, permitem a invasão de qualquer país sob qualquer 
pretexto a título de defesa prévia? 
— Referia-se aos árabes, sem dúvida alguma. E você acredita 
que os árabes, fanáticos tanto quanto Bush, podem tolerar charges e 
piadas dos ocidentais, quando seus líderes são acusados de 
bandidos por um prêmio Nobel? 
— Espera lá, meu caro. Na Turquia, o prêmio Nobel de 
Literatura, Orhan Pamuk, fugiu de seu país porque foi ameaçado de 
morte. Idéias liberais e críticas em Istambul são motivos de 
assassinato. Depois de ver morto a tiros seu colega e amigo, 
jornalista e escritor, Hrant Dink, Pamuk se mandou, ou, como diz a 
juventude de hoje, vazou rapidinho. O dinheiro do Nobel pode ajudá-
lo a manter-se por algum tempo fora da mira dos fanáticos de sua 
terra. Não é apenas Bush que assassina as liberdades. 
— Bush é tão desastrado que, na América Latina, conseguiu 
ter como inimigo Hugo Chávez, um imbecil, que passou a legislar por 
decretos através de uma tal lei habilitante. Bush é incompetente até 
para ter inimigos, pois, apesar de Chávez achincalhá-lo todos os 
dias, continua comprando petróleo da Venezuela, que, com esse 
dinheiro, compra armas e prestígio na região. Outra questão que não 
consigo engolir: Lula pediu ao Bush para abolir a taxa que os Es-
tados Unidos cobram na importação do nosso etanol. Resposta 
negativa. Mas sobre o petróleo importado da Venezuela não cobram 
taxa alguma. 
— Ainda bem que o povo norte-americano reagiu impondo uma 
fragorosa derrota aos republicanos nas últimas eleições de seu 
Congresso e de seus governadores. A Câmara dos Representantes 
passou a ter maioria de democratas, e Bush vai ter que dançar baião
de dois se quiser ficar na Casa Branca até o fim de seu mandato, se 
não lhe arrumarem um impeachment. Enquanto isso, será divertido 
ver o antes todo-poderoso Bush apanhar de duas mulheres: Nancy 
Pelosi, na Câmara, e Hillary Clinton, no Senado. 
Tive que encerrar a conversa com essas críticas a Bush. 
Gervásio sossegou. Ele não é propriamente um adepto do 
antiamericanismo, pois, para ser assim, teria que se igualar à 
idiotice de Hugo Chávez. Mas é um ferrenho anti-Bush. Os mais 
ferrenhos marxistas, quando se declaram antiamericanistas em 
geral, esquecem que Karl Marx admirava os Estados Unidos e 
afirmou isso em carta dirigida ao presidente Lincoln.18 
24 
E Gervásio fala, fala. Foi assim sempre. Voltando ao passado 
para retomar o fio do novelo, lembro-me daquele dia em que fui 
visitá-lo, quando lhe contei, depois de ouvir o discurso sobre 
Kennedy, o caso do Sr. Olavo Brás. Contei-lhe tudo: gravações, 
perícias, vida da mulher, ameaça de suicídio do meu cliente. 
Gervásio ficou em silêncio por alguns instantes e perguntou: 
— As vozes das crianças estão nítidas? Não há algum vestígio 
de que falam de distâncias diferentes do gravador, tipo mais perto, 
mais longe? 
— Não. O som é igual o tempo todo. E muito claro. Nada indica 
 
18 Em novembro de 1864, Karl Marx escreveu uma carta ao presidente americano 
Abraham Lincoln, cumprimentando-o por sua reeleição, pela guerra contra os 
confederados e a favor da abolição da escravatura. Marx prestou homenagem à 
grande república democrática e à sua pioneira declaração dos direitos do Homem. 
Lincoln respondeu dizendo que “as nações não existem apenas para si mesmas, 
mas para promover o bem-estar e a satisfação da humanidade, pelo intercâmbio 
benevolente e pelo exemplo. É sob essa luz que os Estados Unidos enxergam sua 
causa no presente conflito contra a escravatura, sustentando a insurgência como 
uma bandeira da natureza humana”. A resposta foi assinada pelo embaixador 
Charles Francis Adams. 
afastamento ou aproximação das crianças no momento em que suas 
respostas foram gravadas. 
— Essa mulher tem um cúmplice! — sentenciou Gervásio. 
— O que você quer dizer com isso? Um amante? Um 
namorado? 
— Não. Um cúmplice na autoria das gravações. 
— Por que você tirou essa conclusão? 
— Simples. Primeiro, as mulheres não são exímias operadoras 
dessas maquininhas modernas de gravar. Segundo, a gravação com 
duas crianças é trabalhosa. Você disse uma de sete, a menina, e 
outro, o menino, de nove anos? 
— Creio ser machismo seu achar que mulher não sabe operar 
gravadores. As crianças têm sete e nove anos. 
— Numa situação dessas, as crianças não se sentem à 
vontade. Falar mal do pai. Ficam constrangidas. Andam de um lado 
para outro, querem sair da sala, sentam, levantam, se atiram em 
sofá, se houver um por perto, pedem suco, sorvete, querem ir ao 
banheiro. 
A imaginação de Gervásio não tinha fim. 
— E a mãe — continuou ele — não poderia segurar o gravador, 
operar as teclas, fazer as perguntas e ditar as respostas, soltar o 
gravador depois de feitas as perguntas, sem segurar a criança da vez. 
Não teria êxito, se a criança estivesse solta. É impossível mantê-la na 
mesma posição, de forma que a voz seja gravada em igual distância o 
tempo todo. A mãe tem que segurá-la, ou pelo ombro, ou pelos 
braços, ou pela cintura, sem violência, mas tem que segurar. Criança 
nessa idade? Gravando essas coisas? Tem que segurar. 
— E daí? 
— Daí, foi o cúmplice quem executou as operações de grava-
pausa-solta-grava, trabalhando no gravador. A mulher não podia 
fazer isso, tendo de segurar as crianças. Ela tem um cúmplice. 
Investigue. Você descobre. 
Voltou a falar dos problemas do mundo. Despedi-me e fui para 
o escritório, agora com um problema a mais: o “cúmplice”, que o 
Gervásio enfiou na minha cabeça. Alguém disse uma vez, 
misturando cinismo com humor: Quando é grande demais a 
confusão, está-se bem próximo da solução. Acho que foi o Lair 
Ribeiro, um emérito otimista. 
25 
O laudo da perícia do Sinval era claro: a cada pergunta 
formulada pela mãe, havia um clique sobre o botão de pausa no 
gravador, ou, mais provavelmente, sobre o stop, porque a interrupção 
das ondas gráficas, no leitor de áudio, era abrupta. Os desenhos 
sonoros cessavam completamente e, em seguida, retornavam no 
osciloscópio com a resposta da criança. Sinval ilustrou com fotos 
todos os trechos em que isso ocorria, numa época em que não era 
fácil obter esse tipo de reprodução. 
Não havia dúvida: entre a pergunta e a resposta, o gravador era 
travado. Daí a certeza de que as frases das crianças foram ditadas 
pela mãe. Intuitivamente, meu cliente acertara. O grande mal, a 
tragédia irreparável, não era a acusação contra ele, mas o fato de 
seus filhos terem sido levados a descrever atos obscenos que 
seguramente desconheciam e dos quais, por essa diabólica forma, 
tomaram conhecimento. 
Sobre a vida da mulher, as informações foram chegando aos 
poucos. Nerval, Casé e meus demais assistentes transformaram-se 
em agentes policiais, o que sempre ocorria quando precisávamos 
colher provas difíceis. Vasculharam tudo. Ela freqüentava a praia do 
Guarujá e, por várias vezes, fora vista no “clube da chave”. Ali se 
reuniam casais devassos, que se divertiam misturando as chaves dos 
respectivos quartos, e cada um dos homens, de olhos fechados, 
pegava uma delas para ir dormir com a mulher do outro, que 
estivesse ocupando o quarto da chave sorteada. Era invalidada a 
escolha quando coincidia de pegar a chave do próprio quarto. Gente 
maluca, 
A mulher era desquitada, mas freqüentava o clube com um 
namorado. Gostava, portanto, desse tipo asqueroso de aventura. 
Claro que não seria fácil provar o fato, mesmo porque os demais 
freqüentadores jamais admitiriam praticar esse jogo deprimente. Mas 
já era alguma coisa. O “clube da chave”, no Guarujá, de alguma 
forma, sofria um zunzum sobre essa atividade. Se o zunzum se 
espalhou, ainda que discretamente, haveria alguém que ouviu dizer. 
Talvez um garçom que serviu bebidas, ou algum entregador de pizza. 
Eu teria, primeiro, que demonstrar o que era o “clube da 
chave”, achar alguém que prestasse depoimento sobre o que se dizia 
do clube e de seus freqüentadores. E, depois, uma outra testemunha 
que tivesse visto a mulher entrando ou saindo do local, onde se 
supunha que o clube funcionasse. 
Mas o que isso teria a ver com o fulcro do processo de guarda 
das crianças e o direito de visita do pai? Não sei se o juiz aceitaria a 
prova, pois, mesmo se eu a conseguisse, o fato demonstraria que a 
mulher era uma devassa, talvez indigna de ter a guarda de filhos 
menores, mas não ilidiria a acusação contra o meu cliente, 
materializada na gravação da fita cassete. Eu provocaria grande 
confusão nos autos e na cabeça de todos. Poderia conseguir a 
transferência da guarda das crianças para os avós, que estavam 
vivos; mas não devolveria ao meu cliente o direito de visita e não o 
livraria das conseqüências penais decorrentes de atos obscenos 
praticados com menores, sob o agravante de tê-lo feito com os 
próprios filhos. 
Mas a mulher é uma grande sem-vergonha. Deixei meus 
assistentes continuarem buscando todas as provas. Não seria 
demais. Um dia poderia surgir algo que virasse tudo. 
26 
Certa vez, tive um processo em que duas partes disputavam a 
propriedade de umas terras no litoral de Santos. Provas de todos os 
jeitos. Testemunhas idosas atestando que cada um deles não 
somente tinha a posse, mas também o título de domínio mais 
legítimo. A disputa visava ao registro no cartório de imóveis. 
A parte contrária apresentou
seu título de propriedade, papel 
antigo, escrito à mão, emitido pelo fabriqueiro da região no tempo do 
Império. Dizia-se “fábrica” o conselho constituído de clérigos e leigos, 
sujeito à aprovação do bispo, e cujas funções se restringiam à 
administração dos bens de uma paróquia, funções que abrangiam 
emitir títulos de propriedade ou de venda e compra entre os 
paroquianos. 
Submetido à perícia, o título da parte contrária prevaleceu, 
pois datava do tempo do Império, e o do meu cliente, embora 
formalmente constituído de acordo com o Código Civil de 1916, 
perdeu no confronto. Sentença contra. 
Durante o prazo da apelação, um colega meu, o Dr. Carlos 
Cherto, levou os autos para casa, a fim de estudá-los 
minudentemente, como sempre fez. Retirou dos autos o velho título e 
o olhou contra a luz. Na linha-d’água do papel, quase imperceptíveis, 
estavam as armas da República. O título era “fabricado” e não 
emitido pela fábrica da paróquia. Bendito o patriotismo republicano 
do fabricante do papel! 
O Dr. Ariosto Guimarães costumava contar que um caiçara 
uma vez o procurou, para oferecer seus serviços ao ilustre advogado 
de Santos, especializado em demandas de terras. E com a maior 
tranqüilidade lhe disse: 
— Doutor, eu posso arrumar para o senhor qualquer tipo de 
documento, pois, nessas brigas de terra, sem documento o senhor 
não ganha a questão. 
Talvez tenha sido esse caiçara que ludibriou a nós e aos 
peritos, que não viram naquele título nenhum indício de falsidade. 
Não se pode desistir. 
Para mim, no caso do meu cliente que queria suicidar-se, o 
“documento” era o laudo do Sinval. Prova segura da materialidade do 
embuste, mas restrita às pausas do gravador. 
Tive impulso de ir falar com o juiz da causa, magistrado 
competente, usando desses pequenos truques de “Vim dizer boa 
tarde, porque estava passando por aqui”. E aproveitar para comentar 
sobre o laudo particular, revelando os detalhes das pausas na 
gravação. Contive-me. Era melhor requerer e esperar a perícia oficial. 
27 
Em advocacia, é preciso pensar, planejar e ter muita calma, 
refletir sempre. Aprendi isso logo cedo, com um excelente advogado 
criminalista de Santos, José Gomes da Silva. Recém-formado, fui 
fazer estágio em seu escritório. Encarregado de defender um rapaz 
acusado de sedução, enfrentei meu primeiro processo com grande 
esmero. Aberto o inquérito por advogado com procuração para dar a 
“queixa”, ouvidas as partes, relatado pelo delegado, o Ministério 
Público ofereceu denúncia, porque o caso é de ação pública. A mim 
caberia levar o réu para ser interrogado, fazer a defesa prévia e 
requerer provas. Mas verifiquei que, nos autos, não havia a 
necessária representação dos pais da menor, o que acarreta a 
nulidade absoluta do processo penal nesse caso. 
Entusiasmado, comuniquei o fato ao Dr. Gomes da Silva e lhe 
disse que liquidaríamos a causa já na defesa prévia. 
— Não senhor — disse ele —. primeiro faça as contas. A lei 
processual penal fixa em seis meses o prazo para a representação. 
Desde a abertura do inquérito, quase contemporâneo à sedução 
alegada, não se passaram seis meses. Temos que deixar correr o 
prazo da lei, que é de decadência e não pode ser interrompido para 
contar de novo, como acontece com a prescrição. Além do mais, 
teremos um dia seguro para o começo da contagem, pois, em matéria 
de sedução, sempre há muita controvérsia relativa a quando se deve 
contar o prazo para a representação. 
Aprendi mais essa. Deixei correr os meses e, depois, com a 
expressão angélica de advogado moço, aleguei a nulidade. E o 
processo foi arquivado. Aprendi a conviver com minha consciência. 
Uma solução técnica de ordem processual poderia ter sido razão da 
impunidade de um culpado? Se aceitou a causa, o advogado não 
deve amargurar-se com essas perguntas. O objetivo é defender seu 
cliente, sem abdicar dos valores morais. Foi nosso juramento, ao 
receber o diploma e ao entrar na OAB. Não pode, porém, ser rigoroso 
consigo, invocando valores morais em mutação na sociedade em que 
vive e exerce sua profissão. Foi um gênio aquele que descobriu o 
mais óbvio dos lugares-comuns: cada caso é um caso. 
A moça seduzida poderia ter seduzido mais do que o rapaz 
acusado de sedutor. Nesses encontros e desencontros românticos e 
amorosos da juventude, não há muito valor moral a ser censurado, 
sobretudo sob enfoque do Direito Penal. Creio que estava certo, 
porque esse tipo de crime saiu de moda e foi revogado no Código 
Penal. 
28 
Imperdoável era o “clube da chave”. Ou o fato de ensinar 
crianças a contarem coisas imorais, para produzir prova contra ex-
marido. E por quê? O que levaria uma mulher, por mais depravada 
que fosse, a deixar de proteger a pureza de seus próprios filhos, 
ensinando-lhes não a prática dos atos horríveis narrados, mas como 
descrevê-los, o que, na sensibilidade delas, deveria causar o mesmo e 
irreparável estrago pelo resto da vida? 
Sempre supus que, na vida animal, em qualquer tipo, o 
instinto materno era o mais sublime, a começar pela defesa 
incondicionada dos filhos, sob todos os aspectos e em todas as 
situações. A exceção que agora desmentia minhas convicções deveria 
ser única. Tinha que ser a única. 
Aquela cliente que eu passara ao Paulo de Tarso levava uma 
vida censurável; mas, em sua casa, com seu filho, tinha conduta 
exemplar, circunstância que o advogado descobre usando 
testemunhas, assistentes sociais e outros recursos. Ela podia ser 
mulher doidivanas, mas amava o filho pequeno. Dentro de casa, o 
filho crescia respeitando a mãe. Isso é fundamental para o direito da 
criança. O direito da mãe é secundário. E o que ela tem não é direito; 
é dever e obrigação. Paulo ganhou a causa. 
Todos nós temos exemplos comoventes de vivências lindas ao 
lado de mulheres fantásticas. Minha mãe foi uma delas. Fazendeiro 
pobre, meu pai teimava em cultivar café, esperando que a safra 
pagasse pelo menos o financiamento do banco. Nunca acertava. Ele 
inventou a eterna esperança no “ano que vem”. 
Minha mãe costurava nossas calças e camisas com o tecido de 
sacos da farinha usada para fazer pão caseiro, ou com brim cáqui, 
quando dava para comprá-lo. Além disso, ela ia colher lenha no 
mato, para cozinhar no velho fogão feito de tijolo e barro, pintado de 
vermelho. Um dia, olhando para o céu, achei que as nuvens da 
minha terra tinham a marca de seus braços. Nunca reclamou de 
nada. Vivia alegre, e suas risadas gostosas são um dos melhores 
sons que guardo de minha infância, junto com o canto da passarada 
nas madrugadas rurais e azuis de Cravinhos. Isso me engasga e 
molha os olhos que, com o tempo, foram aprendendo a conter 
lágrimas para a garganta engolir em seco. Para mim, hoje, a saudade 
é um soluço de lágrimas retidas. Sinto a umidade delas em minha 
alma. 
29 
Não satisfeito em ter prejuízo com sua fazenda de café na terra 
roxa de Cravinhos, meu pai comprou outra no norte do Paraná, no 
município de Jacarezinho, às margens do Rio Paranapanema, região 
que estava sendo desbravada. Creio que passou a ter prejuízo em 
dobro. Adquiriu um caminhão F-5, fez-me tirar carta de motorista 
profissional e incumbiu-me de fazer transporte entre as duas 
fazendas. Momento de glória de minha juventude. Trabalhar! Minha 
primeira profissão foi, portanto, a de caminhoneiro. De Cravinhos 
para o Paraná, levava material de construção, e, na volta, trazia café 
já beneficiado. Muito depois entendi: para vender em Santos, o café 
com origem em Cravinhos conseguia preço melhor. Os provadores 
profissionais nem percebiam tratar-se de café paranaense. 
Não era fácil trabalhar com caminhão naquela época.
Estradas 
de terra, e, quando chovia, tudo virava lama e barro bravo. O jeito 
era colocar correntes de ferro nas rodas do caminhão, para evitar 
atolar na estrada. Mas, algumas vezes, desliza daqui, escorrega dali, 
o volante golpeia à esquerda, desvira tudo à direita, rabeira para um 
lado, dianteira para o outro, vai rumo ao barranco, roda em falso e — 
merda! — o caminhão afunda no barro. Meu ajudante (caminhoneiro 
sempre tem um ajudante, mas que não dirige) chamava-se Cassiano. 
Era um crioulinho magnífico. Foi meu companheiro de muitas 
viagens pelos caminhos esburacados do nosso país. 
Quando o F-5 encalhava, o trabalho, em algumas ocasiões, era 
uma tragédia. Tirávamos toda a carga no muque. E a depositávamos 
sobre um encerado estendido no barranco da estrada. Com um 
enxadão, removíamos o máximo de barro diante das rodas e 
colocávamos pedras, folhas, troncos, qualquer coisa que ajudasse as 
rodas a não se afundar nem girar em falso. Concluídos os remendos 
na estrada, eu arrancava com o caminhão com toda a força do 
motor, para sair do buraco, e, quando saía, procurava, na frente, um 
trecho mais seco ou mais firme. E sempre se repetia a cena: 
— Pára! Pára! — gritava o Cassiano. — Veja a lonjura em que 
está a carga. Nós vamos morrer para recarregar o caminhão. 
Não morríamos. Éramos jovens. Carregávamos tudo nas costas 
e dando risada. 
Na próxima cidade, escolhíamos uma pensão para tomar 
banho, trocar de roupa, beber uma cachacinha, jantar e dormir. 
Uma vez, Cassiano contou-me, na hora do aperitivo, que estava com 
tanta saudade da mãe dele, que chegava a doer. E não havia lido 
nenhum poema de Drummond. Na segunda pinga, despejou os 
irmãos brincando na roça, mas dizendo que a mãe viúva chegou a 
passar fome para os filhos comerem. 
— De que morreu seu pai? — perguntei. 
— Meu pai morreu matado. — E não quis contar a história. 
Voltou a falar da mãe: — Ela servia para nós tudo o que tinha, e era 
pouco, dizendo que ia comer mais tarde. Mas eu via: lá dentro não 
tinha nada. Isso não foi nem uma, nem duas vezes. Foi durante 
muito tempo. Ela trabalhava na enxada. Depois, as coisas 
melhoraram. O que ajudou mesmo foi a derriça do café. 
— Por que você não leva sua mãe para trabalhar na fazenda de 
meu pai? Assim, você fica com ela o tempo todo, enquanto não 
viajamos. 
— Obrigado, mas não precisa. Agora, ela está muito feliz. Mora 
na cidade e, além de trabalhar em casa de gente boa, ajuda o padre 
na igreja, dizendo que tem que rezar o resto da vida, por ter criado 
bem os filhos. E, graças a Jesus, graças a Nossa Senhora, ela está 
levando a vida que pediu a Deus! Uma santa. Eu é que morro de 
saudades dela. Você me desculpe o desabafo. 
Tomamos a saideira para ir jantar. Os olhos dele estavam 
lacrimejando. Ele falava, pois, de uma mulher de alma linda, igual à 
da minha mãe, igual à de tantas mulheres, milhares, pobres ou 
ricas, em nosso país, pois, afinal, elas iluminam a humanização das 
famílias brasileiras. Com sacrifício, privações, seja lá o que for ou 
faltar, somos um povo de mães, pais e filhos com valores fundados 
no amor e, a maioria esmagadora, na moralidade e na decência. 
Que diabo podia ter baixado em uma mulher para negar tudo 
isso e degradar os próprios filhos, levando-os a gravar aquela sujeira 
toda contra o pai? 
30 
Chega de cogitações. Minha obrigação era estudar os próximos 
passos no processo judicial, aberto em minha mesa, ainda sem 
contestação, ao lado de outros quarenta e tantos ali amontoados, 
dentre os mais de duzentos que corriam em todo o escritório. 
Era quase meio-dia. Resolvi fazer uma visita ao Gervásio. 
Entrei. Ele me ofereceu um drinque. Não quis. Apenas à noite. Não 
bebo na hora do almoço. 
— Faz bem. Quer água? 
— Aceito. 
— Não foi você quem criou aquele órgão que vigia a ética na 
propaganda? Como se chama? Cornar, Colar, ou coisa parecida. 
— Conar. Conselho Nacional de Auto-Regulamentação 
Publicitária. 
— Como funciona essa coisa? 
— Coisa não, meu caro. É uma instituição privada da maior 
respeitabilidade e funciona muito bem. 
— Sem lei, sem nada? 
— É por isso que funciona bem. É um tribunal de ética. Foi a 
primeira grande organização não governamental do Brasil. Já 
completou 25 anos de funcionamento com pleno sucesso. 
— Se alguém for condenado, quem obriga o faltoso a cumprir a 
condenação? 
— Primeiro, é preciso entender a composição do Conar. Todos 
os operadores da publicidade integram o Conselho. Anunciantes, 
agências de publicidade, veículos, jornais, revistas, rádios e televisão. 
Até os que trabalham com outdoor e têm uma central, na época 
presidida por Carlos Alberto Nanô, signatário da ata de fundação 
daquele órgão. Se um simples anúncio ou qualquer produção 
publicitária for considerado antiético depois de um processo 
completo no Conar, com direito a defesa plena, réplica e tréplica, os 
veículos suspendem a divulgação. Pronto. A condenação está 
cumprida. 
— E ninguém dá um jeitinho de enrolar, de burlar e continuar 
anunciando? 
— Não há hipótese, precisamente por não existir lei que regule 
o funcionamento da instituição. Por norma, toma-se o Código de 
Auto-Regulamentação Publicitária, denominado normas-padrão, 
uma genial criação dos publicitários brasileiros, fundada nos 
princípios gerais da moral e dos costumes. A instituição é de direito 
privado, e todos cumprem esses princípios. Mas eu não vim visitar 
você para falar sobre o Conar. Por que a preocupação? 
— Eu vi um anúncio na TV e me lembrei de que você esteve 
envolvido nessa coisa de censurar publicidade. 
— Parado lá, meu caro. Não se trata dessa coisa e muito menos 
de censurar. É uma conquista do mundo publicitário brasileiro e 
uma grande obra dos veículos de divulgação, dos anunciantes, das 
agências de propaganda. Hoje o Conar é citado como exemplo no 
exterior, nos países de maior desenvolvimento da publicidade, como 
a Inglaterra e os Estados Unidos. 
— Você faz esse discurso porque foi seu fundador. 
— Fui o coordenador da fundação. O mérito cabe aos líderes 
publicitários e aos proprietários dos veículos que, na época, 
aceitaram a idéia e lhe deram vida. Para citar apenas alguns: 
Geraldo Alonso, Caio Domingues, Mauro Salles, Roberto Marinho, 
Dionísio Poli, Petrôneo Corrêa, José Maria Homem de Montes, Luiz 
Celso de Piratininga, Luiz Fernando Furquim e muitos outros. Lista 
respeitável. Aliás, em muitas reuniões, o Dr. Roberto Marinho foi 
representado por seu filho, João Roberto, mocinho e de uma 
perspicácia notável. Quando alguém sugeriu que devíamos procurar 
o Governo Federal para obter uma lei sobre a matéria — seria um 
decreto-lei, pois estávamos em pleno regime militar —, o jovem João 
Roberto advertiu: 
— Se pusermos o Governo nisso, acabará editando lei para ele, 
e teremos censura em vez de liberdade de expressão com 
responsabilidade ética. 
O garoto fez sucesso. Estava certo. Mesmo porque a ditadura, 
embora estivesse chegando ao fim, ou por isso mesmo, tramava 
editar normas de censura na propaganda. Na verdade, apressamos 
com o surgimento de uma solução de direito privado, e o fato 
consumado calou a boca dos que queriam calar a nossa. 
— Por tê-los assessorado na constituição do órgão — expliquei 
pacientemente ao Gervásio —, na redação de seus estatutos e 
regimentos, com a colaboração do grande publicitário João Luiz 
Faria Neto, fizeram-me uma homenagem, elegendo-me o primeiro 
presidente do Conar. Homenagem e trabalho. Fui um primeiro 
presidente não muito primeiro e não muito presidente. 
— Por quê? 
— Porque, terminada a organização do tribunal de ética, houve 
a eleição para o presidente oficial,
o de verdade, que foi Petrôneo 
Corrêa, o verdadeiro primeiro, ainda que tenha sido o segundo. Ele 
lutou muito pela implantação do órgão, contras as dúvidas 
levantadas no próprio meio publicitário e teve a sorte de contar com 
a colaboração de muita gente competente. Inclusive do Gilberto 
Leifert, que deixou a advocacia para dedicar-se unicamente à bela 
missão de organizar a liberdade de expressão publicitária exercida 
sob a responsabilidade de um código de ética maravilhoso. 
— Mas isso funciona até hoje? 
— Claro! O Conselho funciona há décadas, e, atualmente, você 
não vê um único litígio em torno de publicidade correndo pelo 
Judiciário brasileiro, se o assunto tratar de questão ética. Mais um 
pequeno detalhe: a própria lei da publicidade (Lei nº 4.680/65) e seu 
decreto regulamentar (Decreto nº 57.690/66) tiveram os textos 
redigidos por mim. Seu moço, o tempo passa! 
— A troco de que você legislou sobre publicidade? 
— Colaborei. Quem legislou foi o Congresso, e o Executivo 
baixou o regulamento. 
— Mas redigido por você. 
— Eu era consultor jurídico da ABAP — Associação Brasileira 
de Agências de Propaganda (hoje ABP). E prestei também consultas à 
ABERT — Associação Brasileira de Rádio e Televisão. Acabei 
entendendo do assunto e, sobretudo, me empolgando com a 
convivência. Os publicitários, além da criatividade profissional, são, 
em geral, muito inteligentes, excelentes redatores, perspicazes, lutam 
pela conquista de mercados para o produto de seus clientes, 
mantendo a consciência de que lidam com um poderoso instrumento 
de educação do povo. 
— Mas você já reparou que a maioria das propagandas no 
Brasil, a de TV e de rádio principalmente, começa com “chegou!”? 
Chegou isso, chegou aquilo. Não haverá outro verbo no vocabulário 
desses excelentes redatores? — Gervásio gostava de contrariar meus 
entusiasmos. 
— Prestei esse serviço a esta atividade essencial ao 
funcionamento civilizado de nosso país: a propaganda. Não deboche. 
É um mercado de importância enorme e de infinitas possibilidades. E 
o Conar veio completar e coroar a organização dos publicitários e 
veículos com o exemplar tribunal de ética, que nenhum outro setor 
industrial ou comercial conseguiu conceber. É preciso conferir a 
jurisprudência que os julgamentos desses anos todos colecionaram 
para o setor. Verdadeiras aulas de comunicação decente e 
construtiva. 
— Como advogado, você arrumou uma ótima saída para livrar 
a publicidade do martírio, da morosidade, da insegurança, das falhas 
do Judiciário. Não há como criticar a idéia, sobretudo porque está 
funcionando. Mas a OAB podia aplicar-lhe uma censura, já que você 
tirou muitas causas boas de seus colegas. 
— Não fale bobagem. Os advogados podem funcionar, e 
funcionam, em todos os processos do Conar. E anote: para os 
juristas, o Conar tem uma importância histórica de alta relevância. 
Antes de sua fundação, solicitei um parecer do Professor Pontes de 
Miranda, que o proferiu com a sabedoria de sempre. Foi o último 
parecer jurídico do velho mestre. Logo depois, morreu. Os honorários 
que lhe devíamos foram pagos ao seu espólio. 
— Não me diga! Isso é preciosidade. Mas as agências de 
publicidade daquele tempo não faziam campanhas para políticos 
como fazem algumas hoje? 
— Que mal há nisso? 
— Se ficassem apenas nas campanhas, contabilizando os 
verdadeiros custos de acordo com a lei eleitoral, tudo bem. Mas a 
intimidade, meu caro, a intimidade com os candidatos acaba 
corrompendo a atividade profissional. Eleito, o cliente, pensando na 
próxima eleição, passa a favorecer seus marqueteiros com verbas 
públicas em propaganda duvidosa, de utilidade duvidosa, de preços 
duvidosos, de forma duvidosa nos pagamentos, inclusive no exterior. 
A ABP não devia reconhecer essa picaretagem como agência de 
propaganda. Pelo que você falou, se o Código Brasileiro de Auto-
Regulamentação Publicitária fosse aplicado à publicidade eleitoral 
não aconteceriam tantas baixarias! 
31 
— Gervásio, meu caro, eu vim falar com você sobre o caso do 
Olavo Brás e não sobre a ética na publicidade, nem sobre o Conar. 
Vim falar sobre o Olavo Brás. Tenho chance? 
— Quem é esse cara? 
— Aquele das crianças e da gravação acusando-o de atos 
imorais. 
— Ah! É verdade. Não me lembrava do nome dele. Foi feita a 
perícia? 
— Foi. E comprovou-se que, depois de todas as perguntas, foi 
apertada a tecla de pausa, o que confirma a suspeita de que as 
respostas tenham sido ditadas pela mãe. 
— Ou alguém por ela. 
— Não. Creio firmemente que o ditado só pode ter sido feito 
pela mãe. Criança naquela idade não repetiria as frases contra o pai 
se faladas por um estranho. Somente se vindas da mãe. 
— Tem razão. 
— Achei que você gostaria de saber o resultado que confirma 
nossas suspeitas. 
— E a distância? A perícia indicou a distância entre as 
crianças, enquanto falavam, e o gravador? 
— Não desceu a esse detalhe. 
— Detalhe? Você está maluco! A distância é essencial para 
demonstrar que a criança, enquanto falava, estava imóvel, e que a 
mãe a segurava de alguma forma. Isso vai levar a outra dedução: 
houve um cúmplice operando o gravador. Eu já lhe disse isso da 
outra vez! Passe o caso para outro advogado, porque, pelo jeito, você 
está ficando gagá. 
Gervásio tinha razão. Saí de lá com raiva de mim, por não 
haver advertido o perito sobre o tal “detalhe”. Ainda bem que não se 
tratava da perícia judicial, a definitiva. Cheguei ao escritório, 
dirigindo-me imediatamente à minha secretária, Dona Dayse: 
— Ligue para o Sinval. Urgente! 
32 
A lentidão do Judiciário brasileiro é antiga e crônica. Piorou 
muito com o tempo. Ou mudam as leis processuais e modernizam a 
infra-estrutura desse Poder ou vamos acabar tendo um apagão no 
sistema e no país todo. Controle externo não é uma bobagem total, 
mas com gente estranha infiltrada vai funcionar mal. Adianta nada, 
mas atrasa muito. Súmula vinculante pode ajudar um pouco. 
Podem atirar pedras, mas a idéia de súmula vinculante foi 
minha, e limitada à questão constitucional, por um motivo muito 
simples. O Supremo Tribunal declara inconstitucional uma 
determinada lei. O juiz de primeiro grau, ou um tribunal qualquer, 
sob a presunçosa invocação do juiz natural, acha que o Supremo 
está errado e aplica a lei contra o direito do cidadão brasileiro. Se a 
vítima tem dinheiro para pagar advogado, pode recorrer e chegar até 
Brasília. A vitória está assegurada, porque o Supremo declarou 
inconstitucional a lei aplicada contra o recorrente. Aqui já se 
misturam dois tipos de recurso: o extraordinário e o mais 
extraordinário ainda, que é o recurso financeiro. Sem este, aquele 
não anda. Mas o pobre, que sofre lesão igual, não tem como se 
defender. Terá seu direito negado por falta de um recurso processual 
infraconstitucional. Nosso sistema permite, assim, que transite em 
julgado (proteção constitucional) a aplicação da lei declarada 
inconstitucional pela Suprema Corte. É coisa de maluco. 
Resolvi lançar a idéia da súmula vinculante no Congresso da 
Magistratura em Fortaleza, Ceará. Antes de viajar, passei pela Barão 
de Limeira, visitei a Folha de S. Paulo e fui falar com o meu amigo de 
tantos anos, Octavio Frias de Oliveira, empresário, jornalista e 
homem íntegro, brasileiro convicto, espírito público, e que, além 
disso tudo, usufrui da sorte de ter filhos formidáveis, que 
continuarão sua obra. Pedi o apoio da Folha para a idéia que iria 
lançar no Nordeste. Frias entendeu imediatamente o significado da 
medida por mim sugerida. E apoiou. Foi um longo caminho. A 
súmula vinculante entrou na reforma do Judiciário e hoje mora no
texto constitucional. 
Claro que o Judiciário continua vagaroso e, processualmente, 
um trambolho. O que resolveria e seria fundamental para agilizar as 
deficiências desse Poder é... bem, deixa pra lá! Não vou me meter 
nisso agora e aqui. Prefiro que o Walter Ceneviva, que tem paciência 
para tudo, cuide da matéria em seus excelentes artigos de jornal. 
Meu cliente, Olavo Brás, também precisaria ter paciência, se 
possível chinesa, pois não voltaria tão cedo a ver seus filhos. Mas, 
desistindo da idéia de suicídio, já me deixava tranqüilo, a menos que 
sofresse uma recaída em razão da demora do Judiciário. Contestei a 
ação. Defesa resumida, limitada a afirmar que, na inicial, nada era 
verdade, que a autora da ação era de moralidade duvidosa e seu 
ilustre advogado fora cruelmente enganado. Requeri a perícia na fita 
cassete e indiquei o Sinval como assistente. Depois de um debate 
formal sobre o cabimento e a utilidade do exame técnico, o juiz 
deferiu a prova. A parte contrária indicou seu assistente, e o nobre 
magistrado nomeou o perito judicial. Sinval me assegurou que o 
laudo seria unânime, ao menos lutaria por isso, porque não havia 
dúvida sobre as pausas entre as perguntas da mãe e as respostas 
das crianças. Já estava advertido sobre a distância do gravador e a 
fonte das vozes. Constava dos quesitos. Deu tempo. 
— Quando você imagina entregar o laudo? 
— Isso eu não sei. Depende do perito do juiz, que está 
sobrecarregado. Vamos ver se podemos agilizar. 
Agilizar, em linguagem forense, significa meses e meses. 
Enquanto isso, meu cliente continuava sem o direito de visita, mas a 
crise de autodestruição estava amainada. Vez por outra, eu o 
chamava para um papo descontraído e, na verdade, bancava o 
psiquiatra. Tomava cuidado para não falar na investigação do Nerval 
sobre o comportamento da ex-mulher durante o casamento. O 
homem já estava arrasado diante de mim. Seria imprudência ou 
malvadeza falar no adultério da ex-mulher e perguntar como foi, se 
era verdade seu perdão, quais as razões. 
Refletidamente, não recorri da liminar que lhe suspendeu o 
direito de visitas. Seria apenas uma medida para cumprir o dever de 
advogado, mas poderia envenenar o tribunal, que ouviria a gravação, 
e o recurso não seria deferido. Restaria apenas o veneno. 
33 
Às vezes, o advogado confronta-se com dilemas complicados 
para escolher o melhor caminho de defesa de seu cliente. Em muitas 
ocasiões, isso me aconteceu. Em uma delas, foi terrível. O caso do 
impeachment19 do ex-presidente Fernando Collor, que, espertamente 
e para fugir à pena de inabilitação por oito anos para o exercício de 
cargo público, renunciou ao mandato antes da conclusão do 
processo no Senado Federal. O impeachment tratava-se de favas 
contadas. Nenhuma dúvida havia. O moço seria posto na rua. 
Mas o Senado, reunido em tribunal especial para o julgamento 
do crime político do Presidente da República, sob a presidência do 
Ministro Sydney Sanches, do Supremo Tribunal Federal, considerou 
prejudicada a acusação para alijá-lo do cargo, em virtude da 
renúncia, e lhe aplicou a pena de inabilitação do parágrafo único do 
artigo 52 da Constituição. Não poderia mais exercer qualquer função 
pública por oito anos. Collor mudou-se para Miami, nos Estados 
Unidos. Instalou-se numa casa na ilha Bal Harbour e foi desfrutar de 
um rico descanso, longe de Paulo César Farias, mais tarde assassi-
nado em circunstâncias até hoje misteriosas. Um arquivo bem 
apagado. 
Porém, antes, Fernando Collor ingressou com mandado de 
segurança no Supremo Tribunal Federal contra o Senado Federal. 
Seu advogado, Cláudio Lacombe, profissional de alta competência, 
fundamentou sua tese numa premissa simples: se a pena principal 
não foi aplicada, é inconstitucional a aplicação da pena acessória. 
Armou-se o circo. 
34 
Fui convocado para defender o Senado Federal, autoridade 
impetrada no mandado de segurança. Caprichei na defesa por 
escrito. Usei de todas aquelas complicações jurídicas de citações em 
alemão, italiano, inglês e latim e clamei por justiça perante o mundo, 
como diziam os antigos romanos: Fiat justitia, pereat mundus. 
Na nossa realidade, citei uma lei do Congresso Nacional (Lei nº 
 
19 Impeachment, expressão inglesa adotada pela linguagem jurídica brasileira, quer 
dizer cassação de mandato, impedimento legal de exercer o cargo. 
7.106/83), portanto votada pelo Senado, que dispunha sobre a 
prescrição de dois anos para aplicação da pena de suspensão 
daqueles direitos contra autoridades que deixassem o cargo, quer 
voluntariamente, quer por impeachment. 
Era uma lei editada especialmente para o Distrito Federal. 
Sabe lá Deus o que a inspirou nesses eternos casuísmos dos jogos 
políticos do Brasil. De qualquer forma, a conclusão seria única: o 
Senado, como órgão legislativo, considerou a aplicação da pena de 
suspensão independente da outra chamada de principal. Pena 
autônoma, mesmo porque, pela lei por ele votada, poderia ser 
aplicada a inabilitação até dois anos depois de a autoridade pública 
haver deixado o cargo. Não se podia pedir ao Senado que, como 
tribunal constitucional, agisse de forma contrária a seu 
entendimento como órgão legislativo. 
É fácil imaginar quantas matérias de direito foram debatidas 
naquela ocasião. Os especialistas e historiadores que queiram os 
detalhes ou a íntegra dos trabalhos encontrarão tudo nos arquivos 
da época. Eu mesmo, antes do processo, proferi três pareceres sobre 
a matéria, respondendo a consultas de altas autoridades dos Poderes 
Executivo e Legislativo. Outros juristas fizeram a mesma coisa. Se 
transcrevesse neste livro aqueles trabalhos, estaria recorrendo a um 
inegável enchimento de lingüiça, sem qualquer utilidade aos leitores 
que tiveram a paciência de chegar até este ponto 
Desculpem-me, mas não tenho a menor vontade de reproduzi-
los aqui. Minha história é outra, fora dos autos, mas não fora do 
mundo. Versa sobre aquele dilema que atormenta o advogado na 
escolha do melhor caminho para a defesa do cliente. Nessa causa, o 
meu cliente era o Senado Federal e, por trás dele, o povo brasileiro. 
Cláudio Lacombe, defensor de Fernando Collor, costumava, 
uma vez por semana, ir a um restaurante em Brasília e passar o dia 
bebendo apenas bebida extraída de uva. Começava com vinho 
branco, dos melhores, continuava com grandes vinhos tintos durante 
o almoço e, depois, como digestivo, conhaque. Simpático e de bom 
papo, conversava com todos no restaurante, até que, vencido pela 
enolatria, era retirado por seu motorista e levado para casa. 
Perguntado por que não escolhia, para esse processo de distensão, o 
sábado ou o domingo, respondia que o fim de semana era da família. 
O julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal foi 
numa quarta-feira. Tribunal lotado. Gente que não acabava mais. As 
televisões dando trombadas, com câmeras em todos os ângulos. 
Cenário de pressão sobre todos nós, os atores daquele momento 
histórico, que o Brasil ia viver naquela sala. 
Os advogados que participam do julgamento sentam-se na 
primeira fila, vestidos com túnicas pretas chamadas de becas. 
Acomodei-me ao lado do Cláudio Lacombe, que iria falar em primeiro 
lugar, por ser o advogado do impetrante Fernando Collor, autor do 
mandado de segurança. Evitamos que nossas becas se 
entrelaçassem, cada qual puxando para seu lado sua saia quase 
rodada, como fazem as mulheres com vestidos longos. 
— Hoje é quarta-feira. O que você está fazendo aqui? Não é seu 
dia de deliciar-se com vinhos? 
— Estou cumprindo o meu dever. 
— Não vai ter crise de abstinência? 
Não consegui
perturbá-lo. A sessão foi aberta, e o processo foi 
anunciado pelo Presidente do Supremo, Ministro Luiz Octávio 
Gallotti. Três ministros deram-se por impedidos: Sydney Sanches, 
porque havia presidido a sessão do Senado impugnada pelo pedido 
de segurança; Marco Aurélio, porque era parente do impetrante 
Fernando Collor; e Francisco Rezek, porque se aposentara do 
Supremo, fora ser Ministro do Exterior do Governo Collor e, por 
essas mágicas da política brasileira, voltara a ser Ministro do 
Supremo. Mas, ao menos, era competente. Acabou sendo Ministro da 
Corte Internacional de Haia e, quando voltou, foi ser sócio do 
escritório de Ives Gandra Martins, circunstância que, tanto quanto 
Haia, atesta seu talento jurídico. 
Assim, a sessão prosseguiu com o quorum de oito ministros, 
suficiente para o julgamento pelo plenário da nossa suprema corte, 
composta por onze membros. Quando o Relator, Ministro Carlos 
Velloso, concluiu a exposição dos fatos e as razões do processo, 
Lacombe pediu a palavra e começou sua sustentação oral com 
absoluta calma: 
— Não estamos aqui julgando o Governo Collor, mas somente a 
pena, aplicada pelo Senado, de suspensão de direitos de um cidadão 
comum, quando não era mais Presidente da República e contra o 
qual não podia ser aplicada, e por isso não foi, a pena principal. Sem 
essa pena, a principal, a aplicação da acessória é uma rematada 
violência contra direito líquido e certo do impetrante. 
E prosseguiu, em sua sustentação, com muita habilidade. 
Chegou minha vez. Subi à tribuna e sapequei: 
— Meu colega tem razão. Não estamos julgando o Governo 
Collor, pois, se o estivéssemos, nosso debate não se limitaria a uma 
pena de interdição de direitos por oito anos; estaríamos aqui 
discutindo a possibilidade de aplicar pena perpétua ao impetrante, 
tantos foram os males que causou ao nosso país. 
Risadas e um alto murmurejo tomaram conta do ambiente. 
Gallotti tocou a campainha, pediu silêncio e solicitou-me, com ar de 
censura, que evitasse “desnecessários” recursos de eloqüência. 
Concluí a sustentação e sentei-me. 
Ao meu lado, Lacombe desferiu um palavrão no meu ouvido, 
baixinho. Fingi que não era comigo. O julgamento foi concluído com 
quatro votos favoráveis a Collor, concedendo a segurança, e quatro 
votos contrários, negando o pedido. Empate. 
No processo de habeas corpus, quando existe empate, 
considera-se concedida a ordem, pelo princípio do in dubio pro reo. 
Mas, no mandado de segurança, o empate significa que a ordem não 
foi concedida. Fiquei eufórico. Havia vencido. O regimento interno do 
Supremo tem disposição expressa (art. 205, parágrafo único) dizendo 
que, no caso de empate, prevalece o ato impugnado pelo mandado de 
segurança. Certo que se refere a ato do Presidente do Tribunal, mas 
aplicável, por analogia, a casos iguais. Além disso, na hipótese do 
impeachment de Collor, nem a aplicação analógica seria necessária, 
porque o ato impugnado era igualmente atribuído ao então 
Presidente do Tribunal, Ministro Sydney Sanches, na qualidade de 
Presidente do Senado para o processo de impeachment. Nessa mesma 
qualidade, prestou informações. Por isso, declarou-se impedido de 
participar do julgamento em que figurava como autoridade coatora. 
Preparei-me intimamente para comemorar a vitória diante do 
empate. A segurança não fora concedida. 
Aí apreendi a lição de Alain Touraine, sociólogo francês, que 
disse um dia: 
“Aqueles que pensam que sabem o que vai acontecer no Brasil 
devem estar muito mal informados.” 
35 
Segurança negada? Tudo conversa e teorias. O ilustre Ministro 
Gallotti, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, resolveu 
fazer uma gracinha completamente sem graça que podia acabar em 
desgraça. Declarou que iria convocar três ministros do Superior 
Tribunal de Justiça para completar o quorum do Supremo Tribunal, e 
que teríamos novo julgamento. Aquele terminara empatado e não 
valia. 
Mas o que é isso? Falta de quorum como? Se houvesse falta de 
quorum, o julgamento não teria sido realizado. Ora, acabara de ser 
proclamado e visto pelo Brasil inteiro, pelas televisões, o resultado de 
um julgamento realizado com votos proferidos por oito ministros. O 
art. 40 do regimento interno do STF permite a convocação de 
ministros do Superior Tribunal de Justiça apenas para completar 
quorum, isto é, quando quorum não há. Deve, pois, ser prévia, isto é, 
anterior à sessão de julgamento, que não pode ser realizada pela 
falta de número. 
Por essas razões, sustentei que a convocação seria ilegítima, 
pois, tendo havido o número regimental, o julgamento havia 
terminado e era definitivo. A segurança não fora concedida. Os 
advogados dos promoventes do impeachment, se não me engano 
Evandro Lins e Silva e Fábio Konder Comparato, tentaram também 
suscitar questão de ordem. Gallotti não quis saber. Manteve sua 
decisão de convocar os membros do STJ, encerrou a sessão e saiu 
correndo para o seu gabinete. Não quis falar com ninguém. 
36 
“Santo Deus! O Gallotti está maluco!” pensei eu com enorme 
pesar, pois gostava dele. O fato de haver votado a favor de Collor era 
irrelevante para nossas relações pessoais; mas declarar que o 
julgamento estava anulado pelo empate e convocar ministros de 
outro tribunal por falta de quorum era um disparate sem tamanho. 
Lacombe virou-se para mim e ironizou: 
— Você pensou que estava vitorioso. Pois, agora, veja como 
tudo é relativo. Estamos advogando no processo de maior relevância 
para a República nos nossos tempos, e você pensa que isso pode ser 
resolvido com um simples 4 a 4, dentro de suas filigranas 
processuais? 
Fiquei quieto. Ele sabia que estava errado. Era bom 
processualista. Mas ganhou um fôlego para seu cliente. Agora, sua 
tese tinha o respaldo de quatro ministros do Supremo Tribunal. 
Estufou o peito e saiu na minha frente. Foi dar entrevistas a 
televisões e rádios, que se acotovelavam na porta do tribunal. 
37 
Permaneci sentado, não acreditando naquilo que havia 
acontecido. Senti-me como o torcedor brasileiro, ao perder a Copa do 
Mundo de Futebol em pleno Maracanã, em 1950. Com uma 
diferença, porém: naquela tragédia esportiva, o adversário ganhou 
por 2 a 1; e, agora, no Supremo, nós ganharíamos, tal como naquele 
longínquo e fatídico 16 de julho, com o empate, segundo a melhor 
doutrina e o próprio regimento interno do Supremo Tribunal. E 
empate houve, Santo Deus! 
Falta de quorum? Não, eu não podia sair do tribunal. Fiquei 
sentado, digerindo o choque. Naquele instante, não tinha a menor 
condição de falar com a imprensa. Precisava me acalmar. Se falasse, 
correria o risco de xingar o Gallotti até a décima geração de seus 
ancestrais, embora seu pai tenha sido um dos bons ministros do 
Supremo, a quem conheci no Governo Jânio, o primeiro a funcionar 
em Brasília, em 1961. 
O pai dele, que também se chamava Luiz Gallotti, morava no 
único hotel que funcionava na nova capital, Hotel do Lago, onde se 
hospedavam José Aparecido, secretário particular do Jânio, e 
Castello Branco, o “Castelinho” jornalista, porta-voz do então novo 
governo. À noite, costumávamos ir ao hotel, pois ali funcionava a 
única boate decente da cidade, e podíamos tomar uns uísques, ouvir 
música, bater papo. Às vezes, o respeitável ministro estava no hall do 
hotel, e nós ficávamos conversando com ele. Ninguém se atrevia a 
dizer que ia para a boate. O filho dele, que era advogado, também 
participava dessas descontraídas conversas e, depois que o pai se 
recolhia, ia conosco para a boate. Por aí se pode calcular a 
intimidade ou, ao menos, os longos anos de conhecimento. E 
precisamente ele aprontava essa imperdoável
falseta no julgamento 
do mandado de segurança de Fernando Collor, embora, em outros 
casos, tenha sido um jurista exemplar em toda sua carreira. 
Em nome daqueles velhos tempos, acalmei-me e saí. Os 
jornalistas vieram aos montões. É preciso tomar cuidado para os 
microfones não quebrarem nossos dentes. Com absoluta 
tranqüilidade, fui respondendo às perguntas, sabendo que o Brasil 
inteiro ia ver e ouvir o que eu estava falando: 
— O país pode ficar tranqüilo. Nós temos um grande tribunal. 
A divergência entre os ministros foi apenas doutrinária. Aqueles que 
votaram a favor de Collor estão somente defendendo um ponto de 
vista sobre a pena acessória. Entendem que o Senado não poderia 
aplicá-la sem haver aplicado a principal. Isto é, a decretação do 
impeachment teria sido frustrada com a renúncia. 
Fui enrolando os jornalistas o mais que pude. 
— Além de tudo isso, o acusado fora suspenso das funções, em 
razão do processo autorizado pela Câmara dos Deputados, o que 
significa o afastamento do cargo aplicado cautelarmente — expliquei. 
— Com a condenação, o afastamento torna-se definitivo, mas a pena 
de inabilitação tem que ser aplicada, porque a Constituição diz:”... 
perda do cargo, com inabilitação...”, o que é diferente de “sem 
inabilitação”. Diante da renúncia, o Senado cumpriu a Constituição, 
aplicando aquilo que ela manda aplicar por meio da preposição 
“com”. 
Mas grande parte da culpa pelas interpretações contraditórias 
está na má redação do texto, que vem de longe: art. 52, parágrafo 
único. Em vez de redigir como está na lei maior até hoje — 
“limitando-se a condenação à perda do cargo, com inabilitação para o 
exercício de função pública...” — o constituinte deveria ter escrito: 
“limitando-se a condenação à inabilitação para o exercício de função 
pública...”. Pronto, se o condenado estiver no cargo, sai. Se renunciar 
antes, de nada adiantará. Mas a imprensa insistia. Ninguém estava 
interessado em aula de Direito. E os profissionais mais experientes 
sabiam que eu estava “enrolando”. 
— E a falta de quorum com o julgamento realizado? Como 
justificar a convocação de membros do STJ, um tribunal inferior? 
— Nada disso. O STJ não é tribunal inferior. Há uma distinção 
entre as competências de cada um. O Supremo trata de Direito 
Constitucional, e o STJ, do Direito Comum. Os Ministros do Superior 
Tribunal de Justiça são excelentes juristas e podem, sem cogitar de 
hierarquia alguma, participar de julgamento no Supremo, no mesmo 
nível de conhecimento do Direito Constitucional. 
— Mas, e o seu argumento sobre a não-concessão da 
segurança diante do resultado do empate? — disparou um jornalista 
em alta voz. 
— Isso é uma questão meramente procedimental. Depende da 
interpretação do regimento interno do Supremo. 
Se eu fosse um telespectador e me visse e ouvisse dizendo isso, 
não teria dúvidas em afirmar: esse advogado não sabe nada. Mas 
preferi conter-me naquele blá-blá-blá. Mais importante que o Collor, 
mais importante que o Gallotti, mais importante do que eu poderia 
parecer para o grande público do Brasil, era a preservação de nossas 
instituições. Não convinha colocar em dúvida, perante o povo, o 
nosso mais alto tribunal. Pelo menos, a partir daquele dia, o Brasil 
ficou conhecendo a existência do STJ, que até então era uma corte 
apagada no cenário nacional, pelo pouco tempo de existência. E fui 
para casa, silenciosamente indignado. Ninguém percebeu. O mais 
difícil ainda estava por vir. 
38 
Gervásio raramente vinha ao escritório. Mas apareceu sem 
avisar. Minha secretária, sabendo da intimidade, fê-lo entrar logo 
que chegou, pois eu estava só: 
— Estou ansioso por saber — disse ele sem maiores delongas 
— se houve tempo para você incluir a questão da distância entre o 
gravador e as fontes das vozes, porque fiquei com a impressão, na 
última conversa nossa, de que o laudo já estava pronto sem esse 
“detalhe”, como disse você. 
— Sim, houve tempo. O laudo de que lhe falei era o particular, 
que o Sinval havia elaborado antes da perícia judicial e que me 
orientou na formulação dos quesitos. Incluí a distância. O próprio 
Sinval gostou da idéia e vai examinar a fita também sob esse prisma. 
— Ainda bem. 
Como era fim de expediente, convidei-o para um uísque e 
chamei o Nerval para participar. Papo de cá, papo de lá, Gervásio, 
que conhecia quase tudo de minha vida de advogado, perguntou ao 
Nerval se ele conhecia os detalhes do habeas corpus do Jânio 
Quadros, impetrado por Pedroso Horta perante o Tribunal Federal de 
Recursos, contra ato do então Ministro da Justiça, Gama e Silva, que 
confinou o ex-presidente em Corumbá. 
Nerval não sabia. 
— Pois é uma história danada — disse ele — e me foi contada 
não pelo Saulo, mas por um jovem advogado que trabalhava aqui, o 
José Fernando Rocha. 
— Isso é coisa de antanho. Não tem o menor interesse para o 
Nerval — disse eu, tentando evitar o assunto. 
Nerval protestou. Queria saber. Gervásio resumiu: 
— O Jânio pediu para o Saulo redigir o habeas corpus. Foi feito 
com extremo capricho, longos fundamentos jurídicos, sólida 
argumentação, porque era contra o ato da ditadura militar. Pedroso 
Horta não deixou Saulo assinar a peça jurídica e figurar como 
impetrante. Quis aparecer sozinho. Ele, Horta, redigiu uma 
introdução política, bem feita, aliás, e o resto, a parte de Direito, era 
do Saulo, que não assinou a petição. 
— Isso não teve a menor importância — disse eu. — O próprio 
Jânio aconselhou-me a não me envolver pessoalmente no assunto, 
para não me indispor com os militares. 
— Conversa fiada. Você advogava para os chamados 
subversivos, no tempo da ditadura, em processos cabeludos. Por que 
o habeas corpus em favor do Jânio iria comprometê-lo? Era coisa do 
Horta, que Deus o tenha. Quis ficar sozinho na história. Sabe o que o 
Saulo fez? 
— Não tenho a menor idéia — disse Nerval. 
— No final da petição, citou um texto da obra do criminalista 
Saulo Ramos, abriu aspas e sapecou a doutrina do seu livro. 
— Ora, chefe — disse Nerval, virando-se para mim. — Eu não 
conheço essa sua obra. 
— Ninguém conhece — informou Gervásio. — O Saulo nunca 
escreveu livro sobre Direito Penal. Com essa citação, o habeas corpus 
ficou assinado por ele. E fez mais. O Tribunal Federal de Recursos 
negou a ordem. Jânio teve que recorrer ao Supremo. Aí o Horta pediu 
novamente para o Saulo redigir o recurso. Redigiu outro habeas 
corpus, pois nem o Horta, nem o Gama e Silva, do outro lado, sabiam 
que, em vez do recurso processual depois da publicação do acórdão, 
podia-se impetrar desde logo um habeas corpus originário contra o 
tribunal que encampou a coação. E concluiu com a mesma citação 
de sua obra, apenas alterando um ponto: trocou o “criminalista” por 
“jurista”, porque era forçar demais a condição de criminalista para 
quem nunca escreveu livro de Direito Penal. 
É verdade. Gervásio tinha razão. Eu aprontara aquela quase-
molecagem com o Pedroso Horta, arrumando um jeito de assinar, ou, 
antes, de me incluir no trabalho que ficará na História, em razão do 
ato da ditadura e da decisão do Supremo Tribunal Federal, que 
concedeu a ordem, e Jânio saiu do confinamento, recuperando sua 
liberdade de ir e vir, como diz o Direito Constitucional. Outro aspecto 
engraçado foi que o Gama, no primeiro habeas corpus, pediu ao 
Professor Ráo para redigir as informações, e o professor passou a 
tarefa para mim. Fui à sala dele e informei: 
— Professor, não posso fazer o trabalho. Fui eu quem redigiu 
esta petição. 
— E não assinou? 
— Coisa do Horta e do Jânio. Mas veja no final da impetração: 
há uma citação de trabalho meu, de Direito
Penal, que não existe. 
Foi meu jeito de assinar. 
— Engenhoso. Que bobagem essa do Gama de confinar o Jânio 
— comentou ele. E chamou sua secretária, Dona Sílvia: 
— Telefone para o Gama e diga que não posso ajudá-lo nesse 
assunto: primeiro, porque não estou de acordo com o confinamento, 
e porque não lido com Direito Penal, segunda razão prejudicada pela 
primeira. 
Relembrada essa participação do Professor Vicente Ráo e 
falando no direito de ir e vir, fomos para o restaurante Paddock, 
aceitando o convite do Gervásio para jantar. No aperitivo, contei-lhes 
os detalhes ocultos do processo de impeachment de Collor, narrativa 
que se prolongou durante o jantar. 
39 
Advogado deve separar as coisas. A questão da falta de quorum 
poderia ser enfrentada com um agravo regimental para o próprio 
plenário do Supremo, que teria de discutir e deliberar sobre o ato de 
seu presidente, Ministro Gallotti. Mas, além disso, o advogado tem 
que pensar em ganhar a causa e rapidamente trabalhar com outra 
hipótese, quando possível. 
No dia seguinte ao julgamento do impeachment, que terminou 
empatado, fui visitar o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, 
Ministro William Patterson, jurista de excelente formação cultural, 
humano, de grande espírito público. Claro que haveria o 
constrangimento de explicar a visita. Nem de longe poderia deixar 
transparecer minha preocupação com a escolha que ele faria dos três 
membros que deveriam suprir aquela inexplicável “falta de quorum” 
no Supremo Tribunal. 
Minha intenção era debater a magna questão jurídica criada 
com a convocação, o precedente de completar-se quorum para um 
julgamento já realizado sob quorum regular. Enfim, eu precisava 
encontrar assunto sério para justificar a visita, sem ofendê-lo. 
Patterson era um homem afável. Aquela foi a primeira vez que 
me atendeu. Houve outra mais tarde. 
40 
Eu estava encerrando o expediente em meu escritório em São 
Paulo, lá pelas oito horas da noite, quando o telefone tocou. Era o 
governador da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, que tinha sido preso 
pela Polícia Federal em Campina Grande, onde fora passar o fim de 
semana. 
— Você, governador, preso? Que maluquice é essa? 
— Pois estou preso aqui na Delegacia da Polícia Federal, 
embora a competência para o delito seja da Justiça Estadual, que, 
claro, não pode prender o Governador. Aí arrumaram um jeito para a 
prisão ser efetuada pela Polícia Federal, e o Delegado aqui está 
irredutível. Apenas me permitiu telefonar. É o que estou fazendo. 
Ronaldo, além de excelente poeta e repentista dos bons, é 
advogado, e ele mesmo já foi elaborando o diagnóstico jurídico da 
ilegalidade por ele sofrida. Alguém, a esta altura, pode pensar que eu 
era muito importante como profissional. Um governador do Nordeste 
me telefonar para pedir socorro? Eu deveria ser um tremendo 
advogado, com muita fama! Nada disso. 
O ilustre governador da Paraíba, meu amigo Ronaldo Cunha 
Lima, no tempo da ditadura, teve sua prisão decretada pelos 
militares e fugiu para São Paulo, onde conhecia um paraibano, seu 
conterrâneo, Eurícledes Formiga, poeta repentista, que também era 
meu amigo e amigo do Paulo de Tarso Santos. E mais: amigo íntimo 
do Ministro Luiz Gallotti, que conseguiu sua nomeação para diretor 
administrativo da Justiça Federal em São Paulo. Formiga apareceu 
no escritório e me pediu: 
— Preciso de um grande favor seu — falou baixinho, 
debruçando-se sobre a mesa, para dar maior ênfase teatral à 
enfumaçada cena de sigilo absoluto. — Os milicos do meu estado 
querem prender um amigo meu, e ele fugiu para São Paulo. Está 
hospedado na minha casa. Trocamos o nome dele, mas, sabe como é, 
precisa trabalhar. Venho lhe pedir um emprego para ele. É bom 
advogado, redige muito bem, será útil para o serviço interno. Ele não 
pode, é claro, assinar petições, nem figurar em procurações. Chama-
se Ronaldo Cunha Lima. Você vai adorá-lo, porque ele também é 
poeta e dos bons. 
Ao Formiga eu não podia negar nada. Conhecera-o havia 
muitos anos, quando ele andava por aí, demonstrando suas incríveis 
qualidades de memória. Simplesmente olhava um texto escrito, que 
lhe era mostrado por alguns segundos, e, em seguida, repetia-o 
integralmente. E ainda criava variantes, dizendo a primeira palavra e 
a última, a segunda e a penúltima, até encontrar no meio. Memória 
fantástica. 
Ronaldo veio trabalhar no escritório. Ao serviço secreto dos 
militares seria difícil localizá-lo. Morando na casa do diretor 
administrativo da Justiça Federal, trabalhando no escritório do 
Professor Vicente Ráo e com o nome trocado, estaria bem protegido 
dos agentes que bisbilhotavam nossas vidas naqueles tempos. Ficou 
lá muito tempo, trabalhou muito, ganhou honradamente seus 
honorários e um dia voltou para sua terra. Com a queda da ditadura, 
tornou-se líder na política paraibana, além de ter escrito um dos me-
lhores livros sobre a vida e a obra de Augusto dos Anjos. 
Mas, agora, pelo telefone, comunicava-me que estava preso. E 
era Governador, com todas as imunidades constitucionais, foro 
privilegiado, blindado, naquele tempo, contra processo sem licença 
da Assembléia Legislativa. O delegado federal de Campina Grande 
não quis saber nada disso. Prendeu o governador. 
O crime? Ronaldo estava assistindo à televisão de manhã e viu 
um adversário político atacar seu filho, chamando o garoto de 
desonesto. Não teve dúvida. Foi ao restaurante onde o oponente 
costumava almoçar. O difamador estava lá. Desferiu-lhe um tiro de 
revólver. Claro que errou. Ele era bom poeta, mas analfabeto em 
armas. Não sei por que pretendeu resolver sua emoção dessa 
maneira: “Perdi a cabeça. Podia atacar a mim. Meu filho, nunca!”. 
Bem, de qualquer forma, estava preso. E eram oito horas da 
noite. Tribunal competente, o Superior Tribunal de Justiça. Telefonei 
ao presidente William Patterson, que já estava em casa, e perguntei 
se podia pedir um habeas corpus por fax. Ele disse que sim e, por 
extrema gentileza, foi, àquela hora, para a sede de seu tribunal, 
convocou um procurador e um ministro, a quem distribuiu o 
processo, instaurado com o fax. O representante do Ministério 
Público opinou pela concessão da ordem, e o ministro relator 
concedeu o habeas corpus liminarmente. O alvará de soltura foi 
transmitido por fax para a Delegacia da Polícia Federal de Campina 
Grande, que, por milagre de Oxum, tinha um aparelho de fax. 
Ronaldo voltou a telefonar-me, informando que já estava livre e 
que eu podia ir para casa. Era em torno de meia-noite. Os 
paraibanos, sempre muito irreverentes, colocaram uma enorme faixa 
defronte a casa do adversário de Ronaldo: “A única obra que o 
Governador deixou inacabada!”.20 
Anos depois, o filho de Ronaldo, Cássio Cunha Lima, alvo da 
ofensa que provocara o tiro errado do pai, foi eleito governador da 
Paraíba. E reeleito com grande votação. 
41 
Após essa escala tumultuosa da narrativa na Paraíba, tenho 
que voltar a Brasília, para contar, no Paddock, como enfrentei, pela 
primeira vez, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro 
William Patterson. 
— Claro que o senhor acompanhou o julgamento do mandado 
de segurança do Collor ontem, no Supremo — disse eu, depois que 
ele me mandou sentar. 
— Acompanhamos todos. E com muita atenção. Já fui avisado 
de que o ofício do Supremo, convocando os ministros nossos, deverá 
chegar aqui hoje à tarde. 
Comecei a pensar o que devia falar e a medir as palavras: 
— Primeiro, peço desculpas por vir visitar o senhor. Afinal, sou 
advogado de uma das partes e não tenho o menor propósito de me 
imiscuir na escolha que caberá ao senhor fazer. 
— Não se
constranja. Ninguém há de pensar que seu propósito 
seja esse. Assistimos ontem à sua entrevista pela televisão, 
demonstrando a importância do Superior Tribunal de Justiça e 
 
20 Felizmente, a vítima escapou ilesa. Deus seja louvado! 
rebatendo a afirmação de tratar-se de tribunal hierarquicamente 
inferior ao Supremo. Ficamos muito gratos. 
— Exatamente isso, meu Presidente — disse eu. — Minha 
presença aqui, hoje, tem esta exata finalidade: a de pedir que os três 
ministros a serem escolhidos sejam os melhores juristas da corte, os 
mais experientes, para que o Brasil todo, que acompanhará o 
julgamento e o voto deles, possa julgá-los também e verificar a alta 
capacidade do Superior Tribunal de Justiça. Esse caso Collor está 
comovendo o Brasil, os jovens ainda estão nas ruas com os rostos 
pintados de verde e amarelo, que usaram para pedir o impeachment, 
e agora repetem para comover o Judiciário. 
William sorriu. Claramente entendeu minha mal disfarçada 
sustentação oral. A pretexto de defender o STJ, estava eu, na 
verdade, chamando a atenção para a vontade do povo. Depois, 
passamos a conversar sobre a redação defeituosa do artigo da 
Constituição, o grande culpado pela divisão nas interpretações do 
Supremo. 
Serviu o cafezinho. Eu achava que a conversa terminara e me 
preparava para despedir-me depois de tomar o café. Ele pegou o 
telefone, falou qualquer coisa com a secretária, e, em seguida, 
entraram na sala os ministros Torreão Braz e José Dantas. Levantei-
me para cumprimentá-los, e o Presidente me comunicou que já 
estava tudo decidido: indicaria esses dois ministros e a si próprio. 
Agradeci a primazia de ter sido informado, e o Ministro William 
explicou: 
— Logo que o Ministro Gallotti encerrou a sessão ontem, 
resolvemos nos reunir imediatamente, para deliberar sobre a 
escolha, porque, é claro, a importância da questão exige que o 
Superior Tribunal de Justiça se faça representar com absoluta 
autoridade e de preferência sem divisões de opinião. 
Comecei a sentir um frio na barriga. Julguei que me ia ser 
revelada a posição deles. Mas foi afobação minha. 
— Há outros, e muitos — continuou o Ministro Patterson —, 
igualmente competentes, à altura dessa grave missão. Mas a escolha 
obedeceu a critérios adotados por unanimidade na reunião de ontem. 
Vamos aguardar o material que o Supremo nos enviará e 
estudaremos o caso com a máxima dedicação. Posso adiantar ao 
senhor que deliberamos estudar em conjunto, e a conclusão a que 
chegarmos será refletida no voto dos três. Vamos estudar em 
profundidade, e serão bem-vindos os possíveis memoriais de ambas 
as partes, se os advogados quiserem nos oferecer. 
Agradeci tanta deferência, acabei de tomar o café e me despedi. 
Na saída, o Ministro José Dantas, um misto de jurista e santo, 
homem de uma pureza comovente, disse-me ter gostado de minha 
sustentação oral e agradeceu pela defesa que fiz, na televisão, do 
STJ, quando a imprensa o chamou de tribunal inferior. Fui embora 
mais ou menos tranqüilo, mas, com a experiência de tantos anos de 
lides judiciárias, não podia deixar de considerar a hipótese de tanta 
simpatia significar um enterro de luxo. 
Lembrei-me de Steven Spielberg, o famoso cineasta norte-
americano, autor de tantos filmes maravilhosos, que costuma dizer: 
“Devemos sempre nos preparar para o fracasso. Isso torna 
ainda mais gratificante o sucesso.” 
No fundo, no fundo, eu estava confiante no sucesso. 
42 
Quando cheguei ao escritório do meu sócio em Brasília, Luiz 
Carlos Bettiol, meu companheiro de tantas causas, sofrimentos e 
alegrias, havia um recado: o Ministro Sepúlveda Pertence queria falar 
comigo. Lá fui eu para o Supremo Tribunal Federal. 
Pertence e eu éramos amigos. Atuamos juntos no Governo 
Sarney. Ele era o Procurador-Geral da República, e eu era o 
Consultor Geral da República, cargo sempre confundido com o dele 
nas embrulhadas tanto dos noticiários de imprensa como nos 
protocolos das solenidades que se repetem quase diariamente em 
todos os governos. Ainda bem que se transformou em Advogado 
Geral da União. 
Entrei. Pertence pediu um cafezinho e começou: 
— Circulou por aqui que você vai agravar da decisão do 
Ministro Gallotti — disse ele, com aquele olhar maroto de mineiro e o 
sorriso de envolvente simpatia. 
— Como circulou? Ainda não decidi e não falei com ninguém. 
Estou pensando. É meu dever, como advogado, exercitar todos os 
recursos em favor do meu cliente. 
— Claro, claro, claro. Mas você não acha que isso pode atrasar 
o julgamento? É mais tempo, mais emoção, o Brasil está 
demasiadamente comovido com este caso. O país parou. Melhor 
liquidar logo o assunto. O próximo julgamento poderá ser marcado 
imediatamente. Se você agravar, suspende tudo. 
— E daí? Deixe suspender. Quero ver o plenário se 
pronunciando sobre a decisão do Gallotti. Vocês têm que deliberar 
sobre os efeitos do empate em mandado de segurança e sobre essa 
história de falta de quorum em julgamento realizado. 
— Calma, Saulo, guarda a faca. Veja bem. O caso está 
mobilizando o país. Se você agrava contra a decisão do Presidente do 
Supremo, a discussão no plenário vai pôr em jogo o próprio prestígio 
do tribunal. A casa, inclusive, pode entender que houve apenas 
proclamação de resultado, ato do qual o Presidente não pode 
retratar-se e, portanto, não é passível de recurso de agravo. 
— Não vou agravar contra proclamação alguma. O recurso será 
contra a convocação dos três ministros para novo julgamento. Isto é, 
está anulado o julgamento que ganhei. Vocês não decidiram isso no 
plenário, logo não faz parte da “proclamação de resultado”. 
Pertence já tinha uma tese para a rejeição do agravo. Mas 
ponderou: 
— Não convém correr o risco de arranharmos o que ainda 
funciona neste país. 
— Respeito sua relevante preocupação. Mas esse intocável 
tribunal arranhou o direito do país em que ele ainda funciona. E o 
fez pela decisão monocrática de seu Presidente. É preciso que os 
demais ministros corrijam isso. Ou se suicidem, apoiando esse ato 
maluco do Gallotti. 
— Pense bem. O agravo regimental contra o Presidente, além 
de criar um mal-estar para todos nós, poderá demorar. Cada um dos 
ministros vai pedir vista para fundamentar o voto. Você conhece o 
ritual. Para que prolongar essa agonia? Hoje, eu fiquei sabendo que 
você esteve com o William Patterson. 
Levei um susto. 
A inteligência do Ministro Pertence é igual à sua habilidade. 
Entendi o recado. Ninguém, a não ser os ministros do STJ, e o meu 
sócio, Luiz Carlos Bettiol, sabia de meu encontro com o Ministro 
William Patterson, poucas horas antes. 
— Você vai ganhar no plenário — insistiu Pertence. 
— Como você sabe? 
— É minha intuição. Está no meu voto negando a segurança. 
O voto dele, no primeiro julgamento, fora excelente, tanto 
quanto o do Ministro Carlos Velloso, relator. Mas eu precisava 
diagnosticar, agora, o que estava por trás daquela conversa típica de 
mineiro, não de jurista. Desconfiei que aquela intuição era mais do 
que intuída. Resultava de informação concreta. 
É preciso fazer vários cursos intensivos e especializados para 
se entender a mineiridade. O mineiro diz, mas não diz exatamente o 
que quer dizer, de tal forma que somos levados a afirmar que ele 
disse. Se isso acontecer, terá como negar e provar que o outro 
entendeu mal, sem ofender. A ciência está em inferir o que o mineiro 
não diz, quando está dizendo, ou entender a outra coisa que ele está 
querendo que você saiba, ao falar de coisa diferente. Mineiro é muito 
difícil, muito difícil. Sobretudo quando recorre às suas intuições
sobrenaturais. 
Foi por isso que Fernando Sabino escreveu: 
“Ser mineiro é não dizer o 
que faz, nem o que vai fazer 
é fingir que não sabe aquilo 
que sabe, é falar pouco e 
escutar muito, é passar por 
bobo e ser inteligente, é 
vender queijos e possuir 
bancos. 
Um bom mineiro não laça 
boi com imbira, não dá 
rasteira no vento, não pisa 
no escuro, não anda no 
molhado, não estica 
conversa com estranhos, só 
acredita na fumaça quando 
vê fogo, só arrisca quando 
tem certeza, não troca um 
pássaro na mão por 
dois voando.” 
43 
Saí de lá matutando. Santo Deus, o que estou fazendo aqui, 
neste tumultuado momento do meu país? Afinal, nasci em 
Brodowski, terra de Cândido Portinari, nosso conterrâneo mais 
importante. Podia ter ficado por lá. Eu era apenas um dos meninos 
de Brodowski, aquela linda pintura com que Candinho encantou o 
mundo. Eu não devia nunca ter saído do quadro do Candinho 
Portinari. Talvez hoje fosse o dono do armazém ou da farmácia e 
sentaria numa cadeira de palha trançada, conversando na calçada 
com o pessoal que saía do cinema, e passearia na rua, fazendo hora 
para dormir. 
Poderia ter casado com a Zoé e criado uma penca de filhos, que 
estudariam em Ribeirão Preto, em boas escolas. Quando era moço, 
em pleno romantismo, escrevi um poema, que acabou sendo 
musicado e tornou-se o hino oficial de Ribeirão. Até o Antônio 
Palocci, que foi duas vezes prefeito da cidade, sabe de cor o meu hino 
e acabou sendo Ministro da Fazenda, infernizado por um ex-auxiliar 
seu que o acusou de receber, para o PT, propina de uma empresa de 
lixo. Sem nada ter com isso, nem com o lixo, eu era uma glória 
literária da região, muito antes de Palocci. Isso me bastaria. Além de 
tudo, o homem mais famoso da região, nascido e criado em 
Brodowski, Cândido Portinari, o nosso Candinho, glória 
internacional das artes, havia pintado o retrato de meu avô e o meu. 
Ambos com dedicatória carinhosa e entusiasta. Estou lá, na galeria 
dos retratos pintados pelo gênio. Por que saí de minha terra? 
Lembrei-me de Tolstói: escreva sobre sua aldeia e você pode 
tornar-se universal. Mas, em vez de escrever coisas de Brodowski, 
estava eu escrevendo teses de Direito e falando em Kelsen, que não 
era brodosquiano. 
Por que me meti a ser advogado? Quanta encrenca o destino 
me arrumou! Sem dedicatória. 
44 
Quando meu pai me mandou estudar em São Paulo, fui morar 
numa pensão, na Praça General Osório. Para que eu não passasse 
vergonha, o velho me deu um par de sapatos novos, na época o mais 
elegante, cromo alemão, se não me engano a marca era Scatamachia 
ou algo parecido. Substituiria o par de botinas. Na pensão, repartia 
com outro hóspede o quarto e o par de sapatos. Tínhamos o pé do 
mesmo tamanho. Quando um de nós ia a alguma festa, o outro 
ficava em casa. Meu colega de quarto e de sapatos era investigador 
de polícia, mas falava que estudaria tudo o que pudesse. Chamava-
se Edevaldo Alves da Silva. Hoje é dono da UniFMU. Formador de 
advogados. Perdi tantas coisas no meu passado. Coisas e outros 
destinos, não sei se melhores, mas com certeza diferentes. Não teria 
essa esfinge para decifrar no processo judicial de Fernando Collor. 
O que o Ministro Pertence quis dizer? Para desvendar a 
mineirice, não tinha eu a suficiente, necessária e aguda perspicácia. 
Li tratados jurídicos fantásticos, de Kelsen a Pontes de Miranda, 
Vicente Ráo e Carnelutti, desvendei mistérios de complicadas ações 
judiciais, fiz proezas incríveis em processos difíceis; mas não 
conseguia entender o recado em código daquele mineiro meu amigo. 
Creio que o escritor Dan Brown, autor do Código Da Vinci, é 
descendente de mineiro. 
Conformei-me e, por simples intuição, não ingressei com o 
agravo regimental contra a decisão do Ministro Gallotti.21 Esperei o 
novo julgamento. Os atos foram todos repetidos. Novas sustentações 
orais. Cláudio Lacombe lá estava de novo, numa quarta-feira, 
afastado de suas bebidas extraídas de uva. Mas o notei um pouco 
mais nervoso. Não é preciso perder tempo descrevendo os debates. 
Tudo foi mais ou menos repetido, salvo os meus “desnecessários” 
recursos de eloqüência. 
Resultado do novo julgamento: 7 a 4, a meu favor, isto é, a 
favor do Senado e contra o impetrante Fernando Collor. Os três 
ministros do Superior Tribunal de Justiça proferiram votos de grande 
erudição e claros, todos empenhados em demonstrar que não 
pertenciam a um tribunal inferior. José Dantas, aquele ministro que 
era um misto de jurista e de santo, concluiu seu magnífico voto com 
a expressão: “Deus guarde esta casa!”. Creio que sua bondade queria 
salvar a alma do Ministro Gallotti, que teve de proclamar o resultado: 
Segurança indeferida! O Brasil e eu respiramos aliviados. 
 
21 Houve agravo, mas não do Senado, como consta dos arquivos do STF. Os 
agravantes foram os autores da denúncia, Barbosa Lima Sobrinho e Marcello 
Lavenère Machado. O recurso ficou na gaveta e somente foi julgado em dezembro 
de 1993. E indeferido, porque a decisão agravada foi considerada simples 
proclamação do resultado... 
Creio que a mineirice do Ministro Pertence consistiu no 
seguinte: ele deve ter conversado com o Ministro William Patterson e 
soube que a tendência dos ministros do STJ era favorável ao 
indeferimento da segurança, isto é, que votariam contra Collor. Entre 
eles, em casos como aquele, há certa liberdade para “troca de idéias”. 
Só pode ter sido isso. No mesmo dia de minha visita ao STJ, quase 
na mesma hora, Pertence já sabia. Sabia apenas da visita? Sabia 
algo mais. 
E, por isso, pediu-me que não recorresse da decisão do 
Ministro Gallotti, porque colocaria o tribunal em situação pra lá de 
delicada. O plenário teria que anular a decisão de seu presidente e 
declarar o indeferimento da segurança, ou inventar que se tratara de 
simples proclamação de resultado. Com a informação privilegiada 
obtida naquela manhã, Pertence quis evitar o constrangimento da 
Suprema Corte do Brasil e veio me fazer um pedido que, não fossem 
aquelas circunstâncias, seria até ofensivo para o meu dever de 
advogado: deixar de interpor o recurso a que meu cliente tinha 
direito. O que ele quis dizer com aquela conversa em curva foi que 
seria melhor ganhar nos votos do que criar um caso doloroso para o 
Supremo Tribunal e ganhar na “filigrana”. Você vai ganhar no 
plenário! Como você sabe disso? É minha intuição. Está no meu 
voto. Mineiro. Bagre ensaboado. 
Depois do resultado, ficou muito claro; mas, até hoje, ele não 
admite isso. Diz que eu tenho tendência a interpretar os fatos sob 
forte dose de ficção. É desesperadoramente difícil enfrentar um 
mineiro inteligente. 
Ao concluir essa conversa no arrastado jantar do Paddock, 
patrocinado por Gervásio, este, pouco afeito à indulgência, não se 
conteve: 
— Entre os ministros que votaram a favor de Collor, estava 
aquele que você conseguiu a duras penas nomear para o Supremo, o 
Celso de Mello? 
— Estava. Ele concedeu a segurança para Fernando Collor. 
— E você acha que foi pelas razões doutrinárias de pena 
acessória e principal, aquele papo de não poder aplicar aquela sem 
aplicar esta? 
— Na verdade, ele votou não a favor de Collor, mas contra mim. 
Em qualquer matéria, ele vota contra mim. Essa é, porém, uma 
outra história, que fica para outra vez. 
— Eu queria ouvir isso de você, porque desconfiava que existia 
qualquer coisa por trás, no voto daquele moço. 
Já era tarde. Gervásio pagou a conta. Fomos todos embora. 
Naquele dia, não conversamos sobre o caso do Sr. Olavo Brás. 
Ficamos no caso Collor, que
me fez estudar todas as falcatruas 
praticadas por Paulo César Farias. Espantosas. Quando venci a 
causa, pensei comigo: isso nunca mais vai acontecer no Brasil. 
Pois aconteceu. E pior. Mais tarde, faço um resumo desses 
novos acontecidos no Governo Lula. Inclusive a tendência do 
ministro Celso de Mello em favorecer poderosos: concedeu mandado 
de segurança a José Dirceu22 e contra o Poder Legislativo. E Collor, o 
próprio Fernando Collor, foi eleito senador por Alagoas declarando-se 
favorável a Lula, que o recebeu no Planalto com abraços e elogios. 
Em política os iguais não se repelem. A vis é atrativa. Aqui, 
acabaram meu tempo e o capítulo. 
45 
“Aracaju, 30. Chove pra caralho. O que devo fazer?” 
Era o telegrama de um repórter de A Tribuna de Santos, 
enviado especial para fazer uma cobertura da seca que assolava o 
Nordeste brasileiro há vários anos, em mais um dos seus ciclos. No 
 
22 Quando Mário Covas, Governador de São Paulo, foi agredido nas ruas, José Dirceu, 
líder do PT, declarou que Mário apanhara no braço e iria apanhar nas urnas. O 
destino é cruel. Dirceu subiu ao governo com Lula, tornou-se todo-poderoso, 
envolveu-se com a compra de deputados, com Marcos Valério e Delúbio Soares. 
Acabou apanhando de bengala de um aposentado e perdeu seu mandato de 
deputado nas urnas da Câmara. Esse opróbrio não será minorado pelo passado de 
guerrilheiro bem galante, expulso do Parlamento a bengaladas. 
auge da estiagem, com as conseqüências de sempre — fome, 
migração em massa dos retirantes, discursos de políticos, invocações 
da venda das jóias da coroa no tempo do Império —, a tragédia era 
acompanhada por todos os jornais. 
Olao Rodrigues, secretário da redação daquele fantástico 
periódico santista, que tinha um formidável faro jornalístico em 
sintonia com a vontade dos leitores, resolveu mandar para o 
Nordeste um repórter. E o rapaz chegou lá precisamente no dia em 
que a seca acabou com a chegada de uma frente (naquela região a 
frente nunca é fria) chamada de inverno, e desabou uma chuvarada 
salvadora, forte, abundante, por vários dias. Era água que Deus 
mandava! 
Olao respondeu ao telegrama, instruindo o “enviado especial” a 
fazer reportagens sobre o fim da seca e os resultados da chuva, que, 
mesmo sendo água que Deus mandava, trazia estragos misturados 
com os benefícios. E era notícia, pô! 
Na redação de A Tribuna ficou a piada. Quando chovia muito 
em Santos, o que era normal, o pessoal costumava dizer: 
— Está chovendo mais do que em Aracaju, no dia 30. 
E foi sob uma chuva assim que a cidade sofreu uma tragédia: 
desabamento de morros e das favelas neles implantadas. Eu era 
repórter novo, meio foca, e fui escalado na equipe para fazer a 
cobertura do desastre. Na cena dos acontecimentos, o impacto foi 
tanto, que pensei em largar o jornalismo. Cadáveres cobertos de 
barro, crianças com metade do corpo para fora, braços, os bombeiros 
levantando os escombros, afastando gigantescas pedras despencadas 
e encontrando gente morta. Chegavam pessoas de todos os lados 
para os serviços de socorro aos feridos. Resultado: nós deixamos a 
reportagem para os fotógrafos, tiramos as roupas, ficamos somente 
de cuecas e sapatos. E fomos ajudar. Havia os bombeiros, o pessoal 
da Santa Casa, os voluntários não sei de onde, todo mundo fazendo 
alguma coisa, conduzindo feridos para baixo e entregando-os às 
equipes médicas. 
Os engenheiros da Prefeitura estavam todos lá e, é claro, além 
de ajudar no socorro, providenciavam medidas para evitar novos 
deslizamentos de terra, retirando gente que ainda continuava nos 
barracos não atingidos, mas sob ameaça. Nessas horas, as cenas são 
terríveis, a confusão é total, as pessoas trabalham chorando, alguns 
sofrem crise de nervos, mas continuam. Deus do céu, que 
barbaridade! 
Na equipe de engenheiros municipais, havia um jovem 
magrinho, que subia e descia no meio daquela lamaceira toda, ora 
com crianças no colo, ora ajudando os que podiam andar, ora 
gritando para que retirassem os sobreviventes das casas não 
desabadas, mas que corriam o perigo iminente de rolar morro abaixo. 
Numa dessas idas e vindas, ele me viu ajudando um bombeiro e me 
pediu para levar uma criança. Peguei a criança e levei até embaixo. 
Quando subi novamente, lá estava ele mandando aos funcionários 
da Prefeitura que cavassem, a outros que colocassem esteios em 
pedras penduradas em barrancos, a outros, ainda, que levantassem 
telhados caídos. 
Fomos madrugada adentro. Ouvi os engenheiros da Prefeitura 
e os funcionários chamarem o magrinho de Zuza. Então passei a 
chamá-lo também Pelo apelido: “Zuza, o que posso fazer agora?” 
“Faça isto, faça aquilo!” Em certo momento, ele parou e me disse: 
“Obrigado por estar ajudando!” “Ué? Por que não ajudar?”, disse eu. 
Ele respondeu: 
— Você é repórter, eu o reconheci de cara, quando o vi. Você 
sempre sai nas fotos de suas reportagens. Podia apenas estar 
observando e tomando notas. Mas a ajuda é muito bacana! 
Então lhe mostrei os outros colegas meus, de calção, que 
haviam providenciado para não ficar de cuecas, todos ajudando. 
Ninguém ali era mais repórter. No dia seguinte, sim, teríamos 
capacidade de descrever com fidelidade a tragédia, porque estivemos 
muitas horas dentro dela ou dentro das conseqüências que ela 
provocou. 
Dormi pouco. Acordei cedo. As cenas que tinha visto iriam 
perturbar meu sono por muitos anos. Fui trabalhar para escrever 
sobre o desabamento. Tive a idéia de passar antes pela Prefeitura e 
colher detalhes, números e informações que os engenheiros e o 
pessoal da emergência podiam ter. Perguntei pelo Zuza. Disseram 
que ele continuara no morro até parte da manhã, mas acabara de 
chegar. O funcionário disse a um outro: “Chama lá o Dr. Mário! Tem 
aqui um repórter de A Tribuna que quer falar com ele!”. Perguntei ao 
funcionário: “O Zuza chama-se Mário? Mário de quê?”. 
— Mário Covas Júnior — respondeu ele. 
E o engenheiro magrinho entrou pela porta dos fundos da sala, 
todo enlameado, com a expressão cansada, triste, abatida, mas 
firme: 
— Meu caro jornalista, que noite! 
Ficamos amigos para o resto da vida, mesmo porque nossa 
amizade começara sob o impacto de muitas mortes, como se 
tivéssemos participado de uma sangrenta batalha. 
Depois o Zuza se desentendeu com o Prefeito Antônio Feliciano, 
um homem estranho. Quando estava nervoso, mastigava lenço. Não 
quis tomar providências para evitar novos desabamentos nos morros. 
Custaria caro. As futuras mortes não eram incluídas no orçamento 
municipal. Mário Covas, apenas contratado, foi embora. Mudou-se 
para São Paulo, onde abriu uma pequena fábrica de material com 
cera e verniz para tratamento de assoalho. Não deu certo. Foi 
esmagado pela concorrência. Voltou para Santos. Fez concurso para 
a Prefeitura e acabou, agora sim, nomeado engenheiro municipal de 
carreira. Visitou-me na redação de A Tribuna. Tomamos um café. 
Ofereceu-me um cigarro, que aceitei. Naquele tempo, Zuza fumava 
um maço por dia. Depois, passou a fumar quatro. 
46 
A vida de jornalista ensinou-me muito, sobretudo o texto curto, 
sintético, claro, que me ajudou enormemente na advocacia. 
Trabalhava como doido, e, para ganhar um pouco mais, o jornal me 
permitiu escrever colunas com pagamento extra. Roberto Mário 
Santini era “filho do dono” do jornal, Giusfredo Santini, e neto do 
jornalista que tornou A Tribuna um grande veículo, Nascimento Jr. 
Roberto foi meu amigo de juventude e me apoiou no início da 
carreira. Ele, o pai e o avô, todos já viraram saudades. Não vou 
contar a história deles, porque este livro reúne os “meus acontecidos”
e não os acontecidos das pessoas que engrandeceram aquele jornal. 
Bem que mereciam um livro exclusivo, igual ao que Pedro Bial 
escreveu sobre Roberto Marinho. Estou enganado. O livro do Bial é 
fraco, não está à altura do biografado. O pessoal de A Tribuna 
merecia um trabalho igual ao que foi escrito por Engel Paschoal: A 
trajetória de Octavio Frias de Oliveira,23 vibrante, forte, emocionante, 
como a extraordinária vida e obra de Octavio Frias. 
Uma das colunas que lancei em A Tribuna, chamada 
“Semanascópio”, publicada aos domingos, caiu no gosto do público e 
chegou a aumentar consideravelmente a tiragem naquele dia da 
semana. Eu assinava simplesmente José. Era uma coluna de 
pequenos tópicos, cada qual com a informação e o comentário sobre 
um fato ocorrido nos últimos sete dias. Muito anos depois, fiquei 
sabendo que “Semanascópio” foi o precursor de colunas de tópicos 
como o “Informe JB” e o “Painel da Folha”. Mas aquele tal de José 
ficou famoso em Santos, e, como desferia muitas críticas a políticos, 
administrações públicas, federais, estaduais e municipais, o 
colunista caiçara passou a ser assediado por muita gente, parte 
porque queria ser noticiada e parte porque tinha medo de ser notícia 
naquela seção. 
Nada disso importa para a minha vida, que acabou 
desaguando no Direito, e não no Jornalismo. Mas, precisamente aos 
domingos, quando minha coluna era publicada, eu aproveitava para 
sair de casa e tomar banho de mar nas praias do Guarujá. Lá pela 
hora do almoço, costumava ir ao posto de gasolina do Viola, que 
tinha, ao lado, um barzinho. Ali se tomavam caipirinhas 
maravilhosas e sobretudo, como tira-gosto, o insuperável quibe feito 
pela mãe dele. Para mim, nos domingos de sol, a caipirinha e o quibe 
 
23 Edição da Companhia das Letras. 
daquele bar tornaram-se obrigatórios. 
Era um desses domingos. Ao entrar no bar, vi, apoiada no 
balcão, rodeada por algumas pessoas, empertigada e dominante, a 
figura mais curiosa de São Paulo: o Prefeito Jânio Quadros, tomando 
caipirinha, comendo quibe e lendo A Tribuna, aberta precisamente na 
página do “Semanascópio”. Naquele dia, eu havia dado uma nota 
sobre a possibilidade de sua candidatura a governador e, felizmente, 
tinha elogiado a figura como alguém diferente e moderno na política 
brasileira. Assegurei, no texto, que ele não iria esquentar a cadeira 
de prefeito, eleito no ano anterior. Seria governador. Ainda bem, 
porque o próprio estava lendo o que eu havia escrito. 
Pedi meu aperitivo e o quibe. O Viola deixou o posto com seus 
frentistas e veio para o bar, julgando-se no dever de ser o anfitrião de 
um político e de um jornalista. Apresentou-nos e contou para o Jânio 
que eu era o José da coluna que ele acabara de ler, inclusive 
mostrada pelo próprio Viola. 
Jânio e eu ficamos interesseiramente interessados um no 
outro, ele em agradar ao jornalista, e eu em ter acesso à notícia, pois 
a figura não apenas me parecia uma fonte curiosa, mas era 
teatralmente a encarnação da notícia. É impossível ao jornalista 
errar nesse diagnóstico. 
47 
A aproximação foi facílima. Durou umas oito caipirinhas e não 
sei quantos quibes. Então, fiquei sabendo que o pai dele, Dr. Gabriel 
Quadros, tinha casa no Guarujá. Ali, Jânio passava muitos fins de 
semana. Vinha ao bar do Viola aos sábados e, raramente, aos 
domingos. Festejou a inspiração de ter vindo naquele domingo e ter-
me conhecido. Por mais demagogia que aquilo parecesse, comum em 
qualquer político diante de um profissional da imprensa, a figura 
transmitiu-me a impressão de ser muito inteligente. Falava, com o 
sotaque carregado, um português perfeito. Expunha com clareza 
idéias sobre qualquer assunto. Disse saber inglês, mas de Londres, 
ressalvou, não a porcaria ianque. 
E atribuiu a Bernard Shaw a observação de que os Estados 
Unidos dominariam o mundo, se os americanos soubessem falar 
inglês. 
— E você — perguntou ele — somente escreve esta coluna em 
A Tribuna?. 
— Não, meu caro — a intimidade, pela caipirinha, era total. — 
Em jornal do interior, a gente faz de tudo: reportagem policial, cais 
do porto, greve, eventos sociais, e eu ainda tenho a incumbência de 
escrever sobre a política do café, pois o assunto interessa muito a 
Santos, o maior exportador do produto. 
— Política do café? Isso existe? — perguntou. 
— Claro. O Brasil exporta cerca de cinco bilhões de dólares, e 
três bilhões são produzidos pelo café. Têm, pois, a maior importância 
as medidas dos governos federal e estaduais, reguladoras de 
escoamento da safra, de maior ou menor aperto do confisco cambial, 
na taxa do câmbio fixada para a exportação do produto. Tudo isso é 
a política do café. Critérios malucos! 
Conforme o produto exportado, a taxa de câmbio tinha valor 
diferente. Pelo dólar do café, pagava-se menos. Era o confisco 
cambial, uma desgraça para a lavoura cafeeira. Pior que geada, pior 
que a seca, pior do que qualquer desastre da natureza, pois era 
deliberada pelos economistas da época. 
— E você entende de tudo isso? 
— Eu escrevo sobre isso. Entender é outra coisa. 
Conquistei a figura, que gostava de humor refinado. Mas ele 
também me conquistou, numa época em que era muito difícil 
deparar com políticos inteligentes e de razoável cultura, 
circunstância que parece agravar-se a cada dia. 
O Prefeito de São Paulo estava, porém, fora da minha 
jurisdição de repórter. Era problema para a sucursal paulistana de A 
Tribuna. 
48 
Li, contudo, nos jornais da capital, que havia uma grande 
disputa, naquele ano, pela presidência da Comissão do IV Centenário 
de São Paulo, instituída em 1951 pelo Governo do Estado e pela 
Prefeitura da Cidade, com Ciccillo Matarazzo no comando, seu 
primeiro presidente. A Comissão prestara, antes da data, muitos 
serviços à história paulista, sobretudo quanto ao projeto Ibirapuera, 
nos terrenos reservados por Washington Luís, quando prefeito, muito 
tempo antes, para o futuro parque. Mas a disputa, agora, era pelo 
cargo de presidente da Comissão no ano máximo das comemorações, 
1954, o ano do IV Centenário. Segundo as informações, o Prefeito da 
cidade teria peso decisivo na escolha. Eram candidatos vários 
políticos ou protegidos de políticos. Fui para São Paulo, falei com um 
grande amigo meu e me dirigi ao gabinete do Prefeito. 
— O senhor quer falar com o Prefeito? — perguntou-me um 
oficial de gabinete. — Sem marcar hora? Vou encaminhá-lo para 
Dona Kalime. 
Dona Kalime Gadia não tinha a menor idéia de quem eu era. 
Na vida de Jânio, quem Dona Kalime não conhecesse podia 
considerar-se estranho e, no mínimo, intruso. Após os 
cumprimentos, disse-lhe: 
— Fale que é o Saulo Ramos, de Santos. 
— Saulo Ramos dos Santos? 
— Não, minha senhora, Saulo Ramos, da cidade de Santos, 
jornalista. 
Com uma expressão meio incrédula, ela disse que ia tentar e 
entrou no gabinete. Alguns segundos depois, a porta se abriu, e o 
próprio Jânio surgiu: 
— Meu amigo, que surpresa! Ganhei o dia! — e mandou-me 
entrar. Dona Kalime ficou sem entender nada. Nem eu tinha tempo, 
nem seria elegante contar-lhe histórias de caipirinha no bar do Viola, 
no Guarujá. 
— Presidência da Comissão do IV Centenário? Tem interesse 
nisso? Você é de Santos, quer promover os Andradas ou homenagear 
o Padre Anchieta? 
— Nada disso. Primeiro, eu sou de Brodowski, e não de Santos. 
— Então quer indicar o Portinari — ironizou. 
— Não. Quero fazer uma sugestão ainda melhor. Em vez de 
colocar um político, nomeie o Guilherme de Almeida, o poeta de São 
Paulo e Príncipe dos Poetas Brasileiros. 
Ficou quieto. Pensou. Seus olhos se iluminaram:
— Você acaba de me prestar um grande favor. É a solução. Que 
grande idéia! Será que ele aceita? 
— Não sei. Convoque-o e proponha. A iniciativa deve partir de 
você. 
— Farei o possível. Tenho que falar com o governador. A 
escolha será de comum acordo. Creio, porém, que o nome do 
Guilherme é irrecusável. 
Despedi-me e, quando eu estava saindo, ele concluiu: 
— Saulo, meu bem. Quando tiver novas idéias a me sugerir, 
venha. Não se iniba. 
Guilherme aceitou. Eu já sabia, mesmo porque, antes de ir 
falar com Jânio, havia sondado o poeta, que se entusiasmou com a 
hipótese, mas, bem a seu feitio, desanimou, dizendo que a pressão 
dos políticos era imbatível. E que ele não mexeria uma palha para 
conseguir o cargo. Achava o Jânio meio maluco e não gostava do 
governador. Guilherme era especialista em complicar as coisas. 
Imaginação fértil demais. Atalhei: se você for convidado, aceita? 
— Aceito. 
Assim se fez. 
49 
A maneira pela qual o destino me fez conhecer Guilherme de 
Almeida foi surpreendente peripécia, que me levou a mais peripécias, 
umas derivadas das outras. Morando em Cravinhos, na fazenda de 
meu pai, telefone 45, havia escrito muitos poemas sobre o café, 
lavoura, plantio, geada, floradas, colheita, vida simples da roça, 
enxadeiros. Alberto Wately, líder rural e da cafeicultura, amigo de 
meu pai, pediu cópia das poesias, para submetê-las à apreciação do 
poeta Guilherme de Almeida. 
Meu pai chegou em casa com a novidade e com uma pequena 
máquina de escrever, que comprara em Ribeirão Preto. Eu deveria 
esforçar-me, aprender datilografia e mandar os poemas 
datilografados. Não sei se ganhei muita coisa com a poesia, mas 
aprendi a escrever à máquina, o que foi fundamental para a minha 
vida de jornalista, de advogado e, mais tarde, muito mais tarde, para 
dominar o computador. É isso mesmo: dominar o computador. Sei 
quase tudo sobre essa máquina fantástica, numa relação 
interminável de amor e ódio. Na minha idade, trata-se de proeza 
incrível saber a diferença entre um arquivo “sys” e um “dll”. Claro, 
cultivo e uso o utilitário e seus periféricos, tendo em mente aquilo 
que foi dito por um francês: “L’ordinateur a de mémoire, mais n’a 
aucun souvenir”, “o computador tem memória, mas nenhuma 
lembrança”. 
Voltemos à minha primeira máquina de escrever, como se dizia 
então. Datilografei meus poemas. Claro que fiquei extremamente 
nervoso, quando minhas poesias, enfiadas num envelope pardo, 
foram levadas pelo meu pai e tinham como destinatário o maior 
poeta brasileiro vivo. Enfim, eu era um jovem caipira, que vivia em 
fazenda e conhecia apenas a estrada entre Cravinhos e o norte do 
Paraná, enquanto trabalhei como caminhoneiro. E fiquei quase em 
pânico, ao saber que meus versos seriam lidos pelo poeta de quem 
todo mundo falava, a professora rural, os intelectuais de Ribeirão 
Preto, e que publicava diariamente uma crônica no jornal que meu 
pai assinava. 
Passou-se o tempo, e Guilherme chamou-me. Disse que estava 
lendo e, por enquanto, queria apenas me conhecer. Conversamos. No 
final, ele me disse que era candidato a deputado estadual. Trabalhei 
por ele em Cravinhos. Teve onze votos. Escreveu-me uma carta 
dizendo que os onze votos valiam tanto quanto as onze mil virgens do 
paraíso. Não foi eleito e silenciou. Nenhuma notícia. Desisti de 
esperar. Tirei da cabeça. Meu pai vendeu a fazenda em Cravinhos, e 
mudamos para Santos. E lá recebemos a notícia de Alberto Wately: 
Guilherme queria me ver. 
Fui encontrar-me com ele em seu escritório, na Rua Barão de 
Itapetininga. Recebeu-me com um abraço, chamando-me de poeta, e 
comunicou que minhas poesias seriam publicadas em livro e que ele 
já havia redigido o prefácio, o qual me estendeu para ler. Ele mesmo 
percebeu que eu havia ficado pálido. Era fim de tarde. Acalmou-me e 
convidou-me para tomar um uísque num bar ao lado do seu 
escritório, num edifício que ostentava um grande letreiro: PRINTAL. 
A porta de entrada era exatamente embaixo do N, e o bar era 
no primeiro andar, Confeitaria Vienense. Entramos. No bar, ele era 
celebridade também como freguês. Em Cravinhos, não me lembro de 
ter tomado uísque. Creio que uma vez meu pai me ofereceu uma 
dose com soda, gasosa, enjoativa. Meu forte era cachaça, porque 
vivia misturado com a caipirada. Misturado é força de expressão. 
Sempre fui um deles. Em Santos, não havia sido iniciado na bebida 
escocesa. Continuava com pinga, limão e gelo moído. Fase de praia. 
Caipira se dá bem com caipirinha e refuga scotch. 
Mas o Guilherme tomava uísque com gelo e um pouquinho de 
água pura, sem gás. Aderi, pois, afinal, ele era meu mestre. Foi o 
primeiro uísque de algumas dezenas de litros que tomamos juntos no 
correr da vida, a maior parte em sua casa, na Rua Macapá, pois eu 
não tinha dinheiro para bancar o gosto pela bebida escocesa. 
Varávamos a noite discutindo poesia, forma, versos livres, 
metrificação variada, harmonia e ritmo. Ele ficava um pouco 
enciumado, quando se mencionava Fernando Pessoa. Quanto ao 
resto, não ligava muito. 
No lançamento do meu livro, que se chamou Café: a poesia da 
terra e das enxadas, aconteceram aquelas situações de sempre. 
Poeta novo na praça, apresentado pelo poeta mais consagrado de São 
Paulo, badalação, noticiário, até que um dia, em sua coluna do 
Diário de São Paulo, escreveu uma crônica, publicada no dia 1º de 
outubro de 1953, comemorando o surgimento do “poeta do café”, 
tecendo elogios para a poesia e, de repente, enfiou no texto a 
seguinte frase: 
“... agora se há dois amigos entre os homens somos nós: Saulo 
e eu...” 
50 
Provocou uma crise dos diabos. O Professor Vicente Ráo, o 
maior jurista do Brasil, o advogado mais famoso de São Paulo, 
considerava-se, e era, o maior amigo do Guilherme. Eles haviam 
cursado, juntos, o ginásio e a Faculdade de Direito. Formaram-se 
juntos, e juntos festejaram o início da profissão. E Ráo, no começo 
do século XX, começou a advogar no escritório do pai do Guilherme, 
Dr. Estevão de Almeida, advogado célebre na época, que, depois, 
pediu ao Ráo para abrir um escritório próprio, prometendo que lhe 
mandaria clientes. Mas exigiu que levasse o Guilherme, pois seu filho 
perturbava o ambiente sério do seu escritório com piadas e vivia 
fazendo versinhos. 
Assim, Vicente Ráo começou sua advocacia autônoma sem o 
Guilherme, que escreveu poemas maravilhosos e nunca redigiu uma 
petição. Mas passaram a vida juntos, casaram-se com mulheres que 
se tornaram amigas, viveram as mesmas coisas, os mesmos 
ambientes paulistas, e ambos, cada qual sob sua vocação, tornaram-
se celebridades nacionais, Guilherme, o Príncipe dos Poetas 
Brasileiros, e Vicente Ráo, o maior jurista de nosso país naquela 
época e, para mim, de todos os tempos. 
— Preciso que você venha para São Paulo amanhã, sem falta — 
disse-me o Guilherme pelo telefone. Eu já estava morando em 
Santos, onde comecei a estudar Direito, depois de ter feito o colegial 
em Ribeirão Preto. 
— Por que tanta urgência? 
— Pela crônica no Diário de São Paulo, em que falei dos dois 
amigos entre os homens, você e eu. Ráo quer tirar satisfação comigo. 
Veja bem: ele não quer explicações, quer tirar satisfações, o que é 
muito mais grave. Ciúme de homem é a pior coisa que pode existir. 
Acaba sendo mais escandaloso e agressivo do que ciúme de amante 
francesa. Venha, pois quero ir ao escritório dele, na Rua Sete de 
Abril, aqui pertinho, levando você. 
No dia seguinte, subi a Serra do Mar, pensando comigo: seja o 
que Deus quiser! Como pode uma simples frase causar tanto barulho 
entre homens tão ilustres? Mas foi a frase que mudou minha vida 
para sempre. E
como! 
51 
Guilherme já me havia apresentado o mundo literário de São 
Paulo. Numa época em que não havia televisão, chegamos a formar 
um grupo simpático, que saía pelo interior, declamando poesias nos 
teatros: Paulo Bonfim, José Carlos Dias, Selene de Medeiros, Ives 
Gandra Martins, Eurícledes Formiga e Guilherme de Almeida, que 
nem sempre estava disposto a nos acompanhar. Paulo Bonfim e José 
Carlos Dias eram “prefaciados” de Guilherme. Em geral, eu ficava na 
porta dos teatros, sentado diante de uma mesinha, quando 
terminava o espetáculo, vendendo os livros dos poetas. Inclusive o 
meu, que era o menos procurado. 
O público vibrava com os poetas a declamar suas próprias 
poesias. E um dos sucessos maiores dessas apresentações era o 
talento para o improviso do paraibano Eurícledes Formiga. Para dar 
maior sensação e autenticidade ao improviso, ele pedia que alguém 
da platéia lhe desse um verso para ser glosado ou um assunto para 
ser desenvolvido em sextilhas. Em geral, os poetas locais, 
pressionados pelo público, forneciam os versos românticos, líricos, 
fáceis de serem glosados pelo nosso fabuloso repentista nordestino. 
Uma noite, um espectador resolveu embaraçar o paraibano e o 
desafiou a improvisar sobre o tema “A saudade é um parafuso”. 
Ficamos todos gelados. Não tinha jeito de sair daquela 
encrenca. O tema era um desastre. Mas o poeta, calmo, pensou um 
pouco e, com voz pausada e rouca, devolveu em sextilha com rimas 
nas pares: 
“A saudade é um parafuso, 
Que, quando entra, não cai, 
Só entra se for torcendo 
Porque batendo não vai. 
Depois que enferruja dentro, 
Nem destorcendo não sai.” 
A platéia delirou. Naquele dia, o livro mais vendido na portaria 
foi, claro, o do Eurícledes Formiga. Os dos outros poetas, 
principalmente os meus, encalharam. 
52 
Nerval entrou em minha sala: 
— Pensei que você estivesse trabalhando. 
— E não estou? 
— Não parece. Quando abri a porta, você estava com os olhos 
fixos na janela. Parecia perdido num vôo de nuvens lá fora. 
— Estava lembrando o tempo dos meus amigos poetas, 
enquanto descanso um pouco de umas contra-razões de apelação 
com prazo para amanhã. 
— Se seus clientes souberem que você divaga na hora de 
trabalhar, nós estamos fritos. 
— Por isso não publico livro de poesias. Você tem razão. O 
cliente, sabendo que seu advogado é poeta, pode chegar à conclusão 
de que, no mínimo, corre o risco de perder o prazo nos processos 
judiciais. 
— Mas o Ives Gandra publica livros de poesia quase todos os 
anos e continua sendo um dos advogados mais respeitados do país, 
com grande clientela. 
— Não tenho a mesma coragem. O Ives é excepcional. Ele faz 
de tudo: conferências, organiza conselhos de estudos e congressos, 
profere excelentes pareceres jurídicos, é professor, advoga 
intensamente e bem. Ainda encontra tempo e paciência para criticar 
a política tributária do governo, tarefa patriótica e inútil. E você? 
Tem novidade sobre a mulher do Olavo Brás? 
— Tenho, e muito interessante. A mulher faz tratamento 
psiquiátrico com uma das mais famosas médicas de São Paulo e, 
segundo me informaram, tem problemas sérios de perturbações 
mentais. 
— Mas não podemos obter nada da médica psiquiatra. Ela tem 
o dever do segredo profissional. 
— O juiz pode. 
— Inclusive para o juiz, ela tem o direito de negar-se a fornecer 
informações sobre sua cliente. Tire isso da cabeça. 
— Eu sei, mas o juiz da nossa causa é um dos mais 
inteligentes e hábeis de toda a magistratura paulista na atualidade. 
Você sabe disso. Se ele se dispuser a ouvi-la, acabará conseguindo o 
que quiser, com integral respeito aos sigilos profissionais de todos os 
códigos de ética deste mundo. O moço é um craque! — Nerval quase 
discursava, tecendo loas ao magistrado. 
— Realmente, ele é muito bom — concordei. — E está 
convencido, precisamente por ser excelente magistrado, de que o 
deslinde da questão deve ser conduzido pensando-se nas crianças, 
independentemente de direito de mãe e de pai. 
— Um valor mais alto se alevanta — disse Nerval, depois de 
mandar cessar tudo o que antiga musa canta. 
— É preciso ter muita coragem. Vamos entrar com uma 
petição, requerendo ao juiz o depoimento da psiquiatra antes da 
audiência de instrução e julgamento? 
— É isso mesmo. 
— Seja o que Deus quiser! 
No mesmo dia redigi, assinei e mandei protocolar a petição. 
53 
— Tenho uma excelente notícia para você — disse Sinval, ao 
entrar na minha sala. 
Imediatamente, peguei o maldito cigarro e acendi, para 
intoxicar minha ansiedade. 
— Isso vai matar você — sentenciou Sinval. . 
— A notícia? 
— Não, o cigarro. 
— Pára com isso. Quero a notícia. 
— Não é apenas seu cliente que tem mania de suicídio. Você 
também. Cigarro mata! 
Sinval tinha razão. Fumante desde os quinze anos, eu tinha 
absoluta consciência do mal que o hábito me causava, e já causara 
um enfarte, duas pontes de safena, uma ponte de mamária, um 
stent, e eu continuava fumando, menos, mas continuava, o que não 
alterava o juízo que eu mesmo fazia de mim: fumar pouco não me 
faria menos burro. A burrice era igual. Mas não dei o braço a torcer: 
— Se você veio aqui para falar de cigarro, agradeço o gesto de 
Exército da Salvação, e pode sair, porque tenho um mandado de 
segurança para redigir. Estou lotado de problemas. Quero saber da 
notícia. Quer um café? 
— Não, obrigado. Se eu tomar o café, você também toma, e lá 
vai outro cigarro. Vamos ao que interessa. Fizemos uma reunião, o 
perito judicial, o assistente da autora e eu. Concordamos em que a 
fita apresenta a pausa depois de cada pergunta. E isso será 
unânime. 
— Bem, até aí estava mais ou menos previsto. O que mais? 
— Aí vem o melhor. Sugeri que o laudo fizesse constar que as 
pausas indicavam com segurança que as respostas foram induzidas. 
Nenhuma outra razão poderia justificar a pausa depois de todas as 
perguntas. E mais: as respostas fluíram sem hesitação, o que 
demonstra terem sido as crianças bem ensaiadas para dizer cada 
uma das frases gravadas. 
Em processo judicial, as perícias são efetuadas por três 
especialistas e profissionais habilitados. Um indicado pelo autor da 
ação, outro indicado pelo réu, ambos chamados de assistentes. O 
perito principal é indicado pelo juiz. Não é comum conseguir um 
laudo unânime. Por isso, minha pergunta: 
— Você conseguiu isso do perito judicial e também do 
assistente da autora? 
— Quem conseguiu foi a consciência de cada um de nós. O 
próprio perito judicial, depois de se convencer desse aspecto 
relevante, doutrinou o assistente da autora, ponderando estar em 
jogo não o interesse dela, mas a verdade em favor das crianças. 
Submetidas a esse tipo de ditado, as crianças sofreram uma 
violência moral inimaginável. Se fez isso, ou mandou alguém fazer, 
essa mulher é um perigo para a educação e formação dos próprios 
filhos. 
— E você não quer que eu fume com uma notícia dessas? 
— Não fume! Quero que você dure até o final do processo. Pelo 
menos. 
— Mas eles aceitaram colocar no laudo uma opinião dos 
peritos, que devem se limitar unicamente ao aspecto técnico? 
— Aí está a interpretação errada do princípio. O aspecto 
técnico pode muito bem levar o perito a concluir o porquê de sua 
existência. Muitas vezes, em caso de assassinato por facadas, pode-
se chegar à conclusão de que o assassino é canhoto, por simples 
detalhes na direção e formato da perfuração. 
— Mas isso ainda é aspecto técnico. Na gravação, temos 
apenas a indicação da pausa entre a pergunta e a resposta. 
— No caso das facadas, veja bem, estou falando de várias 
facadas, não de uma só, a repetição
é que facilita a conclusão. E, no 
caso da gravação, a repetição da pausa depois de todas as perguntas 
faz saltar a conclusão lógica de que a paralisação do gravador só 
pode ter acontecido para o ditado da resposta. Não é apenas uma 
opinião. É uma conclusão plausível, e nós vamos ter que salientar 
isso no laudo. Farei o rascunho para o perito judicial. 
— E há previsão para a entrega do trabalho? 
— Não sei exatamente, mas fique tranqüilo. Está decidido: o 
laudo será unânime. 
Quase acendi outro cigarro. Essa afirmação da perícia ia me 
facilitar demais na defesa do cliente e no convencimento do juiz: 
devíamos ouvir as crianças. Agora eu tinha um motivo técnico para 
obter essa prova fundamental. 
Lembrei-me do Gervásio: 
— E a distância entre a fonte de áudio e o gravador? 
— É sempre a mesma. As crianças estão seguramente à mesma 
distância quando falam. É simples determinar pelos picos da onda 
senoidal no analisador de espectro de áudio. O volume é sempre o 
mesmo. 
— Onda senoidal? 
— Aquelas ondas verdes que o osciloscópio mostra quando 
reproduz. As mesmas que desaparecem, quando a gravação sofre 
interrupção pela pausa. Conforme a altura da curva senoidal, pode-
se afirmar que as crianças estão imóveis, a uma distância de trinta 
centímetros do microfone. É constante. 
— Isso vai ficar claro no laudo? 
— Claríssimo. 
— Dá para concluir que as crianças estavam sendo seguradas 
no momento em que respondiam às perguntas? 
— Aí já é demais. Não confunda a conclusão que tiramos das 
pausas com a hipótese de igualdade da distância entre o gravador e 
as crianças. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. 
Como a televisão influencia o vocabulário das pessoas! 
— Não se preocupe — tranqüilizei-o. — Essa circunstância, se 
bem salientada no laudo, vai me ajudar a sustentar a existência de 
um cúmplice na gravação. 
Sinval saiu. Fiquei na minha sala, saboreando a notícia e o 
cigarro. Ah! Ainda tenho um mandado de segurança para redigir. 
Santo Deus! Os prazos e o cigarro vão me matar! Há tanto tempo já 
sei disso! 
Na época de Shakespeare, o rei James I da Inglaterra já sabia 
disso também e era antitabagista em 1615. 
“Fumar é um hábito repugnante à vista, odiado pelo olfato, 
danoso para o cérebro e perigoso para os pulmões”, escreveu o rei, 
em 1616, sobre o novo “mau costume” procedente da América e 
popularizado por Sir Walter Raleigh, introdutor do fumo no mundo 
dito civilizado daquela época. 
Até a Rainha Elisabeth I aprendeu a cachimbar. James I, que a 
sucedeu, ao tornar-se monarca da Inglaterra, em coerência com seu 
pensamento real, mandou decapitar Raleigh em 1618. Raleigh foi, 
portanto, um dos fumantes que não morreu de câncer, salvo que foi 
pela decapitação. 
54 
Então verifiquei que havia outro caso urgente para resolver. 
Era um mandado de segurança ao contrário, isto é, requerido e 
conseguido liminarmente pelos advogados das concorrentes da NEC, 
companhia japonesa, que havia ganho a concorrência pública para 
instalar em São Paulo a telefonia celular. Começaria com 60 mil 
telefones. Os impetrantes da segurança, advogados competentes, 
abusaram um pouco: acusaram a NEC de algumas deficiências 
técnicas, inclusive afirmando que ela não tinha o recurso de rooming, 
vital para a comunicação entre os telefones celulares de regiões 
diferentes. A NEC me contratou para defendê-la. 
Chamei o vice-presidente da empresa, Renato Ishikawa, e 
perguntei-lhe: 
— O que é rooming? 
Ele começou a me contar uma história de mãe e criança recém-
nascida, que nada tinha a ver com telefone. 
— Rooming-in foi o termo utilizado por Arnold Gessel pela 
primeira vez em 1943 — disse ele —, em seu livro Infant and child in 
the culture of today, para denominar a prática de permitir a 
colocação, no mesmo ambiente, de um pequeno berço para acomodar 
o recém-nascido ao lado de sua mãe. Esse termo foi uma derivação 
do termo lying-in, que, em inglês, significa estar deitado, e é utilizado 
para mulheres em trabalho de parto. Significa alojamento conjunto. 
— Mas o que isso tem a ver com telefone móvel? 
— Tudo. A expressão foi usada para designar o recurso para o 
telefone portátil funcionar em áreas distantes de suas provedoras. 
Você pode levar seu celular de São Paulo para Brasília ou para 
Manaus, e ele funciona normalmente, tanto para receber chamadas 
como para fazer ligações. É apenas um exemplo. Ainda não temos o 
conjunto de sistemas instalados no Brasil. Mas será assim dentro de 
pouco tempo. É uma tecnologia que permite às várias e diferentes 
companhias telefônicas o intercâmbio das comunicações e do 
alojamento conjunto dos serviços ao usuário. O rooming-in. O berço 
da criança está sempre ao lado do leito da mãe. 
— E a NEC tem esse berço? — perguntei. 
— Claro que sim. 
Com essa informação, redigi um pedido de revogação da 
liminar concedida aos concorrentes. A matéria dependia de prova, 
existência ou inexistência de tecnologia, detalhe de fato, sujeita à 
verificação técnica. Incabível em mandado de segurança. Fui 
despachar pessoalmente com o presidente do Tribunal Regional 
Federal de São Paulo, Américo Lacombe, um craque em Direito. 
Cassou a liminar. 
Os concorrentes da NEC recorreram ao Superior Tribunal de 
Justiça e se apressaram em ir falar com o relator sorteado, Ministro 
Peçanha Martins. Também fui. Ao entrar na sala dele, ouvi logo de 
início: 
— Seus adversários estiveram aqui e fizeram uma longa 
sustentação oral antes da hora. Vou-lhe assegurar o mesmo direito. 
Comece. 
Peçanha Martins é um excelente jurista. Baiano de talento, 
gozador, bem-humorado, muita gente se engana com ele. Por trás da 
simplicidade e da enorme barriga, tem uma vasta cultura geral, além 
de uma perspicácia invejável para questões de Direito. 
— O senhor sabe o que rooming? — perguntei. 
— Não tenho a menor idéia — disfarçou ele, já esboçando um 
sorriso inteligente. — Sei apenas tratar-se de uma tecnologia que sua 
cliente não tem. 
— É o que afirmam os impetrantes. Mas ela tem e muito bem 
desenvolvida. Vocês vão decidir isso em mandado de segurança? Vão 
fazer perícia em processo que apenas examina direito líquido e certo? 
Contei a história do leito da mãe e do bercinho. Alojamento 
conjunto. Haveria direito líquido e certo em afirmar que a vencedora 
da licitação não oferece o recurso de rooming, o que depende de 
prova técnica complexa? 
A cassação da liminar foi mantida, a segurança, mais tarde, foi 
negada, e a NEC, em São Paulo, além dos 60 mil telefones iniciais, 
acabou instalando milhões de unidades. Uma delas, o meu celular, 
causa de muitos dos meus tormentos. 
55 
Autorizados por Dona Sílvia, entramos, Guilherme de Almeida 
e eu, na sala do Professor Vicente Ráo, para atender ao chamado do 
amigo ofendido pela crônica do poeta. Tive o cuidado de levar um 
exemplar de meu livro autografado ao grande jurista. 
Ráo irradiava uma simpatia cativante e uma simplicidade 
comovente. Depois da apresentação, brincou com o Guilherme: 
— Você comete o crime e me traz o corpo de delito? 
Guilherme, embora poeta, foi prático dessa vez: 
— Ráo, não sei quantos advogados recém-formados tentei lhe 
apresentar. Estudantes, perdi a conta. Você sempre me embrulhou 
com lacinhos de pompom e nunca os recebeu. Somente o impacto 
que lhe causei, por declarar que tinha um amigo comparável a você, 
possibilitou esta apresentação. O que desejo, na verdade, é que o 
Saulo venha trabalhar no seu escritório. 
O professor achou curiosa a maneira engendrada pelo amigo de 
juventude e me perguntou: 
— O senhor é formado por onde? 
— Ainda estou estudando na Faculdade de Direito
de Santos. 
— Então o senhor pretende ser solicitador acadêmico em meu 
escritório? 
Naquele tempo, não havia a figura do estagiário. 
— Senhor Doutor Professor Vicente Ráo — respondi, um pouco 
embaraçado —, não pretendo nada. Creio que o Guilherme 
precipitou algo. O pedido que ele acaba de lhe fazer, embora muito 
honroso para mim, não teve a minha autorização. Minha vinda aqui 
tem um único motivo: conhecer o senhor e oferecer-lhe um exemplar 
de meu livro. 
O professor virou-se para o Guilherme e disse: 
— E agora? O que vamos fazer com o seu melhor amigo? 
— Leia o livro dele e espere-o formar-se em Direito. Ele voltará 
para pleitear o ingresso no seu escritório. Não é, Saulo? 
— Guilherme, que coisa mais complicada — respondi eu, já 
meio nervoso. — Eu dei para o professor um livro de poesia, mas isso 
não me credenciará como advogado. Uma coisa nada tem a ver com a 
outra. 
— Fique quieto. O Ráo é um bom leitor de poesia. Leu todas as 
minhas. Direito é secundário. Desejo que ele conheça sua facilidade 
para escrever, para dizer o que sente, o que lhe dará bons elementos 
para avaliar o futuro advogado, que, em geral, tem que dizer o que 
perna, e não o que sente. E muitos nem sequer sabem pensar. 
A conversa parecia luta de espadachins malucos. Misturar 
sonetos com razões de Direito, e no futuro. Mas terminou com o 
professor Vicente Ráo dizendo que o escritório estaria aberto para 
mim, quando quisesse, depois de formado, ou antes. 
Guilherme saiu com ares de vitorioso: 
— O Ráo deu a palavra, pronto. É um dos homens mais 
honrados deste país. Você terá oportunidade de iniciar sua profissão 
junto a um dos melhores juristas do Brasil. O destino está 
apontando o dedo para você. Não se desvie. 
E quase me desviei. Em Santos, acabei conseguindo emprego 
de repórter em A Tribuna. Fiquei fascinado pelo Jornalismo. 
Mergulhei inteiro na nova profissão, enquanto fazia o curso de 
Direito. No vestibular para a Faculdade, passei em primeiro lugar. 
Festa na família e entre os amigos. Mas o jornal, o ambiente, os 
novos amigos, os novos conhecimentos, a falta de horário, as altas 
horas na redação, quando havia crises políticas ou eventos 
extraordinários, tudo isso me fascinava. Cheguei a acreditar que 
havia encontrado minha profissão. Acabei tendo a honra de ser 
escalado para, em alguns dias da semana, escrever o artigo de fundo 
de algumas edições, o editorial. Era o máximo. 
Ali convivi com jornalistas excelentes: Olao Rodrigues, Geraldo 
Ferraz, Patrícia Galvão, Rubens de Ulhoa Cintra, Horneaux de Moura 
e outros, e mais outros, e mais outros. 
Patrícia Galvão, Geraldo Ferraz e eu fundamos o Centro de 
Estudos Fernando Pessoa, para cultivar e divulgar a poesia do 
imenso poeta português. Nisso foi incluída extensa correspondência 
com Casais Monteiro em Portugal. 
Casais era o amigo de Pessoa. A ele, o poeta escreveu a célebre 
carta explicando seus heterônimos. Um dia apareceu em Santos, 
vindo de um congresso no Uruguai, e nos deu um susto. Fugiu do 
navio em que viajava e queria asilar-se no Brasil, porque não 
tolerava a ditadura de Salazar, que, pelo jeito, também não 
suportava o intelectual português. 
Tivemos que providenciar o asilo. Geraldo Ferraz conseguiu 
encaixá-lo na redação de O Estado de S. Paulo e, depois, acabou se 
tornando professor em Araraquara. Livrou-se de Salazar. 
Contei essas coisas por uma razão muito simples: Casais 
Monteiro distinguiu-me com um presente preciosíssimo: deu-me os 
óculos de Fernando Pessoa, precisamente o célebre pincenê com que 
foi retratado por Almada Negreiros. O jornalismo me proporcionou 
tudo isso e, de quebra, trabalhando na baixada do litoral paulista, vi 
Pelé estrear no Santos Futebol Clube, em 1956, e tive o privilégio de 
assistir a todos os seus jogos na Vila Belmiro, nos locais reservados à 
imprensa, para onde me levavam o Guenaga e o De Vaney, repórteres 
esportivos de A Tribuna. 
Para encurtar toda esta conversa: formei-me em Direito e fui 
procurar o Professor Vicente Ráo. Admitiu-me no escritório. De 
início, eu viajava todos os dias de Santos para São Paulo e vice-
versa. Com um detalhe: esse vice-versa era à noite. Eu ainda ia para 
a redação de A Tribuna, trabalhar no período noturno. Vida dura. E 
continuava fumando! 
56 
No escritório de Ráo, naquele começo tímido, tive o apoio de 
um advogado fantástico: Ovídio Rocha Barros Sandoval, o discípulo 
predileto do velho professor. Ficamos amigos incondicionais. 
Lutamos juntos em muitas causas. Depois de uns anos, ele nos 
deixou e foi ser juiz. Mas voltamos a nos encontrar em Ribeirão 
Preto, onde hoje somos vizinhos e convivemos, como nos velhos 
tempos. Aposentou-se da magistratura. E ainda advoga. E bem. 
Outro companheiro inesquecível foi José Frederico Marques. 
Veio trabalhar conosco na Rua Sete de Abril e deixou funcionando o 
seu escritório da Rua 24 de Maio, que transformamos em 
departamento criminal. Trouxe de bônus o seu genro, Manuel Alceu 
Afonso Ferreira, advogado que se tornou célebre por suas admiráveis 
qualidades profissionais e por ser jurista de talento. 
Todo mundo era bom naquele escritório, transformado numa 
usina de talentos e operadores do Direito. A modéstia me impede de 
dizer que eu também não era dos piores. Mas, agora que, sob esse 
subterfúgio de falsificar a modéstia, já disse, explico: o problema é 
que continuava com a alma de jornalista. Mas tinha que escolher. 
A notícia ou a razão de direito? A informação ao público ou a 
sustentação diante apenas de um juiz? A manchete, a consulta das 
fontes, a rapidez em colher o fato e levá-lo ao texto, ou, diante do 
fato, a reflexão, o amadurecimento do raciocínio técnico, o texto 
refletido? Foi difícil decidir. 
O empurrão veio da ditadura em 1964. Acabaram com a 
liberdade de imprensa. Resolvi dedicar-me somente à advocacia. Era 
uma forma de lutar pela liberdade das pessoas. 
Frederico Marques levantava-se muito cedo, lá pelas quatro da 
manhã; dormia antes das nove da noite. E Vicente Ráo, ao contrário, 
ia dormir de madrugada e levantava-se ao meio-dia. Isso me fez 
observar que o nosso escritório tinha, durante 24 horas, um gênio de 
plantão. 
Até José Sarney, quando os militares fechavam o Congresso 
Nacional, vinha trabalhar conosco. Marly, sua mulher, costumava 
dizer que nessas temporadas podia mandar seus filhos para a escola 
— Roseana, Zequinha e Fernando — com sanduíches recheados de 
goiabada. Sempre bem-humorada, insistia na defesa da tese de que o 
marido deveria largar a política e dedicar-se inteiramente à 
advocacia. Sonhar é preciso. 
Estava eu ali, na sala do Professor Vicente Ráo, chefiando, 
após sua morte, o escritório que fora dele. Sua ausência era um vazio 
imenso. Chegava a engasgar. Mas nós, Ovídio Rocha Barros 
Sandoval e eu, continuamos a conversar com o Professor Ráo, lendo 
suas obras. É impressionante a sensação de ouvi-lo em silêncio. E 
quanta sabedoria salta a cada parágrafo do que ele escreveu! E como 
escrevia simples, claro, sem complicação alguma! Sobre Direito Civil, 
foi quem melhor escreveu em língua portuguesa. Aliás, no Brasil, o 
próprio Direito Civil se divide em antes e depois de Vicente Ráo, já 
que ele trouxe doutrina e ensinamentos que alteraram 
completamente a forma de pensar de nossos juristas, até então 
limitados a citar Clóvis Beviláqua. Por tudo isso, sobre mim pesava 
uma responsabilidade enorme: dar continuidade à advocacia 
fundada por um gênio e um dos homens mais honrados do nosso 
país, como observara Guilherme de Almeida. Eu não tinha o direito 
de falhar. Em nada. 
Ráo fumava uns cinco maços de cigarro por dia. Ovídio nem
tanto, mas seguia os costumes do mestre. Frederico Marques era 
mais moderado no tabagismo. Em Santos, o meu amigo Mário Covas 
consumia uns quatro maços diariamente, o que contribuía para sua 
voz ficar ainda mais rouca. 
Sarney era a exceção: somente fumou duas vezes na vida — 
uma quando foi pedir a Marly em casamento, e outra, quando estava 
no colégio, numa rodinha de colegas. O cigarro passava de mão em 
mão para uma tragada. Quando chegou a vez dele, foi pego por um 
professor. Teve que escrever trezentas linhas contra o cigarro. 
Salvou-se. 
Excluindo o José Sarney, minha vida era cercada de fumaça, 
diversa dessas neblinas que agora estão se desfazendo para eu 
descrever os fatos do meu passado. 
Fernanda Pessoa, em “Tabacaria”, escreveu: 
“Enquanto Deus me conceder, continuarei fumando...” 
E acendi um último cigarro, quando acabei de redigir umas 
razões quaisquer para um outro processo. 
Lembrei-me do Sinval. Isto vai acabar me matando. Espero, 
porém, durar até ler, no caso do Sr. Olavo Brás, o laudo assinado por 
todos os peritos. Não era pedir demais. Fiquei meditando na outra 
frase: “Não é apenas o seu cliente que tem mania de suicídio!” Mas, 
enfim, não sou inglês e não vivo no tempo de James I. 
Apaguei o cigarro e fui para o Paddock. Quem sabe encontraria 
por lá o Zé do Pé. Não deu outra. Ele estava no bar. 
— Chefe — ele chamava todo mundo de chefe. — Vou lhe 
contar o que me aconteceu ontem. O Olavo Drummond24 conseguiu 
me levar ao médico para uma consulta. 
— Bendito seja Deus. Afinal você criou juízo. 
— Depois da consulta, exames de sangue, aquela baboseira 
toda, o médico me disse no retorno: “O senhor está tecnicamente 
morto. Tem que parar de beber imediatamente. Nem mais um gole de 
hoje em diante!”. — Contou o prognóstico diante de um copo de 
uísque. 
— Até aí — respondi — todos nós sabemos. Você anda 
abusando demais. Não há saúde que agüente. Se o médico disse que 
você está tecnicamente morto, pode haver chance de ressurreição. 
Pare de beber. 
Disse que, na saída do consultório, quando ele e o Olavo 
Drummond chegaram à rua, estava passando um carro fúnebre. Não 
agüentou e gritou: 
— Táxi, táxi! 
Deu uma risada gostosa e continuou bebendo.25 
57 
Fiz uma reunião com meus assistentes e comuniquei-lhes as 
novidades contadas pelo Sinval. Teríamos um laudo oficial para 
balançar a convicção do Juiz e do Ministério Público, criando o 
benefício da dúvida para o nosso cliente. Cada assistente foi 
 
24 Olavo Drummond, Procurador da República, Ministro dos Tribunais de Contas de 
São Paulo e da União, Prefeito de Araxá, Minas Gerais, meu querido amigo, amigo 
de Juscelino Kubitschek. Deixou muita saudade. Sua filha, Dra. Ana Drummond, 
trabalhou em meu escritório. 
25 Zé do Pé, José Paulo Freire, tinha o apelido de Zé do Petróleo. Era rico. Depois que 
ficou pobre, ele próprio mudou seu apelido para Zé do Pé. Morreu de cirrose. 
contando em que pé estavam as suas investigações sobre a vida da 
mulher. Parece que, embora residindo em São Paulo, ela conhecia e 
freqüentava quase todos os grandes hotéis da cidade, com exceção de 
um único, por motivos muito óbvios. 
Uma das minhas assistentes, a Dra. Maria Clotilde Simigaglia, 
comunicou-me algo surpreendente. Descobriu a escola em que as 
crianças estudavam e disse que, por meio de amigos íntimos, ficou 
conhecendo a diretora. Tornou-se amiga dela. Passaram a 
freqüentar-se, a jantar no fim de semana, chegaram à maior 
intimidade. Clotilde sempre teve grande empatia e simpatia. Envolvia 
as pessoas com gestos sinceros e tornava-se uma convivência e uma 
companhia agradabilíssima. Mas, com a diretora da escola das 
crianças? O que isso queria dizer? 
— Chefe, a coisa está no seguinte pé — no escritório, eles 
tinham a mania de me chamar de chefe. — Depois de algum tempo, 
comentei com a diretora o caso, nosso ponto de vista e meu desejo de 
conhecer as crianças, jurando, claro, não tocar no assunto. Apenas 
conviver um pouco com o menino e a menina, ficar com eles numa 
sala de aula e ministrar-lhes lições extracurriculares de pintura, 
escultura e uma bela farra de trinta minutos. A princípio, a diretora 
estranhou, mas cedeu, fazendo-me jurar, e eu jurei, que não 
mencionaria nada do processo e não falaria nem da mãe, nem do pai 
delas. Convenci-a de que, se eu me tornasse íntima das crianças, 
elas se sentiriam mais à vontade na futura audiência em juízo. 
Clotilde tinha, realmente, grande facilidade em relacionar-se 
com crianças de qualquer faixa etária. Ficavam fascinadas por ela e 
suas brincadeiras. Contou-me que os filhos do Sr. Olavo Brás eram 
conduzidos à escola por um motorista, que ia buscá-los no final das 
aulas. Geralmente chegava atrasado. As crianças ficavam esperando. 
Disse que a diretora apresentou-a como tia “Clô” e arrumou um 
tempinho para ficarem juntas. E que passou a freqüentar a escola 
todos os dias. Se desse para ficar com as crianças, tudo bem. Se não 
desse, voltava no dia seguinte. No fim das aulas, com o atraso do 
motorista, teve inúmeras oportunidades bem aproveitadas. A tia 
“Clô” já se considerava alvo de absoluta confiança das crianças e 
uma companheirona para brincar. Confessou-me que chegou a 
estudar e a aprender mágica para seduzir as crianças. 
Clotilde assegurou-me que, no dia da audiência, essa 
intimidade iria facilitar muito o trabalho de todos: juiz, advogados, 
promotor. Mas ela ainda pretendia, antes da audiência, conseguir 
algo mais. 
— O quê? — perguntei. 
— Se conseguir, será uma surpresa, e positiva, para nossa 
causa. 
— Mas diga, então, até para eu ficar torcendo. 
— Não. Talvez você me proíba de fazer. Vou tentar sem seu 
conhecimento prévio. Se tiver sucesso, avaliaremos depois. 
Mais um mistério no caso do meu quase-suicida. Dessa vez, o 
suspense era criado por uma assistente minha. Não podia censurá-
la, nem forçá-la a nada. A verdade é que havia tido uma idéia 
brilhante de tornar-se íntima das crianças, detalhe importante para 
a futura audiência judicial. Esperávamos que diante do juiz as 
crianças contassem a verdade. E Clotilde havia criado as condições 
para isso. Realmente era mágica. A lentidão do Judiciário é tamanha, 
que dá tempo para tudo isso, até para acompanhar o crescimento de 
crianças na escola. 
58 
Sempre tive sorte com advogados assistentes, meus queridos 
colaboradores. Alguns, eu mandava para os Estados Unidos, a fim de 
estagiar no escritório de um advogado americano, meu amigo. E de lá 
voltavam com boa experiência não tanto em Direito, mas em lidar 
com cliente rico. 
Uma assistente minha, que veio estagiar no escritório depois de 
apresentada por Franco Montoro e era de família humilde de Minas 
Gerais, gente que trabalhava na enxada, causou furor na nossa 
advocacia, não apenas pela inteligência, mas também pelas idéias 
práticas que tinha para resolver problemas. Chamava-se Mara 
Galbier. 
Certa vez, estávamos com grande dificuldade para citar um 
empresário famoso em São Paulo. Sua empresa, respeitada, 
tradicional, dificultava ao máximo a entrada de oficiais de justiça. No 
escritório, nem pensar, e sua casa era indevassável. Ficamos 
colecionando as certidões dos oficiais de justiça, para requerer a 
citação por edital, o que também não era fácil. Havia um misterioso 
sistema de defesa do empresário contra citações ou notificações judi-
ciais, quando a ele endereçadas pessoalmente. Mara pediu um 
tempo. Soube que o empresário estava doente. Vestiu-se de 
enfermeira e colocou um avental de médico no oficial de justiça, 
inclusive um estetoscópio em seu pescoço. 
Chegou às pressas
na residência do homem, anunciando o 
médico, os portões se abriram, ela entrou e acompanhou o oficial de 
justiça até o quarto do empresário. Lá se identificaram e citaram o 
réu. 
Pela agilidade de raciocínio da moça, entendi que deveria 
mandá-la para os Estados Unidos, a fim de fazer estágio no escritório 
do meu correspondente. Até então, somente havia mandado os 
homens. Ela foi e nunca mais voltou. Casou-se com um dos 
advogados sócios do escritório e hoje pertence a uma das maiores 
firmas de advocacia em Nova York. Filha de enxadeiros. Mineirinha. 
59 
Isso tudo aconteceu porque ela me foi apresentada por Franco 
Montoro, amigo de Mário Covas. E também de Jânio Quadros, que, 
depois da Prefeitura, resolveu ser candidato a Governador de São 
Paulo. Em Santos, o ademarismo era absoluto, mesmo porque, além 
da força de seu partido político, o PSP, tinha um líder local de grande 
prestígio, Sílvio Fernandes Lopes. Rubens Ulhoa Cintra e eu, 
jornalistas de A Tribuna, resolvemos apoiar Jânio e nos engajar na 
campanha. Atraímos o engenheiro magrinho, Mário Covas, o nosso 
Zuza, e conseguimos a adesão da respeitabilidade do advogado 
Ariosto Guimarães. 
Fizemos tudo o que podíamos fazer nesse exercício vocacional 
para o suicídio. Nenhum de nós entendia de política partidária e 
muito menos das malícias eleitorais. Jânio, creio, perdeu para os 
votos brancos no litoral paulista, mas foi eleito Governador do 
Estado de São Paulo. 
Depois da posse, já como Governador, visitou Santos e foi 
direto para a redação de A Tribuna, agradecer o apoio dos dois 
jornalistas. Conquistou todos os outros, inclusive os diretores, 
Giusfredo e Roberto Santini, que haviam permitido, em nossas 
colunas jornalísticas, o escandaloso partidarismo em favor de um 
dos candidatos, quando a postura ética teria que ser a 
imparcialidade. 
Um dia me chamou a São Paulo, no Palácio dos Campos 
Elíseos. Entrei em sua sala escura, meio fantasmagórica. Tinha um 
processo sobre sua mesa. 
— Quero que você estude isto. 
— O que é? 
— Política do café. 
— Ah! Afinal chegou sua vez — disse-lhe, lembrando nosso 
primeiro encontro à beira das caipirinhas. 
— São os trabalhos da Secretaria da Fazenda, do Professor 
Carvalho Pinto, que reuniu as reivindicações dos fazendeiros 
paulistas e dos comissários de café no porto de Santos, inteiramente 
antagônicas. Tenho que resumir tudo em documento que assinarei e 
entregarei ao Presidente da República como a posição oficial do 
Governo de São Paulo para o próximo regulamento da safra. Você 
ainda escreve sobre esta geringonça? 
— Escrevo. 
— E já entende? 
— Um pouco. 
— Então, por favor, meu amigo, leve este calhamaço e me 
devolva com um resumo. Mas venha pessoalmente, para me explicar 
suas conclusões. 
Levei, estudei, redigi, voltei. Jânio tinha uma perspicácia 
fenomenal e uma enorme facilidade para aprender qualquer coisa, 
por mais complicada que fosse. Prestava profunda atenção, sem 
importar a qual expositor, fazia perguntas sobre pontos que lhe 
pareciam obscuros e passava a dominar o assunto com tranqüila 
familiaridade. 
Depois me contou que reuniu seus economistas e assessores, 
inclusive o Professor Carvalho Pinto, e fez a exposição discorrendo 
sobre todas as reivindicações da cafeicultura e dos exportadores do 
porto de Santos. Criticou-as, rejeitou as absurdas e comunicou suas 
conclusões em detalhes. Os funcionários estaduais ficaram 
abismados com a facilidade do Governador para entender e resolver 
a questão que, para seus antecessores, era o mais puro grego. E 
lançou o grito de guerra: enquanto houver confisco cambial, não 
haverá regulamento de embarque capaz de salvar o Brasil e sua 
cafeicultura. Era o primeiro tijolo de sua candidatura a Presidente. 
60 
E veio a campanha para Presidente da República. De novo, 
engajei-me na política e, dessa vez, ganhar em Santos foi fácil. Mas, 
durante a campanha, de quando em quando, Jânio me chamava 
para outros lugares. Um dia, fui ao Rio de Janeiro. O assunto era 
café. Dei a necessária assessoria. Ele se hospedava no Hotel Glória, e 
lá me hospedei também. À noite, no jantar, apresentou-me a um 
jovem deputado da UDN, que se chamava José Sarney. 
— Quero que os jovens se conheçam. O Brasil precisa da 
inteligência de vocês, meus meninos — e foi conversar com os 
demais políticos convidados: Carlos Lacerda e outros líderes do 
partido de oposição na época. 
Sarney e eu, como bons meninos, começamos a nos investigar 
cuidadosamente, com perguntas hábeis e respostas cuidadosas. 
Naquela época, ambos adorávamos uísque, sobretudo quando era de 
graça. Abusamos um pouco, e a conversa ficou mais fácil. De 
repente, estávamos falando de poesia. Descobrimos ter a incorrigível 
tendência para os versos, literatura, sonhos, ideais e, o mais 
surpreendente de tudo, idéias. 
A conversa enveredou para Fernando Pessoa. Aí lhe contei que 
eu participara do lançamento do poeta português no Brasil, com a 
fundação do Centro de Estudos Fernando Pessoa, juntamente com 
Geraldo Ferraz e Patrícia Galvão, em 1956. E que essa iniciativa 
despertara a atenção de Rui Afonso, que participava do coro dos 
tebanos numa peça grega, traduzida por Guilherme de Almeida e 
encenada em São Paulo, no Teatro de Arena. Rui teve a feliz idéia de 
aproveitar o coro dos tebanos e formar um conjunto de declamadores 
chamado Jograis e, no Teatro Oficina, em coral, declamaram as poe-
sias do poeta português. Sucesso absoluto, começando por “Ode 
marítima”, poema fantástico. 
Sarney ouviu tudo com calma, sorveu um longo e saboroso gole 
de uísque e disse: 
— Ótima contribuição, mas quem lançou Fernando Pessoa no 
Brasil fui eu. 
Pulei da cadeira. Impossível! Nossa primeira discussão. Como? 
De que forma, em que ano? 
— Em 1947, em São Luís, Maranhão. Publicamos poesias dele 
trazidas por Bandeira Tribuzi, que as conheceu em Portugal. O poeta 
ainda estava vivo. 
Não havia jeito. Ele ganhara a batalha. Mas não tinha o 
pincenê de Fernando Pessoa, meu prêmio de consolação. Ele seguiu 
na campanha de Jânio no Nordeste, e eu fiquei no humilde círculo 
municipal de Santos. 
Voltamos a nos encontrar em Brasília, depois da posse do 
presidente eleito. Jânio me convidara para ser seu oficial de gabinete, 
encarregado de assessorá-lo na política do café e outros assuntos. 
Sarney foi indicado vice-líder do Governo na Câmara dos Deputados 
e todo começo de noite passava pelo Planalto, onde vinha discutir 
com o Presidente os problemas do Congresso, e aproveitávamos para 
sair juntos, rumo a duas doses de uísque, antes de ir para casa. 
O líder do Governo era o Deputado Pedro Aleixo, que se 
recusava a comparecer à Câmara para assumir o posto. Estava 
magoado com Jânio, em virtude da vitória da chapa Jan-Jan, Jânio e 
Jango, e da derrota do candidato a vice pela UDN — União 
Democrática Nacional —, Professor Milton Campos. Naquele tempo, a 
lei permitia o lançamento de candidato a vice independentemente do 
candidato ao cargo principal de Presidente da República. Com isso, 
ganhamos a convivência de Sarney. 
61 
No Planalto, ano zero, trabalhava-se muito. Não havia infra-
estrutura, ainda não existia fax, as comunicações se faziam por 
telex, telefone funcionava mal, os ministérios fingiam mudar para 
Brasília, mas continuavam no Rio. Confusão total. O maravilhoso 
sonho de Juscelino Kubitschek nas primeiras horas era um 
pesadelo. 
A República estava isolada no planalto goiano. A melhor 
colaboração vinha do Gabinete Militar, sob a chefia do General Pedro 
Geraldo. Ali se praticavam milagres para manter o Palácio do 
Planalto em comunicação com a máquina
do Governo. Entre os 
oficiais de enorme eficiência, dois se destacaram: o Major Leônidas 
Pires Gonçalves e seu colega Ivan de Souza Mendes. 
Foi um martírio dar os primeiros passos na administração 
pública federal naqueles tempos. Onde está o Ministro da Fazenda? 
No Rio. Onde está o Ministro das Relações Exteriores? No Rio. 
Acharam o Ministro da Fazenda? Está em trânsito. 
Em trânsito queria dizer voando num avião Viscount, que não 
chegava nunca, não tinha horário certo para decolar, vôo cancelado, 
muita confusão. Mesmo assim, em apenas sete meses de Governo, 
Jânio conseguiu fazer o PIB crescer 9%. 
— Quero um favor de você, e muito especial — disse-me ele, 
acendendo a luz vermelha do lado de fora de sua sala, para ninguém 
entrar. — Santos. Você conhece bem a cidade e seus políticos, como 
convém a um jornalista competente. 
— Conheço, é claro. Qual o problema? 
— As eleições municipais, que se realizarão dentro de alguns 
meses. Vai haver um confronto entre janismo e ademarismo. Pelo 
janismo, o candidato a prefeito será o Athiê Jorge Cury, que perderá 
para o candidato do Ademar, seja qual for. Gostaria que você fosse a 
Santos, reunisse nossos amigos e lançasse um candidato em nome 
do janismo. Sua autoridade lá, sob esse aspecto, é indiscutível. 
— Espere um pouco: se eu conseguir que os nossos amigos 
lancem um candidato, o Athiê vai desistir? 
— Não. Continuará candidato. 
— Então vamos perder mais fácil ainda. 
— Mas teremos perdido, porque o janismo foi dividido. É essa a 
sutileza. 
— Uma sutileza de elefante. 
— Elefante é o Athiê, que não abre mão da candidatura, e sua 
derrota será fragorosa. Lance um outro janista idôneo, se possível 
seu amigo, na sua faixa etária, e que tenha participado de nossa 
campanha. 
— Mário Covas — disse eu. 
— Pode até ganhar. 
62 
Lá fui eu para Santos. Convencer o Zuza foi uma dureza. 
Primeiro, porque não queria saber de política. Participar da 
campanha do Jânio era uma coisa, mas ingressar ele próprio na 
política era outra, que não lhe agradava de maneira alguma. Depois 
vacilou. Lila, sua mulher, ajudou-me decisivamente. Com a 
vivacidade característica de sua inteligência, Mário Covas fez seus 
rápidos cálculos matemáticos (nisso era imbatível) e logo concluiu: 
“Além do mais, o eleitorado janista vai ficar dividido, e não temos a 
menor chance de ganhar!”. Expliquei-lhe a angústia de Jânio e a 
sutileza do elefante. Consentiu em ser candidato. 
Athiê não desistiu e atrapalhou o que pôde. Nos fins de 
semana, eu ia a Santos e dava à campanha de Covas a 
“autenticidade” janista. Finalmente, vieram as eleições, e quase 
ganhamos. Covas ficou em segundo lugar, com uma votação 
consagradora para um estreante na cidade tão politizada. Athiê 
sofreu a prevista rejeição do eleitorado. Jânio vibrou. Telefonou para 
o Mário Covas, dizendo que esperava dele a liderança do janismo em 
Santos. 
Um pouco antes da posse do vencedor do pleito eleitoral pelo 
ademarismo, o Dr. Luiz La Scala, o prefeito eleito sofreu um acidente 
e faleceu, situação altamente triste, constrangedora, lamentável. 
Mas o fato desencadeou um movimento irresistível nos meios 
políticos. Deveria assumir o segundo colocado, porque, sem a posse 
do titular, o vice, o radialista José Gomes, ainda não teria o direito 
de substituí-lo. O pessoal foi discutir no Judiciário. Em primeira 
instância (hoje, jurisdição de primeiro grau), a sentença foi clara: o 
vice tinha direito autônomo. Se o titular não assume o cargo, o vice 
tem direito de tomar posse. Fim de papo. 
Fim de papo coisa nenhuma. Recurso para o Tribunal 
Estadual. Sentença confirmada. Recurso para o Tribunal Superior 
Eleitoral. 
Entendimento confirmado: o vice, embora o titular não tenha 
assumido, tem direito autônomo ao cargo, para o qual foi eleito tão 
legitimamente quanto o seu companheiro de chapa, ou 
independentemente dele. 
Ficamos conformados. O pronunciamento da Justiça é mais 
sábio do que a inexperiência da moçada movida a entusiasmo. 
63 
Vamos fazer um vôo no tempo, um vôo de vinte e cinco anos 
para o futuro. Mário Covas, eleito deputado federal. Tancredo Neves, 
eleito presidente da República no Colégio Eleitoral, juntamente com 
seu vice, José Sarney. 
Na véspera da posse, Tancredo adoece e vai para o hospital, 
fato que o País conhece. E armam a encrenca legal que eu conhecia 
bem: o titular não tomou posse e, em conseqüência, o vice não pode 
assumir. O cargo vago teria que ser exercido pelo Dr. Ulysses26 
Guimarães, presidente da Câmara. Confusão geral no país. Rádio, 
televisão, juristas dando opinião de um lado, rebatida por outros 
juristas, políticos inflamados, e o Dr. Ulysses, é claro, deliciado com 
a hipótese, mais pressionado por amigos do que por idéia própria. 
Um grupo de deputados, liderados por Freitas Nobre, e de senadores, 
instigados por Saldanha Derzi, fazia algazarra para Ulysses assumir 
a Presidência da República, solução que, pelo Direito Constitucional 
vigente, equivalia a declarar vagos os cargos de Presidente e de Vice-
Presidente, isto é, um golpe de Estado. 
Sarney, um eterno e teimoso conciliador, conta essa história de 
 
26 Ulysses Guimarães escrevia-se com “Y”, contrariando todos os demais Ulisses da 
língua portuguesa. No francês e no espanhol a letra “Y” é chamada de “i grega”. 
Supõe-se que o primeiro Ulysses, o de Homero, tenha grafado seu nome com “Y”. 
forma diferente. Afirma que o Dr. Ulysses defendeu a posse do Vice 
desde o primeiro minuto. Não é bem assim. Nos primeiros 
momentos, o então Presidente da Câmara deslumbrou-se com a 
hipótese de assumir a Presidência da República, movido, porém, pela 
idéia de convocar eleições diretas no prazo constitucional. Afinal, ele 
era chamado de “o Senhor Diretas”. Deixou-se prazerosamente 
emprenhar pelos ouvidos. 
Para complicar ainda mais, o então Presidente da República, o 
último da ditadura, General João Batista Figueiredo, mandou mais 
lenha na fogueira. Sarney não podia assumir. Prendo e arrebento. 
Seu Ministro do Exército, General Walter Pires, com gestão por mais 
um dia, ameaçava acionar seu “dispositivo” para impedir a posse de 
Sarney. Figueiredo foi claro: se Sarney assumisse, não lhe passaria o 
cargo. Estava de mal, isto é, odiava Sarney, porque possibilitara a 
eleição de Tancredo. O candidato do general era Paulo Maluf, que 
perdera no colégio eleitoral. Figueiredo e muitos militares achavam 
que a culpa era de Sarney. A Aeronáutica queria anular a eleição 
pelo Congresso. Confusão dos diabos. 
Eu estava num restaurante de Brasília, tomando aperitivo bem 
antes do jantar e, com alguns amigos, festejando o fim da ditadura. 
Zequinha Sarney me achou: 
— Papai quer falar com você agora, lá no apartamento dele. Eu 
levo você. 
Lá se foi o meu jantar. No apartamento, a maior confusão. 
Sarney estava calmo, mas o entorno estava muito agitado. As idas e 
vindas do Hospital de Base eram martirizantes. Versões, recados, 
comentários, opiniões, vaticínios, deduções e, ainda bem, algumas 
orações comovidas. Passado algum tempo, chegou o General 
Leônidas Pires Gonçalves, já nomeado Ministro do Exército por 
Tancredo, decreto assinado, como todos os demais que seriam 
publicados depois da posse do Presidente da República. A nomeação, 
portanto, não valia. 
Leônidas trazia um exemplar pequeno da Constituição, aberto 
no artigo que tratava da posse de Presidente e de seu Vice, e que 
dizia: 
“Se decorridos dez dias da data fixada para a posse, o 
Presidente ou o Vice-Presidente, salvo motivo de força maior, 
não tiver assumido o cargo, este será declarado vago pelo
Congresso Nacional” (parágrafo único do art. 76 da 
Constituição então vigente). 
Esse “ou” era de uma clareza ensolarada. Se um não pode 
tomar posse, pode o outro. Logo, depois do “ou”, o outro pode. O “ou” 
do texto legitimava a posse do Vice sem a posse do titular. Além do 
mais, para entregar o cargo ao Presidente da Câmara, o Congresso 
deveria iniciar o processo com uma prévia declaração de vacância, o 
que seria uma farsa por duas razões: o Presidente eleito, doente, não 
podia tomar posse por motivo de força maior, ressalva expressa no 
texto constitucional. E o Vice não estava doente. Nada o impedia de 
tomar posse no cargo para o qual fora eleito — o de Vice —, com as 
funções de substituir o Presidente em caso de impedimento 
temporário, ou de sucedê-lo em caso de morte, renúncia ou 
impeachment. É a disciplina constitucional. A urubuzada temia a 
primeira hipótese. Se Tancredo morresse, Sarney seria o Presidente 
nos seis anos seguintes. 
Aproximei-me de Sarney e disse, apontando para o general: 
— Eu e meu colega aqui, emérito constitucionalista, 
concordamos que o Vice pode tomar posse por causa do “ou”. Se o 
Congresso não se reunir, a Constituição autoriza a posse perante o 
Supremo Tribunal Federal. 
Sarney sorriu, porque eu chamara o general de colega. O 
destino é caprichoso. Leônidas tinha pertencido à equipe de Jânio 
em 1961, trabalhara na Presidência da República. Fôramos bons 
companheiros. Era major naquele tempo, como contei acima. A 
amizade permitia a brincadeira, mesmo no ambiente tenso daquela 
noite. 
Afonso Arinos deu uma entrevista para a televisão: 
— O Dr. José Sarney não é vice do Dr. Tancredo Neves; é Vice-
Presidente da República. 
Permanecia, porém, o impasse. E Sarney explicou por que me 
chamara: 
— Claro que quero sua opinião, mas a questão constitucional 
não é tão complexa como está sendo pintada pelos políticos. Eu até 
preferia esperar o Tancredo para tomarmos posse juntos. Mas temos 
todos que nos submeter ao procedimento constitucional. O problema 
é que um dos líderes dessa tese doida contra a posse do Vice é o 
Mário Covas. Gostaria que você falasse com ele. 
— Zuza, aqui é o Saulo. Tudo bem? 
— Tudo bem nada — respondeu. — Veja a crise que está nos 
ameaçando. 
— A crise está sendo criada por vocês do MDB — Movimento 
Democrático Brasileiro —, que querem dar a Presidência da 
República para o Dr. Ulysses e, para isso, estão enchendo a cabeça 
do velho. 
— Saulo, respeito sua amizade pelo Sarney, mas a verdade é 
que, Tancredo não tomando posse, o Vice não tem a quem substituir, 
já que o cargo está vago. Pela Constituição, deve assumir o 
Presidente da Câmara, estando vago o cargo. 
— Pára com isso, Zuza! Desde quando você virou jurista? E 
outra coisa: minha amizade pelo Sarney é igual à que tenho por você. 
Nisso o jogo está empatado, e é favor respeitar. Agora me permita 
esclarecer o que está escrito na Constituição, pois aqui entra, mais 
do que amizade, a minha inteira devoção ao Direito. Dessa matéria 
entendo eu. 
Descrevi didaticamente. Ele ainda ficou na dúvida, rebatendo 
com o argumento de que outros advogados tinham opinião contrária, 
acrescendo um fundamento, mais fruto de paixão do que de sua 
inteligência: esta Constituição é dos militares. 
— Mas você foi eleito por ela. Tancredo e Sarney também. O Dr. 
Ulysses é Presidente da Câmara por causa desta Constituição dos 
militares. E espere aí. Guarde a faca. O principal objetivo do meu 
telefonema é avisar você que já existe jurisprudência na Justiça 
Eleitoral, declarando que o vice, mesmo sem a posse do titular, tem 
direito autônomo ao exercício do cargo, como substituto no 
impedimento, ou sucessor na vacância, independentemente da posse 
do titular — repeti. — Jurisprudência firmada há mais de vinte anos. 
— Em que caso? 
— No seu. 
— Quê? 
— No seu caso, meu querido, na eleição para a Prefeitura de 
Santos. Você mesmo ingressou em juízo para impedir a posse do 
José Gomes, o vice do La Scala, que morreu antes de assumir. 
— Meu Deus, é verdade! 
— Já pensou algum advogado soprar para a imprensa, no meio 
desta confusão, que a jurisprudência foi firmada num caso seu, e 
você continua a berrar que o Vice não tem direito à posse? 
— Você não vai fazer isso comigo! 
— Desde que você pare de contrariar a jurisprudência de nosso 
país, que você mesmo provocou. E passe a respeitar a Constituição 
dos militares, pela qual você se elegeu, até que o Congresso escreva 
outra pelos meios normais, com sua ajuda. 
— Está bem, está bem. Vou falar com o Ulysses, e acabamos 
com essa encrenca. 
Já era noite alta, quando Ulysses Guimarães deu entrevista às 
televisões e às rádios, reconhecendo que o Vice deveria tomar posse. 
Horas complicadas aquelas. Sarney me contou, e a madrugada 
já vinha chegando, que Tancredo, com sua enorme experiência e 
vivência de muitas crises brasileiras, havia articulado a pacificação 
com todas as alas militares já antes da eleição no Colégio Eleitoral. E 
nisso teve a ajuda inestimável de Leônidas Pires Gonçalves, inclusive 
mais tarde na nomeação de Moreira Lima para Ministro da 
Aeronáutica. Uma expressiva parcela da Força Aérea, ligada ao 
brigadeiro, inconformada com a vitória de Tancredo, tinha “planos 
radicais para cancelar a eleição presidencial”. 
Aliás, na campanha pelas eleições diretas, que mobilizou o 
povo brasileiro de forma impressionante, os comunistas e 
esquerdistas extremados quase puseram tudo a perder. Houve um 
comício em Goiânia, ao qual compareceram em peso com bandeiras 
vermelhas, foice e martelo, gritando frases duras contra os militares. 
Não deu outra: nova conspiração das altas patentes. Vinte anos não 
foram suficientes! É preciso mais!”. Fomos salvos, por incrível que 
pareça, porque o Congresso Nacional derrotou a emenda das diretas. 
Diante disso, os militares passaram a acreditar que poderiam ganhar 
as eleições naquele eleitorado encurralado e medroso. 
Lançada a candidatura de Tancredo Neves, os militares vieram 
com Paulo Maluf, que derrotou Andreazza na convenção do PDS — 
Partido Democrático Social —, partido deles. É preciso lembrar que o 
sistema autoritário da ditadura resolveu devolver não a liberdade 
política aos brasileiros, mas o poder aos civis, certos de que o eleito 
seria Paulo Maluf, cria do General Costa e Silva, e fidelíssimo aos 
comandantes, inclusive ao General Newton Cruz, que cavalgava 
golpes de Estado em todos os seus sonhos. 
O Presidente da República, João Figueiredo, declarava em 
público que o vencedor das eleições no Colégio Eleitoral seria 
empossado. Defendia a legalidade então vigente. Mas, em particular, 
dizia: “Tancredo, never!”.. 
Pois o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo Neves por 480 votos 
contra 180 dados a Paulo Maluf. Desde esse resultado, começaram 
os problemas para a posse do presidente eleito. Tudo era pretexto. As 
fotos do comício de Goiânia, bandeiras vermelhas com foice e 
martelo, voltaram a circular nos quartéis. O PT agitando o máximo, 
com viseiras e sem visão. Quase faz os militares retomarem o poder 
por mais vinte anos. 
O próprio Tancredo Neves, no Hospital de Base, confidenciou a 
seu sobrinho, Francisco Dornelles, temer que Figueiredo não 
permitisse a posse de Sarney. Quase acertou. O general engoliu a 
posse, mas não transmitiu o cargo. 
Depois que Mário Covas se convenceu, Leônidas e Ulysses 
Guimarães foram ao Leitão de Abreu, Ministro Chefe do Gabinete 
Civil do Presidente Figueiredo, e comunicaram haver harmonia no 
entendimento de que o Direito Constitucional vigente determinava a 
posse do Vice independentemente de haver assumido o titular do 
cargo.
Walter Pires, então Ministro do Exército, ao ter conhecimento 
de que seria empossado Sarney, avisou: “Então vou agora mesmo 
para o ministério, mobilizar nosso dispositivo”. O doutor Leitão de 
Abreu calmamente ponderou: “General Walter Pires, o senhor não é 
mais ministro. Nos quartéis, quem já está dando ordens é o General 
Leônidas”. A nomeação dele para Ministro do Exército, naquele 
momento, não era válida. Leitão de Abreu blefou. E ninguém pagou 
para ver. 
Na verdade, toda essa conversa de interpretações 
constitucionais queria dizer o seguinte: não adianta pensarem em 
mais um golpe, pois haverá resistência e, desta vez, com divisão das 
próprias Forças Armadas. Leônidas Pires Gonçalves estava do lado 
da legalidade, com o controle da tropa e daquele pequenino “ou” do 
artigo da Constituição. 
Restaurar a democracia, naquele momento, não foi fácil. Eu 
estava lá. Meninos, eu vi! 
Leônidas voltou ao apartamento de Sarney. Havia pouca gente, 
pois a notícia de que Ulysses estava convencido apaziguou os 
ânimos. Mas o que se desejava saber era como estavam os “ânimos” 
da tropa, não muito afeita a essa história de Direito Constitucional, 
mesmo porque o “agito” tinha sido muito grande pela televisão e 
rádios. O novo Ministro do Exército, meu antigo amigo “Major” 
Leônidas, relatou a conversa com Leitão de Abreu, a engasgada de 
Walter Pires e assegurou que tudo estava em ordem. Eram três horas 
da madrugada, quando ele ligou para o Sarney e disse: 
— Boa noite, Presidente! 
Fiquei mais uns dez minutos, tempo para retomar uma dose de 
uísque, operação que havia interrompido antes do jantar. Aliás, 
acabei não jantando. Foi minha vez de dizer boa noite, observando: 
— Sem continência, visto que sou reservista de terceira 
categoria. 
Sarney devolveu rápido: 
— Mas pode fazer continência no uísque. Amanhã precisamos 
estar lúcidos. 
— Calma, meu compadre! Você precisa estar lúcido. E estará. 
Eu não. Depois de sua posse, volto para casa. Não pertenço a seu 
governo. Sou advogado em São Paulo, embora exerça a advocacia 
com total lucidez . 
No dia seguinte, Sarney tomou posse perante o Congresso, sem 
contestação de ninguém. Recebeu cumprimentos do Dr. Ulysses 
Guimarães e de Mário Covas Júnior, deputado e engenheiro já não 
tão magrinho como antes. 
Até hoje, ao lembrar esses fatos, Sarney faz enorme confusão 
sobre um detalhe importante: costuma dizer que eu queria pedir 
mandado de segurança para assegurar sua posse. E dá risada! Na 
confusão, ele próprio não entendeu. O que eu afirmei foi que, pela 
Constituição vigente (está escrito lá, basta ler), se o Congresso não se 
reunisse, a posse poderia ser tomada perante o Supremo Tribunal 
Federal. Eu próprio havia feito minhas sondagens, e o Supremo 
estava pronto para reunir-se e dar posse ao Vice-Presidente eleito. 
Basta conferir com seus ministros. Estão, felizmente, quase todos 
vivos. 
64 
Em pouco tempo, no dia 21 de abril de 1985, Tancredo morreu, 
depois de longo e doloroso martírio. Sarney não se sentiu seu 
sucessor, mas seu testamenteiro político. Então chegou sua vez de 
passar por outra espécie de martírio: assegurar a democracia na 
tempestade das balbúrdias que sobrevieram com as liberdades mal 
utilizadas, mas ainda espreitadas com grande desconfiança por trás 
dos portões dos quartéis. 
Um ano mais tarde, José Sarney convidou-me para ser seu 
Consultor Geral da República. Passaria Paulo Brossard, jurista e 
político de grandes predicados, para o Ministério da Justiça e me 
queria ao seu lado para as batalhas jurídicas do Governo. Tentei 
resistir. Afinal, estava diante da única oportunidade de minha vida 
de continuar advogando em São Paulo e dizer que era amigo do 
Presidente da República. Situação nada desprezível. Ir para o Go-
verno tornar-me-ia um servidor público, teria que deixar a advocacia, 
perderia a chance de dar palpite do lado de fora, o que é uma delícia. 
Passaria a ser apenas mais um “deles”. 
Sucumbi diante do argumento fulminante: o país teria uma 
Constituinte, que ele convocara, e era preciso trabalhar muito 
durante o processo político de elaboração da lei mais importante 
para o Brasil na implantação do Estado de Direito, depois de vinte 
anos de ditadura. Não sei se estou certo, mas Tancredo talvez não 
tivesse convocado a Constituinte logo no início do mandato, que era 
de seis anos. Deixaria para o final, depois que o exercício político 
democrático estivesse mais consolidado. 
Pelo menos essa também era a opinião de um dos maiores 
colaboradores de Tancredo, José Hugo Castelo, figura formidável, 
com quem tive a ventura de conviver até seu doloroso fim. Mas 
Sarney, que já havia restabelecido, sem condições, todas as 
liberdades públicas e políticas no país, tinha uma obsessão: cumprir 
tudo o que Tancredo prometera ao povo em eleições indiretas... 
Sentia-se com a obrigação de um testamenteiro. E queria que eu o 
ajudasse. 
Aceitei. E, ao aceitar, não havia tomado uma única dose de 
uísque. Não sei, porém, se estava lúcido. 
65 
Na Consultoria Geral da República, levei um susto: o Brasil 
não tinha advogados que defendessem a União nas milhares de 
ações que corriam na Justiça Federal pelo país afora. Simplesmente 
este fato fantástico: o Brasil, o meu país, não tinha advogados que o 
defendessem no Judiciário. O colosso pela própria natureza, terra 
dos bacharéis em Direito, não tinha advogados para si próprio. 
Também nisso era um indefeso! 
Claro que eu já sabia, mesmo porque, antes, na minha vida 
profissional, havia vencido muitas causas contra o Governo Federal. 
Para os advogados brasileiros, litigar contra a União era moleza. Meu 
susto consistiu em verificar que a União não tinha, na estruturação, 
nenhuma organização ou sistema de intercâmbio e de apoio que 
funcionasse na defesa do interesse público federal, trocando estudos, 
colecionando jurisprudência, debatendo questões, ajudando-se 
reciprocamente. 
A atividade era estanque, isto é, cada ministério tinha seus 
assistentes jurídicos (e mal remunerados), que atendiam aos casos 
internos, proferindo pequenos pareceres sobre a matéria 
controvertida. Quando surgia uma ação judicial contra a União, ou 
quando a União tinha que propor uma ação judicial contra alguém, o 
assunto era estudado isoladamente, no ministério que tivesse 
competência administrativa para tratar da matéria. Os outros não 
ficavam nem sabendo. 
E o encarregado de propor a ação ou de defender a União era 
simplesmente um estranho: o Ministério Público Federal. Nos 
assuntos internos, quando havia divergência, os ministros 
mandavam o problema para a Presidência da República, ouvia-se o 
Consultor Geral da República, que proferia parecer. Aprovado pelo 
Presidente, o parecer tornava-se norma obrigatória para toda a 
administração pública federal. Pelo lado de dentro, o sistema 
funcionava razoavelmente. Mas, do lado de fora, era um desastre. 
Em juízo, quem ia representar a União e defendê-la era um 
promotor público, um Procurador da República, de especialidade 
criminal junto às varas federais, em processos penais. Assim, o 
representante do Ministério Público Federal com essa função — que 
hoje desenvolve com exclusividade — de atuar em ações penais e no 
máximo em ações civis públicas era chamado a agir em todos os 
processos de interesse da União, nos mais variados e complexos as-
suntos jurídicos e para os quais não estava preparado. Nem podia 
estar, tamanha a variedade e a complexidade de assuntos tão 
distintos uns dos outros. 
Aí vinha o deus-nos-acuda, pois os processos eram 
complicados. O pobre do promotor público federal, um criminalista 
acostumado
a estudar Direito Penal e a lidar com o crime, tinha que 
enfrentar casos de contratos difíceis, que haviam sido descumpridos 
ou sofrido interpretações contraditórias nas respectivas execuções. 
Litígios sobre concessões públicas, licitações, obrigações 
administrativas, Direito Público, sonegação fiscal, cobrança de tribu-
tos, brigas nas exportações e nas importações, nas extrações de 
minérios, contratos cambiais. Uma infinidade de assuntos, em que 
enfrentava, do outro lado, escritórios de advocacia poderosos, de 
grande cultura e altamente especializados. 
E o deus-nos-acuda foi virando rotina. A defesa da União era 
feita ao deus-dará. Os prazos eram cumpridos na marra. Os 
promotores se viravam com instruções recebidas dos assistentes 
jurídicos dos ministérios. Nas audiências, diante do juiz, em muitos 
casos, não todos, dava dó. O defensor da União não entendia do 
assunto, perdia-se diante da argumentação dos advogados privados, 
a tal ponto que o magistrado federal, em muitas ocasiões, passava 
ele próprio a defender a União, numa distorção da devida 
imparcialidade. Esse costume até hoje perdura em algumas 
jurisdições, mesmo depois de resolvido o problema; mas continua, 
pois alguns juizes federais agem de olho na promoção e nas vagas de 
tribunais que dependem das autoridades administrativas e políticas 
da União. 
Somente o Ministério da Fazenda, assoberbado com as 
questões tributárias, possuía um corpo de advogados mais atuantes 
na Procuradoria-Geral. Mas tinham que alimentar o Ministério 
Público com informações e explicações didáticas, que nem sempre 
eram absorvidas a tempo e de forma a assegurar boa defesa do 
direito da União, quando houvesse. A despeito do título de 
Procurador da Fazenda, o profissional não podia oficiar no 
Judiciário. Era um procurador sem procuração. 
É verdade que tal situação despertou, em muitos procuradores 
da República, a consciência profissional de que deviam estudar a 
fundo a matéria debatida nos processos, e neles a União teve 
defensores notáveis, mas poucos por este Brasil afora. Eram 
milagreiros. O problema agravava-se ao extremo pela falta de 
sistemática, falta de uma advocacia organizada e integrada, que 
tivesse profissionais exclusivamente encarregados de agir em juízo, 
na defesa de um cliente tão importante: o nosso país. 
Como a Constituinte estava em andamento, consegui, com a 
ajuda da chamada bancada do Governo Sarney, a criação da 
Advocacia Geral da União, tirando do Ministério Público o antigo e 
penoso encargo que nada tinha a ver com sua verdadeira função e 
especialização constitucional. Depois de alguns entreveros amáveis 
com o Dr. Cid Heráclito Queiroz, Procurador-Geral da Fazenda 
Nacional, que puxava a sardinha para os advogados de seu 
ministério, por um pouco mais de poder, o que me era indiferente, 
concordamos na redação final do texto, e a Constituinte criou a AGU 
— Advocacia Geral da União. 
Afinal, o Brasil passou a ter advogados para defendê-lo perante 
o Judiciário. 
66 
Mas antes, enquanto o “seu” lobo não vinha, e precisamente 
para servir de exemplo ao constituinte, consegui criar, por decreto 
executivo, graças à cumplicidade de José Sarney, a Advocacia 
Consultiva da União, integrando os serviços jurídicos da 
administração federal. 
Todo mundo colaborava com todo mundo, acabando com 
aquela história de que “isto não é conosco, é com outro ministério”, 
para implantar ao menos a mentalidade de advocacia profissional na 
administração pública. De quebra, consegui, a duras penas, um 
aumento de vencimentos para os assistentes jurídicos. Virei herói, 
não tanto pela sistematização e pelas sementes da Advocacia Geral, 
mas pela melhoria de suas vidas no fim do mês, pois ser advogado 
no serviço público federal era um sufoco sem tamanho. O dinhei-
rinho mal dava para comprar comida e roupa decente, uma 
gravatinha, sempre a mesma. Livro de Direito? Brincadeira. 
Na Consultoria, eu contava com a colaboração do secretário-
geral, jovem promotor público de São Paulo, José Celso de Mello 
Filho, requisitado para prestar serviços à Presidência da República. 
Talento inegável. 
Trabalhava como poucos, fazia pesquisas jurídicas com grande 
facilidade e indiscutível qualidade. Memória invejável, inteligência, 
redação excelente, português escorreito. 
Ajudou-me muito na Consultoria, ao lado de outros 
consultores igualmente competentes e dedicados. Felicidade minha 
ter tido uma boa equipe, que, além do trabalho pertinente às 
funções, sacrificou-se em incontáveis horas extras durante os planos 
econômicos (Cruzado e Bresser) e durante a Constituinte, no 
assessoramento de deputados e senadores. 
Eis que surgiu mais uma vaga de ministro no Supremo 
Tribunal Federal. Sarney já havia nomeado três: Carlos Madeira, 
Sepúlveda Pertence e Paulo Brossard. Sugeri a Sarney que indicasse 
José Celso de Mello. Estávamos no último ano de governo, o moço 
não teria outra oportunidade, pois, como promotor em São Paulo, 
jamais conseguiria que alguém o levasse ao Supremo, se não fosse 
agora. E merecia. Havia trabalhado muito durante os dias e as noites 
difíceis da Constituinte, quando me ajudou a assessorar uma 
infinidade de congressistas. Nos planos econômicos: o Plano 
Cruzado, inclusive o chamado Plano Cruzado Dois, um desastre, o 
Plano Bresser, menos o Plano Verão, do qual não participamos, por 
termos sido afastados pela equipe do Maílson da Nóbrega, que nos 
achava uns chatos, de tantas advertências sobre 
inconstitucionalidade daqui, ilegalidade dali. Juristas apenas 
atrapalhavam. 
— Mas há um problema — disse Sarney. 
— Qual? 
— O Oscar Correia quer nomear o Ministro Carlos Velloso, do 
Superior Tribunal de Justiça. Você tem que enfrentar a mineiridade. 
Não posso contrariar meu Ministro da Justiça. E o Pertence27 
também acha que Velloso é muito bom. 
Bom mesmo era aquele tempo, em que se discutia a qualidade 
do jurista a ser indicado unicamente pelo mérito, jamais pelo 
compadrio político, e não por ser deste ou daquele partido, ou por ser 
japonês, negro ou índio. O que se exigia era um vasto conhecimento 
do Direito e, acima de tudo, muito bom senso no trato com as leis. 
Ou, como diz a Constituição, de notável saber jurídico e ilibada 
reputação. 
— Espera aí — ponderei. — Nada contra a capacidade do 
Ministro Carlos Velloso. Ele tem talento e cultura para servir, e bem, 
no Supremo. Ocorre que o José Celso, que também ostenta as 
mesmas qualidades, além do serviço prestado ao nosso Governo, 
nunca mais terá oportunidade, se não for por seu intermédio. 
Velloso, por seu notório saber jurídico (é o texto da Constituição e a 
opinião que tinha dele, e mantenho), continuará no STJ, e o próximo 
Presidente da República certamente o escolherá para uma futura 
vaga no Supremo. 
Sarney resolveu fazer uma reunião e convocou Oscar Dias 
Correia, Ministro da Justiça. A discussão foi amável. Oscar não 
arredava pé da indicação de Velloso, e eu finquei o pé na indicação 
do José Celso de Mello. Os argumentos foram mais ou menos os 
mesmos, mas houve um momento em que o Ministro da Justiça 
hesitou e lançou o que achava o fundamento fulminante: 
 
27 Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, que, além de poder julgar um bom jurista, 
por ser um deles, era mineiro, como o candidato Carlos Velloso. 
— Concordo. O Celso de Mello é excelente, mas tem, em minha 
opinião, um defeito: é muito moço. 
— Mas esse defeito o tempo corrige — observei de pronto. 
Sarney gostou da resposta. Oscar Correia sorriu e, sentindo 
que o Presidente estava inclinado pela minha indicação,28 acabou 
concordando,
mesmo porque era um homem gentil, além de mineiro. 
Voltei para a minha sala, ditei para a minha datilógrafa a indicação 
do José Celso. Chamei-o à minha sala, estendi-lhe o papel e pedi: 
— Faça uma revisão cuidadosa neste documento, porque o 
Presidente quer assiná-lo ainda hoje. 
Ele pegou o documento sem ler e saiu. Costumava andar 
depressa, trocando rápidos passos miúdos. Ali, ele tinha o apelido de 
“apressadinho”. Em alguns minutos, voltou lívido, andando devagar, 
aproximando-se de minha mesa lentamente. Deu a impressão de que 
ia desmaiar: 
— Mas o Presidente está de acordo? — perguntou com voz 
embargada. 
— Você está indicado, meu caro. Pode festejar. Hoje, beba um 
uísque. 
Brincadeira. Ele nunca sorveu uma gota de bebida alguma, 
além de água e café. E como tomava café! 
67 
Deixando minhas lembranças, volto ao caso da gravação das 
vozes das crianças, acusando o pai de atos obscenos. Não tinha eu 
ainda como encontrar uma saída “psicologicamente adequada” para 
invalidar aquela fita e salvar meu cliente. Incinerado estava sendo 
meu cérebro. Pelo menos fervia, quando fui dormir. Sabia que 
dormiria mal. 
 
28 Sarney, em sua opinião pessoal, preferia Carlos Velloso; mas sensibilizou-se com o 
argumento de que Celso de Mello nunca mais teria outra chance. Ficaria 
eternamente no Ministério Público de São Paulo. 
Tenho inveja de quem consegue dormir sem se afetar com 
problemas. Logo no início de minha gestão na Consultoria Geral da 
República, fui designado para representar o Presidente da República 
na XI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que 
se realizaria em Belém do Pará. 
Senti um grande constrangimento diante da informação de 
meu chefe de gabinete. Na qualidade de Consultor Geral da 
República, teria eu as mesmas regalias e prerrogativas de Ministro de 
Estado. Entre elas, a de ser acompanhado por um secretário, quando 
viajasse. Um funcionário que carrega a mala ou a pasta, abre as 
portas, faz o check in no aeroporto, chama o táxi, rala com a 
recepção dos hotéis, pede o drinque e, depois de perguntar se Vossa 
Excelência deseja mais alguma coisa”, vai dormir e nos deixa em paz. 
Nem quando viajava a serviço do meu escritório, levava 
assistente. E tínhamos verba para isso. Não me ajeito bem com essas 
coisas. Agora, a consciência ia doer mais, porque a viagem do 
ajudante seria custeada por verbas públicas. Gastaria o dinheiro da 
União para ter ao meu lado um cara me chateando. Nem pensar! 
Eu mesmo arrumei minha mala, um carregador no aeroporto 
levou-a até o balcão da companhia aérea. Embarquei, abri um livro e 
fui lendo até o Pará. Ao meu lado, sentou-se um senhor mais ou 
menos gordo, mais para mais do que para menos. A todo instante, 
pedia desculpas por ter que se ajeitar na poltrona, já que o 
ajeitamento transbordava para o meu lado. 
— O senhor é de Belém ou de Brasília? —, perguntou ele com 
evidente vontade de bater papo. 
— Moro em Brasília atualmente — respondi, sem tirar os olhos 
do livro, que era bom e estava num ponto de suspense. 
— É comerciante ou trabalha no Governo? 
— Estou de passagem por Brasília — resposta mais cretina. 
— Tenho a impressão de que o conheço, não sei de onde. 
São os noticiários da televisão. Durante o lançamento do Plano 
Cruzado, todos os dias estive dando explicações à imprensa, e a 
televisão estava lá. Ainda sem tirar os olhos do livro, respondi: 
— É possível. Eu viajo muito neste trecho Brasília-Belém. 
Talvez em outra viagem. 
— Não sei — disse ele. E se entortou para o meu lado, 
desejando conferir meu rosto. 
Interrompi a leitura, levantei bem o rosto para ele ver, olhei-o 
nos olhos, sorri, pedi licença e voltei a ler. Creio que desconfiou, 
ajeitou-se para o lado oposto ao meu e dormiu. Roncou sonoramente. 
Não podia deixar de invejá-lo. A aeromoça ofereceu lanche, ele 
acordou meio zonzo e recusou. Continuou a dormir. Li em paz até 
Belém. 
Desci do avião, fui esperar a mala, que veio na esteira giratória. 
Procurava um táxi, quando o gordão se ofereceu para me levar. 
Tinha um carro a sua espera. Era de um colega seu de Belém, 
advogado que o viera apanhar no aeroporto. Ambos participariam da 
Conferência da OAB. 
Agradeci e, já na fila de passageiros, chegara minha vez de 
pegar o táxi. 
68 
O motorista do táxi, depois que lhe disse o nome do hotel e 
antes de arrancar, virou-se para mim e me consultou: 
— O senhor me diga: para irmos ao hotel, temos que passar 
defronte ao aeroporto. Mas lá há uma imensa confusão neste 
momento, trânsito engarrafado, polícia para todo o lado, porque está 
aí o Governador do Estado, que veio esperar um figurão. Será melhor 
sairmos pelo lado oposto: andamos um pouco mais e fugimos dessa 
bagunça. 
Concordei, e lá se foi ele pelo caminho dito mais fácil, sem que 
eu tivesse a menor noção se era ou não verdade. Estava ansioso por 
chegar ao hotel e tomar um banho. O calor de Belém, em alguns 
minutos, fez-me entender que o meu problema não era o 
Governador, nem o figurão que ia chegar: era uma chuveirada. 
No hotel, assinei as fichas na recepção e subi para o quarto já 
reservado pelo meu pessoal. Tirei a roupa e ia para o chuveiro. O 
telefone tocou. Era da portaria: 
— Senhor Ramos, o Governador do Estado vai falar com o 
senhor — e passou o telefone. 
— Senhor Consultor, boa tarde, sou o Governador Jader 
Barbalho. Fui esperá-lo no aeroporto, e o senhor não compareceu à 
sala vip. Desencontramos. Gostaria de lhe dar as boas-vindas em 
nome do povo do Pará. Posso subir? 
Meu Deus! O figurão era eu. No que respondi “pode, é claro”, 
voltei a vestir-me num segundo, e tocou o blim-blom da porta. Abri. 
Entrou o Governador acompanhado de uma porção de gente, e as 
apresentações foram feitas uma atrás da outra. Secretário do 
Governo, Secretário da Justiça, Secretário da Segurança, Delegado 
da Polícia Federal, mais não sei quem e muitos outros não sei quem 
mais. A saleta era pequena para tanta gente ilustre. Pedi desculpas, 
levei a mala para o quarto e voltei. E vi um chinelo no chão, perto da 
poltrona onde o Governador se sentara. Pedi desculpas, apanhei o 
chinelo, levei-o para o quarto e tornei a voltar. 
Conversamos sobre os problemas da República, do Estado e 
sobre a Conferência Nacional de logo mais da OAB. 
— Deixarei um carro à sua disposição com um ajudante-de-
ordens. Encontrar-nos-emos na Conferência — disse o Governador, 
ao retirar-se com o séquito. Vários apertos de mão, “muito prazer, 
muito prazer, nos veremos logo mais”. Fechei a porta e, afinal, ia 
tomar meu banho. 
Jader Barbalho, muito moço, cabelos negros, era 
extremamente simpático. Deixou-me à vontade naquele primeiro 
encontro, pois deve ter percebido meu enorme constrangimento, por 
haver causado tanta confusão pelo simples fato de haver entrado na 
fila de passageiros e haver apanhado um táxi. 
69 
No congresso dos advogados, chamaram as pessoas que 
comporiam a mesa diretora dos trabalhos: o Governador do Estado, o 
Consultor Geral da República, representando o Presidente José 
Sarney, e outras autoridades. O Presidente da OAB era o Dr. 
Hermann Assis Baeta, advogado calmo, inteligente, sossegadão. 
Ao abrir os trabalhos, Baeta falou bonito sobre a advocacia, os 
planos da entidade, fez alguns elogios ao Governador e a mim. 
Declarou que o objetivo da Conferência era debater a próxima 
Constituição e os trabalhos da futura Constituinte. Prometeu abrir 
escritório da Ordem em Brasília, para acompanhar os trabalhos 
constituintes, o que acabou fazendo com que a própria OAB se 
transferisse para a Capital Federal. Finalizou, lamentando
o uso de 
decretos-leis pelo Governo, usurpação da função legislativa do 
Congresso Nacional, pois naquele tempo não havia nenhum Severino 
em evidência. 
Ah! O patético Severino Cavalcanti, um pernambucano 
apaideguado, nepotista assumido, eleito presidente da Câmara dos 
Deputados, virou pregador de perdão a políticos ladrões, entre os 
quais ele se encontra em pequenas quantias na medida de sua 
insignificância que contrasta com a enorme mediocridade. Receber 
propinas de restaurante! Que coisa mais indigesta! Até que um dia 
Fernando Gabeira gritou: “Vossa Excelência na Presidência da 
Câmara dos Deputados é uma vergonha para o Brasil”.29 
O Brasil é de surpresas: foi sob a presidência de um Severino 
Cavalcanti que a Câmara dos Deputados chegou ao século XXI e 
aprovou experiência científica com células embrionárias, 
contrariando os sobreviventes da idade das cavernas e a parte da 
Igreja Católica que ainda combate Galileu.30 
 
29 Fernando Gabeira, intelectual de grande valor, hoje deputado federal, participou, na 
ditadura, do seqüestro do embaixador norte-americano. E cometeu um erro 
imperdoável: trocou-o pelo José Dirceu. 
30 Robert Lanza, cientista americano, parece ter encontrado um método de extrair 
células dos embriões sem destruí-los, acabando com aquela tese de assassinato 
sem certidão de óbito. Vamos ver se os ânimos se pacificam em favor da 
humanidade. Descobriu-se também que o líquido amniótico é fonte rica em células-
tronco. 
E também há uma pesquisa feita em Madri com células-tronco do tecido adiposo 
retiradas do abdome e que, injetadas no coração, servem para regenerar coronárias 
e miocárdio enfartados. São chamadas de mesenquimais e extraídas da gordura 
obtida com lipo-aspiração. Não se pode mais criticar com tanto rigor as 
barriguinhas que homens e mulheres ostentam como pneuzinhos. São preciosas 
jazidas de células-tronco. 
Nosso país é cheio de altos e baixos. Os baixos, nas eleições de 
muitos Severinos, e os altos, em trabalhos como o do Hospital das 
Clínicas de Ribeirão Preto, onde médicos liderados pelo Dr. Júlio 
César Voltarelli estão trabalhando com células-tronco adultas para 
curar diabéticos. E curam. 
Nos baixos ficou o Congresso Nacional. Geração espantosa essa 
nova leva de congressistas incompetentes e preguiçosos, 
preocupados apenas com infinitas reeleições. Mais nada. 
Em 2005, nossos legisladores aprovaram apenas 75 projetos, a 
maioria sobre nome de ruas, monumentos, ou como aquele que 
incluiu o almirante Barroso no Livro dos Heróis da Pátria. Mas 
Severino nem sabe ainda o que aconteceu com ele. Meio abestado, 
disse que não conhecia a palavra renúncia. E renunciou, acusando 
as elitizinhas, juradas em sua perdição, de terem tramado a cuja. E 
quase foi reeleito nas eleições de 2006. Ganhou uma suplência. 
Volto ao passado, porque esse desvio para o presente me 
assusta. 
No plenário da Conferência da OAB, Jader Barbalho defendeu o 
Governo e o uso do processo legislativo de urgência. Chegou minha 
vez. Enalteci a advocacia, afinal minha profissão fervorosa. Os 
advogados exercem verdadeiro apostolado em defesa de clientes, 
causas e ideais. Aquelas coisas que se dizem nesses eventos. E que 
quase sempre são reais. 
É verdade também que muitos juristas descambaram na nossa 
história. Deram fundamentos jurídicos — que de jurídicos nada 
tinham, salvo a forma — a atos arbitrários do passado, tanto no 
longínquo, como no recente, atendendo à eterna mania que nossos 
militares tinham de dar golpe legal. Chico Campos ajudou a redigir a 
polaca, Constituição de 1937, e o Ato Institucional nº 1 do golpe de 
1964. Gama e Silva redigiu o Ato Institucional nº 5, estatuto estulto e 
permissivo das mais violentas agressões às liberdades. Muitos outros 
colaboraram com o arbítrio. O Ministério Público Militar e o Federal 
serviam à ditadura como instituições. Poucas exceções individuais. O 
Ministério Público Estadual (conheci bem o de São Paulo) foi 
igualmente colaboracionista. Fez misérias. Não adianta negar. A CGI 
— Comissão Geral de Investigações —, que os militares 
centralizaram em São Paulo, em Cumbica, era chefiada por um 
Procurador de Justiça do Estado, que chegou à perfeição — além das 
práticas ilegais nos inquéritos — de esbofetear os vereadores do 
interior por ele interrogados. 
A OAB sempre resistiu à ditadura. E com habilidade. Os 
milhares de advogados anônimos tinham a coragem de aceitar e 
defender as causas dos perseguidos políticos. A entidade 
imediatamente socorria os profissionais que se atritavam com os 
executores da arbitrariedade e que acabavam presos. Foi um tempo 
de trevas. Se a Academia da Suécia resolvesse premiar entes cole-
tivos, a OAB do Brasil mereceria um Prêmio Nobel. Mas poderia 
sofrer um recall pelo projeto de reforma política que elaborou 
ultimamente. Os altos e os baixos. 
Aproveitei o fato de estar sendo realizada a Conferência em 
Belém, para advertir sobre o desmatamento da Amazônia, 
recordando que a ditadura mandara abrir estradas na floresta sem 
planejamento racional para a conseqüente povoação. Lembrei que 
tais estradas serviam mais ao desmatamento e ao incentivo de 
extração de madeira do que à defesa da Amazônia. Senti que não 
deram muita bola à observação. O clima estava mais para os direitos 
da nova Constituição, defesa da democracia, função social da 
propriedade, universalização do ensino público, democratização da 
Justiça. É verdade que a reforma agrária dava algum Ibope. Mas a 
derrubada desordenada da floresta amazônica não seduzia muito a 
ilustre platéia naquela época. 
Depois de falar até demais, concluí com explicações sobre os 
decretos-leis editados pelo governo. De repente, lá do fundo, uma voz 
gritou: 
— Não somos contra o uso do decreto-lei, mas contra o abuso. 
O Governo está abusando desse instrumento dos militares. 
Olhei para a direção de onde veio o aparte, isto é, o protesto. E 
em pé, com um jeito vitorioso, à espera da resposta, lá estava o 
gordão dorminhoco, que viajara ao meu lado no vôo Brasília-Belém. 
Foi barulhentamente aplaudido, mas eu tive uma quase incontida 
vontade de rir. 
Respondi, é claro, dizendo que o decreto-lei não era um 
instrumento dos militares, mas uma ferramenta da Constituição, que 
fora usada pelos militares, porém mal usada. Demonstrei que o novo 
Governo se utilizava dessa medida legislativa porque o Brasil tinha 
muita coisa a ser consertada com urgência, tantos e tamanhos os 
estragos feitos pela ditadura, sobretudo na legislação. Recebi 
aplausos com o mesmo barulho. Confiava na Constituinte 
convocada. Haveria de encontrar uma saída institucional para a 
legislação de emergência, que evitasse abusos. Também tenho minha 
dose de inocência. 
E ficou tudo por isso mesmo. Congresso de advogados, apesar 
de tratar de assuntos sérios e pertinentes, sempre desperta nos 
congressistas o espírito dos antigos estudantes. Acaba em alegria, 
irreverência e confraternização. Mas a Carta de Belém, aprovada pela 
Conferência da OAB, teve lampejos bonitos: 
Segundo a Declaração de Belém, “malgrado todas as investidas 
dos interesses poderosos comprometidos com a ordem de privilégios 
existente, os advogados confiam que o povo brasileiro saberá 
encontrar reservas de discernimento e sabedoria para firmar, no 
novo texto constitucional, os anseios, aspirações e esperanças dos 
despossuídos, como condição e objetivo de uma nova ordem social, 
libertada de toda a sorte de exclusivismos, e de todas as formas de 
opressão”. 
Era um tanto declamatório e poético, mas bonito. Entre os 
advogados presentes, estava o meu colega de São Paulo e querido
amigo, Márcio Thomaz Bastos, já em campanha para a presidência 
da OAB. Foi eleito no ano seguinte. Muito mais tarde, Márcio foi 
Ministro da Justiça de Lula, um bom ministro, sobretudo quanto à 
Polícia Federal, que limpou e tornou mais eficiente. Talvez tenha ele 
juntado material para escrever um livro mais extenso do que este, 
com o martírio que viveu para assessorar o Governo no lamaçal que 
o PT — Partido dos Trabalhadores — esparramou no país. Márcio é 
um homem honrado. Nada teve com a lambança do governo Lula. 
Pode ter sido criticado por algumas condutas prudentes inevitáveis a 
todo advogado de defesa. 
Na saída da solenidade de abertura, cumprimentos, apertos de 
mão, troca de cartões de visita, surge o gordão: 
— Eu não disse que o conhecia? Era isso! Consultor Geral da 
República viaja ao meu lado, recusa uma carona no aeroporto, fica 
na moita, não diz nada para ninguém! Por quê? É medo de ser 
identificado como membro do Governo? 
Verifiquei que ele gostava de bagunçar os espaços. Mas me 
lembrei de que era educado. Pedia desculpas. 
— Não, meu caro colega — respondi, percebendo que todos em 
volta Prestavam atenção. — Sou absolutamente discreto. Aprendi 
com nossa profissão de advogado, de tanto exercitar o segredo 
profissional. Acabei absorvendo a discrição como postura pessoal. 
Não fosse assim, à sua pergunta de agora há pouco na sessão 
plenária, eu teria respondido que o Governo atual não transborda do 
seu espaço sobre a poltrona do Legislativo, não dorme e não ronca. 
Os gordos, em geral, são muito simpáticos e afáveis. Deu-me 
um grande abraço. Levantou o polegar e exclamou: 
— Valeu! 
Foi a primeira vez que ouvi essa expressão. 
70 
Embora na conferência da OAB tivéssemos apenas abordado o 
problema, a verdade é que a Amazônia se tornou uma terra sem lei. 
Tudo ali é mentira: títulos de propriedade privada de terra sobre 
áreas devolutas, de domínio público; derrubada de florestas, negócio 
altamente rentável, mas desgraçadamente destrutivo das riquezas 
ambientais; grileiros, ladrões, pistoleiros, assassinos, misturados 
com uns coitados que se dizem trabalhadores sem-terra, mas 
igualmente aventureiros, pois ninguém respeita a floresta. Todos 
matam a mata. Seja o poderoso grileiro, seja o modesto sertanejo que 
chegou a pé, todos têm tara pela tora. 
O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, órgão 
científico que reúne 2500 cientistas do mundo todo, reunido em 
Paris decretou: o aquecimento global é irreversível e provocará 
mudanças intensas, longas e violentas. A emissão de gases, desde o 
final do século XIX, já comprometeu o clima dos próximos cem anos. 
Não há mais volta. As fumaças do carvão, desde as primeiras que 
transformaram o mundo econômico, somadas às do petróleo 
queimado, enfim, os combustíveis fósseis que moveram as indús-
trias, os navios, os carros, os caminhões, os trens, vão se vingar do 
homem. A eles se juntarão os fantasmas das florestas derrubadas e 
incendiadas. 
Há pouco tempo, com o assassinato da freira Dorothy Stang, 
em Anapu, Pará, Gervásio construiu sua própria teoria, que, na 
prática, nada tem de diferente: 
— Quem matou a religiosa foi o Governo brasileiro. Os 
pistoleiros apenas executaram a tarefa. Isso vem de longe. Em 1985, 
em Carajás, assassinaram uma outra freira, irmã Adelaide Molinari. 
Naquele ano, em Xinguara, mataram mais de dezessete pessoas, e 
ninguém foi punido até hoje. Há mais de vinte anos, vêm sendo 
executados sindicalistas, gente pobre e maluca, que ouviu histórias 
sobre terras fáceis e se mandou para lá. 
— Você acha que o Governo pode resolver o problema com 
reforma agrária? — perguntei a Gervásio. 
— Não. O modelo de reforma agrária pensado pelos brasileiros 
já foi para o espaço. Essa história de assentamento de famílias de 
pequenos agricultores virou lambança. O que se faz é dar um pedaço 
de terra, para os sem-nada poderem apenas morar. Depois, as 
confusões surgem naturalmente. Vira movimento político. Só isso. 
Hoje não existem mais os sem-terra. O movimento virou 
concentração de desempregados, que prestam para realizar marcha. 
Nisso são bons, organizados. 
Gervásio estava inspirado: 
— Assentamento acaba servindo até de esconderijo para 
bandido — continuou ele. — Surge o comércio de lotes, o troca-troca 
do uso. Veja o que acontece na Serra da Capivara, patrimônio da 
humanidade, no Piauí. Os sem-terra invadem e destroem os abrigos 
de arenito, onde estão pinturas rupestres de mais de 10 mil anos. E 
reivindicam o lote de terra para morar nele. Vivem da caça no local e 
do desmatamento. Em outros estados, os sem-terra querem saber de 
agricultura? Que nada! Negociam “direitos”, abrem um botequim, 
cultivam porres e cachaçadas. Pouco trabalham e fundam 
cooperativas. 
Gervásio era impressionante. Conhecia fatos nos mínimos 
detalhes. E prosseguiu: 
— Aos poucos, o crime se infiltra entre eles. No Rio Grande do 
Norte, achacam fazendeiros para não invadirem suas terras. E ainda 
usam o Incra para ameaçar os que resistem, com declaração de 
improdutividade de suas fazendas. Em São Paulo, no município de 
São Simão, ocuparam terras da Estação Experimental, estão 
destruindo as matas e as plantas do banco genético da Embrapa,31 
há mais de dez anos sabe para quê? Para fazer carvão. Os sem-terra 
ali viraram carvoeiros. Cada rancho tem seu forno. Cada forno 
devora árvores e árvores e árvores. No Pará, a coisa é mais feia. Na 
Amazônia, em geral, a questão é insolúvel. 
— Mas é fundiária — afirmei. 
— Mais que fundiária. É o processo de destruição da floresta 
amazônica. Toda vez que o Governo constrói uma estrada naquela 
região, o que acontece? Progresso? Civilização? Nada disso! Surgem 
os grileiros de terra, que atraem as madeireiras para cortar as 
árvores, levar os troncos, deixar as áreas limpas para plantio e fazer 
estradas vicinais, por onde transportam a pilhagem. E logo vêm os 
 
31 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. 
sem-terra reivindicando direito de ocupar áreas tomadas pelos 
grileiros, porque são públicas. Eles sustentam que as terras, por 
serem públicas, são deles. Como são mais pobres, merecem o apoio e 
a orientação dos religiosos, em geral estrangeiros, que foram para lá 
salvar almas não sei há quanto tempo. 
— Mas é uma questão social relevante, pois se trata de pessoas 
lutando pela sobrevivência por meio da produção agrícola, o que 
interessa ao país. Podiam ser orientadas para explorar a agricultura 
sem matar a mata. 
— Não interessa, não senhor! — respondeu Gervásio em voz 
alta. — Ao país interessa conservar a floresta amazônica e encontrar 
meios inteligentes de explorá-la sem destruí-la. Com a bagunça, vão 
acabar fazendo da Amazônia o que fizeram com a Mata Atlântica. 
— Mas a ida de gente para aquelas bandas é uma realidade 
creio que irreversível. 
— Coisa nenhuma! As matas ainda estão lá, e, portanto, ainda 
há tempo. Tem que pôr para correr os grileiros, os madeireiros, com 
todos os seus exércitos de pistoleiros; fechar os cartórios de notas 
que fornecem escrituras frias para falsos proprietários de terra, que 
dizem tê-las comprado no inventário de Pedro Álvares Cabral. Aliás, 
naquelas bandas, cartório de registro de escrituras de quando em vez 
pega fogo, e os registros se perdem. Ficam valendo os papéis fajutos, 
que foram falsificados para dar títulos de propriedade a grileiros. 
— Mas até isso acontece? Fogo nos cartórios? 
— Acontece de tudo naquele imundo mundo sem solução e 
sem Raimundo, apenas com pistoleiros do tipo Fogoió.32 
71 
Gervásio estava furioso. E continuou: 
— O povo pobre,
atraído para lá, foi traído lá mesmo. Tem que 
ser conduzido de volta à realidade, a lugares onde possam trabalhar 
 
32 Apelido do pistoleiro que matou a freira Dorothy. 
de verdade como gente digna, e não como formigas daninhas 
perdidas na floresta. No Pará, é fantástico o número dos crimes de 
morte sem solução. Por quê? Porque ali as razões dos assassinatos 
tornaram-se motivos considerados justos. Pessoas são mortas por 
causa de mulher, boi e terra. Entre eles, não há razão moral para 
punir os assassinos. 
— Creio que a solução — disse eu — está em medidas 
governamentais que levem para lá a presença do Estado de Direito, 
polícia, Judiciário, instrumentos de aplicação da ordem legal. 
— Faça poesia, meu poeta. Deixe de pensar em solução 
jurídica! Lembro-me de um verso seu no livro Café: cada árvore caída 
é uma oração interrompida. Uma floresta inteira derrubada é 
agressão a Deus. Dentro em breve, teremos um problema que vai 
fundir a cuca de vocês, juristas: os povos mais fortes ou organizações 
como a ONU começarão a cobrar de nós a preservação da Amazônia 
nos termos ditados por eles. Você vai ver. Teremos um choque entre 
a soberania nacional e o Direito da Humanidade. Nossos homens pú-
blicos estão preparados para um debate dessa grandeza? 
Ultimamente, o povo tem elegido um número enorme de analfabetos, 
que não sabem distinguir uma coisa da outra. 
— Espera um pouco — interrompi. — Nós temos gente capaz 
de enfrentar a discussão. O Professor Aziz Ab’Saber, que conhece 
tudo da Amazônia. Gente nossa, nunca ouvida, nem consultada. Um 
Cristovam Buarque, por exemplo, grande estudioso da Amazônia. 
Sabe das coisas. Ele há muito tempo adverte sobre o embate que se 
travará entre soberania política e ética internacional. Acredita 
também na hipótese de não cuidarmos da floresta e na conseqüência 
de organismos internacionais virem para cá, mesmo contra nossa 
vontade. 
— Que nada. Ele sabe das coisas para conversar aqui, em 
conferências nas universidades brasileiras. Foi candidato a 
Presidente da República com uma linda bandeira, a educação. Teve 
apenas dois por cento dos votos. O povão não está nem aí. Mas o 
pepino está lá fora. Por exemplo: um Pascall Lamy, francês, ex-
comissário para o Comércio da União Européia, hoje diretor geral da 
Organização Mundial do Comércio, figura de influência no inundo, 
prega abertamente a gestão coletiva de bens públicos mundiais. E 
cita a Amazônia, em defesa do direito da humanidade a respirar. Foi 
ele que, aliado à incompetência do Governo Lula, matou as 
negociações da Rodada de Doha, frustrando o mundo de um acordo 
contras as tarifas do comércio externo e os subsídios agrícolas dos 
países ricos. Há também um Roger Higman, inglês, que já chegou a 
redigir as regras de administração internacional da Amazônia. 
— E você acha que isso, um dia, será possível? 
— Não sei. Mas tudo tem um começo. E faz tempo que 
começou. No século passado, no tempo de D. Pedro II, em 1850, um 
tal de Mathew Maury, do Observatório Naval de Washington, 
sustentava o direito de livre navegação internacional no Rio 
Amazonas. Sabe qual o fundamento? 
— Não tenho a menor idéia — respondi, por ignorar 
completamente esse dado da História. 
— Pelo volume de água do Rio Amazonas, que, só por isso, 
deveria ser incorporado ao direito marítimo sob leis internacionais. 
Para dar efetividade a essa teoria, os americanos mandaram um 
navio invadir o nosso rio. Subiu até Iquitos, no Peru, sem licença do 
nosso Governo. Aquele tal de Maury fez a primeira propaganda 
internacional da internacionalização da Amazônia. D. Pedro II reagiu 
e criou um problema diplomático com os norte-americanos. Seu 
embaixador nos Estados Unidos, Sérgio Teixeira Macedo, brigou duro 
e convenceu o governo de lá a parar com essas besteiras. 
— Pois nunca ouvi falar disso — confessei eu, reconhecendo 
minha insuficiência de conhecimentos da História do Brasil, aliás, 
tanto quanto a média geral dos brasileiros. 
— O mais perigoso — prosseguiu Gervásio — talvez seja a 
nossa incompetência em lidar com a matéria. Os militares, no 
governo deles, partiram do princípio de que a floresta pode ser 
destruída desde que o seja por brasileiros. Os governos civis que se 
seguiram não mudaram o rumo da cretinice e permitiram as 
madeireiras, os grilos de terra, os falsos assentamentos de sem-terra, 
na maioria também falsos. Hoje, existe até site na Internet vendendo 
terras na Amazônia para os americanos. No anúncio, além de ofertas 
de lotes de até um milhão de acres ou mais, afirma-se que a floresta 
é o melhor investimento da atualidade. Acrescentam: ali não tem 
furacão, terremoto, terrorismo. Paraíso para viver, com abundância 
de água. E mentem: clima fresco, agradável. 
— Na Internet? 
— Sim, senhor. Pode acessar: www.resourcesbrazil.com. 
Pergunto: o que estão comprando aqueles americanos? Dentro de 
pouco tempo, aparecerão por aqui com suas escrituras e com tropas 
para fazer valer suas propriedades. Tudo isso misturado acaba 
sempre em desmatamento predatório e conflitos. O mundo está de 
olho. Um dia vai querer pôr a mão. 
72 
— Você está falando bonito e certo, meu caro Gervásio — 
observei diante de seu discurso. — Mas falar certo e bonito nada 
resolve. Lembro-me de um livro, publicado em 1970, com o título 
Amazônia: expansão do capitalismo, que previu como o 
desenvolvimento capitalista da Amazônia seria caracterizado pela 
violência e pela brutalidade. Sabe quem é o autor? 
— Nem conhecia a existência desse livro! — respondeu 
Gervásio, atônito. — Quem o escreveu? 
— Fernando Henrique Cardoso. 
— Não me diga! Essa é surpreendente! 
— Quando ele era professor de sociologia e ainda não havia 
sido contaminado pela política — contei —, sabia pensar. Na época, 
os militares sustentavam a tese, sempre fundada na maldita 
segurança nacional, de que a Amazônia deveria ser povoada pelos 
brasileiros e, assim, assegurar nossa posse do território. Nada de 
planejamento. Apenas povoar, e o resto que se danasse. Para isso, 
abriram a estrada Transamazônica sem nenhum planejamento para 
o que viria depois. Abriram a Belém-Brasília. Deu no que deu. 
Fernando Henrique previu. O livro dele é muito bom na análise desse 
problema. 
— E quando Fernando Henrique tornou-se Presidente da 
República lembrou-se do que escreveu e fez alguma coisa pelo 
problema da Amazônia? 
— Fez nada. Permitiu, também sem planejamento, que o 
Movimento dos Sem-Terra levasse gente para lá e deixasse o Sul em 
paz. E paz não houve. O movimento dos sem-emprego a cada dia 
tornou-se mais violento. No Rio Grande do Sul, além das invasões, 
adotou-se a estratégia de guerrilha para destruir propriedades e até 
centros de pesquisas florestais. 
— É verdade. Surgiu uma tal de Via Campesina que, 
financiada pelo Ministério do Meio Ambiente, invadiu e destruiu os 
laboratórios da Aracruz. Eu não como eucalipto, gritava uma das 
mulheres predadoras do horto florestal. Vinte anos de pesquisas 
científicas foram pisoteadas e reduzidas a pó. Dinheiro público 
sustentando ações de vândalos e bandidos. E Via Campesina tem um 
site na Internet, no qual festejou seus atos de violência utilizando-se 
de versos de Vinícius de Morais: as mudas gritaram de repente e não 
mais que de repente o riso da burguesia fez-se espanto, tornou-se 
esgar, desconcerto. Além da destruição de vinte anos de pesquisa 
científica, assassinaram o soneto de Vinícius. 
— Sob os aplausos do chamado líder do MST João Pedro 
Stédile, que ainda está solto em nome da democracia, mas fazendo 
agitação contra o agronegócio, dizendo que não
há mais o antigo 
latifúndio improdutivo. Agora a luta é contra as empresas 
produtivas, o capital internacional, o capital financeiro, como 
costuma dizer para incentivar quebra-quebra sob os olhares 
complacentes do Governo. Uma cantilena antiga, dos anos 60, para 
justificar a baderna moderna. E ninguém faz nada para impedir essa 
desconstrução da ordem pública e do ordenamento jurídico. 
Gervásio estava ferino. Tivemos a boa idéia de tomar um 
cafezinho. Ele continuou: 
— O PT tem um membro de seu diretório, íntimo amigo do 
Presidente Lula, um tal de Bruno Maranhão, que comandou uma 
invasão da Câmara dos Deputados pelos sem-terra, integrantes de 
uma organização que recebeu mais de cinco milhões de reais do 
Governo, dinheiro nosso, do povo, usado para financiar quebra-
quebra do patrimônio público. Quebraram tudo, computadores, 
portas e tentaram assassinar um segurança. Lembra-se do dia em 
que isso aconteceu? 
— Creio ter sido em um dia qualquer de junho. 
— Dia qualquer não senhor. Foi no dia 6 de junho de 2006, 
que se escreve 6.6.2006, os números da Era da Besta. Trabalham 
para o diabo esses seguidores de Fernando Henrique e Lula. 
— Mas tudo isso aconteceu no Governo Lula. Fernando 
Henrique, creio, nada tem que ver com essa história. 
— Claro que tem. Ele plantou as sementes das impunidades, 
colhidas e multiplicadas pelo MST. Quanto ao livro, você se lembra, 
Fernando Henrique pediu expressamente que os brasileiros 
esquecessem tudo o que havia escrito, e sua palavra passou a ser, 
para sempre, um risco na água. Hoje está por aí, falando mal do 
Governo, querendo voltar ao poder, confessando desejá-lo para 
comandar o atraso. No caso da freira Dorothy, parece que ele calou o 
bico. Por quê? Porque ele, indiretamente, permitiu as circunstâncias 
que mataram a freira. Defender o direito da humanidade é fácil. 
Difícil é disciplinar o ser humano. 
Depois de refletir um pouco, Gervásio concluiu com a voz 
pausada: 
— Um dos maiores males que o Fernando Henrique fez ao 
Brasil foi ter criado a reeleição e eleito o Lula, que se reelegeu graças 
ao grande sociólogo. Ele foi o maior eleitor desse espetáculo de 
vacuidade. 
73 
Conversamos sobre as várias hipóteses para salvar da 
devastação aquelas e outras áreas da Amazônia. Expliquei ao 
Gervásio que nossa legislação permite três modalidades de defesa: 
decretação formal de floresta nacional, que admite, sob vigilância, o 
corte sustentável de madeira; criação de parque nacional, que não 
admite exploração alguma, a não ser o fim turístico; e, finalmente, a 
instituição de estação ecológica, que se torna inviolável, fechada até 
para visitas. 
— Parece que o Governo Lula resolveu tentar algo diferente — 
comentei. — Privatizar a exploração da floresta fundada numa 
informação tributária: será possível, segundo cálculos do Ministério 
da Fazenda, recolher cerca de cem milhões de dólares anuais em 
impostos, se a atividade for permitida a particulares. E querem 
permitir sob a forma de concessão por sessenta anos para exploração 
de terras públicas. A Receita Federal fez as contas e entende que a 
solução renderá altos lucros para o Tesouro Nacional. 
— Santo Deus! — disse Gervásio. — A Receita Federal, que 
sistematicamente sufoca os empresários brasileiros com a maior 
carga tributária do inundo, preparou-se para acabar também com a 
Amazônia? 
— Tudo em nome do assassinato da freira Dorothy. Disseram 
que se devia prestar um tributo ao sacrifício da religiosa, e o Governo 
entendeu como arrecadação tributária. E a corrupção? Você pensa 
que toda essa madeira, ilegalmente extraída em volumes fantásticos, 
anda sozinha pelas matas, pelas estradas e chega aos portos sem 
logística? Primeiro é preciso ter Autorização para Transporte de 
Produtos Florestais.33 Quem emite? Pode investigar. Tem funcionário 
do Ibama, funcionário dos governos estaduais, gente graúda metida 
nisso.34 
Lembro-me bem que, no Governo Sarney, houve um 
desmatamento na Amazônia de 17,6 mil quilômetros quadrados no 
biênio 1988/1989. Mais ou menos no grito, e com a colaboração dos 
governadores, conseguimos baixar para 13,8 mil quilômetros 
quadrados no biênio 1989/1990. Mantida a nossa estratégia, no 
início do governo Collor o desmatamento baixou para 11,1 mil 
quilômetros quadrados. Depois voltou a degringolar. Em 1994/1995, 
chegou a 29,1 mil quilômetros quadrados e, finalmente, no Governo 
Lula, com a Ministra Marina Silva prometendo passaportes para o 
paraíso, o desmatamento manteve-se em 27,2 mil quilômetros 
quadrados em 2003/2004. 
É um crime pior do que o caixa dois, coisa de bandido, 
segundo o então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Não dá 
para dizer que o Presidente Lula não sabia de nada. Vinte e sete mil 
quilômetros quadrados de mata derrubada é muito chão. O comércio 
de tanta madeira somente pode ser efetivado com a conivência dos 
governos estaduais e federal. Ou não? 
Basta olhar para o sul do Maranhão. Desmatamento 
desenfredado, sobretudo nos municípios de Grajaú e Arame, com a 
derrubada de jatobás, ipês, cedros e outras árvores centenárias. 
Quase trinta mil hectares. No Governo José Reinaldo, cria do José 
Sarney, lembrou-me Gervásio. E acrescentou: 
— Os índios guajajaras também vêm desmatando a troco de 
dinheiro. Nas suas reservas ninguém entra, a não ser grileiros, 
madeireiros, carvoeiros, serradores, plantadores de maconha e 
bandidos, uma vez que a polícia não tem coragem de enfrentar os 
 
33 Esse documento, a ATPF, foi substituído, pelo DOF, Documento de Origem 
Florestal, fraudado cinco dias depois de adotado. 
34 Gervásio me fez esta observação antes da operação Sucupira, da Polícia Federal, 
que confirmou o envolvimento do Ibama e de setores dos governos estaduais na 
indústria do desmatamento criminoso. Tais medidas são perfumaria. 
índios. As toras desfilam sobre caminhões à noite e livremente. 
74 
De repente, Gervásio me olhou e mudou de assunto: 
— Você evitou algo parecido com a Ilha de Fernando de 
Noronha. Agora me lembro. O Brasil deve essa a você. Pouca gente 
sabe. Ou pelo menos ninguém reconheceu até hoje. 
É verdade. Eu mesmo já havia esquecido. A Constituinte, 
contrariando a velha regra de que as ilhas oceânicas eram de 
domínio da União, no Ato das Disposições Constitucionais 
Transitórias (art. 15), extinguiu o Território Federal de Fernando de 
Noronha, “sendo sua área incorporada ao Estado de Pernambuco”. 
Lembro-me de que a disposição, aprovada com grande alegria 
na Assembléia Constituinte, causou-me arrepios. Uma das mais 
lindas ilhas do mundo, com riquíssima vida marítima, praias 
paradisíacas, pedaço esplendoroso de beleza, onde, como diria o 
poeta, a natureza esmerou-se em quanto tinha, poderia ser atirada à 
especulação imobiliária. Tive visões horríveis. Cheguei a sonhar com 
arranha-céus e loteamentos por todo o território da ilha, golfinhos 
mortos, surfistas banidos das ondas, restaurantes nas encostas, lixo 
por toda parte. E acordei assustado com uma idéia me 
atormentando. 
Era o dia 10 de setembro de 1988. A Constituição seria 
promulgada no mês seguinte, no dia 5 de outubro. Havia tempo. 
Mandei fazer o levantamento do território. Redigi um decreto cujo 
artigo primeiro dizia: 
“Art. 1º — Fica criado, no Território Federal de Fernando de 
Noronha, o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, 
com o objetivo de proteger amostra representativa dos 
ecossistemas marinhos e terrestres do arquipélago, 
assegurando a preservação de sua fauna, flora e demais 
recursos naturais, proporcionando oportunidades controladas 
para visitação, educação
e pesquisa científica e contribuindo 
para a proteção de sítios e estruturas de interesse histórico-
cultural porventura existentes na área.” 
Mostrei o texto para Sarney. Ele vibrou. Chamou o Ministro da 
Marinha, Almirante Henrique Sabóia, que exultou e declarou que o 
referendava, com a firme convicção de prestar um expressivo serviço 
ao Brasil. 
Assim, antes da promulgação da Constituição, o Diário Oficial 
rodou com o Decreto nº 96.693, de 14 de setembro de 1988, que 
transformou o território de Fernando de Noronha em parque 
nacional marinho, intocável, pois, pela atividade imobiliária. A ilha 
foi transferida para o estado de Pernambuco, mas já era área de 
preservação, permitida, apenas e dentro de limitações austeras, à 
exploração turística. Pequenos hotéis e pousadas nas bordas, com as 
atuais Pousada Maravilha, Pousada Zé Maria, Pousada Alamoa e 
tantas outras. 
Já que a lei permitia a criação de “parque nacional”, 
inventamos o parque nacional marítimo e salvamos a Ilha de 
Fernando de Noronha para todo o sempre. Amém. 
Não é preciso dizer que os interessados levaram algum tempo 
para descobrir. Mas descobriram. Minha venerável mãe, humilde 
mulher de agricultor paulista, foi alvo de um festival de xingatório. 
“Fio de uma égua!” foi a expressão mais branda, segundo me 
contaram. Mesmo assim, Fernando de Noronha, com suas incríveis 
dez fortificações construídas pelos portugueses, primeiro e mais 
avançado sistema de defesa territorial do Brasil, é um triste 
espetáculo de abandono. A expressão “não restará pedra sobre 
pedra”, creio ter sido inventada naquele arquipélago, diante dos 
fortes construídos pelos nossos descobridores e há séculos sem a 
menor conservação. 
75 
Mas Gervásio não perdoou: 
— Vocês podiam ter feito a mesma coisa com muitas áreas da 
floresta amazônica. 
— Alto lá, meu caro! — respondi, recusando a crítica. — Os 
trabalhos com a Constituinte nos absorveram completamente, mas 
nos lembramos de lutar por um capítulo inteiro na defesa do meio 
ambiente. Está lá. Pode ler. Capítulo V. Começa no art. 225 da 
Constituição. O dever do Poder Público e da coletividade de defender 
o meio ambiente e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 
— E daí? É norma apenas teórica, bem ao estilo de poeta: 
norma declamatória. De efetivo, nada! — resmungou Gervásio. 
— É melhor você ler a Constituição. O texto é longo e quase 
exaustivo. O parágrafo primeiro daquele artigo enumera tudo quanto 
o Poder Público deve fazer para assegurar a efetividade deste direito 
coletivo: preservação e restauração do processo ecológico; definir em 
todas a unidades da Federação, portanto no Pará e no Amazonas, 
espaços territoriais a serem especialmente protegidos. Alteração dos 
comandos protetores, somente por lei. Tudo escrito na Constituição. 
A gente acredita que é para valer. 
— Mas não vale. Ou, no caso da Amazônia, não está valendo — 
concluiu Gervásio. — Que Deus tenha a alma da irmã Dorothy! Não 
sei, porém, ninguém sabe, o que o FBI foi fazer lá no local do crime, 
nem por que a Igreja brasileira ficou em silêncio diante do 
assassinato da religiosa. O Reino da Dinamarca continua 
escondendo coisas. Mais mistérios nos códigos da vida. Mas você 
está perdoado. 
— Obrigado pelo perdão, mas perdoado por quê? 
— Porque, nessa questão ecológica, você foi pioneiro no Brasil 
e... posso gabar?... 
— Pode. 
— ... no mundo, com aquele decreto redigido por você em 1961, 
em defesa dos recursos naturais, quando, pela primeira vez no 
direito brasileiro, apareceu a palavra “poluição”. E o mundo não dava 
a mínima para a defesa da ecologia. Impõe-se registrar, pela 
importância e pela larga previsão, o Decreto nº 50.877, de 29 de 
julho de 1961, do Presidente Jânio Quadros, que dispôs sobre o 
lançamento de resíduos tóxicos ou oleosos nas águas interiores ou 
litorâneas. No resto do mundo, a consciência pela defesa do meio 
ambiente somente foi despertada bem mais tarde. Para ter uma 
idéia, a primeira lei publicada em defesa de recursos naturais foi em 
1976, na Itália, quinze anos depois do decreto redigido por você. 
— O mérito também é do Jânio, que aprovou a idéia. 
— Benditas sejam as caipirinhas no bar do posto de gasolina 
do Viola, no Guarujá! 
76 
A Constituinte, em conseqüência das intermináveis 
negociações políticas, deixou para leis complementares e leis 
ordinárias quase todas as matérias de importância. Tentamos 
colaborar, elaborando projetos e mais projetos para cumprir os 
mandamentos da nova Carta da República. Serviço que não acabava 
mais. Em meio a tudo isso, Oscar Correa, Ministro da Justiça, 
encheu-se com os problemas criados pelo Ministro da Fazenda, 
Maílson da Nóbrega, pediu demissão e foi embora. 
Eu estava de férias. Havia feito uma “vaquinha” com Toninho 
Drummond, que trabalha na TV Globo em Brasília, e João Di Gênio, 
um gênio da educação no Brasil: alugamos um barco na Grécia e 
fomos passear pela ilhas do Mar Egeu e devorar locais da cultura 
grega. O grego, dono do barco, era um vigarista. Deixou-nos 
escolher, no mapa de navegação, quais as ilhas que gostaríamos de 
visitar; e, depois, fez o roteiro diferente. Levou-nos às ilhas de seu 
esquema. Entre elas, estava Mikonos. Felizmente. Quando estávamos 
chegando, o rádio do barco recebeu a comunicação de que o 
Presidente do Brasil queria falar com o Dr. Saulo Ramos. 
O dono do barco passou a nos tratar com mais respeito. 
Ancorou em Mikonos e nos indicou uma cabine telefônica de onde 
podíamos ligar para o Brasil. Havia uma fila enorme. Preparei-me 
para esperar mais de hora. Toninho Drummond ao meu lado, 
solidário, e o sol era escaldante. Então ouvi uns turistas franceses 
comentarem que, de um hotel ali perto, podia-se falar rapidamente. 
Pedi detalhes. Ensinaram-me o caminho. Cheguei. Havia apenas um 
casal ao telefone, na recepção do hotel. Chegou minha vez. Liguei 
para o Sarney: 
— O Oscar Correa — disse ele — pediu demissão. Preciso 
substituí-lo. Quero que você assuma o Ministério da Justiça. Posso 
anunciar a escolha? Você aceita? 
— Aceito — respondi, enquanto olhava um garçom passar com 
cervejas geladas sobre uma bandeja. 
— Então, volte imediatamente! 
— Calma, meu presidente! Eu aceito o convite, mas voltar 
imediatamente é outra coisa. Estou no Mar Egeu, sob o sol que 
iluminou Aristóteles. Não é fácil deixar tudo isso assim de repente. 
Ainda não havia visitado nada. Precisava passar uma tarde na 
Acrópole. 
— Vou anunciar seu nome hoje. Trate de voltar o mais 
depressa possível. Venha trabalhar! 
Peguei minha mala no barco, despedi-me do Di Gênio e do 
Toninho Drummond. Enfrentei um aviãozinho, que partiu da Ilha de 
Mikonos para Atenas. Consegui, no mesmo dia, um vôo para a 
França. Na decolagem, vi a Acrópole. Mas meu rumo era Paris. 
Sonhei em passar aquela noite tomando um vinho, jantar num bistrô 
do Quartier Latin. Encontrar Napoleão Sabóia e jogar conversa fora. 
Falar do Maranhão e de seus lençóis de areias desenhadas. Não sei 
como acontece: o pessoal do Itamaraty já sabia de tudo. Quando de-
sembarquei na capital francesa, já tinha vôo marcado para o Brasil 
na mesma noite. Tudo emendado, rapidinho. Comi sanduíches. Não 
vi o Napoleão, nem o Sabóia, nem o Bonaparte. 
Lá fui eu para o Ministério da Justiça. Não abomino nada. São 
os códigos da vida. Mas, para assumir o cargo, deixei a Grécia, uma 
troca pela concórdia. O velho Aristóteles dizia que o homem deve 
empenhar-se em favor da concórdia, pois ela pacifica as pessoas de 
bom coração. 
Não interrompi as tarefas iniciadas na Consultoria Geral da 
República. Continuei trabalhando nos projetos das leis previstas
pela 
nova Constituição e, conforme o assunto, para os de maior 
relevância e urgência, sapecava medida provisória. Sarney aprovava 
todas, depois de algumas discussões bravas, que nossa amizade e a 
recíproca confiança permitiam. 
Criamos, por medida provisória (a de n° 143), a 
impenhorabilidade do bem de família, incluindo a entidade familiar. 
Aquela história do Código Civil, de permitir a instituição do bem de 
família por meio de escritura pública, era uma velharia. A maioria 
absoluta dos brasileiros nem sabia da existência do permissivo legal. 
Instituindo a impenhorabilidade pela lei, a questão teve desfecho 
simples: é bem de família, seja imóvel, sejam bens móveis em casa 
alugada, instrumento de trabalho, geladeira, televisão, e muito mais 
do que a cama do casal, tudo o que esteja dentro de casa, nada pode 
ser penhorado ou executado por dívida das pessoas integrantes da 
família. 
O mundo caiu em cima de nós. Os bancos queriam me matar, 
com exceção de um homem de grande visão: Lázaro Brandão, 
presidente do Bradesco, dotado de invejável espírito público. Deu-me 
uma palavra de apoio, observando que os bancos teriam apenas de 
fazer hipotecas nos empréstimos pessoais, custo pequeno diante do 
enorme benefício que a nova lei traria para o povo. A medida foi 
chamada de “lei do calote”. 
Com o tempo, o país compreendeu, e não se discutiu mais. A 
lei aí está para sempre (Lei 8.009/90) e prestigiada pelo novo Código 
Civil. Quem se interessar pelos fundamentos e pela história jurídica 
do instituto, encontrará tudo no livro Impenhorabilidade do bem de 
família, de Carlos Gonçalves, Editora Síntese, e no meu prefácio a 
essa obra, a partir da terceira edição. Conto tudo: onde nasceu a 
idéia, o porquê, que países a adotaram. 
Não paramos. Criamos a prisão provisória para os suspeitos da 
prática de crimes hediondos. Gritaria dos criminalistas, não sei por 
quê. Havia antes a prisão para averiguação, inteiramente 
discricionária. Acabaram-se os tempos em que a polícia prendia e 
escondia o suspeito, o advogado conseguia um habeas corpus, mas 
não encontrava o cliente em delegacia alguma. A prisão provisória 
terminou com esse velho e odioso costume policial de esconder 
pessoas presas. A polícia ou o Ministério Público requerem, e o juiz 
permite o encarceramento para investigação, quando há 
fundamentos para isso. No mesmo dia e na mesma hora em que o 
Congresso Nacional transformava a medida provisória em lei, a Lei nº 
7.960/89, o Supremo Tribunal Federal declarava sua 
constitucionalidade, em ação contra ela proposta pela OAB. Creio 
que essa coincidência, além de inédita, nunca mais vai acontecer, 
pelo menos nos próximos mil anos. 
Pena que esse tipo de prisão acabou se banalizando sob 
autorização judicial de rotina e se transformou em show policial para 
encenação de noticiário de televisão. Se soubesse que ia acabar 
assim, em vez de conceber a medida para o ordenamento jurídico 
brasileiro teria dado a idéia para o Manoel Carlos usar em alguma 
novela da Globo. 
Redigimos também o projeto de lei que listava os crimes 
hediondos e revogamos a tristemente famosa Lei Fleury, que permitia 
a criminosos de alta periculosidade permanecer em liberdade até o 
trânsito julgado da sentença que os condenava. Fui honrosamente 
xingado e apedrejado por inúmeros e misteriosos delinqüentes. Com 
essas pedras, construí este livro. Hoje, sinto-me gratificado com a 
aplicação da lei em muitos e muitos casos graves. Foi aplicada contra 
vários assassinos e seqüestradores, inclusive contra os cruéis e 
execráveis matadores de Tim Lopes, jornalista carioca barbaramente 
torturado e trucidado por criminosos hediondos do Rio de Janeiro. 
Nesse trabalho todo, José Celso de Mello fazia falta. Mas, 
agora, era Ministro do Supremo e já proferia seus primeiros votos. 
Brilhantes. Inclusive a favor da prisão provisória. Pena que o 
Supremo Tribunal Federal, pressionado pelo Ministro da Justiça do 
Governo Lula, Márcio Thomaz Bastos, acabou permitindo, por um 
voto e em um caso concreto de crime hediondo, a progressão do 
regime de cumprimento de pena dos crimes comuns, o que irá soltar 
depois de pouco tempo estupradores, seqüestradores e traficantes. 
O país recebeu com revolta a notícia dessa decisão 
inteiramente maluca: a declaração de inconstitucionalidade do 
dispositivo de lei que manda prender e manter preso o criminoso 
hediondo.35 Resolveu-se que se deve prender o criminoso cruel, mas 
um pouquinho só. É inconstitucional mantê-lo preso. Embora, em 
certos casos, suas vítimas estejam constitucionalmente mortas para 
sempre. 
Márcio Thomaz Bastos, quando era ministro de Lula, alegou 
que a lei dos crimes hediondos foi “escrita sob a emoção da violência” 
e que ela “satisfaz os anseios de segurança da sociedade, mas não 
coíbe a criminalidade”. Ora, eu escrevi o projeto com serenidade, 
para cumprir um comando constitucional muito claro contido no 
inciso XLIII, do art. 5º, da nossa Lei Magna, que manda diferenciar o 
tratamento de tais crimes, inafiançáveis e insuscetíveis de anistia ou 
graça. 
Não têm graça alguma as gracinhas do Ministro da Justiça de 
plantão, e esta última de uma pequena maioria inafiançável dos 
ministros do Supremo Tribunal Federal ao comparar, na execução 
penal, os autores de crimes hediondos e os autores de crimes 
comuns, reconhecendo-lhes direitos iguais. Aposto que o STF vai 
 
35 Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. 
voltar atrás, como já fez muitas vezes em seus grandes erros. De 
qualquer forma o Congresso Nacional, pressionado pelo assassinato 
do menino João Hélio no Rio de Janeiro,36 votou lei instituindo 
regime diferenciado no cumprimento de penas para os autores de 
crimes hediondos. 
Mas, infelizmente, a Lei nº 11.464/2007 deixou uma brecha 
para os criminosos hediondos saírem das prisões com alguma 
facilidade. No Brasil, ultimamente, há uma forte tendência para 
proteger-se bandido, tanto nos julgamentos, como na legislação. 
No dicionário encontram-se várias definições para 
solidariedade, entre elas as seguintes: 
“Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e 
às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da 
própria humanidade. 
Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por 
interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se 
sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s): 
Sentimento de quem é solidário. 
Dependência recíproca.” 
Qual a que melhor se aplica aos que protegem bandidos? 
E precisamos acabar com essa teoria de bobos que sustenta 
terem os crimes hediondos aumentado depois da lei, como se a 
punição mais severa excitasse os bandidos. O que faz aumentar a 
criminalidade, além das condições sociais, é a quase certeza da 
impunidade. Se a lei punitiva estimula o crime (que coisa mais 
 
36 João Hélio Fernandes, garoto de seis anos, ficou preso pelo cinto de segurança 
enquanto ladrões fugiam com o carro roubado de sua mãe. A pobre criança foi 
arrastada por sete quilômetros. Sua morte comoveu o Brasil. A mídia deu grande 
destaque à tragédia. Não fez o mesmo com a desgraça de outra menina, Gabriellli 
Cristina Eichholz, de um ano e sete meses, encontrada estuprada, estrangulada e 
agonizante dentro da pia batismal nos fundos de um templo da Igreja Adventista do 
Sétimo Dia, em Joinville, Santa Catarina. Numa sala ao lado realizava-se um culto 
religioso. Essa barbaridade aconteceu um mês depois da trágica morte do menino 
João Hélio no Rio de Janeiro. Não houve passeatas de protesto contra o crime 
hediondo praticado contra a menina de Joinville, assassinada
por um Rosário 
(Oscar Gonçalves do Rosário). 
idiota!), dever-se-ia revogar o Código Penal. 
77 
Mesmo antes da Constituinte, eu já havia ousado sugerir 
outras inovações absolutamente necessárias ao Brasil. Sarney era 
avesso ao uso de decreto-lei. Tivemos discussões intermináveis a 
esse respeito. Algumas idéias ele recusou, bateu o pé, não quis 
saber. Uma vez o pessoal da agricultura levou-o assinar um decreto 
de desapropriação para a reforma agrária. Na área a ser 
desapropriada, estava incluída toda a cidade de Londrina. Deus nos 
acuda. Daquele dia em diante, Sarney não assinava nada sem minha 
revisão na parte jurídica e a revisão da língua portuguesa pelo 
Joaquim Campeio. Minhas minutas de decretos, decretos-lei, 
medidas provisórias, eu próprio levava ao Campeio para as 
correções. É um craque. E mais ainda: companheiro de sinuca. Nas 
raras folgas, ou fins de semana, ele programava umas partidas, 
convidando parceiros para umas tacadas honestas na República. 
Consegui, nesse tempo, convencer Sarney a tomar uma 
providência que eu julgava fundamental. 
Contando agora, as pessoas podem duvidar. O Brasil não tinha 
uma lei que regulasse as licitações públicas e o contrato 
administrativo. Simplesmente não tinha. Havia algumas regras para 
licitação, baixadas pelos militares, no Decreto-Lei nº 200; e o 
contrato administrativo era disciplinado — que disciplinado?! —, 
tinha como referência o Código de Contabilidade da União, de 1928. 
Leram bem? 1928. Eu nem era nascido! 
Passei a trabalhar na solução. Não podia conformar-me com 
este fato: meu país não tem disciplina legal para dois assuntos de 
tamanha importância! E o mais grave: o contrato administrativo 
derivava diretamente da licitação, da concorrência pública. E é 
matéria de Direito Público, inteiramente distinta dos contratos de 
Direito Privado. 
Contei com a valiosa e inestimável colaboração do maior 
craque na matéria: o mestre Hely Lopes Meirelles. Depois de alguns 
meses de trabalho, estava pronto o decreto-lei, reunindo nossas 
idéias e, sobretudo, a jurisprudência brasileira que se formara em 
torno do vácuo legal. Sarney o estudou durante três dias e voltou 
radiante. “Fantástico! Maravilha! É incrível que não tivéssemos um 
diploma como este!” E o assinou, depois, é claro, de revisto pelo 
Campeio. Decreto-Lei 2.300. 
No Brasil, há uma curiosidade intrigante. Quando um assunto 
está há anos sem solução e alguém tem a idéia de resolvê-lo, logo 
surgem as críticas. E, uma vez resolvido, aparece outro alguém para 
alterá-lo, a pretexto de aperfeiçoá-lo. Por que não fez antes? Não há 
explicação. Isso aconteceu com o Decreto-Lei 2.300. No Governo 
Itamar Franco, alteraram consideravelmente aquela legislação e 
conseguiram estragá-la em vários aspectos (Lei 8.666). Mas temos, a 
despeito dos remendos, um estatuto legal da licitação e do contrato 
administrativo, criado originariamente por um decreto-lei, veículo 
que soubemos usar melhor que os militares, em homenagem à 
Conferência da OAB em Belém do Pará. 
Na história recente do Brasil, essa legislação é a mais 
importante ao lado da Lei de Responsabilidade Fiscal, editada no ano 
2000 pelo Governo Fernando Henrique, coordenada pelo Ministro 
Martus Tavares e elaborada pelos excelentes economistas José 
Roberto Afonso e Guilherme Gomes Dias. Não sei se tiveram ajuda de 
algum jurista. Se não tiveram, é obrigatório o registro: terá sido a 
primeira vez que economistas escreveram lei corretamente. E que lei! 
Claro que contra ela os políticos também se insurgiram, à frente toda 
a bancada federal do PT, sob o comando de Lula e de Palocci, que 
parece haver se penitenciado do erro, quando virou governo. Até ação 
direta de inconstitucionalidade propuseram contra o estatuto que se 
editava para acabar com o velho costume de gastar dinheiro público 
sem qualquer controle. 
Registro o fato, para que os advogados jovens possam discernir 
entre a mentalidade política e a realidade jurídica. O político 
brasileiro é sempre contra tudo o que venha do adversário. Não 
reconhece a qualidade jurídica das iniciativas sérias. Depois que vira 
governo, delas se utiliza com entusiasmo e até com exagero. E mais: 
chega a propagar aos desinformados que eles foram os autores da 
idéia. 
Assim, Fernando Henrique Cardoso se insurgiu contra meu 
parecer que anulou os juros fixados na Constituição. Quando virou 
governo, foi o que mais utilizou a liberdade de aumentar a taxa de 
juros na política monetarista. E assim os petistas fizeram com ele, 
quando mandou para o Congresso o projeto da Lei de 
Responsabilidade Fiscal. Votaram contra, criticaram, espernearam, 
e, um dia, viraram governo. A lei de Fernando Henrique passou a ser 
elogiada e aplicada pelos petistas com religioso entusiasmo. Mas os 
petistas têm uma particularidade: não aplicam a lei contra os 
correligionários que a infringem. 
78 
Volto ao meu trabalho, iniciado na Consultoria Geral da 
República. Tinha que estudar e elaborar projetos de lei ordenados 
pela nova Constituição. No Ministério, havia menos tempo. Mas 
trabalhar era preciso. Sem a mesma amplitude e importância do 
estatuto das licitações públicas e do contrato administrativo, outras 
medidas legislativas precisavam ser implantadas, sobretudo para 
limpar a legislação da ditadura que se acumulara durante vinte 
anos, o chamado “entulho autoritário” e que continuava vigente. 
No meio desse mundão de serviço, minha secretária no 
Ministério da Justiça entrou em minha sala e educadamente me 
disse: 
— Ministro, desculpe interrompê-lo. Há um senhor ao telefone, 
diretor da penitenciária, dizendo que um dos reclusos é seu amigo de 
infância e quer falar com o senhor. Chama-se Antônio, mas pediu 
para dizer que é o Tonho, filho do Zé do Eliazé. 
— Qual a linha? 
— Linha dois. 
Atendi. O diretor da penitenciária passou-me o Tonho: 
— Saulo, é o Tonho da Santa Luzia. Você se lembra de mim? 
— Claro que me lembro! Que diabo é essa história de você estar 
cumprindo pena? Que crime você cometeu? 
— Homicídio. 
— Meu Deus! Você matou quem? 
— Matei a Iracema. 
— Jesus! Quando eu saí de Cravinhos, você era o namorado 
dela. O que aconteceu para justificar essa tragédia? 
— A gente se casou. Chegamos a ter filhos. Depois, a sem 
vergonha me traiu. E não foi com um só, não; foi com vários. 
Na minha memória, veio aquela brincadeira do telefone de 
barbante nas caixas de pó-de-arroz: “Faço o que você quiser!”. 
Coitada da Iracema. Coitado do Tonho. 
— Eu queria que você fizesse alguma coisa por mim. Você é o 
Ministro da Justiça. Acho que pode me ajudar. Diminuir a pena. 
Arrumar uma provisória. 
— Tonho, preste atenção: o Ministro da Justiça nada tem que 
ver com o Poder Judiciário. Todo mundo faz confusão. Eu não posso 
fazer nada. A penitenciária é estadual. O Brasil não tem 
penitenciária federal, o que é uma vergonha. 
Aliás, o sistema penitenciário brasileiro caminha para uma 
situação caótica. A superlotação e as condições degradantes dos 
presos, tratados como animais, levaram um juiz de Minas Gerais, em 
Contagem, à loucura: mandou soltar dezenas de condenados por 
assaltos, homicídios e estupros. Nossos governos, estaduais e 
federais, em pleno século XXI, ainda não sabem da existência de 
Beccaria.37 
O pobre do Tonho nada tinha com isso, mas eu já estava com a 
mania de constantemente me irritar por não termos presídios 
federais38 e invocava essa falha até se estivesse conversando sobre 
futebol. Com mais paciência, expliquei-lhe que não podia mexer no 
caso de sua condenação; mas, por desencargo de consciência, 
prometi mandar, e mandei, um estagiário do meu
escritório para 
estudar algo, uma revisão ou qualquer coisa que o fizesse sentir-se 
atendido por mim. Sobretudo garantir-lhe tratamento humano no 
cumprimento da pena. Embora estivesse afastado da advocacia, o 
escritório continuava funcionando, proibido por mim de pegar 
causas contra a União, o que deixou meus colegas furiosos. Advogar 
contra o Governo Federal era, naquele tempo, o filé-mignon da 
profissão. 
79 
Collor já estava eleito, e, em dezembro, Sarney convocou-nos 
para uma reunião no Planalto: Ministro da Fazenda, Maílson da 
Nóbrega; Ministro do Planejamento, João Batista Abreu; Ministro do 
Exército, General Leônidas Pires Gonçalves; Ministro da Aeronáutica, 
Brigadeiro Otávio Moreira Lima; Ministro da Marinha, Almirante 
Henrique Sabóia; Ministro Chefe da Casa Civil, Ronaldo Costa Couto; 
e Ministro Chefe do SNI, General Ivan de Souza Mendes. Estava 
ausente de Brasília o Ministro das Relações Exteriores, Roberto de 
Abreu Sodré. 
Ninguém sabia o objetivo da reunião. O Presidente apenas nos 
convocou, porque desejava discutir conosco uma colocação do 
Ministro da Fazenda de que a inflação, que estava flutuando sem 
 
37 Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, em 1764, revolucionou o pensamento 
jurídico do direito penal em seu livro Dei delitti e delle pene, preconizando a 
abolição das torturas e outras condições desumanas no cumprimento das 
condenações. Ele tinha apenas 26 anos de idade. 
38 O Governo Lula construiu o primeiro no Paraná. 
grandes saltos ao longo dos últimos meses, iria, a partir do mês de 
janeiro, disparar. Não por motivo do Governo Sarney, que encerrava 
o ano com superávit primário e sem déficit mas porque as 
expectativas quanto ao novo governo e seu plano econômico iriam 
desencadear uma inflação de natureza psicológica nos meses 
seguintes (coisas dos economistas, inflação psicológica, deixa estar!), 
e essa atingiria números estratosféricos. Isso iria provocar um caos, 
e a solução proposta pelo Ministro Maílson da Nóbrega era que o 
Presidente Sarney fizesse como o Presidente Raúl Alfonsín — que até 
hoje é condenado por isto —: renunciar ao seu mandato, ou 
antecipar a posse de Fernando Collor. 
O Presidente abriu a reunião, dizendo que ouvira da área 
econômica uma análise sombria sobre o que se esperava dos 
próximos três meses, até o fim do governo. Ninguém seguraria a 
inflação. Então, resolveu reunir os ministros da área militar, da Casa 
Civil, da Casa Militar, do SNI e da Justiça, para ouvi-los. Na abertura 
da reunião, Sarney disse que deveríamos deliberar sobre a proposta 
dos dois ministros da área econômica: Sarney devia renunciar, e 
imediatamente! 
“Puta merda! O que é isso?”, pensei eu. Outra renúncia na 
minha vida? Chegava a do Jânio, que fora um estrago, acabara em 
mudança do regime para parlamentarismo e desaguara na ditadura 
militar. É sempre assim: um golpe de Estado justifica outro. 
Estávamos no fim de um governo democrático. O país tinha um 
presidente eleito pelo voto direto. No que resultaria uma renúncia 
àquela altura? Seria golpe? Ou pretendiam armar confusão para, no 
meio do pega-pra-capar, voltar a um outro tipo de ditadura? 
Então Maílson explicou sua tese, com apoio de João Batista 
Abreu: 
— Não há mais como segurar o estouro da inflação. Nos 
próximos meses, a política monetária ficará fora de controle. Tenho 
que admitir: o Plano Verão fracassou.39 O Presidente eleito, Fernando 
 
39 Quase bati palmas. E pensei naquela pergunta chata: eu não falei? 
Collor, e sua já escolhida Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de 
Mello, estão dando entrevistas incendiárias e insinuando medidas 
drásticas que irão tomar. O empresariado e as fontes de produção 
vão disparar, numa corrida de aumento de preços insuportável. Não 
sabemos a proporção da crise nos últimos meses de nosso Governo, 
mas será catastrófica. Se o Presidente renunciar agora, ou antecipar 
a posse do eleito, as expectativas serão revertidas e, em caso de 
renúncia, assumirá o Governo o Dr. Ulysses Guimarães. 
João Batista Abreu era um pouco delicado demais, tinha uns 
trejeitos de mãos, falava afetado. Não prestei atenção no que ele 
disse. Minha cabeça já estava a mil por hora. O que estão propondo 
que façamos com o Brasil? Deixar a bomba para o Dr. Ulysses seria 
um ato terrorista. Antecipar a posse de Collor exigiria mudança 
constitucional a toque de caixa. De qualquer maneira, haveria 
confusão lascada. 
80 
— O Dr. Ulysses está de acordo? — perguntei por instinto de 
advogado que interroga testemunha mentirosa. 
— Está — respondeu João Batista. 
No Governo, há um ritual iniciado nos primeiros dias da 
República. Em reunião de ministros, fala em primeiro lugar o titular 
do ministério criado antes dos outros. O primeiro ministério criado 
na República foi o da Justiça. E eu ia falar antes. Sarney me passou 
a palavra: 
— Senhor Presidente, queira me desculpar — comecei eu com 
calma —, mas os ministros da Fazenda e do Planejamento estão 
propondo uma solução teratológica! É loucura de camisa-de-força. 
Acabamos de voltar à democracia com o nosso Governo, temos uma 
Constituição legitimamente votada por uma Constituinte livre, 
estamos com um Presidente da República eleito pelo voto direto, cuja 
posse está marcada para o próximo mês de março, o sistema 
institucional funcionando, tudo começando de novo e bem. Um 
impacto como este — a renúncia do Presidente da República — pode 
balançar os alicerces da democracia brasileira, ainda uma criança, 
que está dando seus primeiros passos. Tem apenas cinco anos. 
Tanto os brasileiros como os países do resto do mundo não 
entenderão um gesto tão imprudente, senão doidivanas como esse. 
Seremos vistos como irresponsáveis. Considero a proposta uma 
traição não somente ao Presidente da República, mas ao Brasil. 
— Traição! Não aceito essa palavra. É muito forte — retrucou 
Maílson. 
— Vai aceitar, sim senhor — disse o General Leônidas, dando 
um tapa na mesa. 
Sarney tem um domínio absoluto dos nervos nessas situações. 
Inteligente e perspicaz, queria descobrir o que estava por trás 
daquilo. E pediu calma aos ministros. Solicitou ao General Leônidas 
que esperasse sua vez de falar, pois seria o próximo depois do 
Ministro da Marinha, na ausência do Ministro das Relações 
Exteriores. Mandou que o Ministro da Justiça concluísse. 
— Pedindo vênia ao senhor Ministro da Fazenda — continuei 
eu com a macia conversa de advogado —, o termo traição é o único 
cabível. O Presidente, ao tomar posse, que já foi tumultuada na 
época, jurou cumprir a Constituição, defender o país, promover o 
bem geral, sustentar a união e a integridade do Brasil. 
Vendo Leônidas do meu lado, aproveitei para usar argumentos 
que sensibilizam os militares: 
— A renúncia, assim, é uma deserção de suas funções, da 
chefia do Governo, do comando supremo das Forças Armadas e uma 
traição ao juramento feito, pois a anomalia pode causar impacto nas 
instituições, sempre muito submetidas às paixões políticas e às 
ambições pelo poder. É melhor não provocar a quebra da regra do 
jogo. Se os últimos meses vão ser difíceis, vamos enfrentá-los. 
Tomei um fôlego e continuei: 
— Creio que a culpa pode ser dos atuais discursos do Collor, 
mas em grande parte foi do Plano Verão, executado à base de 
portarias e de alergia à legalidade. Tudo o que se faz fora da lei acaba 
em desordem. Segundo aprendi, aqui no próprio Governo, o fracasso 
dos planos econômicos deve-se ao fato de se tentar a estabilização 
financeira apenas no âmbito federal. Deixaram-se de lado, ou não se 
conceberam, medidas
que impusessem austeridade fiscal aos 
estados e aos municípios. Com todo o respeito aos economistas, não 
se combate inflação só de um lado do campo, enquanto do outro há 
uma farra de gastos acima das receitas.40 Mas que haja apenas a 
desordem monetária, sem contágio da ordem institucional. Minha 
opinião é esta: o Presidente deve passar a faixa ao Presidente eleito, e 
não fazer como o General Figueiredo fez com ele, fugindo pelos 
fundos. 
O General Ivan de Souza Mendes votou com os ministros da 
área econômica, Maílson e João Batista.41 
Foi a vez do General Leônidas falar. Ferveu e reagiu a ele, e 
disse em voz alta: 
— Fica quieto, Ivan! Se você insistir nesse assunto, nós 
discutimos lá fora: só eu e você. 
Os ministros militares votaram com o Ministro da Justiça. 
Inclusive o General Bayma Denis, sempre muito atento a tudo e uma 
espécie de termômetro entre o passado recente e o nosso nervoso 
presente. O Ministro Costa Couto, especialista em panos mornos, 
preocupou-se mais com a hipótese de o Leônidas dar um murro no 
Ivan quando saíssem, do que com a idéia da renúncia; e escusou-se 
de dar qualquer opinião, como bom mineiro. 
Sarney encerrou a reunião, dizendo que não tinha nenhuma 
 
40 Meus “grandes” conhecimentos da matéria eram “cola” de observações de Pérsio 
Arida que, após sair do Governo, aperfeiçoou seus estudos e amadureceu a idéia da 
responsabilidade fiscal, aplicada muito mais tarde no Plano Real. Em alguns 
encontros, comentando o Plano Cruzado, a conversa sempre começava com a 
pergunta que não queria calar: onde foi que nós erramos? 
41 Esse voto do Ministro Chefe do SNI, ligado às Forças Armadas, fez-me lembrar o 
Barão de Itararé: há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira. 
decisão a tomar naquele momento, mas que iria pensar no assunto. 
Pediu que Leônidas e eu ficássemos, pois tinha outra matéria a 
tratar conosco. Era nada. Quis ganhar tempo para o Maílson ir 
embora sem atropelos. Eu aproveitei para sugerir: 
— Põe esses dois para fora! O anunciado estouro foi provocado 
por eles com aquela maluquice do Plano Verão, elaborado sem a 
assistência de juristas e num momento em que esse tipo de solução 
já estava desacreditado! 
Esses grandes erros do Governo, de todos os governos, cada 
qual com os seus erros próprios e impróprios, são depois 
desmentidos e tudo fica por isso mesmo. É bom lembrar de Sérgio 
Porto (Stanislaw Ponte Preta), que observou: 
“No Brasil, as coisas acontecem, mas depois, com um simples 
desmentido, deixaram de acontecer.” 
Serve para muitos outros fatos, os antigos e os modernos. 
81 
Sarney começara seu governo obstinado a dar ao país todas as 
liberdades democráticas. Liberou geral, até o partidão comunista que 
não havia conseguido voltar mesmo na era Juscelino. E, ninguém se 
lembra, mas havia censura no rádio e na incipiente televisão, 
tolerada pelos mais democráticos governos anteriores ao golpe 
militar. Sarney acabou com ela. 
No Governo Juscelino, a Lei de Imprensa (Lei nº 2.044) 
considerava cri-me a crítica às “autoridades constituídas”. Na 
ditadura, foi revogada por uma lei pior (Lei nº 5.250/67), que passou 
a considerar tudo como crime, e a responsabilidade criminal podia 
ser transferida de uma pessoa para outra. Por exemplo: se alguém, 
no exterior, escrevesse um artigo contra o regime, prendia-se o chefe 
de redação que autorizasse a publicação. Tempos duros. Esse 
monstrengo dura até hoje, neste começo do século XXI. 
Nós, porém, fizemos esse entulho jurídico cair em desuso. O 
Judiciário ajudou muito, menos em alguns setores que permitiram o 
surgimento da indústria das indenizações civis contra jornais e 
jornalistas. O problema, porém e naquela hora, não era lei alguma. 
Era uma nova renúncia. 
Não seria no fim de seu governo que Sarney provocaria um 
impacto com a renúncia, ato que balançaria as instituições pelas 
quais tanto lutou desde o primeiro dia de sua posse. E ninguém, em 
sã consciência, poderia prever o resultado. Manteve os dois 
ministros. 
Fui jantar com ele. Fazer-lhe companhia. O dia tinha sido 
emocionalmente massacrante. No Palácio da Alvorada, Dona Kyola, 
mãe de Sarney, estava em frente à televisão, assistindo a uma 
entrevista de Fernando Collor, que ainda falava mal do Presidente, 
ameaçando mundos e fundos, tal como fizera na campanha eleitoral: 
— Esse moço vai acabar mal — disse Dona Kyola, quando 
chegamos perto. 
Sarney agüentou, transmitiu o cargo a seu sucessor no mês de 
março, quando a inflação bateu em 84,32%, e isso em virtude das 
medidas anunciadas pelo próprio Collor, pois, até dezembro anterior, 
o surto inflacionário estava sob controle. E o mais importante: a 
democracia era uma conquista irreversível, e o desemprego (para 
inveja de muita gente) estava em 2,7%, muito abaixo dos 10% 
deixados pela ditadura. Era o que interessava a Sarney. O novo 
Presidente empossado confiscou a poupança do povo brasileiro e 
acabou posto para fora, não pelo confisco, mas pela imoralidade que 
atribuía aos outros. Dona Kyola vaticinou, e os anjos disseram 
amém. 
Na última reunião do Ministério do primeiro Governo Civil 
depois da ditadura, uma semana antes da posse de Fernando Collor, 
Sarney fez um discurso demonstrando que, apesar das fantásticas 
dificuldades políticas e institucionais, muita coisa fora conquistada, 
entre elas o desemprego de apenas 2,7%, número que mata Lula de 
inveja, já que ele se proclama melhor em tudo. 
Enumerou uma lista expressiva de melhorias. Franqueada a 
palavra aos ministros de Estado, fui o primeiro a falar. Dei-lhe mais 
um título: o de direito autoral da democracia. Claro que o regime 
democrático brasileiro foi conquistado pelo esforço de muita gente, 
muito sofrimento, muito sacrifício. Pelas greves dos sindicalistas no 
Estado de São Paulo, inclusive Lula, apoiadas por lideranças 
expressivas, Franco Montoro, Eduardo Suplicy, Dalmo Dallari, José 
Carlos Dias, o destemido Tito Costa, que organizou plantão em praça 
pública para enfrentar a ditadura. Passaram por lá Mário Covas, 
Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, até Fernando Henrique Cardoso, 
em conduta absolutamente sincera e convicta, por incrível que 
pareça. 
Mas a costura final da democracia em Estado de Direito o país 
deve à paciência e à habilidade de Sarney, quando assumiu a 
presidência da República, sem nenhuma legitimidade, criticado e 
confrontado, que nos levou à Constituinte, assegurando as 
liberdades públicas e políticas. Segundo a lógica de Marilena Chauí, 
filósofa do PT, Sarney deve ser odiado por isso, posto que o PT, 
naquela época, apenas atrapalhava. Não tinha a menor vocação para 
elaborar as regras fundamentais das instituições democráticas, coisa 
da decadente burguesia. 
82 
Vários ministros falaram, despedindo-se e declarando-se 
honrados de haverem servido sob a presidência de José Sarney. 
Dentre eles, Maílson da Nóbrega, que, naquele instante final, fez um 
discurso um tanto mea culpa e demonstrou grandeza de alma ao 
despedir-se do Governo, reconhecendo que as dificuldades 
econômicas não impediram a conquista maior: o fortalecimento das 
instituições. 
Depois, falou Roberto Cardoso Alves, Ministro da Indústria e 
Comércio, relatando sua gestão no ministério e fazendo um enorme 
elogio a Maílson da Nóbrega, que, inteligente como é, entendeu 
tratar-se de uma “encomenda” de Sarney, amigo íntimo do Robertão, 
para um final feliz em suas relações, na despedida do poder. 
Cardoso Alves encerrou sua fala comunicando que havia 
vendido por licitação pública as vacas leiteiras da Companhia 
Siderúrgica Nacional. É isto: a CSN criava
vacas. E eram gordas. 
Ronaldo Costa Couto saiu do governo e dedicou-se a escrever 
história contemporânea, o ótimo Matarazzo42 e, entre outros, o seu 
excelente livro Brasília Kubitschek de Oliveira, que inspirou a 
minissérie JK, de Adelaide Amaral, escondida pela Globo nas 
transmissões das madrugadas. Não sei se Costa Couto um dia irá 
lembrar-se de escrever sobre as vacas da Companhia Siderúrgica 
Nacional. Mas elas existiram. 
83 
Clotilde entrou em minha sala esbaforida, fechou a porta e 
disse, gaguejando: 
— Chefe, aconteceu algo incrível. Hoje, na saída da escola das 
crianças, o motorista, como de costume, atrasou-se, e eu fiquei com 
elas para mais um papo, pois, além de conquistar a confiança, estou 
arrancando coisas aos pouquinhos, gota a gota. E, hoje, elas me 
contaram algo fantástico: o juiz foi à casa delas. 
— O quê? 
— É isso aí. O juiz da causa foi à casa delas. 
— Como elas sabem que era o juiz? O que ele fez? A mãe estava 
junto? 
— Disseram que o juiz, acompanhado de outro homem, chegou 
 
42 Editora Planeta. 
sem avisar, hoje de manhã. A empregada deixou-os entrar e, sem 
falar com a mãe, levou-os diretamente às crianças. Elas disseram 
que ele é bonzinho. 
— Ele disse às crianças que era juiz? 
— Acho que não. Segundo elas, foi a empregada que falou 
tratar-se do juiz. 
— Mas como você sabe que é o juiz da causa? Alguém se 
apresentou, falou ser o juiz e entrou? Pode ser um juiz de futebol, 
um juiz de paz, um vendedor de Bíblia anunciando o Juízo Final! 
— Tenho certeza. Elas disseram que a mãe ficou muito 
nervosa. E tentou impedir a conversa. Elas ficaram com medo. Mas o 
outro homem chamou a mãe e a fez sentar. E o homem, que eu sei 
ser o juiz, ficou conversando com elas sobre o pai, sobre o que elas 
disseram, como haver dormido sem roupa com a namorada do pai. Aí 
eu perguntei: o que vocês responderam? 
— Que estávamos com medo da mamãe; que a mamãe que 
mandou falar e agora mandou falar que ela não mandou. 
Clotilde prosseguiu: 
— Pelo que me contaram, as coisas ficaram confusas. 
Disseram, porém, que ele passou a mão na cabecinha delas, falou 
para terem paciência com a mãe e que um dia, muito breve, 
voltariam a receber a visita do pai, o que as deixou na maior 
felicidade. Daí minha conclusão bastante óbvia: era o juiz da causa. 
Foi minha vez de gaguejar. Teria sido possível? Que fantástico 
esse jovem magistrado! A lei processual, isto é, o Código de Processo 
Civil, permite a inspeção judicial, art. 440: “O juiz, de ofício ou a 
requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, 
inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato, que 
interesse à decisão da causa”. Mas, em meio século de advocacia, eu 
nunca tinha visto um juiz do cível usar desse permissivo legal, 
sobretudo sem observar os preceitos processuais que burocratizam a 
diligência. 
Em geral, os meritíssimos sentam-se em suas cadeiras de 
magistrados e não tiram a bunda de lá, a não ser para ir embora. Em 
São Paulo, jamais aconteceu. Mais tarde, conversando com colegas 
meus de outros estados, eles até riram. Nunca sequer souberam de 
algo igual. 
Mas o jovem juiz da minha causa, sem alarde, sem avisar as 
partes, quietinho, aplicou o art. 440 de um jeito muito especial e foi 
fazer a inédita inspeção judicial na casa das crianças, para ouvi-las, 
para sentir de perto o drama que viviam, para descobrir se era 
mentira ou verdade o que constava da brutal gravação anexada ao 
processo. E dispensou as formalidades do Código de Processo Civil, a 
começar pelo acompanhamento da diligência pelas partes. Se 
observada a regra, a confusão seria total. O juiz teve que decidir: ou 
observava a regra ou observava as crianças. Pelo que Clotilde apurou 
junto às crianças, o magistrado não ficou sabendo de tudo com 
absoluta segurança. Mas verificou o pavor das crianças diante do 
assunto. 
E o outro homem? Quem era o outro homem? 
84 
Já estava encerrado o expediente. Mas o escrivão trabalhava 
até tarde. Tentei o telefone. O dia era de sorte. Ele se encontrava no 
cartório: 
— Hoje de manhã? Não estou sabendo de nada! — respondeu 
ele à minha pergunta ansiosa. 
Insisti: 
— O senhor tem certeza de que não sabe de nada? O juiz não 
foi à casa dos filhos do Sr. Olavo Brás, aquele do processo de visitas, 
da gravação, da ameaça do suicídio... 
— O processo eu conheço, Dr. Saulo. Sei, sim, do que se trata. 
Mas posso assegurar-lhe que o juiz não fez qualquer diligência desse 
tipo. Eu saberia. O senhor está dizendo que foi hoje de manhã. Ora, 
o expediente aqui na vara é à tarde. O juiz iria fazer diligência fora do 
expediente? E sem levar ninguém com ele? Lembre-se, doutor, de 
que o art. 441 diz que o juiz, na inspeção direta, deve ser assistido 
por um ou mais peritos. 
— Não, meu caro. A lei diz que o juiz poderá ser assistido e não 
que deverá. O magistrado pode muito bem dispensar a assistência 
pericial quando a julgar desnecessária. Mas ele levou alguém 
consigo. Um senhor o acompanhava, segundo a empregada da casa. 
— Impossível — retrucou o escrivão. — Eu saberia. Não 
convocou nenhum servidor para acompanhar a diligência. O senhor 
tem certeza de que foi ele? 
— Tenho. Amanhã passarei por aí. Dê uma sondada em Sua 
Excelência. Estarei aí na primeira hora. 
Naquela noite, dormi mal. Fiquei muito agitado com a notícia e, 
confesso, sem saber se era realmente uma notícia ou uma hipótese 
sonhada pela Clotilde. Mas, se as crianças falaram das perguntas 
sobre o pai, de detalhes sobre dormir com a namorada dele e 
disseram ter medo de contar que a mãe as proibiu de falar, era muita 
confusão para a cabeça delas e para a minha também. Só podia ser 
verdade. 
Esse Olavo Brás ganhou na loteria. Seu caso estava nas mãos 
de um dos melhores juizes do país. Eu conhecia as qualidades do 
jovem magistrado, a inteligência, a cultura, a seriedade, a dedicação 
e o apostolado com que exercia a Magistratura. Mas não esperava 
tanto. Não esperava que fosse cumprir o máximo dever de um juiz 
em casos como esse: buscar ele próprio a verdade. Poucos fazem 
isso. Ou quase ninguém. 
85 
Na minha vida, conheci juizes formidáveis, dos quais guardo 
lembranças entusiastas e profundo respeito. Mas sofri também 
grandes desilusões. Algumas lamentáveis. Vou contar uma delas. 
Terminado seu mandato na Presidência da República, Sarney 
resolveu candidatar-se a Senador. O PMDB — Partido do Movimento 
Democrático Brasileiro — negou-lhe a legenda no Maranhão. 
Candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnações fundadas em 
questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo Tribunal Federal. 
Naquele momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em 
meio recesso, e o Ministro Celso de Mello, meu ex-secretário na 
Consultoria Geral da República, me telefonou: 
— O processo do Presidente será distribuído amanhã. Em 
Brasília, somente estão por aqui dois ministros: o Marco Aurélio de 
Mello e eu. Tenho receio de que caia com ele, primo do Presidente 
Collor. Não sei como vai considerar a questão. 
— O Presidente tem muita fé em Deus. Tudo vai sair bem, 
mesmo porque a tese jurídica da defesa do Sarney está 
absolutamente correta. 
Celso de Mello concordou plenamente com a observação, 
acrescentando ser indiscutível a matéria de fato, isto é, a 
transferência do domicílio eleitoral no prazo da lei. 
O advogado de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo 
profissional. Fez excelente trabalho e demonstrou a simplicidade da 
questão: Sarney havia transferido seu domicílio eleitoral no prazo da 
lei. Simples. O que há para discutir? É público e notório
que ele é do 
Maranhão! Ora, também era público e notório que ele morava em 
Brasília, onde exercera o cargo de Senador e, nos últimos cinco anos, 
o de Presidente da República. Desde a faculdade de Direito, a gente 
aprende que não se pode confundir o domicílio civil com o domicílio 
eleitoral. E a Constituição de 88, ainda grande desconhecida (como 
até hoje), não estabelecia nenhum prazo para mudança de domicílio. 
O sistema de sorteio do Supremo fez o processo cair com o 
Ministro Marco Aurélio, que, no mesmo dia, concedeu medida 
liminar, mantendo a candidatura de Sarney pelo Amapá. 
Veio o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney 
ganhou, mas o último a votar foi o Ministro Celso de Mello, que votou 
pela cassação da candidatura do Sarney. 
Deus do céu! O que deu no garoto? Estava preocupado com a 
distribuição do processo para a apreciação da liminar, afirmando que 
a concederia em favor da tese de Sarney, e, agora, no mérito, vota 
contra e fica vencido no plenário. O que aconteceu? Não teve sequer 
a gentileza, ou habilidade, de dar-se por impedido. Votou contra o 
Presidente que o nomeara, depois de ter demonstrado grande 
preocupação com a hipótese de Marco Aurélio ser o relator. 
Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando: 
— Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no 
caso do Presidente. 
— Claro! O que deu em você? 
— É que a Folha de S. Paulo, na véspera da votação, noticiou a 
afirmação de que o Presidente Sarney tinha os votos certos dos 
ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando 
chegou minha vez de votar, o Presidente já estava vitorioso pelo 
número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu. Votei 
contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranqüilo. Se 
meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente. 
Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e 
perguntei: 
— Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você 
votou contra o Sarney porque a Folha de S. Paulo noticiou que você 
votaria a favor? 
— Sim. 
— E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua 
vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele? 
— Exatamente. O senhor entendeu? 
— Entendi. Entendi que você é um juiz de merda! Bati o 
telefone e nunca mais falei com ele. 
86 
Daí para frente, Celso de Mello passou a sofrer um processo de 
distúrbio psicológico com relação a mim, que deve torturá-lo muito. 
Há pouco tempo, já passados quase quinze anos, o Supremo 
Tribunal julgou um caso muito interessante do ponto de vista 
jurídico. O Procurador-Geral da República pediu o arquivamento de 
um inquérito aberto contra o Senador Antônio Carlos Magalhães. 
Mudou o Governo, e o novo Procurador-Geral da República, no 
mesmo inquérito, ofereceu denúncia, sem que o pedido de 
arquivamento tivesse sido apreciado e sem qualquer fato novo. A 
questão processual penal transformou-se em matéria do mais alto 
interesse para os estudiosos. A imprensa a explorar o lado político e, 
por isso, confundindo tudo. 
Sarney, com sua eterna alma de conciliador, pediu-me que 
solicitasse a Celso de Mello estudar o assunto, considerando que já 
havia pedido de arquivamento do inquérito pelo procurador anterior. 
O novo não podia modificá-lo. Lembrei-lhe que não tinha condições 
de falar com o ilustre ministro de Tatuí, pois havíamos tido aquele 
entrevero no caso de sua candidatura pelo Amapá. Sarney ponderou 
que o incidente estava prescrito. Passaram-se quinze anos. Passei a 
desconfiar: Sarney desejava realmente o voto do Celso de Mello ou 
queria que eu fizesse as pazes com ele? 
A nova questão legal era clara: o pedido de arquivamento pelo 
Procurador-Geral não permitia a denúncia pelo novo chefe do 
Ministério Público Federal. Não me senti em condições de falar coisa 
alguma, mas, como pedido do Sarney me toca no coração, solicitei a 
um amigo comum, do Celso de Mello e meu, para falar com ele, 
inclusive lembrando votos dele no sentido da tese defendida pelo 
advogado de ACM. 
Recebeu o amigo comum, que havia sido seu colega no 
Ministério Público de São Paulo, homem honrado, culto, excelente 
advogado, de uma honestidade e boa-fé a toda prova. Mas este 
cometeu o pecado de dizer que eu tinha interesse na tese, embora 
não advogasse e nada tivesse a ver com o réu. O que faz o ilustre 
Ministro do Supremo? Afirma ao amigo comum que a tese está 
correta e manda-lhe mais três ou quatro votos seus, estudos e outros 
trabalhos, demonstrando que não se pode oferecer denúncia em 
inquérito com pedido de arquivamento. 
Meu amigo exultou com a missão cumprida, enviou-me os 
votos, e eu os enviei ao advogado do ACM, que os usou em memorial. 
Dia do julgamento. O Tribunal pleno rejeita a denúncia contra 
apenas dois isolados votos. Um deles era o do Ministro Celso de 
Mello. O outro era da relatora, que votou em primeiro lugar. Se não 
fosse relatora, teria votado diferente, depois de ouvir a quase 
unanimidade dos votos de seus colegas. 
Celso de Mello votou contra o ACM, contrariando suas próprias 
convicções jurídicas? Aqui surge outra curiosidade intrigante: José 
Celso de Mello foi Presidente do Supremo Tribunal na mesma época 
em que Antônio Carlos Magalhães era Presidente do Senado Federal. 
Os dois, como chefes de poderes, estabeleceram forte ligação pessoal. 
E ACM resolveu fazer, no Senado Federal, uma bobagem fantástica: 
a CPI do Judiciário. E teve o apoio do Celso de Mello. Vou analisar o 
melado. 
87 
O país pegou fogo. Como poderia um Poder investigar o outro? 
O comando constitucional da separação dos poderes e da harmonia 
entre eles tinha ido para a cucuia. Nas discussões que se seguiram, 
tomei o lado do Judiciário, que estava sendo acusado de lutar por 
privilégios. Escrevi artigos de jornal e fiz conferências, demonstrando 
que não se tratava de privilégios, mas de prerrogativas 
constitucionais, que não podiam ser alteradas ou violentadas contra 
a Magistratura, por intermédio de um órgão político de outro Poder. 
Ameaçavam as regras de aposentadoria dos juizes e outras proteções 
instituídas em âmbito constitucional. 
Pois Celso de Mello, Presidente do Supremo Tribunal Federal, 
isto é, chefe máximo do Judiciário, postou-se contra o Poder que 
chefiava. Mesmo se, no fundo de suas convicções, nutrisse alguma 
censura ao Judiciário, devia ser, ao menos, discreto, invocar a 
necessidade de maior reflexão, de maiores debates pelo Congresso, e 
não em uma CPI, cuidados simples para não expor à execração 
pública o Poder que comandava. “Os juizes estão lutando por pri-
vilégios”, sustentava ele do alto da Presidência do Supremo Tribunal 
Federal. Que desastre! 
Aquilo que eu dissera a Oscar Correia, isto é, que o tempo 
corrigiria o único defeito dele, que era ser muito jovem, não 
aconteceu. O tempo não corrigiu coisa alguma. 
Muitos advogados sabiam que Celso de Mello havia sido meu 
secretário na Consultoria da República e nomeado Ministro do 
Supremo por empenho meu. Mas não estavam informados do 
rompimento. Assim, alguns, quando Celso de Mello era relator de 
processo de interesse deles, vinham me pedir para solicitar o 
apressamento, dar especial atenção, aquelas conversas sempre 
expressas na costumeira frase: 
— Peço-lhe o favor de dar uma palavrinha ao ministro. 
— Meu querido colega, com esse ministro não posso dar 
palavrinha alguma, porque rompi com ele, precisamente por lhe 
haver dito um palavrão. 
Devo, porém, uma explicação a todos os juizes do Brasil: 
aquele desaviso de Celso de Mello contra a Magistratura não era 
contra a Magistratura; estava apenas tomando posição contrária à 
minha.

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