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Para Saulo, que honrará nossa Brodowski, lembrança afetuosa do Portinari Brodowski 1953 S A U L O R A M O S CÓDIGO DA VIDA 8a reimpressão Copyright © Saulo Ramos, 2007 Coordenação editorial: Pascoal Soto Preparação de texto: Fabiana Medina Revisão: Tulio Kawata Diagramação: Nobuca Rachi Capa: 6P Marketing & Propaganda Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ramos, Saulo Código da vida / Saulo Ramos. — São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2007. Bibliografia ISBN 978-85-7665-279-3 1. Juristas — Autobiografia 2. Memórias autobiográficas 3. Ramos, Saulo I. Título. 07-2513 CDD-923.4 Índices para catálogo sistemático: 1. Juristas : Memórias : Autobiografia 923.4 Esta obra é uma autobiografia, sendo de inteira responsabilidade do autor as informações nela contidas. hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee 2007 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Planeta do Brasil Ltda. Avenida Francisco Matarazzo, 1500 — 3º andar — conj. 32B Edifício New York 05001-100 — São Paulo-SP vendas@editoraplaneta.com.br CCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAA CCCCCCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA Saulo: Acho que esta citação de Rivarol foi feita pensando no seu livro: “O gênio e o talento: o historiador e o romancista fazem entre eles uma troca de verdades, de ficções e de cores para dar vida ao que não é mais.” Beijos do amigo de sempre, JÔ SOARES OOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS DDDDDDDDOOOOOOOO LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVRRRRRRRROOOOOOOO Quando chegou aos meus ouvidos a notícia de que Saulo Ramos, um dos nossos mais ilustres juristas, estava próximo de concluir um livro, confesso que hesitei. Num primeiro momento, imaginei se tratar de um livro puramente acadêmico, dirigido aos especialistas da área do Direito. Mas a notícia me havia sido dada por Jô Soares, conhecido no meio editorial como um grande descobridor de tesouros. Sem maiores delongas, pedi os manuscritos e me embrenhei na leitura do catatau: sim, os manuscritos somavam mais de seiscentas páginas. Mas foi exatamente neste momento que começou o meu drama... Durante quase duas semanas, esses manuscritos me acompanharam de maneira implacável. Carreguei-os para todos os lugares, dos mais óbvios aos inconfessáveis. Desde o momento em que li suas primeiras páginas, interromper a leitura me doía. Percebi que estava diante de um daqueles livros que nós, editores, desejamos em nossos melhores sonhos. Código da Vida é livro para ser degustado demoradamente. Nele, a pretexto de contar, com todos os detalhes, um caso curiosíssimo que viveu como advogado, Saulo Ramos entremeia essa história de suspense absolutamente verídica com sua história de vida, desde a infância nas cidades paulistas de Brodowski e Cravinhos, até os dias de hoje. Desobedecendo todas as obviedades da estrutura tradicional das biografias, Saulo Ramos constrói uma obra de qualidade espantosa, seja pela riqueza vocabular de sua linguagem, seja pela maestria com que utiliza os recursos literários de uma narrativa. Mas, como se isso não bastasse, a vida de Saulo Ramos tem ingredientes dignos das mais importantes biografias já publicadas no Brasil. Como o menino do interior chegou a Consultor Geral da República e a Ministro da Justiça? Saulo, às vezes, responsabiliza o acaso, as coincidências. Será? Os fatos que o autor presenciou na vida pública brasileira têm início no ano de 1961, quando o advogado recém-formado passa a exercer a função de oficial de gabinete do Presidente Jânio Quadros em Brasília. A partir daí, o Brasil experimentou tantas tragédias, tantas conquistas, tantos conflitos, tantas ilusões, tantas desilusões... Saulo Ramos, às vezes como espectador, às vezes como personagem dos fatos, às vezes como crítico, nos conta tudo, quase sempre sob um novo ângulo, e ainda nos revela fatos até hoje guardados em segredo. Respire fundo, leitor. Você tem uma grande história nas mãos. PASCOAL SOTO Este livro foi escrito sob coação. Denuncio os coatores: Jô Soares, Ovídio Rocha Barros Sandoval, José Maria Costa e Napoleão Sabóia. Explicação necessária Não raramente, os escritórios de advocacia cuidam de casos que, na vida real, ultrapassam, em emoção e suspense, os romances de ficção, os filmes de mistério, drama, ação e comédia, as novelas de televisão. Mas acabam nos arquivos. O sigilo profissional impõe aos advogados o dever do silêncio eterno. O público jamais conhecerá essas histórias fascinantes dos dramas humanos vividos nos processos que correram em segredo de justiça. Resolvi contornar essa regra ética, sem quebrá-la. Neste livro, narro um desses casos, trocando os nomes das pessoas. É impactante.1 Uma senhora acusa o ex-marido de praticar atos obscenos com os próprios filhos menores e propõe contra ele ação judicial para extinguir seu direito de ver as crianças. O juiz concede medida liminar e proíbe o pai de ter qualquer contato com os menores. Desesperado, o pai procura um advogado, que se recusa a defendê-lo. A prova é cruel: uma gravação. Os filhos contam atos terríveis e imorais que foram forçados a praticar. Ameaçando suicidar-se, o cliente pede socorro ao meu escritório. Meus companheiros e eu aceitamos a causa. Começa nesse instante uma longa, fantástica e emocionante história de conflitos incríveis. Ódio, psicose, amor. Atuação de um Magistrado excepcional e de um Curador de Família exemplar, expoentes do Judiciário brasileiro. Advogados trabalhando como detetives. Batalhas de inteligência, raciocínio, jogos de deduções. Enigmas que atormentam os profissionais do Direito, mas eles sabem como 1 A palavra “impactante” não existe nos dicionários. Com perdão dos ilustres cultores da nossa querida língua, inculta e bela, os dicionários estão atrasados. resolvê-los. A morosidade no andamento dos processos judiciais e a dificuldade na cuidadosa produção de provas permitem-me jogar com um tempo virtual e, assim, interromper a narração em vários pontos, aproveitando para contar fatos da vida pública de nosso país, alguns dos quais os brasileiros não conhecem em detalhes. Claro que me limito àqueles com os quais o destino fez minha vida cruzar. Descrevo as espantosas circunstâncias em que tudo isso se deu. Algumas cheias de mistérios, que até hoje não entendi. Talvez os leitores saibam explicar, decifrando os códigos da vida, que nada têm com o DNA, mas que formulam questões em torno dos imprevisíveis caminhos dos destinos. Fui um menino pobre do interior de São Paulo. Comecei a vida como caminhoneiro, ingressei no jornalismo e, depois, na advocacia pela mão de um gênio: Vicente Ráo, por meio de intriga urdida por um grande poeta, Guilherme de Almeida. Como pôde isso ter acontecido? A advocacia foi meu sacerdócio, minha desgastante e suave obsessão. Irresistível é o fascínio de lutar pela defesa do direito de alguém. Salvar liberdades, honras, patrimônios de toda espécie, materiais e morais. Poder ajudar na cura de feridas abertas na alma dos injustiçados, pobres ou ricos. Foi um longo caminho, com muitas pedras no meio, inclusive as atiradas contra mim, que usei na construção deste livro. No trajeto, porém, conheci Jânio Quadros, bebendo caipirinha num bar do Guarujá, e, depois, presenciei a tragédia de sua renúncia à Presidência da República, o que resultou em regime militar durante 21 anos. Conheço detalhes inéditos. Por que eu estava lá? É um dos códigos da vida que preciso decifrar. Os processos judiciais enfrentados na ditadura. Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Vladimir Herzog, cadernetas Prestes. Impossibilidade de defender os acusados mediante invocação do Direito. Processo que fiz desaparecer. Humilhação da Igreja Católica perante os militares. Fatos e coincidências vão acontecendo. Conheci Mário Covas, lancei-o, a pedido de Jânio, candidato a prefeito de Santos. Perdeu a eleição. O candidato eleito morreu antes da posse. Demanda no Judiciário contra a investidura do vice. Vinte e cinco anos depois, ocorre caso semelhante com a doença de Tancredo Neves, e vem a oposição à posse de José Sarney. Novamente, Mário Covas e eu envolvidos pelo destino no desate da questão, ele de um lado, eu do outro. Por que eu estava lá? Fico um pouco arrepiado, por não desvendar a codificação que esses fatos desenham em minha vida. Vem a Assembléia Nacional Constituinte, ocorrência mais importante da história contemporânea do Brasil. O que aconteceu nos bastidores? Tentativa de golpe parlamentar de Estado, quando os canhões dos militares ainda estavam fumegando. E muitos tramavam voltar ao poder. Eu estava lá. O que fiz e por quê? Aceitei participar do Governo Sarney. Passei a viver espantos sucessivos. O Brasil não tinha advogados para defender a União. Coisa fantástica! O país dos bacharéis sem defensores judiciais. E não havia, igualmente, lei que regulasse a licitação pública e o contrato administrativo. O Brasil era um país incrível. Como poderia existir sem esse mínimo de disciplina jurídica? Dá para acreditar? Não tinha sequer uma lei de defesa dos direitos dos deficientes físicos! Não possuía nada que protegesse os bens de família, a não ser uma velharia complicada do antigo Código Civil. Tantos e tão diversos problemas tive que resolver. Eram deficiências do meu país. Já que eu estava lá, o melhor era procurar as soluções em vez de perguntar o porquê de estar lá. Por que um menino do interior chegou a Consultor Geral da República e a Ministro da Justiça, quando desejava apenas ser advogado? Impeachment de Fernando Collor. Processo no Supremo Tribunal Federal. Advogado do Senado da República, o que sofri para vencer aquela causa! Fatos que nunca vieram a público. Terminado o julgamento, pensei comigo: isso nunca mais vai acontecer no Brasil. Imperdoável ingenuidade. Aconteceu e, pior, a tal ponto que o processo de Collor poderia hoje passar para o juizado de pequenas causas. Conto tudo, mas procuro ser breve, porque o principal é a história das crianças submetidas a um simbólico, mas feroz, tiroteio entre os pais separados. O julgamento emocionante, conduzido por um juiz fabuloso. E o incrível desfecho da história mais de vinte anos depois em Londres, cidade predileta dos escritores de mistérios policiais. Aproveito para narrar, sem quebra da ética, algumas histórias curiosas de várias pessoas célebres com as quais me envolvi no exercício profissional: Roberto Carlos, Che Guevara, José Sarney, Sérgio Armando Frazão, Ronaldo Cunha Lima, Alceni Guerra, Eurícledes Formiga, José Frederico Marques, Mário Simonsen, Juscelino Kubitschek, Lázaro Brandão, Celso da Rocha Miranda e outros. Espero que tais fatos esclareçam algumas interrogações daqueles que os viram acontecer e sejam úteis para as novas gerações, que ainda dependem dos historiadores, nem sempre muito fiéis, segundo tenho visto em isoladas manifestações de jornais. Mas advirto: os fatos são aqui narrados numa espantosa desordem cronológica, porém fielmente. Detesto a manipulação do passado e o mascaramento de versões. Agora elucido: não pedi a nenhum dos meus amigos para redigir prefácio a este livro. Por quê? Para não comprometê-los. Nas minhas narrativas, faço críticas amargas a ministros do Supremo Tribunal. Cheguei a mandar um deles à merda. Censuro severamente políticos, suas mazelas e mediocridades, e as tentativas de golpe na Constituinte. Denuncio os agentes da ditadura que cruzaram meu caminho. Qualquer amigo que prefaciasse este livro poderia ser considerado pelos criticados como avalista das chibatadas desferidas contra essa gente. Claro que examino, com repulsa, a putrefação do governo Lula e a patriótica corrupção do Partido dos Trabalhadores, que fundou, afundando-se, a escola da imoralidade para fazer o bem público e que acabou na vida privada de seus agentes batendo uma lamentável espécie de recorde na história brasileira das grandes vergonhas. Ou da falta delas, inclusive a de deixar os pobres cada vez mais pobres para industrializar esmolas em troca de votos. A descompostura, a desonra, a rapinagem e a iniqüidade da corrupção, explicada como singela esperteza eleitoral não contabilizada e por costumeira.2 Esperteza eleitoral vitoriosa para mais uma temporada de incontáveis desastres “nunca antes neste país” ocorridos. Todos os fatos aqui narrados são absolutamente verdadeiros, com nomes fictícios nas causas de Direito Privado. Nas questões públicas, os nomes dos políticos são expressamente mencionados. Mas, em mim, há um pouco de lirismo na paixão pela advocacia, embora tenha ela complicado minha existência com os fatos históricos dos quais participei. Lidei com todos os códigos — penal, civil, de processos, de defesa do consumidor, até com o código de Hamurabi — e acabei tendo que lidar com o código da vida. A história compõe a genética da nação. Pertenço ao meu país com todas as minhas entranhas. Não há mais tempo de mudar. Daí o dever de registrar o código da vida, a minha. 2 O cacófato é proposital. 1 Não gosto de correr na estrada. Ia de Serra Negra para São Paulo. Trocar o ar puro pela poluição. Paciência. O caso era dramático. A advocacia é quase sempre dramática. Minha secretária, nervosa, dissera pelo telefone que havia chegado um homem desejando consultar-me. Agitado, inquieto, visivelmente perturbado, de boa aparência, bem trajado, espalhou pânico no escritório. Ameaçou suicidar-se, caso eu não o atendesse. Não deu outra explicação. Sentou-se na sala de espera e lá permaneceu, aguardando que eu chegasse para atendê-lo. Não aceitou café nem quis ler jornal. Minha secretária estava apavorada. Na estrada, o guarda rodoviário fez sinal para eu parar. Olhei o velocímetro: 100 quilômetros. Na Via Anhangüera, a velocidade máxima é 110. Estacionei no acostamento e peguei os documentos no porta-luvas. Baixei o vidro. Ele aproximou-se com educação: — Bom dia. — Bom dia. Estendi-lhe os documentos do carro. — Não precisa — disse ele, olhando para o banco de trás, como se estivesse procurando alguém escondido. — Não precisa? O senhor me pára e não vai verificar meus documentos? Dei uma olhada no acostamento. Desconfiei da história. Podia ser assalto. Bandido disfarçado de guarda. Mas ele estava só. A viatura estacionada sob uma árvore era autêntica, e não havia ninguém mais por perto. — Tenho certeza de que estão em ordem — disse ele com educação. — Seu carro é Mercedes, o senhor me parece um homem de respeito. Não andaria com documentos irregulares. — Então, por que me parou? — O telefone celular. Pareceu-me que o senhor estava falando ao celular, quando se aproximava. O senhor sabe que acaba de sair uma portaria proibindo o uso do celular aos motoristas enquanto dirigem? Onde está seu telefone móvel? — Não tenho. — Como não tem? Dono de uma Mercedes, aparência de homem de negócios, e não tem celular? — Para começar, seu guarda, o senhor nem sabe se eu sou o dono deste carro, porque não quis ver os documentos. E, para continuar, posso parecer homem de negócios, mas sou advogado e detesto celular. Vou corrigir minha resposta: tenho, mas não trago! Se quiser, pode me revistar e fique à vontade para revistar o carro. Quer que abra o porta-malas? — o exagero foi proposital, para desabafar. Ele continuava olhando para todos os cantos do carro. Deixei o porta-luvas aberto, ao pegar os documentos, que ele não quis conferir. — Não, absolutamente. Nossa ordem é flagrar motoristas falando ao celular e não propriamente apreender o aparelho. — Então me parece decidido — disse eu, já um pouco impaciente. — Se não tenho o celular, não poderia estar falando. — Mas tenho certeza de que o senhor estava falando, pois segurava o volante com uma das mãos e fazia gestos com a outra! — E qual delas segurava o celular? — O senhor deve ter daqueles aparelhos chamados de “mãos livres”, que permitem conversar sem segurar o telefone, mas que tiram a atenção do motorista da mesma maneira. — “Seu” guarda, eu podia estar falando sozinho. Costumo discutir muito comigo mesmo. Ou podia estar rezando. Veja aí, pendurada no retrovisor, a imagem da santa. — Eu também sou devoto de Nossa Senhora Aparecida — disse ele, olhando a imagem com certa reverência. Recusou-se a revistar-me. É evidente que não vira coisa alguma. Apenas chutou. Era a primeira semana da proibição baixada pelo Denatran, e, na cabeça dele, um Mercedes certamente teria um motorista com celular. Mas desistiu. Disse que eu podia prosseguir viagem, despediu-se com um até logo e ainda fez continência. Arranquei, sentindo-me um pouco esperto demais e feliz com o meu celular, que não tocou durante a conversa com o guarda. Aparelho moderno. É instalado em um compartimento inacessível do carro, mas controlado por botões no volante. Na verdade, minha resistência era uma ligeira rebeldia contra as instruções do Denatran, proibindo o uso de celulares no trânsito e por portaria. Minha formação de advogado não admite proibição alguma, senão em virtude de lei. E o próprio Denatran, que implementei quando fui Ministro da Justiça, levando para dirigi-lo o Dr. Nerval Ferreira Braga,3 está hoje abusando com essa história de legislar por portaria. O meu telefone móvel, de alta tecnologia, ainda tinha esta vantagem: era invisível. Claro que posso abrir o compartimento, desplugá-lo e levá-lo comigo no bolso da camisa ou do paletó. É pequeno e leve. Incrível como esses aparelhos, que tiram fotos nítidas, mandam e recebem mensagens pela Internet, com minúsculo teclado que permite digitação de pequenos recados, torpedos e e-mails, estão evoluindo a cada dia. Fotografam, filmam e recebem televisão. Mudaram o mundo. Fizeram desmoronar até mesmo as antigas teorias criminalistas de que, em bom sistema prisional, seria possível a recuperação dos criminosos de alta periculosidade. De dentro dos presídios, os grandes delinqüentes continuam conectados com o crime, comandando assaltos, extorsões, assassinatos, falsos seqüestros. Tudo através de inocentes telefones celulares. Aliás, hoje pode-se levar no bolso nossa vida digital, Internet, e- 3 Nerval Ferreira Braga Filho, delegado de polícia aposentado, foi Delegado Geral da Polícia de São Paulo e diretor do Denatran, Ministério da Justiça, no Governo Sarney. mail, música, TV, filmes, fotos, arquivos de documentos e até telefone. Estes novos tempos são feitos de um susto atrás do outro. O homem moderno é obrigado a ter olhos dilatados. O telefone celular, na era eletrônica, lembra o canivete suíço na era mecânica: servia para tudo. Hoje, somente em pescaria. A Internet já reúne um bilhão de pessoas, internautas, e funciona admiravelmente por não ser controlada por ninguém.4 É verdade que alguns países desejam administrar a rede mundial. Já estão tentando isso por meio de organismos ligados à ONU. Há um japonês, chamado Yoshio Utsumi, secretário-geral da União Internacional de Telecomunicações, que não faz outra coisa senão conspirar contra a liberdade da Internet. Seu interesse: evitar a expansão chinesa, embora finja que defende direitos de todos os povos. Aliás, os chineses estão conquistando os mercados do mundo e, não contentes com isso, ainda roubaram a glória de Colombo na descoberta da América. Dizem que foi um navegador chamado Zheng He quem esteve por estas bandas setenta anos antes do nosso herói genovês. Modernamente, a China, além do crescimento espantoso, tanto do PIB, quanto da miséria nas áreas campesinas, construiu a mais intrincada equação do século XXI: regime comunista com uma das maiores bolsas de valores do mundo, instrumento tipicamente capitalista. Ocorreu-me uma pergunta: o que tem tudo isso a ver com o meu telefone celular? Não fosse a existência dele, eu não saberia que, no meu escritório em São Paulo, havia um homem ameaçando suicidar-se. E nem que a Bolsa de Xangai, da China comunista, quase conseguiu quebrar as bolsas do resto do mundo capitalista. 4 Uma entidade privada, chamada Icann (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers — Corporação da Internet para a Designação de Nomes e Números), sem fins lucrativos, faz a administração técnica dos endereços da web. Tem sede na Califórnia, nos Estados Unidos, embora a Internet que hoje conhecemos, a www (World Wide Web), tenha sido inventada por uma instituição suíça, de Genebra, a maior organização científica do mundo, Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (CERN). Essa agora criou o grande colisor de hádrons (LHC), enorme acelerador de partículas que vai colidir prótons em busca da existência de outras dimensões. 2 Quando eu era menino, na fazenda de meu pai, em Cravinhos, fizemos uma festa com a chegada do primeiro telefone. Antes, fincaram quilômetros de postes, pelos quais passava o fio que ligava a fazenda à cidade. Foi um primo meu, chamado Moacir, quem levou o primeiro telefone para ser instalado na ponta do fio, que já chegara à nossa casa. Pregaram-no na parede, diante de meus olhos arregalados. Era uma caixa retangular, de madeira, com o bocal para falar e um cone de baquelite para ouvir, que ficava pendurado num gancho, à esquerda da caixa. Tinha, do outro lado, a manivela, que devia ser rodada com força, dando-lhe várias voltas, para acionar a energia de baterias enormes, instaladas na parte inferior da caixa. Ainda me lembro: o nosso número era 45. Qualquer pessoa, lá da cidade ou de outra fazenda, que quisesse falar em casa, deveria pedir para a telefonista ligar no 45. Essa regra, porém, não era muito severa. Em geral, a gente acionava a manivela, a telefonista atendia e perguntava “com quem quer falar”. Bastava dizer o nome da pessoa ou informar o local: a farmácia, o armazém, o bar do cinema, o Dr. Palma, médico da cidade, o Salomão barbeiro, apaixonado por teatro, excelente declamador à moda antiga. O Salomão, é verdade, que grande artista perdido na província! Em seu salão de barbeiro (hoje cabeleireiro), declamava poesia enquanto trabalhava com tesoura, pente e pincel, em largos gestos dramáticos, que se multiplicavam nos espelhos de sua barbearia, o Salão do Salomão. Um dia, estava fazendo a barba de um cliente, enquanto declamava o “Vozes d’África”, de Castro Alves e, ao dizer “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?”, abriu o braço com tal força que a espuma do sabão de barba caiu no rosto do freguês da cadeira ao lado. Filme de pastelão, tal e qual. Furioso, o freguês atingido virou-se para ele e gritou: — Mande esse Castro Alves à puta que o pariu! — Levantou-se, enxugou o rosto, desvencilhou-se da toalha e foi embora. O outro barbeiro era o irmão do Salomão: quieto, nunca falava nada. Naquele dia, ficou com a tesoura na mão, parada no ar, e perdeu o cliente. Era comum a telefonista meter-se na conversa, dependendo do tema. Um dia, minha prima conversava com uma amiga, a respeito de um paquera das duas: — Mas ele está firme com a Sônia. Não vai dar para ir ao baile com ele no sábado. — Pode ir. Aquele caso com a Sônia já era. Desde o começo, foi fogo de palha. A Adelaide me contou que eles acabaram. A conversa ia render, quando a telefonista entrou na linha: — Vocês duas precisam tomar cuidado. O Adalberto (era o cara sobre o qual elas falavam) é muito sem-vergonha. É verdade que ele acabou com a Sônia, mas hoje mesmo telefonou para a Adalgisa e combinou com ela ir ao baile, logo em seguida da conversa que teve com você, Delsa. Delsa era a minha prima. Um dia, a gente precisava falar com urgência, não me lembro com quem. Meu pai acionava a manivela, e nada. Nenhuma telefonista respondia. Meu tio, que havia trabalhado na companhia telefônica de Sertãozinho, ensinou uma solução drástica: ligar um cabo elétrico ao fio do telefone. Com isso, lá no centro telefônico, todos os plugues cairiam de uma vez só. O sistema funcionava com cabos que lembravam cordas coloridas. Cada assinante tinha um terminal composto de um cabo e de um buraco. Quando um assinante queria falar com o outro, a telefonista puxava o cabo dele e enfiava no buraco do assinante chamado. Assim, conectava as linhas, e a ligação funcionava. No centro telefônico, era fácil imaginar a loucura durante as ligações simultâneas: os cabos todos trançados de um assinante ao outro, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima — uma verdadeira macarronada. Em meio a tudo isso, as telefonistas ainda encontravam tempo para ouvir conversas de namorados. Ainda me lembro quando o delegado de polícia de Cravinhos disse ao meu pai: “Assunto reservado, não converse pelo telefone. A Gertrudes escuta tudo” Para mim, a primeira definição de interceptação telefônica, que popularmente passou a chamar-se “grampo”, tinha um nome: era a Gertrudes. Perigo, quando caíam tempestades. Em dia de raio, não se falava ao telefone. A não ser no telefone que inventamos, estendendo um barbante entre duas metades de uma caixa vazia de pó-de-arroz. Bem esticadas, dava para ouvir o que se falava numa das metades da caixa. Por esse processo, dei a minha primeira cantada numa menina: — Iracema, está me ouvindo? — Estou. — Quer me namorar? — Quero. — Posso lhe dar um beijo? — Pode. — O que mais? — Tudo o que você quiser. Senti um calafrio. Tive uma inundação de testosterona (que hoje sei chamar-se cetona esteroidal hidroxilada), ou seja, tesão, e, com igual intensidade, um acesso de timidez. Mas, depois, soube que o Tonho, filho do Zé do Eliazé, estava namorando a Iracema. Deixei para lá. 3 Essas lembranças me distraíam mais do que qualquer conversa em meu celular, que o guarda procurava. As coisas mudaram, menos as cantadas dos jovens pelo telefone. Olhei para a santa pendurada no retrovisor e descobri que ela havia colaborado comigo para enganar o guarda. Estava, por simples coincidência, cobrindo o discreto microfone pelo qual se falava ao telefone móvel. Pobre do guarda. Fora enganado em tudo. A santa também não era Nossa Senhora Aparecida, embora a imagem fosse a mesma. Era a Santa Preta da igreja da cidade de Einsledeln, cantão de Schwyz, na Suíça alemã. Minha mulher comprara a pequena imagem e deu- lhe a incumbência de me proteger. Dizem que a estátua de madeira de Nossa Senhora ficou preta porque passou séculos recebendo a fuligem das velas na igreja medieval daquela cidade suíça. As gerações posteriores passaram a acreditar na Santa Preta. Os franceses invadiram a Suíça e roubaram a imagem da santa. Não respeitaram nem a neutralidade, nem a fé dos helvéticos. Os suíços, naquela região, são extremamente católicos, e a reação popular foi tamanha, que o governo francês mandou fazer outra imagem igual e a entregou à igreja. Era de madeira, mas limpa. Protestos gerais. Então, pintaram a imagem de preto. E fizeram várias réplicas. Uma delas, dizem, foi trazida ao Brasil. Talvez seja a que mais tarde foi encontrada no Rio Paraíba. Os historiadores estão devendo essa pesquisa ao povo brasileiro. E mais: dizem que a imagem original está hoje na Áustria. Aí meu telefone tocou. Atendi. Era minha secretária, Dona Dayse. — Ele continua aqui, no escritório. O senhor ainda vai demorar? — Diga que estou chegando a São Paulo. Terei que enfrentar a Marginal. Mas creio que dentro de uma hora estarei aí. — Pelo amor de Deus, Dr. Saulo, venha logo, porque o homem continua desesperado. Ele disse, em voz calma, mas muito firme, que vai se matar. Nós estamos todas desesperadas, com medo de que ele faça uma loucura no escritório. — Avise que estou chegando. O trânsito na Marginal Pinheiros movia-se a dez quilômetros por hora, sem se importar com o homem que queria matar-se diante de minhas secretárias. Lembrei-me da troca de cartas entre Fernando Pessoa e Sá-Carneiro, que, em Paris, escrevia para o amigo em Lisboa, anunciando que iria suicidar-se. Pessoa chegou a escrever aquele célebre poema: “Se te queres matar, por que não te queres matar?”. O problema é que Sá-Carneiro se matou. 4 — Sua secretária informou-lhe a gravidade do meu problema? — Não. Ela apenas me disse que o senhor falou em suicídio. Isso, por si só, é grave. Qual o motivo dessa decisão? — É verdade. Desculpe-me. Para ela, apenas disse que me matarei, se o senhor não aceitar a minha causa. — Posso fazer-lhe uma pergunta? — Pode. — Como o senhor se chama? — Olavo Brás. O desespero atropelara tanto aquele homem, que começou a falar de seu problema sem se apresentar, pensando que minha secretária soubesse de tudo sem ele haver contado nada. Estava realmente atordoado. E eu ia travando um diálogo dramático com um desconhecido. Olavo Brás, repetiu. Lembrei-me de Bilac, que se chamava Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, verso alexandrino perfeito, nome do poeta que sabia ouvir e entender estrelas, um tipo de loucura lírica, mais tranqüila. Esse outro Olavo falava em suicídio, tema diferente e traumatizante para mim. — O senhor precisa explicar-me a gravidade do seu problema, para que eu avalie a possibilidade de ajudá-lo. O homem tinha no olhar o brilho típico do desespero, sem lágrima, quase metálico, numa mistura de aflito e determinado. Depois de muitos anos, a gente aprende a distinguir a linguagem dos olhos. Há muita diferença entre os que fingem estar desesperados, ou supõem que estão, esperando convencer o advogado ou comovê- lo, e aqueles que realmente estão em situações que os atormentam, uns com maior, outros com menor intensidade. Somente a experiência capacita o advogado, que não é psiquiatra, a diferenciar um tipo do outro. Ali, na minha frente, estava realmente um homem em desespero contido, mas forte, pedindo socorro. Olhava para os lados e para trás, como se temesse a entrada de alguém na minha sala fechada. Com a mão trêmula, tirou um cartão de visita e o estendeu para mim. Li. Era presidente de uma empresa, da qual eu nunca havia ouvido falar. — Separei-me de minha mulher — começou ele — e ela ficou com a guarda das crianças: um menino de nove anos e uma menina de sete. Foi-me assegurado o direito de visita, e, duas vezes por mês, eu podia passar o fim de semana com as crianças. — Podia? — Podia e não posso mais. Minha ex-mulher entrou com uma ação para anular meu direito de visita e impedir-me de ver meus filhos pelo resto da vida. — Isso não existe! — disse eu sem querer, pois, em geral, não faço comentário algum antes que o cliente conclua suas histórias, por mais longas que sejam. Na advocacia, o sofá sempre começa sendo divã. É preciso ouvir tudo, para depois separar as emoções daquilo que possa merecer análise jurídica. — Foi a mesma coisa dita pelo advogado que aceitou defender- me nesse processo. O juiz havia dado uma liminar, impedindo, já de início, que eu visitasse as crianças. Narrou-me que o advogado, de posse de sua procuração, fora ao fórum inteirar-se do problema. Ele ficara no escritório do colega, esperando. Quando o advogado chegou, contou-me ele, foi imediatamente “para cima de mim”, que estava sentado no corredor e, aos gritos, disse: — O senhor ponha-se daqui para fora. Não aceito sua causa e já renunciei à procuração logo depois que examinei a prova dos autos. O senhor é um monstro! — Entrou em sua sala e bateu a porta. Fiquei apavorado. Nunca podia supor que isso aconteceria entre cliente e advogado recém-contratado. Ao menos uma explicação. Creio que eu teria direito a uma explicação! Conheço o advogado que ele contratara. De excelente conceito profissional, colega amável e, pelo que eu sabia até aquele momento, dedicado a seus clientes, batalhador. Não era do tipo explosivo que acabara de ser descrito pelo homem que ia suicidar-se, caso me recusasse a aceitar sua causa. Nesse momento, como não era de estranhar, veio a crise de choro. A determinação inicial e fria de seu olhar desabou. O homem caiu em extremas convulsões, soluços profundos. Eu mesmo, para não constrangê-lo com a presença de minha secretária, fui buscar um copo de água com açúcar e uma toalha de rosto. Pensei, então, comigo que algo de muito sério estava para me ser dito, caso ele não sofresse um enfarto durante a crise de choro convulsivo que durou uma eternidade. 5 Particularmente, tenho repugnância em ouvir falar de suicídio. Quando morava em Santos, nos meus tempos de jornalismo, uma jovem muito bonita namorava um amigo meu, que se hospedava na casa dela, pois sua mãe alugava quartos para “rapazes solteiros de boa família”. Alugou um quarto, e não deu outra: namoro. Um dia, avisaram-me que a moça havia se suicidado. Tomara formicida. Notícia traumática. Resolvi ir ao necrotério, onde estava sendo velada, pois conheci sua mãe, mulher que fazia grandes sacrifícios para a filha estudar, vestir-se bem, ser educada. Não podia deixar de ser solidário e dar um apoio àquela senhora, sempre muito amável comigo, quando ia a sua casa visitar meu amigo. Ao chegar ao velório, levei um susto. Dois parentes da moça vieram para cima de mim, desferindo golpes com seus guarda-chuvas (em Santos quase sempre chovia) e, aos gritos, acusando-me de ser o culpado pela morte da jovem. Tive que sair correndo com a máxima velocidade que os vinte e poucos anos me permitiam. Fiquei atordoado. É horrível sofrer agressão física e moral e ser acusado, aos berros, de algo tão maluco como aquilo. Tudo se passou muito rápido, de forma estarrecedora; mas foi a primeira e terrível sensação de injustiça que senti. Que sufoco! Depois, fiquei sabendo que a moça confidenciara a uma colega ser apaixonada por mim e iria tomar um pouquinho só daquele veneno, para chamar atenção sobre seu drama de amor. O pouquinho só lhe causou a morte. A colega contou para a família que o gesto extremo fora praticado por minha causa. Daí a confusão geral e as guarda-chuvadas que tomei no velório. Situação insólita e ridícula. Procurei meu amigo que, terminando o namoro, se mudara de lá, antes da tragédia. Ele me assegurou que jamais notara nada. Que a tal “paixão” por mim, se verdadeira, ficara bem dissimulada enquanto ele era o namorado. Mistérios da juventude, dramas da alma. Como jornalista, já comecei a profissão sob o impacto do suicídio de Getúlio Vargas, que alvoroçara a redação de A Tribuna de Santos, naquele dia fatídico de agosto de 1954. Episódio triste e chocante de uma de nossas muitas crises políticas. Um fato nada tinha a ver com o outro, mas suicídio era assunto que passara a me horrorizar. Como alguém pode condenar-se à morte e ser o próprio carrasco executor de tão drástica sanção? O suicida não dá direito de defesa a sua vítima — ele próprio — quando está ausente, isto é, fora de si. Creio que, na história da humanidade, o único suicídio tolerável de que se tem notícia foi o de Hitler. Automerecido. Mesmo porque Hitler não fazia parte da humanidade. Com essas idéias mórbidas sobre suicídio, resolvi participar de algo que me acenava com a imortalidade: fundar a Academia Santista de Letras.5 6 Depois de um longo suspiro, o homem, ainda em soluços, continuou: — Perdi a paciência, entrei na sala do advogado e, também aos gritos, pedi explicação. Disse-lhe que eu tinha direito de saber por que ele abandonava minha causa e ainda me xingava de monstro. Soluçando menos, contou que o advogado se dispusera a explicar e lhe dissera ter ouvido uma gravação em fita cassete, que era uma excrescência. Falara que as crianças tiveram suas vozes gravadas contando para a mãe, em detalhes, que o pai praticava com elas atos obscenos, sexo oral e mantinha relações sexuais com sua amante na frente delas, convidando-as a tirar a roupa e a deitar-se com o casal. Eram submetidas a carícias e outras barbaridades. — Tudo gravado, doutor! Com as vozes delas! — Como o senhor tem certeza de que são delas as vozes? — Depois que o advogado me disse, fui ao fórum. Quando me identifiquei, os funcionários quase me lincharam. Segredo de Justiça? Todos sabiam. O escrivão não queria deixar-me ouvir a fita. Dizia que não havia aparelho para tocá-la naquele instante. Nesse momento, o juiz estava saindo para ir embora. Eu gritei para ele: — Doutor, é mentira. Tenho o direito de ouvir essa maldita fita! 5 Comigo fundaram a Academia Santista de Letras, Álvaro Augusto Lopes, Archimedes Bava, Cid Silveira, Clóvis Pereira de Carvalho, Durval Ferreira, Edmundo Amaral, Jaime Franco Rodrigues Junot, Maria José Aranha de Rezende, Mariano Laet Gomes, Monsenhor Primo Viera e Nicanor Ortiz. O aceno da imortalidade foi ilusão. Todos morreram. Resto eu com a pergunta incômoda: quando? — Quem é esse senhor? — perguntou o juiz ao escrivão. — Aquele cujo direito de visitas Vossa Excelência suspendeu em liminar. — Por que o senhor não contrata um advogado? — Contratei, e ele veio aqui, ouviu a fita, desistiu de minha causa e ainda me chamou de monstro. — Para encurtar a conversa — continuou ele —, o juiz me olhou com certo nojo, mas autorizou o escrivão a permitir-me ouvir a fita. Doutor, eram as vozes das crianças. Autênticas. Eram elas contando aquelas obscenidades. Não sei como fizeram isso com elas. Meus filhos, minhas crianças, falando aquelas coisas horríveis e falando de mim, dizendo que as forçara a fazer aquilo. Àquela altura, já não era somente o homem que estava abalado. Eu mesmo, que, ao longo de minha vida profissional, já ouvira e vira tanta coisa inexplicável, estava chocado com a história. Agora entendia por que meu colega se recusara a continuar na causa. Sua formação moral não tolerava um fato como aquele. Faltou-lhe, porém, a dúvida: era verdade? Todo acusado merece, de início, o benefício da dúvida. O homem em minha frente concluiu: — Por isso, doutor, se o senhor não aceitar minha causa, não tenho outra forma de provar minha inocência, a não ser escrever uma carta dizendo ser tudo mentira e, em seguida, suicidar-me. Não posso viver com essa carga e não quero que meus filhos cresçam convivendo com essa mãe maluca, que as faz contar essas safadezas que elas nem conhecem. São crianças puras, ainda inocentes. O mal maior não está na acusação; está no fato de despertar na cabeça delas esses atos obscenos. Dito isso, ficou em silêncio, olhando para mim. Um mudo pedido de socorro, que entendi como não sendo para ele, mas para os filhos. No fundo de minha alma, senti que o homem não era culpado. Aceitei a causa e impus, como primeira condição, o banimento da idéia de suicídio. Não fosse a gravidade da situação, eu lhe teria dito algo de comédia cinematográfica: se você se suicidar, eu te mato. Mas retive a piada. Previ que a luta seria árdua, e ninguém poderia cogitar de fuga. Morto, o que poderia fazer pelos filhos? Aí, sim, é que a mãe, por ele chamada de maluca, iria educar as crianças e sobre elas influir pelo resto da infância e da juventude. Não se falaria mais em suicídio. Nunca mais. Nada de deserção da vida, mesmo que ela seja “un oignon q’on épluche en pleurant”.6 7 Fuga e deserção também me traumatizavam. Jornalista com alguma experiência, advogado recém-formado, meu primeiro cargo “político” foi como oficial de gabinete do Presidente Jânio Quadros em Brasília, ano zero, isto é, ano inaugural, 1961. Deus, como passa o tempo! E como se alteram as gentes e os natais. Pelé não joga mais futebol, e o próprio futebol quase acabou. Restaram apenas cusparadas, muita porrada, campeonatos fraudados. Ou um presunçoso como Carlos Alberto Parreira, que se passa por técnico e, na sua incomensurável teimosia e ignorância, fez, em 2006, 180 milhões de brasileiros chorarem pela segunda vez diante da França, com uma seleção de velhinhos prontos para o asilo. Até o segredo de Watergate, do Washington Post, não existe mais: já se sabe quem é o “Garganta Profunda”: o vice-diretor do FBI, Mark Felt. Conseguiu a renúncia de Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, por informações passadas a jornalistas. E esses guardaram o segredo da fonte durante trinta anos. “Garganta Profunda” era um filme pornô da época. A política norte-americana é um filme pornô até hoje. Henry Kissinger, ex-chanceler dos Estados Unidos, bem conceituou o problema de sua terra, ao dizer: “Cerca de 90% dos políticos existentes dão aos 10% restantes uma péssima reputação”. 6 “A vida é uma cebola que se descasca chorando”. Armand Masson. Jânio chamou-me em seu gabinete e, entregando-me dezenas de anotações, deu a ordem do dia: — Estude tudo, com atenção. E, amanhã, vá para Porto Alegre preparar a reunião de governadores, que realizarei na capital gaúcha. Fique de olho no governador Leonel Brizola. É um político complicado, que não gosta de paulistas. No dia seguinte, sexta-feira, 25 de agosto, tomei, cedinho, um avião para São Paulo. Aproveitei para marcar um almoço com a família. O vôo para o Sul sairia no fim da tarde. Meu velho pai ainda acreditava na salvação do Brasil pela lavoura (hoje chamada de agronegócio), e não da lavoura pelo Brasil. Cafeicultor teimoso, abarrotava-me de conselhos sobre o que deveria ser feito em favor do café, responsável por mais da metade dos parcos quatro ou cinco bilhões de dólares de nossas exportações. Mas, naquele dia, o almoço gorou. Quando cheguei ao aeroporto, havia um oficial militar me esperando com instruções para cancelar a viagem a Porto Alegre. Deveria eu pegar José Aparecido de Oliveira, secretário particular do Presidente, que estava num hotel na Rua do Arouche (até hoje não sei o que ele fazia lá), convocar o Castro Neves, Ministro do Trabalho, e irmos todos para a base aérea de Cumbica. Dadas as ordens, o oficial me cochichou, em tom absolutamente reservado: — O Presidente renunciou. Liguei o rádio do carro. Chiava muito. Creio que ainda era à válvula. Mas todas as estações transmitiam, nas vozes de locutores aflitos: — Jânio Quadros acaba de renunciar à Presidência da República. Auro de Moura Andrade pede que deputados e senadores permaneçam em Brasília e convida para voltar os que já viajaram. Convocada sessão extraordinária do Congresso Nacional! Disse ao oficial que podia falar normalmente. Era desnecessário cochichar. O segredo tornara-se público. José Aparecido de Oliveira, Castro Neves e eu fomos para Cumbica. No trajeto, lembro que José Aparecido exclamou: “O chefe só sabe um jeito. Toca tudo à base de renúncia!”. Para os que não se lembram, a ironia referia-se à renúncia à candidatura em plena campanha eleitoral. Depois de renunciar à renúncia da candidatura, Jânio fora eleito com esmagadora votação contra o Marechal Lott, que Juscelino, sob coação, lançara candidato. Durante a campanha, diziam que o marechal era homem culto, falava vários idiomas. Jânio não se perturbava e, com a irreverente ironia de sempre, dizia: “Com essas qualidades, pode ser candidato a porteiro de hotel. Militar no governo? Jamais. Somente o velho De Gaulle, herói de guerra, que, depois de renunciar, voltou ao poder nos braços do povo”. Em Cumbica, a agitação era enorme. Havia um ajudante-de- ordens do Presidente, major do Exército, que, reservadamente, chamava os mais íntimos para um canto. Abrindo a túnica e a camisa, mostrava a faixa da Presidência da República, que havia escondido e colocado em si mesmo. Coisas do inconsciente. Lembro que insistimos com o major para devolver a faixa. Estava irredutível e disse que somente devolveria com ordem do chefe. O chefe, porém, não sabia da história da faixa. Desistimos. A confusão era muita, para nos preocuparmos com a faixa e com o major. O debate entre os grandes, contudo, concentrava-se nos aspectos jurídicos da renúncia. Eu não era ouvido, mesmo porque em Direito não tinha qualquer autoridade. Como advogado, era calouro, a despeito de haver trabalhado no escritório do mestre Vicente Ráo, de onde saíra para Brasília no ano zero. A tese de Pedroso Horta, Ministro da Justiça, que se mantinha em Brasília no meio da confusão política, era ingênua: o Congresso deveria deliberar sobre a renúncia, aceitando-a ou rejeitando-a, como se fosse um pedido de demissão de servidor público. Horta esperava que, durante os debates, o povo viesse às ruas clamar pela rejeição do “pedido”. Jânio então repetiria o “fico” de D. Pedro, com algumas pequenas exigências, pequeninas — reforma constitucional, competência para o Presidente da República legislar por meio de decretos-leis e outras miudezas institucionais, as quais, tempos depois, o Brasil teve de engolir a força. Não se pode julgar o entendimento de Pedroso Horta com muita severidade. Se o sistema brasileiro considera a renúncia como manifestação de vontade unilateral, bastante em si mesma, na América Latina nem sempre é assim. Na Bolívia, a renúncia do Presidente da República é submetida à aprovação do Parlamento, o que acaba, quando rejeitada, em voto de confiança. Coisa de parlamentarismo. Extravagâncias da latinidade. Mas, naquele país vizinho, o povo resolveu ouvir a voz da maioria indígena, oprimida desde o descobrimento, e elegeu um índio aimará para Presidente da República. Evo Morales é a volta de Tupak Katari,7 e vamos torcer para que faça o país dar pelo menos dois passos para a frente. Começou tomando a Petrobrás e, com o auxílio de Hugo Chávez, da Venezuela, enrolou completamente a cabeça do Lula, se é que ele a tem. Se o petróleo é nosso, a Petrobrás também é. Com todo o seu esquerdismo, Lula acabou entreguista, porque entregou bens brasileiros aos bolivianos. Ser entreguista não é entregar apenas aos norte-americanos, mas aos estrangeiros em geral, mesmo que pobres. Se for para emprestar a Deus, que se dê aos pobres brasileiros, tão nossos como o petróleo. Evo Morales convocou uma Constituinte claramente derivada da Constituição vigente, pela qual ele próprio foi eleito. Os membros da Constituinte decidiram transformá-la em originária e fundamental, ou fundante. Bobagem perigosa por ser golpe assemblear de Estado. É a América Latina. 7 Tupak Katari, líder indígena boliviano, comandou, no século XIX, um cerco à cidade de La Paz, tentando uma revolução contra a opressão sofrida pelo seu povo. Foi preso e amarrado a dois cavalos, postos para correr em direções contrárias. Seu corpo foi partido em dois pedaços. Quando estava sendo preso aos cavalos, gritou que voltaria e que seria milhões. Evo Morales pretende ser a reencarnação de Tupak, com uma força a mais: é cocaleiro, lidera os cultivadores de coca. Na briga com o Brasil, parece que afinou, não por temor ao governo brasileiro, mas porque os traficantes do Rio de Janeiro ameaçaram importar somente da Colômbia. Índio quer pipoca! A Constituição do Peru, em 1992, ainda conservava o art. 307, proibindo o golpe de Estado e, com romântica ingenuidade, dizendo que, na hipótese de ser violada a democracia, todos os atos de uma provável ditadura são nulos e, quando restabelecido o regime de liberdades, os ditadores e seus colaboradores devem ser severamente punidos. Pode? Passei a entender por que Jânio tanto falava em De Gaulle, que renunciara à chefia do Governo da França e voltara aclamado pelo povo, impondo uma Constituição nova, aprovada em plebiscito, e não pelo Parlamento. E mais: escrita todinha pelo genial jurista Debret. O êxito do velho marechal francês fascinou os políticos de sua geração. Quando Jânio foi eleito, fazia apenas dois anos que De Gaulle voltara ao poder, depois de uma renúncia espetacular. A diferença consistia em que De Gaulle, entre a renúncia e a volta, levara seis anos. E Jânio quis conseguir resultado semelhante em seis horas. Mesmo sem ser chamado, meti-me na discussão e, claro, igualmente emocionado, como todos se achavam naquele instante, expliquei nervosamente e em voz alta, quase aos gritos, que renúncia de mandato eletivo em nada se comparava com pedido de demissão de servidor público. Era pessoal, ato autônomo de vontade, unilateral, renúncia de mandato, igual à renúncia de procuração que o primeiro advogado do Sr. Olavo Brás fizera para abandonar sua causa. E a renúncia da Presidência da República entregue ao Congresso Nacional constituía apenas uma comunicação de afastamento definitivo do cargo, para que não se caracterizasse o abandono. A partir daí, aplicava-se o processo constitucional de substituição. O substituto era João Goulart. Estava na China. O cargo seria, então, assumido interinamente pelo presidente da Câ- mara, Deputado Ranieri Mazzili, até que o Vice-Presidente voltasse ao território nacional e fosse empossado. Fui fuzilado por muitos olhares. Então, sugeri que ouvissem o professor Vicente Ráo. Jânio mandou consultar o mestre. E conferiu. O advogado calouro tinha razão, o que, aliás, não chegava a ser grande proeza jurídica, pois era o óbvio em Direito Constitucional. Logo a seguir, a teoria funcionou na prática: Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso Nacional, cumpriu a Constituição, declarou extinto o mandato de Jânio, deu posse a Mazzili para o exercício interino da Presidência da República. O resto todo mundo sabe. Jânio, ainda em Cumbica, pediu-me para providenciar uma passagem de navio para a Inglaterra, de preferência num cargueiro modesto, que tivesse cabine de passageiro. Passei a missão para Oswaldo Martins, líder sindical em Santos, e para Mário Covas, meus companheiros do movimento janista naquela querida cidade marítima. Providenciaram. Embarque alguns dias depois. Enquanto isso, Jânio ficaria na casa de um amigo no Guarujá. Ao nos despedirmos, ainda em Cumbica, perguntei-lhe se podia fazer uma última sugestão. Qual? — Mande o major devolver a faixa! Aos gritos e broncas, deu sua última ordem ao ajudante militar, acusando-o de estar tramando um ridículo golpe de Estado. Acabamos, nós que assistíamos à cena, sentindo pena do ajudante- de-ordens. Anos depois, instalada a ditadura, Jânio foi cassado. Fui visitá-lo, em gesto de solidariedade. Lembramos daquela passagem em Cumbica. E ele me disse: — Foram buscar a faixa de volta, com uma diferença. Em 1961, houve uma tentativa de furto por parte de um oficial. Agora, consumou-se um roubo à mão armada. Você acha que eu tive culpa? — Mais ou menos — disse eu, que estava ali para confortar um amigo com os direitos políticos cassados. — Mas você é testemunha de que eu mandei devolver a faixa! Por isso me cassaram. Foi vingança do major. — Nada disso, meu caro. Você, que é formado em Direito, mas não advoga, confiou na solução do Horta, que jurava por Deus ser necessária a aprovação do Congresso no caso de renúncia do Presidente da República. Veja o que pode causar um erro de advogado. — Mas o Pedroso Horta é um excelente advogado. — É. Creio ser um dos melhores advogados criminalistas do país. O problema, porém, é o Direito Constitucional, no qual a maioria dos criminalistas fica apenas em habeas corpus e no direito de ampla defesa. Desde aquela época, tenho muito medo ao ver um colega, advogado criminalista, no Ministério da Justiça. E torço para que não tenha de resolver questão de alta relevância institucional. Meu cliente, Olavo Brás, esperava que a procuração fosse datilografada, enquanto eu divagava nas memórias provocadas pela idéia de suicídio e por lembranças da renúncia de Jânio Quadros. Minha secretária estendeu-lhe o papel, ele assinou, e ela indagou onde poderia reconhecer sua firma. Quando ia sair, perguntei-lhe: — O senhor já ouviu falar de Sofocleto? — Não. Quem é? — Um escritor espanhol que nos deixou a seguinte frase, bastante curiosa: “Gostaria de suicidar-me, mas é muito perigoso”. Ele sorriu e foi embora. 8 Fui pessoalmente ao fórum e pedi vista dos autos fora de cartório, devidamente autorizado pelo juiz, um jovem muito correto, inteligente e de impecável formação humana e jurídica. Já o conhecia havia tempos e o admirava. Falamos um pouco sobre o caso. — Seu cliente — observou ele — disse que o outro advogado renunciou ao mandato. Duvidou de sua inocência? — Não sei. Ficou chocado ao ouvir a fita — respondi. — E a mim disse que, se eu não aceitasse sua defesa, ele se mataria. — Não me diga! E o senhor sentiu-se coagido? — De forma alguma. Vou estudar o processo e depois me manifestar para apreciação de Vossa Excelência. Ainda me restam alguns dias de prazo. Aceitei a causa porque acredito sem hesitação na inocência dele. — Doutor — disse o juiz —, deixe a sustentação oral para os debates. Por enquanto, vou apenas deferir seu requerimento para retirar os autos, levando as fitas anexadas. Cuidado com elas, embora tenhamos cópias no cofre do cartório. — E estas anexadas aos autos são as cópias ou as originais? — Já começou a questionar a prova? São as originais. Boa sorte. Saí de lá como velho advogado, carregando eu mesmo o processo, que ainda não era volumoso. Durante boa parte de minha vida profissional, fiz isso, não me utilizando dos serviços de funcionário para o transporte dos autos, salvo quando eram muitos volumes. Não era fácil vir da Praça João Mendes até a Rua Sete de Abril, do outro lado do Viaduto do Chá. Além de a distância ficar maior com o passar dos anos, em épocas mais recentes começaram a surgir os trombadinhas. De quando em vez, eu era sorteado por um ou dois deles. Os assaltos tinham formas variadas. Havia os que vinham correndo e enfiavam a mão nos bolsos dos passantes com uma rapidez incrível. Conseguiam enfiar as mãos nos dois bolsos da calça, e ainda sobrava para o bolso interno do paletó. Tudo em segundos. Havia aqueles que vinham de frente correndo, trombavam com a gente e fugiam. No chão, éramos socorridos pelos que enfiavam as mãos nos bolsos, faziam a limpeza e corriam. Depois, passava um que parecia o auditor da operação, perguntando se haviam levado muitos valores e quanto. — Dez mil dólares — respondi, como um repentista, ao “auditor”, que se mostrou espantado e feliz ao mesmo tempo. — Havia acabado de trocar no banco, porque vou viajar hoje. Dez mil dólares! Veja que prejuízo! Como não era verdade, alguém, naquele submundo, deve ter sofrido no acerto de contas. Espero que não tenha sido assassinado. — O senhor não irá mais sozinho ao fórum — foi o veredicto dos meus companheiros de escritório. Minha mesa de trabalho estava lotada de processos. Todos com prazo a cumprir. Abri um espaço e comecei a ler o processo do meu quase-suicida. A petição inicial era obra de demolição moral do meu cliente. Ouvi a fita. O impacto foi maior do que aquele sofrido na rua pelo assalto dos trombadinhas. Chamei meus estagiários e comecei: — Quero que levantem tudo sobre a vida dessa mulher. Tudo: a que horas acorda, o que toma no café-da-manhã, com quem ela sai, as amigas, os amigos, o que ela faz, o que ela lê, o que ela pensa. Quero tudo sob a coordenação do Dr. Nerval. E convoquem o Sinval para amanhã de manhã. Sinval era um exímio perito, policial aposentado e, dentre suas várias especialidades, era muito bom em examinar gravações de vozes. Tinha um aparelho, leitor de espectro, que mostrava em verde as ondas sonoras das vozes, a curva senoidal, os mínimos incidentes ocorridos com o processo de gravação de áudio. Detectava tudo, sons de primeiro, de segundo e até de terceiro plano. . Minha secretária veio avisar a chegada de uma senhora, que havia marcado uma entrevista com antecedência. Recebi-a. — Doutor, tenho um problema muito sério: meu ex-marido acaba de me tirar a guarda de meu filho. — Por quê? — Gravou minhas conversas pelo telefone com alguns namorados meus, e o advogado dele usou isso para demonstrar que eu não tenho idoneidade para educar meu filho. Ah! Meu Deus! Hoje não é meu dia. Com voz calma, movido por um idiota impulso impensado, indaguei: — A senhora não está pensando em se matar, não? — O que é isso, doutor? — respondeu com um ar de espanto, creio que duvidando de minha sanidade mental. — Não, senhor! Quero meu filho de volta. Chamei à minha sala meu colega Paulo de Tarso Santos, excelente advogado com predileção pelo Direito de Família, que estava com todo o pique para trabalhar. — A senhora vai ser atendida pelo Dr. Paulo de Tarso, especialista em Direito de Família. Conte tudo a ele. Não esconda nada. Saíram. 9 Paulo houvera militado na política, fora deputado federal, prefeito de Brasília no Governo Jânio Quadros, Ministro da Educação no Governo Jango Goulart e, na ditadura de 1964, seus direitos políticos foram cassados. Exilou-se no Chile. Vicente Ráo, dono do escritório, nosso chefe e mestre no Direito, um dia, em pleno regime militar, recebeu um pedido do ditador de turno, o General Costa e Silva. Precisava de orientação para estender a soberania marítima brasileira para duzentas milhas marítimas, porque já haviam descoberto a existência de imensas jazidas de petróleo na plataforma litorânea. Era tradição histórica a soberania das nações no limite de três milhas marítimas (cada milha equivale a 1.852 metros), o alcance de um tiro de canhão a partir do litoral. Isso valeu até o início do século XX. Depois foi resolvido estender o tiro de canhão para doze milhas, em razão de conflitos em torno da pesca. Foi quando tivemos a Guerra das Lagostas contra os pescadores franceses. Na ONU, uma interminável discussão sobre a Convenção das Nações Unidas quanto aos Direitos do Mar estava sendo vagarosamente travada desde 1950, com muitas complicações. Uma delas era o reconhecimento da zona econômica exclusiva de duzentas milhas, sem se confundir com mar territorial. E havia uma enorme resistência das nações mais poderosas à alteração daquele limite ou à introdução de novidades, porque elas pretendiam, é claro, ter o direito de extrair petróleo dessas plataformas continentais, enquanto consideradas internacionais. E essas plataformas, hoje se sabe, vão muito além das duzentas milhas. Por uma dessas ironias do destino, o Professor Ráo era amigo do General Costa e Silva, conhecimento travado em São Paulo, quando o militar fora comandante do Segundo Exército. Falo em ironia, porque a inteligência de um não combina com a mediocridade do outro; mas essas coisas acontecem. Quando Costa e Silva foi “eleito” Presidente da República, pediu ao Professor Vicente Ráo que escrevesse seu discurso de posse, transmitido pela televisão. A cada trecho que o público presente à solenidade aplaudia, Ráo, que assistia em sua casa à transmissão, levantava-se da cadeira e fazia uma mesura, agradecendo. Além de gênio, era um gozador. O problema agora era a soberania marítima, e não mais o discurso. Ráo estudou o caso, e a solução foi o Governo nomeá-lo presidente da Comissão Jurídica Interamericana, órgão da OEA — Organização dos Estados Americanos —, com sede no Rio de Janeiro. Bagunçou nosso escritório, pois passamos a trabalhar todos em pesquisas sobre o assunto. Ficamos sem o chefe por muito tempo. Tivemos que fazer pesquisas intermináveis. Não havia Internet, nem computador, nem o Google. O trabalho era feito na “enxada”, cavoucando nos livros, arquivos, jornais velhos, bibliotecas. Mas achamos um precedente: a Inglaterra havia estendido sua soberania para cento e cinqüenta milhas numa ilha qualquer, não me lembro mais onde, dentre tantas que o Império Britânico tinha pelos mares do mundo, creio que no Oceano Índico. Com isso, Ráo conseguiu obter, depois de trabalhar membro por membro da Comissão, uma declaração que proclamava ser legítimo o direito de estenderem as nações americanas sua soberania para além das doze milhas. E ainda fez uma ressalva: “desde que não colidisse com nações próximas”, caso de Cuba, próxima ao México e aos Estados Unidos. Aprovada a declaração por unanimidade dos embaixadores membros da OEA, o embaixador do México quis recuar, porque estaria contrariando seu país, cuja Constituição fixava em 12 milhas a soberania mexicana em seus mares. Ráo convenceu o nervoso embaixador de que a declaração era de princípios e de que ele estaria apenas sendo um homem de vanguarda na futura reforma da Constituição de seu país. Sossegou a fera. A essa altura, Costa e Silva já havia saído do Governo, e o novo Presidente da República era o General Garrastazu Médici. Editada a declaração da Comissão Jurídica Interamericana, passou-se a ter o ato de um organismo internacional que legitimamente autorizava a alteração da extensão da soberania marítima. Médici baixou o Decreto-Lei nº 1.098, de 25 de março de 1970, que estendeu o mar territorial do Brasil para duzentas milhas, “a partir da linha da beira-mar do litoral continental e insular brasileiro”. Nada de esperar a ONU e a convenção sobre zona econô- mica exclusiva. Foi-se direto para as duzentas milhas de mar territorial. Estava incluída a ilha de Fernando de Noronha. Alargamos nossas fronteiras pelo mar afora. Ninguém declarou guerra ao Brasil. Logo em seguida, o General Médici ligou para o Professor Ráo. A ligação foi feita pelo Ministro e Chanceler Vasco Leitão da Cunha. E Médici disse ao jurista e advogado que seu serviço, prestado à pátria, era inestimável, não havia honorários que o pagassem. — Há, sim senhor — respondeu o professor. — Tenho um ex- aluno exilado no Chile, com família grande, filhos, que precisa voltar ao Brasil. O nome dele? Paulo de Tarso Santos. Tempos diferentes aqueles da ditadura. Todos os processos foram arquivados. E Paulo voltou. O irmão dele, Maurício Santos, trabalhava no escritório. Era um ótimo companheiro. E, com a mineiridade de ambos, foi fácil encaixar o Paulo na equipe. Passou a trabalhar conosco. Felicidade geral. As duzentas milhas de nosso mar territorial deram-nos um excelente colega de trabalho, além de darem ao Brasil ricos poços de petróleo na plataforma marítima. Mas houve complicação. E que complicação! 10 Passou o tempo, e Gama e Silva, ex-Ministro da Justiça, responsável pela edição do AI-5, voltou da Embaixada do Brasil em Portugal, para onde fora nomeado na troca de ditadores. Prêmio pelos relevantes serviços. Também havia sido aluno do Professor Ráo. Não deu outra: pediu ao mestre para trabalhar uns tempos no escritório, até voltar a ter condições de reabrir sua própria banca. Ráo chamou-me e decretou: — Arrume uma sala para o Gama. Ele vai trabalhar conosco. Fiquei em pânico. Nada poderia causar-me tanto desespero. O autor do ato mais autoritário da ditadura viria para o nosso escritório? E nós, que escrevemos tanto contra a ditadura em nossas razões em quase todos os processos! Eu iria enlouquecer! No sufoco, respondi: — Não temos sala, professor — sem muita esperança de ser ouvido. — Todas estão ocupadas com dois advogados em cada uma, salvo a minha e a do Paulo de Tarso, que é muito pequena. — Ponha o Gama junto com o Paulo. — Mas, professor, pelo amor de Deus, o Gama cassou os direitos políticos do Paulo. Como vamos juntar cassador e cassado na mesma sala? — Aqui no escritório não existe política. Não me interessa o que cada um deles fez no passado recente ou remoto. Aqui se trabalha em advocacia e se cultiva o Direito. É isso que os dois têm que fazer. Ponha-os na mesma sala. E assim foi feito. Deram-se bem. Um dia, o Gama perguntou ao Paulo: — Você não recebe pensão de deputado cassado? — Não. Isso existe? — Claro. Você não sabe que, pressionado pelos militares para efetuar as cassações, eu criei a pensão para os cassados? Era uma forma de minorar as conseqüências da perda dos mandatos. Você me passe uma procuração, que eu mesmo vou requerer a pensão. Será mais rápido. Ainda conheço muita gente por lá. — Agradeço a informação, meu caro Gama — respondeu o Paulo. — Mas procuração não passo. Como advogado, o ex-ministro começava bem em nosso meio, ao dizer “pressionado pelos militares...”. Um outro colega, Maércio de Abreu Sampaio, disse-me, não sei se por ingenuidade ou mordacidade: — Temos que acreditar. Não podemos duvidar de um companheiro de trabalho. Acabou sendo um dos grandes amigos do filho do ex-ministro, Luiz Antônio Gama e Silva Filho, que também trabalhou no escritório e se tornou um excelente profissional, orientado pelo próprio Maércio. Sem política. 11 Saindo do escritório, na Rua Sete de Abril, ao fim do expediente, eu ia para o Prédio do Zarvos, na esquina da Rua São Luís com a Consolação. Ali ficava o estacionamento onde todos guardávamos nossos carros. Costumávamos ir juntos, advogados e estagiários, não apenas pelo papo durante o trajeto, mas para evitar trombadinhas. Paulo de Tarso me perguntou sobre o caso do Olavo Brás. — Vai ser duro. Já li o processo. Depois convocarei uma reunião para discutirmos. — E devolvi: — E o caso da mulher que perdeu a guarda do filho? — Creio ser mais preconceito do que direito do pai. A mulher tem realmente uma vida discutível, mas fora de casa. Sai para suas aventuras ou romances. Em casa, tem empregada, e ali, segundo apurei, comporta-se bem. Não exerce, assim, nenhuma influência maléfica na educação da criança. Vamos precisar de uma prova testemunhal muito forte. — Não será difícil convencer juizes e desembargadores, todos bem nascidos e com boas famílias, de que o filho de puta também tem direito a mãe. Paulo dava risadas com os meus nomes feios. Ele era incapaz de dizer palavrão. Ao nosso lado, ia o colega Nerval Ferreira Braga, grande amigo dele do tempo de infância, aquele que era delegado de polícia aposentado e tinha sido Delegado Geral do Estado de São Paulo. Trabalhava conosco por indicação do próprio Paulo. Nerval interveio no diálogo: — Quem mais pode amar o filho da puta do que a mãe que o pariu? Foi demais para o Paulo. — Vocês são uns bocas-sujas incorrigíveis. Chegamos ao estacionamento. Paulo pediu seu carro. Nerval e eu fomos ao restaurante Paddock, no mesmo andar do estacionamento, onde tomávamos nosso uísque de aperitivo antes de ir para casa. Às vezes, encontrávamos ali o Zé do Pé, boêmio paulistano famoso nas noitadas da capital.8 Naquela noite, ele estava lá: — Dr. Saulo — disse-me ele, quando entrei, levantando-se de sua mesa, como sempre, rodeado de boêmios. — O senhor é um advogado fantástico. Vendi uns bois de um sujeito, fazendeiro rico, 8 José Paulo Freire. que não me quis pagar a comissão. Fui dormir aborrecido e sonhei que devia consultar o senhor e, em sonho, consultei. O senhor me aconselhou a conversar com o sujeito, levando dois amigos que servissem de testemunhas. Acordei, segui seu conselho, e o sujeito confirmou tudo na frente dos meus amigos; mas insistiu em dizer que não pagava a comissão, porque não tinha contrato. — E daí? — Daí, mandei um amigo comum dizer a ele que cobraria a comissão em juízo, que eu tinha as duas testemunhas e que o senhor seria meu advogado. E ele pagou. — E meus honorários, você vai pagar? — perguntei de brincadeira. — Fique tranqüilo — respondeu ele, convidando-nos a sentar. — Na próxima vez que sonhar, eu pago. Mas Nerval e eu fomos para outra mesa do restaurante. Precisava que meu colega, ex-delegado de polícia, entrasse no caso do Olavo Brás. Para isso, ele contaria com a ajuda de seu inseparável companheiro Carlos Edson Strasburg, nosso colega de escritório, que, apesar do nome pomposo de jurista austríaco, era chamado de Casé. Eu queria dos dois uma investigação completa: vida do casal antes da separação, período posterior, comportamento de ambos. Nós mesmos teríamos que descobrir quem poderia testemunhar, já que testemunhas trazidas pelos clientes nem sempre ajudam o bastante. Acabam sendo testemunhas de canonização. Só elogiam a santidade da parte. Precisávamos de fatos, e fatos relevantes, capazes de influir na decisão da lide, mediante a demonstração inequívoca de que nosso cliente não era culpado. — Deixe comigo. Amanhã chamo o Casé, e começamos. Tomamos o último gole, despedimo-nos do Zé do Pé e saímos. Eu estava ansioso por chegar em casa, onde, mesmo a altas horas da noite, esperava-me, com paciência oriental, meu caseiro, Kazuo Kanashiro. Serviu-me um uísque com “bastante gelo”, antes do jantar. 12 — Já descobri uma coisa que me intrigou — disse Nerval, quando entrou em minha sala. — O quê? — A mulher do senhor Olavo aprontou durante o casamento, e ele parece que perdoou. — Aprontou o quê? — Adultério, dormiu com outro, corneou o bicho. — Céus! — Você esperava o que de uma mulher dessas? — Não, não, não. Meu espanto é com a segunda parte da informação. Ele haver perdoado. — Eu disse que parece haver perdoado, e não que perdoou. Ainda vou apurar. — Isso não terá grande utilidade no caso. Coitado do cliente. Mas apure tudo. E como você já conseguiu descobrir isso? — Eu sou polícia, meu caro. Ela é de uma família rica, tem muitos conhecidos, vive na alta sociedade de São Paulo. Estou conversando com muita gente que a conhece e freqüenta os mesmos lugares. Esse tipo de coisa não é difícil descobrir. Essa gente fala muito e sabe de tudo. É gente contrária ao Mário Quintana. — O que tem a ver o Mario Quintana com este caso? — Ele afirmou que sempre se sentia isolado nas reuniões sociais, porque o excesso de gente impedia de ver as pessoas. Coisa de poeta. Os fofoqueiros vêem tudo. Nerval adorava poesia. Não combinava muito com a carreira brilhante que teve na polícia e com a própria polícia, mas sabia de cor centenas de poemas, além de músicas sertanejas. Basta dizer que um de seus amigos era João Pacífico, autor de Cabocla Teresa, freqüentador do escritório para uma cachacinha no fim de tarde. Acabamos pagando um salário para o poeta sertanejo durante uma boa temporada, porque com direito autoral ia morrer de fome. E de sede. Difícil foi contabilizar o pagamento. Justificamos: assessor cultural. Nesse momento, entrou Paulo de Tarso: — Vocês estavam falando de Mário Quintana? Pensei que aqui só se conversasse sobre Direito! — Calma, Paulo. As coisas às vezes se cruzam. Você se lembra de que uma vez fomos acusados de haver roubado o revólver de Fidel Castro, quando estivemos em Havana? Os fatos mais inesperados nos surpreendem de repente. 13 Jânio Quadros era candidato a Presidente da República e me telefonou, dizendo que faria uma viagem a Cuba, cuja revolução vitoriosa fascinara a nossa geração. E me convidou. Muita gente boa na comitiva: Rubem Braga, Fernando Sabino e, entre outros,9 Carlão Mesquita, a alegria da turma tanto nos vôos, como nos hotéis e nas repetidas reuniões com os políticos cubanos. Todos americanistas convictos, desde o dia em que Fidel Castro desfilara triunfante em Nova York, sob chuva de papel picado, até porque a revolução contra Fulgêncio Batista fora consentida (e financiada) por Washington. Nessa viagem, conheci Paulo de Tarso Santos. Em Havana, o embaixador brasileiro, Vasco Leitão da Cunha (aquele que viria a ser Ministro das Relações Exteriores do Governo Médici), ofereceu um jantar para a caravana e em homenagem a Fidel Castro e a Che Guevara, nossos heróis. Quando chegaram as 9 Castelinho, Márcio Moreira Alves, Castejon Branco, Hélio Fernandes, Murilo Mello Filho, Villas-Boas Corrêa, Afonso Arinos, Quintanilha Ribeiro, José Aparecido, Murilo Costa Rego, Juracy Magalhães Júnior, Castilho Cabral, Cid Sampaio, Augusto Marzagão. duas ilustres figuras, uma depois da outra, os brasileiros cercaram Che, muito mais carismático, embora de uma simplicidade comovente. Fidel era posudo, falava pelos cotovelos, ostentando a farda militar, e, ao chegar (bem depois do Che), deixou o revólver no banheiro de entrada da Embaixada, como nos tempos de baile do faroeste americano. Da reunião, dois fatos ficaram registrados na minha memória: a inveja sem disfarce que Fidel tinha de Guevara, inveja ostensivamente aristotélica, e um susto geral: roubaram o revólver do Fidel, que saiu furioso e xingando os brasileiros, sob as desculpas do embaixador e os tapinhas nas costas dados pelo Jânio. Era evidentemente um ato de gozação, e, por isso, todos nós, quando voltamos para o Hotel Rivera, caímos em cima do Carlão. Só podia ser ele. Jurou inocência. Alguns levantaram a hipótese de ter sido o repórter Tico-Tico. E ninguém ficou sabendo quem foi, a não ser Eduardo Lago, hoje diplomata aposentado, que se nega a contar o fim da história. Tenho certeza de que ele sabe. Quando Fidel gritava tratar-se de uma relíquia de Sierra Maestra, alguém informou ser mentira: a arma era um parabélum russo 9 mm, presente recente do embaixador soviético Anastas Mikoyan, que estava iniciando seu processo de sedução do enrustido ditador. Uma plaqueta no cabo da arma comprovava a origem: a dedicatória do diplomata soviético. E ficamos sabendo disso porque o “ladrão” do revólver devolveu-o ao Embaixador Vasco Leitão da Cunha, que fez um embrulho para presente e mandou entregar a Fidel a relíquia “de la Sierra Maestra”, relíquia soviética.10 O tempo passou. Jânio foi eleito Presidente da República e renunciou. Rubem Braga e Carlão Mesquita morreram, deixando-nos com saudades imensas. Cuba tornou-se comunista e baluarte do 10 Edmilson Caminha, em seu livro Brasil e Cuba, informa que o ilustre jornalista Villas-Bôas Corrêa ficou furioso comigo porque seria minha a versão de que ele atribuiu a autoria do furto do revólver de Fidel ao repórter Tico-Tico. Estou inocente nessa coisa. Ao contrário: quando soube dessa história, desmenti-a com veemência, mesmo porque eu conhecia há muito tempo a história correta. Aquela versão estapafúrdia partiu de um grupo de assessores de Augusto Nunes, quando colhiam material para um livro sobre Jânio Quadros. Creio que o livro não foi escrito. Com o material trabalhado por aqueles assessores, o livro seria imprestável. antiamericanismo da América Latina, antes de Hugo Chávez na Venezuela. Fernando Sabino ficou rico, publicando um livro sobre Zélia Cardoso de Mello no Governo Collor. Depois também morreu. As saudades aumentam e torturam. 14 Jamais deixei de acompanhar com atenção a política de Cuba, sobretudo as relações entre Fidel e Guevara. Che era um comunista romântico e sonhador, certo de que poderia repetir a proeza de Sierra Maestra em outros países, mesmo sem o consentimento dos americanos... Depois de uma incursão malograda na África, teve a idéia de fazer guerrilha na Bolívia. Planejou tudo em Havana, até o treinamento dos guerrilheiros que o acompanhariam, entre eles Juan Pablo Chang Navarro e Julio Dagmino Pacheco. Fidel Castro conhecia os planos em todos os detalhes, inclusive locais de ação e alternativas de deslocamento. Na Bolívia, era Ministro de Estado um tal Dr. Antônio Arguedas, temível e violento perseguidor de esquerdistas, o Bush dos pobres, e, tal como o Bush rico, também apaixonado por dinheiro. Coordenou a caçada a Che Guevara, com assessoria da CIA, por ele especialmente convidada. E foi direto ao lugar onde Che estava escondido na selva, sem errar um milímetro, mais certeiro que os mísseis modernos guiados por satélite. O “míssil” parece ter sido uma guerrilheira de origem alemã, mas de nacionalidade argentina, que vivia em Cuba desde 1961 e se chamava Tânia. Tânia Bunke, nome de guerrilha.11 Ela chegou a La Paz, alugou um jipe e foi direto 11 Haydée Tamara Bunke Bíder, nome verdadeiro da guerrilheira, morreu em uma emboscada em 31 de agosto de 1967, um mês antes da morte de Guevara, que sua imprudência ajudou a consumar. Imprudência convenientemente estimulada por Fidel Castro. A emboscada foi efetuada quando Tânia e outros companheiros de Guevara atravessavam os rios Acero e Oro, em Vado del Yeso, no Vallegrande. Alguns dizem que Tânia chamava-se Laura Gutierrez Bauer. Haydée ou Laura, a guerrilheira celebrizou-se como Tânia. Seu corpo foi encontrado às margens do Rio Grande. ao esconderijo de Che. Em filme de espionagem, nada pode haver de mais óbvio. Intrigante é o fato de que Guevara, em sua ingenuidade, registrou em seu diário essa “imprudência” de Tânia. E a observação consta apenas da primeira edição do livro. Nas demais edições, desapareceu. Mistérios que compõem os indecifráveis códigos da vida. Houve quem sustentasse a versão de que o artista plástico argentino Ciro Bustos teria sido responsável pela traição a Guevara. Não se sabe bem se isso é verdade. Mas, se for, a localização de Guevara na selva boliviana era conhecida apenas por Fidel Castro. Isso é verdade indiscutível. E Ciro Bustos teria que ter trabalhado com Tânia, a enviada pelo ditador cubano e que fez várias viagens para a Bolívia, via Buenos Aires. A última foi a viagem da delação. Nem ela sabia que estava sendo esperada e pagou com sua própria vida pela imprudência registrada por Che Guevara. No dia 9 de outubro de 1967, Guevara, depois de ferido na perna, foi amarrado a uma cadeira. Ali permaneceu até vir a ordem de execução dada pelo próprio presidente da Bolívia, um sargentão, o General René Barrientos,12 colega de Fidel Castro. O assassinato, com um tiro no peito, foi executado por um suboficial chamado Mario Terán. Guevara teve as mãos cirurgicamente extraídas e guardadas em formol. O tal Arguedas ficou com elas. No ano seguinte, esse mesmo Arguedas abandonou a Bolívia e foi viver, adivinhem onde? Em Cuba! Levou as mãos de Guevara, dizendo que as entregaria à viúva, um gesto macabro e repulsivo que ninguém entendeu. Mais parece a prova de que se serviam os pistoleiros do nosso Nordeste para receber recompensa pelos contratos executados. Não mereceu a menor censura de Fidel e, em Cuba, passou a viver com regalias, a tal ponto que se desconfiou ter sido ele um agente do ditador cubano 12 Barrientos morreu carbonizado dois anos depois, quando seu helicóptero explodiu ao bater em fios telegráficos. na Bolívia. Confiram os jornais de Lisboa, julho de 1968, e O Estado de S. Paulo, de 28 de novembro de 1995. Na aventura boliviana, ao lado de Guevara, lutou o francês Régis Debray, preso e depois libertado. Na França, em 1996, Debray publicou um livro (Loués soient nos seigneurs — Louvados sejam nossos senhores), criticando Fidel Castro e suscitando dúvidas sobre como o esconderijo de Guevara foi encontrado pelos militares bolivianos. Quatro meses depois, uma senhorita chamada Aleida, que se proclama filha de Guevara, em entrevista ao jornal Clarín, de Buenos Aires, acusou Debray de haver delatado a localização de Guevara na Bolívia (Folha de S. Paulo, 3 de setembro de 1996). Em carta ao Le Monde, jornal de Paris, Debray fez uma revelação curiosa: a versão foi encomendada por Cuba, e a senhorita Aleida é fortemente ligada a Fidel Castro. Che está morto. Não pode desmentir ninguém mais. Segundo a revista Forbes, o ditador cubano hoje é dono de quinhentos milhões de dólares. Não sei o que fará com tanto dinheiro. Não tem privacidade para gastá-lo. Compra consciências e versões. Faz remessas a movimentos políticos da América Latina. Contudo, acabou num hospital, com cirurgia no intestino, depois de 47 anos de ditadura em defesa da liberdade. Fidel nasceu no dia 13 de agosto. Não é definitivamente um dia de sorte. No mês de abril de 2003, Fidel Castro mandou fuzilar três cubanos que pretendiam fugir de Cuba e tomaram um barco de passageiros, cuja gasolina acabou e, como a própria ilha, ficou à deriva no mar do Caribe. Acusados de terrorismo, foram (los três negritos, como disse Fidel) assassinados rapidamente, sem direito a processo judicial. No outro lado da ilha, numa base militar chamada Guantánamo, que pertence aos Estados Unidos, atualmente sob a direção de Bush, estão presos homens do Afeganistão, acusados de terrorismo e em condições subumanas, sem direito a qualquer medida judicial, por não estar tal base em território norte-americano. Que ilha infeliz! Qual a diferença entre Bush e Fidel Castro no uso do pretexto de terrorismo para justificar atos de banditismo? Creio que Bush é melhor (vejam que tristeza!), porque sobre ele não paira nenhuma suspeita de haver contribuído para a morte de um amigo que, talvez, pudesse evitar sua perpetuação no poder, embora Sadam Hussein tenha sido amigo do Bush pai e cria dos Estados Unidos, os quais, apesar dos pesares, mantêm eleições mal apuradas e bem pagas, mas democráticas, com alguns assassinatos sempre inexplicáveis. Aliás, são inexplicáveis os assassinatos que eliminam alvos temidos pelos políticos, como também aconteceu no Brasil anos depois com os prefeitos petistas de Campinas e de Santo André. Não há Sherlock Holmes que desvende as óbvias responsabilidades criminais. Bush tem mais charme para cultivar as coisas do mal. Proclama-se Presidente da Guerra, manda matar mais de cem mil pessoas no Iraque e se posiciona contra a eutanásia de uma mulher que, há quinze anos, tinha vida apenas vegetativa. Vai à Igreja. Canta música gospel. É verdade que estarreceu a humanidade ao autorizar a CIA a cometer um crime novo. Seqüestrar pessoas e levá- las a outros países para serem torturadas e interrogadas. Ainda não se sabe como isso vai acabar. Mas nomeada já foi: operação “rendição extraordinária”, com envolvimento de várias empresas aéreas que alugavam seus aviões para transporte clandestino das vítimas do seqüestro secreto. Não satisfeito, Bush declarou a supremacia dos Estados Unidos sobre o espaço sideral. É o dono do Universo. Deus que se cuide, sobretudo por ser brasileiro. Bush veio ao Brasil para desmentir essa antiga crença nossa. Aqui, negociou com Lula a produção de etanol, álcool para substituir o petróleo como combustível de carro. De álcool ambos entendem bastante. Lula ficou tão embriagado com a possibilidade de o Brasil se transformar em maior produtor de álcool combustível no mundo, que declarou: “os usineiros, antes bandidos (na opinião dele), passaram a heróis nacionais e mundiais”. Quanto a Fidel Castro, até Saramago, escritor português comunista, que, por isso mesmo, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura (eu preferia Jorge Amado, muito melhor, e que com ele concorreu no mesmo ano),13 declarou não mais querer saber de Fidel Castro, a quem apoiava como ídolo. Vamos repetir Debray: Louvados sejam nossos senhores! E louvado seja aquele que furtou o revólver de Fidel na Embaixada do Brasil em Havana, gesto simbólico de desarmamento de um perigoso e irrecuperável ditador, e também mentiroso, mas que, infelizmente, continua no poder há meio século. Ao internar-se no hospital, passou o poder ao seu irmão Raúl Castro. Na ditadura cubana, a sucessão é consangüínea: dá-se entre irmãos germanos.14 Aqui estou eu divagando sobre coisas da política, mas é inevitável, porque, de certa forma e em certa época, as pessoas desse teatro esbarraram em mim ou trombaram comigo na surpreendente trajetória que a vida me reservou, nesses mundos de muitos acontecidos e destinos que se cruzaram com o meu, um menino do interior, pescador de bagre e com alguma capacidade de sonhar. 15 Minha secretária anunciou a chegada de Sinval. Pedi que o Paulo e o Nerval me deixassem a sós com o perito, pois ele não gostava de conversar “em público”. Era cheio de cuidados. Sinval entrou na sala: — Ainda não redigi o laudo. Mas examinei detalhadamente a 13 A academia sueca é completamente maluca ao contemplar com o Prêmio Nobel algumas figuras lamentáveis, como aquele Fo, da Itália, e o escritor alemão Günter Grass, nazista que foi oficial da Waffen-SS, tropa de elite e espionagem de Hitler, John Mather e George Smoot, porque teriam comprovado a ocorrência do big bang, criador do Universo, tão verdade como a de seus antecessores que asseguravam estar a Terra sobre as costas de um elefante. É isso o big bang: o elefante tropeçou na cordas cósmicas e soltou um pum. E ainda dizem que ocorreu a 13,7 bilhões de anos. Gostaram do “vírgula sete”? 14 Dicionário Aurélio — Germano: diz-se de irmãos que procedem do mesmo pai e da mesma mãe. fita cassete. Não há montagem, nem adulteração. Senti um calafrio percorrer-me o corpo. Ele percebeu minha aflição: — Mas espere — disse com bastante calma. — A gravação indica com clareza haver uma interrupção entre as perguntas feitas pela mãe às crianças e as respostas que estão gravadas. — Como você identificou esse detalhe? — No gráfico do som. Há uma interrupção entre cada pergunta e a respectiva resposta, ao contrário das gravações contínuas, em que as oscilações do som não se interrompem, inclusive registrando o som ambiente. Enquanto não se gravam vozes, registram-se os ruídos, por mais leves que sejam, sem espaçamento de intervalos. Nestes, nos espaçamentos, os picos da curva senoidal são menores, mas continuam ativos. Na gravação examinada, a interrupção brusca demonstra que, a cada pergunta, alguém apertou o botão de pausa ou parada. E a resposta foi gravada depois dessa interrupção. — Ah! Maldita mulher! Durante a pausa, ela ditava a resposta que a criança devia dar? — É isso. Meu laudo vai afirmar a existência de interrupção entre a pergunta e a resposta, detalhe que se repete durante toda a gravação. Demonstrarei claramente que houve esse expediente, de modo repetido, a cada pergunta. Com esse dado técnico, pelo menos crio a dúvida. Agora, provar que a mãe, depois de fazer a pergunta, ditava a resposta é problema seu. Comecei a pensar em como produzir essa prova. Mais uma vez tinha que triturar meus neurônios, uns pobres coitados eternamente condenados a buscar e encontrar soluções. Somente as crianças podiam informar; mas, como ouvi-las em audiência? A mulher, em depoimento pessoal, jamais confessaria, por mais habilidade que tivéssemos na formulação de perguntas, que não são feitas diretamente, e sim por intermédio do juiz, dando tempo para o interrogado pensar na melhor forma de mentir. 16 Voltei a me lembrar de Jânio, agora em virtude de uma ação judicial que ele nos pediu para mover contra o livro publicado por Adelaide Carraro. Ela incluíra um capítulo sobre ele, descrevendo situações comprometedoras, atos libidinosos misturados com paixões e romances. Jânio gritava furioso: “Nem conheço essa mulher!”. Fizemos as perguntas de praxe: “Alguém veio pedir dinheiro para não publicar essa coisa? Ela se comunicou com você, dizendo que o livro ia sair?” Nada. Tudo negativo. O livro, em outros capítulos, envolvia vários políticos de fama no cenário nacional. A autora tinha sido, segundo sua narrativa, amante de todos. Que fôlego! Propusemos a ação. Naquele tempo, ainda não tínhamos os avanços processuais de hoje, com as medidas cautelares preventivas aplicáveis a cada situação de ameaça de irreparável lesão, seguidas pela ação principal, que pode ser de danos morais ou de abstenção de prática de ato, conforme o caso. A ação foi penal mediante queixa, acusando-a de difamação e injúria contra homem público, e pedimos a apreensão e a destruição do “corpo de delito”, isto é, do livro. Conseguimos apreender toda a edição por medida preventiva, sem que fosse ouvida a parte contrária. Exercitamos a inteira liberdade de prensa. O processo foi distribuído ao magistrado Edmond Acar, bom juiz, mas que costumava dizer alguns palavrões nas audiências, tanto para as partes, como para os advogados e para o promotor. Veio o dia da audiência. Chegamos reverentes e nos sentamos. Então o juiz se virou para Adelaide e gritou: — Você fique de pé. Na minha vara, puta não senta! Perdemos a fala. Aquilo era uma explosão terrorista. — Excelência, solicito, por favor, que minha cliente seja respeitada! —- disse, educadamente, o advogado de defesa. — Estou tratando sua cliente, meu caro doutor, da mesma forma como ela tratou as pessoas que incluiu nesse livro infamante! E com o mesmo vocabulário! Se o senhor quer, pode ditar seu protesto diretamente ao escrevente. O advogado ficou em silêncio. Começou-se pelo interrogatório da ré. E o juiz perguntou: — Quem escreveu esse livro para você? — Eu mesma — respondeu ela com convicção. — Muito bem! — disse o juiz — Pode sentar-se. E mandou entregar à ré um papel em branco e uma caneta esferográfica. Pegou o livro, abriu-o numa página qualquer, deu-o à interrogada e mandou que ela lesse as dez primeiras linhas da página aberta. Em seguida, recolheu o livro e ordenou: — Agora, escreva neste papel o que você acabou de ler. Não é preciso escrever exatamente, mas escreva o que lhe vier na memória. Adelaide Carraro olhava o papel, com a caneta na mão. E nada. Passaram-se longos minutos. A sala, em silêncio. O juiz ficou folheando o livro e, de quando em vez, olhava para ela. Nada. Nenhuma linha. Subitamente, ele deu um estrondoso tapa na mesa e perguntou aos berros: — Quem escreveu esse livro para você? — Acindino Campos — respondeu a ré, já apavorada. — O que ele faz? — É jornalista. O juiz, com ares de vitorioso, olhou para nós e disse: — Estão vendo? A polícia bate, tortura pessoas para obter confissões. Aqui o réu confessa apenas sob um tratamento psicológico adequado. Contrariando todas as regras formais do processo penal, o juiz dispensou ouvir as testemunhas, as alegações e os prazos, e sentenciou, julgando a queixa procedente. Condenou a ré por difamação. Embora o Código Penal mandasse aplicar pena e multa (na época, de cinqüenta centavos a três cruzeiros), o juiz aplicou somente a multa — três cruzeiros pela difamação — e absolveu a ré da acusação de injúria. E deferiu em parte o pedido de destruição do livro. Mandou extrair dele apenas o capítulo referente a Jânio Quadros e permitiu a circulação do livro com as demais vítimas, porque nenhuma delas havia pedido proteção judicial. A ré e seu advogado aceitaram, pois estavam felizes com a liberação da grande obra. Adelaide Carraro, mesmo sem o capítulo sobre Jânio, esperava ganhar dinheiro com aquilo. E não houve recurso. Vencemos a causa numa rápida prestação jurisdicional, inteiramente fora da lei processual, mas sumamente prática, 17 Lembrei-me ainda de outro caso, referente a um livro escrito pelo ex-mordomo do cantor Roberto Carlos, no qual eram narradas intimidades da vida do artista, deslavadamente mentirosas. Feriram fundo o sentimento do cantor. O título do livro era O Rei e Eu. Dessa vez, para impedir a lesão, usamos o Direito Processual Civil, em ação de abstenção da prática de ato cumulada com o pedido de destruição do livro. A Constituição então vigente não assegurava as liberdades plenas inauguradas em 1988. Houve apreensão cautelar. O processo seguiu seus trâmites legais até o julgamento final pelo Tribunal de Justiça, e vencemos. O livro acabou sendo condenado à fogueira, muito antes do ano que é o título da obra de George Orwell. A incineração foi realizada nos fornos da Prefeitura de São Paulo. Roberto Carlos é uma criatura de lindos sentimentos. Alma pura, contagiada de primavera e luz. Além da religiosidade extrema, é de uma bondade comovente com todas as pessoas. Bom filho, bom pai, bom tudo. Quando ganhamos a causa contra seu ex-mordomo, mostrou-se preocupado: — Ele foi condenado? Vai preso? Eu não queria isso, bicho! Não queria mesmo! — Calma, Roberto. A condenação foi civil, isto é, ele foi proibido de escrever sobre você, e o livro foi queimado. Pronto, acabou! Resta a condenação por danos e em honorários. Nem você vai cobrar os danos, nem eu cobro os honorários contra ele. Está bem assim? Mesmo assim, ficou triste. Seu ex-funcionário havia falado o diabo da vida dele. Roberto se preocupava em saber se a condenação envolvia prisão do réu. Afinal, réu é para ser preso. As pessoas às vezes confundem a condenação civil com a penal, embora muito tipo de condenação civil bem que podia resultar numa temporada atrás das grades. Mas as responsabilidades são independentes. 18 Conheci Roberto Carlos quando ele estava negociando com sua gravadora a renovação de contrato, no Brasil, para a produção de seus discos. Ainda era o tempo do vinil, o velho bolachão. Procurou- me, não me lembro quem o aconselhou, para assessorá-lo nas negociações. O advogado da gravadora era um profissional de alto respeito, meu amigo e colega de muitos anos, Agilberto Figueiredo Santos, que foi formidável na condução dos entendimentos iniciais e me advertiu: — Os diretores da gravadora, aqui no Brasil, ganham honorários na proporção inversa daquilo que conseguem tirar do cantor contratado. Quanto menos a gravadora paga ao cantor, mais os diretores ganham. Sugiro que você vá negociar este contrato em Nova York, na sede da empresa. Falei com o cliente, e fomos para os Estados Unidos, eu, movido pela coragem ofertada por Deus, pois não falo uma palavra de inglês. Sou da velha geração do francês e, claro, perdi, por isso, a globalização subseqüente, fundada no idioma de Walt Whitman. Mas, em Nova York, podia, naquele tempo, contar com um valioso apoio, o Embaixador Sérgio Armando Frazão, que servia na ONU e falava, sem sotaque, vários idiomas. Meu velho amigo, companheiro dos tempos do governo de Jânio Quadros, pôs à minha disposição uma funcionária sua, americana, craque em português com sotaque brasileiro, além de ser altamente competente. Meticuloso como era, Frazão deu licença não remunerada para aquela senhora me assessorar por uma semana. Ela adorou, mesmo porque a assessoria incluía longas reuniões com Roberto Carlos, de quem era fã incondicional desde os tempos em que passara temporadas no Brasil, para aperfeiçoar seu português. As discussões com os diretores da gravadora eram complicadas. O presidente da companhia parecia mais afável e, de certa forma, impaciente com as dificuldades que seus colegas de diretoria criavam a cada momento. Tinha pressa. Viagem marcada para Londres dentro de alguns dias, não queria que a coisa se prolongasse muito. Os advogados deles, a cada dia de negociação, faziam uma minuta de contrato que, ao mesmo tempo, servia de ata das reuniões, mas tudo muito complicado e longo demais, detalhista, mania dos causídicos americanos. Eu escrevia outra minuta em português, minha assessora traduzia para o inglês, ela mesma datilografava, e a discussão prosseguia. De repente, chegavam as seis horas da tarde, e todo mundo desaparecia: datilógrafas, secretárias, advogados. Fim do expediente. Tínhamos que continuar no dia seguinte. Sem sequer um bye-bye. Sumiam. Na manhã de um desses dias seguintes, estávamos na sala de reuniões tomando um cafezinho, à espera do presidente da empresa. Aproximei-me da janela, no vigésimo andar do prédio, e vi, entre os arranha-céus de Nova York, o prédio da Basf. Disse, então, ao Roberto: — Olha como é bonito o prédio da Basf! Minha assessora aproximou-se discretamente e me avisou que os diretores, que ouviram meu comentário sem compreender, conversaram entre si, dando a entender que eu me referia a alguma outra proposta de contratação do Roberto pela Basf, empresa alemã concorrente deles. Eu disse para a assessora afastar-se com calma, pegar sua xícara de café e traduzir para eles meu comentário: — De fato — disse ela aos americanos —, o Dr. Ramos está comentando com o seu cliente a vantagem da proposta da Basf, mas não deseja incluir esse argumento nas discussões com os senhores. Não acha elegante usar esse tipo de pressão. É apenas consideração entre eles para a decisão a ser tomada hoje. O clima melhorou demais. O presidente chegou e avisou que teríamos que fechar as negociações porque, no dia seguinte, viajaria para Londres. Ele queria assinar pessoalmente o contrato. Mas ainda permanecia uma pendência quanto ao percentual do valor de face dos discos a ser recebido pelo artista. Havia uns cálculos atrapalhados. O valor de saída da fábrica era um, e o de venda nas lojas era outro. Queriam que Roberto recebesse pelo menor, o preço de fábrica. Durante a discussão, o presidente da companhia titubeou. Percebi imediatamente, prática de advogado, quando alguém hesita em dizer a verdade. No final da reunião, com o auxílio da minha intérprete, reuni alguns argumentos e desferi uma saraivada de razões para ele aceitar minha proposta. Ele sorriu, dando a entender que concordaria. Fomos almoçar. Roberto, alguns amigos dele, minha assessora e eu. No restaurante, outro problema. E grave. Roberto me chamou de lado e falou baixinho, para que ninguém mais ouvisse: — Bicho, obrigado por tudo que você está fazendo. Mas hoje não assino o contrato, mesmo se você conseguir todas as vantagens que exigiu. — Por quê? — Porque hoje é dia 13. Não assino nada no dia 13. Esperei alguns segundos para absorver o impacto da confissão e ponderei: — Veja bem. O presidente vai viajar amanhã. Tenho a impressão de que ele está quase concordando com nossa proposta. E, se ele concordar, temos que datilografar a versão final do contrato e assinar hoje. Amanhã, aqueles outros diretores vão criar caso. Sei não! Roberto ficou irredutível. Preferia esperar o presidente voltar na semana seguinte. Enquanto isso, ficaríamos em Nova York. Com milhares de assuntos pendentes em São Paulo, eu não podia nem pensar na hipótese. Voltamos à gravadora. A reunião demorou a começar. Outros assuntos ocuparam o presidente em outra sala. Os advogados já tinham o contrato datilografado com dezenas de cláusulas já impugnadas por nós, que voltaram a ser redigidas por eles. Deselegância irritante. Eles se acham gênios. Comecei a discutir com os diretores sem muita paciência. Minha intérprete ia traduzindo com fidelidade. Anunciaram que o presidente da companhia chegaria dentro de instantes. E os instantes foram passando. Quando chegou, aconteceu algo fantástico: os relógios marcaram 18 horas, e a sala esvaziou-se. Advogados, diretores, datilógrafas, todos saíram. O presidente pediu as desculpas de seu estoque e, quando ia propor o adiamento para o dia seguinte, na primeira hora, cedinho, antes de seu vôo para Londres, minha intérprete teve uma idéia genial. Disse ao presidente que faltava apenas datilografar o acordo acertado e que ela se dispunha a fazê-lo. Ele aceitou, mandou servir café e ficou conversando com Roberto, que já falava razoavelmente bem o inglês. Fiquei ao lado da assessora, alteramos todas as cláusulas que nos aborreciam, fixamos os honorários do Roberto sobre o valor de face na venda ao público, e, rapidinho, rapidinho, o contrato estava na mesa para ser assinado, em várias vias, nas duas línguas, inglês e português. Lembrei-me ainda de redigir o foro de eleição: Judiciário brasileiro. Chamei o Roberto de lado e disse com firmeza: — Você acredita em Deus? — Claro, bicho! — Então reze, ponha na sua cabeça que foi Deus quem criou o dia 13 e nos deu a oportunidade de escrever o contrato tal qual nós quisemos, sem nenhum diretor ou advogado para atrapalhar. Roberto rezou, fez o sinal-da-cruz e assinou. O presidente nos cumprimentou, e saímos todos felizes. As condições eram sensacionais. Fiquei sabendo depois que os diretores quiseram criar caso, mas o presidente acabou com a festa: — Assinei, está assinado, não se fala mais no assunto! 19 Fui agradecer ao embaixador Sérgio Frazão pelo apoio dado com a disponibilidade de sua genial secretária, e comentamos os fatos ocorridos. — Você sempre está envolvido no meio de mágicas — disse ele. É verdade. Quando fui convidado por Jânio Quadros, para assessorá-lo na Presidência da República e, sobretudo, na política do café, o Brasil tinha a tradição de nomear para o IBC — Instituto Brasileiro do Café — os líderes rurais, fazendeiros e produtores, ou presidentes das associações cafeeiras. O café era muito importante para o país naquela época. Ainda é. Mas, em 1961, a exportação desse produto representava três bilhões de dólares num total de quatro a cinco bilhões. Recomendei que fosse nomeado para o cargo um diplomata, bom negociador internacional. A política do café tinha que se voltar para a conquista do mercado externo. Com esse perfil, encontramos o ministro de segunda classe do Itamaraty, Sérgio Armando Frazão. Trabalhamos juntos nos sete meses do Governo Jânio. Fizemos tudo o que era possível. Acabamos com o confisco cambial que pesava sobre a exportação do produto, para felicidade geral da cafeicultura. Criamos incentivos para a produção de qualidade, a fim de enfrentar a concorrência do café colombiano e atender à exigência da maioria dos consumidores de café por esse mundo afora. Provocamos a inclusão dos importadores no acordo internacional do café, para que eles ajudassem a vigiar os exportadores que fraudavam suas cotas fixadas pelo acordo internacional. Essa questão foi tema de uma discussão brava numa reunião dos países produtores integrantes da OEA, realizada em Punta del Este, no Uruguai. Nos debates, tive forte discussão com o representante da Costa Rica, pois ele reagiu furiosamente a uma acusação minha contra a fraude às cotas de exportação praticadas por seu país. Eu tinha até a lista das empresas norte-americanas que importavam o café costarriquenho fora da cota. Os demais países produtores, iguais vítimas da fraude, passaram a dar apartes em meu apoio. E, de repente, uma voz se levantou na sala dos debates: — Proponho que se encerre esta discussão com um imediato voto de censura à Costa Rica e voto de prestígio ao Brasil. Era o representante de Cuba: Che Guevara. Estava ele no auge do seu romântico prestígio internacional. Costa Rica foi massacrada pelo plenário. Naquela noite, Frazão e eu fomos jantar com Guevara. No dia seguinte, cedo, o Ministro Clemente Mariani, chefe da nossa delegação, convocou-me para comunicar: — Recebi ordens do Presidente Jânio, para informar ao Che que ele será condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul e para convidá-lo a ir a Brasília, a fim de receber a condecoração logo após a reunião da OEA. Isso vai ser uma bomba. Os Estados Unidos vão nos devorar. Frazão estava junto. Perspicaz e de uma inteligência invejável, matou a charada: — Ministro — disse ele ao Clemente Mariani —, não se preocupe. O Presidente Kennedy vai adorar o fato. Ele está lutando no Congresso norte-americano para aprovar verbas destinadas a um programa de ajuda à América Latina, chamado Aliança para o Progresso. Esse gesto do Brasil vai assustar os congressistas republicanos contrários a Kennedy, e a verba será aprovada. Ali as coisas funcionam à base do medo. Frazão tinha razão. O melhor combustível para tocar americanos é o medo. Naquele tempo, o medo era do comunismo na América Latina. O programa foi aprovado. Porém, ao final, depois do assassinato de Kennedy, como quase tudo em matéria de verba na América Latina, terminou em corrupção, confirmando nossa gloriosa latinidade. Mas, em Punta del Este, conseguimos incluir no Acordo Internacional do Café os países consumidores, que passariam a ajudar no controle das cotas dos exportadores. Sérgio Frazão foi o herói dessa conquista. Por que ele falou em mágicas? 20 Um dia, propus a Jânio que promovesse o Ministro Frazão, Presidente do IBC, a ministro de primeira classe, isto é, a embaixador, para que ele tivesse, nas rodadas internacionais, o mesmo status dos demais negociadores, sobretudo o da Colômbia, cujo representante era um embaixador de altíssimo prestígio. Se não me engano, chamava-se Jaramillo. Promoção no Itamaraty é sempre uma guerra. Vencidas as batalhas todas, Jânio autorizou, o decreto foi datilografado e, antes da assinatura do Presidente da República, foi referendado pelo Ministro das Relações Exteriores, o Chanceler Afonso Arinos. A Casa Civil mandou cópia para o Diário Oficial, e a promoção foi publicada. Mas, no dia seguinte, Jânio renunciou ao mandato de Presidente da República e partiu para São Paulo. O país entrou em polvorosa. Naquele dia, em meio à confusão, Quintanilha Ribeiro, Ministro Chefe da Casa Civil, recolheu tudo o que estava sobre sua mesa e voou para São Paulo. No meio dessa papelada, estava — supúnhamos — o decreto de promoção de Sérgio Armando Frazão sem a assinatura do Jânio. E o Chico, como chamávamos o Quintanilha, nem notou. Depois da posse de Jango Goulart, alguém levantou a questão no governo. Sempre existe alguém para descobrir essas coisas. Havia a publicação no Diário Oficial, mas o decreto original desaparecera. Frazão, que continuou no IBC, telefonou-me preocupado, pois essa formalidade poderia anular sua promoção. Jânio já havia voltado do seu exílio voluntário em Londres. Fui para a casa do Quintanilha, e ele me informou que todos os papéis da Casa Civil tinham sido devolvidos, assim que passada a crise da posse de Jango. Não estava com ele. Senti um calafrio. Mas havia uma esperança. Vários auxiliares do Chico também haviam recolhido papéis da Casa Civil. Procurei-os todos. Enfim, com um deles, Ara-ripe Serpa, lá estava o decreto. Peguei-o, enfiei na minha pasta e fui procurar o Jânio, que estava na casa de Dona Leonor, mãe dele, em um apartamento modesto na Praça da República, em São Paulo. — Você se esqueceu de assinar este papel — disse, quando entrei. Leu, meditou e perguntou: — Você quer que eu assine agora? Não será uma falsidade ideológica? — Deixa disso, Jânio. Trata-se apenas do aperfeiçoamento formal de um ato já publicado no Diário Oficial. E está com o referendo do Ministro de Estado da época. — Bem, você foi o único que acertou na conceituação jurídica dos efeitos da minha renúncia. Confio nos seus conhecimentos de Direito. E assinou. Agradeci os elogios que, partindo dele, nunca se sabia se eram verdadeiros ou simples ironias. Mas saí aliviado, com um problema conseqüente: como fazer o decreto chegar ao escaninho em que devia estar desde agosto de 1961? Consegui um jeitinho. E o decreto descansa lá, sem ser perturbado. É um dos fatos mágicos a que se referiu Frazão, nosso Embaixador na ONU, em Nova York, de onde, tempos depois, saiu, homenageado em um mesmo ato por árabes e judeus, mágica que conseguiu por suas habilidades diplomáticas extraordinárias.15 21 Em São Paulo, eu tinha um amigo mais velho, experiente, meio filósofo, meio paranormal, digno de ser personagem de Paulo Coelho. Não era advogado, mas sempre analisava as coisas com muito bom senso ou sob intensa explosão sentimental. Fascinava-me ouvi-lo. Quando podia, passava pela casa dele para um papo e falava dos meus casos, para ele analisar à sua maneira. Chamava-se Gervásio. Falava em cachoeira. Somente depois do discurso, dava chance ao interlocutor. Em uma das muitas vezes, tive que ouvir, no passado, uma longa dissertação sobre o assassinato de Kennedy, do irmão, os métodos da CIA, a burrice dos comunistas, as ditaduras latino-americanas, a vigarice de Fidel Castro, a indústria do medo das bombas nucleares da União Soviética. Mas analisava tudo muito bem. E continua assim até hoje. Há pouco tempo, estivemos juntos e, não sei por que, talvez a propósito da indústria da atual guerra contra o terrorismo, o novo inimigo da humanidade que tudo justifica, falei nos métodos dos anarquistas do século XIX. Pronto. Ele despejou: — Depois, passamos a assistir aos suicídios dos terroristas árabes no Oriente Médio e à barbaridade daqueles suicídios em aviões seqüestrados pelo bando de Bin Laden contra as torres gêmeas de Nova York, contra o Pentágono, e o terceiro avião, que se 15 Sérgio Armando Frazão teve um filho, Armando Sérgio, que ingressou na carreira diplomática, tornou-se embaixador e honra a tradição da família servindo o Brasil no exterior. estatelou, provavelmente em virtude da reação dos passageiros. Ninguém se conforma com tal violência e idiotice. Bin Laden conseguiu, com esse processo, além da morte de milhares de ino- centes, o crescimento político de um George Bush, político americano medíocre, como há decênios os Estados Unidos não tinham na Presidência. Virou herói diante da matança e, como marqueteiro macabro, aproveitou o impacto das mortes para criar naquele país a exploração do medo, mantendo-se no poder para exercitar a doutrina da guerra preventiva, isto é, para atacar países que, em sua opinião, sejam perigosos para a segurança americana e alimentar a insaciável fome de dinheiro da indústria de armas e de petróleo. E ninguém explicou até hoje por que não se encontraram destroços do avião atirado contra o Pentágono. 22 Sem tomar fôlego, Gervásio continuou: — O terrorismo, em conseqüência, aumentou, sobretudo depois da guerra do Iraque, com a utilização mais forte de homens suicidas, que carregam de explosivos carros e caminhões, ou se vestem de bombas, para explodir ônibus e centros de diversão popular, matar crianças, idosos, mulheres, gente inocente. E provocar respostas descomedidas, como o bombardeio de bairros inteiros, sob a justificativa de que abrigam terroristas. Hoje, qualquer assassinato, como faz Israel na Palestina, ou no Líbano, é plenamente justificado moral, religiosa e juridicamente, se assim é feito como um direito de defesa exercido contra o terrorismo. Se você manda um míssil contra uma casa de palestinos, basta dizer que ali se abriga um terrorista. Não há reprovação alguma. E pensar que isso se faz em nome dos judeus, que todos nós defendemos contra o nazismo, que fazia precisamente isso com eles! Tanto que um dos meus heróis nesse mundo é o Simon Wiesenthal, o caçador de nazistas. Até esse putão do Putin proibiu, na Rússia, eleição direta para governadores de província, invocando o perigo do terrorismo. Quis interromper para fazer um comentário, mas Gervásio virou sua bússola para o Oriente Médio e metralhou: — O Oriente Médio está desorientado. Agora surgiu o Presidente do Irã, um tal de Mohamoud Ahmadinejad, um maluco, declarando que Israel deve ser varrido do mapa. Ou transferido para a Europa. E que o holocausto não existiu. Foi tudo mentira. Faltou dizer que Hitler desentendeu-se com os judeus apenas porque desejou ser Papa. Realmente está desorientado o Oriente Médio. Israel perdeu Ariel Sharon. Derrame cerebral. E os palestinos aderiram de vez ao terrorismo, elegendo, por maioria absoluta, os membros do Hamas16 para o parlamento deles. Derrame intestinal. Não tem mais conversa. Israel de um lado e do outro o terrorismo, como governo formalmente constituído sob falsa coabitação para receber ajuda de países europeus. Depois vem o Hezbollah, no Líbano, e declara guerra a Israel. — Hizbollah. — Não me importa se é “Hez” ou “Hiz”, mas são uns energúmenos, todos com z de zebra. E Israel, um Estado democrático, aceita a declaração de guerra daquele grupelho de bandidos fanáticos e passa a matar crianças no sul do Líbano. Tem razão o capitão Amir Fester, do exército israelense, que se recusou à convocação para combater no sul libanês: sinto que fui chamado para uma guerra idiota, onde estão morrendo civis e tudo poderia acabar com um simples cessar-fogo. Foi para a cadeia por insubordinação. Parou de falar. Fixou os olhos num ponto invisível da sala como se quisesse enxergar através da parede. O assunto era árido por definição. Nosso mundo, o ocidental, não entende bem a civilização árabe. Sobretudo suas doutrinas religiosas. Um jornal da 16 Hamas — Movimento de Resistência Islâmica, milícia armada, que luta pelo desaparecimento de Israel e promove os atos terroristas em território do país vizinho. Derrotou o Fatah, partido político fundado por Iasser Arafat, e que estava no governo palestino tentando negociar a paz com Israel por meios pacíficos. Dinamarca publicou uma caricatura do profeta Maomé, e as populações mulçumanas se revoltaram. Incendiaram embaixadas. Governos romperam relações com países da Europa. Na Arábia Saudita, um time de futebol, com jogadores brasileiros, hospedou-se num hotel em Meca para um jogo com o time local. A polícia religiosa descobriu. Expulsou os brasileiros de seus quartos e da cidade. Eram três horas da madrugada. Somente voltaram na hora do jogo. Tiveram que ficar na cidade vizinha. O jogo se realizou na hora marcada e terminou em 0x0. Mas o time teve seus diretores presos e foi rebaixado para a segunda divisão. Os ocidentais não sabem disso: quem não é mulçumano não pode entrar em Meca, onde nasceu o profeta Maomé. E muito menos se hospedar em seus hotéis. — Vivemos um período complicado da história humana. Sujo e burro — comentei. — Detesto sujeira e não tolero burrice — arrematou Gervásio. — A humanidade deu uma demonstração maravilhosa de solidariedade para com o povo da Ásia, na tragédia do tsunami, o maremoto que matou quase 300 mil pessoas em vários países. O que está acontecendo? Há ladrões que roubam os donativos e descaradamente os vendem em mercados. E o Bush? Ofereceu 35 milhões de dólares para ajudar. Depois, passou para 350 milhões. Você sabe quanto ele gasta no Iraque, para matar pessoas? — Não. — Cinco bilhões de dólares por mês! Cinco bilhões a cada trinta dias! E, para ajudar a Ásia, manda 350 milhões. Um homem desses é eleito pelo povo americano duas vezes. Agora, ele vai dizer que a reeleição aprovou todos os seus atos na política externa. Guerra, torturas, Abu Ghraib, Guantánamo. Aquela história das armas de destruição em massa no arsenal de Sadam, informada pelo serviço de espionagem do governo Bush, apresentada agora com “desculpe, foi engano!”, poderá agüentar uma investigação no futuro? O serviço secreto inglês cometendo o mesmo erro com os James Bonds da vida? Um dia, vão descobrir que o 11 de Setembro foi conluio entre Bush e Bin Laden. Basta perguntar a quem aproveitou o crime. O enforcamento de Sadam Hussein, depois de um simulacro de processo penal, foi, na verdade, uma queima de arquivo, pois Sadam, cria dos Estados Unidos, poderia abrir a boca se não o mandassem para a forca logo em seguida. O recurso de apelação nem tramitou. — Você é contra a condenação de Sadam, ditador sanguinário, brutal, maluco? — Ninguém seria contra a condenação se o julgamento fosse realizado dentro das leis internacionais. E ele condenado, talvez, à prisão perpétua, como se fez com os nazistas em Nuremberg. Com o passar dos anos, Sadam começaria a falar. Por isso Bush mandou enforcá-lo rapidinho. 23 Depois afirmou que tudo no Governo Bush está direcionado para as empresas de Dick Cheney, o vice, ganharem dinheiro, tanto na guerra do Iraque, como nos escombros de Nova Orleans. Mas acentuou que o vice-presidente dos Estados Unidos é sádico, incentiva e comanda a política de tortura, assessorado por um tarado: Stephen Cambone, bandido perigoso que integra o governo norte-americano. Tudo isso ficou muito claro nas revelações da general Janis Karpinsky, em seu livro One Woman’s Army,17 em que acusa a tortura de inocentes, como se fosse legal torturar culpados. Fala com a autoridade de quem foi a comandante-em-chefe da prisão Abu Ghraib, em Bagdá, no Iraque. Aliás, a imprensa tem sido condescendente com a roubalheira no Iraque. Por que os Estados Unidos destinaram bilhões de dólares para a guerra e em seguida bilhões de dólares para a “reconstrução” do país? A verba destinada ao armamento é embolsada pelos 17 “Exército de uma mulher só”. espertos. Ninguém confere quantos tiros deu uma metralhadora. Em futuro próximo, vamos ver os casos cabeludos que serão revelados pelo SIGIR, um organismo criado pelo Congresso dos Estados Unidos para investigar as patifarias financeiras (as outras, todos conhecem). Uma delas, dentre milhares, já foi descoberta. A construção da Academia de Polícia em Bagdá, que custou 75 milhões de dólares, verba fácil, urgente, tudo em nome da segurança. No dia da inauguração foi interditada. Era tudo falso. Parede, encanamento, teto, piso. O dinheiro sumiu e deixaram lá um maquetão para fingir de obra acabada. Guerra também serve para isso. Gervásio continuou: — Esse sujeito, o Bush, é o mal em putrefação. Somente entende de matar e de guerra. Veja a sua ineficácia para a paz, sua incompetência para salvar as vítimas do furacão Katrina, que destruiu Nova Orleans. O país mais poderoso do mundo deixou centenas de pessoas morrendo ao desabrigo, feridos apodrecendo, famintos e sedentos saqueando uns aos outros. Um horror. O que fez Bush? Foi à televisão pedir contribuições, ajuda. Seu governo não tem recursos para socorrer gente em seu próprio território, porque gasta tudo . matando gente nos territórios estrangeiros. Os norte- americanos são uns cretinos. Reelegeram um homem desses, depois de admitirem sua eleição fraudada pelo Governador da Flórida, seu irmão. — Nem todos — respondi. — Bush ganhou por uma diferença mínima: 2%. — Mas ganhou! Logo, naquele país, a maioria é burra. Todo medroso é burro. Creio, porém, no Judiciário deles. Chegará o dia em que algum juiz ou tribunal haverá de declarar a inconstitucionalidade das prisões sem direito de defesa para os presos acusados de terrorismo. Tal como a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucional o julgamento pelos tri- bunais militares criados por George W. Bush, seguindo o voto magnífico do Juiz David Souter, que estraçalhou com a histeria policial da Casa Branca. Bush é catástrofe em tudo. A humanidade conseguiu celebrar o mais importante acordo internacional de todos os tempos: o Protocolo de Kyoto. Receita para salvar o planeta. Bush é contra, sob aplausos de muitos americanos. Pode? — É por isso que Vicente Ráo dizia: o americano é o português que deu certo. E você tem razão. Enquanto houver democracia, o Judiciário é a esperança. — E não é de hoje que esses políticos se sustentam, explorando o medo dos idiotas de seus cidadãos. Você se lembra? A humanidade viveu, durante muito tempo, sob o medo das ogivas atômicas da União Soviética. No final, fizeram um aborto na montanha. Resultou em vários ratos, inclusive um bêbado. Agora é o terrorismo, menos perigoso que as ogivas, e até um dos ratos abortados, o Putin, usa a nova moda para ter mais poderes. Você soube o que disse Philip Zimbardo, um dos maiores psicólogos norte-americanos e um dos autores da Teoria da Janela Quebrada? — Não. — Pois toma lá. Veja que análise perfeita: “O governo Bush manipula a ansiedade nacional causada pelo 11 de Setembro a serviço de suas próprias ambições políticas. Essa administração só foi reeleita porque criou o que chamamos de ‘Síndrome do Estresse Pós- Traumático’. Não precisamos de um ataque terrorista, estamos fazendo todo o trabalho para eles”. Esperou um pouco, tomou fôlego e me perguntou se eu conhecia o dramaturgo e poeta inglês Harold Pinter. — Claro — disse eu. — Foi o ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 2005. Mas não conheço a obra dele. — É quase um Shakespeare do século passado. No seu discurso perante a Academia Sueca, na solenidade de entrega do prêmio Nobel, ele disse que a literatura é uma forma compulsiva de busca da verdade, ao contrário dos políticos, que buscam apenas o poder, e, para isso, o primeiro valor que matam é precisamente a verdade. Aproveitou para chamar Bush e Tony Blair de bandidos, dizendo que deveriam ser julgados como criminosos de guerra. — Deu uma enorme colher de chá para os árabes, pois no momento não há outras guerras além das do Iraque e do Afeganistão, além do mal-estar com o mundo islâmico. Ou Harold Pinter estava se referindo às guerras preventivas, aquelas que, na cabeça de Bush, permitem a invasão de qualquer país sob qualquer pretexto a título de defesa prévia? — Referia-se aos árabes, sem dúvida alguma. E você acredita que os árabes, fanáticos tanto quanto Bush, podem tolerar charges e piadas dos ocidentais, quando seus líderes são acusados de bandidos por um prêmio Nobel? — Espera lá, meu caro. Na Turquia, o prêmio Nobel de Literatura, Orhan Pamuk, fugiu de seu país porque foi ameaçado de morte. Idéias liberais e críticas em Istambul são motivos de assassinato. Depois de ver morto a tiros seu colega e amigo, jornalista e escritor, Hrant Dink, Pamuk se mandou, ou, como diz a juventude de hoje, vazou rapidinho. O dinheiro do Nobel pode ajudá- lo a manter-se por algum tempo fora da mira dos fanáticos de sua terra. Não é apenas Bush que assassina as liberdades. — Bush é tão desastrado que, na América Latina, conseguiu ter como inimigo Hugo Chávez, um imbecil, que passou a legislar por decretos através de uma tal lei habilitante. Bush é incompetente até para ter inimigos, pois, apesar de Chávez achincalhá-lo todos os dias, continua comprando petróleo da Venezuela, que, com esse dinheiro, compra armas e prestígio na região. Outra questão que não consigo engolir: Lula pediu ao Bush para abolir a taxa que os Es- tados Unidos cobram na importação do nosso etanol. Resposta negativa. Mas sobre o petróleo importado da Venezuela não cobram taxa alguma. — Ainda bem que o povo norte-americano reagiu impondo uma fragorosa derrota aos republicanos nas últimas eleições de seu Congresso e de seus governadores. A Câmara dos Representantes passou a ter maioria de democratas, e Bush vai ter que dançar baião de dois se quiser ficar na Casa Branca até o fim de seu mandato, se não lhe arrumarem um impeachment. Enquanto isso, será divertido ver o antes todo-poderoso Bush apanhar de duas mulheres: Nancy Pelosi, na Câmara, e Hillary Clinton, no Senado. Tive que encerrar a conversa com essas críticas a Bush. Gervásio sossegou. Ele não é propriamente um adepto do antiamericanismo, pois, para ser assim, teria que se igualar à idiotice de Hugo Chávez. Mas é um ferrenho anti-Bush. Os mais ferrenhos marxistas, quando se declaram antiamericanistas em geral, esquecem que Karl Marx admirava os Estados Unidos e afirmou isso em carta dirigida ao presidente Lincoln.18 24 E Gervásio fala, fala. Foi assim sempre. Voltando ao passado para retomar o fio do novelo, lembro-me daquele dia em que fui visitá-lo, quando lhe contei, depois de ouvir o discurso sobre Kennedy, o caso do Sr. Olavo Brás. Contei-lhe tudo: gravações, perícias, vida da mulher, ameaça de suicídio do meu cliente. Gervásio ficou em silêncio por alguns instantes e perguntou: — As vozes das crianças estão nítidas? Não há algum vestígio de que falam de distâncias diferentes do gravador, tipo mais perto, mais longe? — Não. O som é igual o tempo todo. E muito claro. Nada indica 18 Em novembro de 1864, Karl Marx escreveu uma carta ao presidente americano Abraham Lincoln, cumprimentando-o por sua reeleição, pela guerra contra os confederados e a favor da abolição da escravatura. Marx prestou homenagem à grande república democrática e à sua pioneira declaração dos direitos do Homem. Lincoln respondeu dizendo que “as nações não existem apenas para si mesmas, mas para promover o bem-estar e a satisfação da humanidade, pelo intercâmbio benevolente e pelo exemplo. É sob essa luz que os Estados Unidos enxergam sua causa no presente conflito contra a escravatura, sustentando a insurgência como uma bandeira da natureza humana”. A resposta foi assinada pelo embaixador Charles Francis Adams. afastamento ou aproximação das crianças no momento em que suas respostas foram gravadas. — Essa mulher tem um cúmplice! — sentenciou Gervásio. — O que você quer dizer com isso? Um amante? Um namorado? — Não. Um cúmplice na autoria das gravações. — Por que você tirou essa conclusão? — Simples. Primeiro, as mulheres não são exímias operadoras dessas maquininhas modernas de gravar. Segundo, a gravação com duas crianças é trabalhosa. Você disse uma de sete, a menina, e outro, o menino, de nove anos? — Creio ser machismo seu achar que mulher não sabe operar gravadores. As crianças têm sete e nove anos. — Numa situação dessas, as crianças não se sentem à vontade. Falar mal do pai. Ficam constrangidas. Andam de um lado para outro, querem sair da sala, sentam, levantam, se atiram em sofá, se houver um por perto, pedem suco, sorvete, querem ir ao banheiro. A imaginação de Gervásio não tinha fim. — E a mãe — continuou ele — não poderia segurar o gravador, operar as teclas, fazer as perguntas e ditar as respostas, soltar o gravador depois de feitas as perguntas, sem segurar a criança da vez. Não teria êxito, se a criança estivesse solta. É impossível mantê-la na mesma posição, de forma que a voz seja gravada em igual distância o tempo todo. A mãe tem que segurá-la, ou pelo ombro, ou pelos braços, ou pela cintura, sem violência, mas tem que segurar. Criança nessa idade? Gravando essas coisas? Tem que segurar. — E daí? — Daí, foi o cúmplice quem executou as operações de grava- pausa-solta-grava, trabalhando no gravador. A mulher não podia fazer isso, tendo de segurar as crianças. Ela tem um cúmplice. Investigue. Você descobre. Voltou a falar dos problemas do mundo. Despedi-me e fui para o escritório, agora com um problema a mais: o “cúmplice”, que o Gervásio enfiou na minha cabeça. Alguém disse uma vez, misturando cinismo com humor: Quando é grande demais a confusão, está-se bem próximo da solução. Acho que foi o Lair Ribeiro, um emérito otimista. 25 O laudo da perícia do Sinval era claro: a cada pergunta formulada pela mãe, havia um clique sobre o botão de pausa no gravador, ou, mais provavelmente, sobre o stop, porque a interrupção das ondas gráficas, no leitor de áudio, era abrupta. Os desenhos sonoros cessavam completamente e, em seguida, retornavam no osciloscópio com a resposta da criança. Sinval ilustrou com fotos todos os trechos em que isso ocorria, numa época em que não era fácil obter esse tipo de reprodução. Não havia dúvida: entre a pergunta e a resposta, o gravador era travado. Daí a certeza de que as frases das crianças foram ditadas pela mãe. Intuitivamente, meu cliente acertara. O grande mal, a tragédia irreparável, não era a acusação contra ele, mas o fato de seus filhos terem sido levados a descrever atos obscenos que seguramente desconheciam e dos quais, por essa diabólica forma, tomaram conhecimento. Sobre a vida da mulher, as informações foram chegando aos poucos. Nerval, Casé e meus demais assistentes transformaram-se em agentes policiais, o que sempre ocorria quando precisávamos colher provas difíceis. Vasculharam tudo. Ela freqüentava a praia do Guarujá e, por várias vezes, fora vista no “clube da chave”. Ali se reuniam casais devassos, que se divertiam misturando as chaves dos respectivos quartos, e cada um dos homens, de olhos fechados, pegava uma delas para ir dormir com a mulher do outro, que estivesse ocupando o quarto da chave sorteada. Era invalidada a escolha quando coincidia de pegar a chave do próprio quarto. Gente maluca, A mulher era desquitada, mas freqüentava o clube com um namorado. Gostava, portanto, desse tipo asqueroso de aventura. Claro que não seria fácil provar o fato, mesmo porque os demais freqüentadores jamais admitiriam praticar esse jogo deprimente. Mas já era alguma coisa. O “clube da chave”, no Guarujá, de alguma forma, sofria um zunzum sobre essa atividade. Se o zunzum se espalhou, ainda que discretamente, haveria alguém que ouviu dizer. Talvez um garçom que serviu bebidas, ou algum entregador de pizza. Eu teria, primeiro, que demonstrar o que era o “clube da chave”, achar alguém que prestasse depoimento sobre o que se dizia do clube e de seus freqüentadores. E, depois, uma outra testemunha que tivesse visto a mulher entrando ou saindo do local, onde se supunha que o clube funcionasse. Mas o que isso teria a ver com o fulcro do processo de guarda das crianças e o direito de visita do pai? Não sei se o juiz aceitaria a prova, pois, mesmo se eu a conseguisse, o fato demonstraria que a mulher era uma devassa, talvez indigna de ter a guarda de filhos menores, mas não ilidiria a acusação contra o meu cliente, materializada na gravação da fita cassete. Eu provocaria grande confusão nos autos e na cabeça de todos. Poderia conseguir a transferência da guarda das crianças para os avós, que estavam vivos; mas não devolveria ao meu cliente o direito de visita e não o livraria das conseqüências penais decorrentes de atos obscenos praticados com menores, sob o agravante de tê-lo feito com os próprios filhos. Mas a mulher é uma grande sem-vergonha. Deixei meus assistentes continuarem buscando todas as provas. Não seria demais. Um dia poderia surgir algo que virasse tudo. 26 Certa vez, tive um processo em que duas partes disputavam a propriedade de umas terras no litoral de Santos. Provas de todos os jeitos. Testemunhas idosas atestando que cada um deles não somente tinha a posse, mas também o título de domínio mais legítimo. A disputa visava ao registro no cartório de imóveis. A parte contrária apresentou seu título de propriedade, papel antigo, escrito à mão, emitido pelo fabriqueiro da região no tempo do Império. Dizia-se “fábrica” o conselho constituído de clérigos e leigos, sujeito à aprovação do bispo, e cujas funções se restringiam à administração dos bens de uma paróquia, funções que abrangiam emitir títulos de propriedade ou de venda e compra entre os paroquianos. Submetido à perícia, o título da parte contrária prevaleceu, pois datava do tempo do Império, e o do meu cliente, embora formalmente constituído de acordo com o Código Civil de 1916, perdeu no confronto. Sentença contra. Durante o prazo da apelação, um colega meu, o Dr. Carlos Cherto, levou os autos para casa, a fim de estudá-los minudentemente, como sempre fez. Retirou dos autos o velho título e o olhou contra a luz. Na linha-d’água do papel, quase imperceptíveis, estavam as armas da República. O título era “fabricado” e não emitido pela fábrica da paróquia. Bendito o patriotismo republicano do fabricante do papel! O Dr. Ariosto Guimarães costumava contar que um caiçara uma vez o procurou, para oferecer seus serviços ao ilustre advogado de Santos, especializado em demandas de terras. E com a maior tranqüilidade lhe disse: — Doutor, eu posso arrumar para o senhor qualquer tipo de documento, pois, nessas brigas de terra, sem documento o senhor não ganha a questão. Talvez tenha sido esse caiçara que ludibriou a nós e aos peritos, que não viram naquele título nenhum indício de falsidade. Não se pode desistir. Para mim, no caso do meu cliente que queria suicidar-se, o “documento” era o laudo do Sinval. Prova segura da materialidade do embuste, mas restrita às pausas do gravador. Tive impulso de ir falar com o juiz da causa, magistrado competente, usando desses pequenos truques de “Vim dizer boa tarde, porque estava passando por aqui”. E aproveitar para comentar sobre o laudo particular, revelando os detalhes das pausas na gravação. Contive-me. Era melhor requerer e esperar a perícia oficial. 27 Em advocacia, é preciso pensar, planejar e ter muita calma, refletir sempre. Aprendi isso logo cedo, com um excelente advogado criminalista de Santos, José Gomes da Silva. Recém-formado, fui fazer estágio em seu escritório. Encarregado de defender um rapaz acusado de sedução, enfrentei meu primeiro processo com grande esmero. Aberto o inquérito por advogado com procuração para dar a “queixa”, ouvidas as partes, relatado pelo delegado, o Ministério Público ofereceu denúncia, porque o caso é de ação pública. A mim caberia levar o réu para ser interrogado, fazer a defesa prévia e requerer provas. Mas verifiquei que, nos autos, não havia a necessária representação dos pais da menor, o que acarreta a nulidade absoluta do processo penal nesse caso. Entusiasmado, comuniquei o fato ao Dr. Gomes da Silva e lhe disse que liquidaríamos a causa já na defesa prévia. — Não senhor — disse ele —. primeiro faça as contas. A lei processual penal fixa em seis meses o prazo para a representação. Desde a abertura do inquérito, quase contemporâneo à sedução alegada, não se passaram seis meses. Temos que deixar correr o prazo da lei, que é de decadência e não pode ser interrompido para contar de novo, como acontece com a prescrição. Além do mais, teremos um dia seguro para o começo da contagem, pois, em matéria de sedução, sempre há muita controvérsia relativa a quando se deve contar o prazo para a representação. Aprendi mais essa. Deixei correr os meses e, depois, com a expressão angélica de advogado moço, aleguei a nulidade. E o processo foi arquivado. Aprendi a conviver com minha consciência. Uma solução técnica de ordem processual poderia ter sido razão da impunidade de um culpado? Se aceitou a causa, o advogado não deve amargurar-se com essas perguntas. O objetivo é defender seu cliente, sem abdicar dos valores morais. Foi nosso juramento, ao receber o diploma e ao entrar na OAB. Não pode, porém, ser rigoroso consigo, invocando valores morais em mutação na sociedade em que vive e exerce sua profissão. Foi um gênio aquele que descobriu o mais óbvio dos lugares-comuns: cada caso é um caso. A moça seduzida poderia ter seduzido mais do que o rapaz acusado de sedutor. Nesses encontros e desencontros românticos e amorosos da juventude, não há muito valor moral a ser censurado, sobretudo sob enfoque do Direito Penal. Creio que estava certo, porque esse tipo de crime saiu de moda e foi revogado no Código Penal. 28 Imperdoável era o “clube da chave”. Ou o fato de ensinar crianças a contarem coisas imorais, para produzir prova contra ex- marido. E por quê? O que levaria uma mulher, por mais depravada que fosse, a deixar de proteger a pureza de seus próprios filhos, ensinando-lhes não a prática dos atos horríveis narrados, mas como descrevê-los, o que, na sensibilidade delas, deveria causar o mesmo e irreparável estrago pelo resto da vida? Sempre supus que, na vida animal, em qualquer tipo, o instinto materno era o mais sublime, a começar pela defesa incondicionada dos filhos, sob todos os aspectos e em todas as situações. A exceção que agora desmentia minhas convicções deveria ser única. Tinha que ser a única. Aquela cliente que eu passara ao Paulo de Tarso levava uma vida censurável; mas, em sua casa, com seu filho, tinha conduta exemplar, circunstância que o advogado descobre usando testemunhas, assistentes sociais e outros recursos. Ela podia ser mulher doidivanas, mas amava o filho pequeno. Dentro de casa, o filho crescia respeitando a mãe. Isso é fundamental para o direito da criança. O direito da mãe é secundário. E o que ela tem não é direito; é dever e obrigação. Paulo ganhou a causa. Todos nós temos exemplos comoventes de vivências lindas ao lado de mulheres fantásticas. Minha mãe foi uma delas. Fazendeiro pobre, meu pai teimava em cultivar café, esperando que a safra pagasse pelo menos o financiamento do banco. Nunca acertava. Ele inventou a eterna esperança no “ano que vem”. Minha mãe costurava nossas calças e camisas com o tecido de sacos da farinha usada para fazer pão caseiro, ou com brim cáqui, quando dava para comprá-lo. Além disso, ela ia colher lenha no mato, para cozinhar no velho fogão feito de tijolo e barro, pintado de vermelho. Um dia, olhando para o céu, achei que as nuvens da minha terra tinham a marca de seus braços. Nunca reclamou de nada. Vivia alegre, e suas risadas gostosas são um dos melhores sons que guardo de minha infância, junto com o canto da passarada nas madrugadas rurais e azuis de Cravinhos. Isso me engasga e molha os olhos que, com o tempo, foram aprendendo a conter lágrimas para a garganta engolir em seco. Para mim, hoje, a saudade é um soluço de lágrimas retidas. Sinto a umidade delas em minha alma. 29 Não satisfeito em ter prejuízo com sua fazenda de café na terra roxa de Cravinhos, meu pai comprou outra no norte do Paraná, no município de Jacarezinho, às margens do Rio Paranapanema, região que estava sendo desbravada. Creio que passou a ter prejuízo em dobro. Adquiriu um caminhão F-5, fez-me tirar carta de motorista profissional e incumbiu-me de fazer transporte entre as duas fazendas. Momento de glória de minha juventude. Trabalhar! Minha primeira profissão foi, portanto, a de caminhoneiro. De Cravinhos para o Paraná, levava material de construção, e, na volta, trazia café já beneficiado. Muito depois entendi: para vender em Santos, o café com origem em Cravinhos conseguia preço melhor. Os provadores profissionais nem percebiam tratar-se de café paranaense. Não era fácil trabalhar com caminhão naquela época. Estradas de terra, e, quando chovia, tudo virava lama e barro bravo. O jeito era colocar correntes de ferro nas rodas do caminhão, para evitar atolar na estrada. Mas, algumas vezes, desliza daqui, escorrega dali, o volante golpeia à esquerda, desvira tudo à direita, rabeira para um lado, dianteira para o outro, vai rumo ao barranco, roda em falso e — merda! — o caminhão afunda no barro. Meu ajudante (caminhoneiro sempre tem um ajudante, mas que não dirige) chamava-se Cassiano. Era um crioulinho magnífico. Foi meu companheiro de muitas viagens pelos caminhos esburacados do nosso país. Quando o F-5 encalhava, o trabalho, em algumas ocasiões, era uma tragédia. Tirávamos toda a carga no muque. E a depositávamos sobre um encerado estendido no barranco da estrada. Com um enxadão, removíamos o máximo de barro diante das rodas e colocávamos pedras, folhas, troncos, qualquer coisa que ajudasse as rodas a não se afundar nem girar em falso. Concluídos os remendos na estrada, eu arrancava com o caminhão com toda a força do motor, para sair do buraco, e, quando saía, procurava, na frente, um trecho mais seco ou mais firme. E sempre se repetia a cena: — Pára! Pára! — gritava o Cassiano. — Veja a lonjura em que está a carga. Nós vamos morrer para recarregar o caminhão. Não morríamos. Éramos jovens. Carregávamos tudo nas costas e dando risada. Na próxima cidade, escolhíamos uma pensão para tomar banho, trocar de roupa, beber uma cachacinha, jantar e dormir. Uma vez, Cassiano contou-me, na hora do aperitivo, que estava com tanta saudade da mãe dele, que chegava a doer. E não havia lido nenhum poema de Drummond. Na segunda pinga, despejou os irmãos brincando na roça, mas dizendo que a mãe viúva chegou a passar fome para os filhos comerem. — De que morreu seu pai? — perguntei. — Meu pai morreu matado. — E não quis contar a história. Voltou a falar da mãe: — Ela servia para nós tudo o que tinha, e era pouco, dizendo que ia comer mais tarde. Mas eu via: lá dentro não tinha nada. Isso não foi nem uma, nem duas vezes. Foi durante muito tempo. Ela trabalhava na enxada. Depois, as coisas melhoraram. O que ajudou mesmo foi a derriça do café. — Por que você não leva sua mãe para trabalhar na fazenda de meu pai? Assim, você fica com ela o tempo todo, enquanto não viajamos. — Obrigado, mas não precisa. Agora, ela está muito feliz. Mora na cidade e, além de trabalhar em casa de gente boa, ajuda o padre na igreja, dizendo que tem que rezar o resto da vida, por ter criado bem os filhos. E, graças a Jesus, graças a Nossa Senhora, ela está levando a vida que pediu a Deus! Uma santa. Eu é que morro de saudades dela. Você me desculpe o desabafo. Tomamos a saideira para ir jantar. Os olhos dele estavam lacrimejando. Ele falava, pois, de uma mulher de alma linda, igual à da minha mãe, igual à de tantas mulheres, milhares, pobres ou ricas, em nosso país, pois, afinal, elas iluminam a humanização das famílias brasileiras. Com sacrifício, privações, seja lá o que for ou faltar, somos um povo de mães, pais e filhos com valores fundados no amor e, a maioria esmagadora, na moralidade e na decência. Que diabo podia ter baixado em uma mulher para negar tudo isso e degradar os próprios filhos, levando-os a gravar aquela sujeira toda contra o pai? 30 Chega de cogitações. Minha obrigação era estudar os próximos passos no processo judicial, aberto em minha mesa, ainda sem contestação, ao lado de outros quarenta e tantos ali amontoados, dentre os mais de duzentos que corriam em todo o escritório. Era quase meio-dia. Resolvi fazer uma visita ao Gervásio. Entrei. Ele me ofereceu um drinque. Não quis. Apenas à noite. Não bebo na hora do almoço. — Faz bem. Quer água? — Aceito. — Não foi você quem criou aquele órgão que vigia a ética na propaganda? Como se chama? Cornar, Colar, ou coisa parecida. — Conar. Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. — Como funciona essa coisa? — Coisa não, meu caro. É uma instituição privada da maior respeitabilidade e funciona muito bem. — Sem lei, sem nada? — É por isso que funciona bem. É um tribunal de ética. Foi a primeira grande organização não governamental do Brasil. Já completou 25 anos de funcionamento com pleno sucesso. — Se alguém for condenado, quem obriga o faltoso a cumprir a condenação? — Primeiro, é preciso entender a composição do Conar. Todos os operadores da publicidade integram o Conselho. Anunciantes, agências de publicidade, veículos, jornais, revistas, rádios e televisão. Até os que trabalham com outdoor e têm uma central, na época presidida por Carlos Alberto Nanô, signatário da ata de fundação daquele órgão. Se um simples anúncio ou qualquer produção publicitária for considerado antiético depois de um processo completo no Conar, com direito a defesa plena, réplica e tréplica, os veículos suspendem a divulgação. Pronto. A condenação está cumprida. — E ninguém dá um jeitinho de enrolar, de burlar e continuar anunciando? — Não há hipótese, precisamente por não existir lei que regule o funcionamento da instituição. Por norma, toma-se o Código de Auto-Regulamentação Publicitária, denominado normas-padrão, uma genial criação dos publicitários brasileiros, fundada nos princípios gerais da moral e dos costumes. A instituição é de direito privado, e todos cumprem esses princípios. Mas eu não vim visitar você para falar sobre o Conar. Por que a preocupação? — Eu vi um anúncio na TV e me lembrei de que você esteve envolvido nessa coisa de censurar publicidade. — Parado lá, meu caro. Não se trata dessa coisa e muito menos de censurar. É uma conquista do mundo publicitário brasileiro e uma grande obra dos veículos de divulgação, dos anunciantes, das agências de propaganda. Hoje o Conar é citado como exemplo no exterior, nos países de maior desenvolvimento da publicidade, como a Inglaterra e os Estados Unidos. — Você faz esse discurso porque foi seu fundador. — Fui o coordenador da fundação. O mérito cabe aos líderes publicitários e aos proprietários dos veículos que, na época, aceitaram a idéia e lhe deram vida. Para citar apenas alguns: Geraldo Alonso, Caio Domingues, Mauro Salles, Roberto Marinho, Dionísio Poli, Petrôneo Corrêa, José Maria Homem de Montes, Luiz Celso de Piratininga, Luiz Fernando Furquim e muitos outros. Lista respeitável. Aliás, em muitas reuniões, o Dr. Roberto Marinho foi representado por seu filho, João Roberto, mocinho e de uma perspicácia notável. Quando alguém sugeriu que devíamos procurar o Governo Federal para obter uma lei sobre a matéria — seria um decreto-lei, pois estávamos em pleno regime militar —, o jovem João Roberto advertiu: — Se pusermos o Governo nisso, acabará editando lei para ele, e teremos censura em vez de liberdade de expressão com responsabilidade ética. O garoto fez sucesso. Estava certo. Mesmo porque a ditadura, embora estivesse chegando ao fim, ou por isso mesmo, tramava editar normas de censura na propaganda. Na verdade, apressamos com o surgimento de uma solução de direito privado, e o fato consumado calou a boca dos que queriam calar a nossa. — Por tê-los assessorado na constituição do órgão — expliquei pacientemente ao Gervásio —, na redação de seus estatutos e regimentos, com a colaboração do grande publicitário João Luiz Faria Neto, fizeram-me uma homenagem, elegendo-me o primeiro presidente do Conar. Homenagem e trabalho. Fui um primeiro presidente não muito primeiro e não muito presidente. — Por quê? — Porque, terminada a organização do tribunal de ética, houve a eleição para o presidente oficial, o de verdade, que foi Petrôneo Corrêa, o verdadeiro primeiro, ainda que tenha sido o segundo. Ele lutou muito pela implantação do órgão, contras as dúvidas levantadas no próprio meio publicitário e teve a sorte de contar com a colaboração de muita gente competente. Inclusive do Gilberto Leifert, que deixou a advocacia para dedicar-se unicamente à bela missão de organizar a liberdade de expressão publicitária exercida sob a responsabilidade de um código de ética maravilhoso. — Mas isso funciona até hoje? — Claro! O Conselho funciona há décadas, e, atualmente, você não vê um único litígio em torno de publicidade correndo pelo Judiciário brasileiro, se o assunto tratar de questão ética. Mais um pequeno detalhe: a própria lei da publicidade (Lei nº 4.680/65) e seu decreto regulamentar (Decreto nº 57.690/66) tiveram os textos redigidos por mim. Seu moço, o tempo passa! — A troco de que você legislou sobre publicidade? — Colaborei. Quem legislou foi o Congresso, e o Executivo baixou o regulamento. — Mas redigido por você. — Eu era consultor jurídico da ABAP — Associação Brasileira de Agências de Propaganda (hoje ABP). E prestei também consultas à ABERT — Associação Brasileira de Rádio e Televisão. Acabei entendendo do assunto e, sobretudo, me empolgando com a convivência. Os publicitários, além da criatividade profissional, são, em geral, muito inteligentes, excelentes redatores, perspicazes, lutam pela conquista de mercados para o produto de seus clientes, mantendo a consciência de que lidam com um poderoso instrumento de educação do povo. — Mas você já reparou que a maioria das propagandas no Brasil, a de TV e de rádio principalmente, começa com “chegou!”? Chegou isso, chegou aquilo. Não haverá outro verbo no vocabulário desses excelentes redatores? — Gervásio gostava de contrariar meus entusiasmos. — Prestei esse serviço a esta atividade essencial ao funcionamento civilizado de nosso país: a propaganda. Não deboche. É um mercado de importância enorme e de infinitas possibilidades. E o Conar veio completar e coroar a organização dos publicitários e veículos com o exemplar tribunal de ética, que nenhum outro setor industrial ou comercial conseguiu conceber. É preciso conferir a jurisprudência que os julgamentos desses anos todos colecionaram para o setor. Verdadeiras aulas de comunicação decente e construtiva. — Como advogado, você arrumou uma ótima saída para livrar a publicidade do martírio, da morosidade, da insegurança, das falhas do Judiciário. Não há como criticar a idéia, sobretudo porque está funcionando. Mas a OAB podia aplicar-lhe uma censura, já que você tirou muitas causas boas de seus colegas. — Não fale bobagem. Os advogados podem funcionar, e funcionam, em todos os processos do Conar. E anote: para os juristas, o Conar tem uma importância histórica de alta relevância. Antes de sua fundação, solicitei um parecer do Professor Pontes de Miranda, que o proferiu com a sabedoria de sempre. Foi o último parecer jurídico do velho mestre. Logo depois, morreu. Os honorários que lhe devíamos foram pagos ao seu espólio. — Não me diga! Isso é preciosidade. Mas as agências de publicidade daquele tempo não faziam campanhas para políticos como fazem algumas hoje? — Que mal há nisso? — Se ficassem apenas nas campanhas, contabilizando os verdadeiros custos de acordo com a lei eleitoral, tudo bem. Mas a intimidade, meu caro, a intimidade com os candidatos acaba corrompendo a atividade profissional. Eleito, o cliente, pensando na próxima eleição, passa a favorecer seus marqueteiros com verbas públicas em propaganda duvidosa, de utilidade duvidosa, de preços duvidosos, de forma duvidosa nos pagamentos, inclusive no exterior. A ABP não devia reconhecer essa picaretagem como agência de propaganda. Pelo que você falou, se o Código Brasileiro de Auto- Regulamentação Publicitária fosse aplicado à publicidade eleitoral não aconteceriam tantas baixarias! 31 — Gervásio, meu caro, eu vim falar com você sobre o caso do Olavo Brás e não sobre a ética na publicidade, nem sobre o Conar. Vim falar sobre o Olavo Brás. Tenho chance? — Quem é esse cara? — Aquele das crianças e da gravação acusando-o de atos imorais. — Ah! É verdade. Não me lembrava do nome dele. Foi feita a perícia? — Foi. E comprovou-se que, depois de todas as perguntas, foi apertada a tecla de pausa, o que confirma a suspeita de que as respostas tenham sido ditadas pela mãe. — Ou alguém por ela. — Não. Creio firmemente que o ditado só pode ter sido feito pela mãe. Criança naquela idade não repetiria as frases contra o pai se faladas por um estranho. Somente se vindas da mãe. — Tem razão. — Achei que você gostaria de saber o resultado que confirma nossas suspeitas. — E a distância? A perícia indicou a distância entre as crianças, enquanto falavam, e o gravador? — Não desceu a esse detalhe. — Detalhe? Você está maluco! A distância é essencial para demonstrar que a criança, enquanto falava, estava imóvel, e que a mãe a segurava de alguma forma. Isso vai levar a outra dedução: houve um cúmplice operando o gravador. Eu já lhe disse isso da outra vez! Passe o caso para outro advogado, porque, pelo jeito, você está ficando gagá. Gervásio tinha razão. Saí de lá com raiva de mim, por não haver advertido o perito sobre o tal “detalhe”. Ainda bem que não se tratava da perícia judicial, a definitiva. Cheguei ao escritório, dirigindo-me imediatamente à minha secretária, Dona Dayse: — Ligue para o Sinval. Urgente! 32 A lentidão do Judiciário brasileiro é antiga e crônica. Piorou muito com o tempo. Ou mudam as leis processuais e modernizam a infra-estrutura desse Poder ou vamos acabar tendo um apagão no sistema e no país todo. Controle externo não é uma bobagem total, mas com gente estranha infiltrada vai funcionar mal. Adianta nada, mas atrasa muito. Súmula vinculante pode ajudar um pouco. Podem atirar pedras, mas a idéia de súmula vinculante foi minha, e limitada à questão constitucional, por um motivo muito simples. O Supremo Tribunal declara inconstitucional uma determinada lei. O juiz de primeiro grau, ou um tribunal qualquer, sob a presunçosa invocação do juiz natural, acha que o Supremo está errado e aplica a lei contra o direito do cidadão brasileiro. Se a vítima tem dinheiro para pagar advogado, pode recorrer e chegar até Brasília. A vitória está assegurada, porque o Supremo declarou inconstitucional a lei aplicada contra o recorrente. Aqui já se misturam dois tipos de recurso: o extraordinário e o mais extraordinário ainda, que é o recurso financeiro. Sem este, aquele não anda. Mas o pobre, que sofre lesão igual, não tem como se defender. Terá seu direito negado por falta de um recurso processual infraconstitucional. Nosso sistema permite, assim, que transite em julgado (proteção constitucional) a aplicação da lei declarada inconstitucional pela Suprema Corte. É coisa de maluco. Resolvi lançar a idéia da súmula vinculante no Congresso da Magistratura em Fortaleza, Ceará. Antes de viajar, passei pela Barão de Limeira, visitei a Folha de S. Paulo e fui falar com o meu amigo de tantos anos, Octavio Frias de Oliveira, empresário, jornalista e homem íntegro, brasileiro convicto, espírito público, e que, além disso tudo, usufrui da sorte de ter filhos formidáveis, que continuarão sua obra. Pedi o apoio da Folha para a idéia que iria lançar no Nordeste. Frias entendeu imediatamente o significado da medida por mim sugerida. E apoiou. Foi um longo caminho. A súmula vinculante entrou na reforma do Judiciário e hoje mora no texto constitucional. Claro que o Judiciário continua vagaroso e, processualmente, um trambolho. O que resolveria e seria fundamental para agilizar as deficiências desse Poder é... bem, deixa pra lá! Não vou me meter nisso agora e aqui. Prefiro que o Walter Ceneviva, que tem paciência para tudo, cuide da matéria em seus excelentes artigos de jornal. Meu cliente, Olavo Brás, também precisaria ter paciência, se possível chinesa, pois não voltaria tão cedo a ver seus filhos. Mas, desistindo da idéia de suicídio, já me deixava tranqüilo, a menos que sofresse uma recaída em razão da demora do Judiciário. Contestei a ação. Defesa resumida, limitada a afirmar que, na inicial, nada era verdade, que a autora da ação era de moralidade duvidosa e seu ilustre advogado fora cruelmente enganado. Requeri a perícia na fita cassete e indiquei o Sinval como assistente. Depois de um debate formal sobre o cabimento e a utilidade do exame técnico, o juiz deferiu a prova. A parte contrária indicou seu assistente, e o nobre magistrado nomeou o perito judicial. Sinval me assegurou que o laudo seria unânime, ao menos lutaria por isso, porque não havia dúvida sobre as pausas entre as perguntas da mãe e as respostas das crianças. Já estava advertido sobre a distância do gravador e a fonte das vozes. Constava dos quesitos. Deu tempo. — Quando você imagina entregar o laudo? — Isso eu não sei. Depende do perito do juiz, que está sobrecarregado. Vamos ver se podemos agilizar. Agilizar, em linguagem forense, significa meses e meses. Enquanto isso, meu cliente continuava sem o direito de visita, mas a crise de autodestruição estava amainada. Vez por outra, eu o chamava para um papo descontraído e, na verdade, bancava o psiquiatra. Tomava cuidado para não falar na investigação do Nerval sobre o comportamento da ex-mulher durante o casamento. O homem já estava arrasado diante de mim. Seria imprudência ou malvadeza falar no adultério da ex-mulher e perguntar como foi, se era verdade seu perdão, quais as razões. Refletidamente, não recorri da liminar que lhe suspendeu o direito de visitas. Seria apenas uma medida para cumprir o dever de advogado, mas poderia envenenar o tribunal, que ouviria a gravação, e o recurso não seria deferido. Restaria apenas o veneno. 33 Às vezes, o advogado confronta-se com dilemas complicados para escolher o melhor caminho de defesa de seu cliente. Em muitas ocasiões, isso me aconteceu. Em uma delas, foi terrível. O caso do impeachment19 do ex-presidente Fernando Collor, que, espertamente e para fugir à pena de inabilitação por oito anos para o exercício de cargo público, renunciou ao mandato antes da conclusão do processo no Senado Federal. O impeachment tratava-se de favas contadas. Nenhuma dúvida havia. O moço seria posto na rua. Mas o Senado, reunido em tribunal especial para o julgamento do crime político do Presidente da República, sob a presidência do Ministro Sydney Sanches, do Supremo Tribunal Federal, considerou prejudicada a acusação para alijá-lo do cargo, em virtude da renúncia, e lhe aplicou a pena de inabilitação do parágrafo único do artigo 52 da Constituição. Não poderia mais exercer qualquer função pública por oito anos. Collor mudou-se para Miami, nos Estados Unidos. Instalou-se numa casa na ilha Bal Harbour e foi desfrutar de um rico descanso, longe de Paulo César Farias, mais tarde assassi- nado em circunstâncias até hoje misteriosas. Um arquivo bem apagado. Porém, antes, Fernando Collor ingressou com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal contra o Senado Federal. Seu advogado, Cláudio Lacombe, profissional de alta competência, fundamentou sua tese numa premissa simples: se a pena principal não foi aplicada, é inconstitucional a aplicação da pena acessória. Armou-se o circo. 34 Fui convocado para defender o Senado Federal, autoridade impetrada no mandado de segurança. Caprichei na defesa por escrito. Usei de todas aquelas complicações jurídicas de citações em alemão, italiano, inglês e latim e clamei por justiça perante o mundo, como diziam os antigos romanos: Fiat justitia, pereat mundus. Na nossa realidade, citei uma lei do Congresso Nacional (Lei nº 19 Impeachment, expressão inglesa adotada pela linguagem jurídica brasileira, quer dizer cassação de mandato, impedimento legal de exercer o cargo. 7.106/83), portanto votada pelo Senado, que dispunha sobre a prescrição de dois anos para aplicação da pena de suspensão daqueles direitos contra autoridades que deixassem o cargo, quer voluntariamente, quer por impeachment. Era uma lei editada especialmente para o Distrito Federal. Sabe lá Deus o que a inspirou nesses eternos casuísmos dos jogos políticos do Brasil. De qualquer forma, a conclusão seria única: o Senado, como órgão legislativo, considerou a aplicação da pena de suspensão independente da outra chamada de principal. Pena autônoma, mesmo porque, pela lei por ele votada, poderia ser aplicada a inabilitação até dois anos depois de a autoridade pública haver deixado o cargo. Não se podia pedir ao Senado que, como tribunal constitucional, agisse de forma contrária a seu entendimento como órgão legislativo. É fácil imaginar quantas matérias de direito foram debatidas naquela ocasião. Os especialistas e historiadores que queiram os detalhes ou a íntegra dos trabalhos encontrarão tudo nos arquivos da época. Eu mesmo, antes do processo, proferi três pareceres sobre a matéria, respondendo a consultas de altas autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo. Outros juristas fizeram a mesma coisa. Se transcrevesse neste livro aqueles trabalhos, estaria recorrendo a um inegável enchimento de lingüiça, sem qualquer utilidade aos leitores que tiveram a paciência de chegar até este ponto Desculpem-me, mas não tenho a menor vontade de reproduzi- los aqui. Minha história é outra, fora dos autos, mas não fora do mundo. Versa sobre aquele dilema que atormenta o advogado na escolha do melhor caminho para a defesa do cliente. Nessa causa, o meu cliente era o Senado Federal e, por trás dele, o povo brasileiro. Cláudio Lacombe, defensor de Fernando Collor, costumava, uma vez por semana, ir a um restaurante em Brasília e passar o dia bebendo apenas bebida extraída de uva. Começava com vinho branco, dos melhores, continuava com grandes vinhos tintos durante o almoço e, depois, como digestivo, conhaque. Simpático e de bom papo, conversava com todos no restaurante, até que, vencido pela enolatria, era retirado por seu motorista e levado para casa. Perguntado por que não escolhia, para esse processo de distensão, o sábado ou o domingo, respondia que o fim de semana era da família. O julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal foi numa quarta-feira. Tribunal lotado. Gente que não acabava mais. As televisões dando trombadas, com câmeras em todos os ângulos. Cenário de pressão sobre todos nós, os atores daquele momento histórico, que o Brasil ia viver naquela sala. Os advogados que participam do julgamento sentam-se na primeira fila, vestidos com túnicas pretas chamadas de becas. Acomodei-me ao lado do Cláudio Lacombe, que iria falar em primeiro lugar, por ser o advogado do impetrante Fernando Collor, autor do mandado de segurança. Evitamos que nossas becas se entrelaçassem, cada qual puxando para seu lado sua saia quase rodada, como fazem as mulheres com vestidos longos. — Hoje é quarta-feira. O que você está fazendo aqui? Não é seu dia de deliciar-se com vinhos? — Estou cumprindo o meu dever. — Não vai ter crise de abstinência? Não consegui perturbá-lo. A sessão foi aberta, e o processo foi anunciado pelo Presidente do Supremo, Ministro Luiz Octávio Gallotti. Três ministros deram-se por impedidos: Sydney Sanches, porque havia presidido a sessão do Senado impugnada pelo pedido de segurança; Marco Aurélio, porque era parente do impetrante Fernando Collor; e Francisco Rezek, porque se aposentara do Supremo, fora ser Ministro do Exterior do Governo Collor e, por essas mágicas da política brasileira, voltara a ser Ministro do Supremo. Mas, ao menos, era competente. Acabou sendo Ministro da Corte Internacional de Haia e, quando voltou, foi ser sócio do escritório de Ives Gandra Martins, circunstância que, tanto quanto Haia, atesta seu talento jurídico. Assim, a sessão prosseguiu com o quorum de oito ministros, suficiente para o julgamento pelo plenário da nossa suprema corte, composta por onze membros. Quando o Relator, Ministro Carlos Velloso, concluiu a exposição dos fatos e as razões do processo, Lacombe pediu a palavra e começou sua sustentação oral com absoluta calma: — Não estamos aqui julgando o Governo Collor, mas somente a pena, aplicada pelo Senado, de suspensão de direitos de um cidadão comum, quando não era mais Presidente da República e contra o qual não podia ser aplicada, e por isso não foi, a pena principal. Sem essa pena, a principal, a aplicação da acessória é uma rematada violência contra direito líquido e certo do impetrante. E prosseguiu, em sua sustentação, com muita habilidade. Chegou minha vez. Subi à tribuna e sapequei: — Meu colega tem razão. Não estamos julgando o Governo Collor, pois, se o estivéssemos, nosso debate não se limitaria a uma pena de interdição de direitos por oito anos; estaríamos aqui discutindo a possibilidade de aplicar pena perpétua ao impetrante, tantos foram os males que causou ao nosso país. Risadas e um alto murmurejo tomaram conta do ambiente. Gallotti tocou a campainha, pediu silêncio e solicitou-me, com ar de censura, que evitasse “desnecessários” recursos de eloqüência. Concluí a sustentação e sentei-me. Ao meu lado, Lacombe desferiu um palavrão no meu ouvido, baixinho. Fingi que não era comigo. O julgamento foi concluído com quatro votos favoráveis a Collor, concedendo a segurança, e quatro votos contrários, negando o pedido. Empate. No processo de habeas corpus, quando existe empate, considera-se concedida a ordem, pelo princípio do in dubio pro reo. Mas, no mandado de segurança, o empate significa que a ordem não foi concedida. Fiquei eufórico. Havia vencido. O regimento interno do Supremo tem disposição expressa (art. 205, parágrafo único) dizendo que, no caso de empate, prevalece o ato impugnado pelo mandado de segurança. Certo que se refere a ato do Presidente do Tribunal, mas aplicável, por analogia, a casos iguais. Além disso, na hipótese do impeachment de Collor, nem a aplicação analógica seria necessária, porque o ato impugnado era igualmente atribuído ao então Presidente do Tribunal, Ministro Sydney Sanches, na qualidade de Presidente do Senado para o processo de impeachment. Nessa mesma qualidade, prestou informações. Por isso, declarou-se impedido de participar do julgamento em que figurava como autoridade coatora. Preparei-me intimamente para comemorar a vitória diante do empate. A segurança não fora concedida. Aí apreendi a lição de Alain Touraine, sociólogo francês, que disse um dia: “Aqueles que pensam que sabem o que vai acontecer no Brasil devem estar muito mal informados.” 35 Segurança negada? Tudo conversa e teorias. O ilustre Ministro Gallotti, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, resolveu fazer uma gracinha completamente sem graça que podia acabar em desgraça. Declarou que iria convocar três ministros do Superior Tribunal de Justiça para completar o quorum do Supremo Tribunal, e que teríamos novo julgamento. Aquele terminara empatado e não valia. Mas o que é isso? Falta de quorum como? Se houvesse falta de quorum, o julgamento não teria sido realizado. Ora, acabara de ser proclamado e visto pelo Brasil inteiro, pelas televisões, o resultado de um julgamento realizado com votos proferidos por oito ministros. O art. 40 do regimento interno do STF permite a convocação de ministros do Superior Tribunal de Justiça apenas para completar quorum, isto é, quando quorum não há. Deve, pois, ser prévia, isto é, anterior à sessão de julgamento, que não pode ser realizada pela falta de número. Por essas razões, sustentei que a convocação seria ilegítima, pois, tendo havido o número regimental, o julgamento havia terminado e era definitivo. A segurança não fora concedida. Os advogados dos promoventes do impeachment, se não me engano Evandro Lins e Silva e Fábio Konder Comparato, tentaram também suscitar questão de ordem. Gallotti não quis saber. Manteve sua decisão de convocar os membros do STJ, encerrou a sessão e saiu correndo para o seu gabinete. Não quis falar com ninguém. 36 “Santo Deus! O Gallotti está maluco!” pensei eu com enorme pesar, pois gostava dele. O fato de haver votado a favor de Collor era irrelevante para nossas relações pessoais; mas declarar que o julgamento estava anulado pelo empate e convocar ministros de outro tribunal por falta de quorum era um disparate sem tamanho. Lacombe virou-se para mim e ironizou: — Você pensou que estava vitorioso. Pois, agora, veja como tudo é relativo. Estamos advogando no processo de maior relevância para a República nos nossos tempos, e você pensa que isso pode ser resolvido com um simples 4 a 4, dentro de suas filigranas processuais? Fiquei quieto. Ele sabia que estava errado. Era bom processualista. Mas ganhou um fôlego para seu cliente. Agora, sua tese tinha o respaldo de quatro ministros do Supremo Tribunal. Estufou o peito e saiu na minha frente. Foi dar entrevistas a televisões e rádios, que se acotovelavam na porta do tribunal. 37 Permaneci sentado, não acreditando naquilo que havia acontecido. Senti-me como o torcedor brasileiro, ao perder a Copa do Mundo de Futebol em pleno Maracanã, em 1950. Com uma diferença, porém: naquela tragédia esportiva, o adversário ganhou por 2 a 1; e, agora, no Supremo, nós ganharíamos, tal como naquele longínquo e fatídico 16 de julho, com o empate, segundo a melhor doutrina e o próprio regimento interno do Supremo Tribunal. E empate houve, Santo Deus! Falta de quorum? Não, eu não podia sair do tribunal. Fiquei sentado, digerindo o choque. Naquele instante, não tinha a menor condição de falar com a imprensa. Precisava me acalmar. Se falasse, correria o risco de xingar o Gallotti até a décima geração de seus ancestrais, embora seu pai tenha sido um dos bons ministros do Supremo, a quem conheci no Governo Jânio, o primeiro a funcionar em Brasília, em 1961. O pai dele, que também se chamava Luiz Gallotti, morava no único hotel que funcionava na nova capital, Hotel do Lago, onde se hospedavam José Aparecido, secretário particular do Jânio, e Castello Branco, o “Castelinho” jornalista, porta-voz do então novo governo. À noite, costumávamos ir ao hotel, pois ali funcionava a única boate decente da cidade, e podíamos tomar uns uísques, ouvir música, bater papo. Às vezes, o respeitável ministro estava no hall do hotel, e nós ficávamos conversando com ele. Ninguém se atrevia a dizer que ia para a boate. O filho dele, que era advogado, também participava dessas descontraídas conversas e, depois que o pai se recolhia, ia conosco para a boate. Por aí se pode calcular a intimidade ou, ao menos, os longos anos de conhecimento. E precisamente ele aprontava essa imperdoável falseta no julgamento do mandado de segurança de Fernando Collor, embora, em outros casos, tenha sido um jurista exemplar em toda sua carreira. Em nome daqueles velhos tempos, acalmei-me e saí. Os jornalistas vieram aos montões. É preciso tomar cuidado para os microfones não quebrarem nossos dentes. Com absoluta tranqüilidade, fui respondendo às perguntas, sabendo que o Brasil inteiro ia ver e ouvir o que eu estava falando: — O país pode ficar tranqüilo. Nós temos um grande tribunal. A divergência entre os ministros foi apenas doutrinária. Aqueles que votaram a favor de Collor estão somente defendendo um ponto de vista sobre a pena acessória. Entendem que o Senado não poderia aplicá-la sem haver aplicado a principal. Isto é, a decretação do impeachment teria sido frustrada com a renúncia. Fui enrolando os jornalistas o mais que pude. — Além de tudo isso, o acusado fora suspenso das funções, em razão do processo autorizado pela Câmara dos Deputados, o que significa o afastamento do cargo aplicado cautelarmente — expliquei. — Com a condenação, o afastamento torna-se definitivo, mas a pena de inabilitação tem que ser aplicada, porque a Constituição diz:”... perda do cargo, com inabilitação...”, o que é diferente de “sem inabilitação”. Diante da renúncia, o Senado cumpriu a Constituição, aplicando aquilo que ela manda aplicar por meio da preposição “com”. Mas grande parte da culpa pelas interpretações contraditórias está na má redação do texto, que vem de longe: art. 52, parágrafo único. Em vez de redigir como está na lei maior até hoje — “limitando-se a condenação à perda do cargo, com inabilitação para o exercício de função pública...” — o constituinte deveria ter escrito: “limitando-se a condenação à inabilitação para o exercício de função pública...”. Pronto, se o condenado estiver no cargo, sai. Se renunciar antes, de nada adiantará. Mas a imprensa insistia. Ninguém estava interessado em aula de Direito. E os profissionais mais experientes sabiam que eu estava “enrolando”. — E a falta de quorum com o julgamento realizado? Como justificar a convocação de membros do STJ, um tribunal inferior? — Nada disso. O STJ não é tribunal inferior. Há uma distinção entre as competências de cada um. O Supremo trata de Direito Constitucional, e o STJ, do Direito Comum. Os Ministros do Superior Tribunal de Justiça são excelentes juristas e podem, sem cogitar de hierarquia alguma, participar de julgamento no Supremo, no mesmo nível de conhecimento do Direito Constitucional. — Mas, e o seu argumento sobre a não-concessão da segurança diante do resultado do empate? — disparou um jornalista em alta voz. — Isso é uma questão meramente procedimental. Depende da interpretação do regimento interno do Supremo. Se eu fosse um telespectador e me visse e ouvisse dizendo isso, não teria dúvidas em afirmar: esse advogado não sabe nada. Mas preferi conter-me naquele blá-blá-blá. Mais importante que o Collor, mais importante que o Gallotti, mais importante do que eu poderia parecer para o grande público do Brasil, era a preservação de nossas instituições. Não convinha colocar em dúvida, perante o povo, o nosso mais alto tribunal. Pelo menos, a partir daquele dia, o Brasil ficou conhecendo a existência do STJ, que até então era uma corte apagada no cenário nacional, pelo pouco tempo de existência. E fui para casa, silenciosamente indignado. Ninguém percebeu. O mais difícil ainda estava por vir. 38 Gervásio raramente vinha ao escritório. Mas apareceu sem avisar. Minha secretária, sabendo da intimidade, fê-lo entrar logo que chegou, pois eu estava só: — Estou ansioso por saber — disse ele sem maiores delongas — se houve tempo para você incluir a questão da distância entre o gravador e as fontes das vozes, porque fiquei com a impressão, na última conversa nossa, de que o laudo já estava pronto sem esse “detalhe”, como disse você. — Sim, houve tempo. O laudo de que lhe falei era o particular, que o Sinval havia elaborado antes da perícia judicial e que me orientou na formulação dos quesitos. Incluí a distância. O próprio Sinval gostou da idéia e vai examinar a fita também sob esse prisma. — Ainda bem. Como era fim de expediente, convidei-o para um uísque e chamei o Nerval para participar. Papo de cá, papo de lá, Gervásio, que conhecia quase tudo de minha vida de advogado, perguntou ao Nerval se ele conhecia os detalhes do habeas corpus do Jânio Quadros, impetrado por Pedroso Horta perante o Tribunal Federal de Recursos, contra ato do então Ministro da Justiça, Gama e Silva, que confinou o ex-presidente em Corumbá. Nerval não sabia. — Pois é uma história danada — disse ele — e me foi contada não pelo Saulo, mas por um jovem advogado que trabalhava aqui, o José Fernando Rocha. — Isso é coisa de antanho. Não tem o menor interesse para o Nerval — disse eu, tentando evitar o assunto. Nerval protestou. Queria saber. Gervásio resumiu: — O Jânio pediu para o Saulo redigir o habeas corpus. Foi feito com extremo capricho, longos fundamentos jurídicos, sólida argumentação, porque era contra o ato da ditadura militar. Pedroso Horta não deixou Saulo assinar a peça jurídica e figurar como impetrante. Quis aparecer sozinho. Ele, Horta, redigiu uma introdução política, bem feita, aliás, e o resto, a parte de Direito, era do Saulo, que não assinou a petição. — Isso não teve a menor importância — disse eu. — O próprio Jânio aconselhou-me a não me envolver pessoalmente no assunto, para não me indispor com os militares. — Conversa fiada. Você advogava para os chamados subversivos, no tempo da ditadura, em processos cabeludos. Por que o habeas corpus em favor do Jânio iria comprometê-lo? Era coisa do Horta, que Deus o tenha. Quis ficar sozinho na história. Sabe o que o Saulo fez? — Não tenho a menor idéia — disse Nerval. — No final da petição, citou um texto da obra do criminalista Saulo Ramos, abriu aspas e sapecou a doutrina do seu livro. — Ora, chefe — disse Nerval, virando-se para mim. — Eu não conheço essa sua obra. — Ninguém conhece — informou Gervásio. — O Saulo nunca escreveu livro sobre Direito Penal. Com essa citação, o habeas corpus ficou assinado por ele. E fez mais. O Tribunal Federal de Recursos negou a ordem. Jânio teve que recorrer ao Supremo. Aí o Horta pediu novamente para o Saulo redigir o recurso. Redigiu outro habeas corpus, pois nem o Horta, nem o Gama e Silva, do outro lado, sabiam que, em vez do recurso processual depois da publicação do acórdão, podia-se impetrar desde logo um habeas corpus originário contra o tribunal que encampou a coação. E concluiu com a mesma citação de sua obra, apenas alterando um ponto: trocou o “criminalista” por “jurista”, porque era forçar demais a condição de criminalista para quem nunca escreveu livro de Direito Penal. É verdade. Gervásio tinha razão. Eu aprontara aquela quase- molecagem com o Pedroso Horta, arrumando um jeito de assinar, ou, antes, de me incluir no trabalho que ficará na História, em razão do ato da ditadura e da decisão do Supremo Tribunal Federal, que concedeu a ordem, e Jânio saiu do confinamento, recuperando sua liberdade de ir e vir, como diz o Direito Constitucional. Outro aspecto engraçado foi que o Gama, no primeiro habeas corpus, pediu ao Professor Ráo para redigir as informações, e o professor passou a tarefa para mim. Fui à sala dele e informei: — Professor, não posso fazer o trabalho. Fui eu quem redigiu esta petição. — E não assinou? — Coisa do Horta e do Jânio. Mas veja no final da impetração: há uma citação de trabalho meu, de Direito Penal, que não existe. Foi meu jeito de assinar. — Engenhoso. Que bobagem essa do Gama de confinar o Jânio — comentou ele. E chamou sua secretária, Dona Sílvia: — Telefone para o Gama e diga que não posso ajudá-lo nesse assunto: primeiro, porque não estou de acordo com o confinamento, e porque não lido com Direito Penal, segunda razão prejudicada pela primeira. Relembrada essa participação do Professor Vicente Ráo e falando no direito de ir e vir, fomos para o restaurante Paddock, aceitando o convite do Gervásio para jantar. No aperitivo, contei-lhes os detalhes ocultos do processo de impeachment de Collor, narrativa que se prolongou durante o jantar. 39 Advogado deve separar as coisas. A questão da falta de quorum poderia ser enfrentada com um agravo regimental para o próprio plenário do Supremo, que teria de discutir e deliberar sobre o ato de seu presidente, Ministro Gallotti. Mas, além disso, o advogado tem que pensar em ganhar a causa e rapidamente trabalhar com outra hipótese, quando possível. No dia seguinte ao julgamento do impeachment, que terminou empatado, fui visitar o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro William Patterson, jurista de excelente formação cultural, humano, de grande espírito público. Claro que haveria o constrangimento de explicar a visita. Nem de longe poderia deixar transparecer minha preocupação com a escolha que ele faria dos três membros que deveriam suprir aquela inexplicável “falta de quorum” no Supremo Tribunal. Minha intenção era debater a magna questão jurídica criada com a convocação, o precedente de completar-se quorum para um julgamento já realizado sob quorum regular. Enfim, eu precisava encontrar assunto sério para justificar a visita, sem ofendê-lo. Patterson era um homem afável. Aquela foi a primeira vez que me atendeu. Houve outra mais tarde. 40 Eu estava encerrando o expediente em meu escritório em São Paulo, lá pelas oito horas da noite, quando o telefone tocou. Era o governador da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, que tinha sido preso pela Polícia Federal em Campina Grande, onde fora passar o fim de semana. — Você, governador, preso? Que maluquice é essa? — Pois estou preso aqui na Delegacia da Polícia Federal, embora a competência para o delito seja da Justiça Estadual, que, claro, não pode prender o Governador. Aí arrumaram um jeito para a prisão ser efetuada pela Polícia Federal, e o Delegado aqui está irredutível. Apenas me permitiu telefonar. É o que estou fazendo. Ronaldo, além de excelente poeta e repentista dos bons, é advogado, e ele mesmo já foi elaborando o diagnóstico jurídico da ilegalidade por ele sofrida. Alguém, a esta altura, pode pensar que eu era muito importante como profissional. Um governador do Nordeste me telefonar para pedir socorro? Eu deveria ser um tremendo advogado, com muita fama! Nada disso. O ilustre governador da Paraíba, meu amigo Ronaldo Cunha Lima, no tempo da ditadura, teve sua prisão decretada pelos militares e fugiu para São Paulo, onde conhecia um paraibano, seu conterrâneo, Eurícledes Formiga, poeta repentista, que também era meu amigo e amigo do Paulo de Tarso Santos. E mais: amigo íntimo do Ministro Luiz Gallotti, que conseguiu sua nomeação para diretor administrativo da Justiça Federal em São Paulo. Formiga apareceu no escritório e me pediu: — Preciso de um grande favor seu — falou baixinho, debruçando-se sobre a mesa, para dar maior ênfase teatral à enfumaçada cena de sigilo absoluto. — Os milicos do meu estado querem prender um amigo meu, e ele fugiu para São Paulo. Está hospedado na minha casa. Trocamos o nome dele, mas, sabe como é, precisa trabalhar. Venho lhe pedir um emprego para ele. É bom advogado, redige muito bem, será útil para o serviço interno. Ele não pode, é claro, assinar petições, nem figurar em procurações. Chama- se Ronaldo Cunha Lima. Você vai adorá-lo, porque ele também é poeta e dos bons. Ao Formiga eu não podia negar nada. Conhecera-o havia muitos anos, quando ele andava por aí, demonstrando suas incríveis qualidades de memória. Simplesmente olhava um texto escrito, que lhe era mostrado por alguns segundos, e, em seguida, repetia-o integralmente. E ainda criava variantes, dizendo a primeira palavra e a última, a segunda e a penúltima, até encontrar no meio. Memória fantástica. Ronaldo veio trabalhar no escritório. Ao serviço secreto dos militares seria difícil localizá-lo. Morando na casa do diretor administrativo da Justiça Federal, trabalhando no escritório do Professor Vicente Ráo e com o nome trocado, estaria bem protegido dos agentes que bisbilhotavam nossas vidas naqueles tempos. Ficou lá muito tempo, trabalhou muito, ganhou honradamente seus honorários e um dia voltou para sua terra. Com a queda da ditadura, tornou-se líder na política paraibana, além de ter escrito um dos me- lhores livros sobre a vida e a obra de Augusto dos Anjos. Mas, agora, pelo telefone, comunicava-me que estava preso. E era Governador, com todas as imunidades constitucionais, foro privilegiado, blindado, naquele tempo, contra processo sem licença da Assembléia Legislativa. O delegado federal de Campina Grande não quis saber nada disso. Prendeu o governador. O crime? Ronaldo estava assistindo à televisão de manhã e viu um adversário político atacar seu filho, chamando o garoto de desonesto. Não teve dúvida. Foi ao restaurante onde o oponente costumava almoçar. O difamador estava lá. Desferiu-lhe um tiro de revólver. Claro que errou. Ele era bom poeta, mas analfabeto em armas. Não sei por que pretendeu resolver sua emoção dessa maneira: “Perdi a cabeça. Podia atacar a mim. Meu filho, nunca!”. Bem, de qualquer forma, estava preso. E eram oito horas da noite. Tribunal competente, o Superior Tribunal de Justiça. Telefonei ao presidente William Patterson, que já estava em casa, e perguntei se podia pedir um habeas corpus por fax. Ele disse que sim e, por extrema gentileza, foi, àquela hora, para a sede de seu tribunal, convocou um procurador e um ministro, a quem distribuiu o processo, instaurado com o fax. O representante do Ministério Público opinou pela concessão da ordem, e o ministro relator concedeu o habeas corpus liminarmente. O alvará de soltura foi transmitido por fax para a Delegacia da Polícia Federal de Campina Grande, que, por milagre de Oxum, tinha um aparelho de fax. Ronaldo voltou a telefonar-me, informando que já estava livre e que eu podia ir para casa. Era em torno de meia-noite. Os paraibanos, sempre muito irreverentes, colocaram uma enorme faixa defronte a casa do adversário de Ronaldo: “A única obra que o Governador deixou inacabada!”.20 Anos depois, o filho de Ronaldo, Cássio Cunha Lima, alvo da ofensa que provocara o tiro errado do pai, foi eleito governador da Paraíba. E reeleito com grande votação. 41 Após essa escala tumultuosa da narrativa na Paraíba, tenho que voltar a Brasília, para contar, no Paddock, como enfrentei, pela primeira vez, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro William Patterson. — Claro que o senhor acompanhou o julgamento do mandado de segurança do Collor ontem, no Supremo — disse eu, depois que ele me mandou sentar. — Acompanhamos todos. E com muita atenção. Já fui avisado de que o ofício do Supremo, convocando os ministros nossos, deverá chegar aqui hoje à tarde. Comecei a pensar o que devia falar e a medir as palavras: — Primeiro, peço desculpas por vir visitar o senhor. Afinal, sou advogado de uma das partes e não tenho o menor propósito de me imiscuir na escolha que caberá ao senhor fazer. — Não se constranja. Ninguém há de pensar que seu propósito seja esse. Assistimos ontem à sua entrevista pela televisão, demonstrando a importância do Superior Tribunal de Justiça e 20 Felizmente, a vítima escapou ilesa. Deus seja louvado! rebatendo a afirmação de tratar-se de tribunal hierarquicamente inferior ao Supremo. Ficamos muito gratos. — Exatamente isso, meu Presidente — disse eu. — Minha presença aqui, hoje, tem esta exata finalidade: a de pedir que os três ministros a serem escolhidos sejam os melhores juristas da corte, os mais experientes, para que o Brasil todo, que acompanhará o julgamento e o voto deles, possa julgá-los também e verificar a alta capacidade do Superior Tribunal de Justiça. Esse caso Collor está comovendo o Brasil, os jovens ainda estão nas ruas com os rostos pintados de verde e amarelo, que usaram para pedir o impeachment, e agora repetem para comover o Judiciário. William sorriu. Claramente entendeu minha mal disfarçada sustentação oral. A pretexto de defender o STJ, estava eu, na verdade, chamando a atenção para a vontade do povo. Depois, passamos a conversar sobre a redação defeituosa do artigo da Constituição, o grande culpado pela divisão nas interpretações do Supremo. Serviu o cafezinho. Eu achava que a conversa terminara e me preparava para despedir-me depois de tomar o café. Ele pegou o telefone, falou qualquer coisa com a secretária, e, em seguida, entraram na sala os ministros Torreão Braz e José Dantas. Levantei- me para cumprimentá-los, e o Presidente me comunicou que já estava tudo decidido: indicaria esses dois ministros e a si próprio. Agradeci a primazia de ter sido informado, e o Ministro William explicou: — Logo que o Ministro Gallotti encerrou a sessão ontem, resolvemos nos reunir imediatamente, para deliberar sobre a escolha, porque, é claro, a importância da questão exige que o Superior Tribunal de Justiça se faça representar com absoluta autoridade e de preferência sem divisões de opinião. Comecei a sentir um frio na barriga. Julguei que me ia ser revelada a posição deles. Mas foi afobação minha. — Há outros, e muitos — continuou o Ministro Patterson —, igualmente competentes, à altura dessa grave missão. Mas a escolha obedeceu a critérios adotados por unanimidade na reunião de ontem. Vamos aguardar o material que o Supremo nos enviará e estudaremos o caso com a máxima dedicação. Posso adiantar ao senhor que deliberamos estudar em conjunto, e a conclusão a que chegarmos será refletida no voto dos três. Vamos estudar em profundidade, e serão bem-vindos os possíveis memoriais de ambas as partes, se os advogados quiserem nos oferecer. Agradeci tanta deferência, acabei de tomar o café e me despedi. Na saída, o Ministro José Dantas, um misto de jurista e santo, homem de uma pureza comovente, disse-me ter gostado de minha sustentação oral e agradeceu pela defesa que fiz, na televisão, do STJ, quando a imprensa o chamou de tribunal inferior. Fui embora mais ou menos tranqüilo, mas, com a experiência de tantos anos de lides judiciárias, não podia deixar de considerar a hipótese de tanta simpatia significar um enterro de luxo. Lembrei-me de Steven Spielberg, o famoso cineasta norte- americano, autor de tantos filmes maravilhosos, que costuma dizer: “Devemos sempre nos preparar para o fracasso. Isso torna ainda mais gratificante o sucesso.” No fundo, no fundo, eu estava confiante no sucesso. 42 Quando cheguei ao escritório do meu sócio em Brasília, Luiz Carlos Bettiol, meu companheiro de tantas causas, sofrimentos e alegrias, havia um recado: o Ministro Sepúlveda Pertence queria falar comigo. Lá fui eu para o Supremo Tribunal Federal. Pertence e eu éramos amigos. Atuamos juntos no Governo Sarney. Ele era o Procurador-Geral da República, e eu era o Consultor Geral da República, cargo sempre confundido com o dele nas embrulhadas tanto dos noticiários de imprensa como nos protocolos das solenidades que se repetem quase diariamente em todos os governos. Ainda bem que se transformou em Advogado Geral da União. Entrei. Pertence pediu um cafezinho e começou: — Circulou por aqui que você vai agravar da decisão do Ministro Gallotti — disse ele, com aquele olhar maroto de mineiro e o sorriso de envolvente simpatia. — Como circulou? Ainda não decidi e não falei com ninguém. Estou pensando. É meu dever, como advogado, exercitar todos os recursos em favor do meu cliente. — Claro, claro, claro. Mas você não acha que isso pode atrasar o julgamento? É mais tempo, mais emoção, o Brasil está demasiadamente comovido com este caso. O país parou. Melhor liquidar logo o assunto. O próximo julgamento poderá ser marcado imediatamente. Se você agravar, suspende tudo. — E daí? Deixe suspender. Quero ver o plenário se pronunciando sobre a decisão do Gallotti. Vocês têm que deliberar sobre os efeitos do empate em mandado de segurança e sobre essa história de falta de quorum em julgamento realizado. — Calma, Saulo, guarda a faca. Veja bem. O caso está mobilizando o país. Se você agrava contra a decisão do Presidente do Supremo, a discussão no plenário vai pôr em jogo o próprio prestígio do tribunal. A casa, inclusive, pode entender que houve apenas proclamação de resultado, ato do qual o Presidente não pode retratar-se e, portanto, não é passível de recurso de agravo. — Não vou agravar contra proclamação alguma. O recurso será contra a convocação dos três ministros para novo julgamento. Isto é, está anulado o julgamento que ganhei. Vocês não decidiram isso no plenário, logo não faz parte da “proclamação de resultado”. Pertence já tinha uma tese para a rejeição do agravo. Mas ponderou: — Não convém correr o risco de arranharmos o que ainda funciona neste país. — Respeito sua relevante preocupação. Mas esse intocável tribunal arranhou o direito do país em que ele ainda funciona. E o fez pela decisão monocrática de seu Presidente. É preciso que os demais ministros corrijam isso. Ou se suicidem, apoiando esse ato maluco do Gallotti. — Pense bem. O agravo regimental contra o Presidente, além de criar um mal-estar para todos nós, poderá demorar. Cada um dos ministros vai pedir vista para fundamentar o voto. Você conhece o ritual. Para que prolongar essa agonia? Hoje, eu fiquei sabendo que você esteve com o William Patterson. Levei um susto. A inteligência do Ministro Pertence é igual à sua habilidade. Entendi o recado. Ninguém, a não ser os ministros do STJ, e o meu sócio, Luiz Carlos Bettiol, sabia de meu encontro com o Ministro William Patterson, poucas horas antes. — Você vai ganhar no plenário — insistiu Pertence. — Como você sabe? — É minha intuição. Está no meu voto negando a segurança. O voto dele, no primeiro julgamento, fora excelente, tanto quanto o do Ministro Carlos Velloso, relator. Mas eu precisava diagnosticar, agora, o que estava por trás daquela conversa típica de mineiro, não de jurista. Desconfiei que aquela intuição era mais do que intuída. Resultava de informação concreta. É preciso fazer vários cursos intensivos e especializados para se entender a mineiridade. O mineiro diz, mas não diz exatamente o que quer dizer, de tal forma que somos levados a afirmar que ele disse. Se isso acontecer, terá como negar e provar que o outro entendeu mal, sem ofender. A ciência está em inferir o que o mineiro não diz, quando está dizendo, ou entender a outra coisa que ele está querendo que você saiba, ao falar de coisa diferente. Mineiro é muito difícil, muito difícil. Sobretudo quando recorre às suas intuições sobrenaturais. Foi por isso que Fernando Sabino escreveu: “Ser mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer é fingir que não sabe aquilo que sabe, é falar pouco e escutar muito, é passar por bobo e ser inteligente, é vender queijos e possuir bancos. Um bom mineiro não laça boi com imbira, não dá rasteira no vento, não pisa no escuro, não anda no molhado, não estica conversa com estranhos, só acredita na fumaça quando vê fogo, só arrisca quando tem certeza, não troca um pássaro na mão por dois voando.” 43 Saí de lá matutando. Santo Deus, o que estou fazendo aqui, neste tumultuado momento do meu país? Afinal, nasci em Brodowski, terra de Cândido Portinari, nosso conterrâneo mais importante. Podia ter ficado por lá. Eu era apenas um dos meninos de Brodowski, aquela linda pintura com que Candinho encantou o mundo. Eu não devia nunca ter saído do quadro do Candinho Portinari. Talvez hoje fosse o dono do armazém ou da farmácia e sentaria numa cadeira de palha trançada, conversando na calçada com o pessoal que saía do cinema, e passearia na rua, fazendo hora para dormir. Poderia ter casado com a Zoé e criado uma penca de filhos, que estudariam em Ribeirão Preto, em boas escolas. Quando era moço, em pleno romantismo, escrevi um poema, que acabou sendo musicado e tornou-se o hino oficial de Ribeirão. Até o Antônio Palocci, que foi duas vezes prefeito da cidade, sabe de cor o meu hino e acabou sendo Ministro da Fazenda, infernizado por um ex-auxiliar seu que o acusou de receber, para o PT, propina de uma empresa de lixo. Sem nada ter com isso, nem com o lixo, eu era uma glória literária da região, muito antes de Palocci. Isso me bastaria. Além de tudo, o homem mais famoso da região, nascido e criado em Brodowski, Cândido Portinari, o nosso Candinho, glória internacional das artes, havia pintado o retrato de meu avô e o meu. Ambos com dedicatória carinhosa e entusiasta. Estou lá, na galeria dos retratos pintados pelo gênio. Por que saí de minha terra? Lembrei-me de Tolstói: escreva sobre sua aldeia e você pode tornar-se universal. Mas, em vez de escrever coisas de Brodowski, estava eu escrevendo teses de Direito e falando em Kelsen, que não era brodosquiano. Por que me meti a ser advogado? Quanta encrenca o destino me arrumou! Sem dedicatória. 44 Quando meu pai me mandou estudar em São Paulo, fui morar numa pensão, na Praça General Osório. Para que eu não passasse vergonha, o velho me deu um par de sapatos novos, na época o mais elegante, cromo alemão, se não me engano a marca era Scatamachia ou algo parecido. Substituiria o par de botinas. Na pensão, repartia com outro hóspede o quarto e o par de sapatos. Tínhamos o pé do mesmo tamanho. Quando um de nós ia a alguma festa, o outro ficava em casa. Meu colega de quarto e de sapatos era investigador de polícia, mas falava que estudaria tudo o que pudesse. Chamava- se Edevaldo Alves da Silva. Hoje é dono da UniFMU. Formador de advogados. Perdi tantas coisas no meu passado. Coisas e outros destinos, não sei se melhores, mas com certeza diferentes. Não teria essa esfinge para decifrar no processo judicial de Fernando Collor. O que o Ministro Pertence quis dizer? Para desvendar a mineirice, não tinha eu a suficiente, necessária e aguda perspicácia. Li tratados jurídicos fantásticos, de Kelsen a Pontes de Miranda, Vicente Ráo e Carnelutti, desvendei mistérios de complicadas ações judiciais, fiz proezas incríveis em processos difíceis; mas não conseguia entender o recado em código daquele mineiro meu amigo. Creio que o escritor Dan Brown, autor do Código Da Vinci, é descendente de mineiro. Conformei-me e, por simples intuição, não ingressei com o agravo regimental contra a decisão do Ministro Gallotti.21 Esperei o novo julgamento. Os atos foram todos repetidos. Novas sustentações orais. Cláudio Lacombe lá estava de novo, numa quarta-feira, afastado de suas bebidas extraídas de uva. Mas o notei um pouco mais nervoso. Não é preciso perder tempo descrevendo os debates. Tudo foi mais ou menos repetido, salvo os meus “desnecessários” recursos de eloqüência. Resultado do novo julgamento: 7 a 4, a meu favor, isto é, a favor do Senado e contra o impetrante Fernando Collor. Os três ministros do Superior Tribunal de Justiça proferiram votos de grande erudição e claros, todos empenhados em demonstrar que não pertenciam a um tribunal inferior. José Dantas, aquele ministro que era um misto de jurista e de santo, concluiu seu magnífico voto com a expressão: “Deus guarde esta casa!”. Creio que sua bondade queria salvar a alma do Ministro Gallotti, que teve de proclamar o resultado: Segurança indeferida! O Brasil e eu respiramos aliviados. 21 Houve agravo, mas não do Senado, como consta dos arquivos do STF. Os agravantes foram os autores da denúncia, Barbosa Lima Sobrinho e Marcello Lavenère Machado. O recurso ficou na gaveta e somente foi julgado em dezembro de 1993. E indeferido, porque a decisão agravada foi considerada simples proclamação do resultado... Creio que a mineirice do Ministro Pertence consistiu no seguinte: ele deve ter conversado com o Ministro William Patterson e soube que a tendência dos ministros do STJ era favorável ao indeferimento da segurança, isto é, que votariam contra Collor. Entre eles, em casos como aquele, há certa liberdade para “troca de idéias”. Só pode ter sido isso. No mesmo dia de minha visita ao STJ, quase na mesma hora, Pertence já sabia. Sabia apenas da visita? Sabia algo mais. E, por isso, pediu-me que não recorresse da decisão do Ministro Gallotti, porque colocaria o tribunal em situação pra lá de delicada. O plenário teria que anular a decisão de seu presidente e declarar o indeferimento da segurança, ou inventar que se tratara de simples proclamação de resultado. Com a informação privilegiada obtida naquela manhã, Pertence quis evitar o constrangimento da Suprema Corte do Brasil e veio me fazer um pedido que, não fossem aquelas circunstâncias, seria até ofensivo para o meu dever de advogado: deixar de interpor o recurso a que meu cliente tinha direito. O que ele quis dizer com aquela conversa em curva foi que seria melhor ganhar nos votos do que criar um caso doloroso para o Supremo Tribunal e ganhar na “filigrana”. Você vai ganhar no plenário! Como você sabe disso? É minha intuição. Está no meu voto. Mineiro. Bagre ensaboado. Depois do resultado, ficou muito claro; mas, até hoje, ele não admite isso. Diz que eu tenho tendência a interpretar os fatos sob forte dose de ficção. É desesperadoramente difícil enfrentar um mineiro inteligente. Ao concluir essa conversa no arrastado jantar do Paddock, patrocinado por Gervásio, este, pouco afeito à indulgência, não se conteve: — Entre os ministros que votaram a favor de Collor, estava aquele que você conseguiu a duras penas nomear para o Supremo, o Celso de Mello? — Estava. Ele concedeu a segurança para Fernando Collor. — E você acha que foi pelas razões doutrinárias de pena acessória e principal, aquele papo de não poder aplicar aquela sem aplicar esta? — Na verdade, ele votou não a favor de Collor, mas contra mim. Em qualquer matéria, ele vota contra mim. Essa é, porém, uma outra história, que fica para outra vez. — Eu queria ouvir isso de você, porque desconfiava que existia qualquer coisa por trás, no voto daquele moço. Já era tarde. Gervásio pagou a conta. Fomos todos embora. Naquele dia, não conversamos sobre o caso do Sr. Olavo Brás. Ficamos no caso Collor, que me fez estudar todas as falcatruas praticadas por Paulo César Farias. Espantosas. Quando venci a causa, pensei comigo: isso nunca mais vai acontecer no Brasil. Pois aconteceu. E pior. Mais tarde, faço um resumo desses novos acontecidos no Governo Lula. Inclusive a tendência do ministro Celso de Mello em favorecer poderosos: concedeu mandado de segurança a José Dirceu22 e contra o Poder Legislativo. E Collor, o próprio Fernando Collor, foi eleito senador por Alagoas declarando-se favorável a Lula, que o recebeu no Planalto com abraços e elogios. Em política os iguais não se repelem. A vis é atrativa. Aqui, acabaram meu tempo e o capítulo. 45 “Aracaju, 30. Chove pra caralho. O que devo fazer?” Era o telegrama de um repórter de A Tribuna de Santos, enviado especial para fazer uma cobertura da seca que assolava o Nordeste brasileiro há vários anos, em mais um dos seus ciclos. No 22 Quando Mário Covas, Governador de São Paulo, foi agredido nas ruas, José Dirceu, líder do PT, declarou que Mário apanhara no braço e iria apanhar nas urnas. O destino é cruel. Dirceu subiu ao governo com Lula, tornou-se todo-poderoso, envolveu-se com a compra de deputados, com Marcos Valério e Delúbio Soares. Acabou apanhando de bengala de um aposentado e perdeu seu mandato de deputado nas urnas da Câmara. Esse opróbrio não será minorado pelo passado de guerrilheiro bem galante, expulso do Parlamento a bengaladas. auge da estiagem, com as conseqüências de sempre — fome, migração em massa dos retirantes, discursos de políticos, invocações da venda das jóias da coroa no tempo do Império —, a tragédia era acompanhada por todos os jornais. Olao Rodrigues, secretário da redação daquele fantástico periódico santista, que tinha um formidável faro jornalístico em sintonia com a vontade dos leitores, resolveu mandar para o Nordeste um repórter. E o rapaz chegou lá precisamente no dia em que a seca acabou com a chegada de uma frente (naquela região a frente nunca é fria) chamada de inverno, e desabou uma chuvarada salvadora, forte, abundante, por vários dias. Era água que Deus mandava! Olao respondeu ao telegrama, instruindo o “enviado especial” a fazer reportagens sobre o fim da seca e os resultados da chuva, que, mesmo sendo água que Deus mandava, trazia estragos misturados com os benefícios. E era notícia, pô! Na redação de A Tribuna ficou a piada. Quando chovia muito em Santos, o que era normal, o pessoal costumava dizer: — Está chovendo mais do que em Aracaju, no dia 30. E foi sob uma chuva assim que a cidade sofreu uma tragédia: desabamento de morros e das favelas neles implantadas. Eu era repórter novo, meio foca, e fui escalado na equipe para fazer a cobertura do desastre. Na cena dos acontecimentos, o impacto foi tanto, que pensei em largar o jornalismo. Cadáveres cobertos de barro, crianças com metade do corpo para fora, braços, os bombeiros levantando os escombros, afastando gigantescas pedras despencadas e encontrando gente morta. Chegavam pessoas de todos os lados para os serviços de socorro aos feridos. Resultado: nós deixamos a reportagem para os fotógrafos, tiramos as roupas, ficamos somente de cuecas e sapatos. E fomos ajudar. Havia os bombeiros, o pessoal da Santa Casa, os voluntários não sei de onde, todo mundo fazendo alguma coisa, conduzindo feridos para baixo e entregando-os às equipes médicas. Os engenheiros da Prefeitura estavam todos lá e, é claro, além de ajudar no socorro, providenciavam medidas para evitar novos deslizamentos de terra, retirando gente que ainda continuava nos barracos não atingidos, mas sob ameaça. Nessas horas, as cenas são terríveis, a confusão é total, as pessoas trabalham chorando, alguns sofrem crise de nervos, mas continuam. Deus do céu, que barbaridade! Na equipe de engenheiros municipais, havia um jovem magrinho, que subia e descia no meio daquela lamaceira toda, ora com crianças no colo, ora ajudando os que podiam andar, ora gritando para que retirassem os sobreviventes das casas não desabadas, mas que corriam o perigo iminente de rolar morro abaixo. Numa dessas idas e vindas, ele me viu ajudando um bombeiro e me pediu para levar uma criança. Peguei a criança e levei até embaixo. Quando subi novamente, lá estava ele mandando aos funcionários da Prefeitura que cavassem, a outros que colocassem esteios em pedras penduradas em barrancos, a outros, ainda, que levantassem telhados caídos. Fomos madrugada adentro. Ouvi os engenheiros da Prefeitura e os funcionários chamarem o magrinho de Zuza. Então passei a chamá-lo também Pelo apelido: “Zuza, o que posso fazer agora?” “Faça isto, faça aquilo!” Em certo momento, ele parou e me disse: “Obrigado por estar ajudando!” “Ué? Por que não ajudar?”, disse eu. Ele respondeu: — Você é repórter, eu o reconheci de cara, quando o vi. Você sempre sai nas fotos de suas reportagens. Podia apenas estar observando e tomando notas. Mas a ajuda é muito bacana! Então lhe mostrei os outros colegas meus, de calção, que haviam providenciado para não ficar de cuecas, todos ajudando. Ninguém ali era mais repórter. No dia seguinte, sim, teríamos capacidade de descrever com fidelidade a tragédia, porque estivemos muitas horas dentro dela ou dentro das conseqüências que ela provocou. Dormi pouco. Acordei cedo. As cenas que tinha visto iriam perturbar meu sono por muitos anos. Fui trabalhar para escrever sobre o desabamento. Tive a idéia de passar antes pela Prefeitura e colher detalhes, números e informações que os engenheiros e o pessoal da emergência podiam ter. Perguntei pelo Zuza. Disseram que ele continuara no morro até parte da manhã, mas acabara de chegar. O funcionário disse a um outro: “Chama lá o Dr. Mário! Tem aqui um repórter de A Tribuna que quer falar com ele!”. Perguntei ao funcionário: “O Zuza chama-se Mário? Mário de quê?”. — Mário Covas Júnior — respondeu ele. E o engenheiro magrinho entrou pela porta dos fundos da sala, todo enlameado, com a expressão cansada, triste, abatida, mas firme: — Meu caro jornalista, que noite! Ficamos amigos para o resto da vida, mesmo porque nossa amizade começara sob o impacto de muitas mortes, como se tivéssemos participado de uma sangrenta batalha. Depois o Zuza se desentendeu com o Prefeito Antônio Feliciano, um homem estranho. Quando estava nervoso, mastigava lenço. Não quis tomar providências para evitar novos desabamentos nos morros. Custaria caro. As futuras mortes não eram incluídas no orçamento municipal. Mário Covas, apenas contratado, foi embora. Mudou-se para São Paulo, onde abriu uma pequena fábrica de material com cera e verniz para tratamento de assoalho. Não deu certo. Foi esmagado pela concorrência. Voltou para Santos. Fez concurso para a Prefeitura e acabou, agora sim, nomeado engenheiro municipal de carreira. Visitou-me na redação de A Tribuna. Tomamos um café. Ofereceu-me um cigarro, que aceitei. Naquele tempo, Zuza fumava um maço por dia. Depois, passou a fumar quatro. 46 A vida de jornalista ensinou-me muito, sobretudo o texto curto, sintético, claro, que me ajudou enormemente na advocacia. Trabalhava como doido, e, para ganhar um pouco mais, o jornal me permitiu escrever colunas com pagamento extra. Roberto Mário Santini era “filho do dono” do jornal, Giusfredo Santini, e neto do jornalista que tornou A Tribuna um grande veículo, Nascimento Jr. Roberto foi meu amigo de juventude e me apoiou no início da carreira. Ele, o pai e o avô, todos já viraram saudades. Não vou contar a história deles, porque este livro reúne os “meus acontecidos” e não os acontecidos das pessoas que engrandeceram aquele jornal. Bem que mereciam um livro exclusivo, igual ao que Pedro Bial escreveu sobre Roberto Marinho. Estou enganado. O livro do Bial é fraco, não está à altura do biografado. O pessoal de A Tribuna merecia um trabalho igual ao que foi escrito por Engel Paschoal: A trajetória de Octavio Frias de Oliveira,23 vibrante, forte, emocionante, como a extraordinária vida e obra de Octavio Frias. Uma das colunas que lancei em A Tribuna, chamada “Semanascópio”, publicada aos domingos, caiu no gosto do público e chegou a aumentar consideravelmente a tiragem naquele dia da semana. Eu assinava simplesmente José. Era uma coluna de pequenos tópicos, cada qual com a informação e o comentário sobre um fato ocorrido nos últimos sete dias. Muito anos depois, fiquei sabendo que “Semanascópio” foi o precursor de colunas de tópicos como o “Informe JB” e o “Painel da Folha”. Mas aquele tal de José ficou famoso em Santos, e, como desferia muitas críticas a políticos, administrações públicas, federais, estaduais e municipais, o colunista caiçara passou a ser assediado por muita gente, parte porque queria ser noticiada e parte porque tinha medo de ser notícia naquela seção. Nada disso importa para a minha vida, que acabou desaguando no Direito, e não no Jornalismo. Mas, precisamente aos domingos, quando minha coluna era publicada, eu aproveitava para sair de casa e tomar banho de mar nas praias do Guarujá. Lá pela hora do almoço, costumava ir ao posto de gasolina do Viola, que tinha, ao lado, um barzinho. Ali se tomavam caipirinhas maravilhosas e sobretudo, como tira-gosto, o insuperável quibe feito pela mãe dele. Para mim, nos domingos de sol, a caipirinha e o quibe 23 Edição da Companhia das Letras. daquele bar tornaram-se obrigatórios. Era um desses domingos. Ao entrar no bar, vi, apoiada no balcão, rodeada por algumas pessoas, empertigada e dominante, a figura mais curiosa de São Paulo: o Prefeito Jânio Quadros, tomando caipirinha, comendo quibe e lendo A Tribuna, aberta precisamente na página do “Semanascópio”. Naquele dia, eu havia dado uma nota sobre a possibilidade de sua candidatura a governador e, felizmente, tinha elogiado a figura como alguém diferente e moderno na política brasileira. Assegurei, no texto, que ele não iria esquentar a cadeira de prefeito, eleito no ano anterior. Seria governador. Ainda bem, porque o próprio estava lendo o que eu havia escrito. Pedi meu aperitivo e o quibe. O Viola deixou o posto com seus frentistas e veio para o bar, julgando-se no dever de ser o anfitrião de um político e de um jornalista. Apresentou-nos e contou para o Jânio que eu era o José da coluna que ele acabara de ler, inclusive mostrada pelo próprio Viola. Jânio e eu ficamos interesseiramente interessados um no outro, ele em agradar ao jornalista, e eu em ter acesso à notícia, pois a figura não apenas me parecia uma fonte curiosa, mas era teatralmente a encarnação da notícia. É impossível ao jornalista errar nesse diagnóstico. 47 A aproximação foi facílima. Durou umas oito caipirinhas e não sei quantos quibes. Então, fiquei sabendo que o pai dele, Dr. Gabriel Quadros, tinha casa no Guarujá. Ali, Jânio passava muitos fins de semana. Vinha ao bar do Viola aos sábados e, raramente, aos domingos. Festejou a inspiração de ter vindo naquele domingo e ter- me conhecido. Por mais demagogia que aquilo parecesse, comum em qualquer político diante de um profissional da imprensa, a figura transmitiu-me a impressão de ser muito inteligente. Falava, com o sotaque carregado, um português perfeito. Expunha com clareza idéias sobre qualquer assunto. Disse saber inglês, mas de Londres, ressalvou, não a porcaria ianque. E atribuiu a Bernard Shaw a observação de que os Estados Unidos dominariam o mundo, se os americanos soubessem falar inglês. — E você — perguntou ele — somente escreve esta coluna em A Tribuna?. — Não, meu caro — a intimidade, pela caipirinha, era total. — Em jornal do interior, a gente faz de tudo: reportagem policial, cais do porto, greve, eventos sociais, e eu ainda tenho a incumbência de escrever sobre a política do café, pois o assunto interessa muito a Santos, o maior exportador do produto. — Política do café? Isso existe? — perguntou. — Claro. O Brasil exporta cerca de cinco bilhões de dólares, e três bilhões são produzidos pelo café. Têm, pois, a maior importância as medidas dos governos federal e estaduais, reguladoras de escoamento da safra, de maior ou menor aperto do confisco cambial, na taxa do câmbio fixada para a exportação do produto. Tudo isso é a política do café. Critérios malucos! Conforme o produto exportado, a taxa de câmbio tinha valor diferente. Pelo dólar do café, pagava-se menos. Era o confisco cambial, uma desgraça para a lavoura cafeeira. Pior que geada, pior que a seca, pior do que qualquer desastre da natureza, pois era deliberada pelos economistas da época. — E você entende de tudo isso? — Eu escrevo sobre isso. Entender é outra coisa. Conquistei a figura, que gostava de humor refinado. Mas ele também me conquistou, numa época em que era muito difícil deparar com políticos inteligentes e de razoável cultura, circunstância que parece agravar-se a cada dia. O Prefeito de São Paulo estava, porém, fora da minha jurisdição de repórter. Era problema para a sucursal paulistana de A Tribuna. 48 Li, contudo, nos jornais da capital, que havia uma grande disputa, naquele ano, pela presidência da Comissão do IV Centenário de São Paulo, instituída em 1951 pelo Governo do Estado e pela Prefeitura da Cidade, com Ciccillo Matarazzo no comando, seu primeiro presidente. A Comissão prestara, antes da data, muitos serviços à história paulista, sobretudo quanto ao projeto Ibirapuera, nos terrenos reservados por Washington Luís, quando prefeito, muito tempo antes, para o futuro parque. Mas a disputa, agora, era pelo cargo de presidente da Comissão no ano máximo das comemorações, 1954, o ano do IV Centenário. Segundo as informações, o Prefeito da cidade teria peso decisivo na escolha. Eram candidatos vários políticos ou protegidos de políticos. Fui para São Paulo, falei com um grande amigo meu e me dirigi ao gabinete do Prefeito. — O senhor quer falar com o Prefeito? — perguntou-me um oficial de gabinete. — Sem marcar hora? Vou encaminhá-lo para Dona Kalime. Dona Kalime Gadia não tinha a menor idéia de quem eu era. Na vida de Jânio, quem Dona Kalime não conhecesse podia considerar-se estranho e, no mínimo, intruso. Após os cumprimentos, disse-lhe: — Fale que é o Saulo Ramos, de Santos. — Saulo Ramos dos Santos? — Não, minha senhora, Saulo Ramos, da cidade de Santos, jornalista. Com uma expressão meio incrédula, ela disse que ia tentar e entrou no gabinete. Alguns segundos depois, a porta se abriu, e o próprio Jânio surgiu: — Meu amigo, que surpresa! Ganhei o dia! — e mandou-me entrar. Dona Kalime ficou sem entender nada. Nem eu tinha tempo, nem seria elegante contar-lhe histórias de caipirinha no bar do Viola, no Guarujá. — Presidência da Comissão do IV Centenário? Tem interesse nisso? Você é de Santos, quer promover os Andradas ou homenagear o Padre Anchieta? — Nada disso. Primeiro, eu sou de Brodowski, e não de Santos. — Então quer indicar o Portinari — ironizou. — Não. Quero fazer uma sugestão ainda melhor. Em vez de colocar um político, nomeie o Guilherme de Almeida, o poeta de São Paulo e Príncipe dos Poetas Brasileiros. Ficou quieto. Pensou. Seus olhos se iluminaram: — Você acaba de me prestar um grande favor. É a solução. Que grande idéia! Será que ele aceita? — Não sei. Convoque-o e proponha. A iniciativa deve partir de você. — Farei o possível. Tenho que falar com o governador. A escolha será de comum acordo. Creio, porém, que o nome do Guilherme é irrecusável. Despedi-me e, quando eu estava saindo, ele concluiu: — Saulo, meu bem. Quando tiver novas idéias a me sugerir, venha. Não se iniba. Guilherme aceitou. Eu já sabia, mesmo porque, antes de ir falar com Jânio, havia sondado o poeta, que se entusiasmou com a hipótese, mas, bem a seu feitio, desanimou, dizendo que a pressão dos políticos era imbatível. E que ele não mexeria uma palha para conseguir o cargo. Achava o Jânio meio maluco e não gostava do governador. Guilherme era especialista em complicar as coisas. Imaginação fértil demais. Atalhei: se você for convidado, aceita? — Aceito. Assim se fez. 49 A maneira pela qual o destino me fez conhecer Guilherme de Almeida foi surpreendente peripécia, que me levou a mais peripécias, umas derivadas das outras. Morando em Cravinhos, na fazenda de meu pai, telefone 45, havia escrito muitos poemas sobre o café, lavoura, plantio, geada, floradas, colheita, vida simples da roça, enxadeiros. Alberto Wately, líder rural e da cafeicultura, amigo de meu pai, pediu cópia das poesias, para submetê-las à apreciação do poeta Guilherme de Almeida. Meu pai chegou em casa com a novidade e com uma pequena máquina de escrever, que comprara em Ribeirão Preto. Eu deveria esforçar-me, aprender datilografia e mandar os poemas datilografados. Não sei se ganhei muita coisa com a poesia, mas aprendi a escrever à máquina, o que foi fundamental para a minha vida de jornalista, de advogado e, mais tarde, muito mais tarde, para dominar o computador. É isso mesmo: dominar o computador. Sei quase tudo sobre essa máquina fantástica, numa relação interminável de amor e ódio. Na minha idade, trata-se de proeza incrível saber a diferença entre um arquivo “sys” e um “dll”. Claro, cultivo e uso o utilitário e seus periféricos, tendo em mente aquilo que foi dito por um francês: “L’ordinateur a de mémoire, mais n’a aucun souvenir”, “o computador tem memória, mas nenhuma lembrança”. Voltemos à minha primeira máquina de escrever, como se dizia então. Datilografei meus poemas. Claro que fiquei extremamente nervoso, quando minhas poesias, enfiadas num envelope pardo, foram levadas pelo meu pai e tinham como destinatário o maior poeta brasileiro vivo. Enfim, eu era um jovem caipira, que vivia em fazenda e conhecia apenas a estrada entre Cravinhos e o norte do Paraná, enquanto trabalhei como caminhoneiro. E fiquei quase em pânico, ao saber que meus versos seriam lidos pelo poeta de quem todo mundo falava, a professora rural, os intelectuais de Ribeirão Preto, e que publicava diariamente uma crônica no jornal que meu pai assinava. Passou-se o tempo, e Guilherme chamou-me. Disse que estava lendo e, por enquanto, queria apenas me conhecer. Conversamos. No final, ele me disse que era candidato a deputado estadual. Trabalhei por ele em Cravinhos. Teve onze votos. Escreveu-me uma carta dizendo que os onze votos valiam tanto quanto as onze mil virgens do paraíso. Não foi eleito e silenciou. Nenhuma notícia. Desisti de esperar. Tirei da cabeça. Meu pai vendeu a fazenda em Cravinhos, e mudamos para Santos. E lá recebemos a notícia de Alberto Wately: Guilherme queria me ver. Fui encontrar-me com ele em seu escritório, na Rua Barão de Itapetininga. Recebeu-me com um abraço, chamando-me de poeta, e comunicou que minhas poesias seriam publicadas em livro e que ele já havia redigido o prefácio, o qual me estendeu para ler. Ele mesmo percebeu que eu havia ficado pálido. Era fim de tarde. Acalmou-me e convidou-me para tomar um uísque num bar ao lado do seu escritório, num edifício que ostentava um grande letreiro: PRINTAL. A porta de entrada era exatamente embaixo do N, e o bar era no primeiro andar, Confeitaria Vienense. Entramos. No bar, ele era celebridade também como freguês. Em Cravinhos, não me lembro de ter tomado uísque. Creio que uma vez meu pai me ofereceu uma dose com soda, gasosa, enjoativa. Meu forte era cachaça, porque vivia misturado com a caipirada. Misturado é força de expressão. Sempre fui um deles. Em Santos, não havia sido iniciado na bebida escocesa. Continuava com pinga, limão e gelo moído. Fase de praia. Caipira se dá bem com caipirinha e refuga scotch. Mas o Guilherme tomava uísque com gelo e um pouquinho de água pura, sem gás. Aderi, pois, afinal, ele era meu mestre. Foi o primeiro uísque de algumas dezenas de litros que tomamos juntos no correr da vida, a maior parte em sua casa, na Rua Macapá, pois eu não tinha dinheiro para bancar o gosto pela bebida escocesa. Varávamos a noite discutindo poesia, forma, versos livres, metrificação variada, harmonia e ritmo. Ele ficava um pouco enciumado, quando se mencionava Fernando Pessoa. Quanto ao resto, não ligava muito. No lançamento do meu livro, que se chamou Café: a poesia da terra e das enxadas, aconteceram aquelas situações de sempre. Poeta novo na praça, apresentado pelo poeta mais consagrado de São Paulo, badalação, noticiário, até que um dia, em sua coluna do Diário de São Paulo, escreveu uma crônica, publicada no dia 1º de outubro de 1953, comemorando o surgimento do “poeta do café”, tecendo elogios para a poesia e, de repente, enfiou no texto a seguinte frase: “... agora se há dois amigos entre os homens somos nós: Saulo e eu...” 50 Provocou uma crise dos diabos. O Professor Vicente Ráo, o maior jurista do Brasil, o advogado mais famoso de São Paulo, considerava-se, e era, o maior amigo do Guilherme. Eles haviam cursado, juntos, o ginásio e a Faculdade de Direito. Formaram-se juntos, e juntos festejaram o início da profissão. E Ráo, no começo do século XX, começou a advogar no escritório do pai do Guilherme, Dr. Estevão de Almeida, advogado célebre na época, que, depois, pediu ao Ráo para abrir um escritório próprio, prometendo que lhe mandaria clientes. Mas exigiu que levasse o Guilherme, pois seu filho perturbava o ambiente sério do seu escritório com piadas e vivia fazendo versinhos. Assim, Vicente Ráo começou sua advocacia autônoma sem o Guilherme, que escreveu poemas maravilhosos e nunca redigiu uma petição. Mas passaram a vida juntos, casaram-se com mulheres que se tornaram amigas, viveram as mesmas coisas, os mesmos ambientes paulistas, e ambos, cada qual sob sua vocação, tornaram- se celebridades nacionais, Guilherme, o Príncipe dos Poetas Brasileiros, e Vicente Ráo, o maior jurista de nosso país naquela época e, para mim, de todos os tempos. — Preciso que você venha para São Paulo amanhã, sem falta — disse-me o Guilherme pelo telefone. Eu já estava morando em Santos, onde comecei a estudar Direito, depois de ter feito o colegial em Ribeirão Preto. — Por que tanta urgência? — Pela crônica no Diário de São Paulo, em que falei dos dois amigos entre os homens, você e eu. Ráo quer tirar satisfação comigo. Veja bem: ele não quer explicações, quer tirar satisfações, o que é muito mais grave. Ciúme de homem é a pior coisa que pode existir. Acaba sendo mais escandaloso e agressivo do que ciúme de amante francesa. Venha, pois quero ir ao escritório dele, na Rua Sete de Abril, aqui pertinho, levando você. No dia seguinte, subi a Serra do Mar, pensando comigo: seja o que Deus quiser! Como pode uma simples frase causar tanto barulho entre homens tão ilustres? Mas foi a frase que mudou minha vida para sempre. E como! 51 Guilherme já me havia apresentado o mundo literário de São Paulo. Numa época em que não havia televisão, chegamos a formar um grupo simpático, que saía pelo interior, declamando poesias nos teatros: Paulo Bonfim, José Carlos Dias, Selene de Medeiros, Ives Gandra Martins, Eurícledes Formiga e Guilherme de Almeida, que nem sempre estava disposto a nos acompanhar. Paulo Bonfim e José Carlos Dias eram “prefaciados” de Guilherme. Em geral, eu ficava na porta dos teatros, sentado diante de uma mesinha, quando terminava o espetáculo, vendendo os livros dos poetas. Inclusive o meu, que era o menos procurado. O público vibrava com os poetas a declamar suas próprias poesias. E um dos sucessos maiores dessas apresentações era o talento para o improviso do paraibano Eurícledes Formiga. Para dar maior sensação e autenticidade ao improviso, ele pedia que alguém da platéia lhe desse um verso para ser glosado ou um assunto para ser desenvolvido em sextilhas. Em geral, os poetas locais, pressionados pelo público, forneciam os versos românticos, líricos, fáceis de serem glosados pelo nosso fabuloso repentista nordestino. Uma noite, um espectador resolveu embaraçar o paraibano e o desafiou a improvisar sobre o tema “A saudade é um parafuso”. Ficamos todos gelados. Não tinha jeito de sair daquela encrenca. O tema era um desastre. Mas o poeta, calmo, pensou um pouco e, com voz pausada e rouca, devolveu em sextilha com rimas nas pares: “A saudade é um parafuso, Que, quando entra, não cai, Só entra se for torcendo Porque batendo não vai. Depois que enferruja dentro, Nem destorcendo não sai.” A platéia delirou. Naquele dia, o livro mais vendido na portaria foi, claro, o do Eurícledes Formiga. Os dos outros poetas, principalmente os meus, encalharam. 52 Nerval entrou em minha sala: — Pensei que você estivesse trabalhando. — E não estou? — Não parece. Quando abri a porta, você estava com os olhos fixos na janela. Parecia perdido num vôo de nuvens lá fora. — Estava lembrando o tempo dos meus amigos poetas, enquanto descanso um pouco de umas contra-razões de apelação com prazo para amanhã. — Se seus clientes souberem que você divaga na hora de trabalhar, nós estamos fritos. — Por isso não publico livro de poesias. Você tem razão. O cliente, sabendo que seu advogado é poeta, pode chegar à conclusão de que, no mínimo, corre o risco de perder o prazo nos processos judiciais. — Mas o Ives Gandra publica livros de poesia quase todos os anos e continua sendo um dos advogados mais respeitados do país, com grande clientela. — Não tenho a mesma coragem. O Ives é excepcional. Ele faz de tudo: conferências, organiza conselhos de estudos e congressos, profere excelentes pareceres jurídicos, é professor, advoga intensamente e bem. Ainda encontra tempo e paciência para criticar a política tributária do governo, tarefa patriótica e inútil. E você? Tem novidade sobre a mulher do Olavo Brás? — Tenho, e muito interessante. A mulher faz tratamento psiquiátrico com uma das mais famosas médicas de São Paulo e, segundo me informaram, tem problemas sérios de perturbações mentais. — Mas não podemos obter nada da médica psiquiatra. Ela tem o dever do segredo profissional. — O juiz pode. — Inclusive para o juiz, ela tem o direito de negar-se a fornecer informações sobre sua cliente. Tire isso da cabeça. — Eu sei, mas o juiz da nossa causa é um dos mais inteligentes e hábeis de toda a magistratura paulista na atualidade. Você sabe disso. Se ele se dispuser a ouvi-la, acabará conseguindo o que quiser, com integral respeito aos sigilos profissionais de todos os códigos de ética deste mundo. O moço é um craque! — Nerval quase discursava, tecendo loas ao magistrado. — Realmente, ele é muito bom — concordei. — E está convencido, precisamente por ser excelente magistrado, de que o deslinde da questão deve ser conduzido pensando-se nas crianças, independentemente de direito de mãe e de pai. — Um valor mais alto se alevanta — disse Nerval, depois de mandar cessar tudo o que antiga musa canta. — É preciso ter muita coragem. Vamos entrar com uma petição, requerendo ao juiz o depoimento da psiquiatra antes da audiência de instrução e julgamento? — É isso mesmo. — Seja o que Deus quiser! No mesmo dia redigi, assinei e mandei protocolar a petição. 53 — Tenho uma excelente notícia para você — disse Sinval, ao entrar na minha sala. Imediatamente, peguei o maldito cigarro e acendi, para intoxicar minha ansiedade. — Isso vai matar você — sentenciou Sinval. . — A notícia? — Não, o cigarro. — Pára com isso. Quero a notícia. — Não é apenas seu cliente que tem mania de suicídio. Você também. Cigarro mata! Sinval tinha razão. Fumante desde os quinze anos, eu tinha absoluta consciência do mal que o hábito me causava, e já causara um enfarte, duas pontes de safena, uma ponte de mamária, um stent, e eu continuava fumando, menos, mas continuava, o que não alterava o juízo que eu mesmo fazia de mim: fumar pouco não me faria menos burro. A burrice era igual. Mas não dei o braço a torcer: — Se você veio aqui para falar de cigarro, agradeço o gesto de Exército da Salvação, e pode sair, porque tenho um mandado de segurança para redigir. Estou lotado de problemas. Quero saber da notícia. Quer um café? — Não, obrigado. Se eu tomar o café, você também toma, e lá vai outro cigarro. Vamos ao que interessa. Fizemos uma reunião, o perito judicial, o assistente da autora e eu. Concordamos em que a fita apresenta a pausa depois de cada pergunta. E isso será unânime. — Bem, até aí estava mais ou menos previsto. O que mais? — Aí vem o melhor. Sugeri que o laudo fizesse constar que as pausas indicavam com segurança que as respostas foram induzidas. Nenhuma outra razão poderia justificar a pausa depois de todas as perguntas. E mais: as respostas fluíram sem hesitação, o que demonstra terem sido as crianças bem ensaiadas para dizer cada uma das frases gravadas. Em processo judicial, as perícias são efetuadas por três especialistas e profissionais habilitados. Um indicado pelo autor da ação, outro indicado pelo réu, ambos chamados de assistentes. O perito principal é indicado pelo juiz. Não é comum conseguir um laudo unânime. Por isso, minha pergunta: — Você conseguiu isso do perito judicial e também do assistente da autora? — Quem conseguiu foi a consciência de cada um de nós. O próprio perito judicial, depois de se convencer desse aspecto relevante, doutrinou o assistente da autora, ponderando estar em jogo não o interesse dela, mas a verdade em favor das crianças. Submetidas a esse tipo de ditado, as crianças sofreram uma violência moral inimaginável. Se fez isso, ou mandou alguém fazer, essa mulher é um perigo para a educação e formação dos próprios filhos. — E você não quer que eu fume com uma notícia dessas? — Não fume! Quero que você dure até o final do processo. Pelo menos. — Mas eles aceitaram colocar no laudo uma opinião dos peritos, que devem se limitar unicamente ao aspecto técnico? — Aí está a interpretação errada do princípio. O aspecto técnico pode muito bem levar o perito a concluir o porquê de sua existência. Muitas vezes, em caso de assassinato por facadas, pode- se chegar à conclusão de que o assassino é canhoto, por simples detalhes na direção e formato da perfuração. — Mas isso ainda é aspecto técnico. Na gravação, temos apenas a indicação da pausa entre a pergunta e a resposta. — No caso das facadas, veja bem, estou falando de várias facadas, não de uma só, a repetição é que facilita a conclusão. E, no caso da gravação, a repetição da pausa depois de todas as perguntas faz saltar a conclusão lógica de que a paralisação do gravador só pode ter acontecido para o ditado da resposta. Não é apenas uma opinião. É uma conclusão plausível, e nós vamos ter que salientar isso no laudo. Farei o rascunho para o perito judicial. — E há previsão para a entrega do trabalho? — Não sei exatamente, mas fique tranqüilo. Está decidido: o laudo será unânime. Quase acendi outro cigarro. Essa afirmação da perícia ia me facilitar demais na defesa do cliente e no convencimento do juiz: devíamos ouvir as crianças. Agora eu tinha um motivo técnico para obter essa prova fundamental. Lembrei-me do Gervásio: — E a distância entre a fonte de áudio e o gravador? — É sempre a mesma. As crianças estão seguramente à mesma distância quando falam. É simples determinar pelos picos da onda senoidal no analisador de espectro de áudio. O volume é sempre o mesmo. — Onda senoidal? — Aquelas ondas verdes que o osciloscópio mostra quando reproduz. As mesmas que desaparecem, quando a gravação sofre interrupção pela pausa. Conforme a altura da curva senoidal, pode- se afirmar que as crianças estão imóveis, a uma distância de trinta centímetros do microfone. É constante. — Isso vai ficar claro no laudo? — Claríssimo. — Dá para concluir que as crianças estavam sendo seguradas no momento em que respondiam às perguntas? — Aí já é demais. Não confunda a conclusão que tiramos das pausas com a hipótese de igualdade da distância entre o gravador e as crianças. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Como a televisão influencia o vocabulário das pessoas! — Não se preocupe — tranqüilizei-o. — Essa circunstância, se bem salientada no laudo, vai me ajudar a sustentar a existência de um cúmplice na gravação. Sinval saiu. Fiquei na minha sala, saboreando a notícia e o cigarro. Ah! Ainda tenho um mandado de segurança para redigir. Santo Deus! Os prazos e o cigarro vão me matar! Há tanto tempo já sei disso! Na época de Shakespeare, o rei James I da Inglaterra já sabia disso também e era antitabagista em 1615. “Fumar é um hábito repugnante à vista, odiado pelo olfato, danoso para o cérebro e perigoso para os pulmões”, escreveu o rei, em 1616, sobre o novo “mau costume” procedente da América e popularizado por Sir Walter Raleigh, introdutor do fumo no mundo dito civilizado daquela época. Até a Rainha Elisabeth I aprendeu a cachimbar. James I, que a sucedeu, ao tornar-se monarca da Inglaterra, em coerência com seu pensamento real, mandou decapitar Raleigh em 1618. Raleigh foi, portanto, um dos fumantes que não morreu de câncer, salvo que foi pela decapitação. 54 Então verifiquei que havia outro caso urgente para resolver. Era um mandado de segurança ao contrário, isto é, requerido e conseguido liminarmente pelos advogados das concorrentes da NEC, companhia japonesa, que havia ganho a concorrência pública para instalar em São Paulo a telefonia celular. Começaria com 60 mil telefones. Os impetrantes da segurança, advogados competentes, abusaram um pouco: acusaram a NEC de algumas deficiências técnicas, inclusive afirmando que ela não tinha o recurso de rooming, vital para a comunicação entre os telefones celulares de regiões diferentes. A NEC me contratou para defendê-la. Chamei o vice-presidente da empresa, Renato Ishikawa, e perguntei-lhe: — O que é rooming? Ele começou a me contar uma história de mãe e criança recém- nascida, que nada tinha a ver com telefone. — Rooming-in foi o termo utilizado por Arnold Gessel pela primeira vez em 1943 — disse ele —, em seu livro Infant and child in the culture of today, para denominar a prática de permitir a colocação, no mesmo ambiente, de um pequeno berço para acomodar o recém-nascido ao lado de sua mãe. Esse termo foi uma derivação do termo lying-in, que, em inglês, significa estar deitado, e é utilizado para mulheres em trabalho de parto. Significa alojamento conjunto. — Mas o que isso tem a ver com telefone móvel? — Tudo. A expressão foi usada para designar o recurso para o telefone portátil funcionar em áreas distantes de suas provedoras. Você pode levar seu celular de São Paulo para Brasília ou para Manaus, e ele funciona normalmente, tanto para receber chamadas como para fazer ligações. É apenas um exemplo. Ainda não temos o conjunto de sistemas instalados no Brasil. Mas será assim dentro de pouco tempo. É uma tecnologia que permite às várias e diferentes companhias telefônicas o intercâmbio das comunicações e do alojamento conjunto dos serviços ao usuário. O rooming-in. O berço da criança está sempre ao lado do leito da mãe. — E a NEC tem esse berço? — perguntei. — Claro que sim. Com essa informação, redigi um pedido de revogação da liminar concedida aos concorrentes. A matéria dependia de prova, existência ou inexistência de tecnologia, detalhe de fato, sujeita à verificação técnica. Incabível em mandado de segurança. Fui despachar pessoalmente com o presidente do Tribunal Regional Federal de São Paulo, Américo Lacombe, um craque em Direito. Cassou a liminar. Os concorrentes da NEC recorreram ao Superior Tribunal de Justiça e se apressaram em ir falar com o relator sorteado, Ministro Peçanha Martins. Também fui. Ao entrar na sala dele, ouvi logo de início: — Seus adversários estiveram aqui e fizeram uma longa sustentação oral antes da hora. Vou-lhe assegurar o mesmo direito. Comece. Peçanha Martins é um excelente jurista. Baiano de talento, gozador, bem-humorado, muita gente se engana com ele. Por trás da simplicidade e da enorme barriga, tem uma vasta cultura geral, além de uma perspicácia invejável para questões de Direito. — O senhor sabe o que rooming? — perguntei. — Não tenho a menor idéia — disfarçou ele, já esboçando um sorriso inteligente. — Sei apenas tratar-se de uma tecnologia que sua cliente não tem. — É o que afirmam os impetrantes. Mas ela tem e muito bem desenvolvida. Vocês vão decidir isso em mandado de segurança? Vão fazer perícia em processo que apenas examina direito líquido e certo? Contei a história do leito da mãe e do bercinho. Alojamento conjunto. Haveria direito líquido e certo em afirmar que a vencedora da licitação não oferece o recurso de rooming, o que depende de prova técnica complexa? A cassação da liminar foi mantida, a segurança, mais tarde, foi negada, e a NEC, em São Paulo, além dos 60 mil telefones iniciais, acabou instalando milhões de unidades. Uma delas, o meu celular, causa de muitos dos meus tormentos. 55 Autorizados por Dona Sílvia, entramos, Guilherme de Almeida e eu, na sala do Professor Vicente Ráo, para atender ao chamado do amigo ofendido pela crônica do poeta. Tive o cuidado de levar um exemplar de meu livro autografado ao grande jurista. Ráo irradiava uma simpatia cativante e uma simplicidade comovente. Depois da apresentação, brincou com o Guilherme: — Você comete o crime e me traz o corpo de delito? Guilherme, embora poeta, foi prático dessa vez: — Ráo, não sei quantos advogados recém-formados tentei lhe apresentar. Estudantes, perdi a conta. Você sempre me embrulhou com lacinhos de pompom e nunca os recebeu. Somente o impacto que lhe causei, por declarar que tinha um amigo comparável a você, possibilitou esta apresentação. O que desejo, na verdade, é que o Saulo venha trabalhar no seu escritório. O professor achou curiosa a maneira engendrada pelo amigo de juventude e me perguntou: — O senhor é formado por onde? — Ainda estou estudando na Faculdade de Direito de Santos. — Então o senhor pretende ser solicitador acadêmico em meu escritório? Naquele tempo, não havia a figura do estagiário. — Senhor Doutor Professor Vicente Ráo — respondi, um pouco embaraçado —, não pretendo nada. Creio que o Guilherme precipitou algo. O pedido que ele acaba de lhe fazer, embora muito honroso para mim, não teve a minha autorização. Minha vinda aqui tem um único motivo: conhecer o senhor e oferecer-lhe um exemplar de meu livro. O professor virou-se para o Guilherme e disse: — E agora? O que vamos fazer com o seu melhor amigo? — Leia o livro dele e espere-o formar-se em Direito. Ele voltará para pleitear o ingresso no seu escritório. Não é, Saulo? — Guilherme, que coisa mais complicada — respondi eu, já meio nervoso. — Eu dei para o professor um livro de poesia, mas isso não me credenciará como advogado. Uma coisa nada tem a ver com a outra. — Fique quieto. O Ráo é um bom leitor de poesia. Leu todas as minhas. Direito é secundário. Desejo que ele conheça sua facilidade para escrever, para dizer o que sente, o que lhe dará bons elementos para avaliar o futuro advogado, que, em geral, tem que dizer o que perna, e não o que sente. E muitos nem sequer sabem pensar. A conversa parecia luta de espadachins malucos. Misturar sonetos com razões de Direito, e no futuro. Mas terminou com o professor Vicente Ráo dizendo que o escritório estaria aberto para mim, quando quisesse, depois de formado, ou antes. Guilherme saiu com ares de vitorioso: — O Ráo deu a palavra, pronto. É um dos homens mais honrados deste país. Você terá oportunidade de iniciar sua profissão junto a um dos melhores juristas do Brasil. O destino está apontando o dedo para você. Não se desvie. E quase me desviei. Em Santos, acabei conseguindo emprego de repórter em A Tribuna. Fiquei fascinado pelo Jornalismo. Mergulhei inteiro na nova profissão, enquanto fazia o curso de Direito. No vestibular para a Faculdade, passei em primeiro lugar. Festa na família e entre os amigos. Mas o jornal, o ambiente, os novos amigos, os novos conhecimentos, a falta de horário, as altas horas na redação, quando havia crises políticas ou eventos extraordinários, tudo isso me fascinava. Cheguei a acreditar que havia encontrado minha profissão. Acabei tendo a honra de ser escalado para, em alguns dias da semana, escrever o artigo de fundo de algumas edições, o editorial. Era o máximo. Ali convivi com jornalistas excelentes: Olao Rodrigues, Geraldo Ferraz, Patrícia Galvão, Rubens de Ulhoa Cintra, Horneaux de Moura e outros, e mais outros, e mais outros. Patrícia Galvão, Geraldo Ferraz e eu fundamos o Centro de Estudos Fernando Pessoa, para cultivar e divulgar a poesia do imenso poeta português. Nisso foi incluída extensa correspondência com Casais Monteiro em Portugal. Casais era o amigo de Pessoa. A ele, o poeta escreveu a célebre carta explicando seus heterônimos. Um dia apareceu em Santos, vindo de um congresso no Uruguai, e nos deu um susto. Fugiu do navio em que viajava e queria asilar-se no Brasil, porque não tolerava a ditadura de Salazar, que, pelo jeito, também não suportava o intelectual português. Tivemos que providenciar o asilo. Geraldo Ferraz conseguiu encaixá-lo na redação de O Estado de S. Paulo e, depois, acabou se tornando professor em Araraquara. Livrou-se de Salazar. Contei essas coisas por uma razão muito simples: Casais Monteiro distinguiu-me com um presente preciosíssimo: deu-me os óculos de Fernando Pessoa, precisamente o célebre pincenê com que foi retratado por Almada Negreiros. O jornalismo me proporcionou tudo isso e, de quebra, trabalhando na baixada do litoral paulista, vi Pelé estrear no Santos Futebol Clube, em 1956, e tive o privilégio de assistir a todos os seus jogos na Vila Belmiro, nos locais reservados à imprensa, para onde me levavam o Guenaga e o De Vaney, repórteres esportivos de A Tribuna. Para encurtar toda esta conversa: formei-me em Direito e fui procurar o Professor Vicente Ráo. Admitiu-me no escritório. De início, eu viajava todos os dias de Santos para São Paulo e vice- versa. Com um detalhe: esse vice-versa era à noite. Eu ainda ia para a redação de A Tribuna, trabalhar no período noturno. Vida dura. E continuava fumando! 56 No escritório de Ráo, naquele começo tímido, tive o apoio de um advogado fantástico: Ovídio Rocha Barros Sandoval, o discípulo predileto do velho professor. Ficamos amigos incondicionais. Lutamos juntos em muitas causas. Depois de uns anos, ele nos deixou e foi ser juiz. Mas voltamos a nos encontrar em Ribeirão Preto, onde hoje somos vizinhos e convivemos, como nos velhos tempos. Aposentou-se da magistratura. E ainda advoga. E bem. Outro companheiro inesquecível foi José Frederico Marques. Veio trabalhar conosco na Rua Sete de Abril e deixou funcionando o seu escritório da Rua 24 de Maio, que transformamos em departamento criminal. Trouxe de bônus o seu genro, Manuel Alceu Afonso Ferreira, advogado que se tornou célebre por suas admiráveis qualidades profissionais e por ser jurista de talento. Todo mundo era bom naquele escritório, transformado numa usina de talentos e operadores do Direito. A modéstia me impede de dizer que eu também não era dos piores. Mas, agora que, sob esse subterfúgio de falsificar a modéstia, já disse, explico: o problema é que continuava com a alma de jornalista. Mas tinha que escolher. A notícia ou a razão de direito? A informação ao público ou a sustentação diante apenas de um juiz? A manchete, a consulta das fontes, a rapidez em colher o fato e levá-lo ao texto, ou, diante do fato, a reflexão, o amadurecimento do raciocínio técnico, o texto refletido? Foi difícil decidir. O empurrão veio da ditadura em 1964. Acabaram com a liberdade de imprensa. Resolvi dedicar-me somente à advocacia. Era uma forma de lutar pela liberdade das pessoas. Frederico Marques levantava-se muito cedo, lá pelas quatro da manhã; dormia antes das nove da noite. E Vicente Ráo, ao contrário, ia dormir de madrugada e levantava-se ao meio-dia. Isso me fez observar que o nosso escritório tinha, durante 24 horas, um gênio de plantão. Até José Sarney, quando os militares fechavam o Congresso Nacional, vinha trabalhar conosco. Marly, sua mulher, costumava dizer que nessas temporadas podia mandar seus filhos para a escola — Roseana, Zequinha e Fernando — com sanduíches recheados de goiabada. Sempre bem-humorada, insistia na defesa da tese de que o marido deveria largar a política e dedicar-se inteiramente à advocacia. Sonhar é preciso. Estava eu ali, na sala do Professor Vicente Ráo, chefiando, após sua morte, o escritório que fora dele. Sua ausência era um vazio imenso. Chegava a engasgar. Mas nós, Ovídio Rocha Barros Sandoval e eu, continuamos a conversar com o Professor Ráo, lendo suas obras. É impressionante a sensação de ouvi-lo em silêncio. E quanta sabedoria salta a cada parágrafo do que ele escreveu! E como escrevia simples, claro, sem complicação alguma! Sobre Direito Civil, foi quem melhor escreveu em língua portuguesa. Aliás, no Brasil, o próprio Direito Civil se divide em antes e depois de Vicente Ráo, já que ele trouxe doutrina e ensinamentos que alteraram completamente a forma de pensar de nossos juristas, até então limitados a citar Clóvis Beviláqua. Por tudo isso, sobre mim pesava uma responsabilidade enorme: dar continuidade à advocacia fundada por um gênio e um dos homens mais honrados do nosso país, como observara Guilherme de Almeida. Eu não tinha o direito de falhar. Em nada. Ráo fumava uns cinco maços de cigarro por dia. Ovídio nem tanto, mas seguia os costumes do mestre. Frederico Marques era mais moderado no tabagismo. Em Santos, o meu amigo Mário Covas consumia uns quatro maços diariamente, o que contribuía para sua voz ficar ainda mais rouca. Sarney era a exceção: somente fumou duas vezes na vida — uma quando foi pedir a Marly em casamento, e outra, quando estava no colégio, numa rodinha de colegas. O cigarro passava de mão em mão para uma tragada. Quando chegou a vez dele, foi pego por um professor. Teve que escrever trezentas linhas contra o cigarro. Salvou-se. Excluindo o José Sarney, minha vida era cercada de fumaça, diversa dessas neblinas que agora estão se desfazendo para eu descrever os fatos do meu passado. Fernanda Pessoa, em “Tabacaria”, escreveu: “Enquanto Deus me conceder, continuarei fumando...” E acendi um último cigarro, quando acabei de redigir umas razões quaisquer para um outro processo. Lembrei-me do Sinval. Isto vai acabar me matando. Espero, porém, durar até ler, no caso do Sr. Olavo Brás, o laudo assinado por todos os peritos. Não era pedir demais. Fiquei meditando na outra frase: “Não é apenas o seu cliente que tem mania de suicídio!” Mas, enfim, não sou inglês e não vivo no tempo de James I. Apaguei o cigarro e fui para o Paddock. Quem sabe encontraria por lá o Zé do Pé. Não deu outra. Ele estava no bar. — Chefe — ele chamava todo mundo de chefe. — Vou lhe contar o que me aconteceu ontem. O Olavo Drummond24 conseguiu me levar ao médico para uma consulta. — Bendito seja Deus. Afinal você criou juízo. — Depois da consulta, exames de sangue, aquela baboseira toda, o médico me disse no retorno: “O senhor está tecnicamente morto. Tem que parar de beber imediatamente. Nem mais um gole de hoje em diante!”. — Contou o prognóstico diante de um copo de uísque. — Até aí — respondi — todos nós sabemos. Você anda abusando demais. Não há saúde que agüente. Se o médico disse que você está tecnicamente morto, pode haver chance de ressurreição. Pare de beber. Disse que, na saída do consultório, quando ele e o Olavo Drummond chegaram à rua, estava passando um carro fúnebre. Não agüentou e gritou: — Táxi, táxi! Deu uma risada gostosa e continuou bebendo.25 57 Fiz uma reunião com meus assistentes e comuniquei-lhes as novidades contadas pelo Sinval. Teríamos um laudo oficial para balançar a convicção do Juiz e do Ministério Público, criando o benefício da dúvida para o nosso cliente. Cada assistente foi 24 Olavo Drummond, Procurador da República, Ministro dos Tribunais de Contas de São Paulo e da União, Prefeito de Araxá, Minas Gerais, meu querido amigo, amigo de Juscelino Kubitschek. Deixou muita saudade. Sua filha, Dra. Ana Drummond, trabalhou em meu escritório. 25 Zé do Pé, José Paulo Freire, tinha o apelido de Zé do Petróleo. Era rico. Depois que ficou pobre, ele próprio mudou seu apelido para Zé do Pé. Morreu de cirrose. contando em que pé estavam as suas investigações sobre a vida da mulher. Parece que, embora residindo em São Paulo, ela conhecia e freqüentava quase todos os grandes hotéis da cidade, com exceção de um único, por motivos muito óbvios. Uma das minhas assistentes, a Dra. Maria Clotilde Simigaglia, comunicou-me algo surpreendente. Descobriu a escola em que as crianças estudavam e disse que, por meio de amigos íntimos, ficou conhecendo a diretora. Tornou-se amiga dela. Passaram a freqüentar-se, a jantar no fim de semana, chegaram à maior intimidade. Clotilde sempre teve grande empatia e simpatia. Envolvia as pessoas com gestos sinceros e tornava-se uma convivência e uma companhia agradabilíssima. Mas, com a diretora da escola das crianças? O que isso queria dizer? — Chefe, a coisa está no seguinte pé — no escritório, eles tinham a mania de me chamar de chefe. — Depois de algum tempo, comentei com a diretora o caso, nosso ponto de vista e meu desejo de conhecer as crianças, jurando, claro, não tocar no assunto. Apenas conviver um pouco com o menino e a menina, ficar com eles numa sala de aula e ministrar-lhes lições extracurriculares de pintura, escultura e uma bela farra de trinta minutos. A princípio, a diretora estranhou, mas cedeu, fazendo-me jurar, e eu jurei, que não mencionaria nada do processo e não falaria nem da mãe, nem do pai delas. Convenci-a de que, se eu me tornasse íntima das crianças, elas se sentiriam mais à vontade na futura audiência em juízo. Clotilde tinha, realmente, grande facilidade em relacionar-se com crianças de qualquer faixa etária. Ficavam fascinadas por ela e suas brincadeiras. Contou-me que os filhos do Sr. Olavo Brás eram conduzidos à escola por um motorista, que ia buscá-los no final das aulas. Geralmente chegava atrasado. As crianças ficavam esperando. Disse que a diretora apresentou-a como tia “Clô” e arrumou um tempinho para ficarem juntas. E que passou a freqüentar a escola todos os dias. Se desse para ficar com as crianças, tudo bem. Se não desse, voltava no dia seguinte. No fim das aulas, com o atraso do motorista, teve inúmeras oportunidades bem aproveitadas. A tia “Clô” já se considerava alvo de absoluta confiança das crianças e uma companheirona para brincar. Confessou-me que chegou a estudar e a aprender mágica para seduzir as crianças. Clotilde assegurou-me que, no dia da audiência, essa intimidade iria facilitar muito o trabalho de todos: juiz, advogados, promotor. Mas ela ainda pretendia, antes da audiência, conseguir algo mais. — O quê? — perguntei. — Se conseguir, será uma surpresa, e positiva, para nossa causa. — Mas diga, então, até para eu ficar torcendo. — Não. Talvez você me proíba de fazer. Vou tentar sem seu conhecimento prévio. Se tiver sucesso, avaliaremos depois. Mais um mistério no caso do meu quase-suicida. Dessa vez, o suspense era criado por uma assistente minha. Não podia censurá- la, nem forçá-la a nada. A verdade é que havia tido uma idéia brilhante de tornar-se íntima das crianças, detalhe importante para a futura audiência judicial. Esperávamos que diante do juiz as crianças contassem a verdade. E Clotilde havia criado as condições para isso. Realmente era mágica. A lentidão do Judiciário é tamanha, que dá tempo para tudo isso, até para acompanhar o crescimento de crianças na escola. 58 Sempre tive sorte com advogados assistentes, meus queridos colaboradores. Alguns, eu mandava para os Estados Unidos, a fim de estagiar no escritório de um advogado americano, meu amigo. E de lá voltavam com boa experiência não tanto em Direito, mas em lidar com cliente rico. Uma assistente minha, que veio estagiar no escritório depois de apresentada por Franco Montoro e era de família humilde de Minas Gerais, gente que trabalhava na enxada, causou furor na nossa advocacia, não apenas pela inteligência, mas também pelas idéias práticas que tinha para resolver problemas. Chamava-se Mara Galbier. Certa vez, estávamos com grande dificuldade para citar um empresário famoso em São Paulo. Sua empresa, respeitada, tradicional, dificultava ao máximo a entrada de oficiais de justiça. No escritório, nem pensar, e sua casa era indevassável. Ficamos colecionando as certidões dos oficiais de justiça, para requerer a citação por edital, o que também não era fácil. Havia um misterioso sistema de defesa do empresário contra citações ou notificações judi- ciais, quando a ele endereçadas pessoalmente. Mara pediu um tempo. Soube que o empresário estava doente. Vestiu-se de enfermeira e colocou um avental de médico no oficial de justiça, inclusive um estetoscópio em seu pescoço. Chegou às pressas na residência do homem, anunciando o médico, os portões se abriram, ela entrou e acompanhou o oficial de justiça até o quarto do empresário. Lá se identificaram e citaram o réu. Pela agilidade de raciocínio da moça, entendi que deveria mandá-la para os Estados Unidos, a fim de fazer estágio no escritório do meu correspondente. Até então, somente havia mandado os homens. Ela foi e nunca mais voltou. Casou-se com um dos advogados sócios do escritório e hoje pertence a uma das maiores firmas de advocacia em Nova York. Filha de enxadeiros. Mineirinha. 59 Isso tudo aconteceu porque ela me foi apresentada por Franco Montoro, amigo de Mário Covas. E também de Jânio Quadros, que, depois da Prefeitura, resolveu ser candidato a Governador de São Paulo. Em Santos, o ademarismo era absoluto, mesmo porque, além da força de seu partido político, o PSP, tinha um líder local de grande prestígio, Sílvio Fernandes Lopes. Rubens Ulhoa Cintra e eu, jornalistas de A Tribuna, resolvemos apoiar Jânio e nos engajar na campanha. Atraímos o engenheiro magrinho, Mário Covas, o nosso Zuza, e conseguimos a adesão da respeitabilidade do advogado Ariosto Guimarães. Fizemos tudo o que podíamos fazer nesse exercício vocacional para o suicídio. Nenhum de nós entendia de política partidária e muito menos das malícias eleitorais. Jânio, creio, perdeu para os votos brancos no litoral paulista, mas foi eleito Governador do Estado de São Paulo. Depois da posse, já como Governador, visitou Santos e foi direto para a redação de A Tribuna, agradecer o apoio dos dois jornalistas. Conquistou todos os outros, inclusive os diretores, Giusfredo e Roberto Santini, que haviam permitido, em nossas colunas jornalísticas, o escandaloso partidarismo em favor de um dos candidatos, quando a postura ética teria que ser a imparcialidade. Um dia me chamou a São Paulo, no Palácio dos Campos Elíseos. Entrei em sua sala escura, meio fantasmagórica. Tinha um processo sobre sua mesa. — Quero que você estude isto. — O que é? — Política do café. — Ah! Afinal chegou sua vez — disse-lhe, lembrando nosso primeiro encontro à beira das caipirinhas. — São os trabalhos da Secretaria da Fazenda, do Professor Carvalho Pinto, que reuniu as reivindicações dos fazendeiros paulistas e dos comissários de café no porto de Santos, inteiramente antagônicas. Tenho que resumir tudo em documento que assinarei e entregarei ao Presidente da República como a posição oficial do Governo de São Paulo para o próximo regulamento da safra. Você ainda escreve sobre esta geringonça? — Escrevo. — E já entende? — Um pouco. — Então, por favor, meu amigo, leve este calhamaço e me devolva com um resumo. Mas venha pessoalmente, para me explicar suas conclusões. Levei, estudei, redigi, voltei. Jânio tinha uma perspicácia fenomenal e uma enorme facilidade para aprender qualquer coisa, por mais complicada que fosse. Prestava profunda atenção, sem importar a qual expositor, fazia perguntas sobre pontos que lhe pareciam obscuros e passava a dominar o assunto com tranqüila familiaridade. Depois me contou que reuniu seus economistas e assessores, inclusive o Professor Carvalho Pinto, e fez a exposição discorrendo sobre todas as reivindicações da cafeicultura e dos exportadores do porto de Santos. Criticou-as, rejeitou as absurdas e comunicou suas conclusões em detalhes. Os funcionários estaduais ficaram abismados com a facilidade do Governador para entender e resolver a questão que, para seus antecessores, era o mais puro grego. E lançou o grito de guerra: enquanto houver confisco cambial, não haverá regulamento de embarque capaz de salvar o Brasil e sua cafeicultura. Era o primeiro tijolo de sua candidatura a Presidente. 60 E veio a campanha para Presidente da República. De novo, engajei-me na política e, dessa vez, ganhar em Santos foi fácil. Mas, durante a campanha, de quando em quando, Jânio me chamava para outros lugares. Um dia, fui ao Rio de Janeiro. O assunto era café. Dei a necessária assessoria. Ele se hospedava no Hotel Glória, e lá me hospedei também. À noite, no jantar, apresentou-me a um jovem deputado da UDN, que se chamava José Sarney. — Quero que os jovens se conheçam. O Brasil precisa da inteligência de vocês, meus meninos — e foi conversar com os demais políticos convidados: Carlos Lacerda e outros líderes do partido de oposição na época. Sarney e eu, como bons meninos, começamos a nos investigar cuidadosamente, com perguntas hábeis e respostas cuidadosas. Naquela época, ambos adorávamos uísque, sobretudo quando era de graça. Abusamos um pouco, e a conversa ficou mais fácil. De repente, estávamos falando de poesia. Descobrimos ter a incorrigível tendência para os versos, literatura, sonhos, ideais e, o mais surpreendente de tudo, idéias. A conversa enveredou para Fernando Pessoa. Aí lhe contei que eu participara do lançamento do poeta português no Brasil, com a fundação do Centro de Estudos Fernando Pessoa, juntamente com Geraldo Ferraz e Patrícia Galvão, em 1956. E que essa iniciativa despertara a atenção de Rui Afonso, que participava do coro dos tebanos numa peça grega, traduzida por Guilherme de Almeida e encenada em São Paulo, no Teatro de Arena. Rui teve a feliz idéia de aproveitar o coro dos tebanos e formar um conjunto de declamadores chamado Jograis e, no Teatro Oficina, em coral, declamaram as poe- sias do poeta português. Sucesso absoluto, começando por “Ode marítima”, poema fantástico. Sarney ouviu tudo com calma, sorveu um longo e saboroso gole de uísque e disse: — Ótima contribuição, mas quem lançou Fernando Pessoa no Brasil fui eu. Pulei da cadeira. Impossível! Nossa primeira discussão. Como? De que forma, em que ano? — Em 1947, em São Luís, Maranhão. Publicamos poesias dele trazidas por Bandeira Tribuzi, que as conheceu em Portugal. O poeta ainda estava vivo. Não havia jeito. Ele ganhara a batalha. Mas não tinha o pincenê de Fernando Pessoa, meu prêmio de consolação. Ele seguiu na campanha de Jânio no Nordeste, e eu fiquei no humilde círculo municipal de Santos. Voltamos a nos encontrar em Brasília, depois da posse do presidente eleito. Jânio me convidara para ser seu oficial de gabinete, encarregado de assessorá-lo na política do café e outros assuntos. Sarney foi indicado vice-líder do Governo na Câmara dos Deputados e todo começo de noite passava pelo Planalto, onde vinha discutir com o Presidente os problemas do Congresso, e aproveitávamos para sair juntos, rumo a duas doses de uísque, antes de ir para casa. O líder do Governo era o Deputado Pedro Aleixo, que se recusava a comparecer à Câmara para assumir o posto. Estava magoado com Jânio, em virtude da vitória da chapa Jan-Jan, Jânio e Jango, e da derrota do candidato a vice pela UDN — União Democrática Nacional —, Professor Milton Campos. Naquele tempo, a lei permitia o lançamento de candidato a vice independentemente do candidato ao cargo principal de Presidente da República. Com isso, ganhamos a convivência de Sarney. 61 No Planalto, ano zero, trabalhava-se muito. Não havia infra- estrutura, ainda não existia fax, as comunicações se faziam por telex, telefone funcionava mal, os ministérios fingiam mudar para Brasília, mas continuavam no Rio. Confusão total. O maravilhoso sonho de Juscelino Kubitschek nas primeiras horas era um pesadelo. A República estava isolada no planalto goiano. A melhor colaboração vinha do Gabinete Militar, sob a chefia do General Pedro Geraldo. Ali se praticavam milagres para manter o Palácio do Planalto em comunicação com a máquina do Governo. Entre os oficiais de enorme eficiência, dois se destacaram: o Major Leônidas Pires Gonçalves e seu colega Ivan de Souza Mendes. Foi um martírio dar os primeiros passos na administração pública federal naqueles tempos. Onde está o Ministro da Fazenda? No Rio. Onde está o Ministro das Relações Exteriores? No Rio. Acharam o Ministro da Fazenda? Está em trânsito. Em trânsito queria dizer voando num avião Viscount, que não chegava nunca, não tinha horário certo para decolar, vôo cancelado, muita confusão. Mesmo assim, em apenas sete meses de Governo, Jânio conseguiu fazer o PIB crescer 9%. — Quero um favor de você, e muito especial — disse-me ele, acendendo a luz vermelha do lado de fora de sua sala, para ninguém entrar. — Santos. Você conhece bem a cidade e seus políticos, como convém a um jornalista competente. — Conheço, é claro. Qual o problema? — As eleições municipais, que se realizarão dentro de alguns meses. Vai haver um confronto entre janismo e ademarismo. Pelo janismo, o candidato a prefeito será o Athiê Jorge Cury, que perderá para o candidato do Ademar, seja qual for. Gostaria que você fosse a Santos, reunisse nossos amigos e lançasse um candidato em nome do janismo. Sua autoridade lá, sob esse aspecto, é indiscutível. — Espere um pouco: se eu conseguir que os nossos amigos lancem um candidato, o Athiê vai desistir? — Não. Continuará candidato. — Então vamos perder mais fácil ainda. — Mas teremos perdido, porque o janismo foi dividido. É essa a sutileza. — Uma sutileza de elefante. — Elefante é o Athiê, que não abre mão da candidatura, e sua derrota será fragorosa. Lance um outro janista idôneo, se possível seu amigo, na sua faixa etária, e que tenha participado de nossa campanha. — Mário Covas — disse eu. — Pode até ganhar. 62 Lá fui eu para Santos. Convencer o Zuza foi uma dureza. Primeiro, porque não queria saber de política. Participar da campanha do Jânio era uma coisa, mas ingressar ele próprio na política era outra, que não lhe agradava de maneira alguma. Depois vacilou. Lila, sua mulher, ajudou-me decisivamente. Com a vivacidade característica de sua inteligência, Mário Covas fez seus rápidos cálculos matemáticos (nisso era imbatível) e logo concluiu: “Além do mais, o eleitorado janista vai ficar dividido, e não temos a menor chance de ganhar!”. Expliquei-lhe a angústia de Jânio e a sutileza do elefante. Consentiu em ser candidato. Athiê não desistiu e atrapalhou o que pôde. Nos fins de semana, eu ia a Santos e dava à campanha de Covas a “autenticidade” janista. Finalmente, vieram as eleições, e quase ganhamos. Covas ficou em segundo lugar, com uma votação consagradora para um estreante na cidade tão politizada. Athiê sofreu a prevista rejeição do eleitorado. Jânio vibrou. Telefonou para o Mário Covas, dizendo que esperava dele a liderança do janismo em Santos. Um pouco antes da posse do vencedor do pleito eleitoral pelo ademarismo, o Dr. Luiz La Scala, o prefeito eleito sofreu um acidente e faleceu, situação altamente triste, constrangedora, lamentável. Mas o fato desencadeou um movimento irresistível nos meios políticos. Deveria assumir o segundo colocado, porque, sem a posse do titular, o vice, o radialista José Gomes, ainda não teria o direito de substituí-lo. O pessoal foi discutir no Judiciário. Em primeira instância (hoje, jurisdição de primeiro grau), a sentença foi clara: o vice tinha direito autônomo. Se o titular não assume o cargo, o vice tem direito de tomar posse. Fim de papo. Fim de papo coisa nenhuma. Recurso para o Tribunal Estadual. Sentença confirmada. Recurso para o Tribunal Superior Eleitoral. Entendimento confirmado: o vice, embora o titular não tenha assumido, tem direito autônomo ao cargo, para o qual foi eleito tão legitimamente quanto o seu companheiro de chapa, ou independentemente dele. Ficamos conformados. O pronunciamento da Justiça é mais sábio do que a inexperiência da moçada movida a entusiasmo. 63 Vamos fazer um vôo no tempo, um vôo de vinte e cinco anos para o futuro. Mário Covas, eleito deputado federal. Tancredo Neves, eleito presidente da República no Colégio Eleitoral, juntamente com seu vice, José Sarney. Na véspera da posse, Tancredo adoece e vai para o hospital, fato que o País conhece. E armam a encrenca legal que eu conhecia bem: o titular não tomou posse e, em conseqüência, o vice não pode assumir. O cargo vago teria que ser exercido pelo Dr. Ulysses26 Guimarães, presidente da Câmara. Confusão geral no país. Rádio, televisão, juristas dando opinião de um lado, rebatida por outros juristas, políticos inflamados, e o Dr. Ulysses, é claro, deliciado com a hipótese, mais pressionado por amigos do que por idéia própria. Um grupo de deputados, liderados por Freitas Nobre, e de senadores, instigados por Saldanha Derzi, fazia algazarra para Ulysses assumir a Presidência da República, solução que, pelo Direito Constitucional vigente, equivalia a declarar vagos os cargos de Presidente e de Vice- Presidente, isto é, um golpe de Estado. Sarney, um eterno e teimoso conciliador, conta essa história de 26 Ulysses Guimarães escrevia-se com “Y”, contrariando todos os demais Ulisses da língua portuguesa. No francês e no espanhol a letra “Y” é chamada de “i grega”. Supõe-se que o primeiro Ulysses, o de Homero, tenha grafado seu nome com “Y”. forma diferente. Afirma que o Dr. Ulysses defendeu a posse do Vice desde o primeiro minuto. Não é bem assim. Nos primeiros momentos, o então Presidente da Câmara deslumbrou-se com a hipótese de assumir a Presidência da República, movido, porém, pela idéia de convocar eleições diretas no prazo constitucional. Afinal, ele era chamado de “o Senhor Diretas”. Deixou-se prazerosamente emprenhar pelos ouvidos. Para complicar ainda mais, o então Presidente da República, o último da ditadura, General João Batista Figueiredo, mandou mais lenha na fogueira. Sarney não podia assumir. Prendo e arrebento. Seu Ministro do Exército, General Walter Pires, com gestão por mais um dia, ameaçava acionar seu “dispositivo” para impedir a posse de Sarney. Figueiredo foi claro: se Sarney assumisse, não lhe passaria o cargo. Estava de mal, isto é, odiava Sarney, porque possibilitara a eleição de Tancredo. O candidato do general era Paulo Maluf, que perdera no colégio eleitoral. Figueiredo e muitos militares achavam que a culpa era de Sarney. A Aeronáutica queria anular a eleição pelo Congresso. Confusão dos diabos. Eu estava num restaurante de Brasília, tomando aperitivo bem antes do jantar e, com alguns amigos, festejando o fim da ditadura. Zequinha Sarney me achou: — Papai quer falar com você agora, lá no apartamento dele. Eu levo você. Lá se foi o meu jantar. No apartamento, a maior confusão. Sarney estava calmo, mas o entorno estava muito agitado. As idas e vindas do Hospital de Base eram martirizantes. Versões, recados, comentários, opiniões, vaticínios, deduções e, ainda bem, algumas orações comovidas. Passado algum tempo, chegou o General Leônidas Pires Gonçalves, já nomeado Ministro do Exército por Tancredo, decreto assinado, como todos os demais que seriam publicados depois da posse do Presidente da República. A nomeação, portanto, não valia. Leônidas trazia um exemplar pequeno da Constituição, aberto no artigo que tratava da posse de Presidente e de seu Vice, e que dizia: “Se decorridos dez dias da data fixada para a posse, o Presidente ou o Vice-Presidente, salvo motivo de força maior, não tiver assumido o cargo, este será declarado vago pelo Congresso Nacional” (parágrafo único do art. 76 da Constituição então vigente). Esse “ou” era de uma clareza ensolarada. Se um não pode tomar posse, pode o outro. Logo, depois do “ou”, o outro pode. O “ou” do texto legitimava a posse do Vice sem a posse do titular. Além do mais, para entregar o cargo ao Presidente da Câmara, o Congresso deveria iniciar o processo com uma prévia declaração de vacância, o que seria uma farsa por duas razões: o Presidente eleito, doente, não podia tomar posse por motivo de força maior, ressalva expressa no texto constitucional. E o Vice não estava doente. Nada o impedia de tomar posse no cargo para o qual fora eleito — o de Vice —, com as funções de substituir o Presidente em caso de impedimento temporário, ou de sucedê-lo em caso de morte, renúncia ou impeachment. É a disciplina constitucional. A urubuzada temia a primeira hipótese. Se Tancredo morresse, Sarney seria o Presidente nos seis anos seguintes. Aproximei-me de Sarney e disse, apontando para o general: — Eu e meu colega aqui, emérito constitucionalista, concordamos que o Vice pode tomar posse por causa do “ou”. Se o Congresso não se reunir, a Constituição autoriza a posse perante o Supremo Tribunal Federal. Sarney sorriu, porque eu chamara o general de colega. O destino é caprichoso. Leônidas tinha pertencido à equipe de Jânio em 1961, trabalhara na Presidência da República. Fôramos bons companheiros. Era major naquele tempo, como contei acima. A amizade permitia a brincadeira, mesmo no ambiente tenso daquela noite. Afonso Arinos deu uma entrevista para a televisão: — O Dr. José Sarney não é vice do Dr. Tancredo Neves; é Vice- Presidente da República. Permanecia, porém, o impasse. E Sarney explicou por que me chamara: — Claro que quero sua opinião, mas a questão constitucional não é tão complexa como está sendo pintada pelos políticos. Eu até preferia esperar o Tancredo para tomarmos posse juntos. Mas temos todos que nos submeter ao procedimento constitucional. O problema é que um dos líderes dessa tese doida contra a posse do Vice é o Mário Covas. Gostaria que você falasse com ele. — Zuza, aqui é o Saulo. Tudo bem? — Tudo bem nada — respondeu. — Veja a crise que está nos ameaçando. — A crise está sendo criada por vocês do MDB — Movimento Democrático Brasileiro —, que querem dar a Presidência da República para o Dr. Ulysses e, para isso, estão enchendo a cabeça do velho. — Saulo, respeito sua amizade pelo Sarney, mas a verdade é que, Tancredo não tomando posse, o Vice não tem a quem substituir, já que o cargo está vago. Pela Constituição, deve assumir o Presidente da Câmara, estando vago o cargo. — Pára com isso, Zuza! Desde quando você virou jurista? E outra coisa: minha amizade pelo Sarney é igual à que tenho por você. Nisso o jogo está empatado, e é favor respeitar. Agora me permita esclarecer o que está escrito na Constituição, pois aqui entra, mais do que amizade, a minha inteira devoção ao Direito. Dessa matéria entendo eu. Descrevi didaticamente. Ele ainda ficou na dúvida, rebatendo com o argumento de que outros advogados tinham opinião contrária, acrescendo um fundamento, mais fruto de paixão do que de sua inteligência: esta Constituição é dos militares. — Mas você foi eleito por ela. Tancredo e Sarney também. O Dr. Ulysses é Presidente da Câmara por causa desta Constituição dos militares. E espere aí. Guarde a faca. O principal objetivo do meu telefonema é avisar você que já existe jurisprudência na Justiça Eleitoral, declarando que o vice, mesmo sem a posse do titular, tem direito autônomo ao exercício do cargo, como substituto no impedimento, ou sucessor na vacância, independentemente da posse do titular — repeti. — Jurisprudência firmada há mais de vinte anos. — Em que caso? — No seu. — Quê? — No seu caso, meu querido, na eleição para a Prefeitura de Santos. Você mesmo ingressou em juízo para impedir a posse do José Gomes, o vice do La Scala, que morreu antes de assumir. — Meu Deus, é verdade! — Já pensou algum advogado soprar para a imprensa, no meio desta confusão, que a jurisprudência foi firmada num caso seu, e você continua a berrar que o Vice não tem direito à posse? — Você não vai fazer isso comigo! — Desde que você pare de contrariar a jurisprudência de nosso país, que você mesmo provocou. E passe a respeitar a Constituição dos militares, pela qual você se elegeu, até que o Congresso escreva outra pelos meios normais, com sua ajuda. — Está bem, está bem. Vou falar com o Ulysses, e acabamos com essa encrenca. Já era noite alta, quando Ulysses Guimarães deu entrevista às televisões e às rádios, reconhecendo que o Vice deveria tomar posse. Horas complicadas aquelas. Sarney me contou, e a madrugada já vinha chegando, que Tancredo, com sua enorme experiência e vivência de muitas crises brasileiras, havia articulado a pacificação com todas as alas militares já antes da eleição no Colégio Eleitoral. E nisso teve a ajuda inestimável de Leônidas Pires Gonçalves, inclusive mais tarde na nomeação de Moreira Lima para Ministro da Aeronáutica. Uma expressiva parcela da Força Aérea, ligada ao brigadeiro, inconformada com a vitória de Tancredo, tinha “planos radicais para cancelar a eleição presidencial”. Aliás, na campanha pelas eleições diretas, que mobilizou o povo brasileiro de forma impressionante, os comunistas e esquerdistas extremados quase puseram tudo a perder. Houve um comício em Goiânia, ao qual compareceram em peso com bandeiras vermelhas, foice e martelo, gritando frases duras contra os militares. Não deu outra: nova conspiração das altas patentes. Vinte anos não foram suficientes! É preciso mais!”. Fomos salvos, por incrível que pareça, porque o Congresso Nacional derrotou a emenda das diretas. Diante disso, os militares passaram a acreditar que poderiam ganhar as eleições naquele eleitorado encurralado e medroso. Lançada a candidatura de Tancredo Neves, os militares vieram com Paulo Maluf, que derrotou Andreazza na convenção do PDS — Partido Democrático Social —, partido deles. É preciso lembrar que o sistema autoritário da ditadura resolveu devolver não a liberdade política aos brasileiros, mas o poder aos civis, certos de que o eleito seria Paulo Maluf, cria do General Costa e Silva, e fidelíssimo aos comandantes, inclusive ao General Newton Cruz, que cavalgava golpes de Estado em todos os seus sonhos. O Presidente da República, João Figueiredo, declarava em público que o vencedor das eleições no Colégio Eleitoral seria empossado. Defendia a legalidade então vigente. Mas, em particular, dizia: “Tancredo, never!”.. Pois o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo Neves por 480 votos contra 180 dados a Paulo Maluf. Desde esse resultado, começaram os problemas para a posse do presidente eleito. Tudo era pretexto. As fotos do comício de Goiânia, bandeiras vermelhas com foice e martelo, voltaram a circular nos quartéis. O PT agitando o máximo, com viseiras e sem visão. Quase faz os militares retomarem o poder por mais vinte anos. O próprio Tancredo Neves, no Hospital de Base, confidenciou a seu sobrinho, Francisco Dornelles, temer que Figueiredo não permitisse a posse de Sarney. Quase acertou. O general engoliu a posse, mas não transmitiu o cargo. Depois que Mário Covas se convenceu, Leônidas e Ulysses Guimarães foram ao Leitão de Abreu, Ministro Chefe do Gabinete Civil do Presidente Figueiredo, e comunicaram haver harmonia no entendimento de que o Direito Constitucional vigente determinava a posse do Vice independentemente de haver assumido o titular do cargo. Walter Pires, então Ministro do Exército, ao ter conhecimento de que seria empossado Sarney, avisou: “Então vou agora mesmo para o ministério, mobilizar nosso dispositivo”. O doutor Leitão de Abreu calmamente ponderou: “General Walter Pires, o senhor não é mais ministro. Nos quartéis, quem já está dando ordens é o General Leônidas”. A nomeação dele para Ministro do Exército, naquele momento, não era válida. Leitão de Abreu blefou. E ninguém pagou para ver. Na verdade, toda essa conversa de interpretações constitucionais queria dizer o seguinte: não adianta pensarem em mais um golpe, pois haverá resistência e, desta vez, com divisão das próprias Forças Armadas. Leônidas Pires Gonçalves estava do lado da legalidade, com o controle da tropa e daquele pequenino “ou” do artigo da Constituição. Restaurar a democracia, naquele momento, não foi fácil. Eu estava lá. Meninos, eu vi! Leônidas voltou ao apartamento de Sarney. Havia pouca gente, pois a notícia de que Ulysses estava convencido apaziguou os ânimos. Mas o que se desejava saber era como estavam os “ânimos” da tropa, não muito afeita a essa história de Direito Constitucional, mesmo porque o “agito” tinha sido muito grande pela televisão e rádios. O novo Ministro do Exército, meu antigo amigo “Major” Leônidas, relatou a conversa com Leitão de Abreu, a engasgada de Walter Pires e assegurou que tudo estava em ordem. Eram três horas da madrugada, quando ele ligou para o Sarney e disse: — Boa noite, Presidente! Fiquei mais uns dez minutos, tempo para retomar uma dose de uísque, operação que havia interrompido antes do jantar. Aliás, acabei não jantando. Foi minha vez de dizer boa noite, observando: — Sem continência, visto que sou reservista de terceira categoria. Sarney devolveu rápido: — Mas pode fazer continência no uísque. Amanhã precisamos estar lúcidos. — Calma, meu compadre! Você precisa estar lúcido. E estará. Eu não. Depois de sua posse, volto para casa. Não pertenço a seu governo. Sou advogado em São Paulo, embora exerça a advocacia com total lucidez . No dia seguinte, Sarney tomou posse perante o Congresso, sem contestação de ninguém. Recebeu cumprimentos do Dr. Ulysses Guimarães e de Mário Covas Júnior, deputado e engenheiro já não tão magrinho como antes. Até hoje, ao lembrar esses fatos, Sarney faz enorme confusão sobre um detalhe importante: costuma dizer que eu queria pedir mandado de segurança para assegurar sua posse. E dá risada! Na confusão, ele próprio não entendeu. O que eu afirmei foi que, pela Constituição vigente (está escrito lá, basta ler), se o Congresso não se reunisse, a posse poderia ser tomada perante o Supremo Tribunal Federal. Eu próprio havia feito minhas sondagens, e o Supremo estava pronto para reunir-se e dar posse ao Vice-Presidente eleito. Basta conferir com seus ministros. Estão, felizmente, quase todos vivos. 64 Em pouco tempo, no dia 21 de abril de 1985, Tancredo morreu, depois de longo e doloroso martírio. Sarney não se sentiu seu sucessor, mas seu testamenteiro político. Então chegou sua vez de passar por outra espécie de martírio: assegurar a democracia na tempestade das balbúrdias que sobrevieram com as liberdades mal utilizadas, mas ainda espreitadas com grande desconfiança por trás dos portões dos quartéis. Um ano mais tarde, José Sarney convidou-me para ser seu Consultor Geral da República. Passaria Paulo Brossard, jurista e político de grandes predicados, para o Ministério da Justiça e me queria ao seu lado para as batalhas jurídicas do Governo. Tentei resistir. Afinal, estava diante da única oportunidade de minha vida de continuar advogando em São Paulo e dizer que era amigo do Presidente da República. Situação nada desprezível. Ir para o Go- verno tornar-me-ia um servidor público, teria que deixar a advocacia, perderia a chance de dar palpite do lado de fora, o que é uma delícia. Passaria a ser apenas mais um “deles”. Sucumbi diante do argumento fulminante: o país teria uma Constituinte, que ele convocara, e era preciso trabalhar muito durante o processo político de elaboração da lei mais importante para o Brasil na implantação do Estado de Direito, depois de vinte anos de ditadura. Não sei se estou certo, mas Tancredo talvez não tivesse convocado a Constituinte logo no início do mandato, que era de seis anos. Deixaria para o final, depois que o exercício político democrático estivesse mais consolidado. Pelo menos essa também era a opinião de um dos maiores colaboradores de Tancredo, José Hugo Castelo, figura formidável, com quem tive a ventura de conviver até seu doloroso fim. Mas Sarney, que já havia restabelecido, sem condições, todas as liberdades públicas e políticas no país, tinha uma obsessão: cumprir tudo o que Tancredo prometera ao povo em eleições indiretas... Sentia-se com a obrigação de um testamenteiro. E queria que eu o ajudasse. Aceitei. E, ao aceitar, não havia tomado uma única dose de uísque. Não sei, porém, se estava lúcido. 65 Na Consultoria Geral da República, levei um susto: o Brasil não tinha advogados que defendessem a União nas milhares de ações que corriam na Justiça Federal pelo país afora. Simplesmente este fato fantástico: o Brasil, o meu país, não tinha advogados que o defendessem no Judiciário. O colosso pela própria natureza, terra dos bacharéis em Direito, não tinha advogados para si próprio. Também nisso era um indefeso! Claro que eu já sabia, mesmo porque, antes, na minha vida profissional, havia vencido muitas causas contra o Governo Federal. Para os advogados brasileiros, litigar contra a União era moleza. Meu susto consistiu em verificar que a União não tinha, na estruturação, nenhuma organização ou sistema de intercâmbio e de apoio que funcionasse na defesa do interesse público federal, trocando estudos, colecionando jurisprudência, debatendo questões, ajudando-se reciprocamente. A atividade era estanque, isto é, cada ministério tinha seus assistentes jurídicos (e mal remunerados), que atendiam aos casos internos, proferindo pequenos pareceres sobre a matéria controvertida. Quando surgia uma ação judicial contra a União, ou quando a União tinha que propor uma ação judicial contra alguém, o assunto era estudado isoladamente, no ministério que tivesse competência administrativa para tratar da matéria. Os outros não ficavam nem sabendo. E o encarregado de propor a ação ou de defender a União era simplesmente um estranho: o Ministério Público Federal. Nos assuntos internos, quando havia divergência, os ministros mandavam o problema para a Presidência da República, ouvia-se o Consultor Geral da República, que proferia parecer. Aprovado pelo Presidente, o parecer tornava-se norma obrigatória para toda a administração pública federal. Pelo lado de dentro, o sistema funcionava razoavelmente. Mas, do lado de fora, era um desastre. Em juízo, quem ia representar a União e defendê-la era um promotor público, um Procurador da República, de especialidade criminal junto às varas federais, em processos penais. Assim, o representante do Ministério Público Federal com essa função — que hoje desenvolve com exclusividade — de atuar em ações penais e no máximo em ações civis públicas era chamado a agir em todos os processos de interesse da União, nos mais variados e complexos as- suntos jurídicos e para os quais não estava preparado. Nem podia estar, tamanha a variedade e a complexidade de assuntos tão distintos uns dos outros. Aí vinha o deus-nos-acuda, pois os processos eram complicados. O pobre do promotor público federal, um criminalista acostumado a estudar Direito Penal e a lidar com o crime, tinha que enfrentar casos de contratos difíceis, que haviam sido descumpridos ou sofrido interpretações contraditórias nas respectivas execuções. Litígios sobre concessões públicas, licitações, obrigações administrativas, Direito Público, sonegação fiscal, cobrança de tribu- tos, brigas nas exportações e nas importações, nas extrações de minérios, contratos cambiais. Uma infinidade de assuntos, em que enfrentava, do outro lado, escritórios de advocacia poderosos, de grande cultura e altamente especializados. E o deus-nos-acuda foi virando rotina. A defesa da União era feita ao deus-dará. Os prazos eram cumpridos na marra. Os promotores se viravam com instruções recebidas dos assistentes jurídicos dos ministérios. Nas audiências, diante do juiz, em muitos casos, não todos, dava dó. O defensor da União não entendia do assunto, perdia-se diante da argumentação dos advogados privados, a tal ponto que o magistrado federal, em muitas ocasiões, passava ele próprio a defender a União, numa distorção da devida imparcialidade. Esse costume até hoje perdura em algumas jurisdições, mesmo depois de resolvido o problema; mas continua, pois alguns juizes federais agem de olho na promoção e nas vagas de tribunais que dependem das autoridades administrativas e políticas da União. Somente o Ministério da Fazenda, assoberbado com as questões tributárias, possuía um corpo de advogados mais atuantes na Procuradoria-Geral. Mas tinham que alimentar o Ministério Público com informações e explicações didáticas, que nem sempre eram absorvidas a tempo e de forma a assegurar boa defesa do direito da União, quando houvesse. A despeito do título de Procurador da Fazenda, o profissional não podia oficiar no Judiciário. Era um procurador sem procuração. É verdade que tal situação despertou, em muitos procuradores da República, a consciência profissional de que deviam estudar a fundo a matéria debatida nos processos, e neles a União teve defensores notáveis, mas poucos por este Brasil afora. Eram milagreiros. O problema agravava-se ao extremo pela falta de sistemática, falta de uma advocacia organizada e integrada, que tivesse profissionais exclusivamente encarregados de agir em juízo, na defesa de um cliente tão importante: o nosso país. Como a Constituinte estava em andamento, consegui, com a ajuda da chamada bancada do Governo Sarney, a criação da Advocacia Geral da União, tirando do Ministério Público o antigo e penoso encargo que nada tinha a ver com sua verdadeira função e especialização constitucional. Depois de alguns entreveros amáveis com o Dr. Cid Heráclito Queiroz, Procurador-Geral da Fazenda Nacional, que puxava a sardinha para os advogados de seu ministério, por um pouco mais de poder, o que me era indiferente, concordamos na redação final do texto, e a Constituinte criou a AGU — Advocacia Geral da União. Afinal, o Brasil passou a ter advogados para defendê-lo perante o Judiciário. 66 Mas antes, enquanto o “seu” lobo não vinha, e precisamente para servir de exemplo ao constituinte, consegui criar, por decreto executivo, graças à cumplicidade de José Sarney, a Advocacia Consultiva da União, integrando os serviços jurídicos da administração federal. Todo mundo colaborava com todo mundo, acabando com aquela história de que “isto não é conosco, é com outro ministério”, para implantar ao menos a mentalidade de advocacia profissional na administração pública. De quebra, consegui, a duras penas, um aumento de vencimentos para os assistentes jurídicos. Virei herói, não tanto pela sistematização e pelas sementes da Advocacia Geral, mas pela melhoria de suas vidas no fim do mês, pois ser advogado no serviço público federal era um sufoco sem tamanho. O dinhei- rinho mal dava para comprar comida e roupa decente, uma gravatinha, sempre a mesma. Livro de Direito? Brincadeira. Na Consultoria, eu contava com a colaboração do secretário- geral, jovem promotor público de São Paulo, José Celso de Mello Filho, requisitado para prestar serviços à Presidência da República. Talento inegável. Trabalhava como poucos, fazia pesquisas jurídicas com grande facilidade e indiscutível qualidade. Memória invejável, inteligência, redação excelente, português escorreito. Ajudou-me muito na Consultoria, ao lado de outros consultores igualmente competentes e dedicados. Felicidade minha ter tido uma boa equipe, que, além do trabalho pertinente às funções, sacrificou-se em incontáveis horas extras durante os planos econômicos (Cruzado e Bresser) e durante a Constituinte, no assessoramento de deputados e senadores. Eis que surgiu mais uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Federal. Sarney já havia nomeado três: Carlos Madeira, Sepúlveda Pertence e Paulo Brossard. Sugeri a Sarney que indicasse José Celso de Mello. Estávamos no último ano de governo, o moço não teria outra oportunidade, pois, como promotor em São Paulo, jamais conseguiria que alguém o levasse ao Supremo, se não fosse agora. E merecia. Havia trabalhado muito durante os dias e as noites difíceis da Constituinte, quando me ajudou a assessorar uma infinidade de congressistas. Nos planos econômicos: o Plano Cruzado, inclusive o chamado Plano Cruzado Dois, um desastre, o Plano Bresser, menos o Plano Verão, do qual não participamos, por termos sido afastados pela equipe do Maílson da Nóbrega, que nos achava uns chatos, de tantas advertências sobre inconstitucionalidade daqui, ilegalidade dali. Juristas apenas atrapalhavam. — Mas há um problema — disse Sarney. — Qual? — O Oscar Correia quer nomear o Ministro Carlos Velloso, do Superior Tribunal de Justiça. Você tem que enfrentar a mineiridade. Não posso contrariar meu Ministro da Justiça. E o Pertence27 também acha que Velloso é muito bom. Bom mesmo era aquele tempo, em que se discutia a qualidade do jurista a ser indicado unicamente pelo mérito, jamais pelo compadrio político, e não por ser deste ou daquele partido, ou por ser japonês, negro ou índio. O que se exigia era um vasto conhecimento do Direito e, acima de tudo, muito bom senso no trato com as leis. Ou, como diz a Constituição, de notável saber jurídico e ilibada reputação. — Espera aí — ponderei. — Nada contra a capacidade do Ministro Carlos Velloso. Ele tem talento e cultura para servir, e bem, no Supremo. Ocorre que o José Celso, que também ostenta as mesmas qualidades, além do serviço prestado ao nosso Governo, nunca mais terá oportunidade, se não for por seu intermédio. Velloso, por seu notório saber jurídico (é o texto da Constituição e a opinião que tinha dele, e mantenho), continuará no STJ, e o próximo Presidente da República certamente o escolherá para uma futura vaga no Supremo. Sarney resolveu fazer uma reunião e convocou Oscar Dias Correia, Ministro da Justiça. A discussão foi amável. Oscar não arredava pé da indicação de Velloso, e eu finquei o pé na indicação do José Celso de Mello. Os argumentos foram mais ou menos os mesmos, mas houve um momento em que o Ministro da Justiça hesitou e lançou o que achava o fundamento fulminante: 27 Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, que, além de poder julgar um bom jurista, por ser um deles, era mineiro, como o candidato Carlos Velloso. — Concordo. O Celso de Mello é excelente, mas tem, em minha opinião, um defeito: é muito moço. — Mas esse defeito o tempo corrige — observei de pronto. Sarney gostou da resposta. Oscar Correia sorriu e, sentindo que o Presidente estava inclinado pela minha indicação,28 acabou concordando, mesmo porque era um homem gentil, além de mineiro. Voltei para a minha sala, ditei para a minha datilógrafa a indicação do José Celso. Chamei-o à minha sala, estendi-lhe o papel e pedi: — Faça uma revisão cuidadosa neste documento, porque o Presidente quer assiná-lo ainda hoje. Ele pegou o documento sem ler e saiu. Costumava andar depressa, trocando rápidos passos miúdos. Ali, ele tinha o apelido de “apressadinho”. Em alguns minutos, voltou lívido, andando devagar, aproximando-se de minha mesa lentamente. Deu a impressão de que ia desmaiar: — Mas o Presidente está de acordo? — perguntou com voz embargada. — Você está indicado, meu caro. Pode festejar. Hoje, beba um uísque. Brincadeira. Ele nunca sorveu uma gota de bebida alguma, além de água e café. E como tomava café! 67 Deixando minhas lembranças, volto ao caso da gravação das vozes das crianças, acusando o pai de atos obscenos. Não tinha eu ainda como encontrar uma saída “psicologicamente adequada” para invalidar aquela fita e salvar meu cliente. Incinerado estava sendo meu cérebro. Pelo menos fervia, quando fui dormir. Sabia que dormiria mal. 28 Sarney, em sua opinião pessoal, preferia Carlos Velloso; mas sensibilizou-se com o argumento de que Celso de Mello nunca mais teria outra chance. Ficaria eternamente no Ministério Público de São Paulo. Tenho inveja de quem consegue dormir sem se afetar com problemas. Logo no início de minha gestão na Consultoria Geral da República, fui designado para representar o Presidente da República na XI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que se realizaria em Belém do Pará. Senti um grande constrangimento diante da informação de meu chefe de gabinete. Na qualidade de Consultor Geral da República, teria eu as mesmas regalias e prerrogativas de Ministro de Estado. Entre elas, a de ser acompanhado por um secretário, quando viajasse. Um funcionário que carrega a mala ou a pasta, abre as portas, faz o check in no aeroporto, chama o táxi, rala com a recepção dos hotéis, pede o drinque e, depois de perguntar se Vossa Excelência deseja mais alguma coisa”, vai dormir e nos deixa em paz. Nem quando viajava a serviço do meu escritório, levava assistente. E tínhamos verba para isso. Não me ajeito bem com essas coisas. Agora, a consciência ia doer mais, porque a viagem do ajudante seria custeada por verbas públicas. Gastaria o dinheiro da União para ter ao meu lado um cara me chateando. Nem pensar! Eu mesmo arrumei minha mala, um carregador no aeroporto levou-a até o balcão da companhia aérea. Embarquei, abri um livro e fui lendo até o Pará. Ao meu lado, sentou-se um senhor mais ou menos gordo, mais para mais do que para menos. A todo instante, pedia desculpas por ter que se ajeitar na poltrona, já que o ajeitamento transbordava para o meu lado. — O senhor é de Belém ou de Brasília? —, perguntou ele com evidente vontade de bater papo. — Moro em Brasília atualmente — respondi, sem tirar os olhos do livro, que era bom e estava num ponto de suspense. — É comerciante ou trabalha no Governo? — Estou de passagem por Brasília — resposta mais cretina. — Tenho a impressão de que o conheço, não sei de onde. São os noticiários da televisão. Durante o lançamento do Plano Cruzado, todos os dias estive dando explicações à imprensa, e a televisão estava lá. Ainda sem tirar os olhos do livro, respondi: — É possível. Eu viajo muito neste trecho Brasília-Belém. Talvez em outra viagem. — Não sei — disse ele. E se entortou para o meu lado, desejando conferir meu rosto. Interrompi a leitura, levantei bem o rosto para ele ver, olhei-o nos olhos, sorri, pedi licença e voltei a ler. Creio que desconfiou, ajeitou-se para o lado oposto ao meu e dormiu. Roncou sonoramente. Não podia deixar de invejá-lo. A aeromoça ofereceu lanche, ele acordou meio zonzo e recusou. Continuou a dormir. Li em paz até Belém. Desci do avião, fui esperar a mala, que veio na esteira giratória. Procurava um táxi, quando o gordão se ofereceu para me levar. Tinha um carro a sua espera. Era de um colega seu de Belém, advogado que o viera apanhar no aeroporto. Ambos participariam da Conferência da OAB. Agradeci e, já na fila de passageiros, chegara minha vez de pegar o táxi. 68 O motorista do táxi, depois que lhe disse o nome do hotel e antes de arrancar, virou-se para mim e me consultou: — O senhor me diga: para irmos ao hotel, temos que passar defronte ao aeroporto. Mas lá há uma imensa confusão neste momento, trânsito engarrafado, polícia para todo o lado, porque está aí o Governador do Estado, que veio esperar um figurão. Será melhor sairmos pelo lado oposto: andamos um pouco mais e fugimos dessa bagunça. Concordei, e lá se foi ele pelo caminho dito mais fácil, sem que eu tivesse a menor noção se era ou não verdade. Estava ansioso por chegar ao hotel e tomar um banho. O calor de Belém, em alguns minutos, fez-me entender que o meu problema não era o Governador, nem o figurão que ia chegar: era uma chuveirada. No hotel, assinei as fichas na recepção e subi para o quarto já reservado pelo meu pessoal. Tirei a roupa e ia para o chuveiro. O telefone tocou. Era da portaria: — Senhor Ramos, o Governador do Estado vai falar com o senhor — e passou o telefone. — Senhor Consultor, boa tarde, sou o Governador Jader Barbalho. Fui esperá-lo no aeroporto, e o senhor não compareceu à sala vip. Desencontramos. Gostaria de lhe dar as boas-vindas em nome do povo do Pará. Posso subir? Meu Deus! O figurão era eu. No que respondi “pode, é claro”, voltei a vestir-me num segundo, e tocou o blim-blom da porta. Abri. Entrou o Governador acompanhado de uma porção de gente, e as apresentações foram feitas uma atrás da outra. Secretário do Governo, Secretário da Justiça, Secretário da Segurança, Delegado da Polícia Federal, mais não sei quem e muitos outros não sei quem mais. A saleta era pequena para tanta gente ilustre. Pedi desculpas, levei a mala para o quarto e voltei. E vi um chinelo no chão, perto da poltrona onde o Governador se sentara. Pedi desculpas, apanhei o chinelo, levei-o para o quarto e tornei a voltar. Conversamos sobre os problemas da República, do Estado e sobre a Conferência Nacional de logo mais da OAB. — Deixarei um carro à sua disposição com um ajudante-de- ordens. Encontrar-nos-emos na Conferência — disse o Governador, ao retirar-se com o séquito. Vários apertos de mão, “muito prazer, muito prazer, nos veremos logo mais”. Fechei a porta e, afinal, ia tomar meu banho. Jader Barbalho, muito moço, cabelos negros, era extremamente simpático. Deixou-me à vontade naquele primeiro encontro, pois deve ter percebido meu enorme constrangimento, por haver causado tanta confusão pelo simples fato de haver entrado na fila de passageiros e haver apanhado um táxi. 69 No congresso dos advogados, chamaram as pessoas que comporiam a mesa diretora dos trabalhos: o Governador do Estado, o Consultor Geral da República, representando o Presidente José Sarney, e outras autoridades. O Presidente da OAB era o Dr. Hermann Assis Baeta, advogado calmo, inteligente, sossegadão. Ao abrir os trabalhos, Baeta falou bonito sobre a advocacia, os planos da entidade, fez alguns elogios ao Governador e a mim. Declarou que o objetivo da Conferência era debater a próxima Constituição e os trabalhos da futura Constituinte. Prometeu abrir escritório da Ordem em Brasília, para acompanhar os trabalhos constituintes, o que acabou fazendo com que a própria OAB se transferisse para a Capital Federal. Finalizou, lamentando o uso de decretos-leis pelo Governo, usurpação da função legislativa do Congresso Nacional, pois naquele tempo não havia nenhum Severino em evidência. Ah! O patético Severino Cavalcanti, um pernambucano apaideguado, nepotista assumido, eleito presidente da Câmara dos Deputados, virou pregador de perdão a políticos ladrões, entre os quais ele se encontra em pequenas quantias na medida de sua insignificância que contrasta com a enorme mediocridade. Receber propinas de restaurante! Que coisa mais indigesta! Até que um dia Fernando Gabeira gritou: “Vossa Excelência na Presidência da Câmara dos Deputados é uma vergonha para o Brasil”.29 O Brasil é de surpresas: foi sob a presidência de um Severino Cavalcanti que a Câmara dos Deputados chegou ao século XXI e aprovou experiência científica com células embrionárias, contrariando os sobreviventes da idade das cavernas e a parte da Igreja Católica que ainda combate Galileu.30 29 Fernando Gabeira, intelectual de grande valor, hoje deputado federal, participou, na ditadura, do seqüestro do embaixador norte-americano. E cometeu um erro imperdoável: trocou-o pelo José Dirceu. 30 Robert Lanza, cientista americano, parece ter encontrado um método de extrair células dos embriões sem destruí-los, acabando com aquela tese de assassinato sem certidão de óbito. Vamos ver se os ânimos se pacificam em favor da humanidade. Descobriu-se também que o líquido amniótico é fonte rica em células- tronco. E também há uma pesquisa feita em Madri com células-tronco do tecido adiposo retiradas do abdome e que, injetadas no coração, servem para regenerar coronárias e miocárdio enfartados. São chamadas de mesenquimais e extraídas da gordura obtida com lipo-aspiração. Não se pode mais criticar com tanto rigor as barriguinhas que homens e mulheres ostentam como pneuzinhos. São preciosas jazidas de células-tronco. Nosso país é cheio de altos e baixos. Os baixos, nas eleições de muitos Severinos, e os altos, em trabalhos como o do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde médicos liderados pelo Dr. Júlio César Voltarelli estão trabalhando com células-tronco adultas para curar diabéticos. E curam. Nos baixos ficou o Congresso Nacional. Geração espantosa essa nova leva de congressistas incompetentes e preguiçosos, preocupados apenas com infinitas reeleições. Mais nada. Em 2005, nossos legisladores aprovaram apenas 75 projetos, a maioria sobre nome de ruas, monumentos, ou como aquele que incluiu o almirante Barroso no Livro dos Heróis da Pátria. Mas Severino nem sabe ainda o que aconteceu com ele. Meio abestado, disse que não conhecia a palavra renúncia. E renunciou, acusando as elitizinhas, juradas em sua perdição, de terem tramado a cuja. E quase foi reeleito nas eleições de 2006. Ganhou uma suplência. Volto ao passado, porque esse desvio para o presente me assusta. No plenário da Conferência da OAB, Jader Barbalho defendeu o Governo e o uso do processo legislativo de urgência. Chegou minha vez. Enalteci a advocacia, afinal minha profissão fervorosa. Os advogados exercem verdadeiro apostolado em defesa de clientes, causas e ideais. Aquelas coisas que se dizem nesses eventos. E que quase sempre são reais. É verdade também que muitos juristas descambaram na nossa história. Deram fundamentos jurídicos — que de jurídicos nada tinham, salvo a forma — a atos arbitrários do passado, tanto no longínquo, como no recente, atendendo à eterna mania que nossos militares tinham de dar golpe legal. Chico Campos ajudou a redigir a polaca, Constituição de 1937, e o Ato Institucional nº 1 do golpe de 1964. Gama e Silva redigiu o Ato Institucional nº 5, estatuto estulto e permissivo das mais violentas agressões às liberdades. Muitos outros colaboraram com o arbítrio. O Ministério Público Militar e o Federal serviam à ditadura como instituições. Poucas exceções individuais. O Ministério Público Estadual (conheci bem o de São Paulo) foi igualmente colaboracionista. Fez misérias. Não adianta negar. A CGI — Comissão Geral de Investigações —, que os militares centralizaram em São Paulo, em Cumbica, era chefiada por um Procurador de Justiça do Estado, que chegou à perfeição — além das práticas ilegais nos inquéritos — de esbofetear os vereadores do interior por ele interrogados. A OAB sempre resistiu à ditadura. E com habilidade. Os milhares de advogados anônimos tinham a coragem de aceitar e defender as causas dos perseguidos políticos. A entidade imediatamente socorria os profissionais que se atritavam com os executores da arbitrariedade e que acabavam presos. Foi um tempo de trevas. Se a Academia da Suécia resolvesse premiar entes cole- tivos, a OAB do Brasil mereceria um Prêmio Nobel. Mas poderia sofrer um recall pelo projeto de reforma política que elaborou ultimamente. Os altos e os baixos. Aproveitei o fato de estar sendo realizada a Conferência em Belém, para advertir sobre o desmatamento da Amazônia, recordando que a ditadura mandara abrir estradas na floresta sem planejamento racional para a conseqüente povoação. Lembrei que tais estradas serviam mais ao desmatamento e ao incentivo de extração de madeira do que à defesa da Amazônia. Senti que não deram muita bola à observação. O clima estava mais para os direitos da nova Constituição, defesa da democracia, função social da propriedade, universalização do ensino público, democratização da Justiça. É verdade que a reforma agrária dava algum Ibope. Mas a derrubada desordenada da floresta amazônica não seduzia muito a ilustre platéia naquela época. Depois de falar até demais, concluí com explicações sobre os decretos-leis editados pelo governo. De repente, lá do fundo, uma voz gritou: — Não somos contra o uso do decreto-lei, mas contra o abuso. O Governo está abusando desse instrumento dos militares. Olhei para a direção de onde veio o aparte, isto é, o protesto. E em pé, com um jeito vitorioso, à espera da resposta, lá estava o gordão dorminhoco, que viajara ao meu lado no vôo Brasília-Belém. Foi barulhentamente aplaudido, mas eu tive uma quase incontida vontade de rir. Respondi, é claro, dizendo que o decreto-lei não era um instrumento dos militares, mas uma ferramenta da Constituição, que fora usada pelos militares, porém mal usada. Demonstrei que o novo Governo se utilizava dessa medida legislativa porque o Brasil tinha muita coisa a ser consertada com urgência, tantos e tamanhos os estragos feitos pela ditadura, sobretudo na legislação. Recebi aplausos com o mesmo barulho. Confiava na Constituinte convocada. Haveria de encontrar uma saída institucional para a legislação de emergência, que evitasse abusos. Também tenho minha dose de inocência. E ficou tudo por isso mesmo. Congresso de advogados, apesar de tratar de assuntos sérios e pertinentes, sempre desperta nos congressistas o espírito dos antigos estudantes. Acaba em alegria, irreverência e confraternização. Mas a Carta de Belém, aprovada pela Conferência da OAB, teve lampejos bonitos: Segundo a Declaração de Belém, “malgrado todas as investidas dos interesses poderosos comprometidos com a ordem de privilégios existente, os advogados confiam que o povo brasileiro saberá encontrar reservas de discernimento e sabedoria para firmar, no novo texto constitucional, os anseios, aspirações e esperanças dos despossuídos, como condição e objetivo de uma nova ordem social, libertada de toda a sorte de exclusivismos, e de todas as formas de opressão”. Era um tanto declamatório e poético, mas bonito. Entre os advogados presentes, estava o meu colega de São Paulo e querido amigo, Márcio Thomaz Bastos, já em campanha para a presidência da OAB. Foi eleito no ano seguinte. Muito mais tarde, Márcio foi Ministro da Justiça de Lula, um bom ministro, sobretudo quanto à Polícia Federal, que limpou e tornou mais eficiente. Talvez tenha ele juntado material para escrever um livro mais extenso do que este, com o martírio que viveu para assessorar o Governo no lamaçal que o PT — Partido dos Trabalhadores — esparramou no país. Márcio é um homem honrado. Nada teve com a lambança do governo Lula. Pode ter sido criticado por algumas condutas prudentes inevitáveis a todo advogado de defesa. Na saída da solenidade de abertura, cumprimentos, apertos de mão, troca de cartões de visita, surge o gordão: — Eu não disse que o conhecia? Era isso! Consultor Geral da República viaja ao meu lado, recusa uma carona no aeroporto, fica na moita, não diz nada para ninguém! Por quê? É medo de ser identificado como membro do Governo? Verifiquei que ele gostava de bagunçar os espaços. Mas me lembrei de que era educado. Pedia desculpas. — Não, meu caro colega — respondi, percebendo que todos em volta Prestavam atenção. — Sou absolutamente discreto. Aprendi com nossa profissão de advogado, de tanto exercitar o segredo profissional. Acabei absorvendo a discrição como postura pessoal. Não fosse assim, à sua pergunta de agora há pouco na sessão plenária, eu teria respondido que o Governo atual não transborda do seu espaço sobre a poltrona do Legislativo, não dorme e não ronca. Os gordos, em geral, são muito simpáticos e afáveis. Deu-me um grande abraço. Levantou o polegar e exclamou: — Valeu! Foi a primeira vez que ouvi essa expressão. 70 Embora na conferência da OAB tivéssemos apenas abordado o problema, a verdade é que a Amazônia se tornou uma terra sem lei. Tudo ali é mentira: títulos de propriedade privada de terra sobre áreas devolutas, de domínio público; derrubada de florestas, negócio altamente rentável, mas desgraçadamente destrutivo das riquezas ambientais; grileiros, ladrões, pistoleiros, assassinos, misturados com uns coitados que se dizem trabalhadores sem-terra, mas igualmente aventureiros, pois ninguém respeita a floresta. Todos matam a mata. Seja o poderoso grileiro, seja o modesto sertanejo que chegou a pé, todos têm tara pela tora. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, órgão científico que reúne 2500 cientistas do mundo todo, reunido em Paris decretou: o aquecimento global é irreversível e provocará mudanças intensas, longas e violentas. A emissão de gases, desde o final do século XIX, já comprometeu o clima dos próximos cem anos. Não há mais volta. As fumaças do carvão, desde as primeiras que transformaram o mundo econômico, somadas às do petróleo queimado, enfim, os combustíveis fósseis que moveram as indús- trias, os navios, os carros, os caminhões, os trens, vão se vingar do homem. A eles se juntarão os fantasmas das florestas derrubadas e incendiadas. Há pouco tempo, com o assassinato da freira Dorothy Stang, em Anapu, Pará, Gervásio construiu sua própria teoria, que, na prática, nada tem de diferente: — Quem matou a religiosa foi o Governo brasileiro. Os pistoleiros apenas executaram a tarefa. Isso vem de longe. Em 1985, em Carajás, assassinaram uma outra freira, irmã Adelaide Molinari. Naquele ano, em Xinguara, mataram mais de dezessete pessoas, e ninguém foi punido até hoje. Há mais de vinte anos, vêm sendo executados sindicalistas, gente pobre e maluca, que ouviu histórias sobre terras fáceis e se mandou para lá. — Você acha que o Governo pode resolver o problema com reforma agrária? — perguntei a Gervásio. — Não. O modelo de reforma agrária pensado pelos brasileiros já foi para o espaço. Essa história de assentamento de famílias de pequenos agricultores virou lambança. O que se faz é dar um pedaço de terra, para os sem-nada poderem apenas morar. Depois, as confusões surgem naturalmente. Vira movimento político. Só isso. Hoje não existem mais os sem-terra. O movimento virou concentração de desempregados, que prestam para realizar marcha. Nisso são bons, organizados. Gervásio estava inspirado: — Assentamento acaba servindo até de esconderijo para bandido — continuou ele. — Surge o comércio de lotes, o troca-troca do uso. Veja o que acontece na Serra da Capivara, patrimônio da humanidade, no Piauí. Os sem-terra invadem e destroem os abrigos de arenito, onde estão pinturas rupestres de mais de 10 mil anos. E reivindicam o lote de terra para morar nele. Vivem da caça no local e do desmatamento. Em outros estados, os sem-terra querem saber de agricultura? Que nada! Negociam “direitos”, abrem um botequim, cultivam porres e cachaçadas. Pouco trabalham e fundam cooperativas. Gervásio era impressionante. Conhecia fatos nos mínimos detalhes. E prosseguiu: — Aos poucos, o crime se infiltra entre eles. No Rio Grande do Norte, achacam fazendeiros para não invadirem suas terras. E ainda usam o Incra para ameaçar os que resistem, com declaração de improdutividade de suas fazendas. Em São Paulo, no município de São Simão, ocuparam terras da Estação Experimental, estão destruindo as matas e as plantas do banco genético da Embrapa,31 há mais de dez anos sabe para quê? Para fazer carvão. Os sem-terra ali viraram carvoeiros. Cada rancho tem seu forno. Cada forno devora árvores e árvores e árvores. No Pará, a coisa é mais feia. Na Amazônia, em geral, a questão é insolúvel. — Mas é fundiária — afirmei. — Mais que fundiária. É o processo de destruição da floresta amazônica. Toda vez que o Governo constrói uma estrada naquela região, o que acontece? Progresso? Civilização? Nada disso! Surgem os grileiros de terra, que atraem as madeireiras para cortar as árvores, levar os troncos, deixar as áreas limpas para plantio e fazer estradas vicinais, por onde transportam a pilhagem. E logo vêm os 31 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. sem-terra reivindicando direito de ocupar áreas tomadas pelos grileiros, porque são públicas. Eles sustentam que as terras, por serem públicas, são deles. Como são mais pobres, merecem o apoio e a orientação dos religiosos, em geral estrangeiros, que foram para lá salvar almas não sei há quanto tempo. — Mas é uma questão social relevante, pois se trata de pessoas lutando pela sobrevivência por meio da produção agrícola, o que interessa ao país. Podiam ser orientadas para explorar a agricultura sem matar a mata. — Não interessa, não senhor! — respondeu Gervásio em voz alta. — Ao país interessa conservar a floresta amazônica e encontrar meios inteligentes de explorá-la sem destruí-la. Com a bagunça, vão acabar fazendo da Amazônia o que fizeram com a Mata Atlântica. — Mas a ida de gente para aquelas bandas é uma realidade creio que irreversível. — Coisa nenhuma! As matas ainda estão lá, e, portanto, ainda há tempo. Tem que pôr para correr os grileiros, os madeireiros, com todos os seus exércitos de pistoleiros; fechar os cartórios de notas que fornecem escrituras frias para falsos proprietários de terra, que dizem tê-las comprado no inventário de Pedro Álvares Cabral. Aliás, naquelas bandas, cartório de registro de escrituras de quando em vez pega fogo, e os registros se perdem. Ficam valendo os papéis fajutos, que foram falsificados para dar títulos de propriedade a grileiros. — Mas até isso acontece? Fogo nos cartórios? — Acontece de tudo naquele imundo mundo sem solução e sem Raimundo, apenas com pistoleiros do tipo Fogoió.32 71 Gervásio estava furioso. E continuou: — O povo pobre, atraído para lá, foi traído lá mesmo. Tem que ser conduzido de volta à realidade, a lugares onde possam trabalhar 32 Apelido do pistoleiro que matou a freira Dorothy. de verdade como gente digna, e não como formigas daninhas perdidas na floresta. No Pará, é fantástico o número dos crimes de morte sem solução. Por quê? Porque ali as razões dos assassinatos tornaram-se motivos considerados justos. Pessoas são mortas por causa de mulher, boi e terra. Entre eles, não há razão moral para punir os assassinos. — Creio que a solução — disse eu — está em medidas governamentais que levem para lá a presença do Estado de Direito, polícia, Judiciário, instrumentos de aplicação da ordem legal. — Faça poesia, meu poeta. Deixe de pensar em solução jurídica! Lembro-me de um verso seu no livro Café: cada árvore caída é uma oração interrompida. Uma floresta inteira derrubada é agressão a Deus. Dentro em breve, teremos um problema que vai fundir a cuca de vocês, juristas: os povos mais fortes ou organizações como a ONU começarão a cobrar de nós a preservação da Amazônia nos termos ditados por eles. Você vai ver. Teremos um choque entre a soberania nacional e o Direito da Humanidade. Nossos homens pú- blicos estão preparados para um debate dessa grandeza? Ultimamente, o povo tem elegido um número enorme de analfabetos, que não sabem distinguir uma coisa da outra. — Espera um pouco — interrompi. — Nós temos gente capaz de enfrentar a discussão. O Professor Aziz Ab’Saber, que conhece tudo da Amazônia. Gente nossa, nunca ouvida, nem consultada. Um Cristovam Buarque, por exemplo, grande estudioso da Amazônia. Sabe das coisas. Ele há muito tempo adverte sobre o embate que se travará entre soberania política e ética internacional. Acredita também na hipótese de não cuidarmos da floresta e na conseqüência de organismos internacionais virem para cá, mesmo contra nossa vontade. — Que nada. Ele sabe das coisas para conversar aqui, em conferências nas universidades brasileiras. Foi candidato a Presidente da República com uma linda bandeira, a educação. Teve apenas dois por cento dos votos. O povão não está nem aí. Mas o pepino está lá fora. Por exemplo: um Pascall Lamy, francês, ex- comissário para o Comércio da União Européia, hoje diretor geral da Organização Mundial do Comércio, figura de influência no inundo, prega abertamente a gestão coletiva de bens públicos mundiais. E cita a Amazônia, em defesa do direito da humanidade a respirar. Foi ele que, aliado à incompetência do Governo Lula, matou as negociações da Rodada de Doha, frustrando o mundo de um acordo contras as tarifas do comércio externo e os subsídios agrícolas dos países ricos. Há também um Roger Higman, inglês, que já chegou a redigir as regras de administração internacional da Amazônia. — E você acha que isso, um dia, será possível? — Não sei. Mas tudo tem um começo. E faz tempo que começou. No século passado, no tempo de D. Pedro II, em 1850, um tal de Mathew Maury, do Observatório Naval de Washington, sustentava o direito de livre navegação internacional no Rio Amazonas. Sabe qual o fundamento? — Não tenho a menor idéia — respondi, por ignorar completamente esse dado da História. — Pelo volume de água do Rio Amazonas, que, só por isso, deveria ser incorporado ao direito marítimo sob leis internacionais. Para dar efetividade a essa teoria, os americanos mandaram um navio invadir o nosso rio. Subiu até Iquitos, no Peru, sem licença do nosso Governo. Aquele tal de Maury fez a primeira propaganda internacional da internacionalização da Amazônia. D. Pedro II reagiu e criou um problema diplomático com os norte-americanos. Seu embaixador nos Estados Unidos, Sérgio Teixeira Macedo, brigou duro e convenceu o governo de lá a parar com essas besteiras. — Pois nunca ouvi falar disso — confessei eu, reconhecendo minha insuficiência de conhecimentos da História do Brasil, aliás, tanto quanto a média geral dos brasileiros. — O mais perigoso — prosseguiu Gervásio — talvez seja a nossa incompetência em lidar com a matéria. Os militares, no governo deles, partiram do princípio de que a floresta pode ser destruída desde que o seja por brasileiros. Os governos civis que se seguiram não mudaram o rumo da cretinice e permitiram as madeireiras, os grilos de terra, os falsos assentamentos de sem-terra, na maioria também falsos. Hoje, existe até site na Internet vendendo terras na Amazônia para os americanos. No anúncio, além de ofertas de lotes de até um milhão de acres ou mais, afirma-se que a floresta é o melhor investimento da atualidade. Acrescentam: ali não tem furacão, terremoto, terrorismo. Paraíso para viver, com abundância de água. E mentem: clima fresco, agradável. — Na Internet? — Sim, senhor. Pode acessar: www.resourcesbrazil.com. Pergunto: o que estão comprando aqueles americanos? Dentro de pouco tempo, aparecerão por aqui com suas escrituras e com tropas para fazer valer suas propriedades. Tudo isso misturado acaba sempre em desmatamento predatório e conflitos. O mundo está de olho. Um dia vai querer pôr a mão. 72 — Você está falando bonito e certo, meu caro Gervásio — observei diante de seu discurso. — Mas falar certo e bonito nada resolve. Lembro-me de um livro, publicado em 1970, com o título Amazônia: expansão do capitalismo, que previu como o desenvolvimento capitalista da Amazônia seria caracterizado pela violência e pela brutalidade. Sabe quem é o autor? — Nem conhecia a existência desse livro! — respondeu Gervásio, atônito. — Quem o escreveu? — Fernando Henrique Cardoso. — Não me diga! Essa é surpreendente! — Quando ele era professor de sociologia e ainda não havia sido contaminado pela política — contei —, sabia pensar. Na época, os militares sustentavam a tese, sempre fundada na maldita segurança nacional, de que a Amazônia deveria ser povoada pelos brasileiros e, assim, assegurar nossa posse do território. Nada de planejamento. Apenas povoar, e o resto que se danasse. Para isso, abriram a estrada Transamazônica sem nenhum planejamento para o que viria depois. Abriram a Belém-Brasília. Deu no que deu. Fernando Henrique previu. O livro dele é muito bom na análise desse problema. — E quando Fernando Henrique tornou-se Presidente da República lembrou-se do que escreveu e fez alguma coisa pelo problema da Amazônia? — Fez nada. Permitiu, também sem planejamento, que o Movimento dos Sem-Terra levasse gente para lá e deixasse o Sul em paz. E paz não houve. O movimento dos sem-emprego a cada dia tornou-se mais violento. No Rio Grande do Sul, além das invasões, adotou-se a estratégia de guerrilha para destruir propriedades e até centros de pesquisas florestais. — É verdade. Surgiu uma tal de Via Campesina que, financiada pelo Ministério do Meio Ambiente, invadiu e destruiu os laboratórios da Aracruz. Eu não como eucalipto, gritava uma das mulheres predadoras do horto florestal. Vinte anos de pesquisas científicas foram pisoteadas e reduzidas a pó. Dinheiro público sustentando ações de vândalos e bandidos. E Via Campesina tem um site na Internet, no qual festejou seus atos de violência utilizando-se de versos de Vinícius de Morais: as mudas gritaram de repente e não mais que de repente o riso da burguesia fez-se espanto, tornou-se esgar, desconcerto. Além da destruição de vinte anos de pesquisa científica, assassinaram o soneto de Vinícius. — Sob os aplausos do chamado líder do MST João Pedro Stédile, que ainda está solto em nome da democracia, mas fazendo agitação contra o agronegócio, dizendo que não há mais o antigo latifúndio improdutivo. Agora a luta é contra as empresas produtivas, o capital internacional, o capital financeiro, como costuma dizer para incentivar quebra-quebra sob os olhares complacentes do Governo. Uma cantilena antiga, dos anos 60, para justificar a baderna moderna. E ninguém faz nada para impedir essa desconstrução da ordem pública e do ordenamento jurídico. Gervásio estava ferino. Tivemos a boa idéia de tomar um cafezinho. Ele continuou: — O PT tem um membro de seu diretório, íntimo amigo do Presidente Lula, um tal de Bruno Maranhão, que comandou uma invasão da Câmara dos Deputados pelos sem-terra, integrantes de uma organização que recebeu mais de cinco milhões de reais do Governo, dinheiro nosso, do povo, usado para financiar quebra- quebra do patrimônio público. Quebraram tudo, computadores, portas e tentaram assassinar um segurança. Lembra-se do dia em que isso aconteceu? — Creio ter sido em um dia qualquer de junho. — Dia qualquer não senhor. Foi no dia 6 de junho de 2006, que se escreve 6.6.2006, os números da Era da Besta. Trabalham para o diabo esses seguidores de Fernando Henrique e Lula. — Mas tudo isso aconteceu no Governo Lula. Fernando Henrique, creio, nada tem que ver com essa história. — Claro que tem. Ele plantou as sementes das impunidades, colhidas e multiplicadas pelo MST. Quanto ao livro, você se lembra, Fernando Henrique pediu expressamente que os brasileiros esquecessem tudo o que havia escrito, e sua palavra passou a ser, para sempre, um risco na água. Hoje está por aí, falando mal do Governo, querendo voltar ao poder, confessando desejá-lo para comandar o atraso. No caso da freira Dorothy, parece que ele calou o bico. Por quê? Porque ele, indiretamente, permitiu as circunstâncias que mataram a freira. Defender o direito da humanidade é fácil. Difícil é disciplinar o ser humano. Depois de refletir um pouco, Gervásio concluiu com a voz pausada: — Um dos maiores males que o Fernando Henrique fez ao Brasil foi ter criado a reeleição e eleito o Lula, que se reelegeu graças ao grande sociólogo. Ele foi o maior eleitor desse espetáculo de vacuidade. 73 Conversamos sobre as várias hipóteses para salvar da devastação aquelas e outras áreas da Amazônia. Expliquei ao Gervásio que nossa legislação permite três modalidades de defesa: decretação formal de floresta nacional, que admite, sob vigilância, o corte sustentável de madeira; criação de parque nacional, que não admite exploração alguma, a não ser o fim turístico; e, finalmente, a instituição de estação ecológica, que se torna inviolável, fechada até para visitas. — Parece que o Governo Lula resolveu tentar algo diferente — comentei. — Privatizar a exploração da floresta fundada numa informação tributária: será possível, segundo cálculos do Ministério da Fazenda, recolher cerca de cem milhões de dólares anuais em impostos, se a atividade for permitida a particulares. E querem permitir sob a forma de concessão por sessenta anos para exploração de terras públicas. A Receita Federal fez as contas e entende que a solução renderá altos lucros para o Tesouro Nacional. — Santo Deus! — disse Gervásio. — A Receita Federal, que sistematicamente sufoca os empresários brasileiros com a maior carga tributária do inundo, preparou-se para acabar também com a Amazônia? — Tudo em nome do assassinato da freira Dorothy. Disseram que se devia prestar um tributo ao sacrifício da religiosa, e o Governo entendeu como arrecadação tributária. E a corrupção? Você pensa que toda essa madeira, ilegalmente extraída em volumes fantásticos, anda sozinha pelas matas, pelas estradas e chega aos portos sem logística? Primeiro é preciso ter Autorização para Transporte de Produtos Florestais.33 Quem emite? Pode investigar. Tem funcionário do Ibama, funcionário dos governos estaduais, gente graúda metida nisso.34 Lembro-me bem que, no Governo Sarney, houve um desmatamento na Amazônia de 17,6 mil quilômetros quadrados no biênio 1988/1989. Mais ou menos no grito, e com a colaboração dos governadores, conseguimos baixar para 13,8 mil quilômetros quadrados no biênio 1989/1990. Mantida a nossa estratégia, no início do governo Collor o desmatamento baixou para 11,1 mil quilômetros quadrados. Depois voltou a degringolar. Em 1994/1995, chegou a 29,1 mil quilômetros quadrados e, finalmente, no Governo Lula, com a Ministra Marina Silva prometendo passaportes para o paraíso, o desmatamento manteve-se em 27,2 mil quilômetros quadrados em 2003/2004. É um crime pior do que o caixa dois, coisa de bandido, segundo o então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Não dá para dizer que o Presidente Lula não sabia de nada. Vinte e sete mil quilômetros quadrados de mata derrubada é muito chão. O comércio de tanta madeira somente pode ser efetivado com a conivência dos governos estaduais e federal. Ou não? Basta olhar para o sul do Maranhão. Desmatamento desenfredado, sobretudo nos municípios de Grajaú e Arame, com a derrubada de jatobás, ipês, cedros e outras árvores centenárias. Quase trinta mil hectares. No Governo José Reinaldo, cria do José Sarney, lembrou-me Gervásio. E acrescentou: — Os índios guajajaras também vêm desmatando a troco de dinheiro. Nas suas reservas ninguém entra, a não ser grileiros, madeireiros, carvoeiros, serradores, plantadores de maconha e bandidos, uma vez que a polícia não tem coragem de enfrentar os 33 Esse documento, a ATPF, foi substituído, pelo DOF, Documento de Origem Florestal, fraudado cinco dias depois de adotado. 34 Gervásio me fez esta observação antes da operação Sucupira, da Polícia Federal, que confirmou o envolvimento do Ibama e de setores dos governos estaduais na indústria do desmatamento criminoso. Tais medidas são perfumaria. índios. As toras desfilam sobre caminhões à noite e livremente. 74 De repente, Gervásio me olhou e mudou de assunto: — Você evitou algo parecido com a Ilha de Fernando de Noronha. Agora me lembro. O Brasil deve essa a você. Pouca gente sabe. Ou pelo menos ninguém reconheceu até hoje. É verdade. Eu mesmo já havia esquecido. A Constituinte, contrariando a velha regra de que as ilhas oceânicas eram de domínio da União, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 15), extinguiu o Território Federal de Fernando de Noronha, “sendo sua área incorporada ao Estado de Pernambuco”. Lembro-me de que a disposição, aprovada com grande alegria na Assembléia Constituinte, causou-me arrepios. Uma das mais lindas ilhas do mundo, com riquíssima vida marítima, praias paradisíacas, pedaço esplendoroso de beleza, onde, como diria o poeta, a natureza esmerou-se em quanto tinha, poderia ser atirada à especulação imobiliária. Tive visões horríveis. Cheguei a sonhar com arranha-céus e loteamentos por todo o território da ilha, golfinhos mortos, surfistas banidos das ondas, restaurantes nas encostas, lixo por toda parte. E acordei assustado com uma idéia me atormentando. Era o dia 10 de setembro de 1988. A Constituição seria promulgada no mês seguinte, no dia 5 de outubro. Havia tempo. Mandei fazer o levantamento do território. Redigi um decreto cujo artigo primeiro dizia: “Art. 1º — Fica criado, no Território Federal de Fernando de Noronha, o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, com o objetivo de proteger amostra representativa dos ecossistemas marinhos e terrestres do arquipélago, assegurando a preservação de sua fauna, flora e demais recursos naturais, proporcionando oportunidades controladas para visitação, educação e pesquisa científica e contribuindo para a proteção de sítios e estruturas de interesse histórico- cultural porventura existentes na área.” Mostrei o texto para Sarney. Ele vibrou. Chamou o Ministro da Marinha, Almirante Henrique Sabóia, que exultou e declarou que o referendava, com a firme convicção de prestar um expressivo serviço ao Brasil. Assim, antes da promulgação da Constituição, o Diário Oficial rodou com o Decreto nº 96.693, de 14 de setembro de 1988, que transformou o território de Fernando de Noronha em parque nacional marinho, intocável, pois, pela atividade imobiliária. A ilha foi transferida para o estado de Pernambuco, mas já era área de preservação, permitida, apenas e dentro de limitações austeras, à exploração turística. Pequenos hotéis e pousadas nas bordas, com as atuais Pousada Maravilha, Pousada Zé Maria, Pousada Alamoa e tantas outras. Já que a lei permitia a criação de “parque nacional”, inventamos o parque nacional marítimo e salvamos a Ilha de Fernando de Noronha para todo o sempre. Amém. Não é preciso dizer que os interessados levaram algum tempo para descobrir. Mas descobriram. Minha venerável mãe, humilde mulher de agricultor paulista, foi alvo de um festival de xingatório. “Fio de uma égua!” foi a expressão mais branda, segundo me contaram. Mesmo assim, Fernando de Noronha, com suas incríveis dez fortificações construídas pelos portugueses, primeiro e mais avançado sistema de defesa territorial do Brasil, é um triste espetáculo de abandono. A expressão “não restará pedra sobre pedra”, creio ter sido inventada naquele arquipélago, diante dos fortes construídos pelos nossos descobridores e há séculos sem a menor conservação. 75 Mas Gervásio não perdoou: — Vocês podiam ter feito a mesma coisa com muitas áreas da floresta amazônica. — Alto lá, meu caro! — respondi, recusando a crítica. — Os trabalhos com a Constituinte nos absorveram completamente, mas nos lembramos de lutar por um capítulo inteiro na defesa do meio ambiente. Está lá. Pode ler. Capítulo V. Começa no art. 225 da Constituição. O dever do Poder Público e da coletividade de defender o meio ambiente e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. — E daí? É norma apenas teórica, bem ao estilo de poeta: norma declamatória. De efetivo, nada! — resmungou Gervásio. — É melhor você ler a Constituição. O texto é longo e quase exaustivo. O parágrafo primeiro daquele artigo enumera tudo quanto o Poder Público deve fazer para assegurar a efetividade deste direito coletivo: preservação e restauração do processo ecológico; definir em todas a unidades da Federação, portanto no Pará e no Amazonas, espaços territoriais a serem especialmente protegidos. Alteração dos comandos protetores, somente por lei. Tudo escrito na Constituição. A gente acredita que é para valer. — Mas não vale. Ou, no caso da Amazônia, não está valendo — concluiu Gervásio. — Que Deus tenha a alma da irmã Dorothy! Não sei, porém, ninguém sabe, o que o FBI foi fazer lá no local do crime, nem por que a Igreja brasileira ficou em silêncio diante do assassinato da religiosa. O Reino da Dinamarca continua escondendo coisas. Mais mistérios nos códigos da vida. Mas você está perdoado. — Obrigado pelo perdão, mas perdoado por quê? — Porque, nessa questão ecológica, você foi pioneiro no Brasil e... posso gabar?... — Pode. — ... no mundo, com aquele decreto redigido por você em 1961, em defesa dos recursos naturais, quando, pela primeira vez no direito brasileiro, apareceu a palavra “poluição”. E o mundo não dava a mínima para a defesa da ecologia. Impõe-se registrar, pela importância e pela larga previsão, o Decreto nº 50.877, de 29 de julho de 1961, do Presidente Jânio Quadros, que dispôs sobre o lançamento de resíduos tóxicos ou oleosos nas águas interiores ou litorâneas. No resto do mundo, a consciência pela defesa do meio ambiente somente foi despertada bem mais tarde. Para ter uma idéia, a primeira lei publicada em defesa de recursos naturais foi em 1976, na Itália, quinze anos depois do decreto redigido por você. — O mérito também é do Jânio, que aprovou a idéia. — Benditas sejam as caipirinhas no bar do posto de gasolina do Viola, no Guarujá! 76 A Constituinte, em conseqüência das intermináveis negociações políticas, deixou para leis complementares e leis ordinárias quase todas as matérias de importância. Tentamos colaborar, elaborando projetos e mais projetos para cumprir os mandamentos da nova Carta da República. Serviço que não acabava mais. Em meio a tudo isso, Oscar Correa, Ministro da Justiça, encheu-se com os problemas criados pelo Ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, pediu demissão e foi embora. Eu estava de férias. Havia feito uma “vaquinha” com Toninho Drummond, que trabalha na TV Globo em Brasília, e João Di Gênio, um gênio da educação no Brasil: alugamos um barco na Grécia e fomos passear pela ilhas do Mar Egeu e devorar locais da cultura grega. O grego, dono do barco, era um vigarista. Deixou-nos escolher, no mapa de navegação, quais as ilhas que gostaríamos de visitar; e, depois, fez o roteiro diferente. Levou-nos às ilhas de seu esquema. Entre elas, estava Mikonos. Felizmente. Quando estávamos chegando, o rádio do barco recebeu a comunicação de que o Presidente do Brasil queria falar com o Dr. Saulo Ramos. O dono do barco passou a nos tratar com mais respeito. Ancorou em Mikonos e nos indicou uma cabine telefônica de onde podíamos ligar para o Brasil. Havia uma fila enorme. Preparei-me para esperar mais de hora. Toninho Drummond ao meu lado, solidário, e o sol era escaldante. Então ouvi uns turistas franceses comentarem que, de um hotel ali perto, podia-se falar rapidamente. Pedi detalhes. Ensinaram-me o caminho. Cheguei. Havia apenas um casal ao telefone, na recepção do hotel. Chegou minha vez. Liguei para o Sarney: — O Oscar Correa — disse ele — pediu demissão. Preciso substituí-lo. Quero que você assuma o Ministério da Justiça. Posso anunciar a escolha? Você aceita? — Aceito — respondi, enquanto olhava um garçom passar com cervejas geladas sobre uma bandeja. — Então, volte imediatamente! — Calma, meu presidente! Eu aceito o convite, mas voltar imediatamente é outra coisa. Estou no Mar Egeu, sob o sol que iluminou Aristóteles. Não é fácil deixar tudo isso assim de repente. Ainda não havia visitado nada. Precisava passar uma tarde na Acrópole. — Vou anunciar seu nome hoje. Trate de voltar o mais depressa possível. Venha trabalhar! Peguei minha mala no barco, despedi-me do Di Gênio e do Toninho Drummond. Enfrentei um aviãozinho, que partiu da Ilha de Mikonos para Atenas. Consegui, no mesmo dia, um vôo para a França. Na decolagem, vi a Acrópole. Mas meu rumo era Paris. Sonhei em passar aquela noite tomando um vinho, jantar num bistrô do Quartier Latin. Encontrar Napoleão Sabóia e jogar conversa fora. Falar do Maranhão e de seus lençóis de areias desenhadas. Não sei como acontece: o pessoal do Itamaraty já sabia de tudo. Quando de- sembarquei na capital francesa, já tinha vôo marcado para o Brasil na mesma noite. Tudo emendado, rapidinho. Comi sanduíches. Não vi o Napoleão, nem o Sabóia, nem o Bonaparte. Lá fui eu para o Ministério da Justiça. Não abomino nada. São os códigos da vida. Mas, para assumir o cargo, deixei a Grécia, uma troca pela concórdia. O velho Aristóteles dizia que o homem deve empenhar-se em favor da concórdia, pois ela pacifica as pessoas de bom coração. Não interrompi as tarefas iniciadas na Consultoria Geral da República. Continuei trabalhando nos projetos das leis previstas pela nova Constituição e, conforme o assunto, para os de maior relevância e urgência, sapecava medida provisória. Sarney aprovava todas, depois de algumas discussões bravas, que nossa amizade e a recíproca confiança permitiam. Criamos, por medida provisória (a de n° 143), a impenhorabilidade do bem de família, incluindo a entidade familiar. Aquela história do Código Civil, de permitir a instituição do bem de família por meio de escritura pública, era uma velharia. A maioria absoluta dos brasileiros nem sabia da existência do permissivo legal. Instituindo a impenhorabilidade pela lei, a questão teve desfecho simples: é bem de família, seja imóvel, sejam bens móveis em casa alugada, instrumento de trabalho, geladeira, televisão, e muito mais do que a cama do casal, tudo o que esteja dentro de casa, nada pode ser penhorado ou executado por dívida das pessoas integrantes da família. O mundo caiu em cima de nós. Os bancos queriam me matar, com exceção de um homem de grande visão: Lázaro Brandão, presidente do Bradesco, dotado de invejável espírito público. Deu-me uma palavra de apoio, observando que os bancos teriam apenas de fazer hipotecas nos empréstimos pessoais, custo pequeno diante do enorme benefício que a nova lei traria para o povo. A medida foi chamada de “lei do calote”. Com o tempo, o país compreendeu, e não se discutiu mais. A lei aí está para sempre (Lei 8.009/90) e prestigiada pelo novo Código Civil. Quem se interessar pelos fundamentos e pela história jurídica do instituto, encontrará tudo no livro Impenhorabilidade do bem de família, de Carlos Gonçalves, Editora Síntese, e no meu prefácio a essa obra, a partir da terceira edição. Conto tudo: onde nasceu a idéia, o porquê, que países a adotaram. Não paramos. Criamos a prisão provisória para os suspeitos da prática de crimes hediondos. Gritaria dos criminalistas, não sei por quê. Havia antes a prisão para averiguação, inteiramente discricionária. Acabaram-se os tempos em que a polícia prendia e escondia o suspeito, o advogado conseguia um habeas corpus, mas não encontrava o cliente em delegacia alguma. A prisão provisória terminou com esse velho e odioso costume policial de esconder pessoas presas. A polícia ou o Ministério Público requerem, e o juiz permite o encarceramento para investigação, quando há fundamentos para isso. No mesmo dia e na mesma hora em que o Congresso Nacional transformava a medida provisória em lei, a Lei nº 7.960/89, o Supremo Tribunal Federal declarava sua constitucionalidade, em ação contra ela proposta pela OAB. Creio que essa coincidência, além de inédita, nunca mais vai acontecer, pelo menos nos próximos mil anos. Pena que esse tipo de prisão acabou se banalizando sob autorização judicial de rotina e se transformou em show policial para encenação de noticiário de televisão. Se soubesse que ia acabar assim, em vez de conceber a medida para o ordenamento jurídico brasileiro teria dado a idéia para o Manoel Carlos usar em alguma novela da Globo. Redigimos também o projeto de lei que listava os crimes hediondos e revogamos a tristemente famosa Lei Fleury, que permitia a criminosos de alta periculosidade permanecer em liberdade até o trânsito julgado da sentença que os condenava. Fui honrosamente xingado e apedrejado por inúmeros e misteriosos delinqüentes. Com essas pedras, construí este livro. Hoje, sinto-me gratificado com a aplicação da lei em muitos e muitos casos graves. Foi aplicada contra vários assassinos e seqüestradores, inclusive contra os cruéis e execráveis matadores de Tim Lopes, jornalista carioca barbaramente torturado e trucidado por criminosos hediondos do Rio de Janeiro. Nesse trabalho todo, José Celso de Mello fazia falta. Mas, agora, era Ministro do Supremo e já proferia seus primeiros votos. Brilhantes. Inclusive a favor da prisão provisória. Pena que o Supremo Tribunal Federal, pressionado pelo Ministro da Justiça do Governo Lula, Márcio Thomaz Bastos, acabou permitindo, por um voto e em um caso concreto de crime hediondo, a progressão do regime de cumprimento de pena dos crimes comuns, o que irá soltar depois de pouco tempo estupradores, seqüestradores e traficantes. O país recebeu com revolta a notícia dessa decisão inteiramente maluca: a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo de lei que manda prender e manter preso o criminoso hediondo.35 Resolveu-se que se deve prender o criminoso cruel, mas um pouquinho só. É inconstitucional mantê-lo preso. Embora, em certos casos, suas vítimas estejam constitucionalmente mortas para sempre. Márcio Thomaz Bastos, quando era ministro de Lula, alegou que a lei dos crimes hediondos foi “escrita sob a emoção da violência” e que ela “satisfaz os anseios de segurança da sociedade, mas não coíbe a criminalidade”. Ora, eu escrevi o projeto com serenidade, para cumprir um comando constitucional muito claro contido no inciso XLIII, do art. 5º, da nossa Lei Magna, que manda diferenciar o tratamento de tais crimes, inafiançáveis e insuscetíveis de anistia ou graça. Não têm graça alguma as gracinhas do Ministro da Justiça de plantão, e esta última de uma pequena maioria inafiançável dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao comparar, na execução penal, os autores de crimes hediondos e os autores de crimes comuns, reconhecendo-lhes direitos iguais. Aposto que o STF vai 35 Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. voltar atrás, como já fez muitas vezes em seus grandes erros. De qualquer forma o Congresso Nacional, pressionado pelo assassinato do menino João Hélio no Rio de Janeiro,36 votou lei instituindo regime diferenciado no cumprimento de penas para os autores de crimes hediondos. Mas, infelizmente, a Lei nº 11.464/2007 deixou uma brecha para os criminosos hediondos saírem das prisões com alguma facilidade. No Brasil, ultimamente, há uma forte tendência para proteger-se bandido, tanto nos julgamentos, como na legislação. No dicionário encontram-se várias definições para solidariedade, entre elas as seguintes: “Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade. Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s): Sentimento de quem é solidário. Dependência recíproca.” Qual a que melhor se aplica aos que protegem bandidos? E precisamos acabar com essa teoria de bobos que sustenta terem os crimes hediondos aumentado depois da lei, como se a punição mais severa excitasse os bandidos. O que faz aumentar a criminalidade, além das condições sociais, é a quase certeza da impunidade. Se a lei punitiva estimula o crime (que coisa mais 36 João Hélio Fernandes, garoto de seis anos, ficou preso pelo cinto de segurança enquanto ladrões fugiam com o carro roubado de sua mãe. A pobre criança foi arrastada por sete quilômetros. Sua morte comoveu o Brasil. A mídia deu grande destaque à tragédia. Não fez o mesmo com a desgraça de outra menina, Gabriellli Cristina Eichholz, de um ano e sete meses, encontrada estuprada, estrangulada e agonizante dentro da pia batismal nos fundos de um templo da Igreja Adventista do Sétimo Dia, em Joinville, Santa Catarina. Numa sala ao lado realizava-se um culto religioso. Essa barbaridade aconteceu um mês depois da trágica morte do menino João Hélio no Rio de Janeiro. Não houve passeatas de protesto contra o crime hediondo praticado contra a menina de Joinville, assassinada por um Rosário (Oscar Gonçalves do Rosário). idiota!), dever-se-ia revogar o Código Penal. 77 Mesmo antes da Constituinte, eu já havia ousado sugerir outras inovações absolutamente necessárias ao Brasil. Sarney era avesso ao uso de decreto-lei. Tivemos discussões intermináveis a esse respeito. Algumas idéias ele recusou, bateu o pé, não quis saber. Uma vez o pessoal da agricultura levou-o assinar um decreto de desapropriação para a reforma agrária. Na área a ser desapropriada, estava incluída toda a cidade de Londrina. Deus nos acuda. Daquele dia em diante, Sarney não assinava nada sem minha revisão na parte jurídica e a revisão da língua portuguesa pelo Joaquim Campeio. Minhas minutas de decretos, decretos-lei, medidas provisórias, eu próprio levava ao Campeio para as correções. É um craque. E mais ainda: companheiro de sinuca. Nas raras folgas, ou fins de semana, ele programava umas partidas, convidando parceiros para umas tacadas honestas na República. Consegui, nesse tempo, convencer Sarney a tomar uma providência que eu julgava fundamental. Contando agora, as pessoas podem duvidar. O Brasil não tinha uma lei que regulasse as licitações públicas e o contrato administrativo. Simplesmente não tinha. Havia algumas regras para licitação, baixadas pelos militares, no Decreto-Lei nº 200; e o contrato administrativo era disciplinado — que disciplinado?! —, tinha como referência o Código de Contabilidade da União, de 1928. Leram bem? 1928. Eu nem era nascido! Passei a trabalhar na solução. Não podia conformar-me com este fato: meu país não tem disciplina legal para dois assuntos de tamanha importância! E o mais grave: o contrato administrativo derivava diretamente da licitação, da concorrência pública. E é matéria de Direito Público, inteiramente distinta dos contratos de Direito Privado. Contei com a valiosa e inestimável colaboração do maior craque na matéria: o mestre Hely Lopes Meirelles. Depois de alguns meses de trabalho, estava pronto o decreto-lei, reunindo nossas idéias e, sobretudo, a jurisprudência brasileira que se formara em torno do vácuo legal. Sarney o estudou durante três dias e voltou radiante. “Fantástico! Maravilha! É incrível que não tivéssemos um diploma como este!” E o assinou, depois, é claro, de revisto pelo Campeio. Decreto-Lei 2.300. No Brasil, há uma curiosidade intrigante. Quando um assunto está há anos sem solução e alguém tem a idéia de resolvê-lo, logo surgem as críticas. E, uma vez resolvido, aparece outro alguém para alterá-lo, a pretexto de aperfeiçoá-lo. Por que não fez antes? Não há explicação. Isso aconteceu com o Decreto-Lei 2.300. No Governo Itamar Franco, alteraram consideravelmente aquela legislação e conseguiram estragá-la em vários aspectos (Lei 8.666). Mas temos, a despeito dos remendos, um estatuto legal da licitação e do contrato administrativo, criado originariamente por um decreto-lei, veículo que soubemos usar melhor que os militares, em homenagem à Conferência da OAB em Belém do Pará. Na história recente do Brasil, essa legislação é a mais importante ao lado da Lei de Responsabilidade Fiscal, editada no ano 2000 pelo Governo Fernando Henrique, coordenada pelo Ministro Martus Tavares e elaborada pelos excelentes economistas José Roberto Afonso e Guilherme Gomes Dias. Não sei se tiveram ajuda de algum jurista. Se não tiveram, é obrigatório o registro: terá sido a primeira vez que economistas escreveram lei corretamente. E que lei! Claro que contra ela os políticos também se insurgiram, à frente toda a bancada federal do PT, sob o comando de Lula e de Palocci, que parece haver se penitenciado do erro, quando virou governo. Até ação direta de inconstitucionalidade propuseram contra o estatuto que se editava para acabar com o velho costume de gastar dinheiro público sem qualquer controle. Registro o fato, para que os advogados jovens possam discernir entre a mentalidade política e a realidade jurídica. O político brasileiro é sempre contra tudo o que venha do adversário. Não reconhece a qualidade jurídica das iniciativas sérias. Depois que vira governo, delas se utiliza com entusiasmo e até com exagero. E mais: chega a propagar aos desinformados que eles foram os autores da idéia. Assim, Fernando Henrique Cardoso se insurgiu contra meu parecer que anulou os juros fixados na Constituição. Quando virou governo, foi o que mais utilizou a liberdade de aumentar a taxa de juros na política monetarista. E assim os petistas fizeram com ele, quando mandou para o Congresso o projeto da Lei de Responsabilidade Fiscal. Votaram contra, criticaram, espernearam, e, um dia, viraram governo. A lei de Fernando Henrique passou a ser elogiada e aplicada pelos petistas com religioso entusiasmo. Mas os petistas têm uma particularidade: não aplicam a lei contra os correligionários que a infringem. 78 Volto ao meu trabalho, iniciado na Consultoria Geral da República. Tinha que estudar e elaborar projetos de lei ordenados pela nova Constituição. No Ministério, havia menos tempo. Mas trabalhar era preciso. Sem a mesma amplitude e importância do estatuto das licitações públicas e do contrato administrativo, outras medidas legislativas precisavam ser implantadas, sobretudo para limpar a legislação da ditadura que se acumulara durante vinte anos, o chamado “entulho autoritário” e que continuava vigente. No meio desse mundão de serviço, minha secretária no Ministério da Justiça entrou em minha sala e educadamente me disse: — Ministro, desculpe interrompê-lo. Há um senhor ao telefone, diretor da penitenciária, dizendo que um dos reclusos é seu amigo de infância e quer falar com o senhor. Chama-se Antônio, mas pediu para dizer que é o Tonho, filho do Zé do Eliazé. — Qual a linha? — Linha dois. Atendi. O diretor da penitenciária passou-me o Tonho: — Saulo, é o Tonho da Santa Luzia. Você se lembra de mim? — Claro que me lembro! Que diabo é essa história de você estar cumprindo pena? Que crime você cometeu? — Homicídio. — Meu Deus! Você matou quem? — Matei a Iracema. — Jesus! Quando eu saí de Cravinhos, você era o namorado dela. O que aconteceu para justificar essa tragédia? — A gente se casou. Chegamos a ter filhos. Depois, a sem vergonha me traiu. E não foi com um só, não; foi com vários. Na minha memória, veio aquela brincadeira do telefone de barbante nas caixas de pó-de-arroz: “Faço o que você quiser!”. Coitada da Iracema. Coitado do Tonho. — Eu queria que você fizesse alguma coisa por mim. Você é o Ministro da Justiça. Acho que pode me ajudar. Diminuir a pena. Arrumar uma provisória. — Tonho, preste atenção: o Ministro da Justiça nada tem que ver com o Poder Judiciário. Todo mundo faz confusão. Eu não posso fazer nada. A penitenciária é estadual. O Brasil não tem penitenciária federal, o que é uma vergonha. Aliás, o sistema penitenciário brasileiro caminha para uma situação caótica. A superlotação e as condições degradantes dos presos, tratados como animais, levaram um juiz de Minas Gerais, em Contagem, à loucura: mandou soltar dezenas de condenados por assaltos, homicídios e estupros. Nossos governos, estaduais e federais, em pleno século XXI, ainda não sabem da existência de Beccaria.37 O pobre do Tonho nada tinha com isso, mas eu já estava com a mania de constantemente me irritar por não termos presídios federais38 e invocava essa falha até se estivesse conversando sobre futebol. Com mais paciência, expliquei-lhe que não podia mexer no caso de sua condenação; mas, por desencargo de consciência, prometi mandar, e mandei, um estagiário do meu escritório para estudar algo, uma revisão ou qualquer coisa que o fizesse sentir-se atendido por mim. Sobretudo garantir-lhe tratamento humano no cumprimento da pena. Embora estivesse afastado da advocacia, o escritório continuava funcionando, proibido por mim de pegar causas contra a União, o que deixou meus colegas furiosos. Advogar contra o Governo Federal era, naquele tempo, o filé-mignon da profissão. 79 Collor já estava eleito, e, em dezembro, Sarney convocou-nos para uma reunião no Planalto: Ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega; Ministro do Planejamento, João Batista Abreu; Ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves; Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Otávio Moreira Lima; Ministro da Marinha, Almirante Henrique Sabóia; Ministro Chefe da Casa Civil, Ronaldo Costa Couto; e Ministro Chefe do SNI, General Ivan de Souza Mendes. Estava ausente de Brasília o Ministro das Relações Exteriores, Roberto de Abreu Sodré. Ninguém sabia o objetivo da reunião. O Presidente apenas nos convocou, porque desejava discutir conosco uma colocação do Ministro da Fazenda de que a inflação, que estava flutuando sem 37 Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, em 1764, revolucionou o pensamento jurídico do direito penal em seu livro Dei delitti e delle pene, preconizando a abolição das torturas e outras condições desumanas no cumprimento das condenações. Ele tinha apenas 26 anos de idade. 38 O Governo Lula construiu o primeiro no Paraná. grandes saltos ao longo dos últimos meses, iria, a partir do mês de janeiro, disparar. Não por motivo do Governo Sarney, que encerrava o ano com superávit primário e sem déficit mas porque as expectativas quanto ao novo governo e seu plano econômico iriam desencadear uma inflação de natureza psicológica nos meses seguintes (coisas dos economistas, inflação psicológica, deixa estar!), e essa atingiria números estratosféricos. Isso iria provocar um caos, e a solução proposta pelo Ministro Maílson da Nóbrega era que o Presidente Sarney fizesse como o Presidente Raúl Alfonsín — que até hoje é condenado por isto —: renunciar ao seu mandato, ou antecipar a posse de Fernando Collor. O Presidente abriu a reunião, dizendo que ouvira da área econômica uma análise sombria sobre o que se esperava dos próximos três meses, até o fim do governo. Ninguém seguraria a inflação. Então, resolveu reunir os ministros da área militar, da Casa Civil, da Casa Militar, do SNI e da Justiça, para ouvi-los. Na abertura da reunião, Sarney disse que deveríamos deliberar sobre a proposta dos dois ministros da área econômica: Sarney devia renunciar, e imediatamente! “Puta merda! O que é isso?”, pensei eu. Outra renúncia na minha vida? Chegava a do Jânio, que fora um estrago, acabara em mudança do regime para parlamentarismo e desaguara na ditadura militar. É sempre assim: um golpe de Estado justifica outro. Estávamos no fim de um governo democrático. O país tinha um presidente eleito pelo voto direto. No que resultaria uma renúncia àquela altura? Seria golpe? Ou pretendiam armar confusão para, no meio do pega-pra-capar, voltar a um outro tipo de ditadura? Então Maílson explicou sua tese, com apoio de João Batista Abreu: — Não há mais como segurar o estouro da inflação. Nos próximos meses, a política monetária ficará fora de controle. Tenho que admitir: o Plano Verão fracassou.39 O Presidente eleito, Fernando 39 Quase bati palmas. E pensei naquela pergunta chata: eu não falei? Collor, e sua já escolhida Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, estão dando entrevistas incendiárias e insinuando medidas drásticas que irão tomar. O empresariado e as fontes de produção vão disparar, numa corrida de aumento de preços insuportável. Não sabemos a proporção da crise nos últimos meses de nosso Governo, mas será catastrófica. Se o Presidente renunciar agora, ou antecipar a posse do eleito, as expectativas serão revertidas e, em caso de renúncia, assumirá o Governo o Dr. Ulysses Guimarães. João Batista Abreu era um pouco delicado demais, tinha uns trejeitos de mãos, falava afetado. Não prestei atenção no que ele disse. Minha cabeça já estava a mil por hora. O que estão propondo que façamos com o Brasil? Deixar a bomba para o Dr. Ulysses seria um ato terrorista. Antecipar a posse de Collor exigiria mudança constitucional a toque de caixa. De qualquer maneira, haveria confusão lascada. 80 — O Dr. Ulysses está de acordo? — perguntei por instinto de advogado que interroga testemunha mentirosa. — Está — respondeu João Batista. No Governo, há um ritual iniciado nos primeiros dias da República. Em reunião de ministros, fala em primeiro lugar o titular do ministério criado antes dos outros. O primeiro ministério criado na República foi o da Justiça. E eu ia falar antes. Sarney me passou a palavra: — Senhor Presidente, queira me desculpar — comecei eu com calma —, mas os ministros da Fazenda e do Planejamento estão propondo uma solução teratológica! É loucura de camisa-de-força. Acabamos de voltar à democracia com o nosso Governo, temos uma Constituição legitimamente votada por uma Constituinte livre, estamos com um Presidente da República eleito pelo voto direto, cuja posse está marcada para o próximo mês de março, o sistema institucional funcionando, tudo começando de novo e bem. Um impacto como este — a renúncia do Presidente da República — pode balançar os alicerces da democracia brasileira, ainda uma criança, que está dando seus primeiros passos. Tem apenas cinco anos. Tanto os brasileiros como os países do resto do mundo não entenderão um gesto tão imprudente, senão doidivanas como esse. Seremos vistos como irresponsáveis. Considero a proposta uma traição não somente ao Presidente da República, mas ao Brasil. — Traição! Não aceito essa palavra. É muito forte — retrucou Maílson. — Vai aceitar, sim senhor — disse o General Leônidas, dando um tapa na mesa. Sarney tem um domínio absoluto dos nervos nessas situações. Inteligente e perspicaz, queria descobrir o que estava por trás daquilo. E pediu calma aos ministros. Solicitou ao General Leônidas que esperasse sua vez de falar, pois seria o próximo depois do Ministro da Marinha, na ausência do Ministro das Relações Exteriores. Mandou que o Ministro da Justiça concluísse. — Pedindo vênia ao senhor Ministro da Fazenda — continuei eu com a macia conversa de advogado —, o termo traição é o único cabível. O Presidente, ao tomar posse, que já foi tumultuada na época, jurou cumprir a Constituição, defender o país, promover o bem geral, sustentar a união e a integridade do Brasil. Vendo Leônidas do meu lado, aproveitei para usar argumentos que sensibilizam os militares: — A renúncia, assim, é uma deserção de suas funções, da chefia do Governo, do comando supremo das Forças Armadas e uma traição ao juramento feito, pois a anomalia pode causar impacto nas instituições, sempre muito submetidas às paixões políticas e às ambições pelo poder. É melhor não provocar a quebra da regra do jogo. Se os últimos meses vão ser difíceis, vamos enfrentá-los. Tomei um fôlego e continuei: — Creio que a culpa pode ser dos atuais discursos do Collor, mas em grande parte foi do Plano Verão, executado à base de portarias e de alergia à legalidade. Tudo o que se faz fora da lei acaba em desordem. Segundo aprendi, aqui no próprio Governo, o fracasso dos planos econômicos deve-se ao fato de se tentar a estabilização financeira apenas no âmbito federal. Deixaram-se de lado, ou não se conceberam, medidas que impusessem austeridade fiscal aos estados e aos municípios. Com todo o respeito aos economistas, não se combate inflação só de um lado do campo, enquanto do outro há uma farra de gastos acima das receitas.40 Mas que haja apenas a desordem monetária, sem contágio da ordem institucional. Minha opinião é esta: o Presidente deve passar a faixa ao Presidente eleito, e não fazer como o General Figueiredo fez com ele, fugindo pelos fundos. O General Ivan de Souza Mendes votou com os ministros da área econômica, Maílson e João Batista.41 Foi a vez do General Leônidas falar. Ferveu e reagiu a ele, e disse em voz alta: — Fica quieto, Ivan! Se você insistir nesse assunto, nós discutimos lá fora: só eu e você. Os ministros militares votaram com o Ministro da Justiça. Inclusive o General Bayma Denis, sempre muito atento a tudo e uma espécie de termômetro entre o passado recente e o nosso nervoso presente. O Ministro Costa Couto, especialista em panos mornos, preocupou-se mais com a hipótese de o Leônidas dar um murro no Ivan quando saíssem, do que com a idéia da renúncia; e escusou-se de dar qualquer opinião, como bom mineiro. Sarney encerrou a reunião, dizendo que não tinha nenhuma 40 Meus “grandes” conhecimentos da matéria eram “cola” de observações de Pérsio Arida que, após sair do Governo, aperfeiçoou seus estudos e amadureceu a idéia da responsabilidade fiscal, aplicada muito mais tarde no Plano Real. Em alguns encontros, comentando o Plano Cruzado, a conversa sempre começava com a pergunta que não queria calar: onde foi que nós erramos? 41 Esse voto do Ministro Chefe do SNI, ligado às Forças Armadas, fez-me lembrar o Barão de Itararé: há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira. decisão a tomar naquele momento, mas que iria pensar no assunto. Pediu que Leônidas e eu ficássemos, pois tinha outra matéria a tratar conosco. Era nada. Quis ganhar tempo para o Maílson ir embora sem atropelos. Eu aproveitei para sugerir: — Põe esses dois para fora! O anunciado estouro foi provocado por eles com aquela maluquice do Plano Verão, elaborado sem a assistência de juristas e num momento em que esse tipo de solução já estava desacreditado! Esses grandes erros do Governo, de todos os governos, cada qual com os seus erros próprios e impróprios, são depois desmentidos e tudo fica por isso mesmo. É bom lembrar de Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), que observou: “No Brasil, as coisas acontecem, mas depois, com um simples desmentido, deixaram de acontecer.” Serve para muitos outros fatos, os antigos e os modernos. 81 Sarney começara seu governo obstinado a dar ao país todas as liberdades democráticas. Liberou geral, até o partidão comunista que não havia conseguido voltar mesmo na era Juscelino. E, ninguém se lembra, mas havia censura no rádio e na incipiente televisão, tolerada pelos mais democráticos governos anteriores ao golpe militar. Sarney acabou com ela. No Governo Juscelino, a Lei de Imprensa (Lei nº 2.044) considerava cri-me a crítica às “autoridades constituídas”. Na ditadura, foi revogada por uma lei pior (Lei nº 5.250/67), que passou a considerar tudo como crime, e a responsabilidade criminal podia ser transferida de uma pessoa para outra. Por exemplo: se alguém, no exterior, escrevesse um artigo contra o regime, prendia-se o chefe de redação que autorizasse a publicação. Tempos duros. Esse monstrengo dura até hoje, neste começo do século XXI. Nós, porém, fizemos esse entulho jurídico cair em desuso. O Judiciário ajudou muito, menos em alguns setores que permitiram o surgimento da indústria das indenizações civis contra jornais e jornalistas. O problema, porém e naquela hora, não era lei alguma. Era uma nova renúncia. Não seria no fim de seu governo que Sarney provocaria um impacto com a renúncia, ato que balançaria as instituições pelas quais tanto lutou desde o primeiro dia de sua posse. E ninguém, em sã consciência, poderia prever o resultado. Manteve os dois ministros. Fui jantar com ele. Fazer-lhe companhia. O dia tinha sido emocionalmente massacrante. No Palácio da Alvorada, Dona Kyola, mãe de Sarney, estava em frente à televisão, assistindo a uma entrevista de Fernando Collor, que ainda falava mal do Presidente, ameaçando mundos e fundos, tal como fizera na campanha eleitoral: — Esse moço vai acabar mal — disse Dona Kyola, quando chegamos perto. Sarney agüentou, transmitiu o cargo a seu sucessor no mês de março, quando a inflação bateu em 84,32%, e isso em virtude das medidas anunciadas pelo próprio Collor, pois, até dezembro anterior, o surto inflacionário estava sob controle. E o mais importante: a democracia era uma conquista irreversível, e o desemprego (para inveja de muita gente) estava em 2,7%, muito abaixo dos 10% deixados pela ditadura. Era o que interessava a Sarney. O novo Presidente empossado confiscou a poupança do povo brasileiro e acabou posto para fora, não pelo confisco, mas pela imoralidade que atribuía aos outros. Dona Kyola vaticinou, e os anjos disseram amém. Na última reunião do Ministério do primeiro Governo Civil depois da ditadura, uma semana antes da posse de Fernando Collor, Sarney fez um discurso demonstrando que, apesar das fantásticas dificuldades políticas e institucionais, muita coisa fora conquistada, entre elas o desemprego de apenas 2,7%, número que mata Lula de inveja, já que ele se proclama melhor em tudo. Enumerou uma lista expressiva de melhorias. Franqueada a palavra aos ministros de Estado, fui o primeiro a falar. Dei-lhe mais um título: o de direito autoral da democracia. Claro que o regime democrático brasileiro foi conquistado pelo esforço de muita gente, muito sofrimento, muito sacrifício. Pelas greves dos sindicalistas no Estado de São Paulo, inclusive Lula, apoiadas por lideranças expressivas, Franco Montoro, Eduardo Suplicy, Dalmo Dallari, José Carlos Dias, o destemido Tito Costa, que organizou plantão em praça pública para enfrentar a ditadura. Passaram por lá Mário Covas, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, até Fernando Henrique Cardoso, em conduta absolutamente sincera e convicta, por incrível que pareça. Mas a costura final da democracia em Estado de Direito o país deve à paciência e à habilidade de Sarney, quando assumiu a presidência da República, sem nenhuma legitimidade, criticado e confrontado, que nos levou à Constituinte, assegurando as liberdades públicas e políticas. Segundo a lógica de Marilena Chauí, filósofa do PT, Sarney deve ser odiado por isso, posto que o PT, naquela época, apenas atrapalhava. Não tinha a menor vocação para elaborar as regras fundamentais das instituições democráticas, coisa da decadente burguesia. 82 Vários ministros falaram, despedindo-se e declarando-se honrados de haverem servido sob a presidência de José Sarney. Dentre eles, Maílson da Nóbrega, que, naquele instante final, fez um discurso um tanto mea culpa e demonstrou grandeza de alma ao despedir-se do Governo, reconhecendo que as dificuldades econômicas não impediram a conquista maior: o fortalecimento das instituições. Depois, falou Roberto Cardoso Alves, Ministro da Indústria e Comércio, relatando sua gestão no ministério e fazendo um enorme elogio a Maílson da Nóbrega, que, inteligente como é, entendeu tratar-se de uma “encomenda” de Sarney, amigo íntimo do Robertão, para um final feliz em suas relações, na despedida do poder. Cardoso Alves encerrou sua fala comunicando que havia vendido por licitação pública as vacas leiteiras da Companhia Siderúrgica Nacional. É isto: a CSN criava vacas. E eram gordas. Ronaldo Costa Couto saiu do governo e dedicou-se a escrever história contemporânea, o ótimo Matarazzo42 e, entre outros, o seu excelente livro Brasília Kubitschek de Oliveira, que inspirou a minissérie JK, de Adelaide Amaral, escondida pela Globo nas transmissões das madrugadas. Não sei se Costa Couto um dia irá lembrar-se de escrever sobre as vacas da Companhia Siderúrgica Nacional. Mas elas existiram. 83 Clotilde entrou em minha sala esbaforida, fechou a porta e disse, gaguejando: — Chefe, aconteceu algo incrível. Hoje, na saída da escola das crianças, o motorista, como de costume, atrasou-se, e eu fiquei com elas para mais um papo, pois, além de conquistar a confiança, estou arrancando coisas aos pouquinhos, gota a gota. E, hoje, elas me contaram algo fantástico: o juiz foi à casa delas. — O quê? — É isso aí. O juiz da causa foi à casa delas. — Como elas sabem que era o juiz? O que ele fez? A mãe estava junto? — Disseram que o juiz, acompanhado de outro homem, chegou 42 Editora Planeta. sem avisar, hoje de manhã. A empregada deixou-os entrar e, sem falar com a mãe, levou-os diretamente às crianças. Elas disseram que ele é bonzinho. — Ele disse às crianças que era juiz? — Acho que não. Segundo elas, foi a empregada que falou tratar-se do juiz. — Mas como você sabe que é o juiz da causa? Alguém se apresentou, falou ser o juiz e entrou? Pode ser um juiz de futebol, um juiz de paz, um vendedor de Bíblia anunciando o Juízo Final! — Tenho certeza. Elas disseram que a mãe ficou muito nervosa. E tentou impedir a conversa. Elas ficaram com medo. Mas o outro homem chamou a mãe e a fez sentar. E o homem, que eu sei ser o juiz, ficou conversando com elas sobre o pai, sobre o que elas disseram, como haver dormido sem roupa com a namorada do pai. Aí eu perguntei: o que vocês responderam? — Que estávamos com medo da mamãe; que a mamãe que mandou falar e agora mandou falar que ela não mandou. Clotilde prosseguiu: — Pelo que me contaram, as coisas ficaram confusas. Disseram, porém, que ele passou a mão na cabecinha delas, falou para terem paciência com a mãe e que um dia, muito breve, voltariam a receber a visita do pai, o que as deixou na maior felicidade. Daí minha conclusão bastante óbvia: era o juiz da causa. Foi minha vez de gaguejar. Teria sido possível? Que fantástico esse jovem magistrado! A lei processual, isto é, o Código de Processo Civil, permite a inspeção judicial, art. 440: “O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato, que interesse à decisão da causa”. Mas, em meio século de advocacia, eu nunca tinha visto um juiz do cível usar desse permissivo legal, sobretudo sem observar os preceitos processuais que burocratizam a diligência. Em geral, os meritíssimos sentam-se em suas cadeiras de magistrados e não tiram a bunda de lá, a não ser para ir embora. Em São Paulo, jamais aconteceu. Mais tarde, conversando com colegas meus de outros estados, eles até riram. Nunca sequer souberam de algo igual. Mas o jovem juiz da minha causa, sem alarde, sem avisar as partes, quietinho, aplicou o art. 440 de um jeito muito especial e foi fazer a inédita inspeção judicial na casa das crianças, para ouvi-las, para sentir de perto o drama que viviam, para descobrir se era mentira ou verdade o que constava da brutal gravação anexada ao processo. E dispensou as formalidades do Código de Processo Civil, a começar pelo acompanhamento da diligência pelas partes. Se observada a regra, a confusão seria total. O juiz teve que decidir: ou observava a regra ou observava as crianças. Pelo que Clotilde apurou junto às crianças, o magistrado não ficou sabendo de tudo com absoluta segurança. Mas verificou o pavor das crianças diante do assunto. E o outro homem? Quem era o outro homem? 84 Já estava encerrado o expediente. Mas o escrivão trabalhava até tarde. Tentei o telefone. O dia era de sorte. Ele se encontrava no cartório: — Hoje de manhã? Não estou sabendo de nada! — respondeu ele à minha pergunta ansiosa. Insisti: — O senhor tem certeza de que não sabe de nada? O juiz não foi à casa dos filhos do Sr. Olavo Brás, aquele do processo de visitas, da gravação, da ameaça do suicídio... — O processo eu conheço, Dr. Saulo. Sei, sim, do que se trata. Mas posso assegurar-lhe que o juiz não fez qualquer diligência desse tipo. Eu saberia. O senhor está dizendo que foi hoje de manhã. Ora, o expediente aqui na vara é à tarde. O juiz iria fazer diligência fora do expediente? E sem levar ninguém com ele? Lembre-se, doutor, de que o art. 441 diz que o juiz, na inspeção direta, deve ser assistido por um ou mais peritos. — Não, meu caro. A lei diz que o juiz poderá ser assistido e não que deverá. O magistrado pode muito bem dispensar a assistência pericial quando a julgar desnecessária. Mas ele levou alguém consigo. Um senhor o acompanhava, segundo a empregada da casa. — Impossível — retrucou o escrivão. — Eu saberia. Não convocou nenhum servidor para acompanhar a diligência. O senhor tem certeza de que foi ele? — Tenho. Amanhã passarei por aí. Dê uma sondada em Sua Excelência. Estarei aí na primeira hora. Naquela noite, dormi mal. Fiquei muito agitado com a notícia e, confesso, sem saber se era realmente uma notícia ou uma hipótese sonhada pela Clotilde. Mas, se as crianças falaram das perguntas sobre o pai, de detalhes sobre dormir com a namorada dele e disseram ter medo de contar que a mãe as proibiu de falar, era muita confusão para a cabeça delas e para a minha também. Só podia ser verdade. Esse Olavo Brás ganhou na loteria. Seu caso estava nas mãos de um dos melhores juizes do país. Eu conhecia as qualidades do jovem magistrado, a inteligência, a cultura, a seriedade, a dedicação e o apostolado com que exercia a Magistratura. Mas não esperava tanto. Não esperava que fosse cumprir o máximo dever de um juiz em casos como esse: buscar ele próprio a verdade. Poucos fazem isso. Ou quase ninguém. 85 Na minha vida, conheci juizes formidáveis, dos quais guardo lembranças entusiastas e profundo respeito. Mas sofri também grandes desilusões. Algumas lamentáveis. Vou contar uma delas. Terminado seu mandato na Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se a Senador. O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro — negou-lhe a legenda no Maranhão. Candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnações fundadas em questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo Tribunal Federal. Naquele momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em meio recesso, e o Ministro Celso de Mello, meu ex-secretário na Consultoria Geral da República, me telefonou: — O processo do Presidente será distribuído amanhã. Em Brasília, somente estão por aqui dois ministros: o Marco Aurélio de Mello e eu. Tenho receio de que caia com ele, primo do Presidente Collor. Não sei como vai considerar a questão. — O Presidente tem muita fé em Deus. Tudo vai sair bem, mesmo porque a tese jurídica da defesa do Sarney está absolutamente correta. Celso de Mello concordou plenamente com a observação, acrescentando ser indiscutível a matéria de fato, isto é, a transferência do domicílio eleitoral no prazo da lei. O advogado de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo profissional. Fez excelente trabalho e demonstrou a simplicidade da questão: Sarney havia transferido seu domicílio eleitoral no prazo da lei. Simples. O que há para discutir? É público e notório que ele é do Maranhão! Ora, também era público e notório que ele morava em Brasília, onde exercera o cargo de Senador e, nos últimos cinco anos, o de Presidente da República. Desde a faculdade de Direito, a gente aprende que não se pode confundir o domicílio civil com o domicílio eleitoral. E a Constituição de 88, ainda grande desconhecida (como até hoje), não estabelecia nenhum prazo para mudança de domicílio. O sistema de sorteio do Supremo fez o processo cair com o Ministro Marco Aurélio, que, no mesmo dia, concedeu medida liminar, mantendo a candidatura de Sarney pelo Amapá. Veio o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney ganhou, mas o último a votar foi o Ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da candidatura do Sarney. Deus do céu! O que deu no garoto? Estava preocupado com a distribuição do processo para a apreciação da liminar, afirmando que a concederia em favor da tese de Sarney, e, agora, no mérito, vota contra e fica vencido no plenário. O que aconteceu? Não teve sequer a gentileza, ou habilidade, de dar-se por impedido. Votou contra o Presidente que o nomeara, depois de ter demonstrado grande preocupação com a hipótese de Marco Aurélio ser o relator. Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando: — Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente. — Claro! O que deu em você? — É que a Folha de S. Paulo, na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o Presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando chegou minha vez de votar, o Presidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu. Votei contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranqüilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente. Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e perguntei: — Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney porque a Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor? — Sim. — E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele? — Exatamente. O senhor entendeu? — Entendi. Entendi que você é um juiz de merda! Bati o telefone e nunca mais falei com ele. 86 Daí para frente, Celso de Mello passou a sofrer um processo de distúrbio psicológico com relação a mim, que deve torturá-lo muito. Há pouco tempo, já passados quase quinze anos, o Supremo Tribunal julgou um caso muito interessante do ponto de vista jurídico. O Procurador-Geral da República pediu o arquivamento de um inquérito aberto contra o Senador Antônio Carlos Magalhães. Mudou o Governo, e o novo Procurador-Geral da República, no mesmo inquérito, ofereceu denúncia, sem que o pedido de arquivamento tivesse sido apreciado e sem qualquer fato novo. A questão processual penal transformou-se em matéria do mais alto interesse para os estudiosos. A imprensa a explorar o lado político e, por isso, confundindo tudo. Sarney, com sua eterna alma de conciliador, pediu-me que solicitasse a Celso de Mello estudar o assunto, considerando que já havia pedido de arquivamento do inquérito pelo procurador anterior. O novo não podia modificá-lo. Lembrei-lhe que não tinha condições de falar com o ilustre ministro de Tatuí, pois havíamos tido aquele entrevero no caso de sua candidatura pelo Amapá. Sarney ponderou que o incidente estava prescrito. Passaram-se quinze anos. Passei a desconfiar: Sarney desejava realmente o voto do Celso de Mello ou queria que eu fizesse as pazes com ele? A nova questão legal era clara: o pedido de arquivamento pelo Procurador-Geral não permitia a denúncia pelo novo chefe do Ministério Público Federal. Não me senti em condições de falar coisa alguma, mas, como pedido do Sarney me toca no coração, solicitei a um amigo comum, do Celso de Mello e meu, para falar com ele, inclusive lembrando votos dele no sentido da tese defendida pelo advogado de ACM. Recebeu o amigo comum, que havia sido seu colega no Ministério Público de São Paulo, homem honrado, culto, excelente advogado, de uma honestidade e boa-fé a toda prova. Mas este cometeu o pecado de dizer que eu tinha interesse na tese, embora não advogasse e nada tivesse a ver com o réu. O que faz o ilustre Ministro do Supremo? Afirma ao amigo comum que a tese está correta e manda-lhe mais três ou quatro votos seus, estudos e outros trabalhos, demonstrando que não se pode oferecer denúncia em inquérito com pedido de arquivamento. Meu amigo exultou com a missão cumprida, enviou-me os votos, e eu os enviei ao advogado do ACM, que os usou em memorial. Dia do julgamento. O Tribunal pleno rejeita a denúncia contra apenas dois isolados votos. Um deles era o do Ministro Celso de Mello. O outro era da relatora, que votou em primeiro lugar. Se não fosse relatora, teria votado diferente, depois de ouvir a quase unanimidade dos votos de seus colegas. Celso de Mello votou contra o ACM, contrariando suas próprias convicções jurídicas? Aqui surge outra curiosidade intrigante: José Celso de Mello foi Presidente do Supremo Tribunal na mesma época em que Antônio Carlos Magalhães era Presidente do Senado Federal. Os dois, como chefes de poderes, estabeleceram forte ligação pessoal. E ACM resolveu fazer, no Senado Federal, uma bobagem fantástica: a CPI do Judiciário. E teve o apoio do Celso de Mello. Vou analisar o melado. 87 O país pegou fogo. Como poderia um Poder investigar o outro? O comando constitucional da separação dos poderes e da harmonia entre eles tinha ido para a cucuia. Nas discussões que se seguiram, tomei o lado do Judiciário, que estava sendo acusado de lutar por privilégios. Escrevi artigos de jornal e fiz conferências, demonstrando que não se tratava de privilégios, mas de prerrogativas constitucionais, que não podiam ser alteradas ou violentadas contra a Magistratura, por intermédio de um órgão político de outro Poder. Ameaçavam as regras de aposentadoria dos juizes e outras proteções instituídas em âmbito constitucional. Pois Celso de Mello, Presidente do Supremo Tribunal Federal, isto é, chefe máximo do Judiciário, postou-se contra o Poder que chefiava. Mesmo se, no fundo de suas convicções, nutrisse alguma censura ao Judiciário, devia ser, ao menos, discreto, invocar a necessidade de maior reflexão, de maiores debates pelo Congresso, e não em uma CPI, cuidados simples para não expor à execração pública o Poder que comandava. “Os juizes estão lutando por pri- vilégios”, sustentava ele do alto da Presidência do Supremo Tribunal Federal. Que desastre! Aquilo que eu dissera a Oscar Correia, isto é, que o tempo corrigiria o único defeito dele, que era ser muito jovem, não aconteceu. O tempo não corrigiu coisa alguma. Muitos advogados sabiam que Celso de Mello havia sido meu secretário na Consultoria da República e nomeado Ministro do Supremo por empenho meu. Mas não estavam informados do rompimento. Assim, alguns, quando Celso de Mello era relator de processo de interesse deles, vinham me pedir para solicitar o apressamento, dar especial atenção, aquelas conversas sempre expressas na costumeira frase: — Peço-lhe o favor de dar uma palavrinha ao ministro. — Meu querido colega, com esse ministro não posso dar palavrinha alguma, porque rompi com ele, precisamente por lhe haver dito um palavrão. Devo, porém, uma explicação a todos os juizes do Brasil: aquele desaviso de Celso de Mello contra a Magistratura não era contra a Magistratura; estava apenas tomando posição contrária à minha.