Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
ANDRÉ FRANCO MONTORO
INTRODUÇÃO
À CIÊNCIA
DO DIREITO
© desta edição: 2000
EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.
Diretor Responsável: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO
CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800112433
Rua Tabatinguera, 140, Térreo, Loja 1 • Caixa Postal 678 Tel. (011) 31152433 •
Fax (011) 3106
3772 CEP 01020901 São Paulo, SP, Brasil
Aos meus alunos com a esperança de que, bem conhecendo o Direito, melhor possam
servir à
Justiça.
"Teu dever é lutar pelo direito, mas no dia em que encontrares o direito em
conflito com a justiça,
luta pela justiça" (Dos mandamentos do advogado redigidos por EDUARDO COUTURE)
"O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Todos os direitos da
humanidade foram
conseguidos na luta. O direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes
públicos, mas
da nação inteira" (A luta pelo direito, IHERING)
Ao concluir o presente volume, escrito simultaneamente ao exercício do
magistério e ao
desempenho do mandato parlamentar, pareceume de justiça dedicálo:
a meus pais, de quem recebi a lição simples do amor ao trabalho;
à minha mulher, que me ajudou e estimulou a seguir essa lição;
a meus filhos e netos, a quem espero deixar a mesma mensagem.
Brasília, julho de 1971.
"O moderno é ler Platão."
Umberto Eco
"Enquanto na Europa Moderna os filósofos idealistas constroem cada um seu
sistema pessoal, a
filosofia de Aristóteles, descrição e visão do real, tornouse um bem comum da
humanidade. Os
juristas não têm o direito de ignorar essa filosofia."
Michel Villey
"Para certo público universitário S. Tomás seria um símbolo do `obscurantismo
medieval',
ultrapassado pela ciência moderna. É suficiente lêlo para mudar de opinião."
Michel Villey
"Recriminaramme, com razão, a ignorância das idéias de S. Tomás. Quantos erros
teriam sido
evitados se houvéssemos conservado com fidelidade as suas doutrinas! Quanto a
mim, creio que
se as houvesse conhecido antes, não teria escrito o meu livro. As idéias
fundamentais que
desejava publicar já se acham expressas, com clareza perfeita e notável
profundidade, por esse
pensador vigoroso."
lhering
"A análise do sentimento de justiça foi feita por S. Tomás em termos que nunca
foram
ultrapassados."
L. Duguit
SUMÁRIO
Prefácio à 25.' edição 1
Prefácio à 23.' edição: "Nova Visão do Desenvolvimento" 3
Prefácio à 21.' edição: "Novos Direitos da Pessoa Humana" 7
1. Direito ao ambiente sadio (9); 2. Direito ao trabalho (12); 3.
Direitos
do Consumidor (13); 4. Direito de participação (15); 5. Direito ao
desenvolvimento (19)
Prefácios anteriores 21
Plano de trabalho 25
1 PRIMEIRA PARTE O DIREITO COMO CIÊNCIA 29
(Epistemologia Jurídica)
O CONCEITO DE DIREITO
2 1. Origens do vocábulo (29); 2. Pluralidade de significações do
direito 61
Cinco realidades fundamentais (33); 3. Direitoconceito análogo (42);
4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do
direito (44); 5. Outras formulações (53); 6. Bibliografia (59).
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
1. O direito como ciência (61); 2. Classificação das ciências de Augusto
Cocote e de Dilthey (62); 3. A ordem universal (65); 4. A classificação
de Aristóteles e suas modificações (70); 5. Outras formulações (77); 6.
Bibliografia (81).
3 O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 83
1. A teoria no direito (83); 2. A técnica no direito (89); 3. A ética e
o
direito O direito como ciência normativa ética (94); 4. Outras
formulações (98); 5. Bibliografia (103).
4 VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 105
5 1. As diversas ciências jurídicas (105); 2. A divisão do direito em
público 121
e privado (110); 3. Outras formulações (113); 4. Bibliografia (117).
SEGUNDA PARTE O DIREITO COMO JUSTO
(Axiologia Jurídica)
O CONCEITO DE JUSTIÇA
1. O Direito como exigência da justiça (/21); 2. Acepção subjetiva e objetiva da
justiça (125); 3.
Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça (128); 4. Características
essenciais da justiça (130); 5.
Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social (138); 6. Virtudes anexas
à justiça (140); 7.
Outras formulações (142); 8. Bibliografia (147).
XII INTRODUÇÃO À CIÊNCIA ~O DIREITO
6 A JUSTIÇA COMUTATIVA
149
7 1. Conceito de justiça comutativa (149); 2 A "alteridade" na justiça
173
comutativa (151); 3. O "devido" na justi~a comutativa (152); 4. A
"igualdade" na justiça comutativa (159); 5. Aplicações da justiça
comutativa (160); 6. Outras formulações (154); 7. Bibliografia (171).
A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
8 1. O conceito de justiça distributiva (173); Z A "alteridade" na
justiça
distributiva (176); 3. O "devido" na justiça distributiva (182); 4. A
"igualdade" na justiça distributiva (189); 5. Aplicações da justiça
distributiva (192); 6. Outras formulações (2'5); 7. Bibliografia (210).
A JUSTIÇA SOCIAL
212
9 _ 1. Conceito de justiça social (212); 2. A "alteridade" na justiça
social
(215); 3. O "devido" na justiça social (217); 9. A "igualdade" na
justiça
social (225); 5. Aplicações da justiça social (227); 6. Outras
formulações
(231); 7. Bibliografia (240).
SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O
DIREITO 242
1. Concepção positivista e concepção ética do direito (243); 2. O
positivismo filosófico (244); 3. O positivismo t;ientífico no direito (247);
4. O positivismo jurídico (252); 5. Doutrina clássica do direito natural
(257); 6. Doutrina racionalista ou do direito NaturalI abstrato (272); 7.
Doutrina dos valores ou da cultura (275); 8. Conclusões (279); 9. Outras
formulações (282); 10. Bibliografia (289).
10 TERCEIRA PARTE O DIREITO CbMO NORMA 293
(Teoria da norma jurígica)
CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA
11 1. Etimologia e diversidade de significação do vocábulo "lei" (293);
321
2. A lei universal ou cósmica (296); 3. A lei humana, ética ou moral
(300); 4. A lei jurídica (305); 5. Outras formulações (314); 6.
Bibliografia (320).
ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA
1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais.
Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica (321); 2. Importância e
conceito de lei: elemento formal, material e inttrumental (327); 3. As
diversas espécies de lei (333);.4. Os costumes jurídicos: denominações,
conceito, importância, espécies (347); 5. A jurisbrudência. Seu conceito
e importância como fonte do direito (352); 6. A doutrina como fonte do
direito. Conceito e importância (356); 7. O problema das fontes não
estatais (358); 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores
jurídicos (361); 9. Outras formulações (365); 1O. Bibliografia (367).
12 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS
1. Interpretação e hermenêutica: conceito (369); Espécies de interpretação:
quanto à origem, ao
método e aos efeitos (372); 3. Sistemas ou escolas de interpretação: sistemas
tradicionais oti
legalistas e sistemas
SUMÁRIO XIII
l03 modernos (375); 4. Novas correntes (379); 5. A integração jurídica e
o
problema das lacunas da lei (380); 6. Outras formulações (382); 7.
Bibliografia (386).
APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS NO ESPAÇO E NO
TEMPO 388
114 1. Limites ao campo de aplicação das normas jurídicas (388); 2.
Vigência 403
das leis no tempo (389); 3. Vigência da lei no espaço (396); 4. Outras
formulações (398); 5. Bibliografia (402).
DIVISÃO DO DIREITO EM PÚBLICO E PRIVADO
1. Histórico e critérios da givisão do direito em público e privado
(403);
2. Ramos do direito público: direito constitucional, administrativo,
fiscal,
judiciário, penal, internacional público (406); 3. Ramos do direito
privado: direito civil, direito comercial, direito do consumidor,
direito do
trabalho e direito internacional privado (420); 4. Outras formulações
(429); 5. Bibliografia (433).
QUARTA PARTE O DIREITO COMO FACULDADE
(Teoriy dos Direitos subjetivos)
15 CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO :
1. Noções preliminares: denominações e problemas (437); 2. Teorias negadoras do
direito
subjetivo: teoria objetiva ou realista de Duguit e teoria formalista de Kelseq
(438): 3. Teorias sobre
a natureza do direito
1. Análise do direito subjetivo em seus elementos (454); 2. O sujeito do
direito. Sujeito ativo e
sujeito passivo. O problema dos direitos sem sujeito. O dever jurídico. A
prestação (455); 3. Objeto
do direito: objeto imediato; prestação; objeto mediato; coisas, pessoas ou ações
(460); 4. A relação
jurídica. Seu elemento gerador: o fato jurídico (fatos naturais, atos jurídicos
e atos ilícitos) (465); 5.
A proteção jurídica: a sanção, a coação e a coerção. Espécies de sanção. A ação
jurídica e o
direito de ação (467); 6. Outras forr>hulações (472); 7. Bibliografia (475).
17 CLASSIFICAÇÃO DOSA DIREITOS SUBJETIVOS 477
1. Critérios de classificaçN0 (477); 2. Classificação fundada no sujeito
passivo: direitos relativos ee
absolutos (478); 3. Classificação fundada no sujeito ativo: direitos próprios
aos indivíduos, próprios
às instituições e comuns a indivíduos e instituições (479); 4. Classificação
fundada no objeto do
direito: direitos da personalidade, direitos reais, direitos obrigacionais
(480); 5. Clzassificação
fundada na finalidade do direito: direitointeresse e direitoft nção (484); 6.
Outras formulações
(485); 7. Bibliografia (488).
437
subjetivo: doutrinas da vontade (Windscheid), do interesse (Ihenng) e mistas
(Jellinek, Salleiles
Michoud) (443); 4. Conclusões. Tríplice aspecto do direito subjetivo: direito
interesse, direitopoder
e direito
relação (447); 5. Outras formulações (449); 6. Bibliografia (452).
16 ELEMENTOS DO DIREITO SUBJETIVO
454
369
XII INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
6 A JUSTIÇA COMUTATIVA 149
7 1. Conceito de justiça comutativa (149); 2. A "alteridade" na justiça
173
comutativa (151); 3. O "devido" na justiça comutativa (152); 4. A
"igualdade" na justiça comutativa (159); 5. Aplicações da justiça
comutativa (160); 6. Outras formulações (164); 7. Bibliografia (171).
A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
8 1. O conceito de justiça distributiva (173); 2. A "alteridade" na
justiça 212
distributiva (176); 3. O "devido" na justiça distributiva (182); 4. A
"igualdade" na justiça distributiva (189); 5. Aplicações da justiça
distributiva (192); 6. Outras formulações (205); 7. Bibliografia (210).
A JUSTIÇA SOCIAL
9 _ 1. Conceito de justiça social (212); 2. A "alteridade" na justiça
social 242
(215); 3. O "devido" na justiça social (217); 4. A "igualdade" na
justiça
social (225); 5. Aplicações da justiça social (227); 6. Outras
formulações
(231); 7. Bibliografia (240).
SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO
1. Concepção positivista e concepção ética do direito (243); 2. O
positivismo filosófico (244); 3. O positivismo científico no direito (247);
4. O positivismo jurídico (252); 5. Doutrina clássica do direito natural
(257); 6. Doutrina racionalista ou do direito natural abstrato (272); 7.
Doutrina dos valores ou da cultura (275); 8. Conclusões (279); 9. Outras
formulações (282); 10. Bibliografia (289).
TERCEIRA PARTE O DIREITO COMO NORMA
(Teoria da norma jurídica)
10 CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 293
11 1. Etimologia e diversidade de significação do vocábulo "lei" (293);
321
2. A lei universal ou cósmica (296); 3. A lei humana, ética ou moral
(300); 4. A lei jurídica (305); 5. Outras formulações (314); 6.
Bibliografia (320).
ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA
1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais.
Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica (321); 2. Importância e
conceito de lei: elemento formal, material e instrumental (327); 3. As
diversas espécies de lei (333);.4. Os costumes jurídicos: denominações,
conceito, importância, espécies (347); 5. A jurisprudência. Seu conceito
e importância como fonte do direito (352); 6. A doutrina como fonte do
direito. Conceito e importância (356); 7. O problema das fontes não
estatais (358); 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores
jurídicos (361); 9. Outras formulações (365); 10. Bibliografia (367).
modernos (375); 4. Novas correntes (379); 5. A integração jurídica e o problema
das lacunas da lei
(380); 6. Outras formulações (382); 7.
Bibliografia (386).
13 APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS NO ESPAÇO E NO TEMPO 388
...........................................
1. Limites ao campo de aplicação das normas jurídicas (388); 2. Vigência das
leis no tempo (389);
3. Vigência da lei no espaço (396); 4. Outras formulações (398); 5. Bibliografia
(402).
14 DIVISÃO DO DIREITO EM PÚBLICO E PRIVADO 403
1. Histórico e critérios da divisão do direito em público e privado (403); 2.
Ramos do direito público:
direito constitucional, administrativo, fiscal, judiciário, penal, internacional
público (406); 3. Ramos
do direito privado: direito civil, direito comercial, direito do consumidor,
direito do trabalho e direito
internacional privado (420); 4. Outras formulações
(429); 5. Bibliografia (433).
QUARTA PARTE O DIREITO COMO FACULDADE (Teoria dos Direitos Subjetivos) 15
CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO 437
1. Noções preliminares: denominações e problemas (437); 2. Teorias negadoras do
direito
subjetivo: teoria objetiva ou realista de Duguit e teoria formalista de Kelsen
(438); 3. Teorias sobre
a natureza do direito subjetivo: doutrinas da vontade (Windscheid), do interesse
(Ihering) e mistas
(Jellinek, Salleiles, Michoud) (443); 4. Conclusões. Tríplice aspecto do direito
subjetivo: direito
interesse, direitopoder e direitorelação (447); 5. Outras formulações (449); 6.
Bibliografia (452).
16 ELEMENTOS DO DIREITO SUBJETIVO 454
1. Análise do direito subjetivo em seus elementos (454); 2. O sujeito do
direito. Sujeito ativo e
sujeito passivo. O problema dos direitos sem sujeito. O dever jurídico. A
prestação (455); 3. Objeto
do direito: objeto imediato; prestação; objeto mediato; coisas, pessoas ou ações
(460); 4. A relação
jurídica. Seu elemento gerador: o fato jurídico (fatos naturais, atos jurídicos
e atos ilícitos) (465); 5.
A proteção jurídica: a sanção, a coação e a coerção. Espécies de sanção. A ação
jurídica e o
direito de ação (467); 6. Outras formulações (472); 7. Bibliografia (475).
17 CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS SUBJETIVOS
1. Critérios de classificação (477); 2. Classificação fundada no sujeito
passivo: direitos relativos e
absolutos (478); 3. Classificação fundada no sujeito ativo: direitos próprios
aos indivíduos, próprios
às instituições e comuns a indivíduos e instituições (479); 4. Classificação
fundada no objeto do
direito: direitos da personalidade, direitos reais, direitos obrigacionais
(480); 5. Classificação
fundada na finalidade do direito: direitointeresse e direitofunção (484); 6.
Outras formulações
(485); 7. Bibliografia (488).
SUMÁRIO
XIII
12 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS
...........................
1. Interpretação e hermenêutica: conceito (369); 2. Espécies de interpretação:
quanto à origem, ao
método e aos efeitos (372); 3. Sistemas ou escolas de interpretação: sistemas
tradicionais ou
legalistas e sistemas
369
477
XIV INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
18 A PESSOA FÍSICA 490
1. Conceito de pessoa física. Denominações. Conceito filosófico,
psicológico e
jurídico de pessoa
(490); 2. A capacidade da pessoa física (491); 3. Começo e fim da personalidade
(494); 4. Outras
formulações (497); 5. Bibliografia (498).
19 A PESSOA JURÍDICA
1. Conceito de pessoa jurídica. Denominações. Teoria sobre a natureza da pessoa
jurídica (500);
2. Classificação das pessoas jurídicas (502); 3. Capacidade da pessoa jurídica
(504); 4. Começo e
fim da pessoa jurídica (505); 5. Outras formulações (506); 6. Bibliografia
(509).
QUINTA PARTE O DIREITO COMO FATO SOCIAL
(Sociologia do Direito)
20 CONCEITO DE SOCIOLOGIA DO DIREITO
1. Precursores, fundadores e cultores da sociologia jurídica (513); 2. Distinção
entre filosofia do
direito, ciência do direito e sociologia do direito (518); 3. Os grandes
problemas da sociologia
jurídica (520); 4. Outras formulações (523); 5. Bibliografia (525).
21 MICROSSOCIOLOGIA JURÍDICA
1. Conceito de microssociologia. Espécies jurídicas fundamentais: relações
jurídicas e sedimentos
jurídicos (527); 2. As relações jurídicas fundamentais: direito social e direito
interindividual (530); 3.
Os sedimentos jurídicos de profundidade. Direito organizado e direito espontâneo
(535); 4. Outras
formulações (540); 5. Bibliografia (542).
22 SOCIOLOGIA JURÍDICA DIFERENCIAL OU TIPOLÓGICA..
1. Objeto da sociologia jurídica diferencial ou tipológica (544); 2.
Ordenamentos jurídicos dos
grupos particulares. Direito estatal e direito social. Direito social comum, do
trabalho, do esporte, da
igreja, internacional. Conclusões (545); 3. Sistemas jurídicos das sociedades
globais, Tipologia de
Max Weber e Gurvitch. Sistemas contemporâneos. O sistema jurídico brasileiro
(558); 4. Outras
formulações (576); 5. Bibliografia (579).
23 SOCIOLOGIA GENÉTICA DO DIREITO 580
1. Os temas da Sociologia Genética do Direito (580); 2. Influência da sociedade
sobre o direito
(581); 3. Influência do direito sobre a sociedade (592); 4. Outras formulações
(596); 5. Bibliografia
(600).
PREFÁCIO À 25.a EDIÇÃO
Em suas sucessivas edições, a presente Introdução à Ciência do Direito tem
recebido diferentes
prefácios. Eles vêm sendo mantidos por uma preocupação pedagógica: mostrar o
direito vivo.
Por isso, são indicados pontos atuais na evolução histórica do direito, como os
novos direitos do
meio ambiente, do consumidor, do desenvolvimento, da participação da sociedade
civil.
A esses direitos que vêm sendo consagrados é oportuno acrescentar um novo tipo
de direito que
se desenvolve paralelamente ao atual processo de integração de países em grandes
comunidades
regionais. Tratase do "direito comunitário", elaborado, notadamente, no
processo da União
Européia e na formação do Mercosul.
Esse direito comunitário, distinto do direito nacional e do direito
internacional clássico, é uma nova
realidade jurídica que vem se formando com normas próprias leis ou normas
comunitárias e até
tribunais específicos, com competência jurisdicional, como o Tribunal de
Luxemburgo na
Comunidade Européia.
Essa referência aos novos direitos mostra, em oposição às concepções estáticas e
ultraconservadoras, o sentido dinâmico e transformador do direito.
São Paulo, junho de 1998
ANDRÉ FRANCO MONTORO
PREFÁCIO À 23. EDIÇÃO NOVA VISÃO DO DESENVOLVIMENTO
"Mais grave do que o sofrimento dos famintos é a inconsciência dos fartos."
Depois de sucessivas assembléias mundiais dedicadas ao "desenvolvimento
econômico", a ONU,
por iniciativa do ExPresidente do Chile, Patricio Aylwin, tomou a decisão
histórica de convocar
uma reunião de Chefes de Estado e de Governo de todos os países do mundo para
debater os
problemas do atual modelo de desenvolvimento e abrir caminhos para um novo
"desenvolvimento
social".
A Conferência Cúpula Mundial pelo Desenvolvimento Social, Copenhague, 6 a
12.03.1995 teve
o sentido de grave advertência sobre os rumos do desenvolvimento econômico
mundial.
Mostrou a face injusta e insustentável do atual progresso e indicou novos
caminhos para um
desenvolvimento mais humano, que não pode se limitar aos aspectos econômicos e
financeiros. A
reunião de Copenhague abriu, em escala mundial, uma nova visão do
desenvolvimento.
Três questões fundamentais integraram a ordem do dia da Conferência:
1. a luta contra a pobreza;
2. o apoio à integração social dos grupos marginalizados; 3. a criação de
empregos e
oportunidades de trabalho.
O quadro da pobreza
A mundialização da economia e o progresso das tecnologias aumentam a cada dia a
interdependência entre as nações. Caminhamos para um mundo só. Chegouse a
admitir que essa
mundialização beneficiaria a todos. Mas a presente realidade mundial oferece
contrastes gritantes.
Ao lado das conquistas e avanços do desenvolvimento econômico, cresce e se
agrava
continuamente um quadro de miséria, desemprego, marginalização e desigualdades
inadmissíveis.
4 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Os dados são estarrecedores. Enquanto avança o progresso econômico e a riqueza
das nações:
mais de 1 bilhão de pessoas, isto é, uma quinta parte da população mundial,
passa fome e vive
em condições de extrema pobreza;
30% de toda população em idade economicamente ativa está desempregada;
em países altamente industrializados, e não apenas nos demais, o desemprego e
a exclusão
social tornaramse endêmicos. "Tanto nos Estados Unidos como na Comunidade
Européia cerca
de 15% da população vive abaixo do limiar da pobreza", diz textualmente o
Documento de
Antecedentes da Reunião de Copenhague.
Pobres, desempregados, semteto, trabalhadores migrantes, meninos de rua,
periferias das
grandes cidades, minorias marginalizadas, constituem em todo o mundo grupos
carentes, vítimas
de discriminações de toda ordem. Em lugar da igualdade desejada existe o
progressivo
agravamento das desigualdades. "Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres
cada vez mais
pobres", enfatizou o SecretárioGeral das Nações Unidas, Sr.
. A persistência e o
contínuo agravamento dessa realidade mostram que não se trata de uma situação
conjuntural,
mas de um quadro de pobreza estrutural grave e ameaçadora.
É urgente modificar esse quadro. Como disse o Presidente da França, Mitterrand,
"não podemos
deixar que o mundo se transforme num mercado global, sem outra lei que a do mais
forte.
Precisamos repensar esse mundo e introduzir o social entre os pontos maiores de
nossas
preocupações".
Integração dos marginalizados
Para enfrentar a situação de pobreza e dos grupos marginalizados, não bastam os
tradicionais
programas de socorro e assistência. Impõese o esforço pela adoção de uma nova
política de
integração social.
• preciso incluir os excluídos.
• desenvolvimento social, centrado na dignidade das pessoas humanas e no
reconhecimento da
cidadania, exige não apenas medidas emergenciais de alívio à pobreza, mas
políticas que elevem
os marginalizados à condição não de objeto, mas de agentes do seu próprio
desenvolvimento.
Essa integração dos excluídos e sua participação nos programas de
desenvolvimento só são
possíveis em nível local. Documentos preparatórios da Conferência indicaram a
necessidade de
"acolher
PREFÁCIO À 233 a EDIÇAO 5
formas descentralizadas de gestão da coisa pública" e de "políticas sociais
descentralizadas",
longe das custosas centralizações burocráticas
• mais perto das populações locais.
Os debates mostraram a importância e o sucesso de programas descentralizados e
iniciativas
locais, ao lado do fracasso de grandes programas centralizados, de custos
elevados, geradores de
corrupção
• ineficiência.
Exemplos dessa ineficiência encontramse em todas as partes do mundo. O
Relatório Nacional
Brasileiro, com base nos cálculos do Banco Mundial, reconheceu que "somente 10%
dos recursos
empregados em programas sociais atingem seu públicoalvo", isto é, 90% dos
recursos disponíveis
são absorvidos pela burocracia e por medidas
• contratos de seriedade discutível. Até mesmo na Dinamarca, uma gigantesca rede
de assistência
pública criou uma camada de parasitas sociais, para quem mais vale a pena viver
do seguro
desemprego concedido pelo Estado do que trabalhar. Cálculos do próprio Governo
indicam que
existem cerca de 200 mil assistidos no país.
Criação de empregos
O grande caminho para a integração dos marginalizados é a criação de novos
empregos. A maior
parte da população em estado de pobreza não possui emprego. Como escreveu
Ignácio Sachs, o
progresso dos dois primeiros objetivos da Conferência combate à miséria e
integração social
dependerá em grande parte dos resultados alcançados na criação de empregos, pois
"a integração
produtiva é a única forma de atacar as raízes da exclusão social". E, em
linguagem mais simples, o
Presidente do Chile, Eduardo Frei, e o PrimeiroMinistro Felipe Gonzalez, da
Espanha, disseram
com palavras semelhantes: "O melhor caminho para sair da pobreza é o trabalho".
Os Estados, os organismos internacionais e a sociedade civil dispõem de meios e
possibilidades
de executar uma ampla política de emprego, através de investimentos em infra
estrutura e projetos
geradores de emprego, ação descentralizada e participativa, incentivo as
economias locais. Lugar
destacado nesses programas deve ocupar o apoio às pequenas empresas e
cooperativas, que são
os principais geradores de trabalho e renda. No Brasil existem hoje cadastradas
mais de 4 milhões
de pequenas empresas. E as não cadastradas são em número bem maior, gerando
oportunidades
de trabalho para milhões de brasileiros.
Existem hoje, em todo o mundo, milhares de experiências, exemplos e
possibilidades de
multiplicação de pequenos empreen
8 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO
9
Ao lado dos técnicos da administração, da economia, da informática e das demais
especializações,
os homens do direito têm a missão específica de atuar no sentido de que o
desenvolvimento da
vida social se processe em termos de justiça, isto é, que se assegure a cada
homem e a todos os
homens o respeito que lhes é devido, a partir de sua dignidade fundamental de
pessoa.
A justiça é o valor que deve iluminar todo o campo do direito. Não se trata de
contrapor a realidade
a um modelo idealista e absoluto que "fica longe numa caverna platônica". É na
planície em que
vivemos, no processo históricosocial da luta entre liberdade e opressão,
minorias dominadoras e
maiorias sacrificadas, manifestações de violência ou movimentos de
solidariedade, que se há de
exercer, com espírito crítico e independente, a tarefa de construção dos homens
do direito.
Nessa luta pela vigência concreta e viva da justiça é que se realiza a razão de
ser do direito. Não
podemos limitar o estudo do direito ao conhecimento pretensamente "neutro",
"puro" e "objetivo" da
norma estabelecida, para sua "cega" aplicação.
A realidade social e a justiça, como valor fundamental, estão presentes em todos
os momentos da
vida do direito: na elaboração de normas, na sua interpretação e aplicação, nas
sentenças,
pareceres, petições e recursos. Aceitar as normas jurídicas estabelecidas como
inexorável
imposição dos detentores do poder e negar ao jurista outra tarefa que não seja a
de executor
mecânico das mesmas significa desnaturar o direito e, mais do que isso, traílo.
É certo que forças poderosas atuam continuamente, com habilidade e competência,
no sentido de
impor à sociedade normas que atendem a seus interesses e objetivos, muitas vezes
contrários ao
bem comum. É certo também que vivemos em uma sociedade marcada pela injustiça.
Mas essa
situação, em lugar de diminuir, só pode aumentar a importância e a
responsabilidade dos cultores
do direito. Ela nos obriga a rejeitar, com maior veemência, o papel que se
pretende impor ao
jurista: o de instrumento insensível destinado à defesa de um sistema de
interesses estabelecidos.
A certas concepções formalistas e normativistas, é preciso opor uma visão
humanista e
humanizadora do direito.
Formalismo jurídico ou humanisno jurídico? A resposta que decorre da própria
natureza do direito
e está contida em um dos mandamentos do advogado, redigidos por Eduardo Couture,
é clara e
imperativa: "Teu dever é lutar pelo direito, mas, no dia em que encontrares o
direito em conflito
com a justiça, luta pela justiça!" Como adverte Stammler: "Todo direito deve ser
uma tentativa de
um direito justo". A fonte das fontes do direito é a pessoa humana.
NOVOS DIREITOS
De uma forma geral, todo sistema jurídico moderno reconhece a pessoa humana como
valor
supremo do direito. Os Códigos e as Constituições definem, com a possível
precisão e crescente
abrangência, os direitos básicos da pessoa humana. E essa uma tendência
universal. Após longa
tradição de solenes documentos nacionais e internacionais, a partir da Magna
Carta (1.215),
passando pelo Bill of Rights inglês de 1699, a Declaração da Independência dos
Estados Unidos
(04.07.1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França,
26.08.1789), vigora
hoje, com a aprovação da AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 10.12.1948, a
Declaração
Universal dos Direitos Humanos, "como ideal comum a ser atingido por todos os
povos e todas as
Nações".
A Declaração Universal proclama, em seu primeiro "considerando', que o
"reconhecimento da
dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos
gerais e inalienáveis
constitui o fundamento da liberdade da justiça e da paz do mundo".
Todos reconhecem que não existe um número fechado desses direitos. A dinâmica da
vida
econômica e social e as transformações que se operam especialmente no campo de
novas
tecnologias fazem surgir novas realidades e situações que repercutem sobre as
pessoas e sua
relações. Essas situações geram novos problemas e a necessidade da formulação de
novos
direitos.
Entre os novos direitos da pessoa humana que passam a ser reconhecidos pelos
sistemas
jurídicos contemporâneos, podem ser destacados:
I. direito ao ambiente sadio; 2. direito ao trabalho; 3. direitos do consumidor;
4. direito de
participação;
5. direito ao desenvolvimento.
1. DIREITO AO AMBIENTE SADIO
A questão ecológica é um dos temas mais importantes de nosso século. O
desenvolvimento
científico e tecnológico deu aos homens enorme poder de destruição, que atinge a
qualidade de
vida de milhões de pessoas.
Como defesa da sociedade, diante dos males e ameaças provocados pelas diversas
modalidades
de poluição do ar, das águas, do solo, da flora e da fauna, estão sendo
elaboradas novas normas
em quase todos os campos do direito. Em seu conjunto, essas normas de direito
constitucional,
administrativo, penal, internacional, civil,
10 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
processual e outros constituem o que se poderia chamar o moderno direito
ecológico.
Entre essas normas, ocupam lugar destacado aquelas que definem o direito das
pessoas a um
ambiente sadio.
A nova Constituição do Brasil afirma expressamente esse direito nos termos
seguintes: "Todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à
sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendêlo e preserválo para as presentes e futuras gerações"
(art. 225).
Outras Constituições recentes, como as da Espanha e Portugal, contêm disposição
semelhante.'
Para a garantia desse direito, diversas normas estão sendo incorporadas à
legislação, como a
definição do "crime ecológico", imputável aos responsáveis pela poluição, ou a
exigência do estudo
do "impacto
ambiental" provocado por qualquer projeto de obra pública ou privada
capaz de alterar
o meio ambiente. Muitas legislações dispõem amplamente sobre o dever do Estado
no sentido de
proteger
Constituição da Espanha, de 1978: "Art. 45. 1. Todos têm direito a desfrutar de
um meio ambiente
adequado ao desenvolvimento da pessoa, assim como o dever de o conservar. Os
Poderes
Públicos velarão pela utilização racional de todos os recursos naturais, com o
fim de preservar e
melhorar a qualidade de vida e defender e restaurar e meio ambiente, apoiandose
na
indispensável solidariedade coletiva. Contra os que violarem o disposto no
número anterior nos
termos que a lei fixar serão estabelecidas sanções penais ou, se for caso,
sanções administrativas,
bem como a obrigação de reparar o dano causado".
Constituição de Portugal de 1982: "Art. 66 (Ambiente e qualidade de vida). Todos
têm direito a um
ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o
defender. Incumbe
ao Estado por meio de organismos próprios e por apelo e apoio a iniciativas
populações: a)
prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de
erosão; b) ordenar o
espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas;
c) criar e desenvolver
reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger
paisagens e sítios de
modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais
de interesse
histórico ou artístico; d) promover o aproveitamento nacional dos recursos
naturais,
salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica.
E conferido a todos o direito de promover, nos termos da lei, a prevenção ou a
cessação dos
fatores de degradação do ambiente, bem como, em caso de lesão direta, o direito
à
correspondente indenização. O Estado deve promover a melhoria progressiva e
acelerada da
qualidade de vida de todos os portugueses".
Por sua originalidade, é interessante reproduzir o texto adotado pela
Constituição das Filipinas de
1986. Art. II, Seção 16: "O Estado protegerá e promoverá o direito do povo a uma
ecologia
equilibrada e saudável de acordo com o ritmo e a harmonia da natureza".
PREFÁCIO À 211 a EDIÇÃO 11 o meio ambiente, criam organismos administrativos
destinados a
essa proteção ou instituem processos de "consulta obrigatória" à população
interessada.
Dentro dessa linha e para assegurar a efetividade desse direito
das pessoas a Conciliação Brasileira impõe ao Poder Público, entre outras, as
seguintes
obrigações:
preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das
espécies e ecossistemas; preservar a diversidade e a integridade do patrimônio
genético do País e
fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
definir, em todas
as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente
protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei,
vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção.
4. exigir, na forma de lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade;
5. controlar a produção, a comercialização e o emprego de
técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
6. promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino
e a conscientização pública para a preservação do meio
ambiente;
7. proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em riscos sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade (art. 225).
E um amplo conjunto de leis, decretos, portarias, resoluções, sentenças
judiciais e decisões
administrativas dispõem sobre diferentes aspectos da proteção ambiental."'
1. 2.
3.
Código de Águas (Dec. 24.643, de 10.07.1934), Convenção para proteção da flora,
fauna e
belezas naturais dos países da América (Dec. Legislativo 3, de 13.02.1948),
Código Nacional de
Saúde (Lei 2.312, de 03.09.1954, e Dec. 49.974A, de 21.01.1961), normas sobre o
lançamento de
resíduos tóxicos ou oleosos nas águas interiores ou litorâneas (Dec. 50.877, de
29.06.1961, e Lei
5.357, de 17.11.1967), normas determinando a arborização das margens das
rodovias do Nordeste
e a construção de aterros e barragens para represamento de águas (Dec. 4.466, de
12.11.1964),
Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30.11.1964), novo Código Florestal (Lei 4.775,
de 15.09.1965),
promulgação do tratado de proscrição de experiências com armas nucleares na
atmosfera, no
espaço cósmico e sob a água (Dec. 58.380 de 26.04.1966), Lei de proteção
12 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
2. DIREITO AO TRABALHO
O desemprego e o subemprego de milhões de trabalhadores, em todo o mundo,
constituem hoje
uma das maiores ameaças ao desenvolvimento das nações e à sua convivência no
plano
internacional Razões de ordem tecnológica, como a automação e práticas
comerciais, financeiras e
monetárias, na economia mundial e nacional, vêm contribuindo para o agravamento
do problema,
considerado um dos mais dramáticos de nossa época.
Diante da gravidade da situação, a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
decidiu, em 1984,
convidar os representantes dos governos, dos trabalhadores e dos empregadores e
os demais
órgãos ou autoridades responsáveis pelo planejamento para examinar as
repercussões das
práticas comerciais, financeiras e monetárias internacionais sobre o desemprego
e a pobreza.
Esse apelo foi reiterado na Conferência da OIT, em 1986. E finalmente, em
novembro de 1987, foi
realizada em Genebra a reunião extraordinária de alto nível destinada a debater
esse problema,
com a participação de representantes, no plano mundial, de empregados, de
empregadores,
governos e entidades internacionais como o Banco Mundial, Fundo Monetário
Internacional, FAO,
UNESCO, Organização Mundial de Saúde e outros.
No Documento de Base, preparado pela OIT, são lembradas as disposições da
Declaração de
Filadelfia, em que se afirma: "Todos os seres humanos, sem distinção de raça,
credo ou sexo, têm
o direit de promover seu bemestar material e seu desenvolvimento espiritual em
condições de
liberdade e dignidade, de segurança econômica e e igualdade de oportunidades".
à fauna (Lei 5.197, de 03.01.1967), Lei de proteção e estímulos à pesca (Dec.
lei 221, de
28.02.1967), criação do Instituto Brasileiro de Desenvolviment Florestal (Dec.
lei 289, de
28.02.1967), instituição da Política Nacional d Saneamento (Lei 5.318, de
26.09.1967), criação da
Secretaria Especial do Mei Ambiente SEMA (Dec. 73.030, de 30.10.1973), medidas
de prevenção
controle da poluição industrial (Dec.lei 1.413, de 14.08.1975 e Dec. 76.389 de
03.10.1975),
convenção relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (Dec.
Legislativo de
aprovação 74, de 30.06.1997), instituição d Sistema de Proteção ao Programa
Nuclear Brasileiro
SIPRON (Dec.lei 1.809, de 07.10.1980), política nacional do meio ambiente (Lei
6.938, de
31.08.1981, e Dec. 88.351, de 01.06.1983), normas sobre distribuição e
comercialização de
produtos agrotóxicos (Lei estadual de São Paulo 4.002, de 05.01.1984), ação
civil pública de
responsabilidade por danos causados ao meio ambiente (Lei 7.347, de 24.07.1985),
medidas para
proteção de florestas existentes nas nascentes dos rios (Lei 7.754, de
14.04.1989), normas sobre
criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental e sobre Política
Nacional do Meio
Ambiente (Dec. 99.274, de 06.06.1990, e Lei 7.804, de 18.07.1989), fixação de
padrões de
qualidade
do ar (Resolução CONAMA 3, de 28.06.1990).
PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 13
Estão aí as raízes de um novo direito da pessoa humana que começa a ser definido
nas
constituições, na legislação, em acordos coletivos e na vida do direito em todo
o mundo: o direito
ao trabalho.
Entre os direitos sociais, consagrados na Declaração Universal de 1948, está
afirmado
expressamente o direito ao emprego ou ao trabalho nos termos seguintes: "Toda
pessoa tem
direito ao trabalho, à livre escolha de seu emprego, a condições justas e
satisfatórias de trabalho e
à proteção contra o desemprego" (art. 23, n. 1).
A Constituição do Brasil, de 1988, afirma esse direito: "São direitos sociais a
educação, a saúde, o
trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e
à infância, a
assistência aos desamparados" (art. 6.°). E no artigo seguinte determina: "São
direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social: 1
relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa; II
segurodesemprego em caso de desemprego involuntário".
Na mesma linha, esse direito é assegurado em Constituições recentes. Assim
dispõe a
Constituição de Portugal: "Art. 51. Incumbe ao Estado através de planos de
política econômica e
social garantir o direito ao trabalho assegurado:
a) a execução de política de pleno emprego, e o direito à
assistência material dos que involuntariamente se encontrem
em situação de desemprego;
b) a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos
sem justa causa ou por motivos políticos".
Constituição do Uruguai: "Art. 53. O trabalho está sob a proteção especial da
lei".
Constituição da Venezuela: "Art. 84. A lei adotará medidas tendentes a garantir
a estabilidade no
trabalho, estabelecerá as prestações que recompensem à antigüidade do
trabalhador nos serviços
e o protejam quando este cessar".
Constituição da Itália: "Art. 4. A República reconhece a todos os cidadãos o
direito ao trabalho e
promove as condições que o tornam efetivo".
3. DIREITOS DO CONSUMIDOR
Os direitos do consumidor começam a ser assegurados no sistema jurídico de todas
as nações.
O consumo é uma parte essencial do diaadia do ser humano. 0 consumidor é o
sujeito em que se
encerra todo ciclo econômico. Daí a importância de se dar ao consumidor poderes
que o
capacitem para exercer com eficiência o papel de fiscal e agente regulador do
14 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
mercado. Essa atribuição é particularmente importante nos regimes democráticos.
Poucos atos de
governo podem caracterizar melhor a preocupação efetiva pelos direitos da pessoa
humana e pela
justiça social como a instituição de mecanismos de defesa da população
consumidora.
Dado o caráter universal da questão, a Organização das Nações Unidas (Resolução
ONU
39/248/85) recomenda aos governos "que devem estabelecer e manter uma infra
estrutura
adequada que permita formular, aplicar e vigiar o funcionamento das políticas de
proteção ao
consumidor".
E, entre os direitos que recomenda sejam assegurados ao consumidor, inscrevemse
os seguintes:
1. segurança física dos consumidores;
2. a proteção dos interesses econômicos dos consumidores; 3. acesso a
informações necessárias
aos consumidores para que
façam escolhas acertadas;
4. medidas que permitam aos consumidores obter ressarcimento; 5. a distribuição
de bens e
serviços essenciais para o consumidor; 6. produção satisfatória e padronização
de execução; 7.
práticas comerciais adequadas e informações precisas quanto
às mercadorias; e
8. propostas de cooperação internacional na área de proteção ao consumidor.
Como órgão consultivo da ONU, constituise a International Organization of
Consumers Unions
(IOCU), que congrega centenas de entidades de defesa do consumidor de diferentes
países. Essa
entidade assim definiu os "direitos fundamentais e universais do consumidor":
1. Direito à segurança. Garantia contra produtos ou serviços que
possam ser nocivos à vida ou à saúde.
2. Direito à escolha. Opção entre vários produtos e serviços com
qualidade satisfatória e preços competitivos.
3. Direito sobre a informação. Conhecimento dos dados indis
pensáveis sobre produtos ou serviços para uma decisão
consciente.
4. Direito a ser ouvido. Os interesses dos consumidores devem ser levados em
conta pelos
governos no planejamento e execução das políticas econômicas.
5. Direito à indenização. Reparação financeira por danos causados por produtos
ou serviços.
PREFÁCIO À 21. a EDIÇÃO 15
Direito à educação para o consumo. Meios para o cidadão exercitar
conscientemente sua função
no mercado.
Direito a um meio ambiente saudável. Defesa do equilíbrio ecológico para
melhorar a qualidade de
vida agora e preservála para o futuro.
A defesa dos direitos do consumidor está expressamente assegurada nas
Constituições modernas,
como as da Espanha, Portugal e outras.
A Constituição do Brasil de 1988 incluiu no Título II, entre os "Direitos e
garantias fundamentais", o
seguinte preceito: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor"
(art. 5.°). E, no
art. 78 das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou: "O Congresso
Nacional, dentro
de cento e vinte dias da promulgação, elaborará código de defesa do consumidor.
• Código de Defesa do Consumidor foi instituído pela Lei 8.078, de 11.09.1990,
que define como
consumidor "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como
destinatário final".
Basicamente, o Código estabelece como direitos do consumidor:
1. a proteção à vida, à saúde, à dignidade e à segurança contra
riscos decorrentes de produtos e serviços;
2. informação adequada e clara sobre produtos e serviços; 3. proteção contra
publicidade
enganosa e abusiva; 4. reparação de danos patrimoniais e morais; 5. acesso à
Justiça e garantia
da defesa desses direitos.
4. DIREITO DE PARTICIPAÇÃO
• despertar da sociedade civil e a participação ativa de todos os seus setores
no processo de
desenvolvimento da sociedade constitui um dos fenômenos marcantes da história
atual.
• a substituição dos antigos processos paternalistas e autoritários pela prática
de métodos
democráticos em que as pessoas passam a atuar, fiscalizar e tomar iniciativas
através de
comunidades, grupos de múltipla atuação e movimentos sociais.
Dentro dessa realidade e com base no texto da Declaração Universal de 1948,
podemos fixar as
linhas de um novo direito social em formação, representado pelo direito que tem
cada homem de
participar ativamente no processo de desenvolvimento de sua comunidade. Não se
trata apenas de
receber os benefícios do progresso, mas de "tomar parte" nas decisões e no
esforço para a sua
realização. Em lugar de ser tratado como "objeto" das atenções paternalistas dos
6. 7.
16 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
dententores do Poder, o homem passa a ser reconhecido como "sujeito" e "agente"
no processo do
desenvolvimento. Tratase de uma exigência decorrente da natureza inteligente e
responsável da
pessoa humana.
Esse ponto foi assim fixado por João XXIII, na famosa Encíclica Mater et
Magistra: "Quando as
estruturas e o funcionamento de um sistema comprometem a dignidade humana dos
que nele
trabalham, enfraquecem o sentido de sua responsabilidade ou impedem seu poder de
iniciativa,
esse sistema é injusto ainda mesmo que a produção atinja altos níveis
(desenvolvimento
econômico) e seja distribuída conforme as normas da justiça e da eqüidade
(desenvolvimento
social)". Daí a necessidade de "dar às instituições sociais a forma e a natureza
de autênticas
comunidades (...), o que só acontecerá se os seus membros forem sempre
considerados como
pessoas e chamados a participar da vida
e das atividades sociais". E, entre
outras aplicações,
lembra que na vida econômica os empregados "não podem ser tratados como simples
executores
silenciosos, completamente passivos, sem possibilidade de dar sua opinião e
sugestões e de influir
nas decisões que dizem respeito a seu trabalho". "Quanto à nação, muito importa
que os cidadãos,
em todos os setores, se sintam cada vez mais responsáveis pelo bem comum."
A substituição do "paternalismo" pela "participação" é um imperativo da moderna
política social. Na
medida em que se queira respeitar a dignidade da pessoa humana, é preciso
assegurarlhe o
direito de participar ativamente na solução dos problemas que lhe dizem
respeito.
Como primeiras manifestações desse reconhecimento, já econtramos na Declaração
Universal dos
Direitos do Homem (1948) a formulação específica de alguns direitos.
Assim, o art. 21 afirma: "Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de
seu país,
diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. A vontade
do povo será a
base da autoridade do governo". Na mesma linha, no campo do trabalho, estabelece
o art. 23:
"Todo homem tem direito de organizar sindicatos e neles ingressar para proteção
de seus
interesses". E o art. 27 dispõe que: "Todo homem tem direito de participar da
vida cultural da
comunidade".
Mas outras modalidades de participação vêm sendo praticadas e reconhecidas, como
a dos
moradores, dos jovens, dos consumidores, dos defensores do meio ambiente etc.
A importância desse comportamento social, humano e democrático de participação
dos membros
da comunidade foi destacada em documento oficial da ONU: "A necessidade de os
membros de
um grupo, classe ou organização participarem no planejamento dos seus
PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 17
próprios programas é básica em qualquer tipo de projeto e confundese com a
própria maneira
democrática de viver".
Com esse fundamento, as legislações começam a definir e assegurar o novo direito
das pessoas à
participação ativa no processo de desenvolvimento da respectiva comunidade.
O regime representativo tradicional reduz a participação do cidadão à
formalidade do voto. Mas as
novas condições de vida coletiva exigem novas soluções. Camadas cada vez mais
amplas da
população tomam consciência do caráter meramente formal e aparente de antigas
fórmulas
democráticas, em que a participação do povo é mais simbólica do que real.
O homem contemporâneo começa a tomar consciência de que não é apenas um
"espectador" da
história, mas seu "agente". O homem já não se contenta em suportar passivamente
os
acontecimentos. Já não acredita na fatalidade, mas toma em suas mãos a própria
história,
procurando fazêla e dominála. É nisso, sobretudo, que a história se tomou
consciente. Essa
consciência não se limita a algumas elites, mas se amplia progressivamente a
todos os setores da
vida social. O sentimento de participação é um dos mais poderosos elementos
propulsores da
atividade humana. É ele que entusiasma e anima a ação dos construtores de uma
obra coletiva,
seja uma casa, uma represa, uma catedral, um bairro ou uma cidade.
Dentro desse quadro, a nova Constituição do Brasil abriu novos caminhos à
participação das
pessoas ao declarar, em seu art. 1.°, que o poder será exercido pelo povo, "por
meio de
representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição". E
estabelece em seu
contexto diferentes modalidades de participação dos cidadãos, como a iniciativa
de projetos de lei,
o referendo, o plebiscito e instituições semelhantes. Consagrou, assim, o
princípio de que o regime
político brasileiro é não apenas representativo, mas também participativo.
Além do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular de projetos de lei
(art. 14), a Constituição
consagrou outras formas de participação, especialmente relacionadas com os
empregados e
trabalhadores, que constituem a parcela mais ampla da população.
Assim, assegura "plena liberdade de associação para fins lícitos" (art. 5.°,
XVII) e, em relação aos
sindicatos e associações de trabalhadores, estabelece: "É livre a associação
profissional ou
sindical. A lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de
Sindicato, ressalvado o
registro do órgão competente vedadas ao Poder Público a interferência e a
intervenção na
organização sindical" (art. 8.°, 1 e III).
0 direito de sindicalização foi estendido aos funcionários públicos: "E
garantido ao servidor público
civil o direito à livre associação sindical" (art. 37, VI).
18 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Foi concedida aos sindicatos e aos partidos políticos a prerrogativa de impetrar
mandado de
segurança "coletivo" (art. 5.°, LXX).
A participação através da negociação coletiva é assegurada aos trabalhadores
pelo
"reconhecimento das convenções e acordos coletivos do trabalho" (art. 7.°,
XXVI).
A _ Constituição define como direito dos trabalhadores "a participação nos
lucros, ou resultados,
desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da
empresa, conforme
definido em lei" (art. 7.°, XI).
Estabeleceu, também, o princípio da participação de trabalhadores
• empregadores nos conselhos dos órgãos públicos, nos termos seguintes: "É
assegurada a
participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos
em que seus
interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e
deliberação" (art. 10).
Na mesma linha, a Constituição estabeleceu a, figura do representante dos
empregados nas
empresas, dentro da seguinte norma: "Nas empresas de mais de duzentos empregados
é
assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de
promoverlhes
• entendimento direto com os empregadores" (art. 11).
Foi mantida a representação paritária de trabalhadores e empregadores na
composição dos
órgãos da justiça do trabalho (art. 111, § 1.°, art. 115, parágrafo único, e
art. 116, parágrafo único).
Em relação às ações governamentais na área da assistência social, a Constituição
determina: "A
participação da população, por meio de organizações representativas, na
formulação das políticas
e no controle das ações em todos os níveis" (art. 204, II).
O direito à informação participação na informação foi estabelecido na forma
seguinte: "Todos
têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob a pena de
responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e
do Estado" (art.
5.°, XXXIII).
A ação popular foi também assegurada: "Qualquer cidadão é parte legítima para
propor ação
popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que
o Estado
participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico
• cultural, ficando o autor, salvo comprovada máfé, isento de custas
judiciais e do ônus da
sucumbência" (art. 5.°, LXXIII).
A Constituição abriu, assim, instrumentos institucionais que permitem a
participação cada vez mais
ampla da população no conhecimento, fiscalização e controle dos negócios
públicos. Assegurou,
ainda, aos diversos setores da sociedade o direito de atuar na defesa e promoção
dos interesses
coletivos.
PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 19
5. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
"Desenvolvimento é o novo nome da paz." (Paulo VI, Encíclica Populorum
Progressio)
Entre os novos direitos que começam a ser reconhecidos universalmente destacase
o "direito ao
desenvolvimento".
A AssembléiaGeral das Nações Unidas (ONU), reunida em 04.12.1986, decidiu
aprovar a
Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, que pode ser assim sintetizada:
"A AssembléiaGeral das
Nações Unidas,
Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e
político
abrangente, que visa o constante incremento do bemestar de toda a população e
de todos os
indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no
desenvolvimento e na
distribuição justa dos benefícios daí resultantes;
Considerando que a eliminação das violações maciças e flagrantes dos direitos
humanos dos
povos e indivíduos afetados por situações tais como as resultantes do
colonialismo,
neocolonialismo, apartheid, racismo e discriminação racial, dominação
estrangeira, ocupação,
agressão e ameaças contra a soberania nacional,
• ameaças de guerra contribuiria para o estabelecimento de condições
propícias para o
desenvolvimento de grande parte da humanidade;
Reafirmando que existe uma relação íntima entre desarmamento e desenvolvimento e
que o
progresso no campo do desarmamento promoveria consideravelmente
• progresso no campo de desenvolvimento, e que os recursos liberados pelas
medidas de
desarmamento deveriam dedicarse ao desenvolvimento econômico e social e ao bem
estar de
todos os povos e, em particular, daqueles dos países em desenvolvimento;
Reconhecendo que a pessoa humana é o sujeito central do processo de
desenvolvimento e que a
política de desenvolvimento deveria fazer do ser humano
• principal participante e beneficiário do desenvolvimento;
Confirmando que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e
que a igualdade
de oportunidades para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações
quanto dos
indivíduos que as compõem;
Proclama a seguinte Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento:
Artigo 1.°
1. O direito ao desenvolvimento é um inalienável direito humano, em virtude do
qual toda pessoa
humana e todos os povos têm reconhecido seu direito de participar do
desenvolvimento
econômico, social, cultural e político, a ele contribuir
• dele desfrutar; e no qual todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais possam ser
plenamente realizados.
2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do
direito dos povos à
autodeterminação, que inclui o exercício de seu direito inalienável de soberania
plena sobre todas
as suas riquezas e recursos naturais.
20 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Artigo 2.°
1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser
participante ativo e
beneficiário do direito ao desenvolvimento.
2. Todos os seres humanos têm responsabilidades pelo desenvolvimento, individual
e
coletivamente.
3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas
para o
desenvolvimento que visem o constante aprimoramento do bemestar de toda a
população e de
todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa
no desenvolvimento e
na distribuição eqüitativa dos benefícios resultantes.
Seguemse outras considerações e definições destinadas a precisar e apoiar a
realização desse
direito.
Em janeiro de 1990, como novo passo no processo histórico do reconhecimento e
implantação
desse direito, a ONU realizou em Genebra uma reunião com a participação de 150
representantes
de todo o mundo, denominada `Consultas Mundiais sobre a Realização do Direito ao
Desenvolvimento como um Direito Humano'.
Os trabalhos da reunião focalizaram três pontos centrais: 1. problemas; 2.
critérios; e 3.
mecanismos de implementação e cumprimento do direito ao desenvolvimento, como um
direito
humano.
Como se vê, tratase de um processo em marcha para a afirmação de um novo
direito. Para
identificar o caráter de luta desse processo é oportuno lembrar que a Declaração
sobre o Direito ao
Desenvolvimento foi aprovada pela AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 1968,
pelo voto de
160 países, com a abstenção da Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Israel, Japão e
Inglaterra, a
ausência da Albânia, S. Domingos e Vanatu, e o único voto contrário dos Estados
Unidos.
A evolução dos trabalhos da ONU mostra um avanço: nos anos 60 e 70 discutiase o
direito à
autodeterminação dos povos, que passaram a se constituir em Estados
independentes. Hoje o
debate avançou para o problema dos direitos da pessoa e das coletividades
humanas no âmbito
de estruturas globais de dominação, exploração ou indiferença e se afirma,
implícita ou
explicitamente, o dever de solidariedade.
Como observou o representante do Brasil na reunião de Genebra, Professor Cançado
Trindade,
Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores: "A consagração do
direito ao
desenvolvimento como um direito humano introduz um forte componente ético na
avaliação e
condução das relações internacionais contemporâneas".
"Não se pode falar de uma Agenda para a paz, sem se falar de uma Agenda para o
desenvolvimento", afirmou, na mesma linha, o SecretárioGeral das Nações Unidas,
Perez de
Cuellar.
E, assim, através da história, enfrentando injustiças, opressões e violências, o
direito vai abrindo
caminhos para que o desenvolvimento da sociedade se realize dentro do respeito à
igual dignidade
de todos os homens. Como lembra LevyUllmann, "a idéia de justiça se encontra em
todas as leis,
mas não se esgota em nenhuma; é ela, entretanto, que dá sentido e significação a
todo o direito
positivo".
São Paulo, março de 1993.
PREFÁCIOS ANTERIORES
PREFÁCIO À 9.a EDIÇÃO
Desde 1972, quando foi publicada a 3.' edição deste livro, várias edições se
sucederam
rapidamente, sem que tivéssemos a oportunidade de fazer a atualização e as
revisões que nos
parecem convenientes.
A premência de novas tiragens cinco edições em pouco mais de seis anos e a
intensidade da
vida parlamentar não nos permitiram realizar, de uma só vez, a revisão do texto
integral, como
havíamos planejado. Decidimos, por isso, fazer esse trabalho por partes, a
partir de agora. Nesta
9.' edição, começamos por rever o Capítulo I da Primeira Parte e introduzir
pequenas alterações ou
correções no restante da obra.
É nossa intenção proceder da mesma forma nas próximas edições, até que tenhamos
a obra
inteiramente revista.
Ao agradecer a crescente acolhida que professores e alunos têm dispensado a este
livro, de clara
orientação humanista, é oportuno lembrar o papel histórico que, no processo de
desenvolvimento
nacional, cabe à luta pelo direito.
Talvez em nenhuma época, como hoje, o estudo e a prática do direito tenham se
identificado tanto
com a própria defesa da civilização e do humano. Em qualquer das modalidades de
sua atuação,
como juiz, promotor, consultor, advogado, administrador ou legislador, cabe ao
jurista trabalhar
permanentemente para assegurar a cada homem o respeito que lhe é devido: suum
cuique
tribuere. E defender, assim, aquela realidade fundamental que é a fonte das
fontes do direito: a
pessoa humana.
Ao lado dos técnicos da administração, da economia ou da cibernética, os homens
do direito têm a
missão insubstituível de fazer com que o desenvolvimento da sociedade se
processe em termos de
justiça, isto é, que se assegure a cada homem e a todos os homens o respeito aos
direitos que lhe
são devidos.
Por isso, a Nação entrega às Faculdades de Direito a tarefa humanizadora,
essencial ao
desenvolvimento, de formar cidadãos que serão, na vida nacional, os lutadores
permanentes da
justiça e da liberdade.
São Paulo, janeiro de 1980
ANDRÉ FRANCO MONTORO
A disciplina tradicionalmente denominada Introdução à Ciência do Direito recebe
hoje nova
designação oficial: Introdução ao Estudo do Direito, por iniciativa do Conselho
Federal de
Educação, que, em 28.01.1972, aprovou o currículo mínimo para os cursos de
Direito.
O conteúdo da presente obra corresponde, com exatidão, à nova denominação
oficial. Como se
verifica pelo Plano de Trabalho (p. 25), este livro não se limita ao estudo de
direito como ciência.
Seu conteúdo é, na realidade, uma introdução ao estudo do direito em suas
diversas perspectivas
fundamentais, como ciência, justiça, norma, direito subjetivo e fato social.
Além dos naturais acréscimos, atualizações e melhor esclarecimento de alguns
textos, sai a
presente edição com duas modificações mais importantes:
A primeira decorrente de solicitação generalizada dos alunos é a tradução
dos textos de autores
estrangeiros citados no parágrafo dedicado a Outras Formulações, que se encontra
no fim de cada
capítulo.
A segunda que atende também a sugestões de alunos e professores consiste na
inclusão, no
fim de cada volume, de um índice alfabético de assuntos tratados e o outro de
autores citados.
Com essa providência, temos em vista facilitar o trabalho de pesquisa e consulta
dos que se
utilizarem desta obra.
Agradecemos, mais uma vez, a acolhida que tem recebido o presente trabalho e as
sugestões e
críticas, que muito têm contribuído para seu aperfeiçoamento.
São Paulo, janeiro de 1972
PREFÁCIO À 2." EDIÇÃO
Publicado o 1.° volume da presente obra (1968), a edição esgotouse antes de ser
feita a
publicação do 2.° volume. Essa circunstância permitiunos realizar um
remanejamento da matéria e
acrescentar alguns elementos, que contribuirão para melhor distribuição e
aperfeiçoamento do
texto.
Essas modificações, aconselhadas pela experiência e estimuladas pela
contribuição de
professores, alunos e críticos especializados, acentuam o caráter experimental e
dinâmico que
pretendemos dar a esta Introdução à Ciência do Direito.
Quais os objetivos de um curso de Introdução ao Direito?
Essa pergunta é fundamental, se quisermos examinar criticamente os atuais cursos
e introduzir
nos mesmo modificações que correspondam às expectativas e necessidades de um
estudante que
inicia o estudo do Direito. Sem a fixação dos objetivos, é impossível avaliar a
eficiência de qualquer
curso.
No caso do curso de Introdução à Ciência do Direito, pensamos que os principais
objetivos podem
ser assim indicados:
1. Proporcionar aos alunos uma visão geral do campo do direito, o que se
desdobra naturalmente
no conhecimento:
da posição do direito no conjunto dos conhecimentos humanos;
dos ramos do direito público e privado;
das disciplinas jurídicas fundamentais.
2. Introduzir os estudantes no conhecimento da terminologia jurídica e das
categorias
fundamentais do direito, tais como a norma jurídica, suas espécies e
interpretação, o direito
subjetivo e o dever jurídico, a relação jurídica, o sujeito ativo e passivo e o
objeto do direito, a
prestação jurídica, a pessoa física e a jurídica, a sanção e a ação judicial, a
estrutura e os poderes
do Estado etc.
3. Conduzir a uma tomada de consciência sobre a importância e o significado do
direito na
promoção do desenvolvimento nacional, em termos de justiça, isto é, com o
respeito à dignidade
pessoal de todos os homens.
A esse tríplice objetivo procura atender o presente estudo, como se pode
verificar pela distribuição
de suas partes e especialmente pela leitura dos n. 1, 2, 63 e 69.
24 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
É oportuna uma palavra sobre os métodos no ensino do Direito.
A reforma universitária, que se processa no país, tem uma de suas justificativas
na necessidade de
ser assegurada ao estudante uma participação ativa no desenvolvimento dos
cursos.
O aluno não pode continuar a ser simples ouvinte de preleções dos professores.
Sua participação
deve ser promovida pelo exame e discussão de textos, casos de jurisprudência e
questões de
interesse real.
A divisão da turma em grupos, para a pesquisa e debate de tais problemas, com a
apresentação
dos resultados perante a classe, tem sido adotada com sucesso e servido de base
para exposição
posterior e explicações do professor.
A realização de trabalho pessoal e escrito pelos alunos sobre temas relativos ao
programa é outra
forma de participação ativa do estudante.
Com o propósito de facilitar essas e outras modalidades de participação e
trabalho dos alunos no
desenvolvimento do curso, incluímos no fim de cada capítulo um parágrafo
dedicado a Outras
Formulações, onde são transcritos textos divergentes de diversos autores, casos
julgados pelos
tribunais ou documentos semelhantes, e outro dedicado à Bibliografia
especializada. Como o
mesmo objetivo, incluímos, no fim do volume, um índice geral das matérias
tratadas e outro índice
de autores.
Agradecemos, antecipadamente, as sugestões e críticas que possam contribuir para
que este livro
seja um instrumento cada vez mais útil aos que devem auxiliar as novas gerações
na Introdução à
Ciência do Direito.
São Paulo, fevereiro de 1970
PLANO DE TRABALHO
1. O direito pode ser encarado sob duas perspectivas diferentes: como elemento
de conservação
das estruturas sociais, ou como instrumento de promoção das transformações da
sociedade.
Para os que defendem a função conservadora do direito, a concepção mais adequada
a essa
missão é a identificação do direito com a lei, e, por extensão, ao contrato,
como lei entre as partes.
Nesse sentido, é significativa a advertência com que famoso professor de Paris
iniciativa seu
curso: "Não vim ensinar o direito, vim expor o Código Civil".
Mas, principalmente nos países em desenvolvimento, o erro dessa posição é
patente. Fazer do
direito uma força conservadora é perpetuar
• subdesenvolvimento e o atraso. Identificar o direito com a lei é errar
duplamente, porque
significa desconhecer seu verdadeiro fundamento
• condenálo à estagnação.
Para fundamentar a missão renovadora e dinâmica do direito é preciso rever
certos conceitos de
base e afirmar, na sua plenitude, o valor fundamental, que dá ao direito seu
sentido e dignidade: a
justiça.
Não se trata de um conceito novo, mas permanente, que deve ser afirmado,
estudado e
efetivamente aplicado, se quisermos dar ao direito sua destinação verdadeira,
que é a de ordenar
a convivência
• o desenvolvimento dos povos.
Nos textos clássicos de Aristóteles, Ulpiano, Cícero, S. Tomás
• outros, encontramos formulada a doutrina básica da justiça, mas adaptada a uma
realidade
profundamente diferente da atual. Encontramse aí as sementes para a elaboração
ulterior de um
pensamento jurídicofilosófico, que precisa ser desenvolvido e aplicado às novas
condições da
sociedade e ao direito moderno.
A esse respeito, dois erros, a nosso ver, precisam ser evitados. Primeiro, a
simples repetição
daquele pensamento, como se o mundo não houvesse mudado. Segundo, a rejeição
pura e
simples dessa doutrina, como se a mudança das condições sociais destruísse as
exigências
fundamentais do respeito à pessoa humana.
26 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
2. Que é direito?
Na linguagem comum e na linguagem científica, o vocábulo direito é empregado com
significações
diferentes. Ele tem sentido nitidamente diverso nas seguintes expressões:
1. o direito brasileiro proíbe o duelo;
2. o Estado tem direito de cobrar impostos; 3. o salário é direito do
trabalhador; 4. o direito é um
setor da realidade social;
5. o estudo do direito requer métodos próprios.
Cada uma dessas frases emprega uma das significações fundamentais do direito. Na
primeira,
direito significa a lei ou norma jurídica (direitonorma). Na segunda, direito
tem o sentido de
faculdade ou poder de agir (direitofaculdade ou direitopoder). Na terceira,
indica o que é devido
por justiça (direitojusto). Na quarta, o direito é considerado como fenômeno
social (direitofato
social). Na última, ele é referido como disciplina científica (direitociência).
São cinco realidades distintas. E, se quisermos saber
o que é o direito,
precisamos estudar o
conteúdo essencial de cada uma dessas significações.
Esse é o plano do presente trabalho. Consta ele de cinco partes:
1.8 parte O direito como ciência (Epistemologia Jurídica); 2.' parte O
direito como justo
(Axiologia Jurídica);
3.' parte O direito como norma (Teoria da norma jurídica); 4.' parte O
direito como faculdade
(Teoria dos direitos sub
jetivos);
5.' parte 0 direito como fato social (Sociologia do Direito).
Primeira Parte
O DIREITO COMO CIÊNCIA (Epistemologia Jurídica)
1
O CONCEITO DE DIREITO
SUMÁRIO: 1. Origens do vocábulo: 1.1 Problemas de epistemologia jurídica; 1.2
Definição nominal
e real; 1.3 Origem dos vocábulos "direito" e "jurídico" 2. Pluralidade de
significações do direito
Cinco realidades fundamentais: 2.1 Direitonorma: 2.1.1 Direito positivo e
Direito natural; 2.1.2
Direito estatal e nãoestatal; 2.2 Direitofaculdade; 2.3 Direito justo; 2.4
Direitociência; 2.5 Direito
fato social; 2.6 Outras acepções 3. Direitoconceito análogo: 3.1 Conclusões;
3.2 Analogia: 3.2.1
Analogia intrínseca 'ou de proporção; 3.2.2 Analogia extrínseca ou de relação;
3.2.3 Analogia
metafórica 4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações
do direito: 4.1
Analogia de relação: 4.1.1 Analogia entre as significações fundamentais do
direito. Primado da Lei
ou da Justiça? Formalismo jurídico e humanismo jurídico; 4.1.2 Outra analogia:
Direito positivo e
Direito natural; 4.2 Analogia intrínseca: Direito estatal e Direito nãoestatal
5. Outras formulações:
5.1 "Conceito de direito", João Mendes; 5.2 "Uma concepção sociológica do
direito", LévyBruhl;
5.3 "Justo, conteúdo essencial da norma jurídica", F. Geny; 5.4 "O Direito e o
materialismo histórico
e dialético", K. Marx; 5.5 "Concepção quântica do direito", Goffredo Telles
Júnior 6. Bibliografia.
1. Origens do vocábulo
1.1 Problemas de epistemologia jurídica
Ao estudar o direito como ciência, devemos naturalmente examinar sua definição,
assim como o
lugar que ele ocupa no conjunto
das ciências e a natureza de seu objeto. Tais problemas pertencem ao campo da
Epistemologia
Jurídica.
Epistemologia, do grego epistême (ciência) e logos (estudo), significa
etimologicamente "teoria da
ciência". Nesse sentido, podemos
30 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
dizer, com Machado Neto, que "tratar da ciência do direito, ainda que para o
mister elementar de
definilo, é fazer Epistemologia".'
Há, entretanto, na linguagem filosófica, certa imprecisão e diversidade de
conceitos sobre a exata
significação do vocábulo. Assim, Lalande define Epistemologia como "o estudo
crítico dos
princípios, das hipóteses e dos resultados de cada ciência" (Vocabulaire
technique et critique de la
Philosophie, verbete "epistemologie"). E, em nota, esclarece que a palavra
inglesa epistemulogy é
freqüentemente empregada para designar toda a "teoria do conhecimento" ou
"gnosiologia". Da
mesma forma, os italianos, em geral, não costumam distinguir epistemologia e
teoria do
conhecimento. De qualquer forma, os problemas citados: definição de direito, sua
posição no
quadro das ciências, a natureza de seu objeto constituem inquestionavelmente
temas de
Epistemologia do Direito.
1.2 Definição nominal e real
Conceituar o direito é definilo. E há duas espécies de definição: a) nominal,
que consiste em dizer
o que uma palavra ou nome significa; b) real, que consiste em dizer o que uma
coisa ou realidade
é. Em obediência à recomendação da lógica, é o que vamos fazer
em relação ao direito. Estudaremos, primeiramente, a significação da
palavra. Examinaremos, em seguida, a realidade ou realidades que
constituem o direito.
O estudo das palavras e da linguagem em geral é da maior importância. Quando um
vocábulo é
empregado durante várias gerações para designar uma realidade, ele se apresenta
cheio de
conteúdo e significação. O nome é a experiência acumulada e constitui, de certa
forma, o limiar da
ciência.'
1.3 Origem dos vocábulos "direito" e "jurídico"
Que significa a palavra "direito"? Qual a sua origem?
Nas línguas modernas encontramos dois Direito conjuntos de termos
utilizados para exprimir a
idéia de direito.
Um primeiro conjunto ligase ao vocábulo "direito", que encontra similar em
todas as línguas
neolatinas e, de forma geral, nas línguas ocidentais modernas: Droit (francês);
Diritto (italiano);
Derecho (espanhol); Recht (alemão); Right (inglês); Dreptu (romeno).
~" A. L. Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo,
Saraiva, 1969, p. 7.
2' É hoje geralmente reconhecido que a linguagem é elemento fundamental no
estudo de ciências
humanas, como o direito e a filosofia. V. "Filosofia da linguagem" e a "Doutrina
de linguagem
jurídica", no item 4.2.4, Capítulo 9 do presente volume.
CONCEITO DE DIREITO 31
Essas palavras têm sua origem num vocábulo do baixo latim: directum ou rectum,
que significa
"direito" ou "reto". Rectum ou directum é o que é conforme "Directum" a uma
régua.
Mas, ao lado desse, existe outro conjunto de palavras que, nas línguas modernas,
ligase à noção
de direito. Esse conjunto é representado pelos vocábulos: "jurídico",
"jurisconsulto", "judicial",
"judiciário', "jurisprudência" etc., que encontram, também, similar em quase
todas as línguas
modernas.
Qual a origem desses vocábulos?
É visível que a etimologia dessas palavras encontrase no termo latino jus
Guris), que sig "Jus"
nifica "direito".
Mas, se remontarmos um pouco além e formos investigar a significação originária
do vocábulo jus,
encontraremos, pelo menos, duas origens diferentes indicadas pelos filósofos.
Alguns pretendem que jus se tenha constituído no idioma latino, como derivado de
jussum,
particípio passado do verbo jubere, que significa mandar, ordenar.
"Jussum"
E apontam, nesse sentido, certas fórmulas
que eram usadas nas Assembléias Curiais em Roma, nas quais os cidadãos, depois
de discutirem
as leis, decidiam sobre a sua promulgação. A fórmula usada, então, para
encerramento da
discussão, era a seguinte: jubeate quirites (mandai cidadãos); ou então,
adsentite jubere quirites
(concordai em mandar, cidadãos).
Outros preferem ver no vocábulo jus uma derivação de justum, isto é, aquilo que
é justo ou
conforme à justiça. "Jus dictum est quia est justum", diz Isidoro de "Justum"
Sevilha (Etymol., cap.
3):
Como confirmação dessas hipóteses são indicadas vocábulos de uma tradição ainda
mais antiga.
Assim, ligado à noção de jussum (mandado), indicam alguns autores, como radical
remoto de jus,
o vocábulo sânscrito yú, que significa vínculo de onde derivam palavras como:
jugo, jungido,
cônjuge (cumyú, vínculo comum).
Os que pretendem ver, no vocábulo jus, uma derivação da idéia de justiça ou de
santidade
(justum), encontram, por sua vez, como raiz remota, o vocábulo do idioma védico
yós, que significa
bom, santo, divino, de onde parece terem sido originadas as expressões Zeus
(Deus ou o pai dos
deuses, no grego) e Jovis (Júpiter, no latim).
"Yú"
"Yós"
32 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE DIREITO 33
Assim, para citar alguns autores que mais diretamente estudaram
• problema, podemos mencionar, entre os defensores da primeira hipótese,
Ihering, que afirma:
"Jus significa `vínculo', da raiz sânscrita Yú (ligar), de onde derivam: jugo,
jungir e outras inúmeras
palavras".3 No mesmo sentido é a opinião de Pott, Meringer e outros.'
Mas, de outro lado, ilustres autores, como Schrader, Mommsen
• Breal,5 adotam a tese de que a palavra jus ligase ao que é justo, santo,
puro. Para Mommsen,
jus aproximase de jurare. E Breal, no estudo sobre a "Origem das palavras que
designam o direito
e a lei no latim", afirma que o vocábulo jus
encontrase ligado às palavras jaus
ou jous, nos povos
da Itália, Pérsia e índia, e exprimiria uma idéia correspondente às noções mais
elevadas que possa
conceber o espírito do homem. O pensamento ancestralmente contido nessa palavra
seria o da
vontade ou do poder divino.'
Evidentemente, a esta segunda acepção também se ligam famosos textos de Direito
Romano,
como aquele em que se define o direito como "a arte do bem e do justo", ars boni
et aequi (Celso),
ou a jurisprudência como "o conhecimento das coisas divinas e humanas
• a ciência do justo e do injusto", ` jursprudentia est divinarum atque
humanarum rerum notitia, justi
atque injusti scientia" (Ulpiano, Dig., 1, 1).
Segundo Lachance, é ainda possível que o vocábulo jus proceda de juvo, juvare,
ajudar, proteger.
O direito seria, nesse sentido, uma proteção destinada a defender os homens
contra qualquer
violência.'
Para completar a indicação das origens do vocábulo "direito",
convém citar, também, a palavra grega correspon"Diké" dente. Tratase do
vocábulo diké (direito),
por sua
vez ligado à raiz indoeuropéia dik, que significa indicar. Não há, entretanto,
nas línguas modernas
palavras vinculadas ao diké grego. Apenas nos trabalhos eruditos esse termo é
mencionado.
Esse fato confirma um dos aspectos conhecidos da história da cultura. Quase
todas as palavras
ligadas ao direito são de origem latina,
• que revela a influência poderosa do direito romano sobre o direito moderno, ao
lado da influência
quase nula da cultura grega, nesse particular.
Ihering, R. von, Espírito del derecho romano, § 165.
Ver F. Senn, De Ia justice et du droit, Sirey, cap. II, p. 25, n. 1.
cs~ F. Senn, loc. cit. V. L. Lachance, "Définition nominale du droit", in Le
concept
de droit en Aristote et S. Thomas, § 2.
(6) Michel Breal, "L'origine des mots désignant le droit et Ia loi en latin", i
Nouv. Rev. Historique de Droit, 1883, p. 603.
" Loc. cit.
Em outros setores, como na filosofia, nas artes e nas ciências especulativas,
foi profunda a
influência da cultura helênica. Mas, no campo do direito, quase nada Grécia
encontramos que nos
ligue à Grécia. A influência e Roma decisiva nesse campo foi de Roma. O gênio
prático dos
romanos contrasta com a sabedoria teórica dos gregos. No campo do pensamento
puro os gregos
foram notáveis. Pode dizerse que não houve em Roma filósofo que mereça ser
posto ao lado de
Sócrates, Platão ou Aristóteles. Mas, do ponto de vista prático e
• direito se situa nesse campo , os romanos foram insuperáveis. E
• monumento jurídico que eles deixaram à humanidade, o Direito Romano,
comunicouse até nós e
ainda influi poderosamente no direito contemporâneo.
2. Pluralidade de significações do direito Cinco realidades fundamentais
Não podemos nos limitar ao estudo do vocábulo. Devemos passar do plano das
palavras para o
das realidades. Consideremos as expressões seguintes:
1 o direito não permite o duelo;
2 o Estado tem o direito de legislar; 3 a educação é direito da criança;
4 cabe ao direito estudar a criminalidade;
5 o direito constitui um setor da vida social.
Se atentarmos para a significação do vocábulo "direito", nessas diversas
expressões, verificaremos
que, em cada uma, ele significa coisa diferente.
Assim, no primeiro caso ` o direito não
permite o duelo" "direito" significa a norma, Norma a lei, a regra social
obrigatória.
Na segunda expressão "o Estado tem o
direito de legislar" "direito" significa a facul Faculdade dade, o poder, a
prerrogativa que o Estado
tem de criar leis.
Na terceira expressão "a educação é direito
da criança" "direito" significa o que é devido Justo por justiça.
Na quarta expressão "cabe ao direito
estudar a criminalidade" "direito" significa Ciência ciência, ou, mais
exatamente, a ciência do
direito.
34 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Na última expressão "o direito constitui um setor da vida social" "direito"
é considerado como
fenômeno da vida coletiva. Ao lado dos fatos econômicos,
artísticos, culturais, esportivos etc., também o direito é um fato social.
Temos, assim, cinco realidades diferentes a que correspondem as acepções
fundamentais do
direito. Um estudo mais detido nos revela que, partindo destas, podemos chegar,
ainda, a outras
significações, de menor importância.
Façamos um exame rápido dessas significações.
2.1 Direitonorma
Direito, no sentido de lei ou norma, é uma das acepções mais comuns do vocábulo.
Muitos autores
o denominam "direito objetivo", em oposição ao "direito subjetivo" ou "direito
faculdade", que é
sempre uma prerrogativa do sujeito (subjectum).
Essa denominação, no entanto, é imprópria, porque outras acepções do direito,
como justo ou fato
social, são, também, objetivas. Direito objetivo não é apenas a lei.
Inúmeras definições correntes referemse à acepção do direito como lei. Assim,
por exemplo, a de
Clóvis Beviláqua, que, em sua Teoria Geral do Direito Civil, conceitua o Direito
como "uma regra
social obrigatória". Ou a de Aubry e Rau: "O Direito é o conjunto de preceitos
ou regras, a cuja
observância podemos obrigar o homem, por uma coerção exterior ou física".' É
esse, também, o
'caso da definição de Ihering, que considera o direito como "um conjunto de
normas, coativamente
garantidas pelo poder público".9
Mas, direito, na acepção de norma ou lei, indica realidades diferentes, quando
se refere: a) ao
direito positivo e ao direito natural; b) ao direito estatal e ao direito não
estatal (ou social).
2.1.1 Direito positivo e Direito natural
O Direito positivo é constituído pelo conjunto de normas elaboradas por uma
sociedade
determinada, para reger sua vida interna, com a proteção da força social.
Direito natural significa coisa diferente. E constituído pelos princípios que
servem de fundamento
ao Direito positivo.
A palavra "direito" indica realidades diferentes num e noutro caso. Inúmeras
interpretações
inexatas do Direito natural decorrem,
(e' C. Aubry; C. Rau, Cours de Droit Civil français, Paris, 1936, § 1.°. (9)
Ihering, Zweck im Recht,
1, § 18.
CONCEITO DE DIREITO 35
exatamente, do fato de se atribuir significação unívoca, isto é, uma única
significação ao vocábulo
"direito" em ambos os casos.
É, por exemplo, famoso o ponto de vista de Oudot,10 jurista francês, para quem
o Direito positivo
e o Direito natural constituiriam dois Códigos paralelos. Teríamos, ao lado de
cada norma do
Direito positivo, uma correspondente de Direito natural.
Na concepção de Oudot e dos chamados "jusnaturalistas racionalistas", o vocábulo
"direito",
aplicado ao Direito natural e ao Direito positivo, teria a mesma significação.
Seria unívoco.
Ora, essa concepção do Direito natural é inaceitável. O Direito natural, na sua
formulação clássica,
não é um conjunto de normas paralelas e semelhantes às do Direito positivo. Mas
é o fundamento
do Direito positivo. É constituído por aquelas normas que servem de fundamento a
este, tais como:
"deve se fazer o bem", "dar a cada um o que lhe é devido", "a vida social deve
ser conservada", "os
contratos devem ser observados" etc., normas essas que são de outra natureza e
de estrutura
diferente das do Direito positivo."
2.1.2 Direito estatal e nãoestatal
Distinção semelhante devemos estabelecer entre o direito estatal e o direito
nãoestatal, também
chamado direito grupal ou direito
social, por Gurvitch,12, LéviBruhl,l3 Geny 14 e outros.
A palavra "direito" aplicase geralmente às normas jurídicas elaboradas pelo
Estado, para reger a
vida social, como por exemplo o Código Civil, a Constituição, o Código
Comercial, as demais leis
federais, estaduais e municipais, os decretos etc.
Mas, ao lado do direito estatal, existem outras normas obrigatórias, elaboradas
por diferentes
grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses grupos. Estão nesse
caso, pelo menos
em grande
Fato Social
"Le droit naturel est Ia collection des règles du just e de l'injuste qu'iI est
souhaitable de voir
immediatement transformer en lois positives", Oudot, Premiers éssais de
philosophie du droit,
1846, § 67. As normas do direito positivo, diz Kelsen, têm a estrutura de uma
proposição hipotética
condicional: Se o inquilino não pagar o aluguel, ele estará sujeito a uma ação
de despejo; se o
eleitor não votar, estará sujeito a uma multa. As normas de Direito natural são
proposições
diferentes: o bem deve ser feito, a pessoa humana deve ser respeitada, a
sociedade deve ser
conservada. G. Gurvitch, Le temps présent et l'idée du droit social, Paris, J.
Vrin, 1932. Ver
Capítulo 11, n. 7, da Terceira Parte (p. 358), e, Capítulo 22, n. 2, da Quinta
Parte (p. 545).
LévyBruhl, "Les sources du droit", in Introduction à l'étude du droit, I, p.
257 e ss.
F. Geny, Science et technique en droit privé positif, § 19.
parte, o direito universitário, o direito esportivo, o direito religioso
(canônico, muçulmano etc.), os
usos e costumes internacionais etc. o mesmo ocorre com as normas trabalhistas
derivadas de
convenções coletivas, acordos e outras fontes não estatais.
Os estatutos, regulamentos e demais normas que regulamentam a vida de uma
universidade,
quando elaborados por esta, constituem um direito autônomo: o direito
universitário.
O direito que vigora dentro da comunidade esportiva constitui outro exemplo. A
atividade esportiva
está, entre nós, como em outros países, regulamentada não pelo Estado, mas pelas
próprias
organizações do esporte. Estas elaboram normas e até mesmo códigos que regulam,
com força
obrigatória, a atividade esportiva. Existem, inclusive, tribunais esportivos,
incumbidos da aplicação
de tais normas.
Grande parte do moderno Direito do trabalho, que regula as relações de emprego,
foi,
principalmente nos países da Europa, elaborada pelas próprias organizações
interessadas. Os
sindicatos e outras organizações operárias e patronais, através de usos e
contratos coletivos,
foram estabelecendo normas, que passaram a regular, com força obrigatória, as
relações de
trabalho em cada categoria profissional. Não foi o Estado que elaborou essas
normas. Foram os
próprios interessados. No Brasil o processo foi diferente. O estatuto básico dos
direitos dos
trabalhadores, a CLT Consolidação das Leis do Trabalho foi outorgada pelo
Presidente Getúlio
Vargas (Dec.lei 5.452 de 01.05.1943). Entretanto, ao lado das leis e decretos
estatais, grande
parte das normas que regem as relações de trabalho decorre de acordos coletivos
e
entendimentos realizados diretamente pelas organizações representativas de
empregados e
empregadores. Ocorreu, assim, fenômeno semelhante ao europeu, como demonstra
Oliveira
Viana, no estudo sobre instituições políticas brasileiras.`
Do direito religioso são exemplos o direito canônico, o direito muçulmano, o
judeu, o budista,
elaborados pelas próprias comunidades e disciplinando, com normas precisas, a
atividade
espiritual de milhões de criaturas.
As regras editadas pelos organismos internacionais, que se multiplicam, e os
usos e costumes
internacionais, com força obrigatória, foram amplamente estudados por Gurvitch,
Geny, LévyBruhl,
Le Fur, nas obras citadas, e constituem outras tantas manifestações do direito
nãoestatal ou
social.
051 V. Oliveira Viana, Instituições políticas brasileiras, J. Olímpio, 1949;
Maxime Leroy, "Le droit
proletarien", introdução a La coutume ouvrière, 2 v., Paris, 1900; Gurvitch,
"Droit ouvrier", in ob. cit.,
cap. 1; S. Panunzio, Le droit sindical et Ia notion d'autorité; Dolléans,
Histoire du mouvement
ouvrier, Paris, Colin, 1953.
Como observa Gurvitch, esse direito social ou nãoestatal pode existir dentro do
Estado, ao lado do
Estado e acima do Estado. Dentro do Estado, como o direito universitário ou o
direito operário. Ao
lado do Estado, como o direito canônico, que dispõe sobre matéria religiosa,
enquanto o Estado
regula outras atividades. Acima do Estado, como os usos e costumes
internacionais.
Teremos oportunidade de voltar ao exame desse problema, que é amplamente
estudado pela
Sociologia jurídica e pelo Direito moderno.' Mas, por ora, importa esclarecer
que o vocábulo direito,
aplicado ao direito estatal e ao direito nãoestatal, tem significação diversa e
não unívoca. E por
isso que muitos autores não admitem que se denomine "direito" a esses
ordenamentos jurídicos
nãoestatais. Tais autores defendem a tese do "monismo jurídico". Negam caráter
jurídico aos
ordenamentos nãoestatais. Afirmam, como Kelsen, que só há um ordenamento
jurídico: o estatal.
Recusam o "pluralismo jurídico". O que revela que não é no mesmo sentido que se
emprega a
palavra "direito", num e noutro caso. É por só admitirem o sentido estrito de
"direito" que muitos
autores negam o caráter jurídico dos ordenamentos nãoestatais.
2.2 Direito faculdade
Passemos à segunda das acepções fundamentais que enumeramos: o direitofaculdade
ou direito
poder.
O vocábulo direito, com freqüência, é empregado para designar o poder de uma
pessoa individual
ou coletiva, em relação a determinado objeto. O direito de usar um imóvel,
cobrar uma dívida,
propor uma ação são exemplos de direitofaculdade ou direito subjetivo. Nesse
caso, também, o
direito de legislar ou de punir, de que o Estado é titular, o pátriopoder do
chefe de família etc.
Cada um desses direitos é uma prerrogativa ou faculdade de agir. Uma facultas
agendi, em
oposição ao direitolei, que é uma norma agendi.
E nesse sentido que Meyer define o direito como "o poder moral de fazer, exigir
ou possuir alguma
coisa"." E Ortolan, como "a
G. Gurvitch, Sociologia jurídica, Rio, Kosmos, 1964, cap. II; Le temps présent
et l'idée de droit
social, Paris, J. Vrin, 1932; F. Geny, Science et technique en droit privé
positif, § 19; H. LévyBruhl,
Introduction à l'étude du droit (em colaboração), Paris, Ed. Rousseau, 1951, v.
1.°, p. 257 e ss.; G.
Del
Vecchio, "A propos de Ia conception étatique du droit", in Justice, Droit, État,
Sirey, 1938, p. 282 e
ss.; Maxime Leroy, Le Code civil et le droit nouveau,
Paris; G. Morin, La révolte des faits contre le Code, Paris, Sirey; P. Bonnet,
Le droit en retard sur
les faits (1930), Paris, Droit et jurisprudence; G. Renard,
la theorie de l'institution, Paris, Sirey, 1930.
M. E. Meyer, Filosofia del derecho, Ed. Labor, 1937.
38
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE DIREITO 39
faculdade de exigir dos outros uma ação ou inação". Kant, por sua vez, referese
a este sentido ao
definir o direito como "a faculdade de exercer aqueles atos, cuja realização
universalizada não
impeça a coexistência dos homens"." Esse é também o aspecto focalizado por
Ihering ao propor a
seguinte definição de direito: "é o interesse protegido pela lei".19
A expressão "direito subjetivo" explicase e se justifica porque o direito nessa
acepção é realmente
um poder do sujeito. E uma faculdade reconhecida ao sujeito ou titular do
direito.
Devemos, entretanto, distinguir duas acepções nitidamente diferentes de direito
subjetivo: a) o
direitointeresse; b) o direitofunção.
Muitos direitos são concedidos ou reconhecidos no interesse de seu titular como
meios de permitir
lhe a satisfação de suas necessidades materiais ou espirituais. E o caso do
direito à vida, à
integridade física ou à liberdade, o direito de usar um imóvel ou reivindicar
uma propriedade. A
esse tipo de direito subjetivo dáse a denominação de direitointeresse.
Mas, ao lado do direitointeresse, instituído em benefício de seu titular, há
outra categoria de
direitos subjetivos,
instituídos em benefício de outras pessoas. É o direito
função, como o pátrio
poder do chefe de família, que é conferido ao pai no interesse do filho. O mesmo
ocorre com o
direito de julgar ou de legislar, atribuídos ao juiz ou a legislador, em
benefício da coletividade.
2.3 Direito justo
A palavra "direito", como dissemos, é ainda suscetível de outra significação,
claramente distinta
das anteriores, que coloca o direito em outra perspectiva e o relaciona com o
conceito de justiça.
Tratase do direito na acepção de justo.
Dentro dessa acepção, devemos distinguir, também, dois sentidos diferentes.
a) Umas vezes "direito", na acepção de justo, designa o bem "devido" por
injustiça. Por exemplo,
quando dizemos que "o salário
De acordo com o pensamento de Kant, o direito tem por finalidade garantir a
coexistência das
liberdades. Seu princípio fundamental pode ser assim formulado; age segundo uma
norma que
possa ser praticada universalmente. Por exemplo: é possível erigir o furto em
regra universal? Não,
porque tornarseia impraticável a coexistência entre os homens. Como não é
possível esta
universalização, o furto é contrário ao direito. Inversamente, o respeito à
propriedade é uma norma
que pode ser universalizada. O direito de exigir a devolução de um objeto
emprestado, o direito de
exigir o pagamento do salário etc. são normas que podem ser universalizadas e,
por isso, jurídicas.
Ihering, Espírito do direito romano, § 70.
é direito do trabalhador", a palavra "direito" significa "aquilo que é devido
por justiça".
b) Outras vezes "justo" significa a "conformidade" com a justiça. Por exemplo:
quando digo que
"não é direito condenar um anormal", quero dizer não é conforme à justiça.
São duas acepções diferentes, se bem que ambas relacionadas com o conceito de
justiça.
A primeira acepção pode ser denominada `justo objetivo", porque direito, nesse
caso, é aquele
bem que é devido a uma pessoa por uma exigência da justiça. Nesse sentido o
respeito à vida é
devido a todo homem, o pagamento é devido ao vendedor, a aposentadoria é devida
ao
empregado, o imposto é devido ao Estado etc.
A esse sentido é que se refere a definição de S. Tomás, segundo a qual "direito
é o que é devido a
outrem, segundo uma igualdade"."
É, também, a essa acepção do direito que se refere o famoso conceito de Ulpiano:
"Justiça é a
vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito"." Definição que
remonta aos mais
antigos estudos sobre o direito e a justiça. Em Aristóteles e Platão, por
exemplo, encontramos a
mesma definição com pequenas variações.
A palavra "direito" é aí empregada no sentido de "justo objetivo". E o bem
devido a outrem,
segundo uma igualdade. E o objeto da justiça. Acepção fundamental, como veremos,
que é
retomada hoje por ilustres juristas, como Karl Engisch, Michel Villey e
outros.22
A ela corresponde, com exatidão, o vocábulo jus. E significa o que é devido por
justiça. É esse o
significado da palavra "direito" na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A segunda acepção ligada ao conceito de justiça é, como vimos, a conformidade
com a justiça. No
exemplo visto "não é direito condenar um anormal" direito é sinônimo de
justo, mas justo aí
significa um qualificativo. Indica a conformidade com as exigências da justiça.
(20) S. Tomás, De justitia, II, q. 80, c.
(Z' "Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi",
"Regras de Ulpiano", livro
1, constante do Digesto, livro 1. "De justitia et jure", fr. 10 pr. Esse texto é
reproduzido nas
Institutas, de Justiniano, livro 1, tit. 1, "De justitia et jure, principium",
em termos quase idênticos:
"justitia est
constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuens". É freqüente traduzir
perpetua por
permanente, contínua, o que não é rigorosamente certo. Como observa F. Senn,
"perpétuo"
significa ` o que dura tanto tempo quanto a pessoa. Assim, a virtude da justiça
no homem deve
durar sua vida inteira" (De Ia
Justice et du droit, p. 2, n. 2).
(22) Ver Karl Engisch. Introdução ao pensamento jurídico, trad. J. B. Machado,
Lisboa, Gulbenkian,
1972; Michel Villey, Seize essais de Philosophie du Droit,
cap. li.
40 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Encontramos definições de direito que se referem a esta acepção. Entre outras,
podemos citar a
de Liberatore: "Direito é tudo o que é reto, na ordem dos costumes",23 onde está
claramente
indicada a conformidade com regra de conduta.
2.4 Direitociência
Num plano inteiramente diferente dos anteriores, a palavra direito é, com
freqüência, empregada
para designar a "ciência do direito".
Quando falamos em estudar "direito", formarse em direito, doutor ou bacharel em
direito, método
ou objeto de direito, é no sentido de "ciência" que empregamos a palavra.
Entre as definições de direito que o consideram sob este prisma, podemos citar o
clássico conceito
de Celso: "Direito é a arte do bom e do justo" ("jus est ars boni et aequi"), ou
a definição de
Hermann Post: "Direito é a exposição sistematizada de todos os fenômenos da vida
jurídica e a
determinação de suas causas" .24
2.5 Direito fato social
Finalmente, numa perspectiva distinta das anteriores, a palavra direito é
empregada principalmente
pelos sociólogos, mas também pelos juristas, no sentido de fato social. El hecho
del derecho (O
fato do direito) é o título de obra coletiva de Cabral Moncada e outros (Ed.
Losada, 1956), na qual
Olivecrona estuda "o direito como fato".
Ao realizar o estudo de qualquer coletividade, a sociologia distingue diversas
espécies de
fenômenos sociais. Considera os fatos religiosos, econômicos, culturais e, entre
eles, o direito.
O direito é, então, considerado um setor da vida social, independentemente de
sua acepção como
norma, faculdade, ciência ou justo. EJ como setor da vida social, deve ser
estudado
sociologicamente. E dentro dessa perspectiva que se situa a Sociologia do
Direito.
Sob esse aspecto, Gurvitch define o direito como "uma tentativa para realizar,
num dado meio
social, a idéia de justiça, através de um sistema de normas imperativo
atributivas" .25
É essa, também, a perspetiva em que se coloca Tobias Barreto, ao definir o
direito como "o
conjunto das condições existenciais e evolucionais da sociedade, coativamente
asseguradas 26 ou
em fórmula
CONCEITO DE DIREITO 41
mais atual, o conjunto das condições de existência e desenvolvimento da
sociedade, coativamente
asseguradas". Na mesma linha está situada a obra de Olivecrona Law as fact,
1980.
2.6 Outras acepções
As acepções fundamentais que acabamos de examinar são as que mais interessam ao
estudo
jurídico. Entretanto, podemos acrescentar ainda outras menos importantes, que
são de uso
corrente.
Assim, a palavra direito é usada, muitas vezes, no sentido de tributo ou taxa,
por exemplo, quando
se fala em "direitos" alfandegários ou aduaneiros.
Direito é ainda empregado com o significado de "reto", no sentido geométrico.
Por exemplo, um
"segmento direito", isto é, geometricamente reto.
É, ainda, usado para indicar uma operação certa: "Este cálculo está direito".
Isto é, aritmeticamente
certo.
Podese usar a palavra para designar um "homem direito", no sentido de ter uma
conduta
moralmente correta.
Direito pode significar, finalmente, oposto a esquerdo: lado "direito".
Evidentemente, essas últimas acepções não apresentam interesse jurídico. São
mencionadas
apenas como objetivo de fazer, na medida do possível, uma análise exaustiva das
significações do
direito, que podem ser assim sintetizadas:
ACEPÇÕES DIREITONORMA DIREITOFACULDADE
DIREITOJUSTO DIREITOCIÊNCIA DIREITO FATOSOCIAL
FUNDAMENTAIS
DIREITO POSITIVO DIREITO NATURAL DIREITO ESTATAL DIREITO NÃOESTATAL
1 DIREITOINTERESSE DIREITOFUNÇÃO
DEVIDO POR JUSTIÇA
CONFORME A JUSTIÇA
(23) Liberatore, Comp. di Filosofia del Diritto, Pádua, Cedam. X20' In C.
Beviláqua, Teoria Geral do
Direito Civil, § 1.°.
G. Gurvitch, Sociologia jurídica, Kosmos, 1946, introd., § V.
(26) Introdução ao estudo de Direito, cap. V, em Obras completas de Tobias
Barreto, Inst. Nac. do Livro, 1966, Estudo de Filosofia, t. 2, p. 143. Tobias
Barreto adota, com modificações, a definição de lhering: "O direito é o conjunto
de condições de vida da sociedade, coativamente asseguradas pelo poder público'.
Tobias Barreto
acrescenta às condições de vida as de desenvolvimento (evolucionais) e dispensa
a referência ao
poder público. Ambos consideram o direito como fenômeno social, criado pela
própria sociedade,
para assegurar a sua vida e desenvolvimento.
42 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
ACEPÇÕES SECUNDÁRIAS
DIREITO COMO TRIBUTO (direitos alfandegários) DIREITO COMO RETO (segmento
direito)
DIREITO COMO CERTO (cálculo direito) DIREITO COMO CORRETO (homem direito)
DIREITO COMO OPOSTO A ESQUERDA (lado direito)
3. Direitoconceito análogo
3.1 Conclusões
Do exame que acabamos de fazer decorrem algumas conclusões, que devem se
explicitadas: a) a
palavra "direito" não designa apenas uma, mas várias realidades distintas; b) em
conseqüência,
não é possível formular uma definição única do direito; devem ser formuladas
diferentes definições,
correspondentes às diversas realidades; c) o estudo feito demonstra que o
vocábulo "direito" não é
unívoco, nem equívoco, mas análogo.
3.2 Analogia
Como sabemos, a lógica divide os termos em unívocos, equívocos e análogos.
Unívoco é o termo que se aplica a uma única realidade. Exemplo: livro, homem,
vegetal.
Equívoco é o que se aplica a duas ou mais realidades radicalmente diversas.
Exemplo: o termo
"lente", aplicado ao professor e ao vidro refrativo.
Análogo é o termo que se aplica a diversas realidades que apresentam entre si
certa semelhança.
O termo análogo é, assim, intermediário entre o unívoco e o equívoco. Exemplo: o
vocábulo
"direito", que designa a lei, a faculdade, a ciência, o justo, o fato social.
Os termos análogos, por sua vez, podem ser classificados em três categorias
diferentes,
correspondentes às diversas espécies de analogia: a) analogia intrínseca ou de
proporção própria;
b) analogia extrínseca, de relação ou de atribuição; c) analogia metafórica ou
de proporção
imprópria ou figurada.
3.2.1 Analogia intrínseca ou de proporção
Dáse a analogia intrínseca, ou de proporção, quando o vocábulo é aplicado a
diversas realidades,
entre as quais existe uma relação de proporcionalidade. Exemplo: o vocábulo
"princípio" aplicase
ao princípio (começo) do dia, ao princípio (início) de uma estrada, aos
princípios da ciência, aos
princípios morais.
Estas diversas acepções são diferentes. "Princípio" não significa a mesma coisa
nesses diversos
casos. Mas existe entre eles uma proporção que se poderia assim enunciar: os
princípios da
ciência estão para a ciência, assim como o princípio do dia está para o dia,
assim como o princípio
da estrada está para a estrada, assim como os princípios morais estão para a
conduta. Em todas
essas acepções, "princípio" significa aquilo de que alguma coisa, de qualquer
forma, depende.
Há aí uma analogia de proporção, que é intrínseca, porque o termo "princípio"
encerra, em si
mesmo, essa analogia. Não se pode dizer, por exemplo, que os fundamentos da
ciência tenham
mais a natureza de "princípio" do que o começo do dia. Todos são "princípios" em
sentido próprio.
Todos são aquilo de que alguma coisa, de qualquer forma, depende. Esse aditivo
"de qualquer
forma" indica normalmente a existência de uma analogia intrínseca.
3.2.2 Analogia extrínseca ou de relação
Outra vezes, os termos apresentam outra espécie de analogia: é a chamada
analogia extrínseca,
de relação ou de atribuição.
Realizase esta analogia quando o termo se aplica, em sentido direto e próprio,
a uma realidade.
Mas se aplica, também, por extensão, a outra realidade ou realidades, que mantêm
com a anterior
relações de dependência, geralmente causais.
Neste caso, o primeiro objeto, aquele a que o termo se aplica em sentido direto
e próprio, é
chamado "analogado principal". E o objeto ou objetos a que o termo se aplica por
extensão
denominamse "analogados secundários" ou derivados.
Exemplo típico de analogia de relação ou extrínseca é o que se dá com o vocábulo
"sadio". Esse
termo se aplica ao "homem sadio", ao "clima sadio", ao "alimento sadio" e à "cor
sadia".
Se prestarmos atenção ao significado da palavra "sadio", em suas diversas
acepções,
verificaremos que o vocábulo não tem a mesma significação em todos os casos. Dá
se aí uma
analogia extrínseca ou de relação. Qual dentre essas realidades é aquela que,
com propriedade,
pode ser denominada sadia? Quem é propriamente sadio? O clima? O alimento? O
homem? A
cor? Na linguagem comum, o homem é que é sadio. O alimento é chamado sadio,
porque é uma
das causas do homem sadio. O clima está no mesmo caso. A cor é sadia, porque é
efeito ou
manifestação da saúde. O vocábulo sadio aplicase, assim, diretamente ao homem
e, por
extensão, a outras realidades, que mantêm com ele relações de dependência
(causa, efeito ou
manifestação do homem sadio).
Percebese claramente que há diferenças entre a estrutura desta analogia e a que
mencionamos
no caso anterior.
CONCEITO DE DIREITO 43
3.2.3 Analogia metafórica
Há, ainda, um terceiro caso de analogia: metafórica, imprópria ou figurada.
Nesta espécie de
analogia o termo tem uma significação direta e própria, mas se aplica também a
outras realidades,
em sentido figurado, em virtude de uma proporção imprópria que se estabelece com
a significação
originária. Está no caso o termo "rei", que se aplica diretamente ao monarca na
sociedade política,
mas se estende também ao leão, "rei" dos animais, ao "rei" do aço ou do café, em
acepção
evidentemente metafórica ou figurada.
Entre essas significações há uma proporção figurada: o monarca está para o
Estado, assim como
o leão está para os animais, o rei do aço para os produtores de aço etc.
Com essas considerações, podemos passar ao exame do tipo ou tipos de analogia
existentes
entre as diversas significações do direito. Esse exame nos mostrará casos de
analogia de relação,
analogia de proporção e até mesmo de analogia metafórica (v. nota 65).
Do tema ocupouse largamente G. Renard, na segunda lição de sua Philosophie de
l'institution,
dedicada ao estudo do "papel da analogia na ciência jurídica".
4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do direito
4.1 Analogia de relação
Examinaremos dois casos de analogia de relação:
1. a analogia entre as significações fundamentais do vocábulo "direito";
2. a analogia existente entre as significações do Direito positivo e Direito
natural.
4.1.1 Analogia entre as significações fundamentais do direito. Primado da Lei ou
da Justiça?
Formalismo jurídico e humanismo jurídico
Qual a analogia existente entre as acepções fundamentais do direito?
Sabemos que essas acepções fundamentais são o direitonorma, o direito
faculdade, o direito
justo, o direitociência e o direitofato social. Há entre essas diferentes
significações uma clara
analogia de relação, isto é, o vocábulo "direito" aplicase de forma principal a
uma dessas
acepções e estendese às demais, em virtude das relações reais e não apenas
metafóricas que
existem entre essas expressões.
Mas qual é o sentido principal? Ou, em termos lógicos, qual o primeiro
analogado?
CONCEITO DE DIREITO 45
Situase aí um dos problemas que divide autores e correntes jurídicas.
Para grande número de juristas como Planiol, Ripert, Colin, Capitant, De
Ruggiero,
Kelsen, Clóvis
Beviláqua etc. o direito é, em primeiro lugar, um conjunto Primado de normas,
leis ou regras
jurídicas, "Direito do direitonorma" seria o analogado principal. É sob esse
norma aspecto que o
direito é estudado pela maioria dos
autores modernos. "A palavra direito designa o conjunto de leis ou regras
jurídicas aplicáveis à
atividade dos homens", diz Planiol.27 "O direito é a norma das ações humanas na
vida social,
estabelecida por uma organização soberana e imposta coativamente à observância
de todos",
escreve De Ruggiero.28 Na mesma lista, Kelsen define o direito como "um sistema
de normas que
regulam o comportamento humano"29 e acrescenta: "O direito é a norma primária,
que estabelece
a sanção".30
Outros preferem ver no "direitofaculdade" ou direito subjetivo o significado
fundamental. "O direito
considerado na vida real (...) nos aparece como um poder do Primado indivíduo",
escreve
Savigny.31 Como observa do direito Carlos Campos,32 o Código de Napoleão foi
subjetivo
construído sobre o conceito do direito subjetivo.
Os jurisconsultos romanos fizeram uma teoria sólida com ele. Foi retomado pelos
grandes juristas
dos séculos XVI e XVII. Sob certo aspecto, está no fundamento da Declaração
Universal dos
Direitos Humanos e das demais Declarações de Direitos. Constitui a base de todo
o direito privado
e o ponto de partida das modernas construções do direito público.
E esse, também, o ponto de vista em que se colocam, entre outros, Ihering, ao
estudar "a luta pelo
direito", Jayme de Altavila, ao pesquisar a Origem dos direitos dos povos,33
assim como o de
Kant, Hegel e demais autores para quem o direito é fundamentalmente liberdade.
Dessa posição aproximase também a doutrina egológica do direito, formulada pelo
jurista
argentino Carlos Cóssio.34 A conclusão
44 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA PO DIREITO
(27) 28) (29)
(30) (31) (32)
(33)
Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit Civil, V. 1, p. 1.
R. de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, Saraiva, v. 1, § 2.°.
Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, trad. de J. B. Machado, Coimbra, Arménio
Amado, 1974, p.
21.
Idem, General theory of law and State, 1949, p. 61. Savigny, Sistema del Derecho
Romano, v. 1, §
4.°, p. 25.
Carlos Campos, Sociologia e filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Revista
Forense, 1943, p. 59.
Jayme de Altavila, Origem dos direitos dos povos, São Paulo, Melhoramentos,
1964.
Carlos Cóssio, La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de
libertad, Abeledo Perrot,
1964.
46 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE DIREITO 47
básica da teoria egológica é que "o direito é conduta e não norma", escreve um
dos autorizados
seguidores da doutrina de Cóssio no Brasil, o professor Machado Neto, da
Universidade da Bahia."
Para a concepção egológica, o direito não é forma, mas "conduta humana em
interferência
intersubjetiva" (relacionamento entre sujeitos ou "egos", daí a designação da
doutrina "egológica").
E entre as modalidades fundamentais desse relacionamento intersubjetivo que
caracteriza o direito
está a "faculdade" ao lado da "prestação", do "ilícito" e da "sanção" que com
ela se relacionam.
A moderna sociologia jurídica considera o direito sob outra
perspectiva. "O direito é o fenômeno social por Primado excelência", escreveu H.
LévyBruhl, "mais
do do direito que a religião, mais do que a língua, mais do que fato a arte,
ele revela a natureza
íntima do grupo social social".36 Roscoe Pound define o direito como: "O
controle exercido pela aplicação da força de que dispõe uma sociedade
politicamente
organizada".37
É interessante observar que a tendência ao sociologismo jurídico ` predomina
hoje de certa forma
nos Estados Unidos e na União Soviética. Nos Estados Unidos essa orientação é
representada
pela escola da jurisprudência sociológica de Benjamin Cardozo, Roscoe Pound,
Gray, Llevelyn e
outros. Na antiga URSS o sociologismo era de vinculação marxista; o jurista
soviético Stuchka
define o direito como "um sistema de relações sociais que corresponde aos
interesses da classe
dominante e está defendido pela força organizada dessa classe" .38
De outra parte, muitos juristas vêem no direito, em primeiro lugar,
uma ciência. "A previsão do que os tribunais Primado decidirão é o que eu
entendo por direito",
escreveu do direito Holmes.39 Previsão é conhecimento, estudo, ciên' ciencia
cia. Já Ulpiano
definira o direito como "a ciência.
do justo e do injusto";40 e Celso como a ars boni) et aequi. Na mesma linha
situamse, em geral,
os mestres que
consideram naturalmente o direito como disciplina a ser estudada e transmitida
às novas gerações.
Ao lado das diferentes perspectivas que acabam de ser examinadas colocase a dos
que vêem no
direito, fundamentalmente, o justum, isto é, o "justoobjetivo" Primado ou o
"devido por justiça". É
essa a concepção do direitotradicional que nos vem do Direito Romano e é justo
modernamente
reafirmada por ilustres juristas, ou devido como Geny, Villey, Engisch e outros.
A função do juiz e do jurista, em suas diversas atividades, consiste sempre em
descobrir "o direito",
isto é, ` o justo" e assegurálo. A lei (lex) não se confunde com o direito
(jus). A lei (direitonorma)
não é propriamente "o direito", mas uma de suas fontes.` O "direito subjetivo"
também não é a rigor
o direito, mas o poder de exigilo ou o seu reconhecimento. Da mesma forma, o
direitofato social e
o direitociência são claramente acepções derivadas, vinculadas ao justum.42
A norma ou lei é chamada "direito", porque ela estabelece ou deve estabelecer o
que é justo. A
faculdade é denominada "direito" porque ela é, de certa forma, o poder de exigir
o justo ou o seu
reconhecimento. Da mesma forma, a Ciência do Direito é assim chamada porque ela
é o conjunto
de conhecimentos que tem por objeto o justo e suas manifestações. E o direito
como fato social é,
também, uma acepção derivada. Ele é o setor da realidade social que tende para a
realização da
justiça .43
Essa interpretação corresponde à natureza fundamental do direito e ao
ensinamento de grandes
mestres.
"Não é da regra que emana o direito, mas do direito (jus) é que se faz a regra",
diz o velho
brocardo de Justiniano: "Non ut ex regula jus sumatur, sed ex jure, quod
Justiniano est, regula fiat".
No mesmo sentido é a lição contida na clássica definição de justiça de Ulpiano:
"Vontade constante
e perpétua de atribuir a cada um o seu direito (jus suum Ulpiano cuique)". Qual
o sentido da
palavra jus nessa
(35)
A. L. Machado Neto, Teoria da ciência jurídica, São Paulo, Saraiva, 1975, p.
157. A revalorização
do direito subjetivo na doutrina de Cóssio é salientada por Machado Neto, nos
seguintes termos:
"Outra parte em que a teoria egológica
reforma a teoria pura (de Kelsen) é na revalorização do Direito subjetivo, que
o conceito de direito como conduta vem acarretar. A liberdade é, nessa
perspectiva, um prius de
onde se há de partir" (ob. cit., p. 151). H. LévyBruhl, "Aspectes sociologiques
du droit", em Petit
bibliothèque
sociologique internationale, Sirey, 1955.
Roscoe Pound, em La sociologie au XX siècle, Paris, PU, 1947, p. 306. In Kelsen,
Teoria
comunista del derecho y del estado, B. Aires, Emecé, 1957, p. 95.
O. W. Holmes, The path of the law, 1920, p. 173. Ulpiano, Digesto, 1, 1.
(36)
(41) (42)
(37) (38)
(43)
(39) (40)
Sobre a lei como fonte de direito, v. adiante Capítulo 11.
Nesse sentido, é esclarecedora a citada definição do direitofato social,
proposta por Gurvitch:
"Tentativa para realizar, num dado meio social, a idéia de justiça, através de
um sistema de
normas". Igualmente esclarecedora é a definição do direitociência formulada por
Ulpiano: "ciência
do justo". E interessante observar
que, em grego, o justo objetivo, dikaion, e a
norma, pomos, são
designados por palavras diferentes. Em latim, ambos podem ser designados pelo
termo jus, se
bem que, em sentido estrito, jus e lex não se confundem. Em inglês, o vocábulo
law indica tanto o
"direito" como a "lei".
48 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
definição? É precisamente o justo objetivo, isto é, aquilo que é devido a cada
um.
Modernamente François Geny conclui seu estudo sobre "a ciência
e a técnica no direito privado positivo", com o Geny reconhecimento de
que "no fundo de todo
o
conteúdo do direito, encontrase, como noção fundamental, a de justo", que
inclui em si não
apenas preceitos de justiça particular, distributiva ou comutativa, mas também
as exigências do
bem comum e da justiça social, "com a finalidade de assegurar a ordem essencial
à manutenção e
ao progresso da sociedade
humana" .44
E Engisch, depois de observar que o pensamento jurídico moderno
se orienta em primeira linha pela lei, afirma que Engisch ao lidar com a
lei percebese claramente
"algo que
está por detrás da lei e que nós nos propomos chamar simplesmente DIREITO" .45
Essa é, também, a lição contemporânea de Bobbio, ao lembrar que a "teoria da
justiça" concerne
ao fundo do direito e a "teoria do direitonorma" concerne à forma do direito.`
De Del Vecchio, ao
afirmar que a noção de justo é a pedra angular de todo o edifício
jurídico .47 De Catherin,48 G. Burdeau,49 Lachance,50 Olgiati,51 Dabin,52 Villey
53 e inúmeros
outros .54
F. Geny, Science et technique en droit privé positif, v. 1, § 16.
Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, trad. de J. B. Machado, Lisboa,
Gulbenkian,
1964, p. 308.
N. Bobbio, "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", in Archives de
Philosophie du Droit, Sirey,
1962, v. 7, n. 8. G. Del Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938, Prefácio.
Cathrein ensina que o justo ou jus o devido a alguém segundo certa igualdade
ou proporção é o
direito originário (Recht, Naturrecht und positives Recht, ed. Herber. Trad.
espanhola Filosofia del
Derecho, II parte, § 1.°).
G. Burdeau, nos Archives de Philosophie du Droit et Sociologie juridique (1937,
n. 3 e 4, p. 58 a
88), depois de numerar como fatores da norma jurídica: a) princípio afirmado
pela regra; b) a
obrigação que ela impõe; c) o fim que
a justifica; conclui: "A norma não vale por si mesma, mas apenas em consideração
a um fim
situado fora dela" (p. 66). Lachance dedica o 1.° parágrafo de sua "Análise da
noção do Direito" à
demonstração de que o direito é um "devido": "Le droit est un du" (Le concept de
droit selon
Aristote et S. Thomas, liv. II, § 1.°). F. Olgiati, La riduzione del concetto
filosofico di diritto al
concetto di giustizia,
Milão, Giuffrè, 1932.
J. Dabin, "La justice est Ia matière naturelle du sistème juridique a plusieurs
titres" (Téorie générale
du droit, Bruxelas, Bruylant, 1944, n. 253, p. 257). Michel Villey, Seize essais
de Philosophie du
Droit, Paris, Dalloz, 1969. V. Capítulo 5, n. 8.
Nesse sentido, o justo objetivo é a acepção fundamental do direito. Entretanto,
no direito moderno,
essa noção vem sendo muitas vezes esquecida e substituída pela preeminência do
direitonorma.
Considerase, de preferência, não o conteúdo ou matéria do direito, mas seu
aspecto formal ou
obrigatoriedade.
Essa orientação deve ser atribuída à influência do positivismo jurídico e a
certo fetichismo pela lei e
pelo Orientação contrato. Uma das grandes tendências do direito positivista no
século XIX foi a de
endeusamento da lei e do contrato, como manifestações da vontade individual.
Ligase essa
tendência ao voluntarismo
ético e jurídico, cujas raízes, no mundo moderno, vamos encontrar principalmente
em Grotius,55
Rousseau,56 e Kant.57 Para esses autores, a vontade subjetiva, e não a realidade
objetiva, é o
princípio fundamental da moral e do direito. Dentro dessa concepção, a lei, como
"vontade" geral, é
que tem importância básica.
Esse primado da lei ou norma tem recuado diante da realidade jurídica e social.
Demonstrouo,
entre outros, Gaston Morin, em dois estudos: A lei e o contrato: a decadência de
sua soberania e A
revolta do direito contra o Código."
O direito não tem seu fundamento último na lei ou no contrato. O direito é
fundamentalmente o
justo. É o que é "devido" a cada um, indivíduo ou sociedade, segundo um
princípio fundamental de
igualdade, simples, ou proporcional.` A lei é um instrumento para a realização
desse direito. Ela
deve servir de guia ao jurista e ser interpretada, sempre, em função de seu
objetivo essencial, que
é o de assegurar a cada um indivíduo, Estado ou outras instituições o
direito que lhe é devido:
"jus suum cuique tribuere".
Essa consideração não diminui a importância da lei. Pelo contrário, a valoriza.
Nesse sentido é oportuna de Villey, professor da Faculdade de Direito de Paris:
"Se sou juiz e
procuro a solução justa, sem ser escravo das leis, tenho duas razões para as
levar em conta. Em
primeiro lugar, porque elas são o resultado, a realização de longos esforços da
doutrina
Grotius, H., De jure belli ac pacis, Lausane, 1751.
Rousseau, J. J., "Du contrat social", "Discours sur 1'origine et les fondements
de l'egalité parmi les hommes" in Oeuvres completes.
Kant, especialmente Crítica da razão prática e Metafísica dos costumes.
Gaston Morin, La loi et le contrat La decadence de leur souveraineté, Paris,
Alcan, 1927, e La
revolte du droit contre le Code, Paris, Sirey, 1945.
V. "Características e espécies da justiça", adiante, Segunda Parte, Capítulos 5
a 9 (p. 121 a 290).
CONCEITO DE DIREITO 49
Formalismo jurídico
Justiça: Humanismo Jurídico
(44) (45)
(46)
(47) (48)
(49) (50)
(52)
(55) (56)
(53) (54)
(57) (58)
(59)
50 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE DIREITO 51
para encontrar as regras do justo. Nossas leis resumem o estado atual da ciência
do justo. A esse
título elas nos servem de guia. E, de outro lado, já que o meu dever é
equilibrar e pesar todos os
interesses presentes, não posso esquecer que o interesse comum exige
determinações fixas, que
a lei procura estabelecer". E acrescenta: "A nossa filosofia do direito não
ignora as leis, pelo
contrário, demonstra e delimita a sua autoridade".60
No mesmo sentido é a observação de Rodriguez Aguilera: "A lei pode ser justa ou
injusta. O
mesmo ocorre com a sentença, embora seu destino natural seja sempre a justiça. A
dependência
entretanto não é necessária. De uma lei injusta pode surgir, na sua aplicação,
uma sentença justa,
ou que se aproxime da justiça, por haver o juiz superado a letra da lei,
mediante uma interpretação
orientada pela
justiça" .61
4.1.2 Outra analogia: Direito positivo e Direito natural,
Passemos a outra aplicação dos princípios da analogia. Ela pode ser feita em
relação ao Direito
positivo e ao Direito natural. A palavra "direito" não tem a mesma significação
quando aplicada à lei
natural e à lei positiva.
Alguns autores empregam em sentido unívoco posição de Oudot e dos
jusnaturalistas de
orientação racionalista, que conceituam o, Direito natural como um "direito" no
mesmo plano de
Direito positivo.? Para estes, como vimos, o Direito natural é um código
paralelo aos códigos
positivos. Ao lado de cada norma de Direito positivo, teríamos uma de Direito
natural.
Essa concepção, entretanto, é inadmissível. E, pelo menos em parte, é
responsável pelo
descrédito em que ficou o Direito natural, em certos setores científicos.
Se analisarmos o pensamento de muitos autores que negam o Direito natural,
veremos que na
realidade eles negam essa concepção de um Direito natural paralelo a Direito
positivo. Negam que
o Direito natural seja "direito", em sentido
unívoco, isto é, no mesmo sentido
em que se fala do
Direito positivo. E têm razão. Na realidade, esse, Direito natural não existe. E
pura imaginação.
O Direito natural é constituído não por um conjunto de preceitos paralelos ao
Direito positivo, mas
pelos princípios fundamentais do Direito positivo.
1601 Michel Villey, "Une definition du droit", in Seize essais de Philosophie da
Droit, p. 32.
(61) C. Rodriguez Aguillera, La Sentencia, Barcelona, Bosch, 1975, p. 94.
A palavra "direito", aplicada a um e a outro desses direitos, tem significação
análoga. E a analogia
que aí se realiza é a de relação.
Em sentido direto e imediato, a palavra direito se aplica ao Direito positivo, à
lei positiva. Mas se
estende também ao Direito positivo. Entre ambos existe uma relação de
dependência, uma relação
causal: um é fundamento do outro.
Os princípios que constituem o Direito natural são, entre outros: bonum
faciendum (o bem deve ser
feito), neminem laedere (não lesar a outrem), suum cuique tribuere (dar a cada
um o que é seu),
respeitar a personalidade do próximo, as leis da natureza etc.
Qualquer norma do Direito positivo, qualquer artigo do Código Civil, Comercial
ou Penal fundase
necessariamente nesses princípios. Mas é evidente que as normas do Direito
positivo apresentam
uma formulação, estrutura e natureza diferentes dos princípios do Direito
natural (v. nota 11 do
presente capítulo).
Poderíamos dizer, com Aristóteles e S. Tomás, que o Direito natural está para o
Direito positivo,
assim como os princípios da razão estão para a ordem especulativa. Na ordem
especulativa as
proposições e os raciocínios científicos também se fundam em certos princípios
básicos, que são o
fundamento de toda a ciência."
4.2 Analogia intrínseca: Direito estatal e Direito nãoestatal
Passemos ao exame do direito nãoestatal. Direito designa, em geral, as normas
elaboradas pelo
Estado. Mas se aplica, também, aos ordenamentos existentes no seio de outras
comunidades:
esportivas, religiosas, econômicas, universitárias etc.
Aplicase, assim, o vocábulo "direito" ao ordenamento jurídicoestatal, elaborado
pelo Estado, e, ao
mesmo tempo, aos ordenamentos jurídicos elaborados pelos grupos sociais. Falase
em direito
esportivo, direito universitário, direito canônico etc.
Estamos, novamente, em face de um problema de importância para a ciência
jurídica, decorrente
de uma compreensão ambígua do significado do vocábulo "direito", aplicado a
esses diversos
ordenamentos. Grande parte dessas dificuldades tem origem no fato de se
considerar, no caso, o
termo "direito" unívoco.
(62) Sobre os primeiros princípios na ordem especulativa e na ordem prática v.
André Franco Montoro, Os princípios fundamentais do método no direito,
Martins, 1942, § 16 e ss. "Praecepta legis naturae hoc modo se habent ad
rationem practicam sicut
principia prima demonstrationum se habent ad rationem speculativam: utraque
sunta quaedam
principia per se nota" (S. Tomás, 1, 11, q. 94, a. 2). Sobre a doutrina clássica
do Direito natural, ver
Capítulo 9, n. 5 (p. 257).
52
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE DIREITO
53
Muitos autores negam o Direito nãoestatal, porque este não tem a mesma
estrutura, a mesma
natureza e a mesma força do Direito estatal., O estatuto de uma universidade,
por exemplo, não
pode ser chamado "direito", no mesmo sentido em que a Constituição ou o Código
Civil sã
designados como partes do "direito" nacional. O mesmo se pode dizer d Direito
esportivo, do
Direito estatuário e do Direito canônico.
Na realidade, estamos em presença de mais um caso de analogia O vocábulo
"direito" não
significa a mesma coisa, nos diverso exemplos mencionados, mas apresenta
significação
analógica.
Qual o tipo de analogia que aí se realiza?
A analogia existente no caso é intrínseca ou de proporção. E pod ser enunciada
da seguinte forma:
o Direito estatal está para o Estado assim como o Direito universitário está
para a universidade,
assi como o Direito esportivo está para a coletividade esportiva; ou Direito
religioso, para a
comunidade religiosa.
Em todos esses casos, direito significa o ordenamento que reg a vida dessas
coletividades.
No caso do Direito estatal, esse ordenamento apresentase mai técnico, é
realizado através de
normas formuladas com certa solenidad e garantidas pela força coercitiva do
Estado. No caso dos
demal ordenamentos, as normas apresentam características diferentes, m
constituem, igualmente,
regras sociais obrigatórias, com eficácia muit vezes maior que a das normas
estatais."
Em virtude de sua importância menor para a ciência jurídic dispensamonos de
examinar outras
aplicações de analogia às demai acepções do direito."
Ao final desse estudo podemos formular as seguintes conclusõe
a) o direito pode ser considerado com Conclusões norma, como faculdade, como
justo, como
ciênci
ou como fato social;
b) essas diferentes perspectivas revelam o caráter analógico
conceito de direito;
V. Gurvitch, "Dans 'L'idée du droit social', nous avons différencié le dr social
pur et indépendant,
équivalent ou supérireur au droit étatique; le dr social pur, mais soumis à Ia
tutelle do droit de 1'Etat
et range dans le dr privé; et le droit social annexé par 1'État et élevé au rang
de droit publi
(in Le temps present et l'idée du droit social, Avant propos, p. 10).
Poderseia perguntar se, entre as acepções do direito, existe algum caso de
analo metafórica. A
resposta é afirmativa. E essa a analogia existente entre "direito", sentido
jurídico, e "direito", no
sentido geométrico (segmento "direito", ângul "direito"). Podese dizer que o
direito jurídico está
para a ordem social, assim com o direito geométrico está para a ordem
geométrica. Ambos
significam a conformi dade com uma regra: com a regra ou norma social, no
primeiro caso; com a
reg ou régua geométrica, no segundo. O mesmo ocorre com a significação aritméti
(cálculo
"direito"), moral (homem "direito") e acepções semelhantes.
c) muitos autores modernos (Planiol, Kelsen) utilizam, de preferência, o
vocábulo "direito" para
indicar o direitonorma;"
d) outros preferem ver no direito, em primeiro lugar, o direitofaculdade
(Cóssio), o direitofato social
(LévyBruhl) ou o direitociência (Holmes);
e) a doutrina clássica e muitos juristas contemporâneos (Villey, Engisch)
consideram que o direito
justo (o que é devido a uma pessoa ou instituição) é o significado fundamental
do direito; nesse
sentido, direito é, fundamentalmente, o "devido por justiça".
Essas diferentes posições não são contraditórias. Representam pontos de vista
sobre aspectos
diferentes de um mesmo objeto. Mas revelam, muitas vezes, a orientação
doutrinária ou filosófica
de cada autor e de sua época.
Hoje, a trágica experiência dos Estados totalitários e dos regimes de força, ao
lado de uma
reflexão mais atenta sobre o direito vivo presente nas sentenças, nas decisões
administrativas e
nos demais atos jurídicos tem levado grandes setores do atual pensamento
jurídico a reconhecer
que o sentido fundamental do direito, em qualquer de seus aspectos, consiste
sempre em estar a
serviço da justiça, isto é, em assegurar a cada um aquilo que lhe é devido,
segundo uma relação
proporcional, fundada na igual dignidade de todos os homens.
Nesse sentido, podemos aplicar a qualquer dos aspectos do direito a observação
de Gurvitch:66
as normas jurídicas podem ser mais ou menos perfeitas, mas não serão "direito"
se não estiverem
orientadas no sentido da realização da justiça.
Presente em todos os momentos da existência do direito, a justiça se encontra em
todas as leis,
mas não se esgota em nenhuma. ó7
5. Outras formulações 5.1 Conceito de direito
João Mendes (de Almeida Júnior), Direito judiciário brasileiro,
Freitas Bastos,
1940, p. 2 e ss.
Nós concebemos o direito como atributo da pessoa, como fenômeno na vida social,
como norma
de agir ou lei.
"Le droit est dans le genre 'rélation'. Cherchons à quelle espéce de rélation il
peut appartenir ... Le
droit est une rélation d'égalité fondée sur 1'equivalence des quantités... II va
de soi que Ia quantité
dom il s'agit dans de droit est morales: et le rapport qui lui fait suite est un
rapport d'égalité morale"
(Lachance, Le concept de droit en Aristote et S. Thomas, liv. II, § III, p. 281
e ss.). "Jus, sive justum, est aliquod opus adequatum alteri secundum aliquem
aequalitatis modum"
(S. Tomás, Suma, II, q. 57, a 2). G. Gurvitch, Sociologia jurídica,
"Introdução". Del Vecchio, Justice,
Droit, Etat, § 14.
(63) (64)
(65)
(66) (67)
54 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Como atributo da pessoa, o direito é a faculdade de agir moralmente inviolável.
Neste sentido
chamase Direito subjetivo porque é considerado como "atributo de um sujeito"
que é pessoa.
Pessoa é uma substância individual de natureza racional, a quem o direito é
atribuído como uma
faculdade de agir, cuja atividade pode e deve ser sancionada e garantida pela
força do Estado, que
é o organismo do corpo social.
Como fenômeno, isto é, tal como nos aparece no mundo sensível, o direito é uma
relação da vida
social. Nesse sentido, chamase Direito objetivo material porque o direito é
objeto da nossa
percepção com todas as notas sensíveis, isto é, percebemos o direito como uma
relação da vida,
em que aparece um sujeito, um termo, uma matéria ou objeto, e um fundamento ou
título. Sujeito,
por excelência chamado "sujeito ativo", como já vimos, é a pessoa a quem se
atribui o direito;
Termo, também chamado "sujeito passivo", é a pessoa obrigada; matéria ou Objeto
é a coisa sobre
que recai o direito; fundamento ou Título é o fato que, considerado na ordem
moral, produz, no
sujeito, o direito e, no termo, a obrigação.
O direito é concebido também sob um terceiro aspecto, isto é, como norma de agir
ou lei. Todos os
efeitos dos títulos de direito são reconhecidos e definidos pela soberania
nacional, por meio da lei.
É o chamado Direito objetivo formal, porque, nesse sentido, o direito é objeto
da nossa percepção
como forma genérica e obrigatória da ordem social.
A lei, tornada assim positiva, dividese em lei civil, lei comercial, lei
criminal.
As leis, determinando os efeitos dos fatos jurídicos em espécie, têm de ser
aplicadas a fatos
individuados. Vamos, pois, contemplar o modo e a forma de aplicar a lei aos
fenômenos jurídicos
da vida, quer nas relações extrajudiciais, estipuladas entre os indivíduos, quer
nas relações
litigiosas, que os indivíduos sujeitam ao juízo do Poder Judiciário.
5.2 Uma concepção sociológica do direito
H. LévyBruhl, "Les sources du droit. Les Méthodes. Les Instruments du travail",
in Introduction a
1'étude du droit, em colaboração com outros professores da Faculdade de Direito
de Paris, Paris,
ed. Rousseau, 1951, 1.° v., p. 253.
Minha concepção de direito é decididamente sociológica. O direito não existe a
não ser para os
homens vivendo em sociedade, e não se pode conceber uma sociedade humana em que
não haja
ordem jurídica, mesmo em se tratando de um estado rudimentar. Isto se exprime em
latim pelo
adágio conhecido Ubi societasr ibi jus (Onde há sociedade, há direito).
Insistamos um momento sobre esta idéia: É exato dizer que as sociedade&,
arcaicas e
rudimentares, que conhecemos pela etnografia ou pela tradição, têm, na verdade,
instituições
jurídicas? Alguns o contestam. Todos sabem que, nes estágio de civilização, as
instituições são em
grande parte indiferenciadas mergulham numa atmosfera mística. Mas o fato de se
apresentarem
sob um aspec sobrenatural não retira das regras sociais o seu caráter jurídico,
seja qual for
importância do processo de secularização de que elas serão objeto. O seu traÇ
essencial é a
obrigação que a sociedade impõe a seus membros. E é neste element obrigatório
que consiste, em
última análise, a natureza própria do direito. Tod sociedade, ainda que seja
primitiva, comporta
pois uma ordem jurídica.
Isto é tão verdadeiro que se pode, na minha opinião, inferir da existência de
instituições jurídicas a
existência de uma sociedade humana. E, invertendo os termos da equação que acabo
de citar,
afirmar com igual certeza Ubi jus, ibi societas (Onde há direito, há sociedade).
As sociedades não
são puras construções do espírito. Elas possuem bases naturais solidamente
estabelecidas, das
quais as mais caraterísticas são as instituições jurídicas. Onde instituições
deste gênero existem
podese tranqüilamente afirmar que há um vínculo entre os homens. E assim que as
organizações
internacionais, que vemos surgir de todas as partes ao redor de nós e das quais
uma das mais
significativas foi, depois da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg,
que julgou e
condenou os principais criminosos de guerra, são igualmente manifestações
irrecusáveis da
existência de uma sociedade humana, à qual talvez falte apenas tomar consciência
de si mesma.
É certo que estas primeiras aproximações não nos esclarecem muito sobre a
natureza do direito.
Limitamse a nos indicar o quadro em que se desenvolvem instituições jurídicas.
Para precisar o
que elas são, eu me contentarei com breves indicações. Proponho a seguinte
definição: "O Direito
é um conjunto de regras obrigatórias, que determinam as relações sociais, tal
como a consciência
coletiva do grupo as representa a cada momento".
Esta definição exigiria longas explicações, porque ela se refere a noções como
"consciência de
grupo" ou "representações coletivas", que eu considero pessoalmente como
definitivamente
estabelecidas pela sociologia contemporânea, mas que ainda são discutidas. Peço
aos leitores que
as aceitem, ao menos como hipóteses de trabalho, que serão confirmadas pela
seqüência de
minhas considerações. Chamo a atenção para as últimas palavras da definição que
propus, em
que declaro que o direito é tal como a consciência coletiva do grupo, representa
as relações
sociais "a cada momento". Essa precisão é da mais alta importância e requer
algumas explicações.
O meio social não pode ser concebido como fixo e imóvel. Pelo contrário, ele
está em
transformação perpétua. Submetido a influências de toda espécie, ele é
essencialmente mutável.
Por definição, um grupo é diferente hoje do que foi ontem e do que será amanhã.
Antes de mais
nada, seus elementos constituintes quero dizer os homens e as mulheres que o
compõem não
serão mais os mesmos: alguns terão desaparecido, outros terão aparecido. Mas,
até mesmo
supondo que sejam as mesmas pessoas físicas, os seus sentimentos e pensamentos
terão sofrido
necessariamente algumas mudanças. O direito, que é a expressão destes
pensamentos e destes
sentimentos, está, portanto, ele também, submetido a uma transformação perpétua.
Se nos compenetrarmos desta verdade incontestável, estaremos imediatamente em
presença de
um dos problemas mais importantes do direito. Este, acabamos de ver, está
perpetuamente em
mudança. Mas, por outro lado, esta mobilidade é, em larga medida, incompatível
com as
exigências da vida social. Os homens têm necessidade de saber como se comportar
uns em
relação aos outros, mas como saberão, se as regras imperativas a que eles devem
ser submetidos
variam de um momento para o outro? Sem dúvida eles têm a intuição de que essas
regras não
lhes são estranhas, mas emanam deles próprios e é essa, aliás, a razão
profunda do adágio,
segundo o qual "presumese que ninguém ignora a lei". Mas este sentimento geral
e vago não
basta para guiar os homens no seu comportamento cotidiano. As regras de direito
devem ter um
mínimo
de precisão e de rigidez indispensável à segurança das relações sociais.
Elas o adquirem
pelo fato de se expressarem em palavras e, nas sociedades modernas, através de
fórmula escrita.
Mas daí surge um inevitável conflito entre o caráter estático das normas e o
dinamismo da vida. E
este conflito dá ao direito, que parece ao profano tão frio e austero, um
aspecto dramático e,
algumas vezes, até mesmo patético. É
CONCEITO DE DIREITO
55
56 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE DIREITO
57
apaixonante acompanhar o esforço dos homens para alcançar a justiça, através de
fórmulas que,
por definição, não poderão realizar plenamente.
Ao mesmo tempo que sociológica, a concepção do direito a que me filio é
realista. E essa palavra
tem para mim dois sentidos precisos. A atitude realista consiste em considerar
as regras jurídicas
como fatos, ou mesmo como coisas. Esta atitude se impõe a quem se preocupa em
estudar o
direito cientificamente, pois a ciência do direito não é uma ciência normativa
(expressão que
contém em si uma contradição), mas uma ciência das normas, o que é completamente
diferente.
Ela se impõe também a todo jurista que, elevandose acima da pura técnica,
dirige suas reflexões
para o direito. Ela permite eliminar, como destituídas de significação, os
falsos problemas como o
de procurar o fim do direito. O direito não tem finalidade, como a religião ou a
arte. Como elas, e
talvez com mais intensidade, ele exprime a vontade e as aspirações eminen
temente mutáveis do
corpo social. De outra parte este realismo não deve ser confundido com um
positivismo estreito.
Ele procura, ao contrário, atingir todos os fenômenos jurídicos, mesmo os que
não estejam
oficialmente catalogados como tal. Ele atribui uma importância apenas relativa
aos critérios
formais. Por isso eu não hesito em considerar como regras de direito as
prescrições obrigatórias
observadas de fato e em eliminar as regras que existem apenas no papel,
convencido de que
apenas um esforço deste gênero permite apreender a realidade jurídica.
5.3 Justo, conteúdo essencial da norma jurídica
François Geny, Science et technique en droit pri positif, 1.° v., n.16, p. 49.
Na própria noção do conteúdo do direito, encontramos um elemento específico, que
é tirado da
experiência.
Tal elemento decorre da finalidade de toda organização jurídica, que não: é
outra senão o justo. As
regras do direito visam necessariamente, e, segundo penso, exclusivamente, a
realizar a justiça
que nós concebemos sob a forma de uma idéi.., a idéia do `justo'.
Para especificar o direito segundo seu conteúdo próprio, não podemos n,
contentar com a
observação de que ele só impõe suas regras aos homens em su. relações recíprocas
e não
prescreve nada ao homem em relação a si mesmo o em relação à divindade.
Não há aí mais do que uma diferença quantitativa e não qualitativa, em relação à
moral e à
religião. Pois se elas ampliassem a área dos deveres que impõe nem por isso
entrariam na esfera
do Direito. E, da mesma forma, essa pretendi especificação não separaria o
domínio do direito do
campo dos costum Ficaremos, também, longe de atingir o fundo das coisas, se
aceitarmos a
definiç: célebre de Jellinek, de que direito é ` o mínimo ético" (das ethische
minimum ainda mesmo
que acrescentemos com este jurisconsulto que o direito tende a mantum dado
estado social e que
ele consiste na realização, pela vontade humana, d. condições de existência da
sociedade.
No fundo, o direito não encontra seu conteúdo próprio e específico, sen:' no
conceito de "justo",
noção primária irredutível e indefinível que impli essencialmente não apenas os
preceitos
elementares de não fazer mal a ningué (neminem laedere) e dar a cada um o que é
seu (suum
cuique tribuere), mas pensamento mais profundo de um equilíbrio a estabelecer
entre os
interesses e conflito, em vista a assegurar a ordem essencial à conservação e ao
progresso
sociedade humana.
Ora, essa noção se distingue facilmente tanto das noções de "belo" e do
"verdadeiro" que
correspondem a conceitos totalmente diferentes como, ainda, das noções de
"divino" e de "bem",
que sugerem as regras da religião ou da moral. Ela é talvez mais dificilmente
separável da idéia de
"utilidade", que, inspirando completamente as regras dos costumes, parece
intervir também na
realização da idéia de justiça, ao dirigir a avaliação recíproca dos interesses,
que o direito tem por
missão conciliar. Para falar claramente, quando consideramos o direito, nós
incluímos a "utilidade"
na "justiça", no sentido de que ligamos a um ideal superior o princípio de
solução dos conflitos de
interesse. E parece preferível, se quisermos manter este ideal em sua pura
integridade, deixar à
idéia de `justo' o privilégio de preencher, com exclusividade, o conteúdo de
direito.
5.4 O Direito e o materialismo histórico e dialético
Karl Marx, Prefácio à Critica da economia política.
O primeiro trabalho que empreendi para resolver as dúvidas que me assaltavam foi
uma revisão
crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Minhas pesquisas me conduziram à
conclusão de que as
relações jurídicas, assim como as formas de Estado, não podem ser compreendidas,
nem por elas
próprias, nem pela suposta evolução geral do espírito humano, mas que elas têm,
ao contrário,
suas raízes nas condições materiais da existência, que Hegel, a exemplo dos
ingleses
• dos franceses do século XVIII, abrange no seu todo sob o nome de "sociedade
civil"; mas que a
anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política.
O resultado a que cheguei e que, uma vez adquirido, serviume de fio condutor
nos meus estudos
pode brevemente ser formulado assim:
Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações
determinadas,
necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem
a certo grau
de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas
relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se forma
uma
superestrutura jurídica e política
• à qual correspondem formas de consciência social determinadas.
O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social,
política e intelectual
em geral. Não é a consciência dos homens que determina
• seu ser; mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua
consciência.
Em determinado estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade
entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é
mais que sua
expressão jurídica, com as relações de Propriedade no interior das quais elas
estavam se
desenvolvendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que
eram, estas
relações tornamse entraves. Iniciase, então, uma época de revolução social. A
mudança na base
econômica subverte, mais ou menos lentamente, toda a enorme superestrutura.
Quando se consideram tais transformações, devese sempre distinguir entre a
transformação
material das condições de produção econômica, que se pode constatar fielmente
por meio das
ciências da natureza, e as formas jurídicas, Políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em suma,
as formas ideológicas, através das quais os homens tomam consciência deste
conflito e o
conduzem até o fim.
58
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE DIREITO
59
Assim como não se julga t3m indivíduo pela idéia que ele faz de si mesmo, não
se poderá julgar
uma época de mudança profunda pelo conhecimento que ela tenha de si própria; é
preciso ao
contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo
conflito que existe
entre as forças produtivas sociais e as relações de produção...
A grande idéia
básica é a de que o mundo não deve ser considerado como um
complexo de
coisas acabadas, mas como um complexo de processos, em que as coisas em
aparência estáveis
tanto como os seus reflexos intelectuais em nossa mente, as idéias, passam por
urna
transformação ininterrupta de viraser e de superação, em que, finalmente, =a
despeito de todos
os acasos aparentes e todos os retornos momentâneos para trás, um
desenvolvimento progressivo
termina acontecendo. Esta grande idéia ffundamental penetrou, notadamente desde
Hegel, tão
profundamente na consciência comum que ela não encontra sob esta forma geral
quase mais
nenhuma contradição. Mas reconhecêla em frases e aplicála na realidade, a cada
domínio
subnYetido a investigação, são coisas diferentes...
Não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado diante da filosofia
dialética. Ela mostra a
caducidade de todas as coisas e em todas as coisas nada mais existe para ela que
o processo
ininterrupto de viraser e do transitório, da ascensão sem fim do inferior ao
superior, do qual ela
própria não é mais do que o reflexo dentro da mente pensante.
5.5 Concepção quântica dc direito
Goffredo Telles Júnior, O Direito quântico, Ensaio sobre o fundamento da Ordem
Jurídica, Max
Limonad, 1971, p. 910, 284286.
O advento do ser humano se prende à evolução da matéria cósmica. E seu
comportamento é o
requinte a qule chegou o movimento que anima, desde sempre, todas as coisas do
universo.
O Mundo Ético, dentro doo qual o Direito se situa, não é um mundo de natureza
especial, mas um
estágio da natureza única.
Nas propriedades ondulatóri as submersas, das partículas elementares da matéria,
encontramse
as raízes do movimento universal, as primeiras manifestações de extraordinárias
potências, cuja
plena atualização se observa no comportamento dos seres muito evoluídos, dos
seres
extremamente complexos, entre os quais avulta o ser humano.
A revelação científica de como se comportam as partículas no âmago da matéria e
as moléculas
dentro de célula invalida conceitos clássicos, que pareciam: definitivos, sobre
a divisão do universo
em Mundo Físico e Mundo Etico.
A unidade da Substâncias Universal, que é um princípio filósofico de
civilizações antiqüíssimas,
hoje se patenteia nos laboratórios da Física Moderna.
Este livro é uma singela demonstração de que a ordenação jurídica é a própria
ordenação
universal: é a ordenaação universal no setor humano; a ordenação da natureza
única, no mundo
em que é promovida a ordenação cultural.
A Teoria Quântica do Direi to, o Quantismo Jurídico, é a tese de que o Direito
se insere na
harmonia do universo e, ao mesmo tempo, dela emerge, como requintada elaboração
do mais
evoluído dos seres.
(... )
Uma. relação jurídica é sempre uma interação "quântica".
Em cada relação jurídica, movimentos comedidos de uns propiciam movimentos
comedidos de
outros. Esses movimentos são comedidos em razão de dois fatores. Primeiro,
porque são,
somente, os movimentos autorizados pelas normas
jurídicas. São, apenas, os movimentos produzidos por quem tem o Direito
Subjetivo de produzilos.
Segundo, porque em cada relação jurídica direitos subjetivos de uns e de outros
se confrontam e,
depois, se compõem, limitandose reciprocamente, a fim de que deles resultem
movimentos
convenientes para uns e outros.
As interações, nas relações jurídicas, são "quânticas", porque as ações
correlatas, de que elas se
constituem, não são quaisquer ações, mas, precisamente, as ações que as normas
jurídicas
autorizam e "quantificam".
O Direito Objetivo é a ordenação de determinadas espécies de interações humanas.
É a
ordenação que quantifica a liberação das energias humanas, para assegurar o
equilíbrio das
forças, e para garantir que a cada direito corresponda uma obrigação. É a
ordenação que delimita
a liberação da energia, nos "campos" dos homens, para que a sociedade seja
efetivamente o que
ela precisa ser, isto é, um "meio" a serviço dos "fins" humanos.
Pelo prisma do Direito, os homens são partículas delimitadas de energia. São
objetos quânticos ou
quanta.
As interações dos homens dos homens considerados como quanta (quantidades
discretas de
energia) são regulamentadas por uma "ordenação quântica".
O Direito é a ordenação quântica das sociedades humanas.
Mas, em matéria de ordenação, por meio do Direito, tudo é possível. Assim como a
proteína
reguladora deve ser considerada como um produto especializado em engineering
molecular, assim
também o Direito deve ser considerado como um produto de uma inteligência
especializada em
engineering social. Assim como nenhuma imposição química decide da atuação das
referidas
proteínas, assim também nenhuma imposição absoluta determina o Direito. Assim
como essas
proteínas se dirigem com autonomia, em conformidade com os interesses
fisiológicos da célula,
também o Direito, livre de imposições "absolutas", se pode dirigir pelos
interesses reais da
sociedade, de acordo com os sistemas de referência efetivamente vigorantes. O
direito não pode
se sujeitar a não ser aos fins que a sociedade almeja.
A Ciência do Direito não anunciará jamais que um homem, ou um determinado grupo
de homens,
poderá desta ou daquela maneira, como a Física não pode, prever o percurso que
um eléctron ou
um grupo de eléctrons irá fazer. A Ciência do Direito dirá, isto sim, que não
sabe como um homem,
ou um determinado grupo de homens, irá proceder, mas que esse homem, ou esse
grupo de
homens, tem mais probabilidade de proceder de maneira X, do que da maneira Y. A
maneira X de
proceder é a que é mais conforme ao sistema ético de referência, dentro do qual
age esse homem
ou esse grupo de homens. É a maneira de proceder que o Direito Objetivo deve
preconizar.
As leis humanas são, portanto, leis de probabilidade, como as demais leis da
Sociedade Cósmica.
A ordenação jurídica é a própria ordenação universal. É a ordenação universal no
setor humano.
6. Bibliografia
ALTAVILA, J. Origem dos direitos dos povos. São Paulo : Melhoramentos, 1964.
BODENHEIMER,
E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BREAL. L'origitre des
mots designam le droit
et la loi en latin. Paris, 1883. BRETHE DE LA GRESSAYE e 1aborde l acoste.
Jntroduction a
i'etude du droit. Paris :
Recueil Sirey, 1947.
CABRAL DE MONCADA. Estudos filosóficos e históricos. Coimbra : Universidade,
1958.
CARNELUTTI, F. Teoria geral do direito. São Paulo : Saraiva, 1942.
60
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CATHREIN. Filosofa del derecho. Reus, 1940. v. 15.
CAVALCANTI FILHO, Teóphilo. O problema da segurança no direito. São Paulo RT,
1964.
DABIN, J. Théorie generale du droit. Bruxelas : Bruylant, 1944.
. La philosophie de l'ordre juridique positif. Paris : Recueil Sirey, 1929. DEL
VECCHIO, G. A
justiça. Trad. de A. Pinto de Carvalho. Prefácio de Clóvis
Beviláqua. Saraiva, s/d.
FERRAZ JR., Tercio. A ciência do direito. Atlas, 1977.
FRANCO MONTORO, André. Princípios fundamentais do método no direito. São Paulo :
Martins,
1942.
. Estudos de filosofia do direito. Saraiva, 1995.
GENY, F. Science et technique en droit privé positif. 4 v. Paris : Recueil
Sirey, 1922. GURVITCH,
G. Le temps présent et l'idée du droit social. Paris : J. Vrin, 1932.
Sociologia jurídica. Rio de Janeiro : Kosmos, s/d.
GUSMÃO, P. Dourado. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro : Forense,
1989.
IHERING, R. von. La lucha por el derecho. Buenos Aires, 1959.
KELSEN, H. What is justice?. Califórnia : University of California Press, 1957.
. Teoria pura do
direito. Coimbra : Arménio Amado, 1962.
LACHANCE, Louis. Le concept du droit selon Aristote et S. Thomas. Paris : Sirey,
1933.
LE FUR, L. (e colaboradores). Le problème des sources du droit positif. Paris
Recueil Sirey, 1933.
LÉVYBRUHL e outros. Introduction a 1'étude du droit. Paris : Rousseau, 1951.
LIMA, Hermes.
Introdução à ciência do direito. Nacional, 1952.
MACEDO, Silvio de. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense,
1970. MACHADO
NETO, A. L. Compêndio de introdução à ciência do direito. 1969. NADER, Paulo.
Introdução ao
estudo do direito. 1990. OLGIATI, F. La riduzione dei concerto flosofco di
diritto al concerto di
giustizia.
Milão : Giuffrè, 1932.
OLIVEIRA VIANA. Instituições políticas brasileiras. J. Olímpio, 1940. PASQUIER,
C. Introduction à
Ia théorie générale et à la philosophie du droit. Paris : E. Delachaux, 1948.
PAUPÉRIO, A. Machado. Introdução ao estudo do direito, 1990.
POUND, R. Introdução à filosofia do direito. Rio de Janeiro : Zahar, 1965.
RADBRUCH, G. Filosofia
do direito. São Paulo : Saraiva, 1940.
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Max Limonad, 1952.
REALE, M. Filosofia
do direito. Nova fase do direito moderno. 1990. RECASÉNS SICHES, L. Filosofa del
derecho.
Barcelona : Bosch, 1936. RENARD, G. La théorie de l'institution. Paris : Recueil
Sirey, 1930. .
Philosophie de l'institution. Paris : Recueil Sirey, 1930. SALBERG ET CROS. Le
droit et Ia doctrine
de la justice. Paris : Alcan, 1936. S. TOMÁS. De legibus. I, II, q. 90 a 97; De
justitia. 1, II, q. 57 a
62. SAVIGNY, KIRCHMANN, ZITELMANN, KANTOROWICZ. La ciencia dei
derecho. Buenos Aires : Losada, 1949.
SENN, F. De Ia justice et du droit. Paris : Recueil Sirey, 1927.
SOUSA, J. P. Galvão. O positivismo jurídico e o direito natural. São Paulo :
Empresa
Gráfica Revista dos Tribunais, 1940.
TELLES JR. Goffredo. Filosofia do direito. São Paulo : Max Limonad, 1966.
. O direito quântico. Ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. São Paulo Max
Limonad, 1971.
VERNENGO, Roberto J. Curso de teoria general del derecho. 2. ed. Buenos Aires De
Palma, 1985.
2
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
SUMÁRIO: 1. O Direito como ciência 2. Classificação das ciências de Augusto
Coorte e de
Dilthey 3. A ordem universal: 3.1 Ordem; 3.2 Fundamento das ciências; 3.3
Espécies de ordem
4. A classificação de Aristóteles e suas modificações: 4.1 A ciência teórica:
4.1.1 Ciências físicas
ou naturais; 4.1.2 Ciências culturais; 4.1.3 Ciências de tipo matemático; 4.1.4
Ciências de tipo
metafísico; 4.2 Ciência prática ou normativa: 4.2.1 As ciências morais, humanas
ou ativas; 4.2.2
Ciências artísticas e técnicas; 4.3 Conclusões 5. Outras formulações: 5.1
"Direito e ordem", E.
Bodenheimer; 5.2 "Ciências humanas e ciências naturais", W. Dilthey; 5.3
"Ciências especulativas
e operativas", L. Van Acker; 5.4 "Ciência normativa, expressão contraditória",
H. LévyBruhl 6.
Bibliografia,
1. O Direito como ciência
Como vimos, o vocábulo "direito", em uma de sua acepções fundamentais, designa a
"ciência do
direito" "ciência jurídica", ou
"jurisprudência".'
Nesse sentido, Justiniano definiu o direito como "a ciência do justo e do
injusto";' Leibniz, como "a
ciência das ações enquanto justas ou injustas",' e Hermann Post, como "a
exposição sistematizada
dos fenômenos da vida jurídica e a determinação de suas causas",
(1)
O termo `jurisprudência" tem, na linguagem jurídica, duas acepções diferentes.
Pode significar: a)
"ciência do Direito", como ocorre no texto de Justiniano acima citado; foi o
sentido clássico do
vocábulo e é, ainda hoje, de uso freqüente nos autores de língua inglesa; b) a
decisão constante
dos tribunais em determinada matéria; nesse sentido, falamos em "jurisprudência"
do Supremo
Tribunal, dos Tribunais do Trabalho etc. "Jurisprudentia est justi atque injusti
scientia", Institutas,
livro 1, tít. 1, § 1.°. "Jurisprudentia est scientia actionum quatenus justae
vel injustae dicuntur",
Leibniz. Nova methodus discendae docendaeque jurisprudentia, p. 11, § 14.
Essa colocação levanta naturalmente um problema fundamental: que espécie de
ciência é o
direito?
Ciência puramente teórica, pois "a moral e o direito não se podem
dizer ciências práticas, aplicadas ou normativas
Ciência pela simples razão de que não há nem pode haver
teórica ciências práticas, aplicadas ou normativas",4 como
ou prática diz Pedro Lessa? Ciência prática ou "arte do bom
e do justo", "ars boni et aequi",5 conforme a elegante definição de Celso? Ou,
ainda, "ciência
especulativa (ou teórica), quanto ao modo de saber, e prática, quanto ao fim",6
como afirma João
Mendes?
E, em outro plano, ciência natural, como proclama Pontes de
Miranda' e, em geral, os autores de inspiração Ciência positivista? Ciência
estritamente formal, tal
como natural, a define a Teoria Pura do Direito, de Kelsen? Ou formal ciência
cultural, como vem
sendo afirmado pelas ou cultural principais direções s do pensamento
jurídico con
temporâneo?
Essas interrogações nos levam a considerar o problema da
classificação das ciências, na formulação de alguns pensadores mais
representativos.
2. Classificação das ciências de Augusto Cocote e de Dilthey
2.1 É conhecida a classificação das ciências proposta por Augusto Cocote (1798
1857), na II lição
de seu Curso de
Filosofia Positiva:
Pedro Lessa, Estudos de Philosophia do Direito, Ed. Jornal do Comércio, 1912, p.
75.
(5' Digesto, 1, 1, 1, 1, pr.
(6) João Mendes de Almeida Júnior, Direito Judiciário Brasileiro, São Paulo,
Freitas Bastos, tít. 1, cap. 1.
"' "Para ser ciência, o direito tem de ser natural, porque todas o são", Pontes
de Miranda, Sistema
da ciência positiva do direito, v. 2, p. 28. V. Recaséns Siches, Direcciones
contemporâneas del
pensamiento jurídico, Barcelona, Labor, 1936; G. Radbruch, Filosofia do Direito,
Saraiva, 1940,
especialmente o Prefácio de Cabral Moncada; Miguel Reale, Filosofia do direito,
Saraiva, 1969;
Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do direito, Saraiva, 1969; A.
Torré, lntroducción
al derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957; G. Dei Vecchio, Filosofia del Diritto,
Milão, Giuffrè, 1946;
Carlos Cóssio, Panorama de Ia teoría egológica del Derecho, Buenos Aires, 1949.
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 63
3. Física
4. Química
5. Biologia
6. Sociologia
O critério dessa classificação é a complexidade crescente e a
generalidade decrescente de cada ciência. A matemática é a menos complexa,
porque se ocupa
apenas com as relações de quantidade. É, ao mesmo tempo, a mais geral, porque
pode ser
aplicada a todas as espécies de fenômenos. A mecânica universal é mais complexa
do que a
matemática, porque tem por objeto o estudo do "movimento" e suas relações de
"quantidade". É,
ao mesmo tempo, menos geral do que a matemática, porque só se ocupa dos
fenômenos em que
há movimento.
Da mesma forma, a física é ainda mais complexa porque seu objeto inclui
"fenômeno físicos",
como a luz, o som, o calor, além de "movimento" e de "quantidade". Mas é menos
geral ou
abrangente, porque seu campo de estudo se limita ao mundo dos fenômenos físicos.
A química se ocupa de fenômenos que são ainda mais complexos: os fenômenos
químicos, que
incluem "fenômenos físicos", "movimento" e "quantidades". Mas seu campo é menor.
Limitase ao
mundo dos fenômenos químicos.
A biologia é ainda mais complexa, porque os fenômenos biológicos incluem
aspectos "químicos",
"físicos", "mecânicos" e "quantitativos". É, ao mesmo tempo, menos geral, porque
se estende
apenas aos seres vivos.
E, finalmente, a sociologia é a mais complexa das ciências, pois o fato social
inclui, de certa forma,
fatos biológicos, conseqüentemente, fenômenos químicos, físicos, mecânicos e
relações
matemáticas. E é, ao mesmo tempo, a menos geral, pois só se aplica à vida
social.
2.2 Modernamente generalizase o emprego de outra classificação, inspirada na
divisão proposta
por Ampère (17751836) e desenvolvida por Dilthey (1833 Classificação 1911).
Distingue Dilthey 9
duas espécies fundamentais de ciências:
1. ciências da natureza ("Naturwissenschaften");
v' W. Dilthey, Introduction à l'étude des sciences humaines, Paris, Presses
Universitaires de
France, 1942, livro 1.°.
1. Matemática
2. Astronomia (Mecânica universal)
de Dilthey
I ItODUÇpO A CIÊNCIA Do DIREITO
e denomina
64 culturais" ,
o espírito ("Ge1stswisse ' nschoute"Ciências
ê h2 ciências d «ciências humanas
referentemente icas, que consideram
das P em: etivo ou psicológ
subdivididas do espírito subjetivo, o espírito humano
a) ciências no próprio sujeito; culturais
frito humano etivo, que consideram ciências
o espírito es frito obj e constituem o direito.
b) ciências do P culturais sociais, inclusive ológicas têm
etos ou Produtos morais, cosm g
nos obj ditas: históricas, naturais ou
propriamente e natureza, ciências por objeto °
As ciências da físico. têm P
o mundo humanas ou culturais, considerado, no
por objeto do espírito, do espírito, roduto das ações As ciências
ento, da cultura ou e
social, P
mundo do pensam histórica
elo homem de
em ou na realidade transformada P um
diferença
próprio homem natureza corresponde das ciências
Cultura é a «explicação ,, no caso
humanas. diversidade de A natureza
A essa de cada ciência: culturais. "
métodos no estudo compreensão " no caso das ciências ondem
compreende", diz Dilthey• corresp Dilthey
naturais; cultura Seto Comte e de
a us se eXAsca' ões de Aug físicomate
classificaç diferentes. lano
ções filosóficass as ciências ao pdireção naturalis
concep todaa duas reduzindo ti icamente a natural ou físico
A de Comte, representa P do tipo e a precisão
mático, com ° rigor ta Todas as ciências são
nificativo
. Naturalismo e devem ser estudadas E sig ao de
matemáticos. Classifica
dos métodos aç
e Culturalismo em sentido estrito, a sociologia, sociologia,
e da física, natural, como icá ,
temática ísico ,física biolog
além de m ente ciências de ti a°biologia, pQ °,física celeste".
Comte inclui som ,física social", ão .
stronomia, Ou
ele denomina , e a a lassificaç
, direito nessa considerad
que ,físico4 do química ou da ciência ia ou física
socipa ciênci
Qual o lugar sociolog a qual seriam artes a
e5, ente, dentro da eral, ia etc.
6, Evidentem a ciência social g e, ogia a econoin natur
P fenômeno
a
por Comte com° olítica, 110. Ia do direito, a ciência P o direito
é considerado da natureza.
físco
erspeCtiva, demais fenômenos menos
dessa p dos feno vinc
semelhante natureza e estrutura.
filosófica se ou físico, mesma ianda cuja posção
r, jurídico e da M
diz pontes de
naturais,10 ositivista. Jacinto, 1922,
ao naturalismo P positiva do Direito, atmosfér
Sistema de Ciência onde há espaço .n
uand
como' 26)• Q
direito, oo» pontes de Miranda, o social há o ocupam (P• o
`nos
26. "Onde há espaç gasosos que se não ° é
2, p. sólidos, liqurdOS °U certo ritmo, que,
corgos cristaliza em p
oliedros, ha o ele"' (P• 84).
mineral deve ser alvo de vivo natural com
direito,
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
65
De outra parte, a classificação de Dilthey representa a direção culturalista,
que se recusa a reduzir
o Direito, a História, a Pedagogia e as demais ciências humanas ou "ciências da
cultura" à
categoria de "ciências físicas ou naturais". "O humano diz Recasens Siches a
cuja área
pertencem os fenômenos sociais, constitui um mundo completamente diverso do
reino da natureza
física e biológica, embora se encontre apoiado e inserido nesta. O humano não
pode ser captado
pela pura categoria da causalidade física, nem reduzido a mera expressão
quantitativa, pois, além
dos elementos apreensíveis por tais processos, o fato social tem algo que escapa
a estes
métodos: possui sentido ou significação"."
Dentro dessa perspectiva, o direito se situa evidentemente entre as ciências
humanas.
Mas há outros aspectos do problema. As ciências físicomatemáticas e as
culturais não esgotam o
quadro dos conhecimentos humanos. Em sentido amplo, além das ciências do "ser",
existem
ciências do "dever ser". Ao lado das ciências do simples "conhecer", existem
ciências do "agir",
ciências do "fazer", ciências "artísticas", ciências "técnicas", ciências
"normativas" etc., o que nos
leva a uma pesquisa mais ampla sobre os quadros da ciência.
Se quisermos, numa perspectiva mais ampla, situar o direito conjunto dos
conhecimentos humanos
e fixar sua posição dentro realidade universal, devemos recorrer à noção de
ordem.
A "ordem" é uma das idéias primárias do pensamento e, ao mo tempo, uma das
realidades
fundamentais da atureza. O problema capital da teoria do conheimento, escreveu
Bergson,
consiste em saber orno a ciência é possível, isto é, porque há ordem" nas
coisas. A existência da
ordem poderá r um mistério a esclarecer ou um problema
istência da ordem é um fato."
no da
mes
(7)
E
di di 19
có
Noção
e realidade fundamental
a colocar. Mas a
(6)
Recaséns Siches, Tratado de sociologia, Globo, 1968, p. 83 e 87.
H. Bergson, L'évolution créatrice, Paris, Presses Universitaires de France,
1948, cap. III, p. 232. J.
Leclerq, em Les grandes lignes de Ia Philosophie Morale:
"O problema da vida é para o homem, em todos os setores, um problema de ordem. A
vida física é
uma questão de ordem. A vida intelectual o é da mesma forma. A vida moral
também. O vício é
uma desordem, como a doença e o erro. O homem deve tomar seu lugar na ordem
universal e
desempenhar o papel que lhe cabe na história do mundo" (4.° parte, cap. 15, p.
437 e ss.).
66 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
67
No mesmo sentido é a observação de Hegel: inicialmente, só existem, na
superfície terrestre,
minerais, em seguida, vegetais, depois, animais. Não se tem a impressão de que
seres cada vez
mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no
universo? O
Espírito, inicialmente adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo,
"alienado" no
universo, apresentase, cada vez mais manifestamente, como ordem, como
liberdade, logo como
consciência.
Encontramos ordem em todos os movimentos e setores da natureza. Existe ordem no
movimento
dos astros, no crescimento de um vegetal, na estrutura de um organismo vivo. As
reações
químicas se operam segundo uma ordem determinada. Existe ordem na vida social,
manifestada
na divisão do trabalho e na distribuição das funções sociais. "O direito
escreveu Planio113 tem
por objeto a realização da ordem na vida social". As obras de arte, as
demonstrações da
matemática, os raciocínios da lógica, as conquistas da técnica, as sinfonias
musicais são
manifestações diferentes dessa ordem. Em suma, a noção de ordem é
transcendental, isto é,
passa através de todos os setores da realidade.
Impressionados por essa ordem universal, os Cosmos gregos chamaram o mundo de
"cosmos"
(Kósmos), e caos que significa ordem, beleza. E ao "cosmos"
opuseram o "caos" (Káos), que significa desor
dem, confusão.
A ordem
pode ser definida como "a unidade na multiplicidade".
Supõe sempre dois elementos. Não há ordem sem Unidade na unidade ou sem
multiplicidade. Se
algumas cores multiplicidade forem atiradas ao acaso sobre uma tela, não
haverá
ordem, por falta de unidade. Da mesma forma, não se perceberá ordem numa tela de
uma só cor,
por falta de multiplicidade. Ordem não se confunde com estabilidade.
Modernamente, a ciência
abandona cada vez mais a noção estática de ordem, para substituíla por uma
visão dinâmica e
concreta."
3.2 Fundamento das ciências
A noção de ordem é fundamental a todas as ciências. Podemos
dizer que o objeto da ciência consiste, precisamenFundamento te, em investigar
os diversos
aspectos dessa ordem das ciências universal. A astronomia procura fixar a
ordem que
rege o movimento dos astros. A biologia tem por objeto determinar as leis que
regem a ordem
existente na estrutura
Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit Civil, t. 1, § l.°. V. Vicente Eco,
Obra Aberta, Zahar,
1968, p. 56.
e na atividade do organismo vivo. A física e a química, em qualquer dos seus
capítulos, procuram
descobrir e fixar aspectos especiais dessa ordem universal.
As leis, que as diversas ciências formulam, nada mais são do que enunciados
parciais dessa
ordem. Devemos examinar a posição do Direito, dentro da ordem e das leis
universal. Mas, para
isso, precisamos começar por distinguir as diversas espécies ou tipos de "ordem"
que encontramos
no universo. Pois, evidentemente, a ordem que rege os movimentos dos astros e a
que existe na
vida social não são da mesma natureza.
3.3 Espécies de ordem
Podemos distinguir duas espécies fundamentais de ordem:
a) teórica ou especulativa;
b) prática ou normativa.
Essa divisão tem por fundamento a atitude da razão humana em face da ordem. A
razão muitas
vezes se limita a considerar ou contemplar a ordem existente, outras vezes
influi na ordem, e, de
certa forma, a realiza.
Ordem teórica ou especulativa é aquela que a razão apenas considera ou
contempla. Por exemplo,
a ordem existente no movimento dos astros ou na estrutura de um vegetal.
Ordem prática ou normativa é aquela que a razão não apenas considera, mas também
realiza. Por
exemplo, a ordem existente numa obra de arte, num raciocínio lógico ou na
estrutura de um
edifício.
A etimologia das palavras "teórico" ou "especulativo" e "prático" ou "normativo"
confirma e
esclarece esses conceitos.
A palavra "teórico', como as expressões correlatas, "teoria", "teorema" e
outras, provém do verbo
grego theorein, que significa "ver". Ciência teórica é a Ordem que se limita a
ver a realidade, a
contemplar ou teórica considerar a ordem existente. É aquela em que a razão
"vê".
"Especulativo" vem do vocábulo latino speculum, que significa "espelho".
Denominação também
adequada, porque, na ordem especulativa, a razão exerce o papel de um espelho:
limitase a
reproduzir a realidade, refletindo aquilo que existe.
A palavra "prática" provém do vocábulo
grego praxis, que significa praxe, costume. Indica Ordem o agir humano. E a
ordem é chamada
"prática", prática porque depende, de qualquer modo, da atividade
do homem.
E8 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
69
"Normativo" provém do vocábulo latino norma, que encontra similar perfeito na
língua portuguesa.
Ordem normativa é a que obedece a normas estabelecidas pela razão humana. É a
que é regulada
pelo homem.
Esses dois grandes setores são suscetíveis, ainda, de subdivisão. A ordem
teórica consta de três
espécies fundamentais: a) ordem física ou natural; b) ordem matemática; c) ordem
metafísica ou
ontológica.
Ordem física é a que se refere aos seres da natureza, considerados em sua
realidade qualitativa e
quantitativa. É o caso da ordem existente numa célula viva, na estrutura da
matéria ou na anatomia
de uma espécie animal.
Ordem matemática é a existente no mundo Ordem das quantidades. Por exemplo, 10
vezes 10
igual matemática a 100. Referese fundamentalmente ao número e
à extensão.
Ordem metafísica é a relativa ao ser considerado apenas como
ser. Referese às noções de causa e efeito, essência Ordem e existência,
substância e acidente, e
outras, que metaf isica se aplicam ao ser, considerado em si mesmo. É
também chamada ordem ontológica (do vocábulo grego ontos, que significa "ser").
A ordem prática, por sua vez, pode ser assim subdividida: a) ordem lógica; b)
ordem moral; c)
ordem artística.
Como vimos, ordem prática é aquela que a razão, de certa forma, realiza. E a
razão pode realizar
ordem, na própria razão, na vontade, ou nas coisas exteriores. A ordem que a
razão realiza no
próprio raciocínio chamase ordem lógica. A ordem que a razão realiza na vontade
ou na atividade
humana chamase ordem moral. E a que o homem realiza nas coisas exteriores é
ordem artística
ou técnica.
Consideremos cada uma delas em particular.
Podemos raciocinar "ordenada" ou desordenadamente. Se disser
mos: todo mineiro é brasileiro; todo paulista é Ordem brasileiro; logo, todo
mineiro é paulista,
estaremos lógica praticando uma "desordem" lógica.
E inversamente, estaremos raciocinando com "ordem", se dissermos: todo mineiro é
brasileiro;
Fulano é mineiro;
logo, Fulano é brasileiro.
Assim, ordem lógica é aquela que a razão realiza na própria razão. É a ordem no
raciocínio.
Como dissemos, ordem moral é a que regula a atividade humana ou a atividade da
vontade. E,
como a característica essencial da vontade é a liberdade, podemos dizer que esta
é a ordem no
mundo da liberdade. De acordo com a forma por que o indivíduo agir, ordenada ou
desordenadamente, estará ele observando ou não a ordem moral. Quem pratica um
furto, uma
injustiça, uma desonestidade, está violando a ordem moral. Está abusando da sua
liberdade.
Quem cumpre seu dever e respeita a personalidade e os direitos dos demais age
ordenadamente.
Ordem artística é a que o espírito humano realiza nas coisas exteriores. E, por
exemplo, a ordem
existente numa escultura ou na construção de um edifício. Ordem
Ao agir sobre o mundo externo, o homem pode artística ter em vista a beleza:
temos então a
ordem estética
propriamente dita; ou pode ter em vista a utilidade; temos, nesse caso, a ordem
técnica. Essas
considerações podem ser resumidas no quadro seguinte:
No passado, a ordem foi considerada principalmente sob o aspecto teórico, como
ordem cósmica,
diante da qual o homem assumia atitude meramente passiva.
Modernamente, a ordem é considerada sobretudo em seu aspecto prático e dinâmico,
como ação
transformadora do homem sobre a natureza. A ordem existente no mundo é, cada vez
mais a
realizada pelo homem nos múltiplos campos da "cultura", que não se limita ao
plano estritamente
espiritual, moral ou social, mas se estende a todo o universo, incluindo, desde
as manifestações
sempre mais amplas e aperfeiçoadas do cultivo da terra ou do aproveitamento de
suas riquezas,
até as conquistas revolucionárias da tecnologia, representadas pela
industrialização, a cibernética,
os computadores eletrônicos, os satélites artificiais ou as astronaves.
Nesse sentido, podemos dizer que, graças ao espírito do homem e sua atividade
transformadora, a
ordem no universo se amplia e se aperfeiçoa permanentemente.
Dentro desse quadro, onde se situa a ordem jurídica?
Ordem moral
Ordem natural
ORDEM
Natural
í TEÓRICA Matemática Metafísica Lógica
PRÁTICA Moral Artística
Estética Técnica
70 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Para encaminhar a solução do problema, devemos dar mais um passo a examinar a
classificação
das ciências, fundada na ordem universal.
4. A classificação de Aristóteles e suas modificações
A esses aspectos fundamentais da ordem universal
corresponde a famosa
classificação das
ciências de Aristóteles, que, com as modificações introduzidas pelo pensamento
filosófico e
científico posterior,15 passamos a apresentar.
Essa classificação distingue, inicialmente, duas espécies fundamentais de
ciência: a) ciência
teórica ou especulativa; b) ciência prática ou normativa.
Essa divisão fundase na finalidade ou função de cada ciência. Ciência teórica é
a que tem por
finalidade o próprio conhecimento. Ciência prática é a que tem por finalidade a
ação.
4.1 A ciência teórica
Podemos dizer que a ciência teórica conhece por conhecer. Por isso, as ciências
desse tipo são
chamadas ciências puras. É o caso da física, da anatomia, da geometria e outras.
As ciências teóricas ou especulativas podem ser subdivididas em três espécies
fundamentais,
essencialmente distintas: a) ciências físicas ou naturais; b) ciências de tipo
matemático; c) ciências
de tipo metafísico.
Essa divisão se fundamenta no grau de abstração de cada uma dessas ciências.
Assim, as
ciências físicas ou naturais têm um grau de abstração mínimo. Fazem abstração
das diferenças
individuais e estudam as propriedades comuns a uma espécie de seres de
realidade, por exemplo,
a célula animal. A abstração maior dáse nas ciências matemáticas, que fazem
abstração das
diferenças individuais e das qualidades dos seres para ficar apenas com a
quantidade.
A abstração é máxima na metafísica ou ontologia, que estuda o ser enquanto ser.
4.1.1 Ciências físicas ou naturais
Como sabemos, toda ciência é abstrata, isto é, faz uma certa abstração, sem o
que ela não será
ciência. Quando a física diz que todo corpo tende para o centro da terra, ela
está fazendo uma
abstração. Nunca vimos nem podemos ver "o corpo" de que fala a física. Vemos
este ou aquele
corpo concreto, que é de madeira, de pedra ou de metal, que tem esta ou aquela
cor, que possui
determinado peso, tamanho e temperatura. Mas "o corpo" (universal), de que fala
a física, ao
enunciar, por exemplo, a lei da gravidade, não existe concretamente; não existe,
como tal, no
mundo real. Tratase de uma abstração; como abstrato é, também, "o hidrogênio",
da química, "a
célula", de que fala a biologia, "o animal", da zoologia, "o homem", da
antropologia, " o índio", da
etnologia, ou o "trabalhador urbano" da sociologia.
Todas as ciências fazem abstração das diferenças individuais e só consideram as
propriedades
comuns a todos os seres da mesma espécie. Esse é o primeiro grau de abstração,
comum a todas
as ciências da natureza.
4.1.2 Ciências culturais
Modernamente, com o desenvolvimento dos estudos relativos ao mundo "da cultura",
em oposição
ao mundo "da natureza",16 devemse distinguir, explicitamente, entre as ciências
teóricas naturais,
em sentido amplo: a) as ciências naturais, propriamente ditas, que se ocupam do
mundo físico
natural; b) as ciências culturais, que estudam a natureza transformada pelo
homem.
É assim, enriquecida a antiga classificação de Aristóteles, que conceitua
genericamente a ciência
natural como o estudo de ser móvel."
V. Wilhelm Dilthey, Introduction à 1'étude des sciences humaines, Paris, Presses
Universitaires de
France, 1942; G. Vico, Scienza nuova, Pádua, Cedam, 1943; M. Reale, Filosofia do
Direito, cap.
17.
'"' Para apreender com exatidão o conceito de ciência física ou natural, no
pensamento de
Aristóteles, é necessário remontar à significação do vocábulo
grego physis e ao latino natura, que correspondem ao conceito de natureza em seu
sentido mais
amplo. Ao estudar a obra de Aristóteles, observou Ross:
"La Physique" fait 1'objet d'une longue série d'oeuvres d'Aristote: De
Meteorologica, De Physica,
De Coelo, De generatione et corruptione, De
partibus animalium, De anima etc. La Physique est distince d'une étude qui
concentre toute son
attention sur Ia matière, qui réduit un corps vivant par
exemple, ou un composé chimique inanimé, à ses élements, sans tenis compte de Ia
structure qui
fait du corps vivant ou du composé ce qui'il est. Aristote
se prononce en fait en faveur, de Ia teléologie et contre le pur mécanisme, en
faveur de l'étude des
parties à la Iumière du tout au lieu de traiter le tout
simplement comme une somme de parties. La Physique est I'étude non de Ia forme
seule ni de Ia
matiére seule, mais de Ia matière informée ou de Ia
forme dans une matière; W. D. Ross, Aristote, Paris, Payot, 1930, cap. 111.
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇAO DAS CIÊNCIAS
71
Historicamente, a classificação proposta por Aristóteles divide as ciências em
teóricas, práticas e
produtivas: "Todo conhecimento é prático ou produtivo ou teórico" ("metafísica",
1025b, 25). O
objetivo de toda ciência é conhecer, mas os objetivos finais são diferentes. A
ciência teórica
procura o "conhecimento" por si mesma. As ciências práticas têm por objeto o
conhecimento para
que esse sirva de guia à "conduta ou ação". E as ciências produtivas procuram o
conhecimento
para utilizálo na "fabricação" de coisas úteis ou belas. W. D. Ross, Aristote,
Payot, Paris, 1930, p.
34 e 91.
72 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Em sentido amplo, a natureza inclui o mundo da cultura. Este é, na realidade, a
própria natureza
transformada e aperfeiçoada pelo espírito humano.
4.1.3 Ciências de tipo matemático
As ciências matemáticas se situam num plano de abstração mais elevado. Não
apenas separam
ou abstraem as diferenças individuais, mas fazem, também, abstração das
"qualidades sensíveis",
para considerar apenas a "quantidade" do ser.
Por exemplo, o número 8 ou fração 5/9 são o resultado de uma abstração, em que
foram deixadas
de lado diferenças individuais e qualidades sensíveis. São puras relações
quantitativas.
Abstrações, portanto. Na realidade, não existe 8 simplesmente, e sim 8 homens, 8
máquinas etc. A
matemática não considera a matéria ou conteúdo desses elementos. Fica apenas com
seu aspecto
quantitativo.
O mesmo ocorre com outras ciências que, desprezando o conteúdo material dos
objetos, limitam
se à consideração de seus aspectos formais, como a estrutura lógica, a simples
relação com
outros objetos etc.
São as ciências lógicomatemáticas ou, simplesmente, ciências formais.
4.1.4 Ciências de tipo metafísico
A metafísica representa mais um passo nos graus de abstração.
O filósofo faz abstração das diferenças individuais, das qualidades sensíveis e
dos aspectos
formais, para ficar apenas com o "ser". A metafísica é pura e simplesmente a
ciência do ser. Por
isso é, também, chamada ontologia (ciência do ser). Estuda o ser, enquanto ser,
Mas, que pode
dizer a ciência a esse respeito?
Há muitos problemas ligados ao ser, considerado em si mesmo. E tais problemas
são
fundamentais. Por exemplo, todas as ciências
• todos os raciocínios fundamse num princípio primeiro, que se enuncia
assim: uma coisa
não pode ser e nãoser, ao mesmo tempo
• sob o mesmo aspecto. É o chamado princípio de identidade ou de não
contradição, que é
fundamental a todas as ciências e a todos os conhecimentos. Quando uma
experiência num
laboratório é feita por um físico, quando o matemático demonstra um teorema de
geometria,
quando o astrônomo faz o estudo dos movimentos dos astros, estão todos admitindo
esse
princípio. E se esse princípio não for verdadeiro, todos os raciocínios que o
homem fizer serão
inseguros. Ruirá toda a ciência. Nesse princípio se assentam todos os demais.
Ao ser e a qualquer ser podemos aplicar as noções de substância ou acidente,
essência e
existência, matéria e forma, unidade, verdade, bondade etc.
A metafísica realiza, assim, um supremo grau de abstração. Separa todas as
"qualidades
sensíveis" e "quantidades", para ficar apenas com o "ser".
4.2 Ciência prática ou normativa
Ciências práticas são as que conhecem para
dirigir a ação. São ciências que têm
uma finalidade
ulterior, além do conhecimento. É o caso da medicina, da engenharia ou da
arquitetura, cujo
objetivo é curar, construir ou planejar. É, também, o caso da política, da
pedagogia ou da moral,
cuja finalidade é orientar a conduta individual ou social do homem.
As ciências práticas ou normativas se subdividem em: a) ciências morais, humanas
ou ativas; b)
ciências artísticas ou factivas.
As ciências morais ou ativas têm por finalidade dar normas ao agir. Ciências
artísticas ou factivas
são as que têm por finalidade dar normas ao fazer. O objeto da moral é o agir. O
objeto da arte é o
fazer. Podemos dizer que, considerados em sua acepção ampla, a moral é ciência
do agir e a arte
é a ciência do fazer.
Qual a diferença entre o "agir" e o "fazer"?
A atividade humana, num sentido amplo, pode ser realizada de duas maneiras: como
atividade
produtiva ou como atividade moral.
4.2.1 As ciências morais, humanas ou ativas
A atividade produtiva ou factiva tem por objeto o que os antigos chamavam o
factibile, isto é, uma
obra a ser feita ou produzida. Dizemos que o engenheiro "fez" uma ponte, o
escultor "fez" uma
estátua. A atividade moral ou ética tem por objeto o agibile, isto é, uma ação a
ser praticada. De
um homem que cumpriu o seu dever dizemos que ele "agiu" bem.
• "fazer" é transitivo, exige um objeto exterior. Quem faz, faz alguma
coisa.
• "agir" pelo contrário, é intransitivo; é imanente (do latim Fnanet,
permanece); e indica,
fundamentalmente, a atividade interna e pessoal do homem.
Assim, podemos dizer que ciências morais são as que dirigem a atividade humana
propriamente
dita. E ciências artísticas são as que dirigem a produção de coisas exteriores.
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
73
74
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
75
4.2.2 Ciências artísticas e técnicas
As ciências artísticas, por sua vez, podem ser divididas em: 1. artes
propriamente ditas que visam
à produção do "belo", como a música, a escultura, a poesia;
2. técnicas, que têm por objeto a produção do "útil", como a engenharia (arte de
construir), a
medicina (arte de curar), e as técnicas em geral.
Em síntese, temos o seguinte esquema:
NATURAL Í NATURAL PROPRIAMENTE DITA
CULTURAL LÓGICOMATEMÁTICA OU FORMAL METAFÍSICA OU ONTOLÓGICA
4.3 Conclusões
Essa classificação sugere algumas observações, que passamos a indicar.
4.3.1 Primeiro: a divisão das ciências teóricas em: naturais,
culturais, formais e metafísicas (ou ontológicas), Objetos: aproximase da
moderna classificação
dos objetos naturais ou regiões ônticas, proposta por Husserl e aplicada
culturais por Cóssio ao
campo de direito." Essa classifiideais cação distribui a universalidade dos
objetos nas e metafísicos
seguintes categorias: objetos naturais, culturais,
ideais (ou formais) e metafísicos.
4.3.2 Segunda observação: a classificação de Aristóteles nos permite distinguir
diversas acepções
do vocábulo "ciência", que é usado, pelo menos, em três
de ciência sentidos diferentes, todos contidos na classifica
ção.
Numa primeira acepção, latíssima, ciência significa o conheci
mento certo pelas causas ("scientia est cognitio certa Conhecimento per
causas"). Sempre que
tivermos um conhecimento pelas causas que chegue às causas dos fenômenos
ou às
razões qu
o demonstram, ele é científico.
Carlos Cóssio, La teoria egológica del Derecho y el concepto jurídico d
lihertad. Bueno Aires,
Losada, 1944, p. 28 e ss.
Nesse primeiro sentido, "ciência" se aplica a todos os conhecimentos pelas
causas, a todos os
conhecimentos "demonstrados" e se opõe a "conhecimento vulgar".
É esse o sentido da palavra "ciência", na classificação apresentada. Ele abrange
tanto as ciências
teóricas como as práticas.
Mas a palavra "ciência" é empregada, com
freqüência, numa segunda acepção, estrita, refe Conhecimento rindose apenas às
ciências
teóricas ou puras. Isto teórico é, às ciências naturais (físicas ou culturais),
às ciências formais e à
metafísica.
Nesse sentido, a palavra "ciência" se opõe à "arte" e às ciências práticas em
geral, também
chamadas "ciências aplicadas".
É nesse sentido que se formula a pergunta: tal disciplina é ciência ou arte? É
ciência pura ou
aplicada? E ciência teórica ou prática?
Num terceiro sentido, estritíssimo, a palavra "ciência" estendese apenas às
ciências teóricas de
tipo natural e matemático, isto é, às ciências particulares, em Conhecimento
oposição à metafísica
ou à filosofia, que é ciência físicogeral. matemático
E nesse sentido, por exemplo, que se emprega
vocábulo "ciência", quando se fala em Faculdade de Filosofia e Ciências.
A classificação das ciências de Augusto Cocote, por exemplo, referese à ciência
nesse terceiro
sentido. Inclui apenas as ciências físicas e matemáticas, a saber: matemática;
astronomia (física
celeste); física (físicomecânica); química (físicoquímica); biologia (física
biológica); sociologia
(física social).
Como vemos, quando Augusto Cocote fala de ciência, ele tem presente apenas as
ciências
especulativas de tipo físico e matemático.
4.3.3 Uma terceira observação deve ser feita. A classificação de Aristóteles
referese a "tipos" de
ciências, a tipos de conhecimento científico e não a uma enumera Tipos ção de
ciências
individualmente consideradas. de ciência Assim, ciência física, nessa
classificação, não significa
uma disciplina particular, como a Física propriamente dita, mas, sim, qualquer
ciência de tipo
natural. Tratase de espécie ou categoria de conhecimento científico, e inclui a
física (em sentido
estrito), a química, a mineralogia, a biologia etc.
Como essa classificação referese a tipos de ciência e não a ciências
individualmente
consideradas, podemos incluir na mesma as diversas ciências que estão se
constituindo
modernamente. Assim, a genética, que é uma ciência relativamente nova, cabe
perfeitamente na
classificação. É uma ciência natural ou física. Da mesma forma,
CIÊNCIA
TEÓRICA ou ESPECULATIVA
PRÁTICA ou MORAL OU ÉTICA
NORMATIVA ARTÍSTICA DCIAMENTE
D ITE TA TÉCNICA
Três sentidos
76
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
77
a aeronáutica ou a moderníssima astronáutica cabem, também, na classificação,
como ciências
técnicas. O mesmo se dá com outras disciplinas especializadas.
4.3.4 Uma quarta e última observação a Valores respeito da classificação em
causa: a cada um
desses tipos ou categorias de ciência corresponde um critério ou valor
fundamental.
Assim, à técnica, corresponde o valor "utilidade". As artes,
propriamente ditas, têm como valor fundamental Verdade o "belo". As
ciências morais, o
"bem". As ciências
especulativas, a "verdade". Em linguagem filosófica, esses valores representam o
objeto formal
dessas ciências, isto é, são o aspecto pelo qual essas diversas disciplinas
consideram a sua
matéria.
A moral estuda a atividade humana sob o aspecto do bem. A arte se ocupa das
coisas exteriores
sob o aspecto da beleza. A técnica considera as coisas exteriores, que
constituem a sua matéria,
sob o aspecto da utilidade.
Essa distinção é de grande importância para que se respeitem a formalidade e o
critério próprio de
cada ciência. O cientista propriamente dito, homem de ciência teórica ou pura,
tem ou deve ter
como preocupação fundamental a verdade. O artista, a beleza. O técnico, a
utilidade. O homem de
qualquer ciência moral, o bem. O político, legislador ou administrador, o "bem"
comum.
Esses critérios ou valores não se opõem. Como mostra a Filosofia, "verdade",
"beleza", "bem" são
aspectos fundamentais do "ser" e se correspondem. Assim, o belo pode ser
definido como o
"esplendor da verdade".
E o "bem", como a verdade enquanto fim para a ação.'9
Ou, como diz Sorokin, a verdade genuína é sempre boa e bela; a beleza genuína é
invariavelmente verdadeira e boa, e o amor genuíno é sempre verdadeiro e belo.`
5. Outras formulações 5.1 Direito e ordem
Edgard Bodenheimer, Ciência do direito, Rio, Forense, 1966, p. 185 e ss.
Onde quer que tenham criado unidades de organização social, os homens têm
procurado evitar o
caos, estabelecendo em seu lugar uma forma qualquer de ordem em que se possa
viver.
Esse anseio por padrões de ordem na coexistência humana não representa um traço
arbitrário ou
dispensável dos seres humanos. Dele está profundamente impregnada toda a matéria
de que se
compõe a natureza, e da qual faz parte a própria vida humana. A natureza nos
desvenda
uniformidades aproximadas, seqüências repetidas, associações de acontecimentos
que se
reproduzem. Pelo menos naquelas manifestações da natureza externa, que se
refletem mais
significante e decisivamente na vida humana neste planeta, a ordem parece
prevalecer sobre a
desordem, a regularidade sobre a irregularidade, a regra sobre a exceção. A
terra segue o seu
curso em redor do Sol numa órbita fixa, e em condições que permitiram a
existência da vida
durante milhões de anos. Há uma alternação de estações em que se pode confiar, e
que permite
aos homens, durante aquelas em que se produzem os alimentos, proveremse e
armazenarem
para as outras, em que o solo se mostra estéril. Os elementos do universo
físico, como a água, o
fogo e as substâncias químicas, têm características mais ou menos invariáveis,
que nos permitem
confiar nas suas propriedades permanentes e predizerlhes os efeitos ao utilizá
los para fins
humanos. Todo o nosso controle da natureza pressupõe a existência de numerosas
leis físicas,
precisas, não raro matematicamente calculáveis, em cuja atuação uniforme
confiamos, na abertura
de túneis, na navegação marítima ou aérea, no controle das inundações e no
domínio da energia
elétrica para fins industriais e outros. Os processos físicos dos seres vivos
são igualmente sujeitos
a determinadas leis.
Como na natureza, a ordem representa importante papel na vida dos seres humanos.
A sociedade
em geral, dependendo da coexistência e da cooperação, manifesta forte tendência
para a adoção
de formas ordeiras de organização. Observouse, por exemplo, que prisioneiros de
guerra
estabelecem rapidamente certas normas de conduta para o ordenamento da
existência no campo
de concentração, às vezes sem qualquer iniciativa da parte dos dirigentes do
campo. Náufragos
atirados à costa de uma ilha deserta quase imediatamente começarão a adotar um
sistema
improvisado qualquer de "governo" e "regulamentação".
A sociedade em geral, dependendo da coexistência e da cooperação de muitos
indivíduos e
grupos diversos, tem ainda maior necessidade de organização e de
,,normas".
fundamentais
Bem Belo útil
"Le bien est une propriété transcendantale de 1'être, comme le vrai et le beau.
Les propriétés
transcendantales correspondent à des vues de l'esprit. Le bien, c'est I'être vu
du point de vue de
l'action en tant que réalisant une fin, I'être consideré comme s'il avait une
fin, un but, comme s'il
existait pour réalisez quelque chose, comme s'il tendait vers cette fim raison
de son existence. Le
vrai, c'est le même être en tant qu'objet de connaissance. D'après Ia
définition, traditionelle, Ia
vérité est adaequatio rei et intellectus, l'accord de Ia chose, avec
l'intelligence; en d'autres termes,
le vrai, c'est l'être en tant que connu, c'estàdire, en tant qu'il se
manifeste à un esprit". "Le beau
est encore 1'être;
mais en tant que source de jouissance pour I'esprit. Pour I'opposer à I&
jouissance sensible, on qualifie cette jouissance d'esthétique. Lã jouissance
esthétique résulte de Ia vue de Ia perfection de 1'être et le beau est une
propriét~
transcendantale de 1'être au même titre que le vrai et le bein. Le vrai est 1'e
en tant que connu, le bien en tant que fin, le beau en tant qu'objet de
jouissancf
Quod visum placet, dit Saint Thomas, ce qui plait à Ia vue. Tout perfectio
tout bien plaêt à celui qui le connaft, done tout vérité. Tout être est bea
comme il est vrai, comme il est bon en luimême. 11 y a une beauté en tout etre,
et cette beauté est
proportionnée à sã perfection' ; J. Leclerq. Les grandes lignes de Ia
philosophie morale, ed. citada,
p. 233 e ss.
(20) Tendências básicas de nossa época, Zahar, 1966, p. 161.
78 INTRODUÇAO À CIÊNCIA DO DIREITO
Há dois tipos de estrutura social que se caracterizam pela ausência de meios
institucionais para a
criação e manutenção da ordem na vida social. Esses dois tipos são o anarquismo
e o despotismo,
nas suas formas puras e não diluídas. Embora seja difícil encontrar sociedades
que tenham
praticado (ao menos por um período de tempo apreciável) uma forma de governo
puramente
anárquica ou totalmente despótica, o exame dessas formas extremas, ou
"marginais", de
existência política e social, é útil para uma compreensão da natureza e das
funções do direito,
como instrumento da ordem social.
O anarquismo representa uma condição social em que se confere poder ilimitado a
todos os
membros da comunidade. Onde reina a anarquia, não existem regras obrigatórias e
que se
imponham ao reconhecimento de todos e que por todos devam ser obedecidas. Todos
têm a
liberdade de satisfazer aos próprios impulsos e de fazer o que lhes venha à
mente, seja o que for.
Nem Estado, nem Governo impõem limites ao exercício arbitrário do poder privado.
As opiniões divergem quanto a saber como procederiam realmente os homens se os
estados e
governos fossem abolidos, e em seu lugar se entronizasse a anarquia, como forma
legítima de
vida social e política. Homens como Bakunin e Kropotkin, adeptos de um credo de
anarquismo
coletivista, convenceramse de que o ser humano é por natureza essencialmente
bom, e de que só
o Estado e as suas instituições o corrompem. Acreditavam eles que os homens são
dotados de um
poderoso instinto de solidariedade, e que, após a necessária destruição dos
governos organizados,
eles seriam capazes de viver unidos em um perfeito sistema de liberdade, paz,
harmonia e
cooperação. Em lugar do estado coercitivo, haveria uma livre associação de
grupos livres; todo
mundo poderia integrarse no grupo de sua preferência e dele retirarse quando
lhe aprouvesse.
Leão Tolstoi acreditou também na possibilidade de uma sociedade não coercitiva,
cujos
componentes se uniriam por laços de amor recíproco. A cooperação e a ajuda
mútua, ocupando o
lugar da competição desenfreada, passariam a ser as leis supremas de tal
sociedade.
E, porém, extremamente improvável que a total eliminação do Estado e de outras
formas de
constrangimento governamental pudesse gerar uma associação harmoniosa e
imperturbável entre
os homens. Embora admitindo que a maioria das pessoas é por natureza boa e
sociável, restará
sempre uma minoria avessa à cooperação, contra a qual será preciso usar de
coação. Uns poucos
elementos desequilibrados ou delinqüentes podem com facilidade perturbar uma
comunidade.
Estatísticas recentes demonstraram, por outro lado, que uma grande prosperidade
econômica
como a que objetivam os anarquistas como base de sua sociedade ideal por si só
não soluciona
o problema da criminalidade. Independentemente da sua situação econômica, "os
homens são
fatalmente sujeitos a paixões" e até mesmo um homem normalmente racional pode,
dominado por
um impulso incontrolável, praticar um ato que a sociedade não tolerará. Por
essas razões, uma
sociedade completamente livre, não regulamentada, sem sanções comunais, parece
impossível.
Por nossa infelicidade, a ordem nas coisas humanas não se impõe por si mesma.
O extremo oposto do anarquismo na vida social seria um sistema político em que
um só homem
exercesse um poder tirânico e ilimitado sobre os seus semelhantes. Quando o
poder desse homem
se exerce de maneira totalmente arbitrária e caprichosa, estamos diante do
fenômeno do
despotismo na sua forma pura.
O verdadeiro déspota dá as suas ordens e estabelece as suas proibições de acordo
com a sua
vontade livre e irrestrita, ou satisfazendo os seus caprichos ocasionais ou as
suas disposições de
momento. Um dia, ele condenará alguém à morte por haver furtado um cavalo; no
dia seguinte
talvez absolva outro ladrão de cavalos por lhe ter este, ao ser submetido a
julgamento, contado
uma história divertida. 0 cortesão favorito pode verse de súbito encarcerado,
por ter vencido
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
um paxá numa partida de xadrez, e um escritor influente pode sofrer o castigo
imprevisível de ser
queimado vivo só por ter escrito algumas linhas que desagradaram ao tirano. Os
atos do déspota
puro são imprevisíveis porque não obedecem a qualquer padrão racional e não são
pautados por
normas ou por uma política identificáveis.
Situações de poder arbitrário, encontradas em maior ou menor grau em todos os
estados
totalitários, despertam no povo um sentimento de perigo e insegurança. Mas
existe um meio de
evitar isso. Esse meio é o direito.
5.2 Ciências humanas e ciências naturais
W. Dilthey, Introd. à l'étude des sciences humaines, Paris, Presses
Universitaires de France, 1942,
cap. II.
O conjunto das ciências que tem por objeto a realidade histórica e social será
designado nesta
obra pelo nome de ciências humanas, ou ciências noológicas
("Geisteswissenschaft").
O conjunto dos fatos que ocupam nosso espírito e que se incluem no conceito da
ciência é,
habitualmente, separado em dois grupos, dos quais um é designado pelo nome de
"ciências
naturais". E muito curioso que não exista, para designar o outro grupo,
denominação pacificamente
admitida. Adotarei o uso dos pensadores que designam este setor pelo termo
"ciências humanas"
ou "ciências do espírito" ("Geisteswissenschaft").
De um lado a expressão "ciências humanas", que foi grandemente divulgada pela
lógica de Stuart
Mill, pareceme que entrou em uso e tem significado geralmente compreendido.
Ademais, se eu a
comparo com outras denominações que não correspondem exatamente à idéia em
questão,
pareceme que é a denominação mais aproximada. Evidentemente ela exprime de uma
maneira
imperfeita o objeto do presente estudo. Com efeito, aqui, eu não separarei os
fatos da vida do
espírito da entidade psicofísica que é a natureza humana. Uma teoria que deseja
descrever e
analisar os fatos históricos e sociais não pode fazer abstração do caráter total
da natureza humana
e se limitar apenas aos fatos do espírito. Mas a denominação que proponho tem o
mesmo defeito
de todas as que se pretenderam empregar. "Ciências sociais", "sociologia",
"ciências morais",
`ciências históricas", "ciências culturais", todas essas denominações padecem do
mesmo vício:
elas são muito estreitas em relação ao objeto que pretendem exprimir. Quanto ao
nome que
escolho, ele tem pelo menos a vantagem de exprimir fortemente a natureza do
grupo central de
fatos e de que é preciso partir para ver realmente a unidade destas ciências,
para determinar sua
extensão, e para traçar, ainda que de forma imperfeita, o limite que as separa
das ciências
naturais.
Os motivos pelos quais adquiriuse o hábito de separar estas ciências das
ciências da natureza e
de fazer delas um todo à parte, brotam das profundezas da consciência que o
homem tem de si
mesmo e do sentimento do caráter total desta consciência. Antes que aflore o
desejo de procurar a
origem do espiritual, o homem encontra, nesta consciência de si mesmo, o
sentimento de que sua
vontade e soberana, que ele é responsável por seus atos, que ele pode submeter
tudo ao seu
pensamento e pode resistir a tudo, desde que se entrincheire na fortaleza de sua
pessoa, e que
essas faculdades o coloquem à parte do resto da natureza. De fato, ele se
descobre no meio desta
natureza, para retomar uma expressão de SPinoza, como imperium in imperio. E,
como não existe
para ele senão o que é um fato em sua consciência, acontece que todos os
valores, todas as
finalidades
79
80 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
da vida estão fechados neste mundo espiritual, que age dentro dele de modo
independente, e que
seus atos não têm outro propósito senão o de criar coisas novas na ordem dos
fatos do espírito.
Assim se esboça uma demarcação entre o reino da natureza e um reino da história,
e, no interior
deste último reino, no meio de um conjunto construído pela necessidade objetiva
que é a natureza,
vêse em mais de um ponto, como num relâmpago, luzir a liberdade. Neste reino da
história, os atos
da vontade ao contrário das mudanças que se operam na natureza, segundo uma
ordem
mecânica e que desde o princípio contêm em si todas as conseqüências que se
seguirão , graças
a um dispêndio de energia e a sacrifícios, cuja importância permanece sempre
presente ao
indivíduo como um fato de experiência, acabam por produzir coisas novas e sua
ação provoca uma
evolução tanto da pessoa como da humanidade. Eles ultrapassam, aos olhos de
nossa
consciência, a repetição automática dos fatos naturais, repetição esta que
alguns entendem como
o ideal do progresso histórico, e diante do qual se pasmam, como diante de um
ídolo, os
adoradores da evolução intelectual.
5.3 Ciências especulativas e operativas
L. Van Acker, Introdução à Filosofia e Lógica, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 28 e
ss.
Toda ciência implica certo processo ou movimento da razão para um fim ou objeto.
Este último
pode ser tão puramente científico que só se preste à especulação do saber
ordenado, por
exemplo: a quantidade abstrata. Neste caso temos ciências especulativas ou
puramente
científicas. Mas há outros objetos que, além de suscetíveis de conhecimento
certo pelas causas,
são naturalmente ordenados a certa execução ou obra, por exemplo: uma lei, as
dimensões de um
edifício etc. Neste caso temos ciências operativas ou analogicamente científicas
em razão do
objeto. No sentido largo, a especulação é sem dúvida operação ou ação, mas, no
sentido estrito e
etimológico, operação supõe a influência moral ou mecânica no efeito, ao passo
que especulação
lembra o espelho que reflete fielmente o objeto sem intervir na sua produção ou
mudança
(speculum aspectus). Por sua vez a operação estrita e a obra correspondente
podem ser de ordem
moral ou técnica. Donde as ciências ativas e produtivas.
A divisão escolástica em ciências especulativas e operativas é, portanto,
análoga, isto é, os
membros da divisão não têm o mesmo valor nem pertencem ao mesmo gênero. Para os
escolásticos como para os positivistas, o conhecimento certo racional é ciência
na medida em que
é especulativo. Mas como é variável essa medida, igualmente variável há de ser a
noção de
ciência. Contra os fatos é, portanto, o proceder dos positivistas recusando a
existência das
ciências práticas e querendo estabelecer homogeneidade ou univocidade exclusiva
no conceito e
na divisão das ciências. Tanto mais que os mesmos admitem que todas as artes são
aplicações
das ciências, participando, portanto, do seu caráter científico e merecendo, em
parte, o título de
ciência. A esse propósito, escreveu Pedro Lessa: "As ciências que Ihering e seus
discípulos
denominam `especulativas', em oposição ao que chamam `ciências práticas',
reproduzem uma
errônea classificação, que vem de Aristóteles, quando a verdade é que há somente
ciências (todas
da mesma natureza) e artes, ou conjuntos de preceitos de utilidade prática
baseados nos
conhecimentos
científicos; as ciências têm por missão o estudo das leis, a que
estio subordinadas
as várias classes de fenômenos".
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 81
5.4 Ciência normativa, expressão contraditória
H. LévyBruhl, "Les sources du droit les méthodes et les instruments de
travail", Introduction à
l'étude du droit, J. de Ia Morandière e outros, Paris, Rousseau,
1951, v. 1, 3.' parte, p. 256.
A atitude realista consiste em considerar as regras jurídicas como fatos, ou, se
preferirmos, como
coisas. Essa atitude se impõe a quem se preocupa em estudar o direito
cientificamente, pois a
ciência do direito não é uma ciência normativa (expressão que contém em si uma
contradição),
mas uma ciência de normas, o que é completamente diferente.
É preciso insistir sobre este ponto, que se presta a confusões intermináveis.
Para as dissipar, basta
precisar a competência de cada ciência. O cientista do direito aquele que
podemos denominar de
juristacientista é estranho, por definição, a toda ação prática; o jurista
prático, o jurisconsulto, o
advogado, o procurador, o notário etc. poderão ser levados a dar conselhos
dentro dos quadros do
direito existente e, eventualmente, a formular sugestões de lege ferenda. O
moralista poderá e
deverá apreciar a lei tomando por critério o seu ideal de justiça. Por
conseguinte se propusermos
uma questão como esta: "Tal lei parece iníqua; podemos deixar de obedecêla?" O
jurista cientista
se declará incompetente. Ele observará apenas se ela é ou não aplicada de fato.
O jurista prático
não poderá aconselhar a sua violação; quando muito fornecer argumentos que
permitam contorná
la, emendála, ou anulála. Apenas o moralista, colocandose sob o ponto de vista
da sua
consciência, poderá eventualmente aconselhar a desobediência a uma ordem emanada
do
legislador ou da autoridade legítima. Em certos casos, esta revolta consciente e
refletida é
fecunda; e a ilegalidade de hoje prefigura o direito do futuro. Outras vezes ela
permanece
esporádica e não chega a se impor à consciência social do grupo.
6. Bibliografia
BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966.
BRETHE DE LA GRESSAY e LABORDELACOSTE. Introduction à l'étude du
droit. Paris : Recueil Sirey, 1947.
BERGSON, H. L'évolution creatrice. Paris : Presses Universitaires de France,
1948.
CAVALCANTI FILHO, Theofilo. O problema da segurança no direito. São Paulo
RT, 1964.
COMTE. A. Cours de philosophie positive. Larousse, s/d.
COSSIO, Carlos. Panorama de la teoria egológica del derecho. Buenos Aires, 1949.
DEL VECCHIO, G. Filosofia del diritto. Milão : Giuffrè, 1946.
DILTHEY, W. Introduction à 1'étude des sciences humaines. Paris : PUF, 1942.
FRANCO MONTORO, A. Princípios fundamentais do método no direito. São Paulo
Martins, 1942.
GENY, F. Science et technique en droit privé positif. Paris : Recueil Sirey,
1922. 4 v. HERNANDEZ
GIL, A. Metodologia del derecho. Madri : Revista de Derecho Privado,
1945.
LESSA, Pedro Estudo de philosophia do direito. Jornal do Comércio, 1912.
8a
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
L f,GAZ y LACAMBRA. Introducción a Ia ciencia del derecho. Barcelona : Bosch,
1943.
M ARITAIN, J. La philosophie morale. Paris : Gallimard, 1960.
M,ORANDIÈRE, L. J. e outros. Introduction à 1'étude du droit. Paris : Rousseau,
1951. pL,ANIOL,
M. Traité elementaire de droit civil. Paris : Gen. de Jurisprudente, 1946, t.
1.
PONTES DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito. Rio de Janeiro
Jacinto, 1922. v. 2.
R,ADBRUCH, G. Filosofia do direito. São Paulo : Saraiva, 1940. R,AEYMAEKER, L.
Introdução à
filosofia. São Paulo : Herder, 1966. RALE, M. Filosofia do direito. São Paulo :
Saraiva, 1932.
, fCASÉNS SICHES, L. Filosofia del derecho. Barcelona : Bosch, 1936.
f. Direcciones contemporâneas dei pensamiento jurídico. Barcelona : Labor, 1936.
s. Tratado de
sociologia. Globo, 1968.
TfLLES JR., Goffredo. Filosofia do direito. São Paulo : Max Limonad, 1965. .
O direito quântico.
São Paulo : Max Limonad, 1971. VAN ACKER, L. Introdução à filosofia e lógica.
São Paulo :
Saraiva, 1932.
s. Curso de filosofia do direito. Ed. Universidade Católica de São Paulo, 1968.
VICO. G. B. Scienza
nuova. Pádua : Cedam, 1943.
3
O DIREITO
NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
SUMÁRIO: 1. A teoria no direito: 1.1 Posição do direito no quadro das ciências;
1.2 A teoria do
direito: 1.2.1 O naturalismo jurídico; 1.2.2 O formalismo jurídico; 1.2.3 O
culturalismo jurídico 2. A
técnica no direito: 2.1 Existirão no campo do direito elementos de ordem
técnica? Será o direito
uma técnica?; 2.2 Tecnicismo, utilitarismo, pragmatismo; 2.3 Arte e direito 3.
A ética e o direito O
direito como ciência normativa ética: 3.1 A posição do direito no quadro das
ciências; 3.2 O objeto
da ciência do direito; 3.3 Ciência da liberdade 4. Outras formulações: 4.1
"Uma concepção
naturalista do direito", Pontes de Miranda; 4.2 "0 caráter puramente formal da
norma jurídica", H.
Kelsen; 4.3 "O egologismo como concepção cultural do direito", Machado Netto;
4.4 "Normas de
técnica legislativa"Lei Complementar 60, de 10.07.19725. Bibliografia.
1. A teoria no direito.J
1.1 Posição do direito no quadro das ciências
De forma sintética, podemos formular as seguintes afirmações, que antecipam as
conclusões do
presente capítulo:
a) existe inegavelmente uma TEORIA do direito, constituída por todos os estudos
que se limitam
ao conhecimento do que "é" a
realidade jurídica; nesse sentido, o naturalismo, o formalismo e o culturalismo
jurídico representam
hoje as grandes direções teóricas da ciência do direito;
b) existe, também, uma TÉCNICA do direito, que não se limita ao conhecimento do
que é, mas dá
normas ao "fazer"; indica como
fazer uma petição, uma sentença, um recurso, um contrato, uma lei; c) nesse
plano podemos falar,
ainda, em uma ARTE ou ESTÉ
TICA do direito, na medida em que os aspectos estéticos, como o estilo da lei, a
eloqüência
judiciária, os símbolos e as vestes talares interferem na vida jurídica;
d) mas o direito é, essencialmente, uma ciência NORMATIVA HUMANA, MORAL; sua
finalidade
específica é ordenar a conduta
social dos homens, no sentido da justiça.
84
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
85
1.2 A teoria do direito
Existe inegavelmente uma "teoria" do direito. Quaisquer inst$_ tuições jurídicas
podem ser
estudadas teoricamente. Há uma teoria CL,, Estado, dos contratos, da
propriedade, da empresa
etc. Há, igualmente a teoria do Direito Civil, do Direito Comercial, uma Teoria
Geral cI. Direito etc.
São dessa natureza, também, os estudos sobre o homet e seu comportamento no meio
social, os
estudos do meio físico geográfico, da história, dos costumes, das instituições.
Com razão escreveu Brethe de Ia Gressaye: "O jurista deve levam em conta os
fatos resultantes
das relações sociais, que são a próprria matéria do Direito. Essa realidade é
essencialmente
concreta e, pvr conseqüência, contingente e variável. Sob esse aspecto os fatos
sociaús se
aproximam dos fatos físicos. Têm causas e estão sujeitos a te is semelhantes às
causas e às leis
da ordem física. Esse elemento experimental constitui o objeto de uma ciência
positiva, a
Sociologia jurídica, que estuda a realidade social do `Direito.' E a Sociologi
a, que Augusto Cocote
preferia denominar Física Social é uma ciêne ia teórica, no sentido em que a
definimos.
De ordem teórica ou especulativa são, também, os estudos sobwe a estrutura
social e os diversos
institutos que constituem a realida¢le social do "Direito".
A teoria do direito, diz Kelsen, quer única e exclusivamerkte conhecer seu
objeto. Procura
responder à pergunta: que é e como o direito, mas não à questão de como deve ser
ou como
convém elaborálo. É
ciência do Direito (em sentido estrito) e não política d
Direito.'
Mas, enquanto teoria, que espécie de ciência é o direito? Ciênci natural,
cultural, formal,
metafísica?
Sob esse aspecto, podemos distinguir, entre as grandes orienita ções teóricas
sobre a natureza do
direito: o naturalismo jurídico, formalismo jurídico e o culturalismo jurídico.
1.2.1 O naturalismo jurídico
No estudo teórico do direito, as concepções naturalistas reduzem a uma realidade
exclusivamente
natural ou física. É sig ficativa a expressão de Pontes de Miranda: "O direito
não é fenôme peculiar
ao homem, nem mesmo ao mundo orgânico. Podemos most lo entre os sólidos
inorgânicos, bem
como no mundo das figu bidimensionais".'
(" Introduction générale à l'étude du droit, n. 70, p. 62. z' Teoria pura do
direito, cap. 1.
(') Pontes de Miranda. Sistema de ciência positiva do Direito. Rio, Jacinto, v.
2, p. 26.
Dentro de sua concepção geral redução do direito a simples fenômeno natural
as correntes
naturalistas apresentam diferentes tendências, que divergem na caracterização da
realidade
jurídica e social:
a) as correntes "fisicistas" reduzem essa realidade a fenômenos propriamente
físicos e mecânicos;
na mesma linha do pensamento de Pontes de Miranda, podem ser Correntes citados:
fisicistas
os ensaios de "Mecânica social", de Haret,
Portuondo y Barcelo e outros que pretendem aplicar aos fatos sociais as leis da
mecânica
racional;4
os trabalhos de "Energética social", de Ostwald ou de Solvay, que opõem ao
mecanismo outra
concepção naturalista: a energia, sujeita aos princípios fundamentais da
termodinâmica, constitui a
verdadeira substância da matéria, da alma e da vida social;'
b) as correntes biologistas procuram reduzir a realidade social a elementos de
ordem biológica;
estão nesse caso:
a teoria organicista, que assimila a sociedade Correntes a um organismo vivo
ou hiperorganismo:
Lilienfeld, biologistas Schaffle, De Greef, Espinas, René Worms e, de certa
forma, Spencer;b
o "darwinismo" social, ligado ao evolucionismo mecanicista de Darwin, que
transporta para o
plano da sociedade o princípio da luta pela vida (struggle for life); a história
é o resultado de luta de
raças (Gumplovicz) ou de povos (Oppenheimer);7
as concepções racistas de Gobineau, Chamberlain, Lapouge e outros;'
a escola antropológica de direito penal: o crime é uma fatalidade biológica e
os indivíduos
nascem delinqüentes, como nascem idiotas, cegos ou surdos; é o pensamento de
Lombroso, que
teve continuadores em Ferri, Garofalo;9
Sobre a concepção fisicista, ver Pontes de Miranda, ob. cit.; A. Cuvillier,
Manuel de sociologie, Paris, PU, 1967, § 28 e ss.; Gilberto Freyre. Sociologia,
José Olímpio. 1945;
Machado Netto, Introdução à ciência do Direito, v. 2 ("Sociologia jurídica"),
São Paulo, Saraiva,
1963.
Bibliografia citada. V., ainda, Recaséns Siches, Tratado de sociologia, Globo,
1968, v. 1, p. 78.
Sobre o organicismo, v. Cuvillier, ob. cit., §§ 15 e 31; Recaséns Siches. ob.
Obras citadas. Cuvll erl §§ 15 ar32; Recaséns Siches, p. 1, p. 80 e 392;
Gilberto Freyre, v. 2, p.
295.
Bibliografia citada.
V. "Escola Positiva do Direito Penal", no item 3.3 do cap. 9, na segunda parte
deste livro, além da
bibliografia citada.
(4)
(5) (6) (7)
(e)
(9)
8C INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
c) as correntes psicológicas, cuja tendência é explicar a vida social através de
fenômenos
psicológicos, como:
a teoria da imitação de Gabriel Tarde: as ciências sociais nada devem esperar
da biologia; na
realidade elas constituem uma "Psicologia
intermental" ou uma "interpsicologia"; para Tarde, o fenômeno social fundamental
é a imitação, em
sentido amplo; e o método social básico é a introspecção; invenção e imitação
explicam toda a
vida social;
a psicologia social, de MacDougall e a psicologia das multidões, representada
por Gustave Le
Bon, Wundt, Lazarus, Sighele e outros, que sustentam a existência de leis
próprias do psiquismo
coletivo;
a extensão da teoria psicanalítica de Freud ao plano social, de que é exemplo
seu livro Totem e
tabu, que se apresenta como uma interpretação da vida dos povos primitivos pela
Psicanálise e
das normas sociais por elementos de ordem sexual;
a psicossociologia americana e, especialmente, a "teoria social do espírito",
de George Mead,
autor de O espírito, eu e a sociedade (Mind, self and society): que define a
realidade social como
um "conjunto dinâmico de respostas e comportamentos diante de estímulos
diferenciados";10
d) as correntes do naturalismo sociológico ou "sociologistas" afirmam:
a especificidade do social: o fato social não se reduz a fatos correntes
sociologistas, psicológicos,
biológicos, ou químicos; os fatos sociais, diz Durkheim, não são simples
produtos de consciências
individuais, mas o resultado de uma "consciência coletiva"," distinta das
consciências subjetivas,
síntese original em relação a estas, tal como a célula viva é uma síntese
original em relação aos
átomos que a compõem;
tais fatos os fenômenos sociais , como os fenômenos biológicos, químicos ou
físicos, são
simples fenômenos naturais, regidos pelo mesmo princípio determinista, que rege
aqueles setores
da natureza, e devem ser estudados por uma ciência natural, que A. Cocote
denomina "física
social" ou "sociologia";
essa é a única ciência geral da sociedade; o Direito, a Política, a História
são ciências sociais
especializadas.
(10' Sobre as diversas correntes psicológicas, v. obras citadas: Gilberto
Freyre, v. 2, p. 331;
Cuvillier, §§ 16 a 42; Recaséns Siches, v. 1, p. 363.
Jung afirma existir um inconsciente coletivo de cujo conteúdo os seres
individuais sofrem
influências. O eu e o inconsciente, 6.' ed., Rio, Vozes, p.
3 a 13.
Entre as escolas representativas da corrente sociologista, podem ser indicadas:
a Escola Sociológica francesa, inspirada no pensamento de A. Cocote, fundada
por E. Durkheim
e desenvolvida por LévyBruhl, Georges Davy e outros;
a doutrina sociológicojurídica de L. Duguit e na Alemanha a sociologia
jurídica de Niklas
Luhmann;
a corrente da jurisprudência sociológica, de Holmes, Cardozo e Roscoe Pound,
nos Estados
Unidos;
o sociologismo economicista de inspiração marxista, sustentado na Rússia por
Pashukanis,
Stuchka e outros. 12
1.2.2 O formalismo jurídico
Com o objetivo de fazer uma "Teoria Pura do Direito", Kelsen
elimina do campo da ciência jurídica propriamente dita:
a) todos os elementos sociológicos ou dados da realidade social,
que constituem objeto da "Sociologia do Direito";
b) todas as considerações sobre valores, como a justiça, a
segurança, o bem comum, ou outros, cujo estudo cabe à Filosofia do Direito.
Feitas essas duas "purificações", resta para a ciência jurídica a consideração
do direito como pura
norma. O objeto da ciência jurídica é conhecer normas e não prescrevêlas.
Ao jurista propriamente dito, ao contrário do sociólogo ou do
filósofo do direito, não interessa o conteúdo ou o valor das normas, mas apenas
sua vinculação
formal ao sistema normativo.
Direito é norma. E norma é uma proposição hipotética (condicional), cuja
estrutura é a seguinte:
"Se A é, deve ser B".13
Em que A é a condição jurídica (por exemplo, um furto) e B a conseqüência
jurídica (no caso, a
pena de prisão). Ou, de outra forma, dada a não prestação, deve ser a sanção:
"Dada a não P, deve ser S".
Se o cidadão não votou, deve ser multado; se o inquilino não pagou o aluguel,
deve ser despejado;
se o contrato não respeitar
Sobre as correntes sociológicas, v. E. Durkheim, As regras do método
sociológico, São Paulo,
Melhoramentos; L. Duguit, Traité de Droit Constitutionne1, Paris, 1921, v. 1,
cap. 1.°, § 3.° e ss.,
além das obras citadas.
Hans Kelsen,
Teoria pura do direito, Coimbra, Arménio Amado, 1962, p. 49 e ss.
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
87
Correntes psicológicas
88
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
89
condição essencial, deve ser anulado; dessa categoria são todas as normas de que
se ocupa o
direito. E, como diz Kelsen, "essa categoria do direito tem caráter puramente
formal"." Dessa
norma, formalmente considerada, e não de seu conteúdo é que se ocupa a ciência
ou a teoria pura
do direito.
Ao formalismo jurídico correspondem, no plano geral das ciências sociais, as
diversas tendências
da sociologia formalista, representadas pelas doutrinas de Simmel, Wiese e
outros."
1.2.3 O culturalismo jurídico
Outra é a perspectiva em que se colocam as concepções culturalistas. Para estas,
a ciência do
direito deve partir de uma distinção preliminar entre "natureza" e "cultura" e
conseqüentemente
entre:
"ciências naturais", como a física, a química, a biologia etc., que se ocupam
da natureza física ou
material e;
ciências culturais ou humanas, como a história, a economia, a sociologia e
outras que se ocupam
do espírito humano e das transformações que ele introduz na natureza.
Essas transformações ou realizações do espírito humano constituem os "objetos
culturais". Nestes
podem distinguirse dois elementos:
o suporte ou substrato;
o sentido ou significado.
Num utensílio, num gesto, num escrito pouco adianta conhecer ou descrever a
realidade física, que
é apenas o "suporte" de um "sentido". O importante é "compreender" esse
"sentido' ou
significação, que está sempre ligado a um valor, porque o homem sempre age em
função de
valores.
Assim, o direito não é uma simples realidade física ou natural (naturalismo),
nem um esquema
meramente formal (formalismo), mas um objeto cultural, isto é, uma realização do
espírito humano,
com um suporte (ou substrato) e uma significação.
Segundo Carlos Cóssio, esse suporte ou substrato pode ser:
um objeto "físico", como o mármore, o papel, a tela, e teremos então objetos
culturais
"mundanais" e objetivos;'
(141 H. Kelsen, loc. cit.
1151 Sobre G. Simmel, Von Wiese e a Sociologia formal, ver, além das obras
citadas, N.
Timasheff, Teoria sociológica, Zahar, 1965, p. 137 e ss. e 374 e ss.; T. B.
Bottomore, Introd. à
sociologia, Zahar, p. 57.
"" Aos objetos culturais "objetivos" ou "mundanais" corresponde o "espírito
objetivo", de Hegel, e a
"vida humana objetivada", de Recaséns Siches. i
ou a própria "conduta humana" subjetiva, pois é inegável que a vida humana
"biográfica" distinta
da "biológica" é também uma realidade ou objeto feito pelo homem: a vida
humana não nos é
dada feita, nós é que a fazemos no esforço de cada dia; em oposição aos objetos
culturais
"mundanais", diz Cóssio, a conduta humana é um objeto cultural "egológico" (de
"ego") ou
subjetivo.
Essa distinção nos permite fixar as duas orientações em que se dividem as
correntes culturalistas:
a teoria cultural objetiva, de que são representantes, entre outros, Dilthey,
Spranger, Schmidt,
Ortega y Gasset, Recaséns Siches;
a teoria "egológica" do direito, representada por Carlos Cóssio, Aftalion e
outros, para quem o
objeto da ciência do direito não é a "norma" objetiva, mas a "conduta em
interferência
intersubjetiva".'7
2. A técnica no direito
2.1 Existirão no campo do direito elementos de ordem técnica? Será o direito uma
técnica?
Como vimos, a técnica "ciência técnica", em sentido amplo é um dos ramos da
ciência prática
ou normativa.
Seu objeto é o estudo ou o conhecimento das
"normas" para "fazer" corretamente alguma coisa. Nesse sentido, a arquitetura, a
cirurgia ou a
contabilidade, como técnicas, consistem fundamentalmente no conhecimento das
"normas" para
"fazer" corretamente planejamentos, operações cirúrgicas ou escriturações de
contas.
Os antigos definiam a técnica como a recta ratio factibilium, em oposição à
ciência moral, definida
como recta ratio agibilium. A ciência técnica e a ciência moral consistem sempre
em saber: "fazer"
corretamente, no primeiro caso, saber "agir", no segundo."
Nesses termos, existirá uma técnica jurídica? Qual o seu alcance?
É inegável a existência de aspectos técnicos no campo do direito: técnica
processual, técnica na
interpretação das leis, técnica na formulação da sentença etc.
Alguns autores, como Garcia Maynez, reduzem o campo da técnica jurídica ao da
"aplicação do
direito objetivo a casos concretos"."
071 Sobre as correntes culturalistas, ver, além da bibliografia citada, Miguel
Reale, Filosofia de
Direito, Saraiva, 1987, v. 1; Machado Netto, ob. cit., p. 37 e ss.; Carlos
Cóssio, Panorama de la teoria egológica del Derecho, Buenos Aires, 1949.
Sobre a distinção entre o "agir" e o "fazer", ver Capítulo 2, item 4.2. Garcia
Maynez, Introducción al
estudio del derecho, México, Porrúa, 1949, ri. 65 e 161.
Direito
e técnica
90
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
91
Mas este é apenas um setor da técnica jurídica. Esta abrange, na realidade,
múltiplos setores, que,
em síntese, podem ser assim indicados:
a) há uma técnica de elaboração das normas jurídicas; é a técnica
legislativa, que inclui todo o processo de feitura Técnica das leis, desde a
apresentação do projeto:
sua legislativa redação, discussão, aprovação etc. até sua sanção
e publicação;20
b) há uma técnica de interpretação das leis, chamase hermenêutica
jurídica, definida por Carlos Maximiliano, como Técnica de ` o estudo e a
sistematização dos
processos apliinterpretação cáveis para determinar o sentido e o alcance
das
expressões do direito";21
c) há uma técnica de aplicação das normas jurídicas, aos casos
concretos; essa aplicação pressupõe a interpretaTécnica ção, mas não se confunde
com ela;
"aplicar o de aplicação direito" significa enquadrar um caso concreto na do
direito regra ou
norma jurídica adequada,22 o que pres
supõe o conhecimento do sentido e alcance da norma jurídica e, portanto, sua
interpretação; a
"aplicação" é a operação final, posterior ao exame do "significado" da norma; é
nessa acepção que
os vocábulos figuram no título da obra clássica de Carlos Maximiliano:
Hermenêutica e Aplicação
do Direito; é preciso lembrar, ainda, que a aplicação do direito aos casos
concretos não é feita
apenas pelos juízes, em suas decisões ou sentenças, mas por quaisquer
autoridades ou
particulares sempre que estejam enquadrando casos concretos nas leis ou outras
regras jurídicas
vigentes: aplicação de multas, celebração de contratos, registros de documentos
etc.
d) há uma técnica processual, que consiste no conjunto de meios
adequados para conduzir uma ação em juízo: Técnica "processo", define Chiovenda,
é o
"complexo dos processual atos coordenados ao objetivo da atuação da von
tade da lei (com respeito a um bem que se
pretende garantido por ela) por parte dos órgãos da jurisdição ordinária";23
entre nós, o Código de
Processo Civil fixa rigorosamente as normas disciplinares de todo o processo
civil e comercial:
desde a petição inicial, as citações, notificações e intimações, a contestação,
a reconvenção, os
despachos do juiz, as provas, a audiência, a sentença, até os recursos e a
execução das
sentenças; paralelamente, o Código de Processo Penal estabelece as normas que
regem os
processos em matéria penal, em todo o território brasileiro, regulando o
inquérito policial, a
denúncia pelo Ministério Público, as provas, o exame do corpo de delito, as
perícias, o
interrogatório do culpado, das testemunhas, a prisão em flagrante, a prisão
preventiva, o
julgamento, a sentença, os recursos, a execução das penas, o livramento
condicional, a graça, o
indulto, a anistia, a reabilitação; o mesmo ocorre
com o processo trabalhista,
fiscal, administrativo
etc.
2.2 Tecnicismo, utilitarismo, pragmatismo
Em todos esses aspectos, a técnica jurídica se caracteriza como um conjunto de
normas
destinadas à efetiva realização do direito em determinado meio social. Ou, como
diz Pontes de
Miranda, o "conjunto de meios para procurar e fixar as regras jurídicas (técnica
legislativa) ou
interpretálas e aplicálas (técnica exegéticoexecutória)".24
Ou ainda, no dizer de Kohler, "técnica jurídica é o processo de pesquisa do
justo, segundo o direito
vigente".25
São tão amplos os aspectos técnicos no campo do direito que alguns autores
pretendem reduzir
todo o direito
a uma técnica. Para esses autores, como diz um de seus representantes, Adolfo
Ravá: o direito é
• meio para a manutenção da sociedade. É significativo, nesse sentido,
• título de seu trabalho: "O direito como norma técnica". Considerar
• direito como norma técnica, diz Ravá, embora possa, à primeira vista, parecer
um paradoxo, não
está muito longe do conceito que dele fazem comumente os juristas e os leigos.
As normas
jurídicas são consideradas e tratadas pelos legisladores e pelo povo como
"meios" para obter
determinados "efeitos" e alcançar determinados "fins", isto
palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente
(23, um interesse humano", Carlos Maximiliano, ob. cit., n. 8, p. 19.
Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, Saraiva, 1942, v.
1, p. 71. V. tb. a
respeito Arruda Alvim, Manual de Direito Processual Civil, Ed. RT, 1977, v. 1,
p. 4 e 5, e Moacyr
Amaral Santos, Primeiras Linhas
(24 de Direito Processual Civil, 5.' ed., Saraiva, v. 1, p. 8 e 9.
25) Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do Direito, 1922, v. 2, p.
238. Apud Pontes de
Miranda, loc. cit.
Tecnicismo
20)
(22)
Sobre a técnica legislativa, ver Lei Complementar 60, de 10.07.1972, que "fixa
normas técnicas a
serem observadas na elaboração de Leis e decretos"; A. Torré,
Técnica legislativa, n. 19 a 24, p. 255256, da Introducción al Derecho, Buenos
Aires, Perrot, 1957;
Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do Direito, Saraiva, 1969, p.
185 a 188. Carlos
Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, Freitas Bastos, 1947, n. 1, p.
13: "Interpretar é
determinar o sentido, e o alcance das expressões do direito". O problema da
interpretação das
normas jurídicas é examinado na terceira parte, Capítulo 12, do presente
trabalho.
"A aplicação do Direito submete às prescrições da lei uma relação da vida real;
procura e indica o
dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras
92 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
93
é, normas de caráter "instrumental", meios adequados para chegar a determinados
fins .26
O tecnicismo de Ravá, que ele próprio aproxima do pensamento de Fichte, insere,
de modo
original, o direito dentro de uma elevada concepção ética.`
Outros autores consideram também o direito como simples instrumento para a
manutenção da
sociedade, mas concebem a moral igualmente como simples meio, dentro de uma
concepção
utilitária da vida.
As doutrinas utilitaristas negam ao direito um fundamento ético ou moral, e
reduzem a justiça à
utilidade. Suas origens históricas podem ser encontradas na escola hedonista ou
cirenaica, de
Aristipo, cujas idéias foram desenvolvidas em Atenas, por Epicuro. Nos tempos
modernos, o
utilitarismo foi retomado, principalmente na filosofia inglesa, por Jeremias
Bentham (17481832), J.
Stuart Mill (18061837) e H. Spencer (18201903).28
Na mesma linha, deve ser mencionada a concepção pragmatista e, especialmente, o
pragmatismo
jurídico. Partindo de uma teoria do conhecimento, a doutrina prag mática pode
resumirse nisto,
disse Duguit: "A verdade de uma afirmação se julga pelo valor de suas
conseqüências ou
resultados". A eficácia é o critério da validade de qualquer conhecimento. O
pragmatismo
desenvolveuse principalmente nos Estados Unidos, com Ch. Pierce (18931914),
William James
(1842 1910), John Dewey (18591928) e outros, que o aplicaram ao campo da
educação, da
política, do direito e das demais ciências humanas.
Do pragmatismo jurídico que foi uma das concepções da moda na primeira parte
deste século,
até as duas guerras mundiais ocuparamse, entre outros, Duguit 29 e
Quintiliano Saldana.3o
De qualquer forma deixando de lado as concepções que exageram sua importância
é inegável
que a técnica ocupa importante setor no campo do direito. É ela o instrumento
que o especialista
deve utilizar com perfeição para alcançar os resultados que constituem a
finalidade, a razão de ser
do direito, isto é, a justiça.
(26) Adolfo Ravá, Diritto e Stato nella morale idealista. 1 "Diritto come
norma
tecnica". II "Lo Stato come organismo ético", Pádua, Cedam, 1950, p. 31 a 33.
121' O Estado é
um organismo ético. O direito é uma norma técnica. V. ob. cit.,
p. 5 a 9.
¢8' V. "O utilitarismo", em Ciência do Direito, E. Bodenheimer, p. 101 a 107.
"Teoria de l'utilitarismo", Del Vecchio, em Filosofia dei Diritto, p. 334 e ss.
(29) L. Duguit, El
pragmatismo jurídico, Madri, Beltran, 1924, p. 65. 10' Teoria dei derecho eficaz
pragmatismo
jurídico; Teoria programática dei
derecho penal, Madri, 1923, além de um estudo crítico sobre El pragmatismo
jurídico de Duguit.
2.3 Arte e direito
Cabem aqui algumas considerações sobre o que se poderá chamar a arte ou estética
do direito.
Em sentido lato, "técnica" e "arte" se identificam. Etimologicamente, o vocábulo
"técnica" provém
do grego techné, que significa "arte". Nesse sentido a medicina é "arte" de
curar e a engenharia
"arte" de construir. Entretanto, em sentido estrito, a arte, propriamente dita,
ou estética, referese à
produção do "belo". Distinguese, por aí, da técnica, cujo objeto é o "útil".
Sob esse aspecto, haverá no direito elementos de ordem artística? Existirá uma
estética do direito?
Observou Radbruch 3i que, como toda manifestação da cultura, o direito carece
também de meios
materiais de expressão. Exemplos: a linguagem, os trajes, os símbolos, os
edifícios. E, como todos
os meios de expressão material, também aqueles que o direito utiliza são
suscetíveis de uma
valoração estética. Mais ainda, como todos os fenômenos que conhecemos, o
direito pode ser
também matéria de arte e entrar deste modo no domínio da estética. Podemos,
assim, falar de
uma estética do direito, embora até hoje não se tenham tentado, neste capítulo,
mais do que
simples aproximações e fragmentos.
O estilo do direito, observa o mesmo autor, é uma linguagem fria. Renuncia a
toda nota
sentimental. E áspera. Dispensa, também, toda indicação de motivos. É sóbria e
concisa,
renunciando igualmente a toda doutrinação das pessoas a quem se dirige. Assim se
explica a
pobreza intencional do chamado "estilo lapidar" da lei, que serve para exprimir,
com uma clareza
inexcedível, a forte consciência que o Estado tem de si mesmo quando ordena.
Linguagem que, na
sua minuciosa exatidão, pôde servir de modelo estilístico a um escritor como
Stendhal, que lia
diariamente uma página do Código Civil,
Aliás, os Códigos mais importantes de cada país representam, ao mesmo tempo, os
grandes
monumentos do respectivo idioma. O Brasil não fugiu à regra. A propósito da
redação do Código
Civil brasileiro, travaramse, entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro, as
discussões mais profundas
sobre a língua portuguesa."
A oratória forense, os símbolos do direito, a toga do magistrado, a beca do
advogado, constituem
outros tantos elementos estéticos que encontramos a cada passo na vida do
direito.
G. Radbruch, Filosofia do direito, § 14.
32j V. "Parecer sobre a redação do Código Civil". Senador Rui Barbosa,
03.04.1902;
"Ligeiras
observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa, feitas à redação do Projeto do
Código Civil",
E. Carneiro Ribeiro, 25.09.1902; "Réplica às defesas da redação do projeto da
Câmara", Rui
Barbosa, 31.12.1902; "Tréplica" ("A redação do Projeto de Código Civil e a
Réplica
Utilitarismo
Pragmatismo
94
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
95
À "Arte del diritto", dedicou Camelutti 33 uma de suas famosas monografias. E
outros juristas têm
igualmente se ocupado do tema.
3. A ética e o direito O direito como ciência normativa ética 3.1 A posição do
direito no quadro das
ciências
Vimos que, se considerarmos as ciências em sua acepção mais ampla, podemos
classificálas em
três modalidades fundamentais:
a) algumas se limitam a conhecer "o que é"; são as ciências teóricas ou
especulativas;
b) outras procuram orientar a conduta dos homens, indicandolhes "como agir"; são
as ciências
éticas ou morais;
c) outras, finalmente, orientam a atividade produtiva ou as realizações externas
do homem,
indicandolhe "como fazer"; são as ciências técnicas ou artísticas.
Qual a posição do direito, dentro desse quadro?
É este um dos problemas centrais da epistemologia jurídica. E sobre ele dividem
se autores e
correntes. Como vimos, alguns tendem a reduzir o direito a uma "teoria" pura.
Outros, a uma
simples "técnica". Outros, ainda, a mero capítulo da "moral".
Na realidade os aspectos teóricos, técnicos e éticos do direito não se excluem,
mas se completam.
O direito pode ser considerado sob a
tríplice perspectiva de teoria, técnica e ética. A divergência entre as escolas
situase principalmente
na preeminência atribuída a esses diferentes aspectos.
Resumindo nosso pensamento sobre o assunto, diremos que é inegável a existência
de uma
"tecnica" e uma "técnica" e uma "estética" no direito. E cada uma tem sua
função, como
mostramos nos parágrafos anteriores. Mas o direito é, essencialmente, uma
ciência "ética", moral
ou humana. Ou, de forma mais precisa, uma ciência normativa ética.
A finalidade do direito não é o simples conhecimento "teórico" da realidade
jurídica, embora esse
conhecimento seja importante. Não
do Dr. Rui Barbosa"), E. Carneiro Ribeiro. Pormenores da histórica polêmica
poderão ser
encontrados no Código Civil Comentado, de Clóvis Beviláqua, v. 1, n. 39 e ss., e
nas seguintes
publicações da Casa de Rui Barbosa: Rui
e a Réplica, Américo de Moura, 1949; Rui e o Código Civil, San Tiago Dantas,
1949; Repertório da
Réplica, M. S. Mendes de Morais.
"' F. Carnelutti, Arte del diritto, Pádua, Cedam, 1949.
é também a formulação de quaisquer regras "técnicas", eficazes e úteis, apesar
da grande
importância da técnica jurídica. A finalidade do direito é dirigir a conduta
humana na vida social. É
ordenar a convivência de pessoas humanas. É dar normas ao "agir", para que cada
pessoa tenha
o que lhe é devido. É, em suma, dirigir a liberdade, no sentido da justiça.
Inserese, portanto, na categoria das ciências normativas do agir, também
denominadas ciências
éticas ou morais, em sentido amplo. Para evitar confusões, é preciso lembrar que
o vocábulo
"moral" pode ser empregado em duas acepções diferentes. Uma, estrita e hoje mais
corrente, que
identifica moral com a disciplina dos atos humanos, fundada na consciência. E
outra, mais ampla,
abrangendo todas as ciências normativas do agir humano; pedagogia, política,
direito moral em
sentido estrito etc. Muitos preferem reservar a palavra "ética" para essa
acepção ampla. Teríamos,
assim, o esquema seguinte:
MORAL (sentido estrito) DIREITO
POLÍTICA PEDAGOGIA ETC.
Nesse sentido, podemos dizer, com Vicente Ráo, que "Moral e Direito têm um
fundamento ético
comum".34 Ou, com Jellinek, que o direito é o "mínimo ético", isto é, o
estritamente necessário
para a convivência social.
3.2 O objeto da ciência do direito
Essa caracterização do direito como ciência ética não mas essencial, porque
decorre de seu
próprio objeto. Toda ciência se caracteriza essencialmente por seu objeto. E
este se divide em
material e formal. Objeto material é o setor da realidade de que se ocupa cada
ciência. Objeto
formal é o aspecto pelo qual a ciência considera ou estuda esse setor da
realidade.
O objeto material das ciências éticas é, como vimos, a atividade humana. O
objeto formal é o bem.
Elas têm por objeto ordenar ou dirigir a atividade humana no sentido de bem,
seja o bem pessoal,
seja o bem comum.
Qual o objeto do direito?
(74' Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952,
v. 1, n. 21, p. 68.
Perspectiva teórica ética
e técnica do direito
ÉTICA (ou MORAL em sentido amplo)
Direito ciência normativa ética
é acessória,
Objeto
da ciência elemento essencial
96
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 97
Atividade humana social (objeto material)
Fundamentalmente, o objeto material do direito é o homem vivendo em sociedade. E
a atividade
social do homem, ou, como diz Cóssio, é a "conduta humana em interferência
intersubjetiva".35 O
homem vive em sociedade, e esta implica necessariamente relações de família,
relações
econômicas, políticas, profissionais etc. Essas relações consti
tuem a matéria do direito. Não podemos sequer pensar os predicados de "justo" ou
"injusto",
"direito" ou "crime" senão aplicandoos a uma atividade humana, lembra Del
Vecchio.3ó Os puros
fenômenos naturais (astronômicos, atmosféricos etc.) recusam tais atributos, são
estranhos à
perspectiva do direito, que não tem sentido para eles. O direito se refere
sempre a ações humanas.
Mas o direito se ocupa dessa matéria sob um aspecto especial: o da justiça.
Importa
fundamentalmente ao direito que, nas relações sociais, uma ordem seja observada:
que seja
assegurada a cada um aquilo que lhe é devido, isto é, que a justiça seja
realizada. Podemos dizer
que o objeto formal do direito é a justiça.
reúne, assim, as duas características de uma ciência
normativa ética:
a) tem por objeto material a "atividade humana" (social);
b) e por objeto formal o "bem", em um de seus aspectos fundamentais, que é a
justiça; a justiça é o
"bem em relação a outrem", definiu Platão.
Donde se conclui que o direito é fundamentalmente uma ciência
normativa ética. Ou, como diz Dei Vecchio, o Direito direito é a coordenação
objetiva das ações
posclencla síveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ética ético
que a determina."
3.3 Ciência da liberdade
Mas essa conclusão precisa ser bem entendida. Afirmamos que o direito pertence à
categoria geral
das ciências morais ou humanas. Ciência moral é tomada aqui, como vimos, no
sentido lato e se
refere a toda ciência que tenha por objeto ordenar a atividade ou o
(33) Carlos Cóssio, Panorama de Ia teoria egológica dei Derecho, Buenos Aires,
1949.
36) Dei Vecchio, Filosofia dei diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. 197.
(37) Ob. cit., p. 207. A definição do direito de Dei Vecchio é mais extensa:
"Possiamo definire el
diritto come il coordinamento objetivo delle azione possibili ira piìr soggetti,
secondo un principio
etico che le determina, escludendone 1'impedimento" (Filosofia dei Diritto, p.
207).
comportamento humano. E não o sentido estrito e limitado de moral individual ou
pessoal. E, como
a característica fundamental da atividade humana é a liberdade, podemos dizer
que o direito é
ciência da liberdade.
Nesse sentido o direito é uma das ciências éticas, ao lado da moral (em sentido
estrito) e das
demais ciências normativas da conduta.
Sob esse aspecto, colocase o problema da distinção entre o "direito" e a moral
(em sentido
estrito). Essa distinção processouse historicamente, desde as Direito normas
indiferenciadas dos
povos primitivos até e
moral os códigos modernos, através de lento
desenvolvimento, que tem sido
estudado por etnólogos, filósofos e historiadores do direito.` De uma forma
geral, nem mesmo os
juristas romanos fizeram, com clareza, essa distinção.
A afirmação de Paulo: "Nem tudo que é lícito é honesto" ("non omne quod licet
honestum est"),
mostra um aspecto prático dessa distinção entre direito (lícito) e moral
(honesto), mas não
apresenta nenhum critério objetivo para distinguilos. Só em época relativamente
recente, no início
do séc. XVIII, surge com Cristiano Tomasio uma explicação fundamentada dessa
distinção: a moral
se refere só ao foro interno (forum internum) e o direito ao foro externo (forum
externum),
conseqüentemente a moral não é coercível, mas o direito é.39 Esse é, também, de
certa forma, o
pensamento de Kant e de outros autores. E, apesar das restrições que podem ser
feitas a essa
concepção, ela contém em germe os elementos fundamentais para a distinção entre
o direito e
moral, que Del Vecchio sintetizou em fórmula lapidar: o Direito constitui a
ética objetiva e a moral, a
ética subjetiva .4o
Afirmamos que a justiça representa o valor fundamental ou o objeto formal do
direito. Como disse
Brunschvicg: "Em cada um dos juízos do direito, é a justiça justiça em
que está em causa" .41 sua acepção
Mas é preciso ter presente que a palavra ampla "justiça" é aí empregada em sua
acepção mais
Sob aspecto da justiça (objeto formal)
O direito
(38)
(39)
(40) 4))
V. "Direito" e "Moral" em Dicionário de Etnologia e Sociologia, Herbert Baldus e
Emilio Willems,
São Paulo, Ed. Nacional; "Derecho y Moral" (Estudo sistemático da distinção
entre direito e moral),
in Introducción ai derecho, A. Torré, Buenos Aires, Perrot, 1957, p. 120 a 130;
Machado Neto,
"Moral e direito", em Introdução à Ciência do Direito, v. 2, p. 201 a 205;
"Relazioni ira diritto e
morale", G. Dei Vecchio, in Filosofia dei diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. 204
a 215.
Cristiano Tomasio, Fundamenta Juris Naturae et Gentium, obra publicada em 1705.
Dei Vecchio, Filosofia dei Diritto, p. 205.
L. Brunschvicg: "Dans chacun des jugements du droit Ia justice est toute entière
en cause". La
modalité du jugement.
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
99
ampla. Estendese não apenas à justiça particular (comutativa e distributiva),
mas também à justiça
social ou geral, que tem por objeto o bem comum. De modo que as noções de ordem
pública,
segurança, interesse social e outras semelhantes, contidas na noção de bem
comum, estão
também contidas no conceito de "justiça".
Esse mesmo pensamento é assim exposto por Geny: "No fundo, o Direito não
encontra seu
conteúdo próprio e específico senão na noção de 'justo', noção primária,
irredutível e indefinível,
que implica, essencialmente, não apenas os preceitos elementares de não
prejudicar a ninguém
(neminem laedere) e de dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), mas
também o
pensamento mais profundo de um equilíbrio a estabelecer entre os interesses em
conflito, com a
finalidade de assegurar a 'ordem' essencial à manutenção e ao progresso da
sociedade
humana".42
Nessa perspectiva, a ordem jurídica nada tem de imobilizadora. Pelo contrário,
ciência prática,
orientada permanentemente no sentido da realização da justiça, o direito só se
realiza plenamente
na medida em que respeita seu caráter dinâmico, como elemento da ação
transformadora do
homem na história.
O direito não é uma ciência natural, a estudar as manifestações da vida social e
humana como se
fossem "coisas" ou simples fenômenos físicos. O homem não é um "objeto" passivo,
nem mero
espectador da realidade. Dentro de certos limites, é ele que imprime ordem no
mundo. E o direito
é, de certa forma, instrumento dessa ação transformadora do homem.
4. Outras formulações
4.1 Uma concepção naturalista do direito
Pontes de Miranda, Systema de Sciencia Positiva do Direito, Rio, Ed. Jacinto,
1922, v. II, p. 83 a 85
e ss.
Afirmar que o direito é produto exclusivo do meio humano equivale a pregar
filosofia em que o
homem ocupa todo o espaço, em vez do simples lugar, realmente importante, que
lhe cabe, no
meio da série animal. Onde há coexistência, há direito.
Quando o mineral se cristaliza em poliedros há certo ritmo que, se não é o
"nosso" direito, deve ser
algo de vivo e de natural como ele. E a vontade? E a consciência?, perguntarse
á. Mas nada
importa isto; quando o homem constrói casa, também
parece que é voluntariamente que o faz e, todavia, no essencial, o que determina
é a mesma
necessidade que leva o pássaro aos esforços da nidificação. Distinguir do
necessário o voluntário
e querer traçar raias entre eles é retomar o fio dos problemas metafísicos
insolúveis. O que há de
menos livre no homem é justamente
42' F. Geny, Sclence et technique en droit privé positif, Paris, Recueil Sirey,
1922, 1, v. 1, n. 16, p.
50.
a vontade, forma "imperativa" de circunstâncias inferiores. É a responsabilidade
um dos elementos que nos dão a idéia da natureza humana do direito; mas a
própria
responsabilidade, que passa por fundamento da repressão e da restituição, nada
mais é que um dos processos necessários ao desenvolvimento da vida humana,
um dos meios psicológicos para corrigir defeitos mais ou menos graves de
adaptação
à vida em comum, à coexistência. Entre os outros animais, não será ele preciso;
mas o homem pensa e é de mister a noção de responsabilidade, único conetivo
que as energias vitais dele encontraram para combater os efeitos e as causas dos
defeitos da adaptação resultante da convivência de seres pensantes, como o
homem.
Assim, facilmente se compreenderá a razão da interdição dos loucos e
deficientes. A noção de
responsabilidade serve de coordenador entre os homens, processo de solução
biológica, tão
natural como outros que no mundo animal se encontram e até entre homens; e, puro
expediente
criado pela coexistência de seres pensantes, pela sociedade, deixa de existir
onde não há, entre
homens, a elaboração de processos atinentes a remover obstáculos à adaptação
social: indígenas
antropófagos não poderiam nunca comer indivíduos da mesma tribo sem a "motivação
jurídica",
que é o corolário da responsabilidade. O interdito não tem mais, em condições da
função normal, o
aparelho para o qual criou a natureza humana a noção de responsabilidade. Esta
somente existe
porque é preciso disciplinar a atividade psíquica; se não houvesse o aparelho do
espírito humano,
no que ele tem "acima" dos outros animais, não seriam necessários "outros"
processos de
adaptação social, senão os vigentes entre os demais seres; não haveria a noção
de
responsabilidade, nem, pois, interditos (anormais civis), nem irresponsáveis
(anormais do direito
repressivo). Na ciência, não há, portanto, nenhum lugar para a questão do livre
arbítrio: nem a cor
das flores, nem a medida regular dos ângulos do cristal, nem o vôo dos pássaros,
nem o instinto
de nidificação precisam de explicativa lógica; tampouco a responsabilidade: é
determinada a
mínima vontade do homem, mas a noção de responsabilidade é necessária à
adaptação do
homem à vida social e tão imprescindível à vida comum como os órgãos humanos se
fizeram
necessários às funções que lhes cabem. Se algum dia se deparar com a vida social
outro processo
mais eficaz, pôrseá de lado o antigo e será possível a adaptação do homem à
sociedade, à
coexistência, sem a noção de responsabilidade: outra ilusão poderá ser o novo
processo ou
fundarse em verdade colhida na exata e positiva ciência das organizações
humanas. Hoje não há
muita diferença entre a faca do homem que sacrifica o boi, o porco ou o
carneiro, para viver, e a
pena do magistrado que decreta a prisão do criminoso ou a reparação dos danos.
Entre
os dois há
a mesma idade de fim, a adaptação; aquele, a adaptação à vida animal, e esse, à
vida social: ali,
necessidade biológica, aqui, sociológica.
4.2 O caráter puramente formal da norma jurídica
H. Kelsen, Teoria pura do direito, parágrafo 11, O deverser como categoria do
direito, Ed. Novada,
1941.
O sentido da norma jurídica, como o da norma moral, é expresso num dever
ser. Por isso ao conceito da "norma" jurídica e ao deverser jurídico há de
ficar
ligado algo do valor absoluto que é próprio da Moral.
O que é estabelecido por uma "norma" jurídica ou "devido" por causa do
Direito nunca está de todo livre da representação mental de que isso é bom, reto
ou justo.
100 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Neste sentido, a definição conceptual do Direito como "norma" ou deverser pela
jurisprudência
positivista do século XIX, não está isenta de certo elemento ideológico.
Liberar a definição do direito desse elemento ideológico é o empenho da teoria
pura do Direito, que
desliga por completo o conceito de norma jurídica do da norma moral, de que ele
proveio; e
assegura, assim, a legalidade própria do Direito diante da lei moral. Isso
ocorre porque a norma
jurídica não é compreendida como um "imperativo", à semelhança da norma moral,
tal como o faz,
quase sempre, a doutrina tradicional. Mas, como um "juízo hipotético", que
expressa a relação
específica de uma situação de fato condicionante com uma conseqüência jurídica
condicionada (se
A, deve ser B, ou se houver tal fato por exemplo, um crime deve ser tal
conseqüência no
exemplo dado, a condenação).
A norma jurídica se transforma assim em "proposição" jurídica, que revela a
forma fundamental da
lei.
Assim como as "leis naturais" relacionam uma determinada situação de fato, como
causa, com
outra, como efeito, a "lei jurídica" relaciona a condição jurídica com a
conseqüência jurídica (isto é,
com a chamada conseqüência do antijurídico). No primeiro caso, a forma da
relação entre os fatos
é a causalidade. No outro, é a imputação, que é conhecida pela teoria pura do
Direito como a
legalidade particular do Direito.
Assim como o efeito é atribuído à sua causa, a conseqüência jurídica é atribuída
à sua condição
jurídica. Entretanto, a conseqüência jurídica não pode ser considerada como
causalmente
produzida pela respectiva condição.
Mas dizemos que a conseqüência jurídica é imputada à condição jurídica. Esse é o
sentido das
expressões: alguém será castigado "por causa" de um delito, haverá execução
contra determinado
patrimônio "por causa" de uma dívida não paga etc. A relação da pena ao delito,
da execução ao
nãopagamento da dívida etc., não tem significado causal, mas, sim, significado
normativo (dever
ser).
Portanto, a expressão específica do Direito é o deverser com que a teoria pura
do Direito
apresenta o Direito positivo. Assim como a expressão das leis causais é o será
(ou haverá).
A lei natural diz: "Se A é, será B" (ou, se houver A, haverá B).
A lei jurídica diz: "Se A é, deve ser B", sem dizer com isso qualquer coisa
sobre o valor moral ou
político dessa conexão. O "deveiser" limitase a existir como categoria
relativamente apriorística
para a apreensão do material jurídico empírico. E, sob esse aspecto, é
imprescindível para
conceituar e expressar o modo específico com que o Direito positivo relaciona um
fator com outros.
Pois é notório que essa relação não é a de causa e feito. A pena é aplicada ao
delito não como
efeito de uma causa. O que o legislador estabelece entre esses fatores é um
encadeamento bem
diferente da causalidade (da natureza). Completamente diferente, mas tão
inviolável como ela.
Pois, no "sistema do Direito", isto é, por causa do Direito, a pena segue o
delito sempre e sem
exceção, se bem que, "no sistema da natureza", a pena pode faltar por qualquer
razão. E quando a
pena se verifica, isso acontece não precisamente como "efeito" do delito.
Se dizemos: quando ocorre o antíjurídico (antecedente) "deve" ocorrer a
conseqüência jurídica,
esse "deverser" significa apenas como categoria do Direito que a condição
jurídica e a
conseqüência jurídica se correspondem na proposição jurídica.
Essa categoria do direito tem caráter puramente formal, e, por isso, se
distingue principalmente de
uma idéia transcendente do Direito. Ela é aplicável, seja qual for o conteúdo
que tenham os fatos
aí relacionados. A nenhuma realidade
social pode negarse compatibilidade com essa categoria jurídica por causa da
natureza de seu
conteúdo. Tratase de categoria gnosiológicotranscendental, no sentido da
filosofia kantiana e não
metafísicotranscendental.
Justamente por isso conserva sua tendência radicalmente antiideológica. E, por
isso também,
precisamente neste ponto, manifestase a mais violenta resistência da parte da
doutrina jurídica
tradicional, que dificilmente pode suportar que a ordem da antiga República
Soviética devesse ser
conceituada como ordem jurídica, do mesmo modo que a da Itália fascista ou a da
França
democráticocapitalista.
4.3 O egologismo como concepção cultural do direito
A. L. Machado Netto, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, São Paulo,
Ed. Saraiva, 1969,
p. 69 e ss.
Como um importante marco do grande movimento filosófico jurídico que caracteriza
a presente
centúria, temos, na Argentina, o esplendoroso florescimento jurisfilosófico que
a escola egológica
representa.
É valendose da teoria dos objetos que Cóssio parte para a fundamentação de sua
ontologia
jurídica, em que nos presenteia com a descoberta do direito como conduta em
interferência
intersubjetiva.
Tal teoria dos objetos reconhece quatro regiões ônticas ou quatro ontologias
regionais, a saber: a)
os objetos ideais, que se caracterizam por serem irreais, não se darem na
experiência e serem
neutros de valor, e cujo processo cognoscitivo é a intelecção, que se realiza
através do método
racionaldedutivo; b) os objetos naturais, reais, que se dão na experiência, são
neutros ao valor e
cujo processo de conhecimento é a explicação, realizável por meio do método
empíritoindutivo; c)
os objetos culturais, que são reais, estão na experiência, são positiva ou
negativamente valiosos e
são conhecidos mediante o processo gnosiológico da compreensão, por meio do
método empírito
dialético; d) os objetos metafísicos, que têm existência real, não estão na
experiência sensível e
são valiosos positiva ou negativamente.
A cada uma dessas regiões de objetos, por suas especiais características,
corresponde um
determinado tipo de ciência, salvo a última, região própria da metafísica, que a
unânime opinião
filosófica apresenta como o terreno extracientífico por excelência. Assim é que
aos objetos ideais
correspondem as ciências formais como as matemáticas e a lógica; aos objetos
naturais, as
ciências experimentais ou ciências naturais; e aos objetos da cultura, as
chamadas ciências
humanas, sociais ou culturais.
O direito, estando situado nesta última região, é, pois, um objeto cultural, a
ciência do direito
sendo, assim, uma ciência da cultura.
Mas, nos objetos culturais, Cóssio distingue um suporte fáctico ou substrato e
um sentido
sustentado por esse suporte, e que é onde reside o caráter valioso ou desvalioso
do bem cultural,
qualquer que seja ele. Conforme esse suporte seja um objeto físico, corno o
mármore numa
estátua, ou uma conduta humana, como num ato moral, teremos os objetos culturais
divididos em
mundanais e egológicos,
respectivamente.
O direito, por inexistir, no caso, um objeto físico que lhe constitua o suporte,
e um objeto egológico,
por consistir em conduta, conduta humana em interferência intersubjetiva, que é
o que o distingue
da moral, segundo a famosa distinção de Dei Vecchio, que Cóssio transporta
do
plano lógico para
o ontológico.
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
101
102
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS
103
4.4 Normas de técnica legislativa
Lei Complementar 60, de 10.07.1972. Fixa normas técnicas a serem observadas na
elaboração de
Leis e decretos.
O Governador do Estado de São Paulo:
Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei
complementar:
Art. 1.° As leis e decretos serão enumerados em séries distintas, sem renovação
anual.
§ 1.° As leis complementares terão numeração própria.
§ 2.° O decreto não articulado, cujo cumprimento lhe exaura a finalidade
específica, não será numerado, identificandose pela data.
Art. 2.° Nenhuma lei ou decreto conterá matéria estranha ao seu objeto, ou
que não lhe seja conexa.
Art. 3.° A alteração de lei ou decreto, por substituição ou supressão do artigo,
ou acréscimo de
dispositivo novo, obedecerá às seguintes normas:
1 será mantida a numeração dos artigos da lei ou do decreto alterado;
II ao artigo novo atribuirseá o mesmo número do que o anteceder, seguido de
letras maiúsculas
em ordem alfabética.
Parágrafo único. Quando a modificação atingir a maioria dos artigos, ou quando
tenha havido
sucessivas alterações no texto, a lei ou o decreto serão refundidos por inteiro.
Art. 4.° A elaboração das leis e decretos atenderá aos seguintes princípios: I
os textos serão
precedidos de ementa enunciativa do seu objeto e divididos em artigos;
II a numeração dos artigos será ordinal até o nono e, a seguir, cardinal;
III os artigos desdobrarseão em parágrafos, em incisos (algarismos romanos)
ou em parágrafos
e incisos; os parágrafos em itens (algarismos arábicos); e os incisos e itens em
alíneas (letras
minúsculas);
IV os parágrafos serão representados pelo sinal §, salvo o parágrafo único,
que será grafado por
extenso;
V o agrupamento de artigos constituirá a Seção, que poderá desdobrarse em
Subseções; o de
seções, o Capítulo; o de capítulo, o Título; o de títulos, o Livro; e o de
livros, a Parte, que poderá
desdobrarse em Geral e Especial ou consistir simplesmente em Parte seguida de
numeração
ordinal, grafada por extenso;
VI os grupos a que se refere o inciso anterior poderão compreender os
subgrupos Disposições
Preliminares e Disposições Gerais;
VII as disposições que, pelo seu sentido, não couberem em qualquer dos grupos,
serão incluídas
em Disposições Finais; e as que não tiverem caráter permanente constituirão as
Disposições
Transitórias, com numeração própria.
VIII no mesmo artigo que fixar a data da vigência da lei ou decreto, ser4
declarada, quando
possível especificamente, a legislação anterior revogada.
Art. 5.° A partir da vigência desta lei complementar será iniciada nova
numeração das leis e
decretos.
Art. 6.° Esta lei complementar entrará em vigor na data de sua publicação,
revogado o Dec.lei
Complementar 1, de 11.08.1969. Palácio dos Bandeirantes, 10 de julho de 1972
LAUDO NATEL.
5. Bibliografia
AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil. 5. ed.
Saraiva, 1977. v. 1.
ARRUDA ALVIM. Manual de direito processual civil. RT, 1977. v. 1. BALDUS,
Herbert e WILLEMS,
Emílio. Dicionário de etnologia e sociologia.
São Paulo : Nacional, s/d.
BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDELACOSTE. Introduction à l'étude
du droit. Paris : Recueil Sirey, 1947.
CARNELUTTI, F. Arte del diritto. Pádua : Cedam, 1949. . Teoria geral do
direito. São Paulo :
Saraiva, 1942. . Metodologia del diritto. Pádua : Cedam, 1939.
CATHERIN. Philosophia moralis. Friburgi Brisgoviae : Herder, 1906. . Filosofia
del derecho. Madri :
Reus, 1940.
CAVALCANTI FILHO, Theophilo. O problema da segurança no direito. São
Paulo : RT, 1964.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Saraiva, 1942.
v. 1.
CUVILLIER, A. Manuel de sociologie. Paris : PUF, 1967. DABIN, J. Théorie
générale du droit.
Bruxelas : Bruylant, 1944. . La philosophie de l'ordre juridique positiv. Paris
: Sirey, 1929. DEL
VECCHIO, G. Filosofia del diritto. Milão : Giuffrè, 1946.
DERISI, O. N. Los fundamentos metafísicos del orden moral. Universidad de
Buenos Aires, 1941.
DUGUIT, L. El pragmatismo jurídico. Madri : Beltran, 1924. FERRAZ JR., Tercio. A
ciência do
direito. Atlas, 1977.
GARCÍA MAYNEZ. Introduccion al estudio del derecho. México : Porra, 1949,
n. 65 e 161.
GUSMÃO, P. Dourado. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro : Forense,
1989.
HERNANDEZ GIL, A. Metodologia del derecho. Madri : Revista de Derecho
Privado, 1945.
JUNG, C. C. O eu e o inconsciente. Rio de Janeiro : Vozes, s/d. KELSEN, H.
Teoria pura do direito.
Coimbra : Arménio Amado, 1974. LECLERQ, J. La philosophie morale de Saint Thomas
devant Ia
pensée
contemporaine. Louvain : Publications Universitaires de Louvain, 1955.
Les grandes lignes de Ia philosophie morale. Louvain : Publications
Universitaires de Louvain, 1954.
LIMA, H. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1954.
LUHMANN, Niklas.
Sociologia do direito. 2 v. s/l., s/d. MACHADO NETTO. Compêndio de introdução à
ciência do
direito. Saraiva,
1969.
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
M AXI1ILIANO,
13 17.
NS Q GA, J. Flóscolo. introdução ao direito. Rio de Janeiro : Konfino, 1969. Pf
palER, C.
Introduction à Ia theorie generale et à Ia philosophie du droit. PO is :
Delachaux et Niestlé, 1948.
Ja DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito. Rio de Janeiro POUNütnto,
1922, v. 2.
R~O V' R. Introdução à filosofia do direito. Rio de Janeiro : Zahar, 1965.
v icente, O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Max Limonad, 1952.
PVÁ 1. n. 21.
REAL Adolfo. Diritto e Stato nella morale idealistica. Pádua : Cedam, 1950. LD
M. Filosofia do
direito. São Paulo : Saraiva, 1968. SIA NNA, Qui
TfIX~~ ntiliano. El pragmatismo jurídico de Duguit. Madri : Beltran,
1964.
Til l
C4 RA DE FREITAS. Primeiras linhas sobre o processo civil. Rio de Janeiro
11, ~rnier, 1880.
S IR., Goffredo. Filosofia do direito. São Paulo : Max Limonad, 1965.
por direito quântico. São Paulo : Max Limonad, 1971.
~Dl¿R~S10, Cristiano. Fundamenta juris naturae et gentium, publ. em 1705.
VAN . A. Introducción al derecho. Buenos Aires : Perrot, 1957.
p~CkER, L. Curso de filosofia do direito. Ed. Universidade Católica de São
d1CO 'fulo, 1968. 2 v.
G• B. Scienza nuova. Pádua : Cedam, 1943.
4 VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO
SUMÁRIO: 1. As diversas ciências jurídicas: 1.1 Visão conjunta da ordem
jurídica: 1.1.1
Epistemologia jurídica; 1.1.2 Axiologia jurídica; 1.1.3 Dogmática jurídica;
1.1.4 Teoria dos direitos
subjetivos; 1.1.5 Sociologia jurídica; 1.2 O conteúdo do curso de introdução à
ciência do direito 2.
A divisão do direito em público e privado: 2.1 Visão geral do campo do direito:
2.2 Quadro geral;
2.3 Novos ramos 3. Outras formulações: 3.1 "Direito público e direito
privado", R. de Ruggiero: 3.2
"A tendência moderna de publicização do direito", Vicente Ráo; 3.3 "A divisão do
direito em público
e privado: uma intromissão da política no direito", H. Kelsen; 3.4 "As
disciplinas jurídicas", A. Torré
4. Bibliografia.
1. As diversas ciências jurídicas
1.1 Visão conjunta da ordem jurídica
Situado o direito no conjunto dos conhecimentos humanos, devemos, em seguida,
procurar ter
uma visão conjunta da ordem jurídica.
Para isso, podemos percorrer dois caminhos:
a) examinar o quadro atual das diversas ciências jurídicas,
especialmente:
a Epistemologia Jurídica a Axiologia Jurídica
a Dogmática Jurídica a Sociologia Jurídica
outras ciências jurídicas
b) focalizar a tradicional divisão do direito em público e privado e sua
ramificação atual que, com
ligeiras diferenças entre os juristas, apresenta
o seguinte quadro:
Direito Público:
interno Direito Constitucional Direito Administrativo
Carlos. Hermenêutica e
aplicação do direito. Freitas Bastos,
106 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO
107
Direito Direito Direito Direito externo Direito
Direito Privado: comum Direito Civil
especial Direito Comercial
Direito do Trabalho
Direito Internacional Privado
Com o objetivo de apresentar uma primeira visão conjunta do direito,
procuraremos dar algumas
indicações sumárias sobre essas duas perspectivas: as diversas disciplinas
jurídicas e a divisão do
direito em público e privado.
Tomando a expressão "ciência do direito" em sua acepção mais
ampla incluindo os aspectos teóricos e práticos, Quadro filosóficos,
sociológicos e técnicos
podemos das ciências indicar o seguinte quadro das principais disciplina
jurídicas jurídicas:
a) a epistemologia jurídica, que é a teoria do conhecimento científico do
direito;
b) a axiologia jurídica ou teoria dos valores jurídicos e especialmente da
justiça;
c) a dogmática jurídica ou teoria do direito como norma; que inclui a técnica
jurídica;
d) a teoria dos direitos subjetivos ou teoria do direito como poder, que alguns
autores incluem na
dogmática jurídica;
e) a sociologia jurídica, que é o estudo do direito como fenômeno social.
1.1.1 Epistemologia jurídica
Epistomologia do grego episteme (ciência) e logo (estudo) é a teoria da
ciência. Cabelhe
estudar as características próprias do objeto e do método de cada ciência,
investigando suas
relações e os princípios comuns ou diferenciais. Esse o sentido estrito. Muitos
autores, entretanto,
dão ao termo "epistemologia" o sentido amplo de teoria do conhecimento em geral
e não apenas o
de teoria da ciência. Identificam assim epistemologia e gnosiologia (do grego
gnósis,
conhecimento). O vocábulo inglês epistemology, observa Lalande,' é
"0 Lalande, Vocabulaire technique et critique de Ia Philosophie, verbete
"Êpistémologie".
com freqüência empregado (contrariamente à sua etimologia) para designar o que
chamamos
"teoria do conhecimento" ou gnosiologia.2
Epistemologia jurídica, conseqüentemente, será, em sentido estrito, a teoria da
ciência do direito.
Isto é, o estudo das características relativas ao objeto e aos métodos das
diversas ciências
jurídicas a dogmática jurídica, a sociologia do Direito, a técnica jurídica
etc. , sua posição no
quadro das ciências e suas relações com as ciências afins.
E, em sentido amplo, epistemologia do Direito é a teoria do conhecimento
jurídico em todas as
suas modalidades: os "conceitos" jurídicos, as "proposições" ou juízos do
direito, o "raciocínio"
jurídico, a "ciência" ou ciências do direito etc.
Neste último sentido o vocábulo é empregado no "Ensaio de Epistemologia
Jurídica", um dos
capítulos da obra de Geny, Science et technique en droit privé positif, em que o
consagrado jurista
afirma: "Tratase de uma espécie de teoria do conhecimento, aplicada às coisas
do direito, ou, se a
expressão não parecer muito ambiciosa, de uma espécie de epistemologia jurídica
estudada não
apenas para orientar o pensamento do jurista, mas também para inspirar sua
ação".3
1.1.2 Axiologia jurídica
Como sabemos, a axiologia do grego, axiós, apreciação, estimativa é a parte
da filosofia que se
ocupa do problema dos valores, tais como o bem, o belo, o verdadeiro etc. Em
síntese: é a teoria
dos valores.
Axiologia jurídica é, naturalmente, o estudo dos valores jurídicos, na base dos
quais está a justiça.
Recebe, por isso, também as denominações de Teoria dos valores jurídicos, Teoria
do direito justo,
Estimativa jurídica, Teoria da justiça e outras.
Del Vecchio prefere denominála Deontologia jurídica etimologicamente: ciência
do que deve ser
(do grego, deontós, que significa "dever"), porque lhe compete investigar o que
"deve" ou "deveria"
ser o direito, diante do que "é" na realidade. O espírito humano nunca permanece
passivo diante
do direito, da lei, da decisão judicial ou administrativa; nunca aceita
calmamente o fato consumado,
como se ele fosse um limite insuperável. Todo homem sente em si a faculdade de
julgar e avaliar o
direito existente: há em cada um de nós o sentimento da justiça.
"Epistemologia" recebe, ainda, uma terceira significação empregada por alguns
autores, que a
identificam com a "filosofia da ciência", isto é, o estudo crítico de todos os
pressupostos ou
postulados de cada ciência. V. Lalande, loc. cit. François Geny, ob. cit., parte
1, cap. 4.°.
Judiciário
Penal Financeiro Tributário Internacional Público
i
108
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO
109
Daí a possibilidade de uma investigação totalmente distinta da que é feita pelas
ciências jurídicas,
em sentido estrito.'
1.1.3 Dogmática jurídica
A dogmática jurídica é o estudo do sistema de normas jurídicas vigentes em
determinada época e
local. Seu objetivo é conhecer as normas, interpretálas, integrálas no
sistema, aplicálas aos
casos concretos. É chamada "dogmática" porque a situação do jurista seja ele
advogado, juiz,
escrivão, promotor perante a norma jurídica é semelhante à do fiel diante dos
dogmas. Deve
aceitar a norma vigente como ponto de partida inatacável. Muitos preferem
denominála Teoria do
Direito Positivo ou Ciência do Direito em sentido estrito ou, ainda,
Jurisprudência, Jurisprudência
dogmática, Jurisprudência técnica etc.5
Com o reconhecido espírito prático dos americanos, o juiz Holmes (18411936)
definiua como "o
prognóstico do que os tribunais farão no caso concreto".
1.1.4 Teoria dos direitos subjetivos
Do campo da dogmática jurídica pode ser destacada a "Teoria dos direitos
subjetivos", que muitos
autores, como Brethe De La Gressaye e LabordeLacoste, estudam sob a designação
de "Teoria
do direito como poder", em oposição ao "Direito como regra". A regra do direito
constitui apenas
um primeiro aspecto da realidade jurídica. Toda "regra" se traduz, na prática,
pelo "poder"
reconhecido a uma pessoa (privada ou pública) para agir em determinado sentido
nas relações
sociais. Este segundo aspecto é, na realidade, conseqüência do primeiro. Trata
se, entretanto, de
colocálo em plena luz, a fim de conhecer os meios que o direito oferece às
partes, como
decorrência da norma.'
1.1.5 Sociologia jurídica
A sociologia do Direito é a disciplina que tem por objeto o estudo do fenômeno
jurídico,
considerado como fato social. É ciência teórica
(4) G. Del Vecchio, Lezioni di Filosofia del Diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. a
4.
À mal denominada "Ciência positiva do Direito" ou "Ciência do Direito
propriamente dita", melhor
seria chamar "Ciência do Direito vigente", T. Sternberg, Introducción a Ia
ciência del derecho,
Labor, 1930, p. 12. Sobre outras denominações, v. A. Torré, ob. cit., p. 49.
Brethe De La Gressaye
e LabordeLacoste, Introduction générale à l'étude du droit, Paris, Sirey, 1947,
n. 351, p. 326 e ss.
"L'expression de 'pouvoir de droit' nous parait celle qui rend le mieux cet
aspect du droit.
Cependant, nous conformerons à Ia langue scit;ntifique qui parle de 'droit
subjectif', envisageant le
droit dans Ia personne de son suje[".
ou especulativa, no sentido de que estuda o direito, não como um deverser, mas
como um "ser"
ou fenômeno social, considerandoo em si mesmo, em sua evolução e em suas
relações com os
demais setores da vida social, tais como a economia, a arte, a técnica, a moral,
a religião etc.
Apesar de possuir raízes antigas em Aristóteles (385322 a.C.), Hobbes (1588
1679), Espinoza
(16321677), Montesquieu (16891755) e outros, a sociologia jurídica é ciência
de constituição
recente, ou "ainda em pleno período de formação", como
diz Gurvitch,7 que aponta
entre seus
fundadores europeus: E. Durkheim (18581917), L. Duguit (18591928), E. Levy
(18801943), M.
Hauriou (18561929), Max Weber (18641920), Ehrlich (18621922) e os americanos
O. W. Holmes
(18411936), Roscoe Pound e Benjamin Cardozo (18701938).
1.2 O conteúdo do curso de introdução à ciência do direito
A epistemologia jurídica e a axiologia jurídica pertencem ao campo da filosofia
do direito, que, em
sua acepção mais ampla, pode ser caracterizada como o estudo Filosofia dos
princípios ou
pressupostos fundamentais do do direito direito.'
A dogmática jurídica que a rigor inclui a Ciência Teoria dos direitos
subjetivos constitui, como do
direito vimos, a ciência do direito, em sentido estrito.
A sociologia jurídica que se vem constituindo modernamente e apresenta
importância cada vez
maior para o conhecimento objetivo do direito como realidade Sociologia social
possui caráter
mais sociológico do que do direito jurídico propriamente dito.
Qual desses aspectos interessa a um curso de introdução à ciência do direito?
(7) 8)
(5) (6)
Georges Gurvitch, Sociologia jurídica, Rio, Kosmos, 1946, p. 23.
Esses pressupostos ou princípios fundamentais são estudados, principalmente,
pelas seguintes
partes da Filosofia do direito: a) pela teoria do conhecimento jurídico
(Gnosiologia, Epistemologia
ou Lógica do Direito), que estuda o conceito de direito e as estruturas lógicas
que permitem ao
jurista realizar sua tarefa científica: os conceitos jurídicos, as proposições
ou juízos jurídicos, o
raciocínio jurídico, as ciências jurídicas;
b) pela teoria dos valores jurídicos (Axiologia Jurídica), especialmente pela
teoria da justiça, cuja
investigação, adverte Bobbio ("Nature et fonction de Ia philosophie du droit",
em Archives de
Philosophie du droit, Sirey, 1962, n. 7, dedicado ao tema: "Qu'estce que Ia
Philosophie du Droit?"),
"tem sido negligenciada pelos atuais filósofos do direito". Entretanto,
acrescenta: "é importante
lembrar que a `teoria da justiça' é um estudo que concerne ao fundo ou
fundamento do direito e a
`teoria do conhecimento jurídico' (ou `teoria do direito') é um estudo que
concerne à forma, isto é,
às diversas estruturas
110
INTRODUÇAO À CIÊNCIA DO DIREITO
VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO
113
É inegável que, do ponto de vista prático, o interesse maior se concentra na
dogmática jurídica, em
seu duplo Introdução aspecto de estudo das normas e dos direitos
à ciência subjetivos.
do direito Mas não conhecerá o direito, em todas as suas dimensões reais,
quem se limitar à
consideração desses aspectos.
Ao verdadeiro jurista não pode faltar conhecimento da natureza de sua ciência
(epistemologia) e
dos valores fundamentais (axiologia) que dão sentido e significação à qualquer
instituição jurídica.
Não lhe poderá faltar, também, o conhecimento da realidade jurídicosocial que é
a própria vida do
direito.
Daí o tríplice aspecto: jurídico (estrito senso), filosófico e sociológico, que
deve ter o curso de
introdução à ciência do direito.
Ou esquematicamente:
EPISTEMOLOGIA JURÍDICA } FILOSOFIA DO DIREITO AXIOLOGIA JURÍDICA
TEORIA DA NORMA JURÍDICA CIÊNCIA DO DIREITO TEORIA DOS DIREITOS
SUBJETIVOS
SOCIOLOGIA JURÍDICA ou SOCIOLOGIA DO DIREITO
2. A divisão do direito em público e privado 2.1 Visão geral do campo do direito
Entre as possibilidades que existem de apresentar globalmente a ordem jurídica,
destacase a
tradicional divisão do direito em púbico e privado.
Esta divisão tem acompanhado a formação histórica do direito v e dela nos
ocuparemos mais
amplamente na terceira parte deste livro. No mo
mento, interessanos apenas uma visão do campo do direito.
Dentre os inúmeros critérios propostos para estabelecer a distinção
entre esses dois ramos, está o que se fundamenta no objeto material da
destinadas a acolher o fruto dos estudos e trabalhos da outra" (p. 8);
c) pela Ontologia jurídica, que estuda o "ser" ou a natureza fundamental do
direito, procurando
responder à pergunta: que espécie de "ser" é o direito? Já diziam os romanos
(Ulpiano, Digesto, 1,
1, 1, 2, e Justiniano, Instituías, 1, 1, 4) que dois são os aspectos do direito:
o público e o privado. O
direito público versa sobre o modo de ser do Estado romano; o privado, sobre o
interesse dos
particulares. Com efeito, algumas coisas são úteis publicamente, outras
privadamente ("Hujus
studii duae sunt posiciones, publicum et privatum. Publicum jus est, quod ad
statum rei Romanae
spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem; sunt enim quaedam publice
utilia, quaedam
privatim").
ciência jurídica. O direito tem por matéria as relações sociais. Seu obJramos é
a ordenação da vida
social. E esta consta de duas espécies de relaç&dia
a) relações em que a própria sociedade, representada pelo Estadod, é parte;
b) relações dos participantes entre si.
Em síntese, podemos dizer que as relações sociais em que o Estado, como tal,10 é
parte, são
reguladas pelo Direito público. As relações dos particulares entre si são
reguladas pelo Direito
privado.
O Direito público regula a organização e a atividade do estado considerado:
em si mesmo;
em suas relações com os particulares;
em suas relações com outros Estados.
Assim, o Direito Constitucional, ao regular a divisão dos Poderes Legislativo,
Executivo e
Judiciário, dispõe sobre a organização do Estado, considerado em si mesmo. O
Direito Tributário,
ao fixar os tributos, regula relações entre o Estado e os particulares. O
Direito Internacional Público
regula as relações dos Estados entre si.
Por "Estado", tomado aqui em sentido amplo, devemos entender:
a) o Poder Público representado, no Brasil, pela União, os estados e os
municípios, com todas as
suas ramificações: ministérios, secretarias, departamentos etc.;
b) as autarquias e outros órgãos, que têm personalidade jurídica distinta da do
Estado, mas que a
ele se ligam intimamente, por serem por ele criados e exercerem funções
públicas; é o caso do
Instituto de Arrecadação Previdenciária e Assistência Social (LAPAS), Instituto
do Café, Ordem dos
Advogados do Brasil, Banco Central etc.;
c) as organizações como a ONU, UNESCO, FAO etc., que são órgãos supracionais
reconhecidos
pelos Estados e que mantêm relações jurídicas com organismos governamentais e
não
governamentais.
O Direito privado regula as relações dos particulares entre si.
Por particulares devemos entender no caso:
a) os indivíduos, também chamados pessoas físicas ou naturais;
b) as instituições ou entidades particulares, como as associações, as fundações,
as sociedades
civis ou comerciais etc., também chamadas pessoas jurídicas de direito privado;
O "poder de império", isto é, o poder de impor sua vontade através de leis,
decretos, atos
administrativos, decisões judiciais, cobrança de tributos etc. é característica
do
Estado como poder público. Conforme a lição de Ferrara: "A distinção entre
direito público e
privado tem seu fundamento na posição diferente dos sujeitos nas
relações jurídicas. Há relação de direito público quando o sujeito intervém como
portador de
prerrogativas supremas, investido de poder de império, enquanto nas
relações de direito privado os sujeitos se contrapõem em condições de paridade,
em pé de
igualdade" (Teoria das pessoas jurídicas, Reus, Madri, 1929, p. 692). V. F.
Geny, Science et technique en droit privé positif, 1.' parte, n. 20, p. 64.
Direito público
e privado
(9)
112 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
c) o próprio Estado, em condições especiais, quando participa de uma transação
jurídica, não na
qualidade de Poder Público, mas na de simples particular, como no caso em que,
locatário de um
prédio, ele figura na condição de inquilino, sujeito, como
os demais, à lei do
inquilinato.
As relações jurídicas entre essas pessoas ou entidades são regidas pelo Direito
privado.
2.2 Quadro geral
Essas noções nos permitem apresentar o seguinte quadro geral do direito,
incluindo suas divisões
e subdivisões mais importantes, que serão examinadas separadamente na terceira
parte do
presente trabalho:
Direito Constitucional Direito Administrativo Direito Financeiro Direito
Tributário
Direito Judiciário Direito Penal
De uma forma geral, que exige explicações posteriores, podemos
dizer que o Direito Constitucional fixa as bases do Direito Estado. O
Administrativo regula a
atividade do público Poder Executivo. O Direito Financeiro e o Tribu
tário têm por objeto as finanças públicas e os tributos em geral. O Judiciário
disciplina a
organização do Poder Judiciário e o processo a ser observado nas ações
submetidas à Justiça. O
Direito Penal define os crimes e estabelece as penas a serem aplicadas pelo
Poder Público. O
Direito Internacional Público regula as relações entre os Estados e a atividade
dos organismos
internacionais.
O Direito Civil é considerado Direito privado comum, porque rege as relações
entre particulares,
considerandoos simplesmente como homens e não como membros de uma profissão ou
nacionalidade. Regula os direitos das pessoas, enquanto tais, em suas
relações de família e em suas relações patrimoniais.
VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 113
Do Direito Civil, como tronco comum, nasceram os ramos especiais do Direito
privado. No
passado, o Direito Civil compreendia toda a área do Direito privado. Só
posteriormente, em virtude
do desenvolvimento da atividade comercial, da Revolução Industrial e dos
movimentos migratórios
e de intercâmbio no plano internacional, é que foram se constituindo, como ramos
autônomos, o
Direito Comercial, o Direito do Trabalho e o Internacional Privado. O primeiro
estabelece normas
especiais disciplinando a atividade comercial. O Direito do Trabalho regula as
relações de emprego
e a proteção à pessoa e aos direitos do trabalhador. Em virtude da forte atuação
do Estado nessa
proteção, o Direito de Trabalho pode ser também considerado como um ramo do
Direito público. O
Direito Internacional Privado rege as relações entre particulares no seio da
sociedade
internacional.
2.3 Novos ramos
A divisão que acabamos de apresentar não é rígida nem definitiva. Pelo
contrário, diversos ramos
novos continuam a se constituir, passando a figurar como direitos autônomos. É o
caso do Direito
Financeiro e do Direito Tributário, que já se destacaram do Direito
Administrativo, ou o do Direito
Rural e do Direito Econômico, que estão em processo de formação.
Mais recentemente, estão se formando, entre outros, o Direito Ambiental (v. p. 9
a 11) e o Direito
do Consumidor (v. p. 13 a 15 e 424).
Como veremos na terceira parte da presente obra, essa classificação dos ramos do
direito não
apresenta caráter rigorosamente lógico, mas sobretudo prático e histórico.
Muitos autores a
rejeitam, mas essa divisão acompanhou a evolução do direito desde Roma, e,
apesar das críticas
que tem recebido, não foi, até hoje, substituída com vantagem por qualquer
outra.
3• Outras formulações
3.1 Direito público e direito privado
R. de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 1934, v. I,
parágrafo 8.°
A divisão do direito objetivo em público e privado fora já estabelecida pela
ciência jurídica romana •
e romana é também a mais antiga definição dos dois
Sobre o processo histórico pelo qual em Roma o direito público se diferenciou do
Privado, cf. o
douto trabalho de Bonfante: La progressiva div. dei diritto publ. e pr. in Roma.
DIREITO
PÚBLICO
PRIVADO
Direito Internacional Público
Comum { Direito Civil
Direito Com
Direito do Trabalho Direito Internacional
Privado
Especial
ercial
Direito privado
114
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO
115
ramos: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad
singulorum
utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim" (L. 1, § 2 D. L.
L. = § 4 Inst. L. L.),
definição que por muito tempo se utilizou e reproduziu, quase sem modificação,
no campo do
direito moderno. É todavia inadequada para exprimir o conteúdo próprio e
verdadeiro dos dois
grandes ramos de direito e mais ainda para designar os caracteres diferenciais.
É certo que o critério do interesse e da utilidade é um elemento de distinção
entre umas e outras
normas: há nas de direito público uma preponderância da utilidade pública do
Estado e, nas de
direito privado, prevalecimento da utilidade dos particulares, mas a distinção
não pode fundarse
exclusivamente na utilidade da norma.
É preciso ter em atenção os sujeitos a que as normas se referem e o fim que elas
têm em vista.
Ora, sob este duplo aspecto, é fácil descobrir como algumas normas têm por
sujeito o Estado e
outras os simples particulares; como umas têm por fim relações políticas, a
organização dos
poderes do Estado e a explicação da atividade dos seus órgãos para conseguir os
fins que esse
Estado se propõe,
• outras, pelo contrário, as relações jurídicas dos indivíduos, a atividade dos
cidadãos como
particulares. Nessa diversidade, dada quer pela diferença de sujeitos, quer pela
dos fins, reside a
razão da distinção de que tratamos: formam o direito público as normas da
primeira espécie e o
direito privado as da segunda.
No entanto, isto não basta para dar o conceito integral dum e doutro ramo
• para lhes marcar os confins.
Deve, antes de mais, terse presente que a norma não adquire caráter de direito
público apenas e
exclusivamente quando o seu sujeito é o Estado e o seu fim a organização do
mesmo.
Há ao lado do Estado, e a ele subordinados, outros agregados políticos menores,
entre os quais se
reparte o poder soberano e aos quais correspondem determinadas circunscrições
territoriais:
agregados políticos que exercem funções públicas especiais e levam a cabo, no
território que lhes
está designado, a obra do Estado, que, não podendo sempre atuar diretamente para
conseguir os
seus fins, lhes confere as funções que mais diretamente se referem aos fins
particulares e locais. O
Município, a Província e outras circunscrições constituem organizações menores
de caráter
político. Ora, quando os sujeitos da norma sejam essas entidades, ou o seu fim
seja o fim que elas
se propõem, o direito continua a ser público.
Em segundo lugar e pelo contrário, não basta que o Estado e essas organizações
supracitadas
apareçam como sujeitos duma relação, para concluir sem mais nada que se trata
duma norma
pertencente ao direito político. O Estado e com ele os demais organismos menores
referidos, se
normalmente atuam como poder político e soberano que exerce funções de
governação e de
império, assumem também e pela própria necessidade dos fins de caráter público
que se
propõem funções que não são de soberania ou de governação. Sobretudo na gestão
do seu
patrimônio pode o Estado ser titular de direitos a exercitar faculdades ou
contrair obrigações que
não são diferentes das que se verificam nos particulares ou nalguma daquelas
coletividades
(pessoas jurídicas) que, propondose fins privados, não são nem podiam ser
investidas de poderes
políticos ou soberanos. Ora, quando o Estado, a Província ou a Comuna agem nessa
qualidade,
aplicamselhes as mesmas normas que se aplicam às relações entr os
particulares, quer dizer:
normas de direito privado, que nem por esta aplicaçã se transformam em públicas.
Precisando, pois, o conceito mais atrás exposto, pode dizerse que:
a) é direito público o complexo das normas que regulam a organização
• a atividade do Estado e dos
outros agregados políticos menores, ou que
disciplinam as
relações entre os cidadãos e essas organizações políticas;
b) é direito privado o complexo das normas que regulam as relações dos
particulares entre si ou
as relações entre eles, o Estado e os agregados referidos, desde que estes não
figurem nessa
relação como exercendo funções de poder político ou soberano.
3.2 A tendência moderna de publicização do direito
Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, n.
155 a 157.
Invocando este sábio conceito de Montesquieu, consoante o qual não se devem
regular segundo
os princípios do direito político as coisas que dependem dos princípios do
direito civil, Georges
Ripert assinala e repele a tendência moderna de se transformar o direito privado
em direito público.
E lembra que, para designar a nova corrente de idéias, criouse o neologismo
"publicização" do
direito, que os políticos substituem por denominação outra, tal a de
"socialização do direito", como
se o direito somente agora se revelasse uma ciência social.
É a seguinte a técnica usada pelos inovadores: "O direito social designa o
conjunto de regras que
asseguram a igualdade das situações apesar das diferenças de fortunas, regras
que socorrem os
mais fracos, desarmam os mais poderosos
• organizam a vida econômica segundo os princípios da justiça distributiva. Ora,
para se alcançar
esse resultado, preciso é recorrerse a uma força superior a todos, ou seja, à
força do Estado; e se
esta força intervém nas relações privadas, o direito privado não pode deixar de
ceder o passo às
regras do direito público. A publicização é, pois, o meio de tomar social o
direito".
Partidários menos ortodoxos desses conceitos chegaram a propor uma terceira
designação para
as relações civis assim submetidas à intervenção do Estado: tais relações
formariam um direito
semipúblico.
E autores existem, como Donnedieu de Vabres, que nos convidam, sem mais, a
apagar toda a
distinção entre o direito público e o direito privado, qualificando esta velha e
sábia distinção de
meramente pedagógica.
Muito a propósito Ripert se reporta à observação sensata de Portalis, um dos
autores do Código
Civil francês: "Em tempo de revolução, se tudo se transforma em direito público,
assim sucede pelo
desejo exaltado de sacrificar todos os direitos a um fim político e de não
admitir consideração outra
senão a de um misterioso
• variável interesse do Estado (Georges Ripert: Le Déclin du Droit, cap.
II).
Sobre a intervenção desordenada do Estado nas relações civis já nos
manifestamos; aqui
volvemos ao assunto, tãosó para acentuar as dificuldades crescentes que se
antepõem a
qualquer tentativa de distinção perfeita entre esses dois ramos do direito
objetivo, o público e o
privado.
Causas e extensão dessa tendência Não é só nas leis comuns que a confusão se
revela. As
próprias Constituições políticas consagram, hoje, normas que, em rigor, só no
direito privado
poderiam ser incluídas.
Apontamse, geralmente, como causas da redução da esfera do direito Privado:
a) o desenvolvimento das formas de proteção dos menos favorecidos, ou dos
indivíduos reputados
socialmente fracos;
j
114
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO
115
ramos: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad
singulorum
utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim" (L. 1, § 2 D. L.
L. = § 4 Inst. L. L.),
definição que por muito tempo se utilizou e reproduziu, quase sem modificação,
no campo do
direito moderno. É todavia inadequada para exprimir o conteúdo próprio e
verdadeiro dos dois
grandes ramos de direito e mais ainda para designar os caracteres diferenciais.
É certo que o critério do interesse e da utilidade é um elemento de distinção
entre umas e outras
normas: há nas de direito público uma preponderância da utilidade pública do
Estado e, nas de
direito privado, prevalecimento da utilidade dos particulares, mas a distinção
não pode fundarse
exclusivamente na utilidade da norma.
É preciso ter em atenção os sujeitos a que as normas se referem e o fim que elas
têm em vista.
Ora, sob este duplo aspecto, é fácil descobrir como algumas normas têm por
sujeito o Estado e
outras os simples particulares; como umas têm por fim relações políticas, a
organização dos
poderes do Estado e a explicação da atividade dos seus órgãos para conseguir os
fins que esse
Estado se propõe, e outras, pelo contrário, as relações jurídicas dos
indivíduos, a atividade dos
cidadãos como particulares. Nessa diversidade, dada quer pela diferença de
sujeitos, quer pela
dos fins, reside a razão da distinção de que tratamos: formam o direito público
as normas da
primeira espécie e o direito privado as da segunda.
No entanto, isto não basta para dar o conceito integral dum e doutro ramo e para
lhes marcar os
confins.
Deve, antes de mais, terse presente que a norma não adquire caráter de direito
público apenas e
exclusivamente quando o seu sujeito é o Estado e o seu fim a organização do
mesmo.
Há ao lado do Estado, e a ele subordinados, outros agregados políticos menores,
entre os quais se
reparte o poder soberano e aos quais correspondem determinadas circunscrições
territoriais:
agregados políticos que exercem funções públicas especiais e levam a cabo, no
território que lhes
está designado, a obra do Estado, que, não podendo sempre atuar diretamente para
conseguir os
seus fins, lhes confere as funções que mais diretamente se referem aos fins
particulares e locais. O
Município, a Província e outras circunscrições constituem organizações menores
de caráter
político. Ora, quando os sujeitos da norma sejam essas entidades, ou o seu fim
seja o fim que elas
se propõem, o direito continua a ser público.
Em segundo lugar e pelo contrário, não basta que o Estado e essas organizações
supracitadas
apareçam como sujeitos duma relação, para concluir sem mais nada que se trata
duma norma
pertencente ao direito político. O Estado e com ele os demais organismos menores
referidos, se
normalmente atuam como poder político e soberano que exerce funções de
governação e de
império, assumem também e pela própria necessidade dos fins de caráter público
que se
propõem funções que não são de soberania ou de governação. Sobretudo na gestão
do seu
patrimônio pode o Estado ser titular de direitos a exercitar faculdades ou
contrair obrigações que
não são diferentes das que se verificam nos particulares ou nalguma daquelas
coletividades
(pessoas jurídicas) que, propondose fins privados, não são nem podiam ser
investidas de poderes
políticos ou soberanos. Ora, quando o Estado, a Província ou a Comuna agem ness
qualidade,
aplicamselhes as mesmas normas que se aplicam às relações entr os
particulares, quer dizer:
normas de direito privado, que nem por esta aplicaçã se transformam em públicas.
Precisando, pois, o conceito mais atrás exposto, pode dizerse que:
a) é direito público o complexo das normas que regulam a organização e a
atividade do Estado e
dos outros agregados políticos menores, ou que disciplinam as relações entre os
cidadãos e essas
organizações políticas;
b) é direito privado o complexo das normas que regulam as relações dos
particulares entre si ou
as relações entre eles, o Estado e os agregados referidos, desde que estes não
figurem nessa
relação como exercendo funções de poder político ou soberano.
3.2 A tendência moderna de publicização do direito
Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, n.
155 a 157.
Invocando este sábio conceito de Montesquieu, consoante o qual não se devem
regular segundo
os princípios do direito político as coisas que dependem dos princípios do
direito civil, Georges
Ripert assinala e repele a tendência moderna de se transformar o direito privado
em direito público.
E lembra que, para designar a nova corrente de idéias, criouse o neologismo "
publicização" do
direito, que os políticos substituem por denominação outra, tal a de
"socialização do direito", como
se o direito somente agora se revelasse uma ciência social.
É a seguinte a técnica usada pelos inovadores: "O direito social designa o
conjunto de regras que
asseguram a igualdade das situações apesar das diferenças de fortunas, regras
que socorrem os
mais fracos, desarmam os mais poderosos e organizam a vida econômica segundo os
princípios
da justiça distributiva. Ora, para se alcançar esse resultado, preciso é
recorrerse a uma força
superior a todos, ou seja, à força do Estado; e se esta força intervém nas
relações privadas, o
direito privado não pode deixar de ceder o passo às regras do direito público. A
publicização é,
pois, o meio de tornar social o direito".
Partidários menos ortodoxos desses conceitos chegaram a propor uma terceira
designação para
as relações civis assim submetidas à intervenção do Estado: tais relações
formariam um direito
semipúblico.
E autores existem, como Donnedieu de Vabres, que nos convidam, sem mais, a
apagar toda a
distinção entre o direito público e o direito privado, qualificando esta velha e
sábia distinção de
meramente pedagógica.
Muito a propósito Ripert se reporta à observação sensata de Portalis, um dos
autores do Código
Civil francês: "Em tempo de revolução, se tudo se transforma em direito público,
assim sucede pelo
desejo exaltado de sacrificar todos os direitos a um fim político e de não
admitir consideração outra
senão a de um misterioso e variável interesse do Estado (Georges Ripert: Le
Déclin du Droit, cap.
II).
Sobre a intervenção desordenada do Estado nas relações civis já nos
manifestamos; aqui
volvemos ao assunto, tãosó para acentuar as dificuldades crescentes que se
antepõem a
qualquer tentativa de distinção perfeita entre esses dois ramos do direito
objetivo, o público e o
privado.
Causas e extensão dessa tendência Não é só nas leis comuns que a confusão se
revela. As
próprias Constituições políticas consagram, hoje, normas que, em rigor, só no
direito privado
poderiam ser incluídas.
Apontamse, geralmente, como causas da redução da esfera do direito Privado:
a) o desenvolvimento das formas de proteção dos menos favorecidos, ou dos
indivíduos reputados
socialmente fracos;
116 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 117
b) a concentração progressiva dos homens e dos capitais, que caracteriza a época
contemporânea, criando problemas pessoais e patrimoniais de crescente interesse
social;
c) a ascendente "padronização dos meios materiais de vida, e, conseqüentemente,
da própria vida,
a transformar em problema coletivo o que antes constituía problema individual.
Contudo, reconhecendose, embora, a existência dessas causas e de seus
resultantes problemas,
não se poderia admitir a existência de uma livre vontade individual, como se
pretende, aplicada
tãosomente ao setor dos direitos não patrimoniais, pois é exatamente nos
direitos pessoais puros
e de família que o indivíduo sofre e deve sofrer sensíveis restrições a bem da
comunidade.
Ensaio de distinção Reportandose aos princípios e conceitos acima expostos,
distinguimos o
direito público do direito privado nos seguintes termos:
"Direito Público" é o conjunto de princípios e de normas que disciplinam a
organização e a
atividade política e jurisdicional do Estado e das entidades políticas ou
administrativas por ele
criadas, bem como as suas relações, de igual caráter, mantidas com os
indivíduos, regulando,
ademais, os meios tendentes a assegurar a defesa da ordem jurídica, dentro da
comunhão social.
"Direito Privado" é o conjunto sistemático de princípios e de normas que
disciplinam as relações,
desprovidas de natureza política ou jurisdicional, que os indivíduos mantêm
entre si, ou com o
Estado, ou com as entidades por ele criadas para a realização de seus fins
próprios.
No conceito de Organização se enquadra o Direito Constitucional; no de
atividade, o Direito
Internacional (atividade externa) e o Direito Administrativo (atividade
interna); no de segurança da
ordem jurídica, o Direito Penal e o Direito Judiciário, com seus ramos de
Organização Judiciária e
Direito Processual.
3.3 A divisão do direito em público e privado: uma intromissão da política no
direito
H. Kelsen, Teoria geral do Estado, parágrafo VI.
A intromissão da política na teoria do Direito achase favorecida por uma
funestíssima distinção
que hoje constitui um dos mais fundamentais princípios da moderna ciência
jurídica. Tratase da
distinção entre direito público e privado. Embora esta antítese constitua a
medula de toda a
sistemática teóricojurídica, é simplesmente impossível determinar, com alguma
fixidez, o que se
quer dizer efetivamente, quando se distingue entre o direito público e o direito
privado. certo que se
devem destacar determinados domínios jurídicos, qualificados por seu conteúdo
especial, os quais
se contrapõem convencionalmente ao direito privado na qualidade de direito
público. Assim, no
direito público se incluem o direito político, o direito administrativo, o
processual, o penal e o
canônico (este enquanto se refira predominantemente aos demais); todo o direito
restante é direito
privado. Mas, se se perguntar qual o fundamento desta divisão, entrase, em
cheio, no caos das
opiniões contraditórias. De início, não há segurança no objeto da divisão: a
qualidade de público e
privado se atribui indistintamente ao direito objetivo, às normas, ao direito
subjetivo e às faculdades
e deveres que constituem a relação jurídica. Se ao direito objetivo se reduzir o
direito subjetivo,
uma divisão deste importará, ao mesmo tempo, a divisão daquele. Acrescentese
que à dualidade
do objeto da divisão prendese uma antítese dos critérios segundo os quais a
divisão é feita.
3.4 As disciplinas jurídicas
A. Torré, Inaoducción al Derecho, Buenos Aires, Ed.
Perrot, 1957.. n. 22 e ss.
Apesar de não haver uniformidade a respeito, são muitos os autores que
consideram como
disciplinas jurídicas fundamentais as seguintes: Ciência do Direito, História do
Direito, Sociologia
do Direito, Filosofia do Direito.
A "Ciência do Direito" tem por objeto o estudo, ou melhor, a interpretação e
integração e a
sistematização de um ordenamento jurídico determinado, para sua justa aplicação.
Garcia Maynez, por sua vez, a define amo a ciência que "tem por objeto a
exposição ordenada e
coerente dos preceitos jurídicos que estejam em vigor em uma época e um lugar
determinados, e o
estudo dos problemas relativos à sua interpretação e aplicação".
Chamase também: Dogmática Jurídica, Ciência Dogmática, Teoria do Direito
Positivo, Sistemática
Jurídica, Jurisprudência Técnica, Jurisprudência Dogmática, simplesmente
Jurisprudência etc.
Conforme o ramo do direito positivo a que se refira, distinguemse: Ciência do
Direito
Constitucional, Ciência do Direito Administrativo, Ciência do Direito Penal,
Ciência do Direito
Processual etc.
` "História do Direito" é o ramo ou especialidade da História Geral que estuda
o desenvolvimento
do direito, explicandoo em função das respectivas causas, com o alcance
individualizador próprio
da História.
"Sociologia do Direito". E. Garcia Maynez a define como "disciplina que tem por
objeto a explicação
do fenômeno jurídico, considerado como fato social".
De nossa parte, e com o fim de facilitar a compreensão do conceito desta
disciplina, daremos uma
noção mais analítica, a saber: é o ramo da Sociologia Geral que focaliza o
direito como fenômeno
social, com o objetivo de explicar seus caracteres e função na sociedade, as
relações e influências
recíprocas entre esses fenômenos sociais, assim como as transformações do
direito, com um
alcance "geral".
A "Filosofia do Direito" é um ramo da Filosofia Geral, razão pela qual apresenta
os mesmos
caracteres que esta. Encara, pois, as questões mais profundas e gerais do
direito, situando seu
estudo em urna sistematização geral dos conhecimentos humanos, o que nos permite
compreender não somente o sentido, ou a significação da realidade jurídica em
uma concepção
total do mundo e da vida, mas também o caráter e a fundamentação das disciplinas
que têm por
objeto essa realidade.
Percebemse aí, claramente, os dois caracteres básicos do conhecimento
filosófico: o de ser
"pantônomo", pois abrange direito em sua totalidade, e o de ser "autônomo",
pois, apesar de
constituir o fundamento das diversas ciências jurídicas, a Filosofia do Direito
é, em si mesma, um
saber sem pressupostos.
Atualmente, a Filosofia do Direito é dividida pela maioria dos autores em três
ramos: Ontologia,
Lógica e Axiologia Jurídicas.
4. Bibliografia
BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE•LACOSTE. Introduction à l'étude du droit. Paris
: Sirey,
1947.
CAVALCANTI FILHO, Theophilo. O problema da segurança no direito. São Paulo : RT,
1964.
118
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
DEL VECCHIO, G. Filosofia del diritto. Milão : Giuffrè, 1946.
FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de direito. São Paulo : RT, 1970.
GENY, F. Science et
technique en droit privé positif. 4. v. Paris : Recueil Sirey,
1922.
GURVITCH, G. Sociologia jurídica. Rio de Janeiro : Kosmos, 1946. KELSEN, H. A
teoria pura do
direito. Coimbra : Arménio Amado, 1962. LIMA, H. Introdução à ciência do
direito. Rio de Janeiro :
Freitas Bastos, 1954. MACHADO NETO, A. L. Compêndio de introdução à ciência do
direito.
Saraiva,
1969.
NÓBREGA, J. Flóscolo. Introdução ao direito. Rio de Janeiro : Konfino, 1969.
PASQUIER, C.
Introduction à Ia théorie générale et à la philosophie du droit. Paris :
Delachaux et Niestlé, 1948.
RÁO, Vicente, O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Max Limonad, 1952, n.
155 a 157.
RAVÁ, A. Diritto e Stato nella morale idealistica. Pádua : Cedam, 1943. REALE.
M. Filosofia do
direito. São Paulo : Saraiva, 1968. RUGGIERO, R. Instituições de Direito civil.
São Paulo : Saraiva,
1934. TORRÉ, A. Introducción al derecho. Buenos Aires : Perrot, 1957, n. 22 e
ss. VAN ACKER, L.
Curso de filosofia do direito. 2 v. Ed. Universidade Católica
de São Paulo, 1962.
Segunda Parte
O DIREITO COMO JUSTO (Axiologia Jurídica)
5
O CONCEITO DE JUSTIÇA
SUMÁRIO: 1.O Direito como exigência da justiça: 1.1 A teoria da justiça; 1.2
Perspectivas
diferentes; 1.3 Devido por justiça; 1.4 Direito e justiça 2. Acepção subjetiva
e objetiva da justiça:
2.1 Justiça, conceito análogo; 2.2 Analogia de relação; 2.3 Histórico do
conceito 3. Sentido
latíssimo, lato e estrito da justiça: 3.1 Sentido latíssimo; 3.2 Sentido lato;
3.3 Sentido estrito 4.
Características essenciais da justiça: 4.1 A alteridade; 4.2 O devido; 4.3 A
igualdade: 4.3.1 Em que
consiste a igualdade?; 4.3.2 Igualdade simples ou proporcional; 4.3.3 Igualdade
fundamental dos
homens5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social 6. Virtudes
anexas à justiça 7.
Outras formulações: 7.1 "Duas definições clássicas de justiça: Ulpiano e
Cícero", Félix Senn; 7.2
"Lei positiva e justiça", H. Kelsen; 7.3 "Pensamentos sobre a justiça", B.
Pascal; 7.4 "Justiça civil e
justiça penal", G. Del Vecchio 8. Bibliografia.
1. O Direito como exigência da justiça 1.1 A teoria da justiça
A teoria da justiça é um dos capítulos fundamentais da ciência jurídica.'
(1)
Em sentido amplo, a expressão "Ciência do Direito" abrange todas as disciplinas
jurídicas, inclusive
a Filosofia do Direito. Sobre a importância da "teoria da justiça" é oportuno
transcrever a seguinte
observação de N. Bobbio: "La philosophie du droit se compose de trois parties:
a) théorie du droit
(notion du droit ou norme); b) théorie de Ia justice; c) théorie da Ia science
juridique. Pendant que
l'étude de Ia théorie du droit a fait ces demières années de notables progrés,
Ia théorie de Ia justice
a été négligée. Et encore, si de ce côté quelque étude valable a été entreprise,
c'est uniquement
quant à Ia définition de Ia justice (Perelman, puis Kelsen): l'on n'est pas
passé de Ia théorie
analytique à Ia phénoménologie, c'estàdire, à l'exploitation a travers le
droit comparé des critères
reçus tour a dans les diverses civilisations et époques, pour déterminer le
juste et 1'injuste. Le
critére directif de cette recherche devrait etre Ia notion de 'justice',
comprise comme I'ensemble des
valeurs, biens, ou intérêts, pour Ia protection ou le progrés desqueis, les
hommes ont créé une
technique organisant Ia vie en commun que nous avons accepté de nommer
122 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Se o direito é essencialmente uma ciência "normativa" e a estrutura lógica de
toda proposição
jurídica é um deverser, colocamse naturalmente as perguntas: Qual a direção ou
o ideal visado
pela "norma"? Qual o valor fundamental que orienta esse deverser?
Basicamente, a sentença deve ser "justa", a lei deve ser "justa",
a obrigação e a indenização devem ser "justas", Valor o salário e o preço devem
ser "justos". Com
razão fundamental escreveu Del Vecchio: "A noção de justo é a
pedra angular de todo o edifício jurídico".'
Além disso, a noção de "princípios gerais do direito" a que devem, a cada
momento, recorrer o
juiz e os demais aplicadores da lei 3 corresponde fundamentalmente aos
princípios de "justiça",
como procuramos mostrar no Capítulo II da terceira parte do presente trabalho.
"Principios
generales del derecho, es decir, principios de justicia".°
Mas, que é a justiça? Quais as suas características, sua natureza, suas
espécies, seu
fundamento? E os demais valores jurídicos a segurança, o interesse social, a
ordem, o bem
comum são opostos, redutíveis ou irredutíveis à justiça?
E esse um velho tema. Seu estudo recebe Axiologia modernamente os nomes de
axiologia
jurídica, jurídica teoria dos valores jurídicos, deontologia jurídica,
estimativa jurídica etc.5
droit. Il me semble toujours éclairant de considérer que Ia théorie de Ia
justice est une étude qui
concerne le fond du droit et Ia théorie du droit une étude qui concerne Ia
forme: cette dernière, en
fait, elabore les diverses structures destinées à accueillir le fruit des études
et travaux de l'autre".
"Nature et fonction de Ia philosophie du droit", en Archives de Philosophie du
Droit, Paris, Sirey, v.
7, 1962.
(2' G. Del Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938, § 1, p. 4.
(" A Lei de Introdução ao Código Civil, que é, no Brasil, a lei geral de
aplicação das normas
jurídicas, dispõe, no art. 4.°: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso
de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". A lei é sempre uma
formulação geral e
abstrata; não pode, por isso, prever toda a complexidade dos casos reais. Daí a
necessidade
contínua de sua interpretação e do recurso aos "princípios gerais do direito",
que nos fornecem o
sentido fundamental de qualquer norma jurídica. "Comunmente, en ausencia de un
precepto
expreso o de leyes análogas, Ias legislaciones remitem a los principios
generales del derecho es
decir, principios de justicia como última fuente a Ia que debe recurrirse
para intergrar el
ordenamiento jurídico (p. ej. nuestro Cód. Civil, en el ya citado art. 16)." A.
Torré, /ntroducción ai
Derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957, cap. XV, p. 367.
(5' "El problema axiológico y los valores jurídicos", A. Torré,
em Introducción
ai derecho, Perrot,
1957, cap. VIII, p. 220 e ss.; "Deontologia jurídica é a teoria da justiça e dos
valores fundamentais
do direito", Miguel Reale, Filosofia do Direito, Saraiva, 1969, v. 2, n. 125;
"La teoria de Ia justicia
como estimativa jurídica", Recaséns Siches, em Estudios de Filosofia dei
derecho, cap. XXIV, n. 1.
1.2 Perspectivas diferentes
Como vimos na primeira parte deste livro,' o direito pode ser estudado sob
perspectivas diversas.
Alguns o analisam simplesmente como um sistema de normas positivas que regem a
vida de
determinada comunidade. É esse o ponto de vista de Kelsen, em sua Teoria pura do
direito.'
Outros, como LévyBruhl, colocandose no campo da sociologia, consideram o
direito ou as regras
jurídicas como fatos sociais ou, até mesmo, como coisas.8
Certos autores preferem estudálo sob o prisma dos direitos subjetivos através
das Declarações de
Direitos e do reconhecimento histórico das prerrogativas da pessoa humana. É o
caso, entre
outros, do estudo de Jayme de Altavila sobre a Origem dos direitos dos povos.9 E
modernamente,
A theorie de justice de J. Rawls.10
Pode, ainda, o direito ser considerado não como lei positiva, fato social ou
direito subjetivo, mas
como ciência. E a perspectiva em que se colocam, em geral, os tratados e as
introduções ao
estudo do direito, à frente dos quais, por sua importância histórica, é de
justiça colocar as Institutas
de Justiniano, destinadas a ser "os primeiros elementos de toda a ciência das
leis".
1.3 Devido por justiça
Há, finalmente, outra modalidade de focalizar o direito, que é a de considerálo
como exigência da
justiça. Esse, como vimos, é o significado fundamental do vocábulo direito. Os
latinos o chamavam
CONCEITO DE JUSTIÇA
123
(6) (7)
(8) (9)
1.° Parte, cap. 1, item 4.1.
"The Pure Theory of Law restricts itself to a structural analysis of positive
law based on a
comparative study of the social orders which actually exist and existed in
history under the narre of
law" (H. Kelsen, What is justice?, University of California Press, Califórnia,
1957, p. 293).
"En même temps que sociologique, Ia conception du droit à laquelle je me
rattache est réaliste. Elle
consiste à considerer les règles juridiques comme des faits, ou, si l'on
préfère, comme des choses.
Cette attitude s'impose à celui qui se préoccupe d'étudier le droit
scientifiquement. Ce realisme
cherche a déceler tous les phénomènes juridiques, même s'ils ne sont pas
officielement catalogués
comme tels" (LévyBruhl, "Les sources du droit", in Introduction à 1'étude du
droit, em colaboração,
Paris, Rousseau, 1951, p. 256). "Historiar o que foi a lenta caminhada de
milênios, que o homem
teve de perfazer na conquista da eqüidade de situações e tratamentos, desde as
Leis Mosaicas à
Declaração Universal dos Direitos do Homem, eis o conteúdo desta Origem dos
direitos dos povos"
(Jayme de Altavila, Origem dos direitos dos Povos, São Paulo, Melhoramentos,
1964, Introdução).
É essa, também, a perspectiva em que se situa lhering, ao estudar A luta pelo
direito. E a de Kant,
Hegel e demais autores para quem o direito é fundamentalmente liberdade. Uma
teoria de justiça,
trad. UnB, Brasília, 1981.
124
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE JUSTIÇA 125
jus e não o confundiam com a lex." Nesse sentido, direito é propriamente aquilo
que é "devido" por
justiça a uma pessoa ou a uma comunidade: o respeito à vida é direito de todo
homem, a
educação é direito da criança, o salário é direito do empregado, a habitação é
direito da família, o
imposto é direito do Estado. A essa acepção corresponde a expressão clássica
"dar a cada um o
seu direito".
1.4 Direito e justiça
Mas até que ponto o direito se identifica com o justo? Poderseá sustentar que
todas as exigências
do direito são baseadas na justiça?
Alguns autores afirmam que o direito nada tem a ver com a justiça. E simples
convenção, como
afirmaram Carnéades ou Epicuro, no passado,12e de certa forma reafirmam certas
correntes do
liberalismo
moderno ao
admitir que "quem diz contratual diz justo"."
Para a generalidade dos seguidores do positivismo jurídico, o direito se reduz a
uma imposição da
força social, e a justiça é considerada um elemento estranho à sua formação e
validade." Para
alguns, como Kelsen, os critérios da justiça são simplesmente emocionais e
subjetivos e sua
determinação deve ser deixada à religião
ou à metafísica. 15
Outros autores, como Renard, pretendem que apenas uma parte
das instituições jurídicas se fundamente na justiça; outra parte teria
seu fundamento na segurança ou na ordem social. 16
De Outra parte, escreveu um dos grandes estudiosos do direito
contemporâneo, Gurvitch: "É preciso reconhecer, como fazem R. Os gregos também
faziam essa
distinção. Ao direito, no sentido de "devido"
ou `justo", chamavam dikaion, e à lei, nómos.
Carnéades. "Justo é o convencional". V. Félix Senn, De la justice et du droit,
Paris, Sirey, 1927, p.
4, nota 1. G. Dei Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey,
1938.
Fouillée, [,a science sociale contemporaine. V. G. Ripert, Aspectos jurídicos do
capitalismo
moderno, § 15 e ss.
V. Capítulo 5, item 4 infra.
"There is not, and cannot be, an objective criterion of justice because the
statement: something is
just or unjust, is a judgment of value refering to an ultimate end, and these
value judgments are by
their very nature subjective in character, because based on emotional elements
of our mind, on our
feelings and wishes." "The Pure Theory of Law renounces any justification of
positive law by a kind
of superlaw, leaving that problematical task to religion or social
metaphysics" (H. Kelsen, What is justice?, p. 295 e 302).
G. Renard, "Le droit n'est pas seulement facteur de justice, il est facteur de
sécurité. La justice n'est
que Ia moitié du droit; Ia grosse moitié, si vous vouiez"
(La theorie de l'institution, p. 49).
pound, B. Cardozo, F. Geny, M. Hauriou, G. Radbruch e outros, que um elemento
constitutivo de
todo direito é um elemento ideal, a JUSTIÇA". E, ao prefaciar a tradução
francesa da obra de Del
Vecchio, escreveu LévyUllmann: "Direito e Estado serão criações ininteligíveis,
arbitrárias e
inoperantes, se não houver um princípio ideal que legitime sua existência,
organização e conteúdo.
Esse princípio é a justiça. A noção de justo é fundamental ao direito. Daí a
necessidade de um
exame a que a nossa consciência não pode se subtrair e que constitui a tarefa
suprema da filosofia
de direito."
Para a aceitação ou a recusa dessas opiniões e o encaminhamento dos problemas
referidos que
são básicos para a vida do direito é necessário examinar o conceito de
justiça. Esse é o objeto do
presente capítulo.
2. Acepção subjetiva e objetiva da justiça 2.1 Justiça, conceito análogo
Uma característica, ligada a todas as noções fundamentais, dá ao conceito de
justiça certa
variedade de significações. Como as noções de ser, verdade, instituição ou
direito, o conceito de
justiça é análogo. Entre as múltiplas significações de justiça, podemos
assinalar duas
fundamentais: uma subjetiva e outra objetiva.
Muitas vezes falamos da justiça como uma qualidade da pessoa, como virtude ou
perfeição
subjetiva. Fulano é um homem justo. O senso de justiça é fundamental no
magistrado. É nesse
sentido que nos referimos à "justiça", à prudência, à temperança e à coragem
como virtudes
humanas.
Outras vezes empregamos a palavra justiça para designar objetivamente uma
qualidade da ordem
social. Nesse sentido, falamos da justiça de uma lei ou instituição.
A circunstância de ser o conceito de justiça utilizado por juristas e moralistas
explica essa
diferença. Ocupandose da atividade pessoal do homem, o moralista vê na
justiça
uma qualidade
subjetiva do indivíduo, o exercício de sua vontade, uma virtude. O jurista tem
outras preocupações;
interessalhe fundamentalmente a ordem social objetiva. Por isso, ele vê na
justiça, em primeiro
lugar, uma exigência da vida social. Radbruch chega a afirmar que ao jurista só
interessa a justiça,
considerada em sentido objetivo.'$ No mesmo sentido escreve Hauriou: "Nous
prenons 1'orde
social et Ia justice dans leur qualité d'idées
"' G. Gurvitch, Sociologia Jurídica, Introd., § II, p. 34. LévyUlimann,
Prefácio a Justice, Droit, Etat,
de G. Dei Vecchio. V. Capítulo 2, n. 4, p. 130.
1 "' Filosofia do Direito, § 4, n. 22, p. 46.
126 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE JUSTIÇA 127
objetives, comine faits".19 Considerada sob esse aspecto, a justiça é um
princípio superior da
ordem social.20
Ao estudar a justiça conceito, modalidades e aplicações , procuraremos situá
la dentro da
realidade jurídica contemporânea.
Por extensão a palavra justiça é também empregada para designar o Poder
Judiciário e seus
órgãos, incumbidos de dar solução justa aos casos que lhe são submetidos. É
esse o sentido do
vocábulo quando falamos em recorrer à "Justiça" ou quando nos referimos ao
Diário da Justiça,
Palácio da Justiça, Tribunal de Justiça etc.21
2.2 Analogia de relação
Qual o sentido fundamental?
"Justiça" é conceito análogo, por analogia de relação ou atribuição. Em sentido
direto e próprio,
significa "a virtude" ou a vontade constante de dar a cada um o seu direito. A
rigor só podem ser
"justas" ou "injustas" as ações humanas.
Por extensão é que a justiça se aplica aos princípios da ordem social, porque
esta será justa na
medida em que assegurar a cada um o seu direito (jus suum cuique).
Da mesma forma, em plano evidentemente menos importante, o conceito de justiça
se estende:
1. à legislação, porque esta deve assegurar o direito de cada um; 2. aos órgãos
ou ao Poder
encarregados da aplicação da justiça. Mas o sentido fundamental é o de virtude.
E a razão é
importante. A justiça, como o direito, não é uma simples técnica da igualdade,
da utilidade ou da
ordem social .22 Muito mais do que isso, ela é virtude da convivência humana. E
significa,
fundamental mente, uma atitude subjetiva de respeito à dig nidade de todos os
homens. Nas
relações com outros homens, podemos ter uma atitude de "dominação", como fazemos
com os
animais e demais seres inferiores, ou de "respeito", como se impõe entre pessoas
humanas. Esta
última é a que caracteriza
a justiça. Com razão, observa Bodenheimer 23 que o elemento subjetivo nas
definições de justiça,
"de tão extraordinária importância, nem sempre tem recebido a atenção que
merece. Definida
como vontade ou disposição do espírito, a justiça exige uma atitude de respeito
para com os
outros, uma Atitude presteza em dar ou deixar aos outros aquilo que de respeito
tenham o direito
de receber ou conservar. "Este às outras elemento intersubjetivo na idéia de
justiça é de pessoas
caráter verdadeiramente universal e válido de humanas modo geral. Falhando ele,
a justiça não
pode
florescer numa sociedade. Para funcionar eficazmente, a justiça requer a
libertação dos impulsos
exclusivamente egoísticos. O egoísta reivindica direitos sobre os bens do mundo,
sem considerar
as razoáveis reivindicações dos outros. A justiça se opõe a essa tendência,
exigindo que se
respeitem os direitos e as pretensões das demais. Sem uma atitude pessoal de
"preocupação com
os outros", e sem a vontade de ser equânime, os fins da justiça não podem ser
normalmente
atingidos.
E esse um aspecto fundamental do problema. A justiça não é o sentimento que cada
um tem de
seu próprio bemestar ou felicidade, como pretendem alguns .24 Mas, pelo
contrário, é o
reconhecimento de que cada um deve respeitar o bem e a dignidade dos outros.
Como disse
Dabin, esse reconhecimento implica sem dúvida uma metafísica: a do valor
absoluto da pessoa
humana."
2.3 Histórico do conceito
É importante notar que toda a tradição filosófica, ética e jurídica da
humanidade empregou a
palavra justiça no sentido subjetivo e pessoal. Podemos fixar alguns pontos
dessa tradição muitas
vezes milenar.
A Bíblia identifica, freqüentemente, justiça e virtude, como no Livro dos
Provérbios: "A justiça do
simples dirige o seu caminho".26 E, em sentido mais estrito, no Livro da
Sabedoria: "A sabedoria
ensina a temperança, a prudência, a justiça e a fortaleza".27 Entre os
orientais, a palavra justiça é
empregada quase sempre no sentido de "sabedoria".
Virtude
da justiça, sentido fundamental
(19)
Aux sources du droit, 1. ère partie, § 2, p. 44.
(23) Ciência do direito, n. 45, p. 210.
(20) "La justice est Ia loi primordiale des rélations de personne a
personne" (G.
Renard, La théorie de l'institution, Introd. 1, III, p. 25). "Justitia
ea ratio est
(24) "The longing for justice is men's eternal longing for
happiness". H. Kelsen,
quae societas hominum inter ipsos et vitae communiter continetur"
(Cícero,
What is justice?, p. 2.
De officis, 1, cap. VII). (25) J. Dabin, La
philosophie de l'ordre juridique positif,
n. 81, nota 2, p. 320.
(21) Aristóteles, na Política, ao referirse às funções do Estado,
enumera a E
a lição de Platão: "a justiça é o bem do próximo". "Alienum bonum a
Legislação, a Jurisdição (ou "Justiça") e a Administração (ou esfera
executiva).
Philosopho appelatur, quasi ad alterum utilitatem ordinatum", S. Tomás,
De
"Justiça indica, no caso, o Poder Judiciário, ou a Justiça. Ainda hoje,
falamos
justitia, II 11, q. 80.
em Tribunal de Justiça, Palácio da Justiça, Oficial de Justiça.
(26) "Livro dos
Provérbios", XI, 5.
(22) V. 1.' parte, Capítulo 3, sobre a natureza científica do Direito.
(27) "Livro da
Sabedoria", VIII, 7.
128
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE JUSTIÇA 129
Aristóteles e os pensadores representativos da cultura grega consideram a
justiça como "hábito"
.28
Em Roma, Ulpiano e Justiniano falam da justiça como uma constans et perpetua
voluntas. Para
Cícero, justitia est habitus animi.29
A tradição patrística e medieval representada, entre outros, por Santo
Agostinho,30 Isidoro de
Sevilha 31 e S. Tomás,` considera a justiça como uma virtus (virtude, força da
vontade).
No mesmo sentido, Leibniz, que se ocupou aprofundadamente do tema, define a
justiça como um
hábito de amizade em relação ao próximo habitus amandi alioS.33
Entretanto, na moderna linguagem jurídica, como vimos, é usada preferencialmente
a acepção
objetiva da justiça. Esta diversidade não significa que exista uma oposição
entre o sentido
subjetivo e objetivo da justiça. Estamos na presença de dois aspectos de uma
mesma realidade.
Justiça, no sentido subjetivo, é a virtude pela qual damos a cada um o que lhe é
devido. No sentido
objetivo, justiça aplicase à ordem social que garante a cada um o que lhe é
devido. Tratase de um
caso de analogia. O que se disser da justiça como virtude aplicarseá, também,
analogicamente, à
ordem social e às demais acepções do vocábulo.
Na filosofia estóica predominou, também, esse sentido amplo da justiça. E como o
estoicismo
exerceu poderosa influência sobre o Direito Romano, nos textos do Digesto vamos
encontrar o
mesmo conceito: "Direito é a arte do bem e do eqüitativo" (Jus est ars boni et
aequi). E entre os
precepta juris, de Ulpiano, vem, em primeiro lugar, o "viver honestamente"
(honeste vivere).34 Ora,
é esse um preceito de moral geral. Justiça se identifica, aí, com a virtude em
geral ou o conjunto de
todas as virtudes. No mesmo sentido S. João Crisóstomo definiu a justiça como o
cumprimento dos
mandamentos
ou das obrigações em geral."
3.2 Sentido lato
Numa acepção menos ampla, "justiça" significa não a virtude em geral, mas apenas
o conjunto das
virtudes sociais ou virtudes de relação e convivência humana. Virtude
Nesse sentido é empregada a palavra justiça social
quando a consideramos uma das quatro virtudes
cardiais. As demais virtudes: prudência, temperança ou coragem, podem ser
exercidas pelo
homem isoladamente. Mas a justiça supõe a existência de outras pessoas. Regula
as relações de
pessoa a pessoa.
Justiça, em sentido lato, significa o conjunto das virtudes que regulam as
relações entre os
homens. Inclui, portanto, além dos deveres de justiça estrita, as virtudes da
amizade, da
veracidade, do respeito filial etc.
3.3 Sentido estrito
Mas, em sentido estrito e próprio, a justiça designa uma virtude com objeto
especial. Nesse
sentido, "a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é Outrem
devido, segundo uma
igualdade" (simples ou devido proporcional), conforme a definição lapidar de S.
igualdade Tomás."
Só é justiça propriamente dita a relação que tem por objeto:
dar a outrem;
o que lhe é devido;
segundo uma igualdade.
3. Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça
A justiça, em sua acepção subjetiva, apresenta três de extensão diferente:
a) sentido latíssimo;
b) sentido lato;
c) sentido próprio ou estrito.
significações
3.1 Sentido latíssimo
No primeiro caso, justiça significa a virtude em geral. O conjunto de todas as
virtudes. O justo é o
virtuoso. Justiça significa nesse caso santidade. E esta a acepção do vocábulo
em diversas
passagens da Bíblia, em que o justo é equiparado ao santo. É o caso da
Virtude em geral
expressão citada: "A justiça do simples dirige o seu caminho".
(28) Aristóteles, Ética a Nicômaco, v. 1. `34)
(29) Cícero, De inventione, 2, 53, 160. 35)
(30) S. Agostinho, De civitate Dei, XIX, 21.
(71) "Etymologiae", 1. X.
(32) S. Tomás, De justitia, li 11, q. 58, a. 3. (36)
(33) Leibniz, Juris et aequi elementa, Leipzig, 1893.
Ulpiano, Libro primo regularum, D., 1, 1, "De justitia et jure" 10, 1: "Juris
praecepta sunt haec:
honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere". "Justitia est
mandatorum observatio"
(In Matheum Homil., XII).
S. Tomás: 'Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei debetur
secundum
aequalitatem". De justitiae II li, q. 80, c.
130 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
A essas três notas correspondem as características essenciais da justiça, em
sentido estrito:
a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteritas, de alter); o devido
(debitum);
a igualdade (aequalitas).
4. Características essenciais da justiça
4.1 A alteridade
A justiça consiste fundamentalmente na disposição permanente
de respeitar a pessoa do próximo. Por isso, a Pluralidade primeira condição para
que ela se realize
é a de pessoas existência de uma pluralidade de pessoas ou pelo
menos uma outra pessoa (alteritas). Em sentido próprio, ninguém pode ser justo
ou injusto para
consigo mesmo. Essa pluralidade de pessoas é o que distingue a justiça das
outras virtudes
morais. E a caracteriza como virtude social. As demais podem ser exercidas pelo
homem,
individualmente. O indivíduo isolado, como Robinson em sua ilha, poderá ser
temperante ou
intemperante, corajoso ou não, prudente ou imprudente, mas não poderá ser justo
ou injusto.
Porque falta outro homem, em relação ao qual ele possa cumprir ou faltar com os
deveres de
justiça.
Essa pluralidade deve ser necessariamente de pessoas? Ou pode referirse,
também, a outros
seres vivos; os animais, por exemplo? Podese falar de uma justiça na vida
animal?
Spencer, em seu estudo sobre a `justiça",37 dedicou alguns capítulos à
consideração "da justiça
na vida animal". Aponta aí diversas relações que apresentam certas semelhanças
com a justiça e a
atividade moral.
É inegável que existem semelhanças e aproximações entre a atividade dos homens e
a dos
animais. Entretanto, se considerarmos a justiça em sentido próprio, e
respeitarmos sua natureza,
devemos afirmar que é impossível uma justiça na vida animal, porque sua
realização supõe
conhecimento de princípios e liberdade de decisão. A justiça é uma virtude
moral.
Ora, na vida animal não encontramos nem o conhecimento intelectual, capaz de
atingir os
princípios, nem essa liberdade de determinação, que é prerrogativa da vontade
humana. Em
sentido próprio, não tem sentido falarse em valores morais em relação aos
animais. Os conceitos
de bem, justiça e dignidade escapam à vida animal.
(37) H. Spencer, A justiça, Lisbòa, AillandAlves, caps. 1 e II.
CONCEITO DE JUSTIÇA 131
Problema semelhante é o da existência ou não de relações de justiça entre o
homem e o animal.
As leis de proteção aos animais e certos atos, Justiça
ditos de ingratidão ou injustiça em relação a cães, em relação cavalos e outros
seres, parecem
justificar uma aos animais resposta afirmativa.
Mas tal não se dá. Tais ações podem revelar maus sentimentos e, como tal, ser
reprimidas no
interesse social. Entretanto, como seres de natureza diferente, o homem e o
animal não podem
estar sujeitos a uma relação de justiça propriamente dita, porque esta supõe uma
igualdade
fundamental. A noção de justiça é inaplicável às relações entre o homem e seres
que não tenham
natureza racional. Não se poderá dizer que o homem é injusto por retirar da
colmeia o mel
elaborado pela abelha, sem dar a esta uma retribuição pelo serviço prestado. Do
mesmo modo,
ninguém dirá que o homem pratica uma injustiça pelo fato de nada dar à árvore em
troca dos frutos
que dela recebe.
A justiça exige sempre uma pluralidade de "pessoas". E aí reside uma de suas
características
fundamentais. Renard sintetizou essa idéia numa fórmula feliz, ao definir a
justiça como "a lei
primordial das relações de pessoa a pessoa".38 Cícero, no De Officis, afirma o
mesmo conceito,
ao atribuir à justiça a função de dirigir a "sociedade dos homens".39 E Dante,
que, além de poeta,
foi autor do tratado jurídico De Monarchia, define a justiça como uma relação
proporcional de
homem a homem: hominis ad hominem
proportio.40
A justiça consiste essencialmente no reconhecimento prático que o homem faz da
dignidade dos
demais homens. O que há de fundamental em toda espécie de justiça, escreveu Del
Vecchio, é
esse elemento de "intersubjetividade" ou de correspondência nas relações
entre pessoas.41
4.2 O devido
A obrigatoriedade ou exigibilidade debitum é uma segunda nota que integra o
conceito de
justiça.
Vimos que justiça supõe a existência de pelo "Devido" ou menos duas pessoas. Por
exemplo, A
paga a B exigibilidade determinada quantia. Mas, para que se realize a noção de
justiça, outro
elemento é necessário: esse
c3s> G Renard, Théorie de l'institution, p. 25. (39) Cícero, De Officis, I, VII.
140 Dante, De Monarchia, liv. II, cap. 5, n. 3. (41) Del Vecchio, De Ia justice,
§ 6.
Relação de pessoa a pessoa
Justiça na vida animal
ato deve ter o
132
caráter de rigorosa obrigatoriedade. Da parte de A deve existir um dever estrito
(debitum), e da
parte de B o direito de exigir esse ato (exigibilidade).
O ato de justiça consiste em dar o que é "devido". "Actus justitiae est reddere
debitum", doutrina S.
Tomás (1, q. 21, a. 1, ad 3).
Mas há certo dever ou debitum em outras virtudes sociais, além da justiça. Há,
por exemplo, um
dever na virtude da gratidão, da amizade ou da veracidade, e, no entanto, elas
não constituem
espécies de justiça, em sentido próprio.
É que existem, na realidade, dois tipos de débito ou obrigação. Há um dever
simplesmente moral,
menos rigoroso, que não pode ser imposto por lei ou exigido pelo interessado
(debitum morale ou
debitum mere morale). E outro, estrito e rigoroso, que pode ser exigido
• legalmente imposto (debitum legale).
No caso da gratidão, da amizade ou da veracidade existe apenas um debitum
morale. Na justiça, o
débito é rigoroso, estrito, legal. Pode ser exigido. Assim, o devedor tem o
dever estrito ou legal de
efetuar
• pagamento da dívida e o credor, o direito de exigilo. Há no caso
rigorosa relação de
justiça: um homem dá a outro o que lhe é "devido".
No caso da gratidão a situação é diferente. 0 benfeitor não pode exigir o
reconhecimento do
beneficiário. Há apenas um dever moral
• não uma estrita relação de justiça. A violação desse dever constituirá
uma ingratidão, mas
não uma injustiça propriamente dita.
Compreendese, por aí, a expressão de Lachance: "O devido legal
é necessário à existência (ad esse) da vida política, Devido enquanto o devido
moral apenas
contribui para a moral perfeição dessa vida (ad tnelius esse) .42
• devido Quando o respeito a determinado dever é
legal necessário ao bem comum, a lei o toma exigível,
isto é, atribui ao credor o poder de exigilo. É o que modernamente se denomina
"atributividade".
Essa distinção entre o debitum meramente moral e o debitum legal
ou jurídico corresponde à diferença entre "normas Atributividade de
aperfeiçoamento" e "normas de
garantia",
utilizada, entre outros juristas, por Goffredo Telles Júnior para caracterizar
as normas jurídicas:
"Em todo grupo social, existem duas espécies de normas: normas de garantia e
normas de
aperfeiçoamento. As normas de garantia são as que visam a conferir ao grupo
social a forma
condizente com sua razão de ser. São as qu garantem a ordem necessária à
consecução dos
objetivos sociais. As normas contidas num Código Civil, as de um estatuto de
sociedad
(42) Lachance, Le concept du droit selon Aristote et St. Thomas, liv. Il, cap.
1;
§ 1.°.
CONCEITO DE JUSTIÇA 133
anônima, ou as de um contrato antenupcial são exemplos de normas de garantia. As
normas de
aperfeiçoamento são as que visam a aprimorar a comunhão humana de um grupo
social, grupo
este já ordenado pelas normas de garantia. São exemplos destas normas: `Amarás
teu próximo
como um ser igual a ti', `Praticarás a caridade' etc. É claro que a obediência
às normas de
aperfeiçoamento não é essencial à preservação da sociedade. O grupo social não
deixará de
existir só pelo fato de não serem tais normas seguidas. Mas o que devemos
assinalar, com
máximo destaque, é que a violação sistemática das normas de garantia acarretaria
a
decomposição e o aniquilamento do grupo social. Em conseqüência, pelo simples
fato de viverem
em sociedade e de desejarem continuar a servirse dela, os homens em conjunto e
tacitamente,
conferem às normas de garantia uma qualidade que as outras normas não têm. Que
qualidade
será esta? Uma vez estabelecido que a norma de garantia precisa ser cumprida,
ela adquire, por
este fato, a qualidade denominada atributividade. Atributividade é a qualidade,
inerente à norma de
garantia, de atribuir, a quem seria lesado pela violação dessa norma, a
faculdade de exigir do
violador, por meio do poder público, o cumprimento dela, ou a reparação do mal
sofrido. Logo, a
norma de garantia, além de ser imperativa, como todas as normas, é também
atributiva. A norma
atributiva se chama norma jurídica ou norma de Direito. Definese a norma
jurídica: um imperativo.
Por que é imperativa a norma jurídica? Precisamente porque ela é norma. Por que
é atributiva?
Porque, diferentemente de todas as outras normas, a norma jurídica atribui, a
quem seria lesado
pela sua violação, a faculdade de fazêla cumprir pelo violador, ou de exigir
deste a reparação do
mal por ele causado".43
No mesmo sentido é a lição de Dabin, em sua Philosophie del'ordre juridique
positif: o traço
característico da justiça e do direito é a exigibilidade. Em lugar de
estabelecer o dever e deixar à
consciência do devedor o seu cumprimento efetivo, a justiça quer ser respeitada.
Ela reclama,
exige, opondose à violação do direito, perseguindo o devedor faltoso, impondo
reparação, não
apenas em palavras, mas em atos, pela utilização de todos os meios
proporcionados, inclusive a
coação material."
INTRODUÇÃO À CIÊNCIA po DIREITO
(43) (44)
Goffredo Telles J., Filosofia do Direito, § 105.
J. Dabin, Philosophie de l'ordre juridique positif, n. 94. "Si l'on cherche
maintenant Ia raison qui
rend compte de l'exigibilité du devoir de justice, on Ia trouvera dans l'objet
même de ce devoir: ce
quest dú, en l'espèce, c'est une chose qui appartient à autrui, qui lui est
propre et 'siéne' (cuique
suum). Et c'est parce que Ia chose lui est propre et 'siénne' à l'un ou à
l'autre titre (comme
homme, comme membre d'une famille, ou comme citoyen) que le titulaire du droit
peut I'exiger et
même, pour l'obtenir user de Ia contraente". V. também, n. 99 e 124.
134 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA^ DO DIREITO
4.3 A igualdade
A "pluralidade" de pessoas e 40 "devido" (exigibilidade ou
atributividade) são elementos neeessários, mas não suficientes para
caracterizar uma relação de justiça Utrfa terceiro elemento é essencial: a
"igualdade". A dá a B
(alteritgs) c, que lhe é devido (debitum), segundo uma igualdade (aequalitg5)
ets a estrutura
elementar de um ato de justiça.
A igualdade é elemento essencial e básico. "A justiça é uma
igualdade e 4 injustiça uma desigualdade", afirElemento mou AristótejeS.4s "A
essência da justiça
é a essencial igualdade", aCresc,enta S. Tomás.46 E, mestre em
tirar das pala\,ras toda a riqueza que elas encerram, mostra que a noção de
igualdadfi está contida
no próprio nome dessa virtude, pois, das coisas 9Ue estão adequadas ou
igualadas, dizemos
comumente que estão ` ajustadas".47
Da noção de "igualdade" podt mos fazer derivar as de "pluralidade" e "devido". A
de pluralidade,
Aorq,,je toda igualdade supõe, pelo menos, dois termos "Aequalitas ad alteram
est".48 E, também,
a de obrigatoriedade ou "devido": nuga relação de justiça, a prestação é
"devida", porque ela
representa uma ',,igualdade" ou proporção, e não viceversa. Como diz
Lachance,4i a matéria de
justiça não é proporcionada a outrem porque lhe é devida, mas, inversamente, ela
lhe devida,
porque lhe é igual ou de Oada proporcionalmente.
A igualdade da justiça nas é um dado subjetivo, mas u exigência que pode ser
fixada
Objetfvamente.5o
Aristóteles, Ética a Nicômaco, lis I cap. III.
S. Tomás, "Forma generalis justiti;,ae ' t aequalitas", De justitia, II II, q.
61,
a. 2, ad 2. Observa Lachance (loa cit.) que, ao tratar da justiça, S. Tomãi,
emprega 19 vezes
expressões como ,.. Yualdade", "proporção", "adequação . "Dicuntur vulgariter et
quae adeq
~uant,1r, justari", S. Tomás, De justitia, II, q. 57, a. 1.
Ibidem.
Lachance, Le concept du droit se,_lori Aristote et S. Thomas, liv. II, § 3. NO
mesmo sentido é a lição de S. T . "Unicuique debetur quod suum est .
"Dicitur esse suum ali ujus,
uo 1 ad i sum ordinatur". "Suum unicuigoà
ersonae (est) quod ei secundam~ d d P
proportlonis aequalitatem debetur" (q. 21 p , a. 1.°).
A igualdade é o meio termo na N"virtude da justiça, diz S. Tomás, repetindo
velho ensinamento. E
o meio term%no, ern qualquer virtude é o que se encontnt entre o excesso e a
falta. Se apenas a
tazao fixa esse justomeio, levando e conta considerações individuais, teremos
um meio termo
interior ou subjetivo
É o caso das virtudes individuais,', em que o meio termo, entre o excesso a
falta, é fixado
subjetivamente e ~ oÚe variar de pessoa a pessoa. Se, contrário, o justomeio se
estabeleci P la
comparação de uma coisa com o
ou pela adequação proporcional ~e pE
ide u(na coisa a determinada pessoa, te
CONCEITO DE JUSTIÇA
135
4.3.1 Em que consiste a igualdade?
Em sua realidade fundamental, a igualdade é uma relação. Mas, que espécie de
relação?
A filosofia distingue as relações em: causais e nãocausais. E, entre estas,
coloca as de
conformidade ou adequação, que podem se apresentar sob três modalidades:
a) a identidade, que é a relação de conformidade quanto à essência;
b) a semelhança, que é a relação de conformidade quanto à qualidade;
c) a igualdade, que é a relação de conformidade quanto à quantidade.
Duas realidades são idênticas quando têm a mesma essência. Semelhantes, quando
têm as
mesmas qualidades. Iguais, quando têm a mesma quantidade. "Idem est unum in
substancia,
simile unum in qualitate, aequale, vero unum in quantiate".51 Um homem é
"idêntico" apenas a si
mesmo. De duas pessoas que têm os mesmos traços dizemos que são "semelhantes".
Vinte é
"igual" a 10 mais 10.
A igualdade é, pois, uma equivalência de quantidades. Na justiça, de forma
analógica e adaptada à
natureza moral das relações humanas, é essa também a significação da igualdade.
Com razão, observou Recaséns Siches,52 na justiça não se trata de estabelecer
"identidade",
como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto. Isso não teria
sentido. Não se
trata, também, de receber um objeto "semelhante" ou parecido. Mas de estabelecer
uma
equivalência ou "igualdade".
No mesmo sentido é a lição de Lachance ao estudar a "igualdade" como
característica essencial
do direito." Lembrando que a igualdade é a equivalência de quantidades, pergunta
o ilustre
professor: devemos entender essas expressões em sentido estritamente material? É
claro que não.
Tratase então de simples metáfora? Também não. Entre os dois extremos há muitas
significações
analógicas. S. Tomás, que apreendia o sentido da palavra em toda sua extensão,
não recua diante
do termo "igualdade". Mas tem o cuidado de acrescentar "algum modo
o justomeio objetivo. Esse é o caso da justiça. Pela compra de um objeto que
vale 100, a justiça
exige que se pague essa importância, independentemente
de considerações subjetivas (S. Tomás, li II, q. 58, a. 10. Vermeersch,
Cuestiones acerca de Ia
justicia, §§ 36 e 37. Faidherbe, La justice distributive,
(52 Sa Tomás, Comm. Met.
s) L. Recaséns Siches, Estudios de filosofia del derecho, XXIV, 3, p. 388. (53)
Lachance, ob. cit.,
liv. II, § 3, p. 280.
(45) (46)
(47)
(48) (49)
(50)
r
136 INTRODUÇÃO À CIÉNCIA DO D1TRED
de igualdade" (aliquem aequalitatís modum). Am da igeal e~n da
massas, há igualdades de outra ordem, como sãoas que natureza das pessoas, como
a iguaidade
de diireiios. A quanti Jadee de que se trata no direito é moral. P a relaçãoo
correspondente e uma
relação de igualdade moral.
4.3.2 Igualdade simples ou piroporcionóal
A igualdade da justiça pode Irealizarse de duas formas d IlUas:
a) igualdade simples ou absoluta é a egeivalência entre dois objetos, que se
verifica nas relações
de troca: o comprados um objeto que vale 1.000 dever efetuar um p~aganento de
igi01 valor
(1.000 = 1.000);
b) igualdade proporcional ou relativa é a que se rédea na
distribuição dos benefícios e encargos entre os membros de uma CoItibui
comunidade: se A, que
contribui com 50, re~cete 5, B, que
com 80, receberá 8 (5/50 = 8/80)•
Aristóteles chamou à primeira igualdade de `aritmética'' segunda "geométrica"sa
Em qualquer caso, a justiça procura realüar uma igualaadP nas relações entre os
homens. Ou,
corno diz Lachance,55 na justiça de erros nos igualar ao próximo por um ato.
Se A recebe de B um objeto ou serviço que vale 100 paga 100, a igualdade inicial
foi mantida. A
ação foijusta. Se pag~li senos de 100, violará a justiça. Se der mais, praticará
uma líber `tde e não,
simplesmente, um ato de justiça.
De modo semelhante, na distribuição dos lucros de Um" sociedade, se A, que
contribuiu com 100,
recebeu 10, e B, que ~JDI'ibui com 50, recebeu 5, foi respeitada uma igualdade
básica.
4.3.3 Igualdade fundamental dos homens
Essas considerações nos levam ao fundamento da justi(a• que é
a igualdade essencial de todos os homens. Socais?
Por que exige a justiça ess ~ánigá a dédma natureza ee Jigtidade
Porque todos os homens PIES instN
fundamentais. Nenhum homem pode ser considerado sim coro diz
mento e ser usado como tal. A finalidade de justiça, 16
Vermeersch, é assegurar a igualdade pessoal dos homens:
`54' Aristóteles, Ética a Nicômano, liv. V, cap. 4.
ss Lachance, Le concept du droit, soe. cit.
A. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, v. 1, p. 39.
CONCEITO DE JUSTIÇA 137
"Fundamental é o princípio de que cada ser humano é pessoa, isto é, uma natureza
dotada de
inteligência e vontade livre", diz João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris.
São, por isso, incompatíveis com uma exata concepção da justiça todas as
doutrinas que negam a
igualdade de natureza e dignidade de todo o gênero humano. O que se deu, de
forma geral na
Antiguidade, com as concepções de desprezo ao estrangeiro, considerado como ser
inferior, e o
regime de escravidão, geralmente admitido, e justificado por muitos, com a
negação da igualdade
de natureza entre o senhor
• o escravo. Está nesse caso a famosa teoria de Aristóteles, que considerava o
escravo um
"instrumento vivo". Doutrina que, apesar das atenuações salientadas por Ross,51
Lachance e
outros, afirma claramente a distinção de natureza entre o escravo e o homem
livre: "Há na espécie
humana indivíduos tão inferiores a outros, como o corpo o é em relação à alma,
ou o animal em
relação ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor
que deles se
obtém...; tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão."
É comum, por isso, dizerse que a verdadeira noção de justiça só penetrou no
mundo com o
Cristianismo, que proclamou, de maneira
• com amplitude e convicção até então desconhecidas, a igualdade fundamental e a
universal
fraternidade de todos os homens, de qualquer raça e condição.
Pela mesma razão, é incompatível com a verdadeira noção de justiça toda doutrina
que, negando
essa igualdade de natureza, pretenda estabelecer raças de senhores e raças de
servos.
Violam, ainda, o princípio fundamental da justiça todos aqueles que, na
expressão candente da
Rerum Novarum, "tratam o trabalhador como escravo, quando é de justiça que se
respeite nele a
dignidade do homem". "E vergonhoso e desumano", continua o mesmo documento,
"usar do
homem como de simples instrumento de lucro, e não
• considerar senão em proporção ao vigor de seus músculos".59
X51 "On doit remarquer que l'esclavage chez les Grecs était en grande partie
exemple des abus qui l'ont déshonore chez les Romains et sauvent aussi dans les
temps
modernes. L'approbation qu'Aristote donne à l'esclavage présent un
certain nombre de caractères qui doivent être signalés: 1) L'enfant d'un esclave
par nature, n'est
pas necessairement, lui même, esclave par nature. 2)
L'esclavage par sinple droit de conquête dans Ia guerre ne doit pas être
approuvé. Une pui,sance
supérieure ne signifie pas toujours une excellence
supeneure. 3) Les intérets du maitre et de l'esclave sont les mêmes. Le maitre
ne noit donc pas
abuser de son autorité. Il doit être l'ami de son esclave.
ss II ne doit pas simplement lui commander, mais raisonner avec lui. 4) Les
esclaves doivent
poivoir espérer être un jour émancipés". Aristote, W. D. Ross, Paris, Payot,
1930, cap. VIII, p. 334 e
335. Aristóteles, Política
Leão XIII, EncíicQ liv. l.° e 2.°, § 13.
a Rerum Novarum, 1891.
à
t
138 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE JUSTIÇA 139
Esse princípio foi proclamado expressamente na Declaração Uni
versal dos Direitos do Homem, em 1946, nos Princípio da termos seguintes: "O
reconhecimento da
dignidaigualdade de inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz do
mundo".
"Todos são iguais perante a lei" é a fórmula comum do princípio de igualdade nas
Constituições
modernas."
Esse respeito à dignidade fundamental da pessoa humana, que constitui a base da
justiça, não
pode ser considerado apenas abstratamente. É na realidade histórica, concreta e
variável, em que
as relações sociais se desenvolvem, que a justiça e suas exigências devem ser
atendidas. É aí
que se situa o trabalho e a luta permanente pela justiça, que dá sentido e
grandeza à tarefa dos
juízes, promotores, advogados e demais servidores do direito.
Como observou Del Vecchio,6' foi por não haver feito essa distinção, entre a
pessoa humana em
sua essência e em sua existência histórica, que se cometeram os erros
característicos da
abstração política, ao mesmo tempo que a reação unilateral contra tais erros
conduziu outras
escolas, como por exemplo o historicismo, a erros contrários, isto é, a
desconhecer o critério
absoluto da justiça, que decorre da consideração da natureza humana.
5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social
Grande número de opiniões pode ser encontrado a respeito das espécies de
justiça. Deixando de
lado discussões intermináveis," que, freqüentemente, se fundam em aspectos
secundários do
problema, podemos dizer que há:
a) uma justiça particular, cujo objeto é o bem do particular; b) uma justiça
geral, também chamada
legal ou social, cujo objeto
é o bem comum.
Sobre o princípio da igualdade, V. Anacleto de Oliveira Faria, Do princípio da
igualdade. Teoria e
prática, São Paulo, 1967. J. Maritain, "L'égalité
humaine", cap. III de Principes d'une politique humaniste, Nova York, Maison
Française, 1944.
Yves Simon, "Igualdade democrática", cap. IV de Filosofia
do governo democrático, Rio, Agir, 1955. Conteúdo jurídico do princípio da
igualdade, Celso
Antônio Bandeira de Mello, Ed. RT; v. Constituição Federal,
art. 5.°.
Dei Vecchio, Justice, Droit, État, § 12.
V. A. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, §§ 23 a 26. E. Lustosa,
Justitia socialis, Rio,
1936. G. Renard, La théorie de 1'institution, p. 27, nota
2. Dei Vecchio, ob. cit., § 6, especialmente, p. 32, nota 3.
A justiça particular, por sua vez, pode se realizar de duas formas:
a) um particular dá a outro particular o bem que lhe é devido; chamase, então,
justiça comutativa;
b) a sociedade dá a cada particular o bem que lhe é devido; chamase, nesse
caso, justiça
distributiva.
Na justiça geral, social ou legal são as partes da sociedade isto é,
governantes e governados,
indivíduos e grupos que dão à comunidade o bem que lhe é devido.
Em esquema:
GERAL, SOCIAL ou LEGAL
Temos, assim, três espécies fundamentais de justiça: a comutativa, a
distributiva e a social, que
serão estudadas separadamente nos capítulos seguintes. Essa divisão tem sua
origem nos
estudos de Aristóteles, foi desenvolvida por longa elaboração histórica e é
defendida
modernamente por Duguit, Dabin, Lachance e outros.
No mesmo sentido, é a classificação proposta por Renard, ao dividir a justiça
em:
a) "justiça individual", que preside à trocas e demais relações interindividuais
e corresponde à
justiça comutativa;
b) "justiça institucional", que preside à atividade social dos homens em relação
às comunidades,
como a nação, a família, a universidade etc.; neste caso, se a justiça
institucional desce da
autoridade aos membros da comunidade, ela constitui a justiça distributiva; se
ela sobe destes
para a comunidade, temos a justiça geral, legal ou social."
Como dissemos, a matéria comporta grandes discussões.
Alguns autores sustentam que só a comutativa
realiza a noção perfeita de justiça e, por isso, Pontos
só ela pode ser chamada justiça propriamente controvertidos dita."
G. Renard, La théorie de l'institution, p. 24 e ss.
V. adiante Cap. 6, item 1; Faidherbe, La justice distributive, cap. II, p. 22 e
ss.: Qualques auteurs
récentes (Waffelaert, Pottier, l'école de Malines,
Cathrein, à Ia suite de De Lugo), considèrent seule Ia justice commutative
comine justice
proprement dite. Les autres sont appelées justices para analogie;
Ia justice légale et Ia justice distributive ne sont pas ordonnées à un autre
parfaitement distinct. Le
R. P. Merkelbach, cependant, juge qu'il faut, avec
Saint Thomas, recconaitre en ces vertus Ia vraie notion de Ia justice: Ia
société est, en effet, une
personne morale distincte des personnes privés qui sont ses membres (B. H.
Merkelbach, O. P.,
Summa Theologia e Moralis, II, p. 256). Vermeersch, ob. cit., § 21.
JUSTIÇA
PARTICULAR COMUTATIVA DISTRIBUTIVA
(60)
(61) (62)
(63) (6a)
140 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
Outros pretendem acrescentar às três espécies mencionadas a "justiça
vindicativa", que exige a
punição dos culpados,ó5 a "justiça familiar ou doméstica", que tem por objeto as
relações de
famílias" ou, ainda, outras virtudes. Mas, como veremos nos Capítulos 2, 3 e 4,
todas são afinal
redutíveis à justiça comutativa, distributiva ou social.
6. Virtudes anexas à justiça
Gravitando em torno da justiça e participando de algumas de suas
características, encontramos o conjunto das chaJustiça por madas virtudes
anexas, tais como a
gratidão, a aproximação veracidade, a liberdade, o respeito filial, a
eqüi
dade e outras.
As virtudes anexas, que os antigos denominavam "partes potenciais" das diversas
virtudes
cardeais, assemelhamse a estas, aproximamse das virtudes principais, mas não
se identificam
com as mesmas. Encerram apenas, de modo deficiente ou imperfeito, o conceito da
virtude
principal.
No caso da justiça que consiste essencialmente em dar a "outrem" o que lhe é
"devido", segundo
uma "igualdade" , são virtudes anexas todas as que dizem respeito "a outrem",
isto é, todas as
virtudes sociais, em que não existe um "devido" estrito ou não se realiza
verdadeira "igualdade".
A primeira condição da justiça, diz Sertillanges,ó7 é dizer respeito a outrem.
Toda virtude que
estiver nesse caso poderá ser chamada, de certo modo, "justiça". Mas, a rigor,
essa denominação
não lhe será adequada, se a essa virtude faltar alguma das demais condições, a
saber, se ela não
puder realizar uma verdadeira "igualdade" ou não se referir a um "devido"
rigoroso, legal, exigível,
mas apenas a um dever moral.
de igualdade
a) o respeito filial ou piedade filial (pietas),
virtude pela qual o filho dá aos pais a consideração que lhes é devida; a
igualdade no caso é
impossível porque o filho nunca pode, a rigor, saldar sua dívida e considerarse
quite, pois, entre
outras coisas, recebeu dos pais a própria vida;
b) o respeito público (observantia), virtude que leva os cidadãos a dar aos
homens eminentes, por
alguma grande obra ou ação, a consideração que lhes é devida; no caso é também
impossível
realizar a igualdade exigida pela justiça;
c) a virtude da religião (religio), que leva a criatura a dar ao Criador o
reconhecimento ou culto que
lhe é devido; aí, com maior razão, é impossível a realização de uma verdadeira
igualdade.
Outro grupo de virtudes anexas à justiça é constituído pelas virtudes ad
alterum, em que não há
um "devido" rigoroso ou exigibilidade possível: São elas, entre outras:
a) a amizade, virtude que consiste em querer
o bem do próximo; todos os homens têm direito à amizade de seu semelhante; mas a
amizade, por
sua própria natureza, não pode ser exigida coativamente;
b) a veracidade, que consiste na virtude de dizer a verdade, de expressar o que
se pensa; mas,
como não se pode entrar no pensamento de outra pessoa, não se pode também exigir
a verdade
por
meio legal, faltalhe a nota da exigibilidade rigorosa;
c) a gratidão, virtude pela qual o indivíduo se mostra agradecido a outrem pelo
benefício recebido;
como "memória dos serviços de outrem e disposição de retribuílos", conforme a
definição de
Cícero, a gratidão também não pode ser legalmente exigível;
d) eqüidade (epiekeia), que Aristóteles definiu como "uma adaptação da lei
quando ela é deficiente
por causa de sua universalidade", 69 implica sempre uma moderação das palavras
da lei, em
casos particulares, para atender melhor à sua finalidade e ao seu espírito;
`68) "Dupliciter aliqua virtus ad alterum a ratione justitiae deficit: uno
quidem modo, in quantum
deficit a ratione aequalis; alio modo in quantum deficit a ratione
debiti". S. Tomás, 11 11, q. 80, a. único.
69 Aristóteles, Ética a Nicômano, liv. V, cap. X.
CONCEITO DE JUSTIÇA 141
Daí, dois grupos naturais de virtudes anexas à justiça .68
Em primeiro lugar, as virtudes ad alterum em que não se realiza uma "igualdade"
perfeita. Estão
nesse caso:
Falta
Falta
de exigibilidade
é espontânea,
(65)
(66) (67)
"Muchos autores, siguiendo a Schalzgrueber (Jus ecclesiasticum, § 11) anaden una
cuarta especie
de justicia, Ia vindicativa, que es Ia virtud que exige Ia pena a los culpables,
por amor al recto
orden." Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, § 21.
Sobre a "justiça" familiar, defendida por Dabin, como ramo autônomo da justiça,
v. La philosophie
de l'ordre juridique positif, §§ 92 e 107. Vermeersch, ob. cit., § 25.
Sertillanges, La philosophie morale de S. Thomas d'Aquin, cap. IX, n. 1, p. 191
e ss. Sobre as
virtudes anexas à justiça, ver ainda J. Dabin, La philosophie de l'ordre
juridique positif, § 82 e ss.,
Théorie Générale du droit, 221 e ss. G. Renard, Le droit, 1'ordre et Ia raison,
p. 339 a 341.
Lachance, "Droits imparfaits", cap. 8 de Le concept de droit. S. Tomás, De
partibus potentialibus
justitiae vel de virtutibus ei annexis, II II, q. 80 a 121. Cícero, De offcis,
De inventione, cap. 52.
Aristóteles, Ética a Nicômano, passim.
142 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
por isso mesmo, ela não pode ser exigida e constitui, como diz S. Tomás, uma
virtude anexa à
justiça legal."
7. Outras formulações
7.1 Duas definições clássicas de justiça: Ulpiano e Cícero
Félix Senn, De Ia Justice et du droit, Paris, Sirey, 1927, v. I.
"Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi", texto de
Ulpiano, no livro I de
suas "Regras", incluído, no Digesto, livro 1, título I, De Justitia et Jure, fr.
10, pr.
Essa definição da justiça, que nossas compilações jurídicas nos transmitem, não
é entretanto a
única definição da justiça, que a sabedoria antiga nos deixou. Há uma outra que
Cícero indica no
"De invencione", e que a Idade Média cristã também reproduz. A justiça não é
definida aí como
uma vontade, mas como um hábito, uma disposição do espírito que dá a cada um o
que lhe é
devido, sem contudo prejudicar a utilidade comum.
"Justitia est habitus animi, communi utilitate conservata, suum cuique tribuens
dignitatem."
Estas duas definições são contraditórias, ou antes elas se complementam,
fazendonos melhor
compreender a noção da justiça? São elas obras de Cícero ou do jurisconsulto
Ulpiano, ou estes
não fazem mais do que as reproduzir, retirandoas de fontes mais antigas?
Enfim, se a justiça é ao mesmo tempo habitus animi e "vontade", que atribui a
cada um o seu
direito, cuique jus suum, qual é, então, esse cada um e qual é este direito que
deve ser atribuído a
cada um?
As respostas a estas diversas questões são dadas, de uma maneira muito precisa,
pelas fontes
mesmas de onde foram tirados os elementos das definições reproduzidas por
Cícero, e, seguindo
sem dúvida numerosos outros jurisconsultos, por Ulpiano.
Estas fontes, aliás, não são romanas. São de origem grega, ou, talvez, de origem
ainda mais
antiga. Em todo caso é da escola pitagórica e estóica que Roma recebeu a
definição, desde então
tradicional, de justiça.
7.2 Lei positiva e justiça
Hans Kelsen, What is justice?, Ed. University o California, 1957, p. 293.
A teoria pura do Direito restringese à análise estrutural da lei positiva,
baseada no estudo
comparativo das regras sociais que atualmente existem e existiram na história
sob o nome de lei.
Portanto, o problema da origem da lei a lei em geral ou uma ordem legal
particular , significando
as causas do surgimento da lei com seu específico conteúdo, está fora do alcance
desta teoria.
X70' De justitia, 11 11, q. 80, a. único, ad 5; II II, q. 120, a. 2. Sobre a
eqüidade como virtude anexa
à justiça, v. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, § 84 e ss. B.
Raffo Magnasco, La
justicia, lec. XVI, p. 233 e ss.
São problemas de sociologia e de história. E, como tal, requerem métodos
totalmente diferentes
dos de uma análise estrutural das regras legais existentes.
Como a questão da origem da lei, a questão de estabelecer se uma dada regra
legal é justa ou
injusta não pode ser respondida dentro da estrutura e pelos métodos específicos
de uma ciência
orientada para a análise estrutural da lei positiva. Isto não significa
necessariamente que a questão
sobre o que seja justiça não possa ser respondida científica e objetivamente.
Mas, mesmo que
seja possível decidirse objetivamente sobre o que é justo e o que é injusto,
como é possível
determinar o que é um ácido e o que é uma base, justiça e lei devem ser
consideradas como dois
conceitos diferentes. Se a idéia de justiça possui alguma função, é a de ser um
modelo para a
leitura da boa lei e um critério para a distinção entre uma lei boa e uma lei
má.
Existe, entretanto, na ciência jurídica tradicional, uma tendência terminológica
em identificar lei com
justiça, a usar o termo no sentido de lei justa, e a declarar que uma ordem
coercitiva eficaz e,
portanto, uma lei positiva válida, ou uma norma qualquer de tal ordem social,
não é uma lei "real"
ou "verdadeira" se ela não for justa. Este uso do termo "lei" tem o efeito de
que qualquer lei positiva
deva ser considerada à primeira vista como justa, já que se apresenta como lei e
é geralmente
chamada "lei". Pode ser duvidoso que ela mereça ser denominada lei, mas ela tem
o benefício da
dúvida. Aquele que nega a justiça de tal "lei" e afirma que a assim chamada lei
não é "lei
verdadeira", tem que provar isto; e esta prova é praticamente impossível já que
não existe um
critério objetivo de justiça. Portanto, a conseqüência real da identificação
terminológica entre a "lei"
e a `justiça" é uma justificação ilícita de toda lei positiva.
Não há e não pode haver um critério objetivo de justiça devido ao seguinte:
afirmar que algo é justo
ou injusto é um julgamento de valor em referência a um fim último, e estes
julgamentos de valor
são por natureza de caráter subjetivo, porque baseados em elementos emocionais
de nossa
mente, em nossos sentimentos e desejos. Eles não podem ser verificados pelos
fatos, como
podem as afirmações sobre a realidade. Os julgamentos dos valores últimos são
sobretudo atos de
preferência; eles indicam o que é "melhor" e não o que é "bom"; eles implicam
uma escolha entre
dois valores conflitantes, como, por exemplo, a escolha entre liberdade e
segurança. Se um
sistema social que garante a liberdade individual, mas não a segurança
econômica, é preferível a
um sistema social que garante a segurança econômica, mas não a liberdade
individual, depende
da decisão sobre qual dos dois valores, liberdade ou segurança, é o maior. É
difícil negar que
existe uma diferença radical entre a afirmação de que a liberdade é valor maior
do que a
segurança, ou viceversa, e a declaração de que a água é mais pesada do que a
madeira. Há
indivíduos que preferem a liberdade
à segurança porque eles sentemse felizes
somente se estão
livres, e portanto preferem um sistema social e o consideram justo somente se
ele garante a
liberdade individual. Mas outros preferem a segurança porque sentemse felizes
só quando estão
economicamente seguros, e por conseguinte só consideram um sistema justo se ele
garante a
segurança econômica. Seus julgamentos sobre o valor da liberdade e da segurança,
e portanto
sua idéia de justiça, estão, em última análise, baseados apenas em seus
sentimentos. Nenhuma
verificação objetiva dos seus julgamentos de valor é possível. E, como o homem
difere muito em
seus sentimentos, suas idéias de justiça são muito diferentes. Esta é a razão
porque, a despeito
das tentativas feitas pelos mais ilustres Prensadores da humanidade para
resolver o problema da
justiça, não existe nenhum acordo, mas o mais apaixonado debate na resposta à
questão sobre o
que é justo. Bem diferente é a situação em relação às afirmações sobre a
realidade. A declaração
de que a água é mais pesada do que a madeira pode ser verificada pela
experiência.
CONCEITO DE JUSTIÇA
143
144 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
CONCEITO DE JUSTIÇA 145
As afirmações sobre fatos são baseadas, é verdade, na percepção de nossos
sentidos,
controlados pela razão, e, portanto, são, de certa forma, também subjetivas. Mas
as percepções
dos nossos sentidos estão sob o controle da nossa razão em grau muito maior do
que os nossos
sentimentos, e, como matéria de fato, ninguém duvida de que a água seja mais
pesada do que a
madeira. Mesmo se aceitamos a filosofia do subjetivismo radical e admitimos que
o universo existe
apenas na mente do homem, nós precisamos, não obstante, sustentar a diferença
que existe entre
julgamentos de valor e afirmações sobre a realidade. A diferença pode ser apenas
relativa, entre
graus de subjetividade ("objetivo" significando, então, o menor grau possível de
subjetividade). Mas
a diferença relativa já é suficiente para justificar a diferença entre um
julgamento sobre o que é
justo e uma afirmação sobre o que é a lei, a lei positiva. Lei "positiva"
significa que uma lei é criada
por atos de seres humanos que têm seu lugar no tempo e no espaço, em
contraposição à lei
natural, que se considera ter outra origem. Conseqüentemente, a questão sobre o
que é a lei
positiva, a lei de certo país ou a lei num caso concreto, é a questão de um ato
criador da lei, que
ocorreu num determinado tempo e espaço. A resposta a esta pergunta não depende
dos
sentimentos daqueles que respondem; ela pode ser verificada por fatos objetivos,
ao passo que a
questão sobre se a lei de um certo país ou a decisão de uma determinada corte é
"justa" depende
da idéia de justiça, admitida pela mente de quem responde, e esta idéia de
justiça está baseada na
função emocional dessa mente.
7.3 Pensamentos sobre a justiça
B. Pascal, Pensées, Paris, Ed. Libr. Hachette, 1946, n. 294 e 298.
Três graus de elevação do pólo invertem toda a jurisprudência, um meridiano
decide sobre a
verdade; em poucos anos, as leis fundamentais se transformam; o direito tem suas
épocas, a
entrada de Saturno em Leão nos assinala a origem de um tal crime. Bizarra
justiça que um riacho
delimita! Verdade deste lado dos Pirineus, erro do outro lado.
Eles confessam que a justiça não está nos seus costumes, mas reside nas leis
naturais,
conhecidas em todos os países. Certamente isso seria sustentável se a temeridade
do acaso que
semeou as leis humanas tivesse deixado ao menos uma que fosse universal; mas a
realidade é
tão engraçada e o capricho dos homens está tão diversificado que não existe
nenhuma.
O furto, o incesto, o assassínio de filhos e de pais, tudo teve seu lugar entre,
as ações virtuosas.
Pode haver alguma coisa mais divertida que um homem ter o direito de me matar
porque ele mora
do outro lado do rio e seu príncipe brigou com o meu, ainda mesmo que eu não
tenha nada com
ele?
Há sem dúvida leis naturais; mas esta bela razão corrompida a tudo corrompeu:
"Nihil amplius
nostrum est; quod nostrum dicimus, arts est. Ex senatus consultis et plebiscitis
crimina exercentur.
Ut olim uittis, sic nunc legibus laboramus".
Desta confusão decorre que um diz que a essência da justiça é a autoridade do
legislador, outro a
comodidade do soberano, outro o costume atual, e é o mais certo: nada, apenas
pela razão, é
justo por si mesmo; tudo se transforma com o tempo. O costume realiza toda a
eqüidade, pela
simples razão de que ele é aceito; esse é o fundamento místico de sua
autoridade. Quem pretenda
reduzilo ao seu princípio, o aniquila. Nada é tão falível como estas leis que
retificam os erros;
quem as obedece porque elas são justas, obedece à justiça que imagina, mas não à
essência da
lei: todo seu valor está concentrado em si mesma; ela é lei, e nada mais. Quem
quiser examinar o
motivo o encontrará tão fraco e superficial, que, se ele não estiver acostumado
a contemplar os
prodígios da imaginação humana, admirará que um século lhe tenha proporcionado
tanta pompa e
reverência. A arte de subverter os Estados é a de abalar os costumes
estabelecidos, pesquisando
até sua fonte, para assinalar sua falta de autoridade e de justiça. É preciso,
dizse, voltar às leis
fundamentais e primitivas do Estado, que um costume injusto aboliu. É um jogo
seguro para tudo
perder; nada será justo nessa balança.
Justiça, força. É justo que o que é justo seja seguido, é necessário que o que é
mais forte seja
seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirania. A
justiça sem força é
contraditada, porque os maus sempre existem; a força sem a justiça é acusada. E
preciso, pois,
colocar juntas a justiça e a força; e assim fazer com que o que é justo seja
forte, e o que é forte
seja justo.
A justiça é sujeita a discussão, a força é reconhecida sem discussão. Assim não
se pode dar força
à justiça, porque a força contradisse a justiça e afirmou que ela era injusta e
disse que ela é que
era justa. E, assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, acabou
fazendo com que
o que é forte fosse justo.
7.4 Justiça civil e justiça penal
G. Del Vecchio, A Justiça, Saraiva, 1960, p. 94.
Houve, em todos os povos e tempos, um sistema regulador, resultante dos
elementos psíquicos
dos próprios homens conviventes, e que assinala a cada um a esfera própria de
atividade, ligando
uns aos outros mediante uma série de vínculos bilaterais e recíprocos, de sorte
que pretensões e
obrigações se correspondem e se convertem. Nem importa que tal sistema não seja
sempre
enunciado ou formulado por escrito, uma vez que essa formulação, mesmo onde ela
se verifique,
não pode, por motivos vários, ser totalmente cumprida. O sistema vive como
organismo lógico,
enquanto é sustido e alimentado pela consciência social preponderante, que de
contínuo o elabora
e renova. Ele tem uma racionalidade intrínseca própria, que o pensamento reflexo
descobre e
analisa só num segundo momento, como que percorrendo de novo a própria obra
genuína e
imediata de criação. Isto mesmo é o que acontece com todos os outros produtos
históricos (por
exemplo, a linguagem), nos quais o espírito manifesta ativamente suas potências
profundas, ainda
antes de estas aflorarem e se delinearem na lúcida tela da consciência.
Portanto, também o
sistema das determinações intersubjetivas do operar é antes costumado ou
praticado que
raciocinado (para nos servimos da expressão de Vico); o que em nada diminui seu
significado
ideal, mas é novo documento de sua humana necessidade.
Uma vez que o fenômeno da retribuição do mal com o mal, sobretudo na forma
típica do talião
(retaliatio) ou da vingança regulada e comensurada, é o que mais dá na vista
entre os fenômenos
da justiça
primitiva, asseverouse que a justiça penal precede historicamente a
civil. "Dans les
sociétés primitives", escreve por exemplo Durkheim, "le droit est tout entier
pénal". Mas, contra
esta tese, é fácil observar que a pena, com o delito a que corresponde, supõe um
estado
precedente de normalidade ou de equilíbrio: por outras palavras, uma exigência e
uma obrigação
correlativas, determinadas por uma regra, embora tácita, mas que na imensa
maioria dos casos é
observada e não transgredida. A transgressão, ou seja, a perturbação do
equilíbrio, que
justamente se visa restabelecer mediante a pena, representa na realidade uma
146 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO
exceção, e logicamente um consecutivum. Em suma, a lei penal tem como
pressuposto uma série
de valores jurídicos já definidos e reconhecidos, relativamente aos quais ela
constitui só uma
espécie de justiça segunda.
Certo é que já com a primeira espécie de determinações jurídicas (ou justiça
primeira) é dada
virtualmente a possibilidade da transgressão; se assim não fosse, seria
insensata a afirmação de
qualquer máxima deontológica. Mas aquilo que para estas determinações é mera
virtualidade (que
pode não verificarse efetivamente, e as mais das vezes não se verifica) é, ao
invés, a necessária
base de fato para a justiça penal: a qual parte justamente da hipótese de uma
injustiça praticada
ou injúria, para referir uma nova série de determinações jurídicas, sujeitas
estas, por seu turno, à
possibilidade de uma transgressão ou de inadimplemento.
O caráter secundário da justiça penal manifestase principalmente no fato de ela
não intervir em
todos os casos de violação dos preceitos jurídicos elementares ou primários; tal
violação é
condição necessária, mas não suficiente para que se dê lugar àquela justiça. O
direito violado
admite ainda outras formas de reafirmação e reintegração, ainda mais intimamente
conexas com
aquela exigência fundamental, que se identifica com a natureza lógica do direito
em geral, ou seja,
a impedibilidade da ofensa. Desta seguese imediatamente a obrigação de
restituir e de ressarcir,
em todos os casos de injustiça praticada e de damnum injuria datum. Mas a
restituição e o
ressarcimento são por si conceitos meramente civis; como o respeito do limite
jurídico originário,
nem mudam de natureza, embora sejam postos em ato por meios coercitivos. Em
poucas palavras,
há uma sanção e uma coação civil as quais (como exigências) são inseparáveis do
direito; ao
passo que a sanção e a coação penal, que por vezes se acrescentam e sobrepõem
àquelas,
podem faltar, e de qualquer maneira nunca são possíveis por si sós.
A noção elementar da justiça, como equilíbrio e correlação intersubjetiva, que
se resolve na
exigência recíproca do respeito e na recíproca possibilidade de impedir a
ofensa, está pois
implícita na fenomenologia jurídica primitiva, e subentendida nas próprias
formulações penais,
muito embora estas pareçam existir por si, ou extrinsecamente se revelem como um
prius. Na
realidade, estes diversos graus e momentos da justiça, que a sucessiva
elaboração, científica e
técnica, discrimina e dispõe arquitetonicamente, mostramse, a princípio, como
que confusos, ou
melhor, compreendidos num só núcleo. Assim, por exemplo, o instituto da
composição, que tão
grande papel desempenhou no direito antigo, encerra em si elementos civis e
penais, privados e
públicos. Todavia, é claro que isto, longe de infirmar, confirma antes o que já
por outra via se
demonstrou, a saber, que, qualquer que seja a importância das distinções feitas,
ou a fazer, nesta
matéria, um só é o germe e o motivo de todas as maneiras de justiça: Leges
innumerae, una
justitia.
Sem dúvida, é longo e laborioso o processo histórico, mediante o qual "desde a
infância do mundo"
(para nos servirmos das palavras de Vico) as "sementes: eternas do justo se vão
desdobrando em
máximas demonstradas de justiça"; e quase' não vale a pena advertir que, nas
fases primordiais, a
justiça não se encontra naquel plenitude e perfeição ideal, que, aliás, para
falar verdade, em vão
se procurara; também nas fases mais avançadas. Ora, justamente, quanto maior for
em nós
"consciência histórica", ou, por outra, a noção da complexidade do processo lent
pelo qual se vai
formando este "mundo civil", tanto maior motivo de admira temos em descobrir
desde o exórdio
como sendo já dados, ou só virtualmen ou implicitamente, os elementos
fundamentais e a trama do
mesmo processo. conseguinte, quem parte do preconceito positivista ou empirista
de que no
espíritda e, portanto, na história, nada é dado a priori, e que conseqüentemente
tambó a justiça é
apenas um efeito do devir e algo de artificial, deve, perante esse fa
maravilhoso e, entanto, inegável, desenganarse ou contradizerse: como
aconteceu, por exemplo,
com Littré, o qual, após ter asseverado que a justiça "loin d'être primordiale,
innée, élémentaire, est
secondaire, acquise et complexe", acaba por confessar que "un élément
irréductible, qui est dans
l'esprit de 1'homme, le soumet à l'idée de justice"; elemento este que ele faz
consistir na simples
intuição (intuition irréductible): "A égale A. A diffère de B".
Quanto a nós, queremos dizer a quem reconhece os valores espirituais como
superordenados à
realidade fenomênica: o elemento primeiro e universal, que se encontra no fundo
de toda
experiência jurídica, é sem dúvida argumento que nos deve maravilhar, todavia
nem mais nem
menos do que tantos outros igualmente procedentes da atividade do espírito, e
que refletem a
natureza do mesmo espírito. Em sentido análogo, para relembramos apenas um
exemplo clássico,
Sócrates admirava, e ensinava a admirar, o espontâneo desvelarse das verdades
geométricas
eternas na mente de jovem escravo inculto; e Kant, à imitação de Rousseau,
assinalava o milagre
sempre antigo e sempre novo, que é para a nossa consciência o auscultar em si o
simples e
imperioso ditame da lei moral. Precisamente as verdades mais simples e "comuns"
como já o
observava, e, bem, Schopenhauer são maravilhosas para o filósofo; ao passo que
os não
filósofos só se maravilham perante os fenômenos insólitos.
8. Bibliografia
ARISTÓTELES. Ética a Nicômano, especialmente livro V, e Política. ASCOLI, Max.
La giustizia.
Pádua : Cedam, 1930.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da
igualdade. São Paulo : RT.
BELL, Daniel. The end of ideology. N. York, 1965.
BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BRETHE DE LA
GRESSAYE. Introduction à i'étude du droit. Paris : Recueil,
1947.
BUCH, H. e outros. L'égalité. Bruxelas, 1971.
CATHREIN, V. Filosofia morale. Florença : Florentina, 1913. . Filosofia dei
derecho. Madri : Reus,
1940.
CAVALCANTI FILHO, Theophilo. O problema da segurança no direito, São
Paulo : RT, 1964.
CÍCERO. De officis, De Republica, De legibus.
CZERNA, R. Cirell. A justiça como história. São Paulo : Saraiva, 1952. COSSIO,
Carlos. La
valoración juridica y Ia ciencia dei derecho, 1954. DABIN, J. La philosophie de
l'ordre juridique
positif. Paris : Recueil, 1929. . Théorie générale du droit. Bruxelas :
Bruylant, 1944.
DEL VECCHIO, G. A justiça. Tradução portuguesa de Antônio Pinto de Carvalho
e prefácio de Clóvis Beviláqua. São Paulo : Saraiva, 1960. DESROSIERS, i. B.
Soyons justes.
Montreal : Institut Pie XI, 1945. 2 v. DUJOVNE, León. Teoria de los valores y
filosofia de ia historia,
1959.
FAIDHERBE. La justice distributive. Paris : Recueil. 1934.
FARIA, Anacleto Oliveira. Do princípio da igualdade. São Paulo : RT, 1973. GENY,
F. Science et
technique en droit privé positif. Paris : Recueil, 1922.
GURVITCH, G. Sociologia jurídica. Rio de Janeiro : Kosmos, 1946. HAURIOU,
Maurice. Aux
sources