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73 FELIPE, Sônia T. O caso do filme Sommersby. In: A violência das mortes por decreto. Editora da Ufsc: Florianópolis, 1998. O CASO DO FILME SOMMERSBY Sônia T. Felipe 1) A execução. Toda a comunidade assiste. Muitos o abençoam. O padre reza a oração de encomenda da alma a Deus. Jack está nervoso. Ele não pode morrer, sem ter, antes, visto sua mulher junto à comunidade reunida. Ela vem, finalmente, abrindo espaço por entre as pessoas que esperam a execução. Ele olha, nervoso, à procura do seu rosto. Ela consegue passar até a primeira fila e vê seu olhar inquieto. Chama-o pelo nome “Jack!”, o nome que ele tomara do amigo morto, como tomara sua esposa, sua propriedade em ruínas para restaurá-la, beneficiando, assim, toda a comunidade. Por isso, os concidadãos o abençoam, quando ele sobe o cadafalso. Ela grita, sim, esse nome, o do seu marido, o nome pelo qual ele agora tinha de pagar com a própria vida. “Jack, estou aqui!" Seu rosto finalmente se ilumina, aliviado. Seus olhos a vêem, sorriem. Os carrascos lhe cobrem a cabeça, ajeitam a corda e o conduzem à tampa falsa. Tiram-na de debaixo de seus pés. Está morto, executado em nome da Lei, condenado por homicídio. A pena de morte contra um homicida fora aplicada. Mas, quem o condenou? 1) O Estado, com suas Leis? 2) O juiz negro, num momento histórico no qual os partidários da manutenção da escravidão dos africanos na América 74 haviam perdido a guerra e toda a propriedade sobre a vida e os corpos desses negros? 3) A comunidade, ao afirmar que reconhecia nesse homem o antigo proprietário, desaparecido por seis anos na Guerra da Secessão, e que retorna, de súbito, mudado? 4) O rival do desaparecido, por ser o pretendente à mão da mulher, para quem ele trabalhara duramente nas terras, ao longo do tempo em que o marido dela sumira? 5) Ou, ainda, o proprietário vizinho, líder da Ku Klux Klan que, inconformado, agredira a um dos ex-escravos de Jack, a quem Horace-Jack concedera o direito de adquirir a propriedade, desde que pagasse por ela, como todos os demais brancos o fariam? 6) Ou, ainda, a mesma comunidade, antes despossuída, por não ser dona nem de terras, nem de escravos e que, com a volta de Jack, tivera a chance de vir a possuir a terra, desde que investisse na produção do tabaco, até que a hipoteca fosse paga? Todos os antigos trabalhadores da terra do pai de Jack estavam lá, naquela noite, reunidos num salão, quando Jack-Horace, vendo a miséria e a absoluta impossibilidade de refazer a propriedade a partir do cultivo do algodão, sem os braços negros, propôs que passassem todos a cultivar o tabaco. Mas, para começar, todos, incluindo o ex- escravo Joseph, deveriam penhorar o que tivessem de mais valioso para obter o dinheiro necessário à compra das primeiras sementes, caríssimas e raras, àquela época. Ouro, jóias, prataria, objetos de arte, baixelas, armas, tudo fora encaixotado e levado, por Jack-Horace, à Virgínia, para trocar pelas primeiras sementes preciosas da planta cobiçada. 75 2) O contrato. Reunida a comunidade, Jack-Horace toma a palavra e propõe: l) Que todos os interessados, indiscriminadamente, poderão adquirir a certidão de propriedade de uma parte das terras, quando a hipoteca estiver paga junto ao banco credor. 2) Que, para vir a ser proprietário das terras, o interessado deverá entregar ao proprietário, atual hipotecário, metade do plantio colhido, a fim de que a hipoteca possa vir a ser paga. 3) Que todos têm de contribuir com o que tiverem de mais valioso para a compra das sementes. 4) Que todos têm de aceitar a Lei, que diz que os ex-escravos africanos podem ser proprietários da terra, desde que paguem por ela, como qualquer outro cidadão. 5) Que todos devem começar a preparar a terra para a semeadura, já. 6) Que ele, Jack-Horace, levará à cidade o tesouro constituído dos bens pessoais mais valiosos de cada um dos contratantes para trocá-lo por dinheiro e esse por sementes da planta do tabaco. 7) Que todos poderão adquirir a preço razoável, liberada a hipoteca, a parcela das terras que julgarem poder cultivar com eficiência. 3) A escrítura. Jack-Horace, o homem que nem sequer é o proprietário real dessas terras hipotecadas pelo banco, devido à falência do modo de produção dependennte da escravização dos africanos, escreve uma declaração, um contrato de compra e venda, e a assina, com a mão esquerda, antes de entregá-la a cada um. Só Joseph, o ex-escravo, teme pela não-validade daquele pedaço de papel, no qual está escrita a promessa de venda de parte dessa propriedade que ele, enfIm, poderá adquirir após ter trabalhado nela toda sua vida. Jack, por não ser Jack, não pode 76 assinar com a mão direita. Usa a esquerda. Mas a entrega do pedaço de papel é feita sob as vistas de todos e vale como recibo do contrato firmado verbalmente. Jack, conforme acordado, parte levando toda a riiqueza que sobrara depois das pilhagens do exército, feita nas propriedades daqueles que eram contra o fim da escravização dos africanos nos Estados Unidos da América do Norte. Horace, o homem que parte, é procurado pela polícia por estelionato cometido contra uma outra comuniidade, onde reunira dinheiro suficiente para a construção de uma nova escola. Horace é, de fato, professor... e estelionatário. Horace não é, porém, homicida. Parte levando tudo o que cada um daqueles homens e cada uma daquelas mulheres entregara, como sinal para a aquisição de propriedade. O filho de Jack, um garoto de uns dez anos, é o último a entregar àquele homem seu tesouro: um canivete "bem afiado" e uma pele de cobra belíssima. É sua contribuição pessoal para que o projeto dê certo. Que Horace-Jack poderia também, então, dar o "golpe do baú" é possível. Ninguém fica tranqüilo durante sua prolongada ausência. Mas a esposa de Jack que não recebe, nem ela, nenhuma notícia dele, afirma sempre, a cada um, que seu marido voltará. Enquanto esperam, todos preparam a terra para a semeadura. O tempo transcorre. Horace-Jack volta. O plantio e todos os problemas típicos da cultura do tabaco são resolvidos, um a um, ora pelo ex-escravo Joseph, que conhece muito bem os segredos da lavoura, ora pelo ex-pretendente à mão da esposa abandonada, o pastor Orin, 77 que praticamente salva a empresa coletiva, ao descobrir um meio de combater a praga que devora as folhas do tabaco, coisa que Joseph desconhecia, por nunca ter cultivado o fumo. Homens maltrapilhos, ex-confederados, vêm à terra de Jack em busca de trabalho. Vêem, no entanto, que Jack não é Jack, mas um impostor. Bêbados, relatam na vila que alguém está se fazendo passar por Jack. É a chance. Orin, o rival enciumado, e alguns vizinhos, não afeitos à idéia de terem como co-proprietário das terras um negro, têm agora a possibilidade de aliviar seu ódio, eliminando o homem. Juntam-se e formam a Ku Klux Klan. Orin, o homem que quer ficar com a mulher de Jack, vai ao rancho onde este está construindo o espaço para secagem do tabaco, com o propósito de matá-lo. Tenta incendiar o rancho, agride Horace-Jack e coloca-lhe uma corda em volta do pescoço. Ele está, desde esse momento, condenado à morte pela forca, mas não por ter matado um homem depois de receber um tiro no peito. Ele está condenado à forca não pelas Leis do Estado, mas pelo ciúme e inveja de um homem que frustrado por perder a mulher cobiçada e por ter de reconhecer a superioridade empresarial do impostor, que salva, com sua idéia audaciosa de trocar de cultura no momento certo, a terra do desaparecido. Horace está condenado a morrer com a corda em volta do pescoço por ter dado chance a Joseph de se tornar um cidadão e de adquirir, em igualdade de condições, a terra que pode cultivar com sua própria força de trabalho, sem escravizar nenhum outro homem. Horace trai Jack, um confederado, proprietário de escravos que desaparecera por unir-se às forças contrá- 78 rias à libertação dos africanos e ao reconhecimento do seu direito de gozar da cidadania norte-americana. Jack-Horace foi efetivamente executado pela forca. Não a forca feita pelo rival, ali, no auge da luta corporal, não a forca feita com uma corda privada, mas uma forca pública, feita com uma corda comprada com o imposto de todos os cidadãos que concordam em condenar a morrer pela forca todo aquele que tirar a vida de outro. 4) A pena de morte e os interesses que ela representa. Na tradição contratualista bem representada nesse filme, o valor maior, acima do qual nada pode ser colocado, é o da Vida. Como uma Lei de Natureza, afirmam Hobbes, Locke e Rousseau, o impulso mais primitivo, antes do qual nada se inicia, é o da vida. Em segundo lugar: vem a preservação do Estado, e a conseqüente garantia da Propriedade1.1 É a propriedade que assegura a preservação do 1 Vejamos o que os contratualistas definem como propriedade. "Também todo soberano deve fazer que a justiça seja ensinada, o que (consistindo esta em não tirar a nenhum homem aquilo que é dele) é o mesmo que dizer que deve fazer que os homens sejam ensinados a não despojar, por violência ou fraude, os seus vizinhos de qualquer coisa que seja deles pela autoridade do soberano. Entre as coisas tidas em propriedade, aquelas que são mais caras ao homem são sua própria vida e membros, e no grau seguinte (na maior parte dos homens) aquelas que se referem à afeição conjugal, e depois delas as riquezas e os meios de vida. Portanto o povo deve ser ensinado a abster-se de violência para com as pessoas dos outros por meio de vinganças pessoais; de violação da honra conjugal; e de rapina violenta e de subtração fraudulenta dos bens uns dos outros." Thomas Hobbes, Leviatã, cap. XXX, p. 203-4. John Locke define sucintamente, no Segundo tratado sobre o governo, o que é propriedade: a vida, liberdade e os bens, (cf. parág. 87 e 123) e declara o corpo como sua base. "(0) homem, sendo senhor de si próprio e proprietário de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria ainda em si mesmo a base da propriedade." (cf. parág. 44). Rousseau, embora não usando claramente o conceito de propriedade, estabelece como finalidade da criação do Estado sua preservação para garantir o interesse de todos os cidadãos: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes." Do contrato social, Livro Primeiro, capo VI, p. 32. 79 primeiro valor, o da vida. E é o Estado que define o que é próprio de cada um. Usurpar a propriedade de outrem é tirar-lhe os meios necessários para manter-se vivo e gozar desse benefício. É em nome desse valor que os contratualistas justificam as Penas. Elas devem servir para manter unidos os cidadãos, para assegurar a paz e, finalmente, para demover aqueles que têm um impulso muito forte de atacar outros para obter ilegalmente seus bens, dos seus impulsos2. Hobbes enfatiza a função da espada como garantia do respeito recíproco pela vida, sem o qual o estado civil não se distinguiria do estado de natureza. É por temer a morte violenta, legitimada na vontade de todos, que o homem desiste de ameaçar o outro de morte. No estado de natureza, pode-se morrer por ação de qualquer um. No estado civil, só se deve morrer por ação da natureza. E, 2 Desde Sócrates que perdura a idéia de que as penas devem servir para corrigir a natureza, e não para realizar qualquer espécie de vingança. "(A) just penalty disciplines us and makes us more just and cures us of evil." Plato, Gorgias, in: EZORSKY, Gertrude, Philosophical perspectives on punishment, p. 37. Também Hobbes declara ser pedagógica a finalidade da punição: "A punishment, is an Evill inflicted by public Authority, on him that hath done, or omitted that which is Judged by the same Authority to be a Transgression of the Law; to the end that the will of men may thereby the better be disposed to obedience." Leviathan, in: EZORSKY, Gertrude. Op. cit., p. 3. John Stuart Mill defende a pena capital para crimes horrendos, argumentando que nenhuma pena deve ser infligida com o intuito de garantir um sofrimento perene ao criminoso para o resto da sua vida. Assim, em vez de condená-lo aos trabalhos forçados, o que significaria vingar-se do seu ato até o último dia da sua vida, o Estado o elimina, num instante, do rol dos vivos, sem acrescentar-lhe mais nenhuma dor. Ver: Speech in favour of capítal punishment 1868, in: Ibid., p. 271 -278. 80 aqui, só se pode morrer por um ato civil, da Lei, se se tirou a vida de outro. A pena de morte deve ser mantida para recuperar a moralidade perdida com a prática do ato violento, pensam Hobbes, Locke, Rousseau e John Stuart Mill. É essa a sua principal fmalidade. Sommersby, Jack, foi executado por homicídio, não um ato horrendo, mas um ato cometido em meio a uma briga de bêbados. A Lei foi cumprida. Mas, o que resulta dessa execução é a legitimação da certidão de propriedade, daquele pedaço de papel que promete a propriedade a todos aqueles que contribuírem com riqueza e esforços pessoais, para restaurar o valor à terra condenada à decadência. A corda em volta do pescoço de Horace, o homem que não cometera o homicídio do qual é acusado, mas que tomara o nome e a posição do real assassino, representa o acesso à propriedade para aqueles que contrataram com ele a empreitada. A propriedade não poderia ser garantida a nenhum deles, caso Horace se reconhecesse e fosse re- 81 conhecido apenas como Horace. O papel assinado com a mão esquerda nada valeria. É preciso que Horace mantenha sua palavra de que é Jack Sommersby e assuma seu dominium com total responsabilidade civil e política pelos seus atos. Se ele escapar da acusação de homicídio, isto é, se ele se declarar Horace e assumir apenas a responsabiliidade sobre o estelionato praticado contra a outra comunidade, todos serão destituídos da propriedade. Orin deve desistir, definitivamente, da mulher que ama, pois ela ama Horace e tem uma filha dele. Se ele escapa da identidade Jack Sommersby, sua filhinha será a filha de um estelionatário e a mãe, uma mulher sem princípios, que aceita em sua cama um estranho e o faz passar por marido. Qualquer juiz tiraria dela não só o mátrio poder como também a propriedade, que ela, no caso de Horace ser executado por manter a identidade de Jack, poderia vender aos que nela investiram. Horace é o único que vislumbra as conseqüências da revelação da sua identidade. Ele ensinava letras e línguas. Ele tem noção da História e dos Direitos nos quais as Leis se fundam para assegurar a unidade do Estado. Ele, o estelionatário, o que obtivera uma vez, por vias escusas, a posse dos bens alheios, é o homem que quer dar a si mesmo a grande chance de restituir uma imagem digna de ser lembrada e agradecida por todos. Sua vida em troca da propriedade que garante a vida com qualidade a todos os que apostaram no seu projeto e confiaram na sua honestidade. A vida em troca de outros valores: propriedade, honra, respeito, reconhecimento público, dignidade, amor. Mas isso, justamente, mesmo quando praticado pelo Estado, põe 82 em questão a aftrmação máxima do jusnaturalismo, qual seja, a de que nada, absolutamente nada, deve estar acima da vida e de que a pena de morte existe para que esse princípio seja lembrado e realizado. Jack-Horace-Sommersby nos diz que o mesmo Estado permite o logro na pena de morte. Ela pode, sim, ser usada para afirmar outros valores. Ela pode ser usada para assegurar a propriedade. Ela pode representar ser algo que não é. Ela pode ser executada para tirar a vida de alguém que não ameaçara ninguém de morte, para tirar a vida de um inocente desse crime. Ela serve para satisfazer outras necessidades e interesses particulares, que se garantem com o extermínio daquele que comete um crime. E, assim, ela serve como um benefício a outros, ferindo um princípio do próprio contratualismo, que, sem trair Aristóteles3, afirma que a punição não pode servir para colocar a vítima numa situação melhor do que a anterior ao ato sofrido, nem para recompensá-la com a vingança. A pena de morte deve ter a função de: 1) recuperar o bem moral perdido com o ato violento e 2) servir como exemplo para demover outros de praticarem o mesmo ato. Mas, da execução de um homem não pode resultar nenhum ganho para os demais cidadãos, apenas o restabelecimento da unidade do poder do Estado que existe para garantir a paz entre os cidadãos. A pena não pode representar acréscimo de patrimônio para ninguém, nem para o Estado, nem para os herdeiros do criminoso, nem para os 3 Aristóteles defende a aplicação da justiça corretiva como meio para restabelecer a igualdade perdida por uma das partes, quando agredida pela outra. Ver mais de perto a teoria da Justiça exposta no Livro V da Ética a Nícômaco. 83 da vítima, nem para a comunidade. O que recebe a pena deve perder algo, o privilégio de compartilhar da vida com os demais, dado que não soube dar o devido valor à vida. Mas sua perda não pode significar lucro para ninguém. Jack Sommersby foi enforcado para que todos obtivessem algo que fora assinado com a mão esquerda. Seu sangue serviu de lacre e confirmou a propriedade de todos, e garantiu a honra e o bom nome da mulher e dos seus dois filhos. Sua vida executada garantiu a Orin a posse daquelas terras que lhe couberam e, quem sabe, da bela mulher que ele cobiçara. A pena de morte, como no caso do filme analisado, pode existir para assegurar ganhos a muitos. E os que a desejam não o fazem, necessariamente, por ser essa penalidade a garantia da paz no âmbito da vida civil.