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Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 1 Apostila II – Hermenêutica Jurídica 1. Noções introdutórias: como já estudado, a hermenêutica jurídica é a ciência e arte da interpretação da linguagem jurídica, com o intuito de sistematizar princípios e regras. O objeto da hermenêutica é o estudo e sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito (MAXIMILIANO, 1999). É a teoria científica da arte de interpretar. - As leis são formuladas em termos gerais (de forma ampla, sem descer a minúcias); - É tarefa do executor a pesquisa entre o texto abstrato e o caso concreto (aplicação do direito). Para tanto é indispensável ao intérprete: a) descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; b) determinar o sentido e o alcance das expressões do direito (interpretar). - A hermenêutica já se preocupou apenas da tradução e explicação dos livros escritos em língua estrangeira. Hoje está voltada à sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e alcance das normas. 2. Aplicação do Direito: A aplicação do direito equivale ao enquadramento de um caso concreto em uma norma jurídica adequada. Todavia isto não é tão fácil como pode parecer, já que o direito precisa se transformar numa realidade eficiente em suas vertentes coletiva e individual. Exatamente por isso, conveniente a análise da natureza da norma e suas prescrições, especialmente relativas a sua colisão e adequação ao espaço, tempo, constitucionalidade, retroatividade, etc; Desse modo, para a aplicação do direito, se faz necessário examinar: a) a norma em sua essência, conteúdo e alcance; b) o caso concreto e suas circunstâncias e; c) a adaptação do preceito ao caso analisado. Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 2 Desse modo, se faz necessário perquirir sobre as circunstâncias de fato (o fato em si, o ambiente em que surgiu, suas condições, as provas sobre sua ocorrência e extensão, etc), a fim de se adaptar o preceito ao caso concreto, situação que, além das hipóteses tratadas anteriormente, impõe ao aplicador da norma uma atuação crítica e hermenêutica. Assim, podemos dizer que a adaptação do preceito ao caso concreto exige: a) crítica: análise da autenticidade e constitucionalidade da norma; b) interpretação: buscar o sentido e alcance do texto; c) suprimento de lacunas: aplicação da analogia e princípios gerais do direito; d) exame da eficácia da lei no tempo e espaço: ab-rogação, derrogação, revogação e análise da autoridade das disposições relativamente ao espaço e tempo. 3. Interpretação: Interpretar é esclarecer, explicar, dar o significado do vocábulo, mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão. Extrair de frase, sentença ou norma tudo o que mesma se contém. Tudo se interpreta, inclusive o silêncio. A arte de interpretar demanda o conhecimento dos princípios que determinam a correlação entre as leis dos diferentes tempos e lugares, bem ainda a análise do complexo de regras em que se enquadra um caso concreto. Sendo a lei uma obra humana e aplicada por homens, acaba por ser imperfeita na forma e no fundo, apresentando resultados duvidosos. A tarefa do intérprete passa, invariavelmente, pela análise, reconstrução ou síntese com a finalidade de se extrair o alcance da norma. Interpretar não é simplesmente tornar claro. É revelar o sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão reta. Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 3 O hermeneuta além da arte, da ciência, traz consigo também o valor subjetivo e por isso que se afirma que a hermenêutica é o caminho menos seguro e mais impreciso da ciência do direito. A interpretação colima a clareza, ainda que não medida matematicamente. A norma, por mais bem feita que seja, não contempla todas as faces da realidade, especialmente em razão da desmedida dinâmica da vida e do direito. Embora permaneça a letra da lei, o sentido desta deve se adaptar às mudanças que a evolução opera na vida social. “O intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do direito”. Exatamente por isso que, não raras vezes, a jurisprudência criadora pode preceder a própria legislação. Induvidosamente, a obra renovadora do direito hoje parte dos juízes, especialmente dos de primeiro grau. Graças à doutrina e aos intérpretes em geral a lei vigora como se tudo previsse, como se fosse preparada para todas as eventualidades. Assim, o intérprete acaba por multiplicar a utilidade da norma. Todo ato jurídico ou lei positiva conta com duas partes: o sentido íntimo e a expressão visível, donde se deriva a necessidade de “subjetivar” a regra objetiva. A palavra é, por sua natureza, elástica. A hermenêutica oferece os meios de resolver na prática todas as dificuldades de aplicação da norma e sua adequação ao caso concreto, ainda que dentro da relatividade das soluções humanas. 4. Vontade do legislador: A escola da exegese em direito positivo, corrente tradicionalista por excelência, defende que o objetivo do intérprete seria descobrir, através da norma jurídica, a intenção, a vontade e o pensamento do legislador. Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 4 A escola teológica repeliu esse conceito porque para os seus representantes a lei vem de Deus é descoberta e revelada por sábios, profetas, videntes, magos. Ao contrário, a escola histórica entende que a lei é produto do espírito social coletivo e não da vontade do legislador. O indivíduo que legisla é mais ator do que autor porque traduz apenas o pensar e o sentir alheios. O direito positivo é o resultado da ação lenta e realidade oportuna. Para Savigny a lei é mais sábia que o legislador porquanto capaz de abranger hipóteses que este não previu. Incumbe à hermenêutica precisamente buscar os meios de aplicar a regra abstrata, objetiva e rígida à infinita e rica variedade dos casos da vida real e à multiplicidade das relações humanas. O processo de exegese é falho neste aspecto em face da busca da vontade do legislador (vontade do rei), notadamente por ser temerário descobrir o fator psicológico da intenção. Tanto é verdade que os tradicionalistas foram forçados a admitir além da intenção real, a intenção suposta. Sustentar o pensamento do elaborador da norma é difícil, daí porque a lei independe do seu prolator. Nessa vertente, saber a vontade do legislador é apenas um dos elementos da hermenêutica. Ademais, sob qualquer dos seus aspectos a interpretação é antes sociológica do que individual. 5. In claris cessat interpretatio: Lei clara não carece de interpretação. Disposições claras não comportam interpretação. Em sendo claro o texto não se admite pesquisa de vontade. O pensamento anteriormente descrito está totalmente superado. Embora escrito em latim, referido brocardo não tem origem romana. Com efeito, o próprio Ulpiano ensinava que por mais claro que fosse o édito do pretor, ainda assim dependia da interpretação respectiva. A exegese em Roana não se Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 5 limitou aos textos obscuros e lacunosos e por isso que Digesto atravessou séculos e regeu institutos sequer previstos por Papiniano. Entretanto, como as glosas, num determinando período foram substituindo os textos legais, numa verdadeira manifestação de abuso da communis opinio, a máxima anteriormente tratada reavivou suas forças e os escolásticos (dogmáticos) ganharam força. Atualmente está incontroverso que o objetivo da hermenêutica é descobrir o conteúdo da norma, seu sentido e alcance. É que a palavra é “um mau veículo do pensamento” e não há fórmula que abranja as inúmeras relações eternamente variáveis da vida. Assim, cabe ao hermeneuta precisamente adaptar o texto rígido aos fatos, que dia a dia surgem e se desenvolvem sob aspectos imprevistos. “O que empresta elasticidade à norma é a sua interpretação.” 6. Interpretação e construção: exegese e crítica Os americanos chamam de construção o trabalho analítico realizado para integração e sistematização da norma num complexo orgânico. A construção, desse modo, se vale da comparação, da confrontação, indo além do sentido do texto, buscando descobrir o sentido do próprio direito. A reconstrução é o processo pelo qual analisa-se as normas jurídicas em seu conjunto e em relação à própria ciência. (processo de recomposição). Ao invés de criticar a lei, procura compreendê-la no contexto do direito vigente. A interpretação atém-se a descoberta do sentido do texto (processo de decomposição). O principal objetivo é descobrir e revelar o direito, assim como na velha exegese. A crítica, por sua vez, se volta a análise da existência, validade e força normativa do texto. Verifica a autenticidade da norma positiva e dos costumes; A crítica descobre erros, incompatibilidades, aponta a necessidade de revogação, Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 6 reconhece a constitucionalidade, etc. A crítica é importante para o direito futuro e reforma da lei. No Brasil a crítica assume relevante papel no processo de proclamação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas. 7. Sistemas de hermenêutica e aplicação do direito: a) Escolástica, dogmática, tradicional: sistema tradicional primitivo de hermenêutica que limitava o direito à vontade verificada ou presumida do legislador. No referido sistema se deduzia, quando muito, o sentido da norma, jamais seu alcance. O sistema tradicional, levado ao exagero, resultou no predomínio da exegese propriamente dita, que consistia em expor a matéria dos códigos artigo por artigo para verificar a vontade do legislador. b) Histórico-evolutivo ou evolutivo: adaptar a norma imutável a vida real. Baseia-se em critérios lógicos e teleológicos. Cabe ao intérprete “fecundar a letra da lei na sua imobilidade, de maneira que torne esta a expressão real da vida do direito”. c) Teleológico: é o processo que dirige a interpretação conforme o fim colimado pelo dispositivo ou pelo direito geral. (Rudolf Von Jhering). d) Sociológico: sistema que obriga o juiz a aplicar o texto de acordo de acordo com as necessidades da sociedade contemporânea. (Josef Kohler). 8. Regras de Interpretação e Hermenêutica: Como vimos a hermenêutica é a ciência da interpretação. É o conjunto sistematizado de regras voltadas à interpretação do direito. Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 7 Assim sendo, Limongi França, em sua obra Hermenêutica Jurídica1, estabelece três conjuntos de regras voltados à realização da interpretação: a) regras legais; b) regras científicas e; c) regras da jurisprudência. As regras legais são as estabelecidas pela lei, à exemplo das disposições dos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que reconhece a necessidade de interpretação da norma e sua integração, especialmente em razão da ocorrência de lacunas. As regras científicas referem-se à criação doutrinária, à exemplo do trabalho de Justiniano, autor do Corpus Iuris Civilis e também, no Brasil, de Carlos de Carvalho, autor da obra denominada “Nova Consolidação das Leis Civis. Conveniente, a título de ilustração, a transcrição de algumas das regras de Justiniano previstas no último capítulo do Digesto, as quais, ainda nos dias atuais, são amplamente observadas, não raras vezes pela própria disposição da lei. Confira-se: I – Frag. 9: Sempre in obscuris, quod minimum est, sequimur. (na dúvida, siga sempre o que é o mínimo ou seja, sempre do obscuro devemos extrair as mínimas consequências); II – Frag. 20: Quotiens dubia interpretatio libertatis est, secundum libertatem respondendum erit. (Sempre que seja dúbia a interpretação referente à liberdade, a favor desta deve ser o pronunciamento.) III – Frag. 56: Semper in dubiis benigniora praeferenda sunt. (No caso de dúvida prefiram as soluções mais benignas. IV- Frag: 67: Quotiens idem sermo duas sententias exprimit: as potissimum excipiatur, quae rei gerendae aptior est. (Sempre que uma mesma disposição (puder) expressar dois sentidos, deve ser principalmente aceita aquela que é mais adequada à matéria regulada. V- Frag. 113: In toto er parts continetur (o todo inclui a parte); VI – Frag: 114: In obscuris inspici solere, quod verisimilius est, aut quod plerumque fieri solet. Nos casos obscuros, costuma-se seguir o que é mais provável, ou o que geralmente acontece. 1 LIMONGI FRANÇA, R. Hermenêutica Jurídica. 7ª ed. Rev. e Aum. São Paulo: Saraiva, 1999, pág. 21. Curso de Direito Disciplina: Argumentação e Hermenêutica - Carga Horária: 60h/a Professor Clelisson Antônio da Fonseca Ano: 2012 8 VII – Frag: 147: Semper specialia generalibus insunt. (O particular está sempre incluído no geral ou as coisas especiais sempre se compreendem nas gerais). VIII – Frag: 148: Cujus effectus omnibus prodest, ejus et partes ad omnes pertinent. (O menos sempre está contido naquilo que tem o mais) IX – Frag: 155: In poenalibus causis benignius interpretandum est. (Nas causas penais deve se interpretar mais benignamente) X – Frag: 200: Quotiens nihil sine captione investigari potest, eligendum est quod minimum habeat iniquitatis. (Quando não se pode descobrir a verdade ou não se puder investigar mais ou descobrir mais razões, não imponha obrigações iníquas). Citando algumas das regras doutrinárias da obra de Carlos de Carvalho, destaco o art. 62, §§ 10 e 11: § 10. A identidade de razão corresponde à mesma disposição de direito. § 11. Pelo espírito de umas se declara o das outras, tratando-se de leis análogas. Finalmente, as regras de jurisprudência são extraídas das próprias manifestações dos Tribunais quanto à aplicação do Direito. Ex: “Na interpretação deve sempre se preferir a inteligência que faz sentido à que não faz” ou ainda “em matéria fiscal a interpretação se fará restritivamente”. 9. Referências Bibliográficas: FRANÇA. R. Limongi. Hermenêutica jurídica. São Paulo: Saraiva, 1997. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica jurídica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1993.