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�PAGE �10� UFBA - DIREITO ADMINISTRATIVO Prof. Durval Carneiro Neto OS PODERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Sumário: 1) Fundamentos. As idéias de “relação de administração” e “dever poder”. O abuso de poder. 2) Poder vinculado e poder discricionário. 2.1) Tratamento clássico do tema. 2.2) Críticas à classificação tradicional. 2.3) O pensamento de Augustin Gordillo. 2.4) Os graus de vinculação à juridicidade. 3) Poder Normativo. 3.1) Os regulamentos e os instrumentos regulamentares. 3.2) A técnica da remissão normativa. 3.3) Os poderes normativos implícitos. 3.4) A técnica da deslegalização (não admitida no Brasil). 3.5) Regulamentos Executivos e Regulamentos Autônomos. 3.6) Obrigações primárias (originárias) e obrigações subsidiárias (derivadas). 3.7) Órgãos com competência normativa primária localizados fora do Poder Legislativo. 3.8) Decretos e outros atos administrativos de efeitos concretos. 3.9) Controle do poder normativo da Administração. 4) Poder de Polícia. 4.1) Sentido amplo e sentido estrito. 4.2) Origem da expressão police power e o emprego do conceito no Direito brasileiro. 4.3) Supremacia geral e supremacia especial. 4.4) Distinção entre poder de polícia e os poderes hierárquico e disciplinar. 4.5) Distinção entre poder de polícia e outras atividades estatais. 4.6) Críticas atuais à terminologia. 4.7) Competências e áreas de atuação. 4.8) Polícia administrativa e polícia judiciária. 4.9) Polícia geral e polícia especial. 4.10) Formas de atuação. 4.11) Características. 4.12) A questão da delegação de atos a entes privados. 4.13) Limites e controle do poder de polícia. 4.14) A adequada noção de poder de polícia no Direito Administrativo contemporâneo. 1) FUNDAMENTOS. Para cumprir as suas finalidades, a Administração se vale de poderes por meio dos quais consegue fazer prevalecer a vontade da lei sobre a vontade individual, o interesse público sobre o interesse privado. Celso Antônio Bandeira de Mello qualifica as prerrogativas da Administração como sendo deveres-poderes, esclarecendo que “quem exerce função administrativa está adstrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade”; razão pela qual “o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida do indispensável ao atendimento dos interesses públicos”.� Com isso, põe em evidência o aspecto do dever, conferindo-se ao poder um caráter secundário e instrumental. Na Ciência Jurídica, a idéia de potestade, em sentido amplo, está ligada basicamente a duas situações: a) o poder como direito subjetivo, assegurado a alguém para defender seu próprio interesse perante terceiros; b) o poder como função, assegurado a alguém para que proteja interesses alheios perante terceiros. Em suma, o poder se revela ou como poder-direito ou como poder-dever. Os poderes da Administração Pública, aqui estudados, enquadram-se nesta segunda situação. A Administração não age porque tem direito; ela age porque tem funções a cumprir, ou seja, porque tem deveres. Esta distinção é importante, pois, como alude Luís Manuel Fonseca Pires, “enquanto o titular de um ‘direito subjetivo’ opta por exercer, ou não, o seu direito, o titular do ‘poder’ não pode deixar de cumprir suas funções de acordo com sua competência porque está é indisponível”.� Nessa toada, merece menção ainda o ensinamento de Ruy Cirne Lima, baseado na clássica distinção francesa entre a “relação de propriedade” (baseada no exercício de direitos disponíveis) e a “relação de administração” (baseada no desempenho de funções indisponíveis, segundo uma finalidade cogente). Enquanto aquele que exerce direito subjetivo pratica atos de propriedade, aquele que exerce função pratica atos de administração.� Consoante escreve o mestre gaúcho, enquanto na relação de propriedade o que predomina é a vontade do agente, na relação de administração “o dever e a finalidade são predominantes”. Daí sentenciar que “no Direito Administrativo, a relação de administração domina e paralisa a de direito subjetivo”.� Destarte, os poderes da Administração Pública são “deveres-poderes” irrenunciáveis; prerrogativas de autoridade, usufruídas nos estritos limites da lei e na medida essencial à finalidade perseguida. O administrador tem o dever de direcionar os seus atos ao interesse público e, para isso, utiliza-se do poder que lhe é conferido. O interesse público é a finalidade. O poder é apenas o instrumento e não um fim em si mesmo. Nenhum agente público exerce o poder por direito, mas sim porque tem um dever a cumprir. Outrossim, a liberdade dos indivíduos somente pode ser restringida pelo Estado nos termos da lei e em prol do interesse público. Fora disso, haverá abuso de poder. Para José dos Santos Carvalho Filho, “é impossível conceber que o Estado alcance os fins colimados sem a presença de seus agentes, estes, o elemento físico e volitivo através do qual atua no mundo jurídico. Logicamente, o ordenamento jurídico há de conferir a tais agentes certas prerrogativas peculiares à sua qualificação de prepostos do Estado, prerrogativas estas indispensáveis à consecução dos fins públicos. Constituem elas os poderes administrativos. Mas, ao mesmo tempo em que confere poderes, o ordenamento jurídico impõe, de outro lado, deveres específicos para aqueles que, atuando em nome do Poder Público, executam as atividades administrativas em geral. (...) Vimos que sem determinadas prerrogativas aos agentes administrativos não poderia o Estado alcançar os fins a que se destina. Essas prerrogativas são exatamente os poderes administrativos. Pode-se, pois, conceituar os poderes administrativos como o conjunto de prerrogativas de direito público que a ordem jurídica confere aos agentes administrativos para o fim de permitir que o estado alcance seus fins”.� A utilização do poder pelo agente público há de ser feita no estrito limite adequado ao cumprimento do dever legal, fora do que haverá abuso de poder. Tal “abuso de poder” (gênero), como ensina Carvalho Filho, pode decorrer de duas causas (espécies): “1ª) o agente atua fora dos limites de sua competência; 2ª) o agente, embora dentro de sua competência, afasta-se do interesse público que deve nortear todo o desempenho administrativo. No primeiro caso, diz-se que o agente atuou com ‘excesso de poder’ e no segundo, com ‘desvio de poder’”. O desvio de poder também é chamado de “desvio de finalidade”. 2) PODER VINCULADO E PODER DISCRICIONÁRIO. Quando estudamos o regime-jurídico administrativo, foi dito que o exercício da função administrativa há de obedecer aos ditames da legalidade. Essa é uma premissa fundamental do Estado de Direito. Porém, esta vinculação à legalidade (melhor dizendo, à juridicidade) não segue um único padrão normativo, variando de grau a depender de como o legislador tenha prescrito o modo de agir da Administração. É nesse contexto que surgem as expressões “poder vinculado” e “poder discricionário”. Fala-se em poder vinculado (ou poder regrado) “quando a lei atribui determinada competência definindo todos os aspectos da conduta a ser adotada, sem atribuir margem de liberdade para o agente público escolher a melhor forma de agir. Onde houver vinculação, o agente público é um simples executor da vontade legal. O ato resultante do exercício dessa competência é denominado de ato vinculado. Exemplo de poder vinculado é o de realização do lançamento tributário (art.3º do CTN)”.� Fala-se em poder discricionário (atuação com discricionariedade), quando “o legislador atribui certa competência à Administração Pública, reservando uma margem de liberdade para que o agente público, diante da situação concreta, possa selecionar entre as opções predefinidas qual a mais apropriada para defender o interesse público. Ao invés de o legislador definir no plano da norma um único padrão de comportamento, delega ao destinatário da atribuição a incumbência de avaliar a melhor solução para agir diante das peculiaridades da situação concreta. O ato praticado no exercício de competência assim conferida é chamado de ato discricionário. Exemplo: decreto expropriatório”.� 2.1) Tratamento clássico do tema. De forma simplificada, diz-se que atos vinculados “são aqueles em que a Administração não dispõe de qualquer liberdade para a sua expedição. Para essa espécie de ato a lei regula antecipada e exaustivamente o comportamento a ser seguido pelo agente público”. Já os atos discricionários “são aqueles que, embora regulados em lei, permitem ao agente público certa margem de liberdade ao serem editados. Importante é reter a idéia de que não se está falando de liberdade total, mas, sim, de certa liberdade deixada pela própria lei ao administrador no momento da prática do ato”.� Em outras palavras, atos administrativos vinculados são aqueles em que o administrador público fica adstrito aos limites dispostos na lei em relação ao objeto, à forma ou ao motivo, devendo praticá-lo de acordo com a previsão normativa aplicável à espécie, sem que para isso possa dispor. Já os atos administrativos discricionários são aqueles em que o administrador público, para praticá-lo, goza de certa liberdade para dispor, de acordo com o seu juízo de conveniência e oportunidade. Saliente-se que tais conceitos não podem ser aplicados de forma estática ou absoluta, mormente quando não existem, na dinâmica da Administração Pública, atos puramente vinculados ou atos puramente discricionários. Na verdade, os atos administrativos se revestem de maior ou menor carga discricionária ou vinculada, conforme o caso, de acordo com a parcela de liberdade que seja concedida ao administrador público. Nesse prisma, ressalte-se que todo ato administrativo, mesmo os tipicamente discricionários, revestem-se de alguma carga vinculada no que concerne a sua finalidade, que deve ser sempre de interesse público, bem como quanto à legalidade, já que ao administrador só é dado fazer o que a lei permite. Posta a questão nesses termos, surge a problemática dos chamados atos arbitrários e da teoria do desvio de poder como limites ao exercício dos poderes discricionários. Sob tal aspecto, tem-se que os atos discricionários praticados com finalidade desviada do interesse público revelam-se substancialmente nulos, porquanto ferem o conceito de legalidade na esfera do Direito Administrativo, que envolve necessariamente o aspecto da moralidade. Assim, atos arbitrários seriam aqueles praticados sob o rótulo da oportunidade e da conveniência, porém, de forma desvirtuada, sem a devida pertinência com o interesse coletivo, traduzindo-se no desvio de finalidade. Sabe-se que o exame dos elementos de conveniência e oportunidade, típicos os atos discricionários, não se sujeitam, em regra, ao controle de validade por parte do Poder Judiciário, dada a autonomia conferida ao administrador e em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes. Entrementes, mister se faz verificar, segundo a ótica do princípio da razoabilidade, se tais critérios de conveniência e oportunidade refletem, em cada caso, verdadeiro interesse público, ou se traduzem mero interesse pessoal do administrador público, ardilmente camuflado e, portanto, com desvio de finalidade. Nesse caso, é dado ao Judiciário agir, anulando o ato. A respeito do tema, confira-se o teor do seguinte julgado originário do Superior Tribunal de Justiça: “ADMINISTRATIVO - ATO DISCRICIONÁRIO - CONTROLE JURISDICIONAL - PORTARIA QUE OBRIGA A VENDA DE COMBUSTÍVEIS A PREÇOS MENORES QUE OS RESPECTIVOS CUSTOS - INCOMPETÊNCIA - DESVIO DE FINALIDADE. I - Em nosso atual estágio, os atos administrativos devem ser motivados e vinculam-se aos fins para os quais foram praticados (V.Lei 4.717/65, Art. 2º). Não existem, nesta circunstância, atos discricionários, absolutamente imunes ao controle jurisdicional. Diz-se que o administrador exercita competência discricionária, quando a lei lhe outorga a faculdade de escolher entre diversas opções aquela que lhe pareça mais condizente com o interesse público. No exercício desta faculdade, o Administrador é imune ao controle judicial. Podem, entretanto, os tribunais apurar se os limites foram observados. II - A Portaria 324/98, em estabelecendo preços insuficientes à correta remuneração dos comerciantes varejistas de combustíveis sediados na Amazônia, inviabilizou a atividade econômica de tais negociantes, atingindo fim diverso daquele previsto na Lei 8.175/95”.� Nesse mesmo diapasão, convém transcrever a lição de Maria Sylvia Di Pietro: “Algumas teorias têm sido elaboradas para fixar limites ao exercício do poder discricionário, de modo a ampliar a possibilidade de sua apreciação pelo Poder Judiciário. Uma das teorias é a relativa ao desvio de poder, formulada com esse objetivo; o desvio de poder ocorre quando a autoridade usa do poder discricionário para atingir fim diferente daquele que a lei fixou. Quando isso ocorre, fica o Poder Judiciário autorizado a decretar a nulidade do ato, já que a Administração fez uso indevido da discricionariedade, ao desviar-se dos fins de interesse público definidos em lei. Outra é a teoria dos motivos determinantes, já mencionada: quando a Administração indica os motivos que a levaram a praticar o ato, este somente será válido se os motivos forem verdadeiros. Para apreciar esse aspecto, o Judiciário terá que examinar os motivos, ou seja, os pressupostos de fato e as provas de sua ocorrência. Por exemplo, quando a lei pune um funcionário pela prática de uma infração, o Judiciário pode examinar as provas constantes do processo administrativo, para verificar se o motivo (a infração) realmente existiu. Se não existiu ou não for verdadeiro, anulará o ato. Começa a surgir no direito brasileiro forte tendência no sentido de limitar-se ainda mais a discricionariedade administrativa, de modo a ampliar-se o controle judicial (...) Essa tendência que se observa na doutrina, de ampliar o alcance da apreciação do Poder Judiciário, não implica invasão na discricionariedade administrativa; o que se procura é colocar essa discricionariedade em seus devidos limites, para distingui-la da interpretação (apreciação que leva a uma única solução, sem interferência da vontade do intérprete) e impedir as arbitrariedades que a Administração Pública pratica sob o pretexto de agir discricionariamente”.� 2.2) Críticas à classificação tradicional Já é tradicional a classificação dos atos administrativos, quanto ao grau de liberdade da Administração em sua prática, em vinculados e discricionários, tal como faz Hely Lopes Meirelles. Isso, porém, veio sendo objeto de críticas. Posteriormente, alguns doutrinadores, calcados na lição de HAURIOU, passaram a falar em “poderes vinculados” e “poderes discricionários”. Nessa linha, se tem ensinado que a forma, a competência e a finalidade do ato administrativo seriam sempre elementos regrados (vinculados), podendo a discricionariedade recair sobre o objeto e o motivo. Victor Nunes Leal já dizia que não existe ato discricionário, mas sim poder discricionário. Seabra Fagundes discorda, ponderando que as expressões “ato vinculado” e “ato discricionário”, além de já serem de uso generalizado, são apenas imagens de síntese que, no dizer de Bénoit, são necessárias na ciência jurídica para evitar circunlóquios. Seabra Fagundes fala em competência vinculada (liée do direito francês, vincolata do direito italiano) e competência discricionária. Como exemplos de competência livre quanto a motivo, cita dois casos: 1) promoção por merecimento; 2) cargo de confiança demissível ad nutum. Como situação de vinculação estrita, costuma-se citar o exemplo da aposentadoria compulsória do servidor público. Mas essa hipótese de vinculação, como diz Florivaldo Dutra de Araújo, é menos freqüente. O autor critica inclusive a expressão “poder vinculado”, considerando que o poder do administrador público é um só e indivisível. Propõe que sejam utilizada a expressão “aspectos vinculados do ato administrativo”, ao invés de “ato” ou “poder vinculado”. 2.3) O pensamento de Augustin Gordillo Gordillo entende que todo ato é em parte regrado e em parte discricionário, havendo com isso graus de predeterminação da conduta administrativa. Em sua obra “Princípios gerais do direito público” (1977), o autor argentino propõe interessante classificação dos aspectos que compreendem a regulação da atividade administrativa, levando em conta os graus de predeterminação da conduta administrativa através das normas jurídicas. Regulação direta = ocorre quando a lei prevê, de forma expressa ou razoavelmente implícita, a competência que têm os órgãos administrativos para atuar, ou então a forma, o procedimento, objeto proibido, objeto autorizado somente para determinadas circunstâncias. Regulação indireta ou inversa = ocorre quando, apesar de a lei não regulamentar a atividade administrativa, estabelece as condições sob as quais os administrados não podem ser molestados pela Administração. São situações de direito subjetivo dos particulares a que ninguém interfira em suas atividades. Regulação residual = quando falta a regulação direta e também a inversa, tem-se ainda a regulação residual que oferece a Constituição quando a atividade administrativa afeta a essência do direito. Por exemplo, os atos administrativos normativos não podem ser praticados de forma a alterar ou restringir os direitos que se propõem a regulamentar. Regulação técnica = antes chamada “discricionariedade técnica”. Se uma técnica é científica e, portanto, por definição, certa, objetiva, universal, sujeita a regras uniformes que não dependem da apreciação pessoal de um sujeito individual, é óbvio que não pode neste aspecto falar-se de completa discricionariedade. Alessi afirma que os termos “discricionariedade” e “técnica” são inconciliáveis. Diez assevera que os vícios sobre a operação técnica influem na legitimidade do ato administrativo. Por tudo isso, Gordillo critica a atitude da doutrina, considerando errado se falar que, não havendo regramento da conduta administrativa (regramento direto), haveria discricionariedade, eventualmente limitada por alguma proibição ou norma geral. Prefere dizer que a atividade administrativa estará sempre regulada, seja direta, indireta ou residualmente, além do que existem as regulações técnicas. 2.4) Os graus de vinculação à juridicidade Discorrendo sobre os novos paradigmas do direito administrativo contemporâneo, Gustavo Binenbojm propõe que substitua a tradicional dicotomia “ato vinculado versus ato discricionário” pela teoria dos graus de vinculação à juridicidade. O autor explica a evolução que teve a “discricionariedade”, desde a sua origem ainda no Estado de Polícia como espaço de arbitrariedade do monarca absoluto, passando ao Estado de Direito, quando se construiu uma doutrina jurídica conciliadora da liberdade decisória com o princípio da legalidade, daí decorrendo a concepção de interesse público. Por força da tradição do antigo regime, a doutrina da legalidade administrativa revelou-se, no primeiro momento, como vinculação negativa à lei (negative Bindung), de modo que grande parte das decisões administrativas ficaram fora do controle judicial. Tratou-se de liberdade no espaço não abrangido pela lei, ou seja, um poder administrativo externo ao próprio ordenamento jurídico, de modo que o administrador poderia fazer não apenas aquilo que a lei expressamente autorizasse, mas também aquilo que a lei não proibisse. Posteriormente, desde o século XIX a jurisprudência francesa veio construindo parâmetros jurídicos balizadores da discricionariedade administrativa, e, sobretudo após o século XX, por influência da doutrina de Kelsen no pensamento de Merkl, passou-se a conceber a discricionariedade como conseqüência inelutável das etapas de produção normativa, afirmando-se a concepção de vinculação positiva à lei (positive Bindung). Tratou-se de liberdade dentro da moldura legal, ou seja, todo poder legítimo passou a ser necessariamente um poder jurídico, ainda que possa haver certa indeterminação. Essa juridicização da discricionariedade administrativa teve as seguintes etapas de desenvolvimento: 1) teoria dos elementos do ato (competência, forma, finalidade, motivo e objeto), com a possibilidade de sindicação dos elementos vinculados dos atos ditos discricionários (competência, forma e finalidade); 2) teoria de controle a partir de parâmetros implícitos na lei (como o desvio de poder, o excesso de poder e a teoria dos motivos determinantes); 3) teoria dos conceitos jurídicos indeterminados; 4) teoria da vinculação direta dos atos administrativos aos princípios constitucionais. Por isso, há tempos que não mais se discute a possibilidade de controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários, repousando a discussão nos limites (intensidade) e parâmetros (critérios) que devem presidir esse controle. Para Binenbojm, deve-se superar a tradicional dicotomia “atos vinculados x atos discricionários”, passando-se a uma classificação que leve em conta os graus de vinculação à juridicidade, numa escala decrescente de densidade normativa vinculativa: Vinculação por regras (constitucionais, legais ou regulamentares) = trata-se do mais alto grau de vinculação, quando se emprega no texto normativo conceitos objetivos ou ao menos decifráveis objetivamente. Vinculação por conceitos jurídicos indeterminados = ocorre quando se emprega no texto normativo conceitos que comportam valoração, em que o grau de vinculação é intermediário. Muitos autores praticamente igualam tais situações ao exercício de poder discricionário. Mas Binenbojm critica isso, apontando a distinção entre discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados. Explica que a evolução da doutrina dos conceitos indeterminados na Alemanha, sobretudo após a queda do nazismo e o advento, em 1949, da Lei Fundamental de Bonn (título adotado para reservar o termo constituição para um momento de reunificação da Alemanha, então dividida), fez com que se reduzisse o âmbito do poder discricionário, considerando-se que, ao contrário da discricionariedade, os conceitos indeterminados devem conduzir a uma única solução em cada caso, sujeitando-se, portanto, a juízos de legalidade e não de oportunidade. Neste mesmo sentido a opinião de Eros Grau. Binenbojm salienta que os atos fundados em conceitos jurídicos indeterminados não são fruto de uma opção do administrador. Se é que há uma eleição, esta é do próprio legislador, que escolheu o uso de termos vagos e conceitos imprecisos, sendo que a sua aplicação resolve-se com a interpretação do seu sentido. Daí a maior possibilidade de controle jurisdicional dos atos fundados em conceitos jurídicos indeterminados (no que diz respeito ao núcleo preciso de significação, dentro das zonas de certeza positiva e negativa), não obstante sempre haja limites a este controle, tendo em vista a zona intermediária ou de penumbra (halo periférico do conceito). Dentro desta zona, o juiz não examina se a solução encontrada é a “correta”, mas, sim, se é “sustentável”. Se as razões da autoridade administrativa são “sustentáveis”, o juiz deve reverenciar a expertise na estimativa feita pela Administração. Um controle judicial gradual dos conceitos indeterminados, variando a sua densidade de acordo com a respectiva área temática e o grau de objetividade do conceito, parece a solução mais adequada para alcançar uma concordância prática entre os princípios da separação dos poderes e da inafastabilidade do controle jurisdicional. Vinculação diretamente por princípios = atualmente não se pode mais imaginar que a Administração esteja vinculada tão-somente à lei. A vinculação obedece a uma unidade normativa sistemática que envolve sobretudo a Constituição (um bloco de legalidade como um todo sistêmico, ao que Merkl chamou pela primeira vez de juridicidade administrativa). Por isso Juares Freitas defende um “controle sistemático” das relações administrativas e o direito fundamental a uma boa administração, com afirmação concreta da hegemonia dos princípios constitucionais,num ambiente em que se tenha “a Constituição que administra”. Binenbojm defende inclusive a possibilidade de haver um ato administrativo violador de preceito legal mas que, ainda assim seja válido, por força de princípios constitucionais. É o que ele chamada de juridicidade contra legem, em que, a despeito do vício de legalidade, reconhece-se a juridicidade dos efeitos do ato administrativo (ou a convalidação do próprio ato de origem) por motivos ligados normalmente à segurança jurídica e à boa-fé objetiva, as quais, numa equação de ponderação, devam prevalecer sobre a legalidade estrita. Mas o autor reconhece que o tema é complexo e controvertido, sobretudo quando se trata de possibilidade de repúdio a lei havida como inconstitucional pela Administração, sem prévio pronunciamento judicial. É de se reconhecer ainda que poderão surgir casos nos quais se verificará um estreitamento do “mérito administrativo” e outros até mesmo de discricionariedade reduzida a zero. Com efeito, Binebojm sustenta que a incidência direta de princípios constitucionais por si só já causa um considerável estreitamento do mérito administrativo, mas haverá ainda situações excepcionais em que a discricionariedade estará reduzida a zero, ou seja, uma redução da possibilidade de escolha a uma alternativa, se todas as outras resultarem vedadas por incidência de princípios. São situações em que, por haver uma solução possível perante o direito, o juiz estará autorizado a determinar o conteúdo da decisão a adotar em substituição à anulada. Por derradeiro, devemos advertir que vinculação (“poder vinculado”) e discricionariedade (“poder discricionário”) são realidades inerentes a toda e qualquer atuação da Administração Pública, inclusive no âmbito dos demais poderes que serão estudados a seguir. Na verdade, o poder administrativo é um só, e se revela sob diversos aspectos. O estudo separado desses aspectos cumpre apenas um fim didático, daí porque se fala em “poderes” da Administração. Assim, conforme veremos mais adiante, o poder de polícia é, ao mesmo tempo, um poder discricionário e um poder vinculado. E o poder normativo, que estudaremos no tópico a seguir, ocorre inclusive no âmbito do poder de polícia. 3) PODER NORMATIVO O poder normativo da Administração Pública, também chamado de poder regulamentar (poder de expedir regulamentos), está relacionado à edição de normas gerais e abstratas pela Administração Pública, de caráter secundário em relação aos atos legislativos. Tal função normativa se expressa basicamente por meio de instrumentos regulamentares tais como os decretos, resoluções, portarias, instruções etc. A expedição de regulamentos consubstancia uma função típica da Administração Pública (portanto, é uma função administrativa), que não deve ser confundida com o poder normativo atipicamente exercido pelo Executivo ao expedir atos normativos primários (medidas provisórias e leis delegadas). Dispõe o art.84, IV, da CF/88 que “compete privativamente ao Presidente da República: (...) “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Com base nesse dispositivo constitucional, o conceito estrito de “regulamento” é traçado como sendo “ato administrativo, editado privativamente pelo Chefe do Poder Executivo, segundo uma relação de compatibilidade e hierarquia com a lei, a fim de assegurar seu fiel cumprimento e execução”.� Porém, à vista dos demais instrumentos regulamentares referidos, a doutrina tem também concebido a expressão “regulamento” numa significação mais ampla, de modo a abranger todos os atos normativos expedidos por órgãos e entes da Administração Pública, nos mais diversos escalões de competência, com o escopo de viabilizar a aplicação da lei. 3.1) Os regulamentos e os instrumentos regulamentares. Tendo em vista a complexidade da organização da Administração Pública no Estado contemporâneo, cada vez mais descentralizada, é inevitável que outras autoridades, que não apenas o Chefe do Executivo, disponham também de competências para editar normas administrativas. A própria CF/88 assim sinaliza quando prevê, por exemplo, a competência dos Ministros de Estado para “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos” (art.87, II). Segundo Clèmerson Merlin Clève, "a importância do poder regulamentar vem aumentando, ultimamente, em virtude da complexidade da sociedade contemporânea, exigente da exasperação das responsabilidades do Estado. O número de matérias a exigir ou aceitar disciplina normativa cresce de modo assustador. Nas áreas de cunho absolutamente técnico, mesmo de natureza econômica ou financeira, o legislador, inclusive por não dispor de formação adequada ou de capacidade de prognose, sempre difícil numa sociedade de risco, vê-se compelido a transferir ao Executivo o encargo de completar a disciplina normativa contida em lei com as soluções técnicas mais recomendáveis para cada situação. Não se pode negar que o poder regulamentar, embora os limites a ele inerentes, constitui mecanismo inevitável, muitas vezes suspeito, é verdade, pelo qual o Executivo contribui para a formação da ordem jurídica. Submetidos à lei e à Constituição, os regulamentos vão constituindo importante fonte do direito".� Como bem destaca Fabrício Mota, “o constitucionalismo contemporâneo não somente admite como exige, por razões diversas, que o Executivo dite normas”, considerando que “não há possibilidade de se governar uma sociedade como a atual, cujas inter-relações são cada vez mais complexas e sutis, sem atribuir ao Executivo função normativa”.� “O fundamento da função regulamentar é a Constituição, que deve discipliná-lo em todos seus aspectos; suas justificativas atuais são a necessidade de assegurar a correta e equânime execução das leis, mediante procedimentos e determinações dirigidas aos agentes que irão executá-la; e ainda a necessidade ativa do Estado de movimentar-se, utilizando-se de diversos mecanismos além das leis, para atender às exigências contempladas na Constituição (...) Pode-se sintetizar que o regulamento executivo, expedido para dar cumprimento à lei, deve ser editado para: a) precisar e padronizar os procedimentos que serão adotados em alguma ação administrativa determinada pela lei; b) precisar o conteúdo de conceitos enunciados, na lei, de modo vago ou impreciso; c) delimitar os contornos da competência discricionária legal”.� “O instrumento do regulamento jurídico é, no estado moderno, indispensável. Ele serve, em primeiro lugar, ao alívio do parlamento, que nem está chamado a isto, nem por fundamentos temporais e objetivos está em condições disto, regular mesmo todos os detalhes, em especial tais de tipo mais técnico. Ademais, o regulamento jurídico possibilita uma adaptação rápida a circunstâncias que se modificam, o que exatamente em questões particulares técnicas freqüentemente é necessário”.� Daí porque, explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “além do decreto regulamentar, o poder normativo da Administração ainda se expressa por meio de resoluções, portarias, deliberações, instruções editadas por autoridades que não o Chefe do Executivo”.� Tais atos, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “alojam-se em nível inferior ao próprio regulamento. Enquanto este é ato do Chefe do Poder Executivo, os demais assistem a autoridades de escalão mais baixo e, de conseguinte, investidas de poderes menores. Tratando-se de atos subalternos e expedidos, portanto, por autoridades subalternas, por via deles o Executivo não pode exprimir poderes mais dilatados que os suscetíveis de expedição mediante regulamento”.� Apesar de reconhecer a existência de instrumentos normativos inferiores, Fabrício Mota não aceita incluí-los no conceito de “regulamento”, aduzindo que: “Tradicionalmente e há um bom tempo, parte da doutrina e da jurisprudência costuma unificar sob o desígnio regulamento, em maior ou menor grau, todas as normas editadas pelo Poder Executivo (seus órgãos e entidades) com hierarquia inferior à lei, dando margem à elaboração de um conceito hipertrofiado de regulamento. (...) A utilização de um conceito hipertrofiado de regulamento possui o inconveniente de unificar, sob um mesmo nome, manifestações editadas no exercício de diferentes funções (inclusive funções de governo e administração), que devem possuir distintos fundamentos e regime jurídico. (...) Ainda que inexista, a priori, uniformidade e mesmo relevância na nomenclatura atribuída às diversas espécies (p. ex. resolução, instrução, portaria, regimento), é importante verificar o regime jurídico destes atos e diferenciá-los dos regulamentos editados pelo Chefe do Poder Executivo”.� Como se vê, há certa divergência sobre a natureza dos atos normativos expedidos pelas autoridades subalternas, em contraponto aos decretos e regulamentos de competência privativa do Chefe do Executivo. Parece-nos, todavia, que a questão se resolve simplesmente recorrendo-se à distinção entre a substância e a forma do regulamento, atentando-se, é claro, para os distintos regimes jurídicos a que se submete cada espécie normativa. A substância traduz a essência dos regulamentos, ou seja, o seu aspecto intrínseco, aquilo que revela a natureza regulamentar do ato normativo secundário (estabelecimento de normas de conduta, gerais e abstratas, desdobradas a partir da lei). Já a forma diz respeito aos variados instrumentos dos regulamentos, o seu aspecto extrínseco, aqueles atos administrativos através dos quais os regulamentos se revelam. No tocante a este aspecto, os regulamentos podem ser exteriorizados através de decretos, portarias, resoluções, instruções normativas, dentre outros. Os decretos são atos de competência dos Chefes do Poder Executivo, nas três esferas de poder: Presidente, Governadores e Prefeitos. No dizer de Geraldo Ataliba, “decreto é a forma (veículo) de manifestação da vontade do chefe do Executivo. Quando essa manifestação se dá no exercício de competência regulamentar, tem-se o decreto regulamentar. Dessa consideração se vê que o decreto é a forma, o continente. Regulamento é a matéria, o conteúdo”.� Do mesmo modo, todos os demais atos normativos secundários expedidos por órgão e entes da Administração são instrumentos (forma) regulamentares, isto é, são atos de natureza normativa (regulamentos, em sentido substancial). As portarias em geral competem ao escalão administrativo superior, onde se situam os ministros e secretários de governo. As resoluções são atos de competência de órgãos colegiados, como, por exemplo, o CONTRAN. Já as instruções são atos normativos de nível inferior, destinados aos agentes subalternos investidos de menores poderes. Desta distinção entre substância e forma, infere-se claramente que nem todo decreto terá caráter normativo. De fato, tal como acontece inclusive com alguns atos legislativos (v.g. leis que tratam de movimentação no orçamento público), há decretos que funcionam não como veículos de normas gerais e abstratas, mas, sim, para estabelecer efeitos concretos. “O principal revestimento da materialização de competência do Chefe do Poder Executivo é o decreto. O decreto, nestes termos, é a fórmula ou o meio mais comumente utilizado, em princípio, com exclusividade pelo Chefe do Executivo para a prática de atos de sua competência. Pois bem, em alguns casos, a Constituição da República atribui competências que serão exercidas por meio da edição de atos administrativos com o nomen júris ‘decreto’, com efeitos concretos, que não serão regulamentos. A título de exemplo, pode-se fazer referência ao decreto que declara imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária (art.148, §2º)”.� Voltando ao tema dos atos de natureza regulamentar, tem-se, como dito, a utilidade de melhor viabilizar a aplicação da lei. Vejamos agora de que modo isso pode ser tratado em cada direito positivo. 3.2) A técnica da remissão normativa. Em alguns casos, é a própria lei que expressamente fixa a necessidade de regulamento para complementar a ordenação por ela estabelecida. É o que se chama de remissão normativa, como explica Fabrício Mota: “(As remissões normativas) se verificam quando uma lei reenvia a um ato normativo inferior e posterior, a ser elaborado pela Administração, a regulação de certos elementos que complementam a ordenação estabelecida pela própria lei. (...) A lei, no caso, incumbe expressamente a Administração de elaborar ato normativo secundário, subordinado à mesma lei, para tratar de determinado assunto. Destaca-se que o ato normativo estará obrigatoriamente sujeito à preferência de lei posterior, devendo, obviamente, respeitar as reservas legais. A tais atos normativos aplica-se o que foi dito a respeito dos regulamentos. A utilização desta técnica é bastante comum e necessária, sobretudo em razão da necessidade de pormenorizar alguns pontos específicos da atividade administrativa, que costumam mudar com facilidade, e que por isso não podem encontrar tratamento adequado no rígido processo de elaboração da lei. É possível perceber que se trata de remissões normativas explícitas, atribuindo parcela de função normativa a algum órgão ou entidade administrativa. Certamente, os atos normativos editados com apoio em lei devem obedecer, em seu conteúdo, aos parâmetros legalmente estabelecidos. A obediência aos princípios constitucionais também é imperativa, inclusive na ausência de parâmetros legais claros”.� A remissão obedece a certos parâmetros normativos pré-fixados na própria lei (“standards”), com base nos quais o administrador, dentro do âmbito da norma (o que Kelsen denominou de “moldura”�), especifica as suas hipóteses de incidência. Exemplo desse tipo de remissão normativa é encontrado no Código de Trânsito (Lei 9.503/97), no tocante às atribuições normativas do CONTRAN: “Art. 12. Compete ao CONTRAN: I – estabelecer as normas regulamentares referidas neste Código e as diretrizes básicas da Política Nacional de Trânsito; (...) V – estabelecer seu regimento interno e as diretrizes para o funcionamento dos CETRAN e CONTRADIFE; (...) VI – estabelecer as diretrizes do regimento das JARI; (...)VIII – estabelecer e normatizar os procedimentos para a imposição, a arrecadação e a compensação das multas por infrações cometidas em unidade da Federação diferente da do licenciamento do veículo; (...)X – normatizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores e registro e licenciamento de veículos”. Sobre isso escreve Fabrício Mota: “Com efeito, a Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito, incumbiu expressamente a Administração de elaborar atos normativos versando sobre diversas matérias ligadas ao assunto tratado na lei. (...) Com a referida habilitação legal, são editados pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) diversos atos normativos secundários (na maioria das vezes, sob a forma de Resolução) que possuem alcance geral, sujeitando diariamente às suas prescrições praticamente todos os cidadãos no território nacional”.� Na área eleitoral, a Lei 4.737/65 (Código Eleitoral) faz remissões normativas ao atribuir ao TSE a competência “para expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código” (art.23, IX). “Com base nesta atribuição normativa legal, foram elaboradas as principais regras que trataram das eleições no ano de 2006. Pode-se exemplificar a importância e a ampla utilização desta remissão invocando as resoluções n. 22.437 (dispôs sobre a utilização do horário gratuito de propaganda eleitoral reservado aos candidatos no segundo turno da eleição presidencial de 2006 e aprovou o plano de mídia das inserções) e n. 22.261 (dispôs sobre a propaganda eleitoral e as condutas vedadas aos agentes públicos em campanha eleitoral)”.� O mesmo se diga da política ambiental fixada na Lei 6.938/81 e Decreto n. 99.274/90, com relação às atribuições normativas do CONAMA: “Art.8º. Compete ao CONAMA: I – estabelecer, mediante proposta do IBAMA, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras a ser concedido pelos Estados e supervisionado pelo IBAMA; II – determinar, quando julgar necessário, a realização de estudos das alternativas e das possíveis conseqüências ambientais de projetos públicos ou privados, requisitando aos órgãos federais, estaduais e municipais, bem assim a entidades privadas, as informações indispensáveis para apreciação dos estudos de impacto ambiental, e respectivos relatórios, no caso de obras ou atividades de significativa degradação ambiental, especialmente nas áreas consideradas patrimônio nacional; (...) VI – estabelecer, privativamente, normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes; VII – estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos”. Atualmente, a técnica da remissão normativa vem sendo muito utilizada no tocante às agências reguladoras, a exemplo do que acontece com a Agência Nacional de Saúde – ANS (art.32 da Lei 9.656/98), a Agência Nacional do Petróleo – ANP (art. 15, XV da Lei 9.478/97), a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL (art.19, XIX, da Lei 9.472/97), dentre outras. 3.3) Os poderes normativos implícitos. Noutros casos, porém, não raramente a lei nada estabelece em seu texto, o que não afasta, por si só, a competência regulamentar da autoridade administrativa encarregada de zelar, da melhor forma, pelo seu cumprimento, bem como, sobretudo, pelo cumprimento dos ditames constitucionais. Trata-se aí de poderes normativos implícitos, que decorrem da própria razão de ser da competência administrativa fixada na Constituição: “É interessante reconhecer a existência de competências implícitas, sobretudo em razão da força normativa da Constituição, da necessidade de concretizar seus preceitos e dos efeitos decorrentes dos princípios constitucionais antes comentados. A doutrina dos chamados poderes implícitos (implied powers) é clássica no direito americano, tendo, inclusive, irradiado sua compreensão para o constitucionalismo contemporâneo. (...) Nesse sentido, ainda quando a competência normativa não esteja expressamente determinada na norma, é possível deduzi-la recorrendo a uma interpretação finalística ou sistemática da mesma. A questão ganha relevância quando se trata de interpretação de normas constitucionais, sobretudo em decorrência do postulado hermenêutico de acordo com o qual deve ser assegurado o entendimento que maior eficácia lhe confira. (...) Não se pode, desta feita, considerar tais competências como um privilégio da Administração, pois estão necessária e estritamente ligadas ao alcance de objetivos constitucionais, possuindo natureza instrumental. Para evitar que a adoção da técnica das competências implícitas signifique adesão à máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios, é também sumamente importante assegurar seu exercício rigidamente subordinado aos princípios e valores constitucionais. Também não custa ressaltar que tais competências devem profundo respeito aos princípios da reserva legal e da preeminência da lei”.� 3.4) A técnica da deslegalização (não admitida no Brasil). Saliente-se que a remissão deve obedecer a certos parâmetros normativos pré-fixados na própria lei (“standards”), sob pena de se configurar uma indevida delegação de função legislativa ao Executivo, chamada pela doutrina de deslegalização e não admitida no ordenamento brasileiro: “Em nosso entendimento, a questão deve ser tratada com cautela. Para adequação ao ordenamento jurídico brasileiro, a lei atributiva de determinada parcela de poder normativo depende do estabelecimento mínimo de standards suficientes ao exercício de tal função. Bem por isso, o mínimo que se exige do Congresso é a predeterminação das finalidades e a medida do poder que se transfere. Deve existir, na lição de Marcos Juruena Villela Souto, ‘um início de legislação apta a confirmar, dentro de limites determinados, a normatização secundária do órgão delegado; se abdica do seu dever de legislar, transferindo a outros a responsabilidade pelas alternativas políticas e diretrizes a seguir, a invalidade seria patente’. A existência desse ‘início de legislação’ caracterizaria, bem se percebe, remissão normativa, adequada ao ordenamento, e não mera deslegalização. O oposto ao que aqui se propugna representaria, na concepção defendida, indevida – e em branco – delegação de função legislativa”.� Deveras, de acordo com a Constituição Federal de 1988, a delegação legislativa somente é possível nos casos e segundo o procedimento expressamente previstos em seu art. 68. Fora daí haverá ilícito constitucional, consoante já se posicionou o STF: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE OUTORGA AO PODER EXECUTIVO A PRERROGATIVA DE DISPOR, NORMATIVAMENTE, SOBRE MATÉRIA TRIBUTARIA - DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA - MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO - POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PRINCÍPIO DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI EM SENTIDO FORMAL - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - CONVENIENCIA DA SUSPENSÃO DE EFICACIA DAS NORMAS LEGAIS IMPUGNADAS - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. - A essência do direito tributário - respeitados os postulados fixados pela própria Constituição - reside na integral submissão do poder estatal a rule of law. A lei, enquanto manifestação estatal estritamente ajustada aos postulados subordinantes do texto consubstanciado na Carta da Republica, qualifica-se como decisivo instrumento de garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria tributaria. Considerações em torno das dimensões em que se projeta o princípio da reserva constitucional de lei. - A nova Constituição da Republica revelou-se extremamente fiel ao postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder a delegação legislativa externa em favor do Poder Executivo. A delegação legislativa externa, nos casos em que se apresente possível, só pode ser veiculada mediante resolução, que constitui o meio formalmente idôneo para consubstanciar, em nosso sistema constitucional, o ato de outorga parlamentar de funções normativas ao Poder Executivo. A resolução não pode ser validamente substituída, em tema de delegação legislativa, por lei comum, cujo processo de formação não se ajusta a disciplina ritual fixada pelo art. 68 da Constituição. A vontade do legislador, que substitui arbitrariamente a lei delegada pela figura da lei ordinária, objetivando, com esse procedimento, transferir ao Poder Executivo o exercício de competência normativa primaria, revela-se irrita e desvestida de qualquer eficácia jurídica no plano constitucional. O Executivo não pode, fundando-se em mera permissão legislativa constante de lei comum, valer-se do regulamento delegado ou autorizado como sucedâneo da lei delegada para o efeito de disciplinar, normativamente, temas sujeitos a reserva constitucional de lei. - Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado - como o Poder Executivo - produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar. O legislador, em conseqüência, não pode deslocar para a esfera institucional de atuação do Poder Executivo - que constitui instância juridicamente inadequada - o exercício do poder de regulação estatal incidente sobre determinadas categorias temáticas - (a) a outorga de isenção fiscal, (b) a redução da base de calculo tributaria, (c) a concessão de crédito presumido e (d) a prorrogação dos prazos de recolhimento dos tributos -, as quais se acham necessariamente submetidas, em razão de sua própria natureza, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. - Traduz situação configuradora de ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa jurídica cuja sedes materiae - tendo em vista o sistema constitucional de poderes limitados vigente no Brasil - só pode residir em atos estatais primários editados pelo Poder Legislativo” (ADI-MC 1296/PE, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14/06/1995). 3.5) Regulamentos Executivos e Regulamentos Autônomos. A doutrina faz algumas classificações sobre os regulamentos. A principal delas é que a classifica os regulamentos em executivos e autônomos. Tudo o que foi dito linhas atrás, aplica-se aos regulamentos executivos, por meio dos quais se busca tão-somente assegurar a fiel execução da lei (CF, art.84, IV). Não inovam a ordem jurídica, pois visam apenas desdobrar os comandos normativos da lei a fim de melhor instrumentalizar a sua aplicação pelos seus destinatários, em especial os agentes administrativos. São estes os regulamentos atualmente previstos no Brasil, onde só os atos legislativos podem inovar na ordem jurídica (fontes primárias do Direito). Os regulamentos, como atos administrativos, são fontes secundárias do Direito. Já os regulamentos autônomos (também chamados de independentes), inovam a ordem jurídica, não sendo admitidos pela Carta Magna de 1988, haja vista as garantias individuais asseguradas pelo princípio da legalidade (CF, art.5º, II), segundo o qual somente os atos legislativos podem criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações. No Brasil, sob a égide da atual Carta Magna, apenas se admitiu a superveniência de regulamentos autônomos em situações excepcionais autorizadas pela própria Constituição, no tocante aos regulamentos editados por alguns órgãos do Executivo cuja competência normativa era prevista anteriormente a 1988, pelo prazo de cento e oitenta dias prorrogável por lei, na forma do art.25, I do ADCT. Não obstante, alguns doutrinadores entendem que a Emenda Constitucional n.32/2001 teria excepcionalmente criado outra espécie de regulamento autônomo entre nós, ao modificar o art.84, VI, da Carta Magna, passando a admitir que o Presidente da República possa dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos. Essa não é propriamente a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem o Direito brasileiro apenas admite a existência de regulamentos executivos, sendo equívoco “imaginar que o art.84, VI, da Constituição do País introduziu em nosso Direito os chamados ‘regulamentos independentes ou ‘autônomos’ encontradiços no Direito europeu”.� Em relação ao disposto na letra ‘a’ do inciso VI, nada de autônomo se extrai propriamente; já no que concerne ao previsto na letra ‘b’, o autor até admite haver aí certa inovação, na medida em que o Executivo extingue funções e cargos que haviam antes sido criados por lei. “Com efeito, se o Chefe do Executivo não pode nem criar nem extinguir órgão, nem determinar qualquer coisa que implique aumento de despesa, que pode ele, então, fazer, a título de dispor sobre ‘organização e funcionamento da Administração Federal?’ Unicamente transpor uma unidade orgânica menor que esteja encartada em unidade orgânica maior para outra destas unidades maiores – como, por exemplo, passar um departamento de um dado Ministério para outro Ministério ou para uma autarquia, e vice-versa; uma divisão alocada em certo departamento para outro departamento, uma seção pertencente a determinada divisão para outra divisão; e assim por diante. Pode, ainda, redistribuir atribuições preexistentes em dado órgão, passando-as para outro, desde que sejam apenas algumas das atribuições dele – pois, se fossem todas, isto equivaleria a extinguir o órgão, o que é vedado pela Constituição. Este é o regulamento previsto no art. 84, VI, ‘a’. Mera competência para um arranjo intestino dos órgãos e competências já criados por lei. Como é possível imaginar que isto é o equivalente aos regulamentos independentes ou autônomos do Direito europeu, cuja compostura, sabidamente, é muitíssimo mais ampla? Anote-se, por fim, que neste mesmo art. 84, VI, já agora na letra ‘b’, está contemplado um caso em que é permitido ao Executivo expedir ato concreto de sentido contraposto a uma lei, pois ali se prevê a possibilidade de o Presidente da República extinguir cargos vagos. Como os cargos públicos são criados por lei, sua extinção por decreto, tal como ali prevista, implica desfazer o que por lei fora feito”�. Em suma: “entre nós, por força dos arts. 5º, II, 84, VI, e 37 da Constituição, só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõe obrigações de fazer ou não fazer. Vale dizer: restrição alguma à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos”.� Fato é que o tratamento jurídico dado aos regulamentos no Direito brasileiro difere daquele existente em outros países. Aqui o vetor constitucional que contempla o princípio da legalidade é deveras forte para se admitir genericamente competências normativas primárias atribuídas ao Executivo. Predomina, então, a figura do regulamento executivo. O contrário se vê, por exemplo, na França, onde a própria Constituição prevê expressamente um rol aberto de matérias afetas ao campo normativo regulamentar, ou seja, há grande espaço para regulamentos autônomos. Conforme explica Fabrício Mota: “Cabe, neste momento, alertar para a aplicação irrefletida da análise do regulamento autônomo constante da Constituição francesa de 1958 ao ordenamento brasileiro. A Carta francesa separa o domínio da lei (art. 34) do domínio do regulamento (art.37), sendo exaustivamente enumeradas somente as matérias que compõe o primeiro domínio. Na lição de Jean Rivero, ‘no domínio da lei, o legislador é o único senhor; mas é, ao mesmo tempo, prisioneiro; sendo só ele competente para estatuir acerca das matérias que lhe são reservadas, é incompetente em relação a todas as outras. (...) o domínio do regulamento deduz-se, pois, a contrário, da enumeração das matérias legislativas dada no artigo 34º: só por esta enumeração é limitado’. Apesar disto, a interpretação conferida pelo Conselho de Estado ao dispositivo ressalta a vinculação dos regulamentos autônomos aos princípios gerais do Direito Administrativo. No ordenamento brasileiro, como se viu, aplica-se como regra o princípio da preferência da lei, que lhe confere maior status hierárquico incompatível com a enumeração taxativa de matérias. A competência normativa do Executivo, ao contrário, por ser excepcional, deve ser interpretada restritivamente. A Constituição brasileira dispõe em sentido inverso da Constituição francesa: o domínio do regulamento é expressamente delimitado e, no caso do regulamento executivo, sempre subordinado à lei”.� 3.6) Obrigações primárias (originárias) e obrigações subsidiárias (derivadas). Importante destacar, ainda, que o fato de os regulamentos executivos não inovarem na ordem jurídica não impede que eles especifiquem certas normas de conduta diretamente decorrentes das normas de conduta instituídas pela lei. Ora, um regulamento que apenas repetisse textualmente o que consta na lei seria inútil. É perfeitamente admissível que o regulamento, buscando garantir a fiel execução da lei, estabeleça certas condutas a serem seguidas pelos agentes administrativos e pelos administrados, como mero desdobramento das obrigações legais. “Essa proibição de inovação deve ser entendida em seus devidos termos – não cabe atribuir à afirmativa valor absoluto a ponto de tornar o regulamento inútil, limitando-se a repetir a lei. Deve existir entre o regulamento e a lei uma relação de compatibilidade, e não de mera conformidade”.� “A noção de regulamento de execução não pode ser circunscrita a uma atividade basicamente repetidora da lei. (...) sempre, em maior ou menor medida – ressalvadas, é claro, as hipóteses de reservas de lei, notadamente a absoluta – haverá espaço para atividade criativa do poder regulamentar de execução”.� É preciso, então, em cada caso concreto averiguar se a obrigação prevista no regulamento (obrigação secundária) é simples desdobramento da obrigação prevista na lei (obrigação originária), ou se houve abuso do poder regulamentar, isto é, se a Administração, a pretexto de regulamentar uma lei, inovou indevidamente na ordem jurídica. “O poder regulamentar é subjacente à lei e pressupõe a existência desta. É com esse enfoque que a Constituição autorizou o Chefe do Executivo a expedir decretos e regulamentos: viabilizar a efetiva execução das leis (art.84, IV). Por essa razão, ao poder regulamentar não cabe contrariar a lei (contra legem), pena de sofrer invalidação. Seu exercício somente pode dar-se secundum legem, ou seja, em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites que esta impuser. Decorre daí que não podem os atos formalizadores criar direitos e obrigações, porque tal é vedado num dos postulados fundamentais que norteiam nosso sistema jurídico: ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei´(art.5o, II, CF). É legítima, porém, a fixação de obrigações subsidiárias (ou derivadas) – diversas das obrigações primárias (ou originárias) contidas na lei – nas quais também se encontra imposição de certa conduta dirigida ao administrado. Constitui, no entanto, requisito de validade de tais obrigações sua necessária adequação às obrigações legais. Inobservado esse requisito, são inválidas as normas que as prevêem e, em conseqüência, as próprias obrigações. Se, por exemplo, a lei concede algum benefício mediante a comprovação de determinado fato jurídico, pode o ato regulamentar indicar quais documentos o interessado estará obrigado a apresentar. Esta obrigação probatória é derivada e legítima por estar amparada em lei. O que é vedado e claramente ilegal é a exigência de obrigações derivadas impertinentes ou desnecessárias em relação à obrigação legal; neste caso, haveria vulneração direta ao princípio da proporcionalidade e ofensa indireta ao princípio da reserva legal, previsto, como vimos, no art.5o, II, da CF. Por via de conseqüência, não podem considerar-se legítimos os atos de mera regulamentação, seja qual for o nível de autoridade de onde se tenha originado, que, a pretexto de estabelecerem normas de complementação da lei, criam direitos e impõem obrigações aos indivíduos. Haverá, nessa hipótese, indevida interferência de agentes administrativos no âmbito da função legislativa, com flagrante ofensa ao princípio da separação dos Poderes insculpido no art.2o da CF. Por isso, de inegável acerto a afirmação de que só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõe obrigações de fazer ou não fazer, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos”.� Feitas todas estas ponderações, cabe transcrever a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello sintetizando qual será o objeto da competência regulamentar da Administração Pública: “Os regulamentos serão compatíveis com o princípio da legalidade quando, no interior das possibilidades comportadas pelo enunciado legal, os preceptivos regulamentares servem a um dos seguintes propósitos: (I) limitar a discricionariedade administrativa, seja para (a) dispor sobre o modus procedendi da Administração nas relações que necessariamente surdirão entre ela e os administrados por ocasião da execução da lei; (b) caracterizar fatos, situações ou comportamentos enunciados na lei mediante conceitos vagos cuja determinação mais precisa deva ser embasada em índices, fatores ou elementos configurados a partir de critérios ou avaliações técnicas segundo padrões uniformes, para garantia do princípio da igualdade e da segurança jurídica; (II) decompor analiticamente o conteúdo de conceitos sintéticos, mediante simples discriminação integral do que neles se contém”.� 3.7) Órgãos com competência normativa primária localizados fora do Poder Legislativo. Já se falou anteriormente que a função legislativa é exercida tipicamente por órgãos que integram o chamado Poder Legislativo, que, no sentido orgânico, abrange as diversas casas parlamentares existentes no país (no âmbito federal, o Congresso Nacional, composto pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados; no âmbito estadual, as Assembléias Legislativas; no âmbito municipal, as Câmaras de Vereadores). Não obstante, a própria Constituição admite que outros órgãos, não integrantes do Legislativo, exerçam atipicamente a função legislativa. O exemplo clássico é o das Medidas Provisórias editadas pelo Chefe do Executivo, com força de lei. O mesmo ocorre com as leis delegadas. São, ambos, atos legislativos. Não são meros regulamentos executivos, eis que inovam na ordem jurídica. Vale dizer, trata-se aí de competência normativa primária (função legislativa) e não competência regulamentar (função administrativa normativa). Mas essa função legislativa atípica não se resume ao exemplo das medidas provisórias. Existem também outros órgãos e entidades aos quais a Constituição atribui a competência normativa primária, em função da autonomia que devem dispor em respeito ao princípio da separação dos poderes, entendimento que já encontra força na doutrina e na jurisprudência. Seria o caso, por exemplo, dos regimentos internos editados pelos Tribunais, Casas Parlamentares e órgãos do Ministério Público, bem como certas resoluções expedidas pelo Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Nessa linha de pensamento, tais disposições não seriam meros regulamentos, mas, sim, atos com o mesmo grau hierárquico dos atos legislativos e, portanto, inovadores da ordem jurídica. Como explica Fabrício Mota: “A verificação da existência de autonomias consagradas pela Constituição tem importante razão de ser: os atos editados pelos órgãos ou entidades autônomos, no estrito limite de suas atribuições, serão considerados primários, ligados por grau de dependência somente à mesma Constituição, possuindo a natureza de lei material e, conseqüentemente, o mesmo grau hierárquico conferido à lei formal. Em outras palavras: constituirão exceções ao princípio da primazia da lei. A ingerência do Executivo ou do Legislativo no campo específico destinado à normatização pelas entidades ou órgãos autônomos consistirá, por isso, em violação à ordem constitucional. Com efeito, a Constituição da República assegura aos poderes Judiciário e Legislativo e ao Ministério Público autonomia administrativa. A opção constitucional é, mais que adequada, necessária à configuração do Estado de Direito calcado na independência e harmonia dos poderes. Não se admitem, no exercício de cada um dos poderes, interferências recíprocas que não sejam constitucionalmente admitidas, sob pena de comprometer a necessária independência de cada qual. A independência destas instituições deve ser, por isso, vista como garantia do próprio regime republicano e democrático, tendo nítido caráter instrumental”.� Em relação aos regimentos internos dos Tribunais, conforme dispõe o art.96, I, a, da Carta Magna de 1988, desde que respeitem as normas sobre processo e garantias processuais das partes, poderão dispor primariamente sobre a competência e funcionamento dos seus respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. São, deste modo, atos de natureza mista, dispondo, os Tribunais, por meio deles, tanto de competência normativa primária quanto secundária: “O art. 96, I, ‘a’, determina competir privativamente aos tribunais ‘eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos’. O delineamento constitucional faz destes regimentos, na visão de Carlos Ayres de Britto (ADC 12 MC-DF), ato normativo ao mesmo tempo primário e secundário – primário, no tocante à competência e ao funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos de cada tribunal; secundário, no que tange ao dever de observância das normas processuais e de garantia das partes”.� Neste mesmo sentido, confira-se o seguinte precedente do STF: “(...) 2. Com o advento da Constituição Federal de 1988, delimitou-se, de forma mais criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF, art.22, I), bem como às garantias processuais das partes, ‘dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos’ (CF, art. 96, I, a). 3. São normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição. 4. Ante a regra fundamental insculpida no art.5º, LX, da Carta Magna, a publicidade se tornou pressuposto de validade não apenas do ato de julgamento do Tribunal, mas da própria decisão que é tomada por esse órgão jurisdicional. Presente, portanto, vício formal consubstanciado na invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual. Precedente: HC 74761, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 12.09.97. 5. Ação direta parcialmente conhecida para declarar a inconstitucionalidade formal dos arts. 144, par. Único e 150, caput do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios”.� Em relação aos atos normativos expedidos pelo CNJ (o mesmo se aplicando aos atos do CNMP), Fabrício Mota comenta o posicionamento do STF ao considerar constitucional a Resolução n.07/05 daquele órgão (que tratou de fixar procedimentos para evitar a prática de nepotismo no Judiciário), concluindo, assim, tratar-se de atos normativos primários: “Interessa, contudo, especificamente a regra inscrita no art. 103-B, §4º, inciso I, que atribui ao Conselho competência para zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências. Em nosso entendimento, a expressão ‘atos regulamentares’ foi utilizada em sentido impróprio, não dizendo respeito somente aos atos complementares necessários à execução das leis. Tratam, ao contrário, de atos diretamente subordinados à Constituição, expedidos pelo Conselho somente para permitir o adequado manejo de suas competências. De acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, o Conselho edita atos de caráter normativo primário, os quais retiram seu fundamento de validade e seu limite diretamente do §4º do art. 103-B da Constituição, tendo como finalidade desenvolver os próprios conteúdos lógicos ligados às suas competências. É dizer: os atos normativos expedidos pelo Conselho, no estreito limite de suas competências, encontram campo exclusivo para seu nascimento e desenvolvimento, imune à preferência da lei, sendo a ela vedado – e não só a ela, mas também ao Legislativo e ao Executivo – qualquer tipo de invasão, sob pena de afronta à Constituição. Aplicam-se, pois, ao Conselho, as conclusões parciais acima delineadas. Finalmente, dois pontos importantes ligados à competência normativa dos Conselhos podem ser destacados: a) no exercício de suas competências, claro que os Conselhos devem respeitar as matérias constitucionalmente reservadas ao tratamento por lei formal; b) a competência dos Conselhos para ‘zelar pela autonomia’ do Judiciário (no caso do CNJ) e do Ministério Público (no caso do CNMP) reforça a necessidade de respeito ao âmbito de autonomia das instituições, devendo ser preservado seu espaço de atuação conferido pela própria Constituição. Com efeito, as matérias que devem ser tratadas nas leis de organização judiciária e nas leis complementares de cada ramo do Ministério Público, como consectário lógico e necessário da autonomia de cada ente, não devem ser objeto de normatização por parte dos Conselhos”.� Com efeito, a Resolução 07/2005 do CNJ é dotada de caráter normativo primário, “dado que arranca diretamente do §4º, do art. 103-B, da Carta-cidadã, e tem como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade. Dessa forma, compreende-se que CNJ tem, sim, poder normativo para estabelecer, em caráter geral e abstrato, proibição de nepotismo”.� Em suma, essa Resolução é um ato normativo primário e não um simples regulamento executivo. 3.8) Decretos e outros atos administrativos de efeitos concretos. Nem todos os decretos, portarias ou resoluções funcionam como regulamentos. Apesar de serem instrumentos normalmente utilizados para esta finalidade, há casos em que eles são expedidos sem qualquer natureza regulamentar, isto é, somente têm forma de decreto, portaria ou resolução, mas não estabelecem propriamente normas de conduta de caráter geral e abstrato. Diz-se, então, que são atos de efeitos concretos, como é o caso, por exemplo, de um decreto de desapropriação ou uma portaria que nomeia um servidor público. Os atos de efeitos concretos são aqueles que produzem efeito diretamente sobre o patrimônio jurídico das pessoas a eles submetidas, não dependendo, para tanto, da intermediação de qualquer outro ato. Já se o ato é meramente normativo, seja lei, seja regulamento, sendo abstratos os seus efeitos, ainda dependerá da prática de outro ato para tornar concretas as suas disposições. A distinção é deveras importante porque somente os atos de efeitos concretos comportam questionamento na via do mandado de segurança, descabendo este remédio contra atos normativos (Súmula 266 do STF). Outrossim, não é possível questionamento de ato de efeito concreto por via de controle concentrado de constitucionalidade. Confira-se a jurisprudência do STF sobre o tema: “CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. LEI EM TESE: NÃO-CABIMENTO. Súmula 266-STF. I. - Se o ato normativo consubstancia ato administrativo, assim de efeitos concretos, cabe contra ele o mandado de segurança. Todavia, se o ato - lei, medida provisória, regulamento - tem efeito normativo, genérico, por isso mesmo sem operatividade imediata, necessitando, para a sua individualização, da expedição de ato administrativo, então contra ele não cabe mandado de segurança, já que, admiti-lo implicaria admitir a segurança contra lei em tese: Súmula 266-STF. II. - Segurança não conhecida”. (RMS 24266/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 07/10/2003) “Ação direta de inconstitucionalidade: inviabilidade: ato normativo de efeitos concretos. 1. O Decreto Legislativo 121/98, da Assembléia Legislativa do Estado do Piauí, impugnado, impõe a reintegração de servidores, que teriam aderido ao Programa de Incentivo ao Desligamento Voluntário do Servidor Público Estadual (L. est. 4.865/96). 2. O edito questionado, que, a pretexto de sustá-los, anula atos administrativos concretos - quais os que atingiram os servidores nominalmente relacionados - não é um ato normativo, mas ato que, não obstante de alcance plural, é tão concreto quanto aqueles que susta ou torna sem efeito. 3. É da jurisprudência do Supremo Tribunal que só constitui ato normativo idôneo a submeter-se ao controle abstrato da ação direta aquele dotado de um coeficiente mínimo de abstração ou, pelo menos, de generalidade. 4. Precedentes (vg. ADIn 767, Rezek, de 26.8.92, RTJ 146/483; ADIn 842, Celso, DJ 14.05.93)”. (ADI-MC-QO 1937, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 20/06/2007) “MANDADO DE SEGURANÇA. RESOLUÇÃO N. 10/2005, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. VEDAÇÃO AO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES, POR PARTE DOS MAGISTRADOS, EM TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DESPORTIVA E SUAS COMISSÕES DISCIPLINARES. ESTABELECIMENTO DE PRAZO PARA DESLIGAMENTO. NORMA PROIBITIVA DE EFEITOS CONCRETOS. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA N. 266 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE DE ACUMULAÇÃO DO CARGO DE JUIZ COM QUALQUER OUTRO, EXCETO O DE MAGISTÉRIO. 1. A proibição jurídica é sempre uma ordem, que há de ser cumprida sem que qualquer outro provimento administrativo tenha de ser praticado. O efeito proibitivo da conduta - acumulação do cargo de integrante do Poder Judiciário com outro, mesmo sendo este o da Justiça Desportiva - dá-se a partir da vigência da ordem e impede que o ato de acumulação seja tolerado. 2. A Resolução n. 10/2005, do Conselho Nacional de Justiça, consubstancia norma proibitiva, que incide, direta e imediatamente, no patrimônio dos bens juridicamente tutelados dos magistrados que desempenham funções na Justiça Desportiva e é caracterizada pela auto-executoriedade, prescindindo da prática de qualquer outro ato administrativo para que as suas determinações operem efeitos imediatos na condição jurídico-funcional dos Impetrantes. Inaplicabilidade da Súmula n. 266 do Supremo Tribunal Federal. 3. As vedações formais impostas constitucionalmente aos magistrados objetivam, de um lado, proteger o próprio Poder Judiciário, de modo que seus integrantes sejam dotados de condições de total independência e, de outra parte, garantir que os juízes dediquem-se, integralmente, às funções inerentes ao cargo, proibindo que a dispersão com outras atividades deixe em menor valia e cuidado o desempenho da atividade jurisdicional, que é função essencial do Estado e direito fundamental do jurisdicionado. 4. O art. 95, parágrafo único, inc. I, da Constituição da República vinculou-se a uma proibição geral de acumulação do cargo de juiz com qualquer outro, de qualquer natureza ou feição, salvo uma de magistério. 5. Segurança denegada” (MS 25938/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 24/04/2008). 3.9) Controle do poder normativo da Administração. Por fim, traçadas as balizas constitucionais no que concerne ao poder regulamentar, torna-se necessário examinar quais os mecanismos jurídicos de controle do exercício da função normativa da Administração Pública. Primeiramente, tem-se o controle pelo Poder Legislativo, a quem cabe precipuamente zelar pela sua autonomia no exercício da atividade legiferante, obstando a ocorrência de usurpação pelo Poder Executivo. Daí que a Constituição Federal de 1988 prevê a possibilidade de sustação de atos regulamentares que extrapolem os limites da função normativa secundária: “Art.49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (...) V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; (...) XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros Poderes”. Ao lado disso, o controle do poder regulamentar pode ser feito pela própria Administração (Súmula 473 do STF) ou mediante provocação do Poder Judiciário, toda vez em que se questionar a ilegalidade ou inconstitucionalidade de um ato administrativo de caráter normativo. 4) PODER DE POLÍCIA Nenhum direito individual, por mais precioso que seja, é absoluto, pois sempre encontrará limites em outros direitos individuais e, sobretudo, em direitos coletivos. “A liberdade “Não há direitos individuais absolutos a esta ou àquela atividade, mas ao contrário deverão estar subordinados aos interesses coletivos. Daí poder dizer-se que a liberdade e a propriedade são sempre direitos condicionados, visto que sujeitos às restrições necessárias a sua adequação ao interesse público”.� Discorrendo sobre o tema, são valiosas as palavras de Celso Ribeiro Bastos, quando diz que “no Estado de Direito o cidadão goza de um número bastante grande de direitos individuais, que decorrem da própria Constituição. Acontece, entretanto, que esses direitos não são passíveis de fruição absoluta por parte de seus destinatários. Não é da índole do direito, e as liberdades públicas não fazem exceção, conferir prerrogativas ilimitadas. Todo direito deve encontrar um ponto ótimo de utilização. É dizer, a satisfação de um direito individual pelo seu destinatário não pode ferir o direito de outros indivíduos, nem o interesse coletivo. A fruição de um direito de forma exagerada, extremada, desproporcional acaba por desnaturar o próprio direito”.� Fazendo uma analogia com a física estática, tal como duas forças em sentido contrário devem encontrar o seu ponto de equilíbrio estrutural, cabe precipuamente ao Estado utilizar as regras do Direito para “equilibrar” os interesses individuais com os interesses públicos. Quando assim atua, diz-se que o Estado exerce o seu poder de polícia administrativo, que, segundo Hely Lopes Meirelles, “é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.� Sobreleva acentuar, então, que o fundamento único do poder de polícia da Administração é o interesse público em prol da coletividade. Simplificando, o citado autor qualifica o poder de polícia com um “mecanismo de frenagem” de que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito individual. 4.1) Sentido amplo e sentido estrito. Celso Antônio Bandeira de Mello e José dos Santos Carvalho Filho identificam o poder de polícia em sentido amplo e em sentido estrito: “A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos designa-se ‘poder de polícia’. A expressão, tomada neste sentido amplo, abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se, pois, ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos. Por isso, nos Estados Unidos, a voz police power reporta-se sobretudo às normas legislativas através das quais o Estado regula os direitos privados, constitucionalmente atribuídos aos cidadãos, em proveito dos interesses coletivos, como bem anota Caio Tácito. A expressão ‘poder de polícia’ pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinada a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa”.� “A expressão poder de polícia comporta dois sentidos, um amplo e um restrito. Em sentido amplo, poder de polícia significa toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Sobreleva nesse enfoque a função do Poder Legislativo, incumbido da criação do ius novum, e isso porque apenas as leis, organicamente consideradas, podem delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. É princípio constitucional o de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art.5o, II, CF). Em sentido estrito, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que consubstancia, como vimos, verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade”.� 4.2) Origem da expressão police power e o emprego do conceito no Direito brasileiro. Como assinala Caio Tácito, a expressão poder de polícia tem a sua origem no direito americano (police power), a partir do clássico caso Brown vs Maryland, no qual foi discutida a limitação ao direito de propriedade visando adequá-la aos interesses da comunidade.� Na verdade, nunca houve acordo na doutrina acerca da noção de “polícia” como espécie particular de atividade administrativa. Clovis Beznos considera que “a tentativa de formulação de um conceito do que seja essa atividade estatal é, sem dúvida, um dos mais difíceis temas que o jurista de hoje pode enfrentar”. Em sua clássica obra sobre o Direito Administrativo Alemão (original francês de 1904), Otto Mayer já dizia que a noção de polícia tinha “uma história cheia de vicissitudes”, até porque os termos “polícia” e “poder de polícia” não surgiram ao mesmo tempo. Clovis Beznos ensina que a expressão foi cunhada na França no século XIV, para se referir a todos os aspectos de um “Estado bem organizado”, tendo em seguida migrado para o Direito alemão e empregado para identificar todas as atuações estatais que, ao lado do Exército e da Justiça, visassem assegurar o “bom estado da coisa comum”. Era a época do “Estado Polícia”, expressão que reflete a identidade então existente entre o Estado e a polícia num contexto que, nas palavras de Cretella Júnior, “a idéia de Estado é inseparável da idéia de polícia”. Posteriormente, com o advento do Estado Liberal, a doutrina jurídica seguiu utilizado o termo já consagrado, não obstante viesse sendo adaptado às novas concepções do Estado de Direito. Já a expressão “poder de polícia” só veio algum tempo depois, sendo, como conta Cretella Júnior, empregada pela primeira vez em 1827, pelo ministro Marshal da Suprema Corte americana, no seu voto no julgamento do caso Brown vs. Maryland, em que se discutiu a constitucionalidade de limites impostos por lei ao direito de propriedade. Vem daí o sentido amplo acima referido, como atividade estatal de restrição à liberdade e propriedade ajustando-as aos interesses coletivos, abrangendo inclusive os atos legislativos. No Brasil, seguindo a tradição francesa, costuma-se empregar a expressão em seu sentido estrito (atividade administrativa). É esse sentido estrito que consta no art.78 do CTN e no art.145, II, da CF/88. De fato, no Direito brasileiro, o conceito de poder de polícia está positivado no art.78 do Código Tributário Nacional: “Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão do interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais e coletivos”. Também está mencionado expressamente no art.145, II, da Carta Magna de 1988, como referência a uma das espécies de fatos geradores das taxas. O Supremo Tribunal Federal, em certo julgado, já enfocou o conceito do poder de polícia como sendo a “faculdade que tem o estado de opor à liberdade do cidadão as condições necessárias para garantir a saúde, a vida, a segurança Como exemplos de restrições decorrentes do poder de polícia, Diógenes Gasparini cita a proibição de construir acima de certa altura, a obrigatoriedade de observar determinado recuo de construção, o dever de denunciar doença contagiosa, a vedação de manter certos animais na zona urbana ou de, nessa zona, promover certa lavoura.� Convém não restringir o poder de polícia às atividades desempenhadas pelos órgãos cuja denominação traz a palavra “polícia”, a exemplo das Polícias Militares, Polícias Civis, Polícia Federal etc. Tais órgãos efetivamente exercem parcela do poder de polícia estatal, mas não são os únicos. 4.3) Supremacia geral e supremacia especial. Buscando delimitar o alcance do poder de polícia administrativo, diferenciando-o de outras expressões de poder do Estado, a doutrina alemã, a partir de Otto Mayer, elaborou uma distinção entre a “supremacia geral” e a “supremacia especial”. Assim, o poder de polícia decorre da supremacia geral do Estado perante todas as pessoas submetidas ao seu império, indistintamente, e que em regra emana diretamente da lei. Não se confunde com outras situações de poder entre a Administração determinadas pessoas que com ela mantém específicas relações de sujeição, tal como ocorre com os servidores públicos, aqueles que firmam contratos com a Administração, bem como outros indivíduos submetidos a disciplinas internas de certas instituições públicas tais como universidades, hospitais, bibliotecas, presídios etc. (poder disciplinar decorrente de supremacia especial). “A Administração, com base em sua supremacia geral, como regra não possui poderes para agir senão extraídos diretamente da lei. Diversamente, assistir-lhe-iam poderes outros, não sacáveis diretamente da lei, quando estivesse assentada em relação específica que os conferisse. (...) é inequivocadamente reconhecível a existência de relações específicas intercorrendo entre o Estado e um círculo de pessoas que nelas se inserem, de maneira a compor situação jurídica muito diversa da que atina à generalidade das pessoas, e que demandam poderes específicos, exercitáveis, dentro de certos limites, pela própria Administração. Para ficar em exemplos simplíssimos e habitualmente referidos: é diferente a situação do servidor público, em relação ao Estado, da situação das demais pessoas que com ele não travaram tal vínculo; é diferente, em relação a determinada Escola ou Faculdade pública, a situação dos que nela estão matriculados e o dos demais sujeitos que não entretém vínculo algum com as sobreditas instituições; é diferente a situação dos internados em hospitais públicos, em asilos ou mesmo em estabelecimentos penais, daquel’outra das demais pessoas alheias às referidas relações; é diferente, ainda, a situação dos inscritos em uma biblioteca pública circulante, por exemplo, daquela dos cidadãos que não a freqüentam e não se incluem entre seus usuários por jamais haverem se interessado em matricular-se nela. Em quaisquer destes casos apontados, os vínculos que se constituíram são, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, exigentes de uma certa disciplina interna para funcionamento dos estabelecimentos em apreço (...). O que aqui se quer realçar é que os atos encartados no âmbito das relações de sujeição especial não se enquadram no campo do Poder de Polícia, isto é, das limitações administrativas à liberdade e à propriedade”.� Alexandre Mazza adverte que “a teoria da supremacia especial foi muito pouco estudada pela doutrina brasileira, sendo difícil prever o impacto que sua aplicação, capaz de reduzir as garantias inerentes à legalidade, causaria num país de curta história democrática. Convém lembrar que a utilização da referida teoria foi abandonada na maioria dos países europeus, principalmente pelo viés autoritário de alguns desdobramentos de sua aplicação. O maior risco está na utilização das relações de sujeição especial como pretexto para limitar indevidamente a liberdade dos cidadãos, criando deveres e proibições estabelecidos sem o debate democrático do Poder Legislativo”.� 4.4) Distinção entre poder de polícia e os poderes hierárquico e disciplinar. Como dito acima, o poder disciplinar envolve a apuração de infrações e aplicação de penalidades aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa, segundo uma relação de supremacia especial, não abrangendo as sanções impostas a particulares não submetidos à disciplina interna da Administração. Neste ultimo caso trata-se de poder de polícia, decorrente da supremacia geral. Pode-se dizer que enquanto o poder de polícia está voltado para o “público externo”, o poder hierárquico e o poder disciplinar são expressões da autoridade exercida pela Administração em relação ao seu “público interno”, ou seja, aqueles que com ela mantêm algum vínculo funcional ou que estejam mais próximos da estrutura administrativa, sujeitando-se, por isso, a uma disciplina mais rigorosa. Por força da hierarquia existente no interior da Administração, caberá à autoridade superior editar atos normativos, dar ordens, controlar atividades, anular atos ilegais, revogar atos inconvenientes ou inoportunos, aplicar sanções, avocar atribuições, desde que não sejam da competência exclusiva do órgão ou agente subordinado, bem como delegar atribuições, que não lhe sejam privativas. “Hierarquia é o escalonamento em plano vertical dos órgãos e agentes da Administração que tem como objetivo a organização da função administrativa. E não poderia ser de outro modo. Tantas são as atividades a cargo da Administração Pública que não se poderia conceber sua normal realização sem a organização, em escalas, dos agentes e órgãos públicos. Em razão desse escalonamento firma-se uma relação jurídica entre os agentes, que se denomina de relação hierárquica. Do sistema hierárquico na Administração decorrem alguns efeitos específicos. O primeiro consiste no poder de comando de agentes superiores sobre outros hierarquicamente inferiores. Estes, a seu turno, têm dever de obediência para com aqueles cabendo-lhes executar as tarefas em conformidade com as determinações superiores. Outro efeito da hierarquia é o de fiscalização das atividades desempenhadas por agentes de plano hierárquico inferior para verificação de sua conduta não somente em relação às normas legais e regulamentares, como ainda no que disser respeito às diretrizes fixadas por agentes superiores. Decorre também da hierarquia o poder de revisão dos atos praticados por agentes de nível hierárquico mais baixo. Se o ato contiver vício de legalidade, ou não se coadunar com a orientação administrativa, pode o agente superior revê-lo para ajustar a essa orientação ou para restaurar a legalidade. Por fim, derivam do escalonamento hierárquico a delegação e a avocação. Delegação é a transferência de atribuições de um órgão para outro no aparelho administrativo, como resume Cretella Júnior. O poder de delegação não é irrestrito e, por isso, não atinge certas funções específicas atribuídas a determinados agentes; a delegação abrange funções genéricas e comuns da Administração. Cuida-se de fato administrativo que vislumbra maior eficiência na ação dos administradores públicos e que reclama expressa definição das atribuições delegadas. A avocação é o fato inverso. Através dela, o chefe superior pode substituir-se ao subalterno, chamando a si (avocando) as questões afetas a este, salvo quando a lei só lhe permita intervir nelas após a decisão dada pelo subalterno. Acrescente-se que a avocação, embora efeito do sistema hierárquico, não deve ser disseminada em profusão, uma vez que as regras normais de competência administrativa. Daí seu caráter de excepcionalidade”. Hely Lopes Meireles adverte que o poder disciplinar é um poder-dever, pois o superior hierárquico tem o poder e o dever de punir o seu subordinado faltante, sob pena de ser enquadrado no crime de condescendência criminosa (CP, art.320). Saliente-se, porém, que a punição disciplinar tem fundamento substancial diverso da punição penal, daí porque, inclusive, não está vinculada a prévia tipificação legal. Importante destacar que no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário, quando seus membros exercem suas atividades típicas (legislação e jurisdição), não existe hierarquia no que diz respeito a suas funções institucionais, havendo, na verdade, distribuição de competências exercidas com independência. Hierarquia, no sentido aqui estudado, somente existe quando se tratar de função administração atipicamente exercida no âmbito de um desses Poderes. “Na administração, sobreleva o aspecto prático e concreto. Nas outras funções estatais, dada a própria natureza, diferem os pressupostos de organização. No Poder Legislativo como no Judiciário não há propriamente hierarquia. Num, o princípio inspirador estrutural é o da igualdade ou paridade dos órgãos, noutro, a independência de seus órgãos componentes. Entre os órgãos do Legislativo há uma igualdade fundamental, que não permite qualquer aplicação do princípio. Os representantes políticos estão no mesmo pé de igualdade. No Poder Judiciário também não existe hierarquia. Embora haja instâncias, os órgãos judiciais não apresentam entre si relações de direção e dependência, no sentido próprio da vinculação hierárquica. Os juízes de instância superior não são superiores hierárquicos dos de instância inferior”. 4.5) Distinção entre poder de polícia e outras atividades estatais. Para diferenciar o poder de polícia das atividades prestacionais do Estado, costuma-se ainda recorrer à idéia de que o poder de polícia busca uma abstenção por parte do administrado, ao passo que o serviço público ou a atividades econômicas asseguram prestações positivas. Tal distinção, porém, nem sempre é segura, porque as atividades do poder de polícia, a depender do ângulo que se enxergue, têm também um caráter prestacional. Além disso, o próprio conceito de “serviço público” também vem sendo aos poucos modificado da concepção original adotada no Brasil. Na França, onde o conceito clássico de serviço público sempre foi mais amplo do que o adotado no Brasil, a doutrina ainda costuma tratar do “serviço público da polícia administrativa”, conforme escreve René Chapus. 4.6) Críticas atuais à terminologia. Não obstante se tratar de terminologia de uso já consagrado na doutrina, não faltam críticas ao termo “poder de polícia”, consoante salienta Celso Antônio: “Trata-se de designativo manifestamente infeliz. Engloba, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos; isto é, disposições superiores e providências subalternas. Já isto seria, como é, fonte das mais lamentáveis e temíveis confusões, pois leva, algumas vezes, a reconhecer à Administração poderes que seriam inconcebíveis (no Estado de Direito), dando-lhe uma sobranceria que não possui, por ser imprópria de quem nada mais pode fazer senão atuar com base na lei que lhe confira os poderes tais ou quais e a serem exercidos nos termos e na forma por ela estabelecidos. Além disso, a expressão “poder de polícia” traz consigo a evocação de uma época pretérita, a do ‘Estado de Polícia’, que precedeu ao Estado de Direito. Traz consigo a suposição de prerrogativas dantes existentes em prol do ‘príncipe’ e que se faz comunicar inadvertidamente ao Poder Executivo. Em suma: raciocina-se como se existisse uma ‘natural’ titularidade de poderes em prol da Administração e como se dela emanasse intrinsecamente, fruto de um abstrato ‘poder de polícia’”.� Na mesma esteira de críticas à expressão “poder de polícia”, Carlos Ari Sundfeld prefere utilizar o termo “Administração Ordenadora” para abrigar todas as operações estatais de regulação do setor privado, com o emprego do poder de autoridade: “A substituição do poder de polícia pela administração ordenadora não é mera troca de rótulos. Claro, há também a eliminação de expressão inconveniente, porque ligada à realidade jurídica que não mais vigora. Porém, o que há, principalmente, é a substituição da postura metodológica. Desde logo, é importante a questão do rótulo. Não convém falar em poder de polícia porque ele: a) remete a um poder – o de regular autonomamente as atividades privadas – de que a Administração dispunha antes do Estado de Direito e que, com sua implantação, foi transferido para o legislador; b) está ligada ao modelo do Estado liberal clássico, que só devia interferir na vida privada para regulá-la negativamente, impondo deveres de abstenção e, atualmente, a Constituição e as leis autorizam outros gêneros de imposição; c) faz supor a existência de um poder discricionário implícito para interferir na vida privada que, se pode existir em matéria de ordem pública – campo para o qual o conceito foi originalmente cunhado – não existe em outras, para as quais a doutrina transportou-se acriticamente, pela comodidade de seguir usando velhas teorias. (...) Já a idéia de administração ordenadora surge de outra ordem de raciocínio. Como ponto de partida, ela nega a existência de uma faculdade administrativa, estruturalmente distinta das demais, ligada à limitação dos direitos individuais. O poder de regular originariamente os direitos é exclusivamente da lei. As operações administrativas destinadas a disciplinar a vida privada apresentam-se, à semelhança das outras, como aplicação de leis. (...) Há aqui importante novidade: enquanto a noção de poder de polícia surgiu para realçar o suposto poder de a Administração interferir na liberdade e propriedade, regulando-as em nome da boa ordem da coisa pública, a de administração ordenadora nasce justamente para negá-lo – e para deixar bem estampada a negativa”. Não obstante tais críticas, fato é que a terminologia “poder de polícia” segue sendo amplamente utilizada pela doutrina nacional, até porque, como dito, consta da redação do art.145, II, da Carta Magna de 1988 e no art.78 do Código Tributário Nacional 4.7) Competências e áreas de atuação. No tocante às competências para o exercício do poder de polícia, a princípio as atividades de polícia administrativa são titularizadas privativa ou conjuntamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo a Constituição Federal buscado delimitar o campo de atuação de cada uma dessas entidades políticas, de acordo com as competências legislativas previstas nos artigos 22, 24, 25 e 30. Consoante escreve Celso Antônio Bandeira de Mello “deve-se, em conclusão, entender que a atividade de polícia administrativa incumbe a quem legisla sobre a matéria, ficando, todavia, claro que a competência legislativa da União sobre os assuntos relacionados no art.22 não exclui competência municipal ou estadual, e, portanto, não exclui o poder de polícia destes, quanto aos aspectos externos à essência mesma da matéria deferida à União. Haverá competência concorrente quando o interesse de pessoas políticas diferentes se justapõe. Assim, em matéria de segurança e salubridade públicas não é rara a ocorrência do fato. A legislação municipal que regula a expedição de alvará de licença para funcionamento de locais de divertimentos públicos prevê fiscalização também da segurança de eventuais usuários. Então, cumpre que a lotação da casa de espetáculos não exceda os limites compatíveis com a segurança das pessoas que ali ingressam, que as portas de saída dos cinemas não estejam obstruídas ou dificultando a vazão do público em momentos de emergência. Já, aos Estados caberá manter a segurança do mesmo público quando considerada sob outro aspecto. Assim, os policiais, agentes de serviço estadual de polícia de segurança, prevenirão e reprimirão tumultos e conflitos que ameacem lesar ou lesem a comunidade e, pois, garantirão também a segurança dos indivíduos presentes nos locais de divertimentos públicos”.� Registre-se que o fato de uma atividade de polícia ser titularizada por determinado ente político (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) e poder por ele ser exercida (por meio de seus órgãos, sem personalidade jurídica) não impede que a execução possa vir a ser transferida a um ente administrativo de direito público (com personalidade jurídica) criado por lei para essa finalidade específica. Assim, por exemplo, tendo a União a competência para regular o sistema financeiro nacional, foi criada uma autarquia federal para exercer essa atribuição, qual seja o Banco Central do Brasil. Tem-se aí a distinção que costuma ser feita entre poder de polícia originário e poder de polícia delegado. Segundo a doutrina, o poder de polícia originário nasce com a entidade que o exerce, sendo pleno no seu exercício, ao passo que o poder de polícia delegado é exercido por outra entidade, através de transferência legal, sendo limitado aos termos da delegação e caracterizado essencialmente por atos de execução. Assim escreve José dos Santos Carvalho Filho: “Ante o princípio de que quem pode o mais pode o menos, não é difícil atribuir às pessoas políticas da federação o exercício do poder de polícia. Afinal, se lhes incumbe editar as próprias leis limitativas, de todo coerente que se lhes confira, em decorrência, o poder de minudenciar as restrições. Trata-se aqui do poder de polícia originário, que alcança, em sentido amplo, as leis e os atos administrativos provenientes de tais pessoas. O Estado, porém, não age somente por seus agentes e órgãos internos. Várias atividades administrativas e serviços públicos são executados por pessoas administrativas vinculadas ao Estado. A dúvida consiste em saber se tais pessoas têm idoneidade para exercer o poder de polícia. E a resposta não pode deixar de ser positiva, conforme proclama a doutrina mais autorizada. Tais entidades, com efeito, são o prolongamento do Estado e recebem deste o suporte jurídico para o desempenho, por delegação, de funções públicas a ele cometidas. Indispensável, todavia, para a validade dessa atuação é que a delegação seja feita por lei formal, originária da função regular do Legislativo. Observe-se que a existência da lei é o pressuposto de validade da polícia administrativa exercida pela própria Administração Direta e, desse modo, nada obstaria que servisse também como respaldo da atuação de entidades paraestatais, mesmo que sejam elas dotadas de personalidade jurídica de direito privado. O que importa, repita-se, é que haja expressa delegação na lei pertinente e que o delegatário seja entidade integrante da Administração Pública. Por outro lado, releva destacar que a delegação não pode ser outorgada a pessoas da iniciativa privada, desprovidas de vinculação oficial com entes públicos, visto que, por maior que seja a parceria que tenham com estes, jamais serão dotadas da potestade (ius imperii) necessária ao desempenho da atividade de polícia. Quando a lei confere a uma entidade administrativa o poder acima referido, diz-se que há na hipótese poder de polícia delegado”.� É preciso atentar ainda para não confundir as competências para legislar e para executar (administrar). Há atividades de polícia que podem ser exercidas por Estados e Municípios, mas com base em assuntos da competência legislativa privativa da União. Ou seja, os Estados e Municípios executam medidas de polícias, porém seguindo a legislação nacional (Código Nacional de Trânsito, por exemplo). Vale dizer, o fato de Estados e Municípios exercerem poder de polícia nem sempre significa que possam legislar sobre o assunto correspondente. Haveria, nesses casos, flagrante inconstitucionalidade, conforme já decidiu o STF, por exemplo, no seguinte julgado: “INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei n. 1.925/98, do Distrito Federal. Trânsito. Iluminação interna dos veículos fechados. Obrigatoriedade em certo período, quando se aproximem de blitz ou barreira policial. Previsão de penalidades pecuniárias que defina o Poder Executivo. Inconstitucionalidade aparente. Ofensa ao art. 22, XI, da CF. Liminar deferida. Competência legislativa privativa da União. Voto vencido. Em sede de liminar, aparenta ofensa ao art. 22, XI, da CF, a lei distrital que torna obrigatória, sob pena pecuniária a ser definida pelo Poder Executivo, a iluminação interna dos veículos fechados, no período das dezoito às seis horas, quando se aproximem de blitz ou barreira policial” (STF, ADI-MC 3625/DF, Rel. Min. Cézar Peluzo, julgamento de 17/08/2006). Mas sejam áreas de competência privativa de determinado ente político, sejam áreas de atuação conjunta deles, o fato é que no atual contexto da intervenção estatal são múltiplos os setores e áreas de atuação do poder de polícia em âmbito federal, estadual e municipal. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a polícia administrativa atua em quatro grandes áreas de interesse público, verdadeiros valores convivenciais, quais sejam a segurança, a salubridade, o decoro e a estética. A função de polícia de segurança “pode ser considerada como uma atividade destinada a manter a ordem social, referida às pessoas, bens e instituições sociais em geral, e a ordem jurídica referida ao Estado e suas instituições”.� Do gênero segurança, destaca-se a salubridade, porquanto “o Estado vem tomando a si, e o faz em medida cada vez maior, a defesa sanitária em inúmeros setores, como o higiênico, o bromatológico, o médico, o farmacêutico, o ecológico, o zoossanitário, o fitossanitário e, mais recentemente, o genético, em lista aberta”.� No tocante ao decoro, comete-se à Administração “a prevenção e a repressão dos mais variados tipos de comportamentos anti-éticos e indecorosos, atentatórios aos costumes da sociedade e a valores gregários fundamentais. Sujeitam-se, assim, às ordens, fiscalização, consentimentos e sanções de polícia as expressões de pensamento, os espetáculos públicos, as reuniões, as atividades associativas, os cultos, os costumes, a publicidade, as atividades que envolvam a fé pública, a atividade funerária e a, não menos importante, modalidade da polícia das profissões, sempre que agridam ou ponham em risco valores sociais conotados à ética e protegidos por lei”.� Finalmente, “o valor estética passou também a exigir do Estado contemporâneo uma crescente atuação de polícia administrativa. Não é bastante que a convivência seja segura, salubre e decorosa, pois as sociedades desenvolvem padrões estéticos sempre mais elaborados e exigentes, cometendo-se ao Estado o dever de garantir-lhes um mínimo de respeito pela harmonia e pela beleza. Inscreve-se neste campo de atuação executiva de polícia, a estética urbanística, a estética paisagística e estética publicitária”.� Valendo-nos ainda dos ensinamentos de Diogo de Figueiredo, poderíamos ainda subdividir os referidos campos de atuação destacando setores específicos de atuação da polícia administrativa, distribuídos segundo vários critérios legais ditados pela política e pelas conveniências da organização administrativa do Estado, a saber: polícia de costumes (prevenção e repressão ao crime e às atividades sociais nocivas), polícia de comunicações (fiscalização de abuso de propaganda, diversões, espetáculos públicos), polícia sanitária (defesa da saúde humana), polícia de viação (controle de trânsito e tráfego terrestre, marítimo, aéreo, fluvial e lacustre), polícia de comércio e indústria (disciplina das atividades comerciais e industriais), polícia das profissões (fiscalização do exercício profissional), polícia ambiental (controle da atmosfera, águas, oceanos, flora e fauna), polícia de estrangeiros (controle de ingresso no território nacional, concessão de passaportes etc.), polícia edilícia (controle de obras e construções), dentre outros. Convém transcrever os ensinamentos do ilustre professor Diógenes Gasparini ressaltando que a polícia administrativa é uma só, mas que são variados os seus campos de atuação: “A atribuição de polícia administrativa, sempre com essas características, incide sobre as mais variadas matérias, daí dizer-se, somente para fim didático e para explicitar a matéria sobre a qual incide, que há: polícia de caça e pesca, destinada à proteção da fauna terrestre e aquática; polícia de diversões públicas, voltada à defesa dos valores sociais; polícia florestal, com a finalidade de proteger a flora; polícia de pesos e medidas, volvida ao controle e fiscalização de pesos e medidas; polícia de trânsito e tráfego, destinada a garantir a segurança e a ordem nas estradas; polícia sanitária, que se preocupa com a proteção da saúde pública; polícia de água, destinada a vedar sua poluição; polícia da atmosfera, preocupada em evitar a deteriorização do ar; polícia edilícia, que se ocupa da disciplina das construções; polícia funerária, voltada ao transporte e enterramento de cadáveres. Reafirme-se que indicado constitui apenas setores onde as normas de polícia se fazem sentir, não as várias espécies de polícia administrativa. Essas espécies não existem. Só há uma polícia administrativa”.� 4.8) Polícia administrativa e polícia judiciária. A doutrina costuma apontar que o poder de polícia poderá ser preventivo (polícia administrativa) ou repressivo (polícia judiciária), distinção oriunda do direito francês. Celso Antônio Bandeira de Mello critica o critério de distinção com base no caráter exclusivamente repressivo ou preventivo. De fato, esse critério não é seguro, pois há situações em que a policia administrativa age com repressão, bem como outras em que a polícia judiciária toma medidas preventivas. Para o mestre, “o que efetivamente aparta polícia administrativa de polícia judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades anti-sociais enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica”.� Neste mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos assinala que “é inegável o caráter eventualmente repressivo da polícia administrativa, como quando desfaz passeata ou comício que já havia iniciado o processo perturbador da ordem e da tranqüilidade públicas, por cuja manutenção peleja o poder de polícia. O que distingue a repressão típica da polícia administrativa da judiciária é que aquela somente se justifica enquanto ainda houver proveito na sua ação, isto é, enquanto da sua aplicação possam ainda ser evitados danos futuros”.� O poder de polícia administrativo é muito amplo, exercendo-se em diversas esferas (trânsito, vigilância sanitária, caça e pesca, florestas, edificações, vigilância marítima, aérea e de fronteiras, rodovias, ferrovias, pesos e medidas etc.), ao passo que o poder de polícia judiciário tem por objetivo precípuo a investigação de delitos, em auxílio ao Poder Judiciário. À margem de qualquer distinção material, na verdade o grande elemento diferenciador está no regime jurídico aplicável. As atividades da polícia administrativa regem-se por normas administrativas, enquanto as da polícia judiciária regem-se por normas do processo penal. Explica José dos Santos Carvalho Filho: “Costumam os estudiosos do assunto dividir o poder de polícia em dois segmentos: a Polícia Administrativa e a Polícia Judiciária. Não obstante, antes de traçar a linha diferencial entre cada um desses setores, cabe anotar que ambos se enquadram no âmbito da função administrativa, vale dizer, representam atividades de gestão de interesses públicos. A Polícia Administrativa é atividade da Administração que se exaure em si mesma, ou seja, inicia e completa no âmbito da função administrativa. O mesmo não ocorre com a Polícia Judiciária, que, embora seja atividade administrativa, prepara a atuação da função jurisdicional penal, o que a faz regulada pelo Código de Processo Penal (arts. 4o e seguintes) e executada por órgãos de segurança (polícia civil ou militar), ao passo que a Polícia Administrativa o é por órgãos administrativos de caráter mais fiscalizador. Outra diferença reside na circunstância de que a Polícia Administrativa incide basicamente sobre atividades dos indivíduos, enquanto a Polícia Judiciária preordena-se ao indivíduo em si, ou seja, aquele a quem se atribui o cometimento de ilícito penal. Vejamos um exemplo: quando agentes administrativos estão executando serviços de fiscalização em atividades de comércio, ou em locais proibidos para menores, ou sobre as condições de alimentos para consumo, ou ainda em parques florestais, essas atividades retratam o exercício de Polícia Administrativa. Se, ao contrário, os agentes estão investigando a prática de crime e, com esse objetivo, desenvolvem várias atividades necessárias à sua apuração, como oitiva de testemunhas, inspeções e perícias em determinados locais e documentos, convocação de indiciados etc., são essas atividades caracterizadas como Polícia Judiciária, eis que, terminada a apuração, os elementos são enviados ao Ministério Público para, se for o caso, providenciar a propositura da ação penal. Por pretender evitar a ocorrência de comportamentos nocivos à coletividade, reveste-se a Polícia Administrativa de caráter eminentemente preventivo: pretende a Administração que o dano social sequer chegue a consumar-se. Já a Polícia Judiciária tem natureza predominantemente repressiva, eis que se destina à responsabilização penal do indivíduo. Tal distinção, porém, não é absoluta, como têm observado os estudiosos. Na verdade, os agentes da Polícia Administrativa também agem repressivamente quando, por exemplo, interditam um estabelecimento comercial ou apreendem bens obtidos por meios ilícitos. Por outro lado, os agentes de segurança têm a incumbência, freqüentemente, de atuar de forma preventiva, para o fim de ser evitada a prática de delitos”.� Conforme aponta R. Friede, deve-se ter cuidado para não confundir a espécie de polícia com o órgão que a desempenha. “Determinado órgão poderá realizar atividades precipuamente de polícia judiciária, como a Polícia Civil, e, secundariamente, atividades de polícia administrativa. A Polícia Federal, por exemplo, exerce a atividade judiciária da União e atividades eminentemente administrativas, como as de polícia marítima, aérea e de fronteiras”.� 4.9) Polícia geral e polícia especial. Ainda sob inspiração do direito francês, a doutrina aponta ainda a distinção entre polícia geral e polícia especial. A primeira se ocuparia dos fatores de ordem pública, distribuídos basicamente nos campos da tranqüilidade, da segurança e da salubridade públicas, nos quais poderia haver regulamentos autônomos tratando das matérias. Já a segunda estaria voltada aos demais ramos de atuação da polícia administrativa. Em suma, a “Polícia Geral” seria aquela que se ocupa da ordem pública (“boa ordem”), na sua trilogia tradicional (segurança, tranqüilidade e salubridade). Posteriormente, a jurisprudência francesa acrescentou, ao conceito de “ordem pública geral”, os valores estética e moralidade pública. Na tradição francesa, por estar encarregada do “mínimo social necessário” (ordem pública), os atos da polícia geral não necessitam de texto legal expresso, decorrendo de uma espécie de domínio eminente do Estado, podendo haver inclusive regulamentos autônomos sobre a matéria. Já a “Polícia Especial” estaria voltada para outras finalidades de regulação do setor privado, distintas da ordem pública geral. As medidas de polícia especial necessitam de previsão expressa. Todavia, Celso Antônio Bandeira de Mello nega aplicação de tal distinção no Direito Administrativo brasileiro, no qual todas as atividades de polícia encontram-se niveladas em um mesmo patamar, havendo sempre necessidade de lei pautando a conduta da Administração, não havendo espaço para regulamentos autônomos entre nós, mas apenas regulamentos executivos. Ademais, não há critério seguro para se distinguir o que seja um ato de polícia visando à manutenção da ordem pública e outro com outra finalidade. Na própria França isso vem gerando divergências, como ocorreu com o aludido caso do “lançamento de anões”. Marçal Justen ressalta que toda a doutrina francesa comenta essa decisão, porque foi tomada em nome da “ordem pública”, apesar de haver um texto legislativo muito específico delimitando as finalidades buscadas pelo poder de polícia. E essa insegurança de critérios aumenta muito mais no atual contexto do Direito Administrativo contemporâneo, haja vista, dentre outros aspectos, a vinculação direta a normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais, bem como a amplitude da atuação reguladora do Estado. 4.10) Formas de atuação. Quanto às formas de atuação do poder de polícia, a doutrina aponta quatro: ordem de polícia, fiscalização de polícia, consentimento de polícia e sanção de polícia. A ordem de polícia “caracteriza-se por ordens e proibições que se manifestam por meio de normas administrativas limitadoras e sancionadoras da conduta individual dos administrados, sobretudo àqueles que, de alguma forma, utilizam bens ou exercem atividades de efeito para toda a sociedade”.� Trata-se de atuação regulamentar que busca assegurar a fiel execução da lei. “As atividades de polícia podem se manifestar de diferentes formas. Em algumas situações haverá uma determinação do Poder Público, dirigida ao particular, impondo a prática ou abstenção de ato, criando-se normalmente uma obrigação de não fazer. Os atos dessa natureza são genéricos, alcançando as pessoas que se encontram em uma mesma situação jurídica ou fática prevista no ato. Deve ser lembrado que essa forma de manifestação depende de previsão legal, legitimando a atuação da Administração quando da imposição de restrições ao exercício de direitos fundamentais”.� A fiscalização de polícia caracteriza-se “pela observância feita pela Administração no que concerne à forma de uso que certo bem recebe, considerando, particularmente, que o administrado, ao fazer uso de determinado bem, deve cumprir exatamente o que é estabelecido pela Administração”.� Tal fiscalização poderá ser exercida, por exemplo, em relação à higiene de alimentos e segurança nas construções, podendo inclusive ser delegada. “Outra forma de manifestação é a ação fiscalizadora do Estado, incidindo sobre atividades que, mesmo privadas, podem atingir aos demais membros da coletividade e que, conseqüentemente, merecem o controle para se evitar abusos e danos. A atividade de fiscalização vai incidir sobre as diversas áreas de atuação dos particulares que recomendem a vigilância do Estado para impedir abusos que comprometam a sociedade”.� O consentimento de polícia “consiste na permissão dada pela Administração ao administrado para exercer algum ato ou para utilização de determinado bem”�, o que geralmente ocorre por meio de alvarás, licenças e autorizações. Tal atuação poderá ser também delegada pelo Estado. “A polícia administrativa também se manifesta quando a Administração Pública precisa se manifestar sobre o desempenho, por particulares, de atividades que são submetidas ao controle do Poder Público. Os atos administrativos de concordância são chamados atos negociais, sendo exemplo a autorização para porte de armas, a licença para construir e a permissão para a prática de determinadas atividades. Uma parcela dos atos negociais são vinculados, não podendo ser indeferidos pela Administração Pública os requerimentos que são formulados de acordo com a lei, como, por exemplo, a licença. Existem atos negociais que são discricionários, sendo os requerimentos apreciados em razão de critérios de conveniência e oportunidade, como as autorizações”.� A sanção de polícia “pode ser entendida como a penalidade aplicada pela Administração em virtude da inobservância da ordem de polícia”�. Tais penalidades devem ter assento em lei, das quais são exemplos a multa, a interdição, a demolição, a destruição, a inutilização, o embargo etc. Trata-se de atividade indelegável, cabendo exclusivamente ao Estado atuar nesta fase. No âmbito federal, a Lei 9873/99 estabelece o prazo de cinco anos para a aplicação das sanções de polícia. “Norma jurídica sem sanção não é, normalmente, observada. A mesma regra aplica-se ao poder de polícia. Se ele não for adequadamente aparelhado para impor sanções nos casos cabíveis, de nada valerá o esforço da Administração na missão de coibir os comportamentos anti-sociais. Por estes motivos a legislação de polícia prevê diversas modalidades de sanções a serem impostas aos indivíduos desrespeitadores das regras impostas pelo Poder Público através do poder de polícia. As sanções têm, normalmente, o caráter intimidatório e natureza puramente punitiva. Há, entretanto, casos em que a imposição visa evitar danos a pessoas ou a objetos. As principais sanções previstas no sistema jurídico brasileiro são: a) multa – estabelecida no caso concreto, de acordo com a extensão da infração e critérios discricionários da autoridade competente; b) demolição de construção – esta ocorre nos casos de prédios em ruína ou em situação em que esteja expondo a vizinhança ou os transeuntes em risco, ou na hipótese de construção clandestina ou em desacordo com o projeto aprovado pela Prefeitura; c) interdição de atividade – esta sanção é imposta principalmente quando o autuado está fabricando ou vendendo produtos inadequados ao consumo ou à finalidade a que se destina. A interdição, em regra, é por prazo determinado ou até a normalização da atividade; d) fechamento de estabelecimento – modalidade sancionatória que se verifica nos casos de reincidência reiterada ou de fabrico ou comércio de produtos proibidos por nocivo à saúde, ou em outros casos de atividades ilícitas; e) destruição de objetos – quando inadequados ou impróprios à sua finalidade, por motivos técnicos ou proibição. Exemplo é a incineração de redes e outros equipamentos de pescaria apreendidos por estarem fora dos padrões e especificações estabelecidos pelo órgão responsável pela polícia de pesca; f) inutilização de gêneros – esta hipótese ocorre quando o comerciante é flagrado vendendo alimentos in natura ou industrializados, em condições impróprias para o consumo. Exemplos: carne deteriorada, arroz e feijão carunchados, frutas e legumes passados; g) proibição de instalação de indústria ou de comércio em determinada região ou local – esta medida visa à preservação do meio ambiente e à boa qualidade de vida, na zona urbana, principalmente. Todas as sanções referidas acima, bem como outras não arroladas, devem estar previstas em lei, e a imposição delas depende de prévio processo administrativo. Diversas são, como visto antes, auto-executáveis, independentemente da participação do Judiciário. Em qualquer caso, aquele que sofreu o ônus decorrente da sanção tem o direito de recorrer à Justiça, se se julgar prejudicado com a medida. Esse direito é assegurado no art.5o, XXXV, da Constituição Federal, que garante a apreciação pelo Judiciário de toda e qualquer lesão ou ameaça de direito. O ônus da prova é do particular que investe contra o ato, em virtude do atributo de legitimidade de que goza o ato administrativo”.� 4.11) Características. A doutrina aponta as seguintes características do poder de polícia: a discricionariedade, a vinculação, a auto-executoridade e a proporcionalidade. José dos Santos salienta haver na doutrina controvérsias quanto à caracterização do poder de polícia, se vinculado ou discricionário, citando as opiniões divergentes de Hely Lopes e Celso Antônio. A discricionariedade “consiste na livre escolha, pela Administração Pública, dos meios adequados para exercer o poder de polícia, bem como, na opção quanto ao conteúdo, das normas que cuidam de tal poder”.� Convém registrar, todavia, que nem todos os atos de polícia são discricionários. Na verdade, nenhuma atividade da Administração é totalmente discricionária, pois sempre existirá alguma carga de vinculação nos atos administrativos. “Em rigor, no Estado de Direito inexiste um poder, propriamente dito, que seja discricionário fruível pela Administração Pública. Há, isto sim, atos em que a Administração Pública pode manifestar competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação administrativa é totalmente vinculada. Poder discricionário abrangendo toda uma classe ou ramo de atuação administrativa é coisa que não existe. No caso específico da polícia administrativa é fácil demonstrá-lo. Basta considerar que, enquanto as autorizações, atos típicos da polícia administrativa, são expedidas no uso de competência exercitável discricionariamente, as licenças, igualmente expressões típicas dela, são atos vinculados, consoante pacífico entendimento da doutrina. Basta a consideração de tal fato para se perceber que é inexato o afirmar-se que o poder de polícia é discricionário. Pode-se com propriedade, asseverar, isto sim, que a polícia administrativa se expressa ora através de atos no exercício de competência discricionária, ora através de atos vinculados”.� A vinculação “existe no momento em que a norma administrativa se origina em verdadeiro liame entre os administrados e a Administração, na pessoa do autor (autoridade administrativa) que expediu o regulamento de polícia”.� “A atividade de polícia ora é discricionária, a exemplo do que ocorre quando a Administração Pública outorga a alguém autorização para portar arma de fogo, ora é vinculada, nos moldes do que acontece quando a Administração Pública licencia uma construção (alvará ou licença de construção). O certo, então, é dizer que tal atribuição se efetiva por atos administrativos expedidos através do exercício de uma competência às vezes vinculada, às vezes discricionária. Numa e noutra, é importante dizer, é atividade que se submete à lei, consoante já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao acentuar que o poder de polícia não é arbitrário ou caprichoso e está sujeito às regras legais ou regulamentares, dentro de cujos limites se exercita (RDA, 111:297). No mesmo sentido veja-se a RDA, 113/191. Desse modo, sempre que houver abuso no exercício dessa atividade, cabe o controle judicial (RDA, 117:273) e eventual responsabilização patrimonial da Administração Pública. Cabe também, nesses casos, a responsabilização do agente público autor do ato de polícia se agiu com dolo ou culpa. Essa responsabilidade poderá ser tríplice, isto é, administrativa, civil ou patrimonial e criminal”.� José dos Santos entende que haverá discricionariedade apenas nos casos em que a lei não fixou delimitadamente a dimensão da restrição imposta ao particular, citando o caso da proibição de pesca, ficando a cargo da Administração dizer em quais rios onde deverá ser observada. Noutros casos, porém, quando a lei já cuida de delimitar bem a restrição, não poderá a Administração ampliar o seu alcance, estando vinculada às balizas da lei. Mas pode-se dizer que este alto grau de vinculação é raro de acontecer. O mais comum é que haja certa margem de discricionariedade. Aliás, consoante assinala Alexandre Mazza, “a análise da maioria das hipóteses de sua aplicação prática indica discricionariedade no desempenho do poder de polícia. Todavia, é preciso fazer referência a casos excepcionais em que manifestações decorrentes do poder de polícia adquirem natureza vinculada. O melhor exemplo é o da licença, ato administrativo vinculado e tradicionalmente relacionado com o poder de polícia”.� A auto-executoriedade “pode ser entendida pela possibilidade efetiva que a Administração tem de proceder ao exercício imediato de seus atos, sem necessidade de recorrer, previamente, ao Poder Judiciário”.� Nestes casos, poderá o administrado atingido pelo ato buscar proteção no Judiciário, utilizando-se, por exemplo, de mandado de segurança. Maria Sylvia Di Pietro desdobra a auto-executoridade em duas faces: a exigibilidade (tomada de decisões) e executoriedade (execução das decisões)�. Cabe ressalvar, todavia, que, por opção constitucional, determinados atos de polícia estão sujeitos à reserva de jurisdição, isto é, à manifestação prévia do Poder Judiciário. Logo, têm exigibilidade, mas não têm executoriedade. Cite-se, por exemplo, a quebra de sigilo telefônico (CF, art.5o, XII e Lei 9296/96). Outro exemplo de ato administrativo que não pode ser auto-executados, demandando procedimento judicial específico previsto em lei, é o caso da cobrança de multas. A Administração pode aplicá-las, mas, havendo resistência do devedor em efetuar o pagamento, só restará a execução do valor na Justiça. Descabe também à Administração valer-se do seu poder de polícia por meio medidas indiretas para obter o pagamento da multa aplicada. É preciso atenção para diferenciar a executoriedade do atributo de exigibilidade acima estudado. De fato, enquanto a exigibilidade se relaciona com o poder de obrigar, por meios indiretos, o administrado a cumprir a determinação contida no ato administrativo, a executoriedade assegura à Administração o poder de efetivá-la materialmente, de forma direta, conforme também esclarece a doutrina: “A executoriedade não se confunde com a exigibilidade, pois esta não garante, só por si, a possibilidade de coação material, de execução do ato. Assim, há atos dotados de exigibilidade mas que não possuem executoriedade (...) graças à executoriedade, quando esta exista, a Administração pode ir além, isto é, pode satisfazer diretamente sua pretensão jurídica compelindo materialmente o administrado, por meios próprios e sem necessidade de ordem judicial para proceder a esta compulsão. Quer-se dizer: pela exigibilidade, pode-se induzir à obediência, pela executoriedade pode-se compelir, constranger fisicamente”. “A diferença, nas duas hipóteses, está apenas no meio coercitivo; no caso da exigibilidade, a Administração se utiliza de meios indiretos de coerção, como a multa ou outras penalidades administrativas impostas em caso de descumprimento do ato. Na executoriedade, a Administração emprega meios diretos de coerção, compelindo materialmente o administrado a fazer alguma coisa, utilizando-se inclusive da força. Na primeira hipótese, os meios de coerção vêm sempre definidos na lei; na segunda, podem ser utilizados, independentemente de previsão legal, para atender situação emergente que ponha em risco a segurança, a saúde ou outro interesse da coletividade”. “Nem todos os atos dotados de exigibilidade são auto-executórios. Um bom exemplo são os impostos. A Administração não pode, coativamente, por meios próprios, compelir o administrado a pagar o imposto devido. No caso de não-pagamento deverá interpor ação judicial. Entretanto, poderá exigir de forma indireta o cumprimento dessa obrigação. É o que acontece quando condiciona a expedição de alvará de construção solicitado pelo administrado à demonstração de estar ele em dia com o pagamento do imposto predial relativo ao respectivo terreno. Como se vê, há exigibilidade mas não há auto-executoriedade”. “A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a auto-executoriedade. Tanto é auto-executória a restrição imposta em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao indivíduo, quando, por exemplo, comete transgressões administrativas. É o caso da apreensão de bens, interdição de estabelecimentos e destruição de alimentos nocivos ao consumo público. Verificada a presença dos pressupostos legais do ato, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Esse o sentido da auto-executoriedade. Outro ponto a considerar é o de que a auto-executoriedade não depende de autorização de qualquer outro Poder, desde que a lei autorize o administrador a praticar o ato de forma imediata. Assim, acertada a decisão segundo a qual, no exercício do poder de polícia administrativa, não depende a Administração da intervenção de outro poder para torná-lo efetivo. Quando a lei autoriza o exercício do poder de polícia com auto-executoriedade, é porque se faz necessária a proteção de determinado interesse coletivo. Impõem-se, ainda, duas observações. A primeira consiste no fato de que há atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, como é o caso das multas, cuja cobrança só é efetivamente concretizada pela ação própria na via judicial. A outra é que a auto-executoriedade não deve constituir objeto de abuso de poder, de modo que deverá a prerrogativa compatibilizar-se com o princípio do devido processo legal para o fim de ser a Administração obrigada a respeitar as normas legais”.� “São exemplos de situações que permitem a auto-execução dos atos de polícia, sem a interveniência do Poder Judiciário: apreensão de gêneros alimentícios postos à venda em condições impróprias para o consumo; fechamento do estabelecimento ou até a cassação da respectiva licença para o exercício do comércio nos casos de reiteração do ilícito, além de aplicação de multa; apreensão de equipamentos de pesca, se estiverem em desacordo com as especificações estabelecidas em lei ou regulamento, ou em épocas em que a pesca esteja proibida; apreensão de peixes pescados de tamanho menor do que o permitido; demolição de prédio que, em razão de sua ruína, esteja pondo em risco a segurança de prédio vizinho ou de pessoas; rebocamento de veículo que esteja obstruindo o trânsito ou estacionado em lugar proibido; impedimento de venda de bebidas alcoólicas em determinados locais ou dias; imposição de multas em virtude de desmatamento sem prévia autorização ou em virtude de poluição etc. Em todos os casos de atuação executória da Administração, o particular que se julgar prejudicado com a medida tem a faculdade de ingressar em juízo pleiteando o desfazimento do ato ou a reparação, se o mesmo foi editado em desacordo com o direito. Compete ao interessado, nesse caso, o ônus da prova. Ele terá de provar o vício do ato atacado. A cobrança de multas ou de outras vantagens pecuniárias não se opera diretamente pela Administração. Nesses casos, não comporta a auto-executoriedade. É indispensável a audiência do Poder Judiciário. Não havendo concordância do devedor em pagar, amigavelmente, o recurso à Justiça é condição indispensável para impor-lhe o dever de cumprir a obrigação”.� A proporcionalidade “é uma característica do poder de polícia que obriga que a efetiva ‘sanção de polícia’ aplicada ao administrado guarde, necessariamente, uma relação de proporcionalidade com a violação de ‘ordem de polícia’ realizada por ele”.� Sobre o tema, discorre Celso Antônio Bandeira de Mello: “Mormente no caso da utilização de meios coativos, que, bem por isso, interferem energicamente com a liberdade individual, é preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administração. Importa que haja proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida. A via da coação só é aberta para o Poder Público quando não há outro meio eficaz para obter o cumprimento da pretensão jurídica e só se legitima na medida em que é não só compatível como proporcional ao resultado pretendido e tutelado pela ordem normativa. Toda coação que exceda ao estritamente necessário à obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pelo Poder Público é injurídica. Este eventual excesso pode se apresentar de dois modos: a) a intensidade da medida é maior que a necessária para a compulsão do obrigado; b) a extensão da medida é maior que a necessária para a obtenção dos resultados licitamente perseguíveis. Serve de exemplo da primeira hipótese o emprego de violência para dissolver reunião não autorizada, porém pacífica. Configura a segunda hipótese a apreensão de toda uma edição de jornal ou revista, por prejudicial à tranqüilidade ou moralidade, quando seria suficiente proibir ou obstar à sua distribuição unicamente nas regiões ou locais onde sua divulgação fosse passível de ofender o bem jurídico defendido”.� Rui Cirne Lima alude à famosa frase hiperbolicamente utilizada por Fritz Fleiner: “a polícia não deve atirar com canhões em pardais”. Mas o vetor de proporcionalidade não é uma característica afeta tão-somente à sanção administrativa, devendo ser respeitado em todos os âmbitos de atuação do poder de polícia já referidos. É assim que, tratando especificamente da fiscalização de polícia, Carlos Ari Sundfeld adverte: “A atividade de fiscalização jamais poderá constituir ilimitada interferência na realidade social, transformando a Administração em espécie de ‘Grande Irmão’, cujos olhos penetrem, bisbilhoteiros e aterradores, em todos os aspectos da vida individual. A Constituição protege, no inc. X de seu art.5º, a intimidade e a vida privada das pessoas, fazendo-as invioláveis. Em harmonia, os incs. XI e XII resguardam a casa, a correspondência e as comunicações. A casa, asilo inviolável, só pode ser alcançada por fiscalização administrativa mediante prévia autorização judicial. A correspondência e as comunicações telegráficas e de dados são invioláveis. As comunicações telefônicas só admitem interceptação para a instrução de processo penal, mesmo assim sob ordem do Juiz; destarte, não serão atingidas por mera fiscalização administrativa”. 4.12) A questão da delegação de atos a entes privados. Tema polêmico da doutrina diz respeito à possibilidade de transferência a particulares de prerrogativas inerentes ao poder de polícia. O STF já tem precedente no sentido de que o exercício do poder de polícia é exclusivo de pessoas de direitos público (ADI 1717), tendo declarado inconstitucionais dispositivos da Lei 9649/98 que atribuíam aos Conselhos de Fiscalização Profissional a personalidade jurídica de direito privado. Confira-se um trecho do julgado: “não parece possível, a um primeiro exame, em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5o, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até Nessa linha, Marçal Justen entende que aspectos nucleares do poder de polícia são indelegáveis, abrangendo aí as competências de cunho normativo e de autoridade. Deveras, muitos autores sustentam a impossibilidade do exercício do poder de polícia por entes privados, quando estejam em jogo a liberdade dos administrados. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “salvo hipóteses excepcionalíssimas (caso dos poderes outorgados aos capitães de navio), não há delegação de ato jurídico de polícia a particular e nem a possibilidade de que este o exerça a título contratual. Pode haver, entretanto, habilitação do particular à prática de ato material preparatório ou sucessivo a ato jurídico desta espécie”. José dos Santos diz que em regra a delegação apenas é possível em relação a entes públicos, mas admite a possibilidade de atribuição a entes privados de certas tarefas de apoio à fiscalização: “A delegação não pode ser outorgada a pessoas da iniciativa privada, desprovidas de vinculação oficial com os entes públicos, visto que, por maior que seja a parceria que tenham com estes, jamais serão dotadas da potestade (ius imperii) necessária ao desempenho da atividade de polícia”. Quando a lei confere a uma entidade administrativa o poder acima referido, diz-se que há na hipótese poder de polícia delegado. Em determinadas situações em que se faz necessário o exercício do poder de polícia fiscalizatório (normalmente de caráter preventivo), o Poder Público atribui a pessoas privadas, por meio de contrato, a operacionalização material da fiscalização através de máquinas especiais, como ocorre, por exemplo, na triagem em aeroportos para detectar eventual porte de objetos ilícitos ou proibidos. Aqui o Estado não se despe do poder de polícia nem procede a qualquer delegação, mas apenas atribui ao executor a tarefa de operacionalizar máquinas e equipamentos, sendo-lhe incabível, por conseguinte, instituir qualquer tipo de restrição; sua atividade limita-se à constatação de fatos. O mesmo ocorre, aliás, com a fixação de equipamentos de fiscalização de restrições de polícia, como os aparelhos eletrônicos utilizados pelos órgãos de trânsito para a identificação de infrações por excesso de velocidade: ainda que a fixação e a manutenção de tais aparelhos possam ser atribuídos a pessoas privadas, o poder de polícia continua sendo da titularidade do ente federativo constitucionalmente competente. Nada há de ilícito em semelhante atribuição operacional”. Marçal Justen diz que “veda-se a delegação do poder de polícia a particulares não por alguma qualidade essencial ou peculiar à figura, mas porque o Estado Democrático de Direito importa o monopólio estatal da violência. Não se admite que o Estado transfira, ainda que temporariamente, o poder de coerção jurídica ou física para a iniciativa privada. Isso não significa vedação a que algumas atividades materiais acessórias ou conexas ao exercício do poder de polícia sejam transferidas ao exercício de particulares. O que não se admite é que a imposição coercitiva de deveres seja exercitada por terceiros, que não agentes públicos”. Reportando-nos ao estudo das formas de atuação do poder de polícia, entendemos relativamente possível a transferência, por lei, do poder de polícia no que tange à fiscalização de polícia e ao consentimento de polícia. Já no tocante à ordem de polícia e à sanção de polícia, a princípio pensamos tratar-se de atividades que não devem ser delegadas, cabendo exclusivamente ao Poder Público. Todavia, esta questão ainda tem despertado muita polêmica na doutrina e na jurisprudência. 4.13) Limites e controle do poder de polícia. Importante abordar o tema dos limites ao exercício do poder de polícia no tocante aos aspectos de legalidade relacionados aos elementos dos atos administrativos em geral (competência, forma, finalidade, motivo e objeto). “Quanto aos fins, o poder de polícia só deve ser exercido para atender ao interesse público. Se o seu fundamento é precisamente o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, o exercício desse poder perderá a sua justificativa quando utilizado para beneficiar ou prejudicar pessoas determinadas; a autoridade que se afastar da finalidade pública incidirá em desvio de poder e acarretará a nulidade do ato com todas as conseqüências nas esferas civil, penal e administrativa”.� Importante ainda registrar que o controle dos atos administrativos no Brasil pode ser efetuado tanto pela própria Administração Pública quanto pelo Poder Judiciário, já que a Carta Magna garantiu o pleno acesso a este, sempre que houver lesão ou ameaça a direito (art.5o, XXXV). Portanto, adotou-se em nosso país o sistema de jurisdição única, de origem inglesa, ao contrário do sistema francês que prega a existência de Tribunais Administrativos (v.g. o Conselho de Estado francês) com jurisdição especial distinta do Judiciário (sistema do contencioso administrativo ou de jurisdição dual). “Sistema de jurisdição única – As funções de julgar e administrar, no sistema de jurisdição única, também chamado de sistema judiciário ou inglês, em razão de suas origens, são desempenhadas por órgãos distintos, pertencentes a Poderes diversos. Assim, os órgãos do Executivo administram, enquanto os do Judiciário julgam. Por esse sistema, todos os litígios são resolvidos, em caráter definitivo, pelo Judiciário. Desse modo, tanto os conflitos entre particulares como entre os particulares e o Estado, ou entre duas entidades públicas, são solucionados por juízes e Tribunais do Poder Judiciário. Através do Judiciário, portanto, resolvem-se todos os litígios, sejam quais forem as partes interessadas ou a matéria de direito ou de fato que se discute. (...) Afeiçoa-se ao princípio da tripartição das funções do Estado. Com efeito, por esse princípio cada Poder há de exercer função própria. Quem for encarregado de uma não pode desempenhar outra. Nisso está seu fundamento. Existe na Inglaterra, seu local de nascimento, nos Estados Unidos da América do Norte e no Brasil, entre outros países. No Direito brasileiro, via de regra: “A Lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art.5o, XXXV), que fundamenta a instituição do nosso sistema jurisdicional. O Poder Judiciário é, assim, o único órgão competente para dizer do direito aplicável em uma dada situação com o caráter de coisa imodificável, definitiva, em suma, de coisa julgada. Sistema de jurisdição dual - Também chamado sistema de jurisdição dupla, sistema do contencioso administrativo ou sistema francês, em razão de sua origem. Tal sistema consagra duas ordens jurisdicionais. Uma dessas ordens cabe ao Judiciário; outra, o organismo próprio do Executivo, chamado de Contencioso Administrativo. O Contencioso Administrativo incumbe-se de conhecer e julgar, em caráter definitivo, as lides em que a Administração Pública é parte (autora ou ré) ou terceira interessada, cabendo a solução das demais pendências ao Poder Judiciário. Nesse sistema, vê-se que a Administração Pública tem uma justiça própria, localizada fora do Judiciário. Do mesmo modo que o sistema de jurisdição única, também se funda no princípio da separação dos Poderes. Essa separação impede o julgamento de um Poder por outro. Suas decisões, como as do Judiciário, fazem coisa julgada. Nasceu na França e é hoje acolhido na Itália, Alemanha e no Uruguai, entre outros países. No Brasil, durante o Império, tentou-se sua instituição e na Constituição de 1967 previu-se um mecanismo com esse nome, mas sem seus principais atributos, que nunca chegou a ser implantado”.� Para exame desses limites, mister se faz haja um controle dos atos de polícia, “de sorte que contra eles cabem os recursos administrativos (recurso hierárquico) e judiciais (mandado de segurança, ação civil pública, ação popular) para obstar gravames que podem causar aos administrados, à própria Administração Pública e à coletividade (interesses difusos)”.� 4.14) A adequada noção de poder de polícia no Direito Administrativo contemporâneo. Diogo de Figueiredo Moreira Neto identifica atualmente uma crise no conceito de poder de polícia, decorrente do modelo administrativo com predominância da transferência de atividades estatais a entes da sociedade e, em conseqüência, a transferência do próprio poder de polícia que, portanto, não seria prerrogativa exclusiva do Estado-Administrador. Tudo dependeria simplesmente de disposição do legislador, ao delimitar o uso e gozo dos direitos e liberdades individuais em prol do interesse público. Vejamos o teor dos seus ensinamentos: “Já é conhecida de longa data a crise no conceito de poder de polícia, outro mais que se encontra defasado, já não se aceitando que possa continuar a ser definido como um ‘poder administrativo’, pois inegavelmente, sua titularidade não se confina a um ramo orgânico do Estado mas se estende a todo ele, de modo que, em última análise, quem o institui, para harmonizar o uso e gozo dos direitos e liberdades individuais, inclusive a propriedade, com o interesse geral, é sempre o legislador. Desde logo, é necessário iniciar-se, assim, como uma reflexão sobre o próprio conceito de poder de polícia, propondo-se o abandono em definitivo da idéia de que se está diante de um tipo especial de poder do Estado próprio ou exclusivo da Administração Pública, para aceitar a visão mais moderna e mais ampla, que vem tomando fôlego doutrinário, de que se trata apenas de um tipo de função estatal a ser exercida por quem receba a necessária competência da Constituição e das leis”.� Odete Medauar, contudo, critica os que aludem a tal crise, defendendo a manutenção da noção de poder de polícia no estudo do Direito Administrativo: “Outra corrente prega a eliminação da noção de poder de polícia do direito administrativo. Dentre seus representantes encontra-se o argentino Gordillo. Uma das justificativas dessa idéia está na ampliação do campo do poder de polícia; ampliando-se, perdeu as características do modelo clássico; assim a função se distribuiu por toda a atividade estatal e se diluiu. Na verdade, ocorreu evolução e expansão, em decorrência das necessidades e do desenvolvimento geral da vida em sociedade. Exemplo muito claro está no amplo exercício do poder de polícia no campo da poluição e da proteção do meio ambiente, algo impensável no estágio de desenvolvimento do século XIX e primórdios do século XX. O próprio Gordillo, no mesmo capítulo de seu Tratado de Derecho Administrativo, tomo II, parte geral, afirma que essas faculdades de limitar direitos fundamentais, em prol do bem comum, existem; e diz mais: a coação estatal sobre os particulares para a consecução do bem comum continua sendo uma realidade no mundo jurídico. Parece que o ponto nuclear no entendimento de quem prega essa eliminação é a preocupação com um poder de polícia indeterminado, independente de fundamentação legal, baseado num suposto dever geral dos indivíduos de respeitar a ordem ou baseado num ‘domínio eminente’ do Estado. Essa louvável preocupação perde consistência ante a realidade presente de mais solidez na concepção de Estado de Direito, ante o princípio da legalidade regendo a Administração e ante a maior valoração dos direitos fundamentais. A noção de poder de polícia permite expressar a realidade de um poder da Administração de limitar, de modo direto, com base legal, liberdades fundamentais, em prol do bem comum. Essa realidade inquestionável é reconhecida pelos próprios autores que pregam a eliminação do conceito. Portanto, a noção de poder de polícia é a expressão teórica de um dos modos importantes de atuação administrativa, devendo ser mantida, sobretudo no ordenamento pátrio, em que vem mencionada na Constituição Federal (art.145, II), na legislação (por exemplo: Código Tributário Nacional, art.78), na doutrina e na jurisprudência”.� Por outro lado, nada impede que se siga empregando a expressão “poder de polícia”, já consagrada pela doutrina, deste que se atente para alguns aspectos condizentes com o atual estágio da democracia brasileira. Com vistas aos vetores consagrados em nossa Carta Magna de 1988, deve-se abandonar a idéia de que o poder de polícia estaria a serviço apenas dos interesses coletivos. Esta concepção não cabe mais num Estado Democrático de Direito em que se consagra a dignidade da pessoa humana, daí porque Marçal Justen destaca que a disciplina da autonomia privada deve levar em conta a realização de direitos fundamentais e da democracia. Há situações em que a proteção de interesses individuais há de ser observada, ainda que isso não pareça de imediato uma medida de interesse da coletividade. Na verdade, os direitos e garantias fundamentais, contemplados na Constituição, possuem uma indiscutível dimensão pública, ou seja, não visam apenas proteger as pessoas tratadas na sua individualidade. René Chapus salienta, por exemplo, que na França é emblemática uma decisão tomada pelo Conselho de Estado, em 1995, acerca do caso do “lançamento de anões”, no qual se considerou que “o respeito à dignidade da pessoa humana é uma das componentes da ordem pública”. Marçal Justen também menciona este caso. Nessa linha, o jurista francês diz que o poder de polícia envolve inclusive a “proteção dos indivíduos contra eles mesmos”, ou seja, comportamentos que, à primeira vista, só prejudicariam o próprio agente (ex: uso de capacete, cinto de segurança). A Justiça tem entendido que tais medidas servem não apenas a propósitos individuais, porque tem implicações para a sociedade como um todo, quando se fala, por exemplo, em diminuir as conseqüências financeiras dos acidentes rodoviários (hospitais, pensões etc.). Noutros casos, ousamos dizer que a proteção a um direito fundamental do indivíduo deve estar até mesmo acima dos interesses da coletividade, caso contrário retroagiríamos a um modelo de Estado coletivista ou utilitário, em que as pessoas são vistas não em sua individualidade, mas como peças a serviços da engrenagem social. Deve-se, por conseguinte, abandonar a idéia de que o poder de polícia se baseia num suposto dever geral dos indivíduos perante um domínio eminente do Estado (poder eminente geral). Essa concepção clássica não se coaduna mais com um sistema constitucional impregnado de valores e vetores normativos que devem vincular sempre a atividade administrativa, ainda que à míngua de disposição legal específica. � BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. � PIRES, Luís Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurídicos indeterminados às políticas públicas. São Paulo: Elsevier, 2009, p.136. � LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.105. � Idem, p. 107. � CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris. � MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2011, p.241. � Idem, p.241-242. � BASTOS, Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. � STJ, MS 6166/DF, Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ de 06/12/1999. � Ob. cit., pp.203/204. � MOTA, Fabrício. Função Normativa da Administração Pública, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2007, p. 155-156. � CLÈVES, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo, 3. ed., São Paulo: RT, 2011, p. 133. � Op. cit., p. 144 e 149. � Idem, p. 151. � MAURER, Hartmut, Direito Administrativo Geral, Barueri: Manole, 2006, p.71. � DI PIETRO, Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2008, p.85. � Op. cit., p. 359. � Op. cit., p. 155. � ATALIBA, Geraldo. Decreto regulamentar no sistema brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 97, 1969, p. 41. � MOTA, op. cit., p. 145. � Idem, p. 190. � Segundo Hans Kelsen, “o Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível”. Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 366. � Ib idem, p. 191. � Ib idem, p. 192. � Ib idem, p. 199-201. � Ib idem, p. 194-195. � Curso de Direito Administrativo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.331. � Idem, p. 332-333. � Celso Antônio, ib idem, p. 339. � Op. cit., p. 164-165. � Fabrício Mota, op. cit., p. 159. � Gustavo Binenbojm. “Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização”. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 158. � José dos Santos, op. cit., p.40-41. � Op. cit., p.356. � Op. cit., p. 170. � Fabrício Mota, op. cit., p. 172. � ADI 2970-DF, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento de 20/10/2006. � Op. cit., p. 184-185. � Leandro Prado; Patrícia Teixeira. Op. cit., p. 136. � STF, RHC 34153, Relator: Ministro Edgard Costa, 16/05/1956. � José dos Santos, ob. cit., p.66. � “Curso de Direito Administrativo”, São Paulo: Saraiva, 1996, p.145. � “Direito Administrativo Brasileiro”, 23a edição, São Paulo: Malheiros, 1998, p. 115. � Celso Antônio, “Curso de Direito Administrativo”, 14a edição, São Paulo: Malheiros, 2002, p.697. � José dos Santos, ob. cit., p.60. � “Poder de Polícia e Polícia do Poder”, RDA 162/4. � STF, RMS 2138/DF, Relator: Ministro Luiz Gallotti, 24/07/1953. � “Direito Administrativo”, 7a edição, São Paulo: Saraiva, 2002, p.123. � Celso Antônio, op. cit., p.801-802. � Op. cit., p. 82. � Op. cit., p.797. � Ob. cit., p.721. � José dos Santos, ob. cit., pp.63/64. � “Curso de Direito Administrativo”, 12a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.392. � Idem. � Idem. � Idem. � Ob. cit., p.124. � Ob.cit., p.710. � Ob.cit., p.152. � José dos Santos Carvalho, ob. cit., pp.64/65. � “Lições Objetivas de Direito Administrativo”, São Paulo: Saraiva, 1999, p.112. � Reis Friede, ob.cit., p.109. � Cláudio Brandão de Oliveira, “Manual de Direito Administrativo”, Rio de Janeiro: Impetus, 2003, p.55. � Reis Friede, idem. � Cláudio Brandão, ob. cit., p.55. � Ob.cit., p.110. � Cláudio Brandão, ob. cit., pp.55/56. � Idem. � Edimur Ferreira de Faria, “Curso de Direito Administrativo Positivo”, 3a edição, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp.210/211. � R. Friede, ob. cit., p.110. � Celso Antônio, ob.cit., pp.711/712. � R. Friede, ob.cit., pp.110/111. � Diogenes Gasparini, ob. Cit., p.123. � MAZZA, op. cit., p. 258. � Idem. � “Direito Administrativo”, 13a edição, São Paulo: Atlas, p.113. � José dos Santos, ob. cit., pp.70/71. � Edimur Ferreira de Faria, ob. cit., pp.207/208. � R. Friede, ob.cit., p.111. � Ob. cit., p.718. � Maria Sylvia Di Pietro, “Direito Administrativo”, 13a edição, São Paulo: Atlas, 2001, p.115. � Diógenes Gasparini, ob. cit., p.771. � Diogenes Gasparini, ob. cit., p.127. � “Mutações do Direito Administrativo”, 2a edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. � “Direito Administrativo Moderno”, 5a edição, São Paulo: RT, 2001, pp.389/390. �PAGE � �PAGE �17�