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1 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG PARTE I – DA LIBERDADE DOS ANTIGOS À MODERNIDADE LÍQUIDA 1. A VIOLÊNCIA E A DOMINAÇÃO NA FORMAÇÃO DOS ESTADOS 1.1. A FORMAÇÃO ORIGINÁRIA DOS ESTADOS FORMAÇÃO ORIGINÁRIA: a partir de agrupamentos humanos ainda não integrados em Estados. FORMAÇÃO DERIVADA: formação de novos Estados a partir de outros pré-existentes. (A) TEORIAS QUE SE BASEIAM NO AGREGADO FAMILIAR OU PATRIARCAL (a.1) ORIGEM FAMILIAR a família primitiva se ampliou e deu origem ao Estado. MATRIARCADO (promiscuidade ninguém sabia quem era o pai). PATRIARCADO (guerreiro mais forte, conquistas). (a.2) TRADIÇÃO DE UM LEGISLADOR PRIMITIVO: MOISÉS, SOLON, HAMURABI. (B) REUNIÃO DE INDIVÍDUOS NÃO (NECESSARIAMENTE) PARENTES (b.1) CONTRATUALISTAS HOBBES (1588 a 1679), LOCKE (1632 a 1604), ROUSSEAU (1612 a 1678) o ESTADO deriva da vontade dos homens. (ANDYTIAS):1 É sem dúvida inadequado buscar o fundamento do Estado em um vínculo contratual (em um acordo realizado por partes iguais e conscientes do pacto que celebram). De acordo com HEGEL, o contrato é instrumento básico do Direito Privado, ou seja, daquele conjunto de princípios e regras jurídicas que regulam as relações entre indivíduos livres e iguais, não sendo capaz de conferir realidade ao Estado, expressão máxima do Direito Público. Pensar de maneira contrária equivaleria a uma privatização do Estado, que assim surgiria da vontade individual e não do processo histórico, como quer Hegel. Como mostra a história, o ESTADO não nasce da simples vontade associativa dos sujeitos de direito, mas sim de causas muitas vezes remotas, inconscientes e violentas. Nenhum pacto é eterno, uma vez que qualquer contrato tem que prever a possibilidade de dissolução do vínculo, seja por cumprimento ou por descumprimento do avençado. Os acordos são meros meios para se alcançar determinada finalidade, entretanto, HOBBES acaba por transformar o instrumento em fim. O contrato social que mantém o Estado Leviatã jamais se extingue, a não ser para dar lugar a outro, naquelas escassas hipóteses nas quais HOBBES entende ser legítima a desobediência civil e a revolução. 1 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 23. 1 2 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Mesmo nas situações excepcionais em que o SOBERANO deixa de cumprir suas obrigações (e que deveriam dar lugar à extinção do vínculo contratual por descumprimento de suas cláusulas), o Estado continua a existir, bem como as obrigações que impõe. Por isso, ninguém pode furtar-se ao pagamento dos impostos, alegando que o ESTADO deixou de garantir-lhe seus direitos. Assim, pode-se demonstrar que a origem e a manutenção do Estado não são convencionais, mas arbitrárias. Nesse sentido, mesmo que se tenha o CONTRATO SOCIAL como uma presunção, ainda assim persiste a incongruência do radical voluntarismo estatal hobbesiano. (RENATO JANINE):2 HOBBES, reforça o motivo “medo” mais do que “razão”. O medo teria um patente “papel civilizador”, sendo ele que leva o homem a se associar aos demais. Para HOBBES, o homem prefere a certeza da segurança proporcionada pelo PACTO à incerteza da autoafirmação viril e violenta. Nesse sentido, o Estado seria o resultado do comportamento de homens (medrosos) que preferem a segurança de ter pouco ao risco de se ter mais (como pretensamente se daria no estado natural). (ANDITYAS MATOS):3 para LOCKE, ao contrário de HOBBES, no estado de natureza, os homens não viviam em conflito, tendo criado o Estado apenas para maior comodidade e certeza nas relações intersubjetivas. Com o Estado, a vida se tornaria mais fácil e os direitos que os indivíduos possuem (concebidos como naturais) seriam protegidos de maneira mais perfeita. Os direitos naturais do homem não desaparecem com a fundação do Estado, mas, ao contrário, servem para restringir-lhe o poder. (ANDITYAS MATOS):4 ROUSSEAU discorda tanto de HOBBES quanto de LOCKE. Para ele, a espécie humana é muito frágil, sendo que a sobrevivência no estado natural, quando todos vivem de forma isolada, é algo extremamente difícil e mesmo impossível. Por isso é preciso que os indivíduos se organizem, conscientemente e sob a forma estatal, para que possam viver. O Estado é mais do que uma forma de se evitar que os homens se matem (como em HOBBES) ou uma simples conveniência (como em LOCKE), mas se trata de um instrumento necessário para a sobrevivência humana. 2 RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1999, passim. 3 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas Hobbes, Avatar do positivismo jurídico: uma leitura jusfilosófica do Leviatã. In: PHRONESIS Revista do Curso de Direito da FEAD/Minas, v. 1, n. 1, Jan. 2006, p. 13. 4 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 13. 2 3 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (ANDITYAS MATOS):5 Para HOBBES, antes da criação do Estado, os homens viviam em situação de guerra perpétua de todos contra todos , o que corresponde à sua particular descrição do ESTADO DE NATUREZA (status naturalis). As pessoas, levadas pela ambição, pelo egoísmo e pela maldade próprios da natureza humana, se digladiavam diariamente, buscando preservar suas posses e vidas, bem como arrebanhar todas as vantagens que a força e a astúcia lhes permitissem. O homem é o lobo do homem (homo hominis lupus), concorda HOBBES com Ovídio. O “homem natural” de Hobbes não é um ser primitivo ou intelectualmente atrasado, mas sim o homem puro e simples, como se conhece hoje, caso as leis e os freios inibitórios sociais desaparecem ou fossem suspensos. Por isso, o ESTADO DE NATUREZA é uma possibilidade presente, latente e plenamente atualizável, e não simples referência a um passado remoto ou mítico. (b.2) ORIGEM VIOLENTA GUMPLOWICZ (1838 a 1909) o ESTADO se forma a partir de hordas, raptos, pilhagens surge em torno da propriedade, com a fixação dos homens na terra. OPPENHEIMER (1864 a 1943) para consolidar o domínio da classe vencedora sobre a classe vencida para estabelecer a ORDEM. A superioridade de força de um grupo social permite-lhe submeter o mais fraco, nascendo o Estado para regular as relações entre vencedores e vencidos Sua criação teve como finalidade a exploração econômica do grupo vencido. (b.3) ORIGEM EM CAUSAS ECONÔMICAS PLATÃO (A República): o ESTADO nasce das necessidades do homem para aproveitar os benefícios da divisão do trabalho. ENGELS (A origem da família, da propriedade privada e do Estado): o ESTADO não nasce com a sociedade, mas é, antes, um produto da sociedade, quando ela chega a determinado grau de desenvolvimento, tendo em vista a deterioração da convivência harmônica por causa da acumulação de riquezas por uns. É a instituição que assegura as riquezas individuais contra as “tradições comunistas da constituição gentílica”. MARX: o ESTADO é criação artificial da burguesia para dominação do proletariado (pode desaparecer no futuro). HELLER: a posse da terra gerou o PODER e a propriedade gerou o ESTADO. (b.4) ORIGEM NO DESENVOLVIMENTO INTERNO DA SOCIEDADE LOWIE: o próprio desenvolvimento espontâneo da sociedade dá origem ao ESTADO (quando a sociedade se torna complexa). 5 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 13. 3 4 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 1.2. ORIGENS VIOLENTAS E ECONÔMICAS DO ESTADO (A) A DOMINAÇÃO E A EXPLORAÇÃO ECONÔMICA DOS VENCIDOS O homem nômade, a partir do momento que se estabilizou em uma terra, passou a cultivá-la, a domesticar animais e a acumular bens (propriedade). Os grupos mais fortes, com melhores armas, descobrem que podem subjugar vencidos e explorar sua mão de obra, propiciando uma vida de maior fartura para seu grupo. O grupo que vive na maior fartura se torna mais forte e, em tese, é capaz de ter melhores armas, daí pode dominar outros grupos e aumentar sua força. Nesse sentido, a dominação tem por objetivo possibilitar a exploração econômica dos vencidos pelos vencedores (tributos de guerra) origem odiosa da tributação. (OPPENHEIMER):6 o Estado surge da superioridade de força de um grupo social que submetia um grupo mais fraco o Estado é criado para regular as relações entre vencedores e vencidos. (B) A VIOLÊNCIA E A SOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE INTERESSES (SIGMUND FREUD):7 entende, como princípio geral, que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência, tal como se passa em todo o reino animal. FORÇA MUSCULAR: no início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. ARMAS: a força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual começou a substituir a força muscular bruta. A EXPLORAÇÃO DOS VENCIDOS: a vitória seria completa se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse. “À intenção de matar opor-se-ia a reflexão de que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido”. “Foi este o início da idéia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve de contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança”. DA VIOLÊNCIA AO DIREITO: esse regime foi modificado no transcurso da evolução, em um caminho que se estendia da violência ao direito ou à lei. 6 Cf. OPPENHEIMER, Franz. The State. Nova York, 1926, passim. 7 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações entre Einstein e Freud (cartas). 4 5 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG À força superior de um único indivíduo podia-se contrapor a união de diversos indivíduos fracos (a união faz a força) a violência podia ser derrotada pela união o poder daqueles que se uniam representa a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. A lei é a força de uma comunidade, porém, ela é ainda violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha. O direito funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. “A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade”. A ESTABILIDADE DO DIREITO: a união da maioria devia ser estável e duradoura a comunidade deve manter-se permanentemente, deve organizar-se, deve estabelecer leis para antecipar-se ao risco de rebelião e deve instituir autoridades para fazer com que as leis sejam respeitadas, e para superintender a execução dos atos legais de violência. A COMUNIDADE DE INTERESSES E OS SENTIMENTOS COMUNS: o reconhecimento de uma entidade de interesses levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas (sentimentos comuns), que são a verdadeira fonte de sua força. ELEMENTOS ESSENCIAIS: (1) a violência suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, (2) que se mantém unida por laços emocionais entre os seus membros. Cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos. Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível teoricamente. (C) O COMÉRCIO, A GUERRA E A ESCRAVIDÃO A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA, pelas necessidades alimentares e a busca por melhores condições de vida levavam sempre o homem à GUERRA e a busca por ESCRAVOS. Apenas com a REVOLUÇÃO VERDE (Século XIX e XX) é que a produtividade agrícola cresceu e as possibilidades de se eliminar a fome surgiram, trazendo uma evolução nos alimentos e a fartura. Em épocas anteriores, a FOME era costumeira, inclusive na Europa a alimentação era precária e muita gente morreu de FOME. A partir do momento em que o homem se tornou sedentário, nasce a ideia de PROPRIEDADE PRIVADA. A partir do momento que o homem mais forte descobriu que poderia tomar da tribo vizinha pela força, a GUERRA surge como mecanismo inarredável de acúmulo de riqueza e obtenção de patamares mais elevados de sobrevivência e conforto, seja pela cobrança de TRIBUTOS, seja pela ESCRAVIDÃO, seja pela PILHAGEM. Fazendo seu inimigo pagar tributos, ou servindo como escravo, os povos conseguiam recursos além do que obteriam com o TRABALHO. 5 6 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Quem não quisesse se armar para a guerra, acabaria, por certo, conquistado e explorado. (BENJAMIN CONSTANT):8 “A guerra é anterior ao comércio; pois a guerra e o comércio nada mais são do que dois meios diferentes de atingir o mesmo fim: o de possuir o que se deseja.” “O comércio não é mais que uma homenagem prestada à força do possuidor pelo aspirante à posse. E uma tentativa de obter por acordo aquilo que não se deseja mais conquistar pela violência. Um homem que fosse sempre o mais forte nunca teria a idéia do comércio.” “A experiência – provando que a guerra, isto é, o emprego da força contra a força de outrem, o expõe a resistências e malogros diversos – que o leva recorrer ao comércio, ou seja, a um meio mais brando e mais seguro de interessar o adversário em consentir no que convém à sua causa. A guerra é o impulso, o comércio é o cálculo. Mas, por isso mesmo, deve haver um momento em que o comércio substitui a guerra. Nós chegamos a esse momento.” “No quero dizer que não tenha havido povos comerciantes entre os antigos. Mas esses povos de certa maneira eram exceção à regra geral. As limitações de uma leitura não me permitem apontar-vos todos os obstáculos que se opunham então ao progresso do comércio; [...] passar o estreito de Gibraltar, era considerado o mais ousado dos empreendimentos. [...]. O comércio era então um acidente feliz: é hoje a condição normal, o fim único, a tendência universal, a verdadeira vida das nações. Elas querem o descanso; com o descanso, a fartura; e, como fonte da fartura, a indústria”. “A guerra é cada dia um meio menos eficaz de realizar seus desejos. Suas chances não oferecem mais, nem aos indivíduos, nem às nações, benefícios que igualem os resultados do trabalho pacífico e dos negócios regulares. Para os antigos, uma guerra feliz acrescentava escravos, tributos, terras, à riqueza pública e particular. Para os modernos, uma guerra feliz custa infalivelmente mais do que vale. Enfim, graças ao comércio, à religião, aos progressos intelectuais e morais da espécie humana, não há mais escravos nas nações européias. Homens livres devem exercer todas as profissões, atender a todas as necessidades da sociedade.” 1.3. A DESIGUALDADE E O PACTO SOCIAL O IDEAL DEMOCRÁTICO se decifra na eterna luta pela igualdade e estabilidade do pacto social. (A) ROUSSEAU A DESIGUALDADE E A INSTABILIDADE DO PACTO SOCIAL: para ROUSSEAU, a IGUALDADE deveria ser buscada os HOMENS, podendo ser desiguais em força, devem se tornar iguais por convenção ou direito, devendo o PACTO proceder a uma correção, suprindo deficiências. O Estado é mais do que uma forma de se evitar que os homens se matem (como em HOBBES) ou uma simples conveniência (como em LOCKE), mas se trata de um instrumento necessário para a sobrevivência humana. 8 8 Cf. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos - Discurso pronunciado no Athénée Royal de Paris, 1819. Disponível em: <www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf>. Extraído em 21 ago.2011. Por certo, há de se considerar que o autor desenvolve sua linha de pensamentos em defesa do LIBERALISMO, em contraposição aos ventos REPUBLICANOS que traziam, em especial de Atenas, um modelo de república assentada no privilégio do coletivo, da polis, em detrimento de uma liberdade, que para o autor, vinha com acentuada ênfase na faceta liberdade econômica. 6 7 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (B) SIGMUND FREUD Para SIGMUND FREUD,9 “na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange elementos de força desigual (homens e mulheres, pais e filhos) e logo, como conseqüência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos”. A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição. FONTE DE INQUIETAÇÃO:10 (1) certos detentores do poder tentam se colocar acima das proibições que se aplicam a todos; (2) os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sentido fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos. O direito, gradualmente, vai se adaptando à nova distribuição do poder. A classe dominante se recusa a admitir a mudança, daí a rebelião e a guerra civil ocorrem, com a suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis. A LUTA PELA IGUALDADE NO AMBIENTE NACIONAL: a gradual eliminação das desigualdades sociais apenas pode ser dar por meio de políticas públicas, não se podendo prescindir da atuação do Estado. (SIGMUND FREUD):11 “estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente, era força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência”. Para FREUD, uma comunidade se mantém unida por duas coisas: (1) a força coercitiva da violência e (2) os vínculos emocionais (identificações) entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator. Porém, “a identidade de sentimentos entre os cristãos, embora fosse poderosa, não conseguiu, à época do Renascimento, impedir os Estados Cristãos, tanto os grandes como os pequenos, de buscar o auxílio do sultão em suas guerras de uns contra os outros. [...] Na realidade, é por demais evidente que os ideais nacionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto. A LUTA PELA IGUALDADE NO AMBIENTE INTERNACIONAL: 9 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. Para Freud, um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria, devotam uma submissão ilimitada. 10 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. 11 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. 7 8 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (SIGMUND FREUD):12 SEQUER DENTRO DE UMA COMUNIDADE, nunca se conseguiu evitar a solução violenta de conflitos de interesses a DESIGUALDADE INATA e o INSTINTO DE DESTRUIÇÃO do homem13 o arrasta sempre, mais cedo ou mais tarde, para soluções violentas. A história da raça humana revela uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra (entre cidades, províncias, raças, nações, impérios), que quase sempre se formaram pela força das armas. Os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência. (SIGMUND FREUD):14 “segundo se nos conta, em determinadas REGIÕES PRIVILEGIADAS DA TERRA, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio à tranqüilidade, povos que não conhecem nem a coerção nem a agressão. Dificilmente posso acreditar nisso, [...]”. “Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da IGUALDADE, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além das suas fronteiras.” Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra. MOTIVOS IDEALISTAS + MOTIVOS DESTRUTIVOS: quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de desculpa para os desejos destrutivos. [...] Ambos podem ser verdadeiros.15 O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Parte do instinto de morte continua atuante dentro do organismo (internalização do instinto de destruição): se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico. 12 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. 13 Para Freud (EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit.), os instintos humanos são de dois tipos: (1) aqueles que tendem a preservar e a unir (eróticos ou sexuais); (2) aqueles que tendem a destruir e matar (agressivo ou destrutivo). Essa é uma formulação teórica da conhecida oposição entre amor e ódio (atração e repulsão). Nenhum dos dois instintos é menos essencial do que o outro os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. É como se um instinto dificilmente pudesse operar isolado está sempre amalgamado por determinada quantidade do outro (modificando seu objetivo ou possibilitando a consecução desse objetivo). Exemplo 1: o instinto de auto-preservação é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Exemplo 2: o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. 14 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. 15 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. Isto serve de justificação biológica para todos os impulsos condenáveis e perigosos contra os quais lutamos. Deve-se admitir que eles se situam mais perto da Natureza do que a nossa resistência. 8 9 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Mesmo em determinadas REGIÕES PRIVILEGIADAS DA TERRA, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, não existem povos cuja vida transcorra em meio à tranquilidade, sem coerção ou sem agressão. Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los (métodos indiretos de combater a guerra). Deve-se contrapor ao instinto destrutivo tudo o que favoreça o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens (Eros). Esses vínculos podem ser de dois tipos: (1) amor; (2) identificação (tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento). A situação ideal (utópica) seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da RAZÃO (ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais). AUTORIDADE CENTRAL: “as guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses”.16 “Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil”. TRANSFORMAÇÃO CULTURAL: a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural e as modificações psíquicas que acompanham esse processo de civilização são notórias e inequívocas. Trata-se de um progressivo deslocamento dos fins instintivos e de uma limitação imposta aos impulsos instintivos. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós (como a ideia de heroísmo). Características psicológicas da civilização: (1) fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida do instinto; (2) e a internalização dos impulsos agressivos.17 Deve-se dar atenção, assim, à educação da camada superior dos homens (líderes). 16 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. 17 Cf. EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações..., cit. 9 10 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 2. ESTADO ANTIGO 2.1. ESTADO TEOCRÁTICO Com o crescimento dos agrupamentos populacionais, cada vez maiores, a base de legitimidade do poder do chefe tribal ou do rei (faraó, etc.) quase que inevitavelmente associava a figura do soberano a de um deus. Deve-se observar que sempre se associava os acontecimentos ou mesmo os fenômenos da natureza à ação de uma divindade, antes de se buscar uma base racional para a compreensão destes (como ocorreu em Atenas). ESTADO ANTIGO: Estado teocrático, afirmando-se a autoridade dos governantes e as normas de comportamento individual e coletivo como expressões da vontade de um PODER DIVINO.18 (BOBBIO):19 “HOBBES, ao reagir à anarquia provocada pelas guerras de religião, se conduziu ao extremo oposto”. HOBBES “propõe eliminar o conflito entre as várias igrejas eliminando a causa mais profunda do conflito, isto é, a distinção entre o poder do Estado e o poder da Igreja”. HOBBES “quer, na verdade, que não haja outro poder a não ser o do Estado e que a religião seja reduzida a um serviço”. O que fica evidenciado é que HOBBES, ao abraçar a doutrina contratualista, pressupõe que o poder encontra seu foco no povo, e não em nenhuma entidade metafísica. Nesse compasso, pode-se mesmo imaginar que HOBBES é positivista, em especial porque busca uma fundamentação para o poder que não seja a que se buscava, no Estado teocrático, em DEUS. O poder, portanto, emanaria do povo e seria exercido pelo soberano (mas provém do povo). 2.2. A GRÉCIA E A DEMOCRACIA DIRETA (CARTLEDGE): No tempo de Aristóteles, a Grécia não era uma entidade política centralizada, mas era formada por centenas de polis (cidades) separadas, cada qual com seu sistema e forma de governo.20 (RENATO JANINE):21 A Grécia não era um país unificado e, portanto, Atenas não era sua capital, o que se tornou apenas no século 19. O mundo grego, ou helênico, se compunha de cidades independentes. 18 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 62-63. 19 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1999, p. 37. 20 Cf. CARTLEDGE, Paul. The democratic experiment. Disponível em: <www.bbc.co.uk/history/ancient/greeks>. Extraído em 18 ago. 2011. Como afirma o autor: By the time of Aristotle (fourth century BC) there were hundreds of Greek democracies. Greece in those times was not a single political entity but rather a collection of some 1500 separate poleis or 'cities' scattered round the Mediterranean and Black Sea shores “like frogs around a pond”, as Plato once charmingly put it. 21 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. Disponível em: <www.renatojanine.pro.br/folipol/democracia.html>. Extraído em 18 ago. 2011. 10 11 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (RENATO JANINE):22 A assembléia grega reunia poucos milhares de homens, e sua democracia durou apenas uns séculos. Regimes democráticos só voltaram à cena em fins do século 18, mais de 2 mil anos depois. 2.2.1. GRÉCIA : O BERÇO DA DEMOCRACIA DIRETA (A) A ÁGORA E OS CIDADÃOS ATENIENSES ATENAS: o POVO reunia-se na Ágora (praça pública) para o exercício direto e imediato do poder político. A Ágora grega fazia papel similar ao dos Parlamentos nos tempos modernos, embora contasse com a presença (direta) dos cidadãos atenienses. (CARTLEDGE): ATENAS tinha por volta de 250.000 habitantes (incluindo mulheres, crianças, escravos) cerca de 40.000 eram cidadãos plenos (homens adultos livres) e apenas cerca de uns 5.000 participavam regularmente das assembléias.23 (RENATO JANINE):24 Em Atenas e nas outras cidades democráticas (não era toda a Grécia: Esparta era monárquica), o povo exercia o PODER, diretamente, na praça pública. Não havia assembléia representativa: todos os homens adultos livres podiam tomar parte nas decisões. A lei ateniense, no século 4 a.C., fixa 40 reuniões ordinárias por ano na ágora, que é a palavra grega para praça de decisões. Isso significa uma assembléia a cada nove dias. (B) AS DELIBERAÇÕES NA ÁGORA As DELIBERAÇÕES NA ÁGORA envolviam todas as questões do Estado: legislativa, executiva e judicial. (JOSÉ DE ALENCAR): “a praça representava o grande recinto da nação: diariamente o povo concorria ao comício; cada cidadão era orador, quando preciso. Ali se discutia todas as questões do Estado, nomeavam-se generais, julgavam-se crimes. Funcionava a demos indistintamente como assembléia, conselho ou tribunal: concentrava em si os três poderes; legislativo, executivo, judicial”. (CARTLEDGE): Cerca de 6.000 cidadãos eram listados anualmente como potenciais jurados, sendo que um típico júri popular era composto por 501 cidadãos, como no julgamento de Sócrates.25 22 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u351772.shtml>. Extraído em 18 ago.2011. 23 Cf. CARTLEDGE, Paul. The democratic..., cit. Como afirma o historiador de Cambridge: First, scale. There were no proper population censuses in ancient Athens, but the most educated modern guess puts the total population of fifth-century Athens, including its home territory of Attica, at around 250,000 - men, women and children, free and slave, enfranchised and disenfranchised. Of those 250,000 some 40,000 on average were full citizens—the adult males of Athenian birth and full status. Of those 40,000 perhaps 5,000 might regularly attend one or more meetings of the popular Assembly, of which there were at least 40 a year in Aristotle's day. 24 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u351772.shtml>. Extraído em 18 ago.2011. 25 Cf. CARTLEDGE, Paul. The democratic..., cit. 11 12 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Sócrates foi julgado, em 399 a.C., por 501 pessoas Como 281 o condenam e 220 votam pela absolvição, ele foi sentenciado à morte. (C) A ÁGORA COMO PRIVILÉGIO DE HOMENS LIVRES A DEMOCRACIA era privilégio de uma minoria social de homens livres, a par de uma enorme maioria de homens escravos. (ARISTÓTELES): a virtude política, enquanto sabedoria para mandar e obedecer só pertence àqueles que não têm a necessidade de trabalhar para viver. (BENJAMIN CONSTANT):26 “[...] a abolição da escravatura privou a população livre de todo o lazer que o trabalho dos escravos lhe permitia. Sem a população escrava de Atenas, vinte mil atenienses não teriam podido deliberar cada dia na praça pública.” (RENATO JANINE):27 O pressuposto da democracia direta era a liberdade. Os gregos se orgulhavam de ser livres. Isso os distinguia de seus vizinhos de outras línguas e culturas. Ser grego ou helênico não era uma distinção racial, mas lingüística e cultural Quem falasse grego era grego, não importando o sangue que corresse em suas veias. Os gregos, porém, distinguiam escravos e mulheres. Na condição de estrangeiro, incluíam- se todos os não-atenienses e mesmo seus descendentes: muitas pessoas nascidas em Atenas, mas de ancestrais estrangeiros, jamais teriam a cidadania ateniense. Os gregos consideravam os outros povos, tais como os persas, inferiores, mas, ao contrário dos racistas modernos, não por uma diferença genética, e sim por não praticarem a liberdade. [...] Só eles, que decidiam suas questões, eram livres. (DALLARI): “essa idéia restrita de POVO não poderia estar presente na concepção de DEMOCRACIA do século XVIII, quando a burguesia, economicamente poderosa, estava às vésperas de suplantar a monarquia e a nobreza no domínio do poder político”.28 (D) A ARISTOCRACIA DEMOCRÁTICA ATENIENSE Para alguns autores, na Grécia antiga não houve verdadeira democracia, mas uma ARISTOCRACIA DEMOCRÁTICA. A base social escrava permitia ao homem livre ocupar-se tão somente dos negócios públicos, numa militância permanente e diuturna nenhuma preocupação de ordem material atormentava o cidadão da antiga Grécia.29 Ao “homem econômico” dos nossos tempos correspondia o “homem político” da antiguidade. 26 Cf. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade..., cit. 27 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u351772.shtml>. Extraído em 18 ago.2011. 28 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 146. 29 Na lição de Paul Cartledge (The democratic..., cit.), from the mid fifth century, office holders, jurymen, members of the city's main administrative Council of 500, and even Assembly attenders were paid a small sum from public funds to compensate them for time spent on political service away from field or workshop. 12 13 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (COMENTÁRIO): É sabido que, na realidade, o que se tinha era uma sociedade de “patriarcas”, senhores de fazendas rurais que, nos anos dourados da sociedade das luzes de Atenas, deliberavam em praça pública enquanto uma massa de escravos trabalhava e sustentava a polis. 2.2.2. A LIBERDADE DOS ANTIGOS E A LIBERDADE DOS MODERNOS (A) A VIDA PRIVADA E AS INGERÊNCIAS DA POLIS (BENJAMIN CONSTANT):30 distingue a “LIBERDADE DOS ANTIGOS” da “LIBERDADE DOS MODERNOS”. Nas palavras do AUTOR LIBERAL: “Perguntai-vos primeiro, Senhores, o que em nossos dias um inglês, um francês, um habitante dos Estados Unidos da América entendem pela palavra LIBERDADE. É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não podar ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferirem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias. Enfim, o direito, para cada um, de influir sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários, seja por representações, petições, reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração. Comparai agora a esta a LIBERDADE DOS ANTIGOS. Esta última consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que consistia nisso o que os antigos chamavam liberdade, eles admitiam, como compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que vemos fazer parte da LIBERDADE ENTRE OS MODERNOS. Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância. Nada é concedido a independência individual, nem mesmo no que se refere à religião. A faculdade de escolher seu culto, faculdade que consideramos como um de nossos mais preciosos direitos, teria parecido um crime e um sacrilégio para os antigos. Nas coisas que nos parecem mais insignificantes, a autoridade do corpo social interpunha-se e restringia a vontade dos indivíduos. Em Esparta, Terpandro não pode acrescentar uma corda à sua lira sem ofender os Éforos. Mesmo nas relações domésticas a autoridade intervinha. O jovem lacedemônio não pode livremente visitar sua jovem esposa. O SENTIDO DE LIBERDADE INDIVIDUAL era distinto do que se conhece hoje. A vida privada não ficava imune às ingerências do Governo, que intervinha em assuntos tais como a proibição ao celibato, a disciplina do vestuário, o uso do bigode, etc.31 30 Cf. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade..., cit. 13 14 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A coletividade era a cidade e o indivíduo grego, isento de valor autônomo, parte ordinária da polis, inserido no complexo de necessidades da coletividade, como um todo único, sem qualquer desintegração hábil a considerar a figura do ser individual, com suas necessidades. (COMENTÁRIO): Não é de se estranhar os conflitos entre filhos e pais, sempre posto na Mitologia, como no nascimento de Zeus, em especial se considerarmos que o patriarca gozava da liberdade política e do controle e poder máximo por sobre os membros da família, portanto, a liberdade política apenas chegaria aos filhos com a morte do pai. (JOSE DE ALENCAR): o Estado encerrava-se nos limites da cidade a vida civil ainda não existia - o homem era exclusivamente cidadão. (PAULO BONAVIDES): a DEMOCRACIA DOS ANTIGOS era a democracia de uma cidade, de um povo que desconhecia a vida civil e que se devotava integralmente à coisa pública. (CLOVIS BEZNOS32; FIORINI33): o antigo grego desconhecia o sentido de liberdade individual (tal como a conhecemos hoje), sendo que a própria vida privada não ficava imune às ingerências do Governo, que intervinha em assuntos tais como a proibição ao celibato, disciplina do vestuário, uso do bigode, etc. (B) O INDIVIDUO MORRE E A POLIS NÃO MORRE A POLIS não pode morrer e precisa de ser preservada; o INDIVÍDUO é mortal e inexoravelmente morre. Não havia a tensão significativa nas relações entre indivíduo e Estado, pois o homem recebia tudo do Estado, devia tudo ao Estado. A coletividade era a cidade, e o grego, o filho da polis, parte ordinária, dela componente, que, antes de ter necessidades individuais, estava inserido no mundo das necessidades da polis . As necessidades do INDIVÍDUO GREGO (isento de valor autônomo) traduziam necessidades que sentia a coletividade, como um todo único, sem qualquer desintegração hábil a considerar a figura do ser individual, com suas necessidades. O termo polícia34 referia-se às necessidades da coletividade. Mesmo quando o homem grego toma consciência de que a polis lhe é realidade exterior , vacila (sacrifício de Sócrates). SACRIFÍCIO DE SÓCRATES: desistiu do plano de fuga organizado por seus discípulos, que seria justamente a renúncia à polis quis morrer sem desmembrar por atos o que já fizera nas suas idéias: a separação entre o Estado e o homem. (C) LIBERDADE COMO LIBERDADE POLÍTICA 31 Nesse sentido, BEZNOS, Clóvis. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 1; FIORINI, Bartolomé A. Poder de policía. 2. ed. Buenos Aires: Alfa, 1962, p. 24-25; COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. 6. ed. Lisboa: Clássica, 1945. v. I, p. 356–362. 32 Cf. BEZNOS, Clóvis. Poder de Polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 2-3. 33 Cf. FIORINI, Bartolomé A. Poder de Policía. 2ª ed. Buenos Aires: Alfa, 1962, p. 24-25. 34 O vocábulo “polícia” encontra sua origem na palavra grega politeia, e do termo latino politia, e era utilizada para designar todas as atividades da polis, ou seja, significava a Constituição da cidade, Constituição do Estado, num sentido referente à Administração Pública, Governo. 14 15 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (BOBBIO): Se o OBJETIVO DOS ANTIGOS se restringia a distribuição do poder político entre os cidadãos, o OBJETIVO DOS MODERNOS busca muito mais, almejando, inclusive, a segurança para as fruições privadas.35 A DEMOCRACIA traduzia um direito de participação no ato criador da vontade política. A LIBERDADE DOS ANTIGOS não pode ser confundida com a LIBERDADE DOS MODERNOS, uma vez que o objetivo dos antigos se restringia à distribuição do poder político pelos cidadãos.36 (BENJAMIN CONSTANT):37 “[...] Como cidadão, ele decide sobre a paz e a guerra; como particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos seus movimentos; como porção do corpo coletivo, ele interroga, destitui, condena, despoja, exija, atinge mortalmente seus magistrados ou seus superiores; como sujeito ao corpo coletivo, ele pode, por sua vez, ser privado de sua posição, despojado de suas honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo ao qual pertence. Entre os modernos, ao contrário, o indivíduo independente na vida privada, mesmo nos Estados mais livres só é soberano em aparência. [...] Essa compensação já não existe para nós. Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca percebe a influência que exerce. [...] O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade às garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios. [...] Seria mais fácil hoje fazer um povo de espartanos do que educar espartanos para a liberdade. [...] A independência individual é a primeira das necessidades modernas. Conseqüentemente, não se deve nunca pedir seu sacrifício para estabelecer a LIBERDADE POLÍTICA.” (LEONARDO BENTO): “a LIBERDADE PARA OS MODERNOS encontra-se relacionada com a preservação de um espaço privado de autonomia individual onde possam desenvolver suas potencialidades físicas e espirituais, para além de quaisquer interferências heterônomas, especialmente políticas. Claro está que essa liberdade já não se exerce NO ESTADO, senão CONTRA ELE, reivindicando direitos e impondo-lhe deveres de abstenção, de não-invasão na esfera privada, preservando ao indivíduo sua esfera de imunidade. Eis o sentido da cisão radical entre ESTADO e SOCIEDADE CIVIL”.38 (D) A LIBERDADE DOS ANTIGOS E A CRÍTICA LIBERAL AO REPUBLICANISMO Na crítica liberal de BENJAMIN CONSTANT:39 “[...] Muitos governos de nosso tempo não parecem inclinados a imitar as repúblicas da antiguidade. No entanto, por menos gosto que tenham pelas instituições republicanas, há certos 35 Cf. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 7-10. 36 Cf. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 7–10; BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 139-164. 37 Cf. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade..., cit. 38 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 160. 39 Cf. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade..., cit. 15 16 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG costumes republicanos pelos quais esses governos sentem certa afeição. É lamentável que sejam precisamente aqueles que permitem banir, exitar, privar. Lembro-me que em 1802 foi introduzido, numa lei sobre os tribunais especiais, um artigo que adotava na França o ostracismo grego, e só Deus sabe quantos eloqüentes oradores falaram-nos da liberdade de Atenas e de todos os sacrifícios que os indivíduos deviam fazer para conservai essa liberdade a fim de que este artigo fosse aceito, o que, contudo, não aconteceu. Da mesma forma, em época bem mais recente, quando autoridades temerosas tentavam timidamente dirigir as eleições a seu modo, um jornal, que não é tachado, no entanto, de republicano, propôs restabelecer a censura romana para afastar os candidatos perigosos. [...] Devemos desconfiar, Senhores, dessa admiração por certas reminiscências antigas. Se vivemos nos tempos modernos, quero a liberdade que convém aos tempos modernos; se vivemos sob monarquias, suplico humildemente a essas monarquias de não tomar emprestados às repúblicas antigas meios de oprimir-nos. A liberdade individual, repito, é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a sua garantia e, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para sacrificar, como os de antigamente, a totalidade de sua liberdade individual à liberdade política é o meio mais seguro de afastá-los da primeira, com a conseqüência de que, feito isso, a segunda não tardará a lhe ser arrebatada. [...] Longe, pois, Senhores, de renunciar a alguma das duas espécies de LIBERDADE de que vos falei, é preciso aprender a combiná-las.” (E) A ESFERA PÚBLICA E A ESFERA PRIVADA (HANNAH ARENDT): na Antiguidade, ser LIVRE significava não ser desigual no ato de comandar e mover-se numa esfera onde não existiam nem governo, nem governados.40 O ser político significava decidir pela palavra e pela persuasão e não pela violência. A ESFERA DA VIDA PRIVADA correspondia à existência da esfera da família, que traduzia o reino da defesa da necessidade a vida privada, longe da esfera do público, era governada pela necessidade (e não pela liberdade), não se submetendo, assim, a considerações de virtude. A ESFERA PÚBLICA correspondia ao reino da liberdade, da vida política. A liberdade do chefe de família realizava-se, unicamente, quando este deixava a esfera privada da casa, no qual era o soberano solitário para ingressar na ESFERA PÚBLICA política, onde poderia conviver com seus iguais (não dominando e não sendo dominado). (LEONARDO BENTO): PLATÃO propõe outra forma de libertação (LIBERDADE ACADÊMICA), que não tinha nada a ver com a discussão pública política entre cidadãos da polis a verdadeira liberdade, para Platão, assim, existia na filosofia, e se alcançava a partir da dialética (e não da retórica).41 40 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 42. 41 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do estado. Barueri: Manole, 2003, p. 156. 16 17 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O PENSAMENTO CRISTÃO afirma a subjetividade (conceito estranho aos antigos gregos), o mundo espiritual, a interioridade. (LEONARDO BENTO): O ideal cristão de virtude distancia-se dos antigos gregos, que apenas o obtinham através do reconhecimento público a bondade deve ser testemunhada e recompensada por DEUS e não pelos homens.42 (HANNAH ARENDT): A MODERNIDADE cria a ESFERA SOCIAL (que não é privada, nem pública), que conquista a esfera pública e transforma a política em apenas uma função da sociedade; da mesma forma, transforma as questões atinentes à esfera privada da família em interesse coletivo. A ESFERA SOCIAL, assim, passa a controlar todos os membros da comunidade, tomando a força e a violência como monopólios do governo, transformando a esfera política em domínio, em relação de subordinação. (LEONARDO BENTO):43 “o espaço púbico, tradicionalmente caracterizado como o lócus da liberdade, traduzida na participação nos assuntos públicos, caiu para segundo plano, instrumentalizado em função da prática filosófica e religiosa superior. [...] Da mesma forma que o trabalho da maioria escrava, na cidade antiga, possibilitava a uma minoria de cidadãos a prática política no espaço público, nesse memento é a política, vale dizer, a administração e o governo dos assuntos mundanos pela maioria dos cidadãos, que permite a uma minoria de filósofos ocupar-se do verdadeiro saber. [...] A política que era a própria realização da liberdade nos gregos é degradada a seu instrumento de viabilização e proteção na MODERNIDADE”. A FAMÍLIA deixa de ser a unidade produtiva (espaço da necessidade) e abandona seu status econômico para se constituir na esfera da intimidade e subjetividade, sendo substituída pelo MERCADO, no qual atuam indivíduos.44 2.2.3. AS BASES DA DEMOCRACIA GREGA (FRANCESCO NITTI): os gregos consideravam DEMOCRACIA a forma de governo que garantisse a todos os cidadãos a ISONOMIA, a ISOTIMIA e a ISAGORIA, e que fizessem da LIBERDADE a base da sociedade política. ISONOMIA: igualdade de todos perante a lei, sem distinção de grau, classe ou riqueza. A ordem jurídica dispensava o mesmo tratamento a todos os cidadãos, conferindo-lhes iguais direitos, punindo-os sem foro privilegiado. Toda discriminação de ordem jurídica em proveito de classes ou grupos sociais, equivaleria à quebra do principio da ISONOMIA. ISOTIMIA: abolia os títulos ou funções hereditárias, abrindo a todos os cidadãos o livre acesso ao exercício das funções publicas, sem mais distinção ou requisito que o merecimento, a honradez e a confiança depositada no administrador pelos cidadãos. ISAGORIA: direito de palavra. 42 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 156. 43 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 157. 44 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 157. 17 18 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Reconhecia-se a igualdade de todos de falar nas assembléias populares, de debater publicamente os negócios do governo. Corresponde à liberdade de imprensa dos tempos de hoje. O persa OTANES (citado por Heródoto) apontava CINCO TRAÇOS FUNDAMENTAIS da DEMOCRACIA GREGA:45 a) Igualdade de todos perante a lei (isonomia); b) Condenação de todo poder arbitrário (como aquele que dominava as monarquias orientais); c) Preenchimento das funções públicas mediante sorteio; d) Responsabilidade dos servidores públicos; e) Reuniões e deliberações populares em praça pública. (BLUNTSCHLI): desses princípios três se incorporaram ao moderno direito publico, ao passo que dois outros (o sorteio e assembléias populares) foram substituídos pelas formas representativas de organização do poder político. 2.3. ROMA O afluxo de riquezas e escravos, entre outras razões, possibilitou o forjar de um jus privatus, distinto do jus publicus. Delineou-se o reconhecimento da existência, a favor do ESTADO, de um setor que compreendia bens humanos e patrimoniais, distinto daquele que dizia respeito aos PARTICULARES.46 (CLÓVIS BEZNOS): mesmo considerando dois períodos distintos (uma fase de ouro e outra posterior de arbitrário despotismo), em ROMA, a função policial se mostrou como uma guardiã do equilíbrio entre a relação indivíduo e bem público, embora caiba a ressalva de que o direito romano atribuía maior valor às riquezas privadas adquiridas (consideradas extensão do próprio indivíduo) do que ao respeito aos indivíduos como pessoas humanas.47 Nessa direção, com “temperos”, é possível afirmar que ROMA conheceu alguns direitos individuais, ao contrário da GRÉCIA ANTIGA, que os desconhecia. Por certo, porém, todos esses direitos se voltavam para o poder e grandeza do Império Romano. (BENJAMIN CONSTANT):48 Em Roma, os tribunos tinham até certo ponto uma missão representativa. Eles eram os porta-vozes dos plebeus que a oligarquia, que é a mesma em todos os séculos, havia submetido, derrubando os reis, a uma escravidão duríssima. No entanto, o povo exercia diretamente alguns direitos políticos: (1) o povo se reunia para votar as leis, para julgar os patrícios acusados de delito. Havia, porém, fracos traços do sistema representativo: este sistema é uma descoberta dos modernos. 45 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 270-271. 46 Cf. BEZNOS, Clóvis. Poder..., cit. p. 6-12; FIORINI, Bartolomé A. Poder..., cit. p. 28-29. 47 Cf. BEZNOS, Clóvis. Poder..., cit. p. 10-11. 48 Cf. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade..., cit. 18 19 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Em Roma, os censores vigiavam até no interior das famílias. As leis regulamentavam os costumes e, como tudo dependia dos costumes, não havia nada que as leis não regulamentassem. Para Benjamin Constant, de todos os Estados antigos Atenas é o que mais se pareceu com os modernos. Os antigos não tinham nenhuma noção dos direitos individuais. Os homens não eram mais que máquinas das quais a lei regulava as molas e dirigia as engrenagens. A mesma submissão caracterizava os belos séculos da república romana: o indivíduo estava, de certa forma, perdido na nação e o cidadão, na cidade. (HEGEL): tratou do PROGRESSO DA HUMANIDADE no que diz respeito à CONQUISTA DA LIBERDADE HUMANA, ao afirmar que o Oriente fora a liberdade de um só, a Grécia e Roma a liberdade de alguns e o mundo moderno a liberdade de todos. (RENÉ SAVATIER): para o autor, o CRISTIANISMO é o principal fator que fundamenta a ruptura com a tradição da Antiguidade que, tal como em Roma, reservava a condição jurídica aos CIDADÃOS. A REVOLUÇÃO FRANCESA, através da idéia de liberdade individual, a estende, para o autor, a todos os homens.49 49 Cf. DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito administrativo pós-moderno. Belo Horizonte: Mandamentos, p. 60. 19 20 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 3. ESTADO MEDIEVAL PRINCIPAIS ELEMENTOS: cristianismo, invasão dos bárbaros e feudalismo. CRISTIANISMO: aspiração de que toda a sociedade se tornasse cristã. A própria Igreja vai estimular a afirmação do Império (ESTADO UNIVERSAL DA CRISTANDADE). (DALLARI): a luta entre o Papa e o Imperador, que marcou os últimos séculos da Idade Média só vai terminar com o nascimento do Estado Moderno, quando se afirma a supremacia absoluta dos monarcas na ordem temporal.50 FEUDALISMO: as invasões bárbaras e as guerras internas tornaram difícil o desenvolvimento do comércio, favorecendo a enorme valorização da posse da terra, de onde se retirava os meios de subsistência (sistema administrativo e organização militar estreitamente ligados à situação patrimonial).51 (DALLARI): O ESTADO MEDIEVAL se caracteriza por uma pluralidade de poderes menores sem hierarquia definida; multiplicidade de ordens jurídicas (ordem eclesiástica, ordem imperial, direito das monarquias inferiores, direito comunal, ordenações dos feudos, regras das corporações de ofício). Permanente instabilidade política, econômica e social.52 A ideia de DEMOCRACIA MEDIEVAL vem bem traduzida em MARCÍLIO DE PÁDUA, segundo o qual o “poder de fazer leis”, em que se apoia o poder soberano, diz respeito unicamente ao povo, ou à sua parte mais poderosa, o qual atribui a outros apenas o poder executivo (poder de governar no âmbito das leis).53 50 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 66-67. 51 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 69. 52 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 70. 53 Nesse sentido. BOBBIO, Norberto; et allii. Dicionário de política. cit. p. 95. 20 21 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 4. ESTADO ABSOLUTO 4.1. O ESTADO ABSOLUTO COMO ESTADO NÃO SUJEITO À LEGALIDADE O crescimento da população europeia, o caminhar rumo às cidades, o surgimento da burguesia, bem como a consequente expansão da atividade econômica, dentre outros fatores, são causas determinantes do fim da estrutura feudal e que deram ensejo a um ambiente propício ao surgimento do Estado Absoluto. No ESTADO ABSOLUTO visualiza-se o Estado como uma associação para a consecução do interesse público que, porém, atribuía ao príncipe plena liberdade de meios para alcançar os fins. (JORGE MIRANDA): A fundamentação do poder arbitrário está na consideração de que a vontade do príncipe tendia sempre à realização da felicidade dos súditos, colocando o poder a serviço do Estado soberano, guiado pela pura leitura da conveniência e não pela justiça ou legalidade.54 (DIOGO FREITAS DO AMARAL): Nesse culto à razão de Estado, observa-se a fragilidade em matéria de garantias individuais, bem como a extensão máxima do poder discricionário, que, em nome de um pretenso interesse público, contava com plena liberdade dos meios e simultâneo reforço do controle do Estado por sobre a sociedade.55 O PODER era absoluto e não estava limitado pela lei. De forma ilustrativa, podem-se tomar as palavras de PASCOAL DE MELLO FREIRE, que viveu entre 1738 e 1798, acerca das instituições jurídicas portuguesas do século XVIII: § V. Entre outros, são direitos majestáticos ou reais: impor tributos de qualquer gênero, Ord. liv. 2, tit. 2, §§ 4,5,6, 13,14 e 15; cunhar moedas, Ord. liv.5, tit.12, no princ. E § 4; extrair quaisquer metais, liv. 2, tit. 26, § 16; fazer leis, Ord. liv. 3, tit. 75, § 1, no fim; criar magistrados, Ord. liv. 2, tit., 26, § 1; dispor dos bens dos súditos na guerra e na paz, § 7; e, em suma, toda a autoridade, jurisdição, poder, na República, e o mais que de propósito omitimos, visto estas noções bastarem ao nosso propósito.56 4.2. AS DUAS FASES DO ESTADO ABSOLUTO (DIOGO FREITAS DO AMARAL): No exercício desse poder arbitrário, o Executivo monárquico poderia lesar direitos dos particulares, dispensar apenas alguns do cumprimento dos deveres legais, ou mesmo outorgar privilégios a certos particulares.57 (SÉRVULO CORREA): Nesse contexto, pode-se demarcar a idéia de administração pública como sendo um processo governativo, eminentemente discricionário, alheio ao princípio da legalidade58 e guiado pelas vicissitudes e circunstâncias do bem comum e da segurança pública, para o qual utilizavam meios arbitrários.59 54 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual..., t. I, cit., p. 80. 55 Cf. AMARAL, Diogo Freitas do. Curso..., v. I, cit., p. 67-70. 56 FREIRE, Pascoal de Mello. Instituições de direito civil e criminal português, 1789. Trad. Miguel Pinto de Meneses. In: Antologia de textos sobre finanças e economia. Caderno de Ciência e Técnica Fiscal, do Ministério das Finanças. Lisboa: Ministério das Finanças, 1966, p. 9 e 13. 57 Cf. AMARAL, Diogo Freitas do. Direito administrativo. 2. ed. Lisboa, 1988. v. II, p. 47. 58 Cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Noções de direito administrativo. Lisboa: Danúbio, 1982. v. I, p. 247. 59 Cf. CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1970, t. II, p. 1.147. 21 22 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG No ESTADO DE POLÍCIA, os poderes do príncipe e de seus servidores não careciam de qualquer definição normativa prévia e eram determinados segundo uma avaliação casuística do que deveria se considerar interesse público. No ESTADO ABSOLUTO, podem-se distinguir dois momentos: (1) Em um primeiro, em princípios do século XVIII, a monarquia afirma-se como “direito divino”; o rei se aclama o escolhido por “Deus”. Legitima-se o poder real em um FUNDAMENTO RELIGIOSO; (2) Em um segundo, passa-se a buscar atribuir ao poder uma fundamentação racionalista dentro do Iluminismo dominante, o que se traduzia no “DESPOTISMO ESCLARECIDO”, ou, em alguns países, no ESTADO DE POLÍCIA. 4.3. O ESTADO ABSOLUTO E A FUNDAMENTAÇÃO RACIONALISTA (A) A FUNDAMENTAÇÃO RACIONALISTA EM HOBBES Por todos, a fundamentação racionalista do Absolutismo pode bem ser encontrada nos textos de Thomas Hobbes. (ANDITYAS MATOS):60 Caso se leia com cuidado os capítulos centrais do Leviatã (XIII a XV), compreender-se-á o caráter da inovação proposta por HOBBES: a substituição de uma racionalidade político-jurídica teológica, de matriz medieval, por outra de feição moderna, técnico-racionalista e laica. (ANDYTIAS):61 De acordo com HOBBES, a razão humana é capaz de constituir, por si só, a mecânica estrutural da comunidade – o Estado-Leviatã – sem que seja necessário qualquer apelo à divindade. Para Andityas, bem como para Goyard-Fabre, Bobbio, Kelsen, HOBBES é o primeiro representante do positivismo jurídico (que entende ser o direito um conjunto sistemático, unitário e coerente de normas jurídicas criadas e mantidas pela vontade humana, sem a intervenção de qualquer deidade ou força sobrenatural).62 (ANDYTIAS):63 O poder absoluto se constitui no Estado hobbesiano com o objetivo de contrapor-se a um inimigo bem definido e poderoso: o clero. (ANDITYAS MATOS):64 HOBBES é um dos principais fundadores do direito moderno (individualista), ao substituir o direito natural universalista e generalizante (de Platão a Santo Tomás de Aquino) pelo direito natural do indivíduo, racional e mecanicista, que se apresenta emancipado de justificativas teológicas. Para HOBBES, a razão humana é capaz de constituir, por si só, a mecânica estrutural da comunidade (o Estado-Leviatã) sem que seja necessário qualquer apelo à divindade. 60 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 14. 61 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 17-19. 62 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 19. 63 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 21. 64 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 17-19. 22 23 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG HOBBES não chega às consequências finais do positivismo jurídico, propondo uma separação total entre Estado e religião, porque um Estado laico não encontraria eco em seu momento histórico, sendo até mesmo uma proposta perigosa.65 HOBBES viveu no contexto da Guerra Civil inglesa, razão pela qual seu intuito primordial era esboçar uma teoria que pudesse justificar um ESTADO que tivesse como desiderato fundamental a preservação da paz social e a segurança. (RENATO JANINE):66 O verdadeiro interesse é, antes de mais nada, como diria HOBBES, salvar a própria vida da morte violenta e precoce. É em função disso que se deve pensar em construir o elo social, não com base numa virtude que será ilusória, mas na garantia da própria sobrevivência, na exclusão da guerra de todos contra todos: assim se dá uma escora mais forte ao vinculo social do que com base no engano e na revolução. (BOBBIO):67 “HOBBES, ao reagir à anarquia provocada pelas guerras de religião, se conduziu ao extremo oposto. Ele propõe eliminar o conflito entre as várias igrejas ou confissões eliminando a causa mais profunda do conflito, isto é, a distinção entre o poder do Estado e o poder da Igreja. HOBBES “quer, na verdade, que não haja outro poder a não ser o do Estado e que a religião seja reduzida a um serviço”. A desobediência civil e a revolução apenas seriam possíveis nas situações excepcionais em que o soberano deixa de cumprir suas obrigações. (ANDYTIAS, p.16):68 Para HOBBES, em tal cenário, seria muito difícil a vida humana, que se apresentaria “medíocre, suja, brutal e curta”. Por isso, utilizando a razão e abrindo mão da liberdade natural, os indivíduos criaram o Estado-Leviatã, que, aparentemente, poderia ser entendido como uma espécie de garantidor das leis naturais. A liberdade natural (fazer o que se quer, pois todos, no estado natural, têm o “direito” de praticar qualquer ato que vise à preservação de sua existência) se transmuda em liberdade civil (fazer aquilo que as leis permitem ou, pelo menos, não proíbem). HOBBES se coloca na contramão da tradição que afirmava a natural sociabilidade do homem (o zoon politikon de Aristóteles). O Estado, portanto, não é um dado da natureza, mas o resultado de uma convenção (Bobbio, 1991, p. 80). Por ser mais potente que qualquer indivíduo, o Estado é capaz de exigir que as leis naturais sejam cumpridas, ao mesmo tempo em que pune aqueles que as transgridem. Para HOBBES, a monopolização do poder corresponde à monopolização do processo legislativo, pois apenas as leis postas pelo soberano (qualquer que seja ele) devem ser cumpridas. 65 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 21. 66 Cf. RIBEIRO, RENATO Janine. Novos elos sociais: a internet como espaço democrático. Disponível em: <http://www.renatojanine.pro.br/Divulgacao/novoselos.html>. Extraído em 18 ago. 2011. 67 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1999, p. 37. 68 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 16. 23 24 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Somente o governante tem o direito de criar leis (direito positivo). A passagem da mítica jusnaturalista à técnica juspositivista se dá pela mediação do Estado-Leviatã. (BARZUN):69 Estado-Leviatã: um monstro cujo corpo é constituído dos corpos de todos os cidadãos do Estado – sob uma cabeça maciça. Suas forças e energias fundem-se no soberano, e essa união é o fruto de um contrato irrevogável, não sujeito a revisões. Se somente o governante tem o direito de criar leis (direito positivo), com o surgimento do Estado, a monopolização do poder corresponde à monopolização do processo legislativo (apenas as leis postas pelo soberano, qualquer que seja ele, devem ser cumpridas). (ANDITYAS MATOS):70 Os gregos já conheciam a distinção entre DIREITO NATURAL e DIREITO POSITIVO, que, grosso modo, corresponde à separação ática entre direito divino e direito humano. Além de estar presente nas obras de Platão e de Aristóteles, Sófocles nos provou que o conhecimento de tal diferenciação era comum para o homem grego, que sabia distinguir as ordens dos deuses das normas criadas pelos homens. Em Antígona, Sófocles narra como a personagem-título, desafiando as ordens de Creonte, enterrou o corpo de seu irmão, conduta que havia sido proibida pelo governante. Ao ser interrogada, Antígona afirmou que a norma jurídica por ele criada era inválida, porque o sepultamento digno seria um direito natural de todos os homens. Antígona acaba sendo morta. Sófocles levanta a questão de que as normas jurídicas postas pelos homens seriam incapazes de suplantar as que nascem de instâncias superiores e divinas (direito natural). Esse mesmo argumento serviu, na MODERNIDADE, como combustível intelectual para a Revolução Francesa de 1789. Os revolucionários derrubaram a monarquia e instituíram uma república porque, entre outros motivos, os monarcas, ao estabelecerem privilégios e benefícios para a nobreza e o clero, estariam desrespeitando os direitos naturais de liberdade e de igualdade, conferidos pela natureza a todos os homens. Na IDADE MÉDIA, ao contrário, a noção de direito natural serviu a propósitos conservadores (anti-revolucionários). Acreditava-se que o direito positivo e o poder político dos homens eram limitados e falhos, por isso todos (servos e nobres) deveriam obedecer às normas jurídicas emanadas da vontade divina (arquitetadas pelos detentores do poder religioso). Nos dias atuais, a concepção laica de Estado, a visão científica do direito e a objetivação/racionalização das relações de poder político-jurídico afastaram a noção de direito natural. Não se concebe mais qualquer ordem jurídica concorrente em relação à do direito positivo (único direito efetivamente existente). DIREITO NATURAL: conjunto de normas jurídicas criadas pela natureza ou pelos deuses que, de alguma forma, são capazes de expressar um ideal absoluto de justiça. Para os jusnaturalistas, as normas do direito natural independem do Estado, a quem cabe apenas cumpri-las e preservá-las, jamais criá-las. 69 Apud MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 33. 70 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 14. 24 25 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Tais normas guardam uma perfeição intrínseca porque derivam diretamente da própria natureza das coisas, da razão humana ou da vontade dos deuses. Em razão disso, pensadores como Platão, Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Locke e Rousseau entendem que o direito natural (absolutamente justo), se sobrepõe ao direito criado pelos homens (falível, imperfeito e, às vezes, injusto). (ANDYTIAS):71 O soberano não precisa ser um homem, podendo radicar-se na figura do Parlamento. Contemporaneamente, poder-se-ia chamar o poder absoluto de poder soberano ou vontade popular, mas jamais confundi-lo com a figura do monarca. O PODER ABSOLUTO é o centro gravitacional teórico do Estado-Leviatã, que faz as vezes de DEUS no sistema hobbesiano, podendo ser preenchido de várias maneiras. Para HOBBES, o único Estado viável é um que tenha à sua testa um SOBERANO absoluto, que seja a única fonte legisladora. (ANDITYAS MATOS):72 para HOBBES, onde não existe um poder comum, não existe lei; onde não há lei, não há injustiça. Para HOBBES, justiça e injustiça não são faculdades nem do corpo, nem da mente, caso contrário, poderiam encontrar-se num homem sozinho no mundo (tal como suas sensações e paixões) são qualidades relativas ao homem que vive em sociedade, e não em solidão. Bem e mal (justo e injusto) variam conforme a variação dos temperamentos, dos costumes e das concepções dos homens homens diferentes diferem e aquilo que um chama de bem, outro pode criticar e chamar de mal disso surgem disputas, controvérsias e a guerra. HOBBES defende as “leis” (direito positivo) em contraposição ao common law (direito natural inglês). 71 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 18. 72 Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas..., cit. p. 19. 25 26 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 5. O ESTADO LIBERAL 5.1. O OCASO DO ABSOLUTISMO (LUBLINSKAYA): A partir do momento em que o ABSOLUTISMO deixou de atender aos anseios da burguesia, que necessitava de “liberdade” para dar seqüência ao processo de acumulação de capital, esse ideal colocou-se como força motriz do PROCESSO REVOLUCIONÁRIO DO SÉCULO XVIII.73 5.2. O ESTADO LIBERAL DO SÉCULO XIX (A) O ESTADO LIBERAL E A LIMITAÇÃO DOS PODERES O ESTADO LIBERAL, em contraposição ao Estado Absoluto, caracteriza-se pela garantia dos direitos individuais inalienáveis e intangíveis, oponíveis ao Estado. (JORGE MIRANDA): o ESTADO LIBERAL aparece como ESTADO DE DIREITO REPRESENTATIVO que, lastreado na idéia de liberdade, empenha-se em limitar o poder político, tanto internamente (pela separação dos poderes), como externamente, com a redução de suas funções perante a sociedade.74 (B) O ESTADO LIBERAL COMO ESTADO DE DIREITO Surge a partir do PROCESSO REVOLUCIONÁRIO DO SÉCULO XVIII, afastando a idéia de leis a que o príncipe não se sujeitava, consagrando o PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. (CAIO TÁCITO): “como um episódio da revolta do cidadão contra o Poder”, “ao despotismo se opõem a força da liberdade e a segurança individual, na mística da inviolabilidade da lei todo- poderosa”.75 A idéia de lei feita pelos PARLAMENTOS, aos quais a burguesia poderia alçar seus representantes, vem em substituição à atribuição de poder discricionário amplo à figura do príncipe. (CAIO TÁCITO): “ao despotismo se opõem a força da liberdade e a segurança individual, na mística da inviolabilidade da lei todo-poderosa”.76 (MANUEL HESPANHA): Os objetivos estatais primeiros limitavam-se à preservação da paz e à justiça, objetivos estes que se identificavam apenas com a reconstituição da ordem perturbada (administração passiva).77 73 Cf. LUBLINSKAYA, A. D. A concepção burguesa contemporânea de monarquia absoluta. In: Poder e instituições na Europa do Antigo Regime – Colectânea de Textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 104. 74 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Editora Coimbra, 1997, t.I, p. 86. Para o autor, é isto que sustentam, de seus pressupostos doutrinais e prismas próprios, os autores que o teorizam (Kant, Adam Smith, Thomas Paine, Madison, Wilhelm vom Humboldt, Bentham, Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville, Stuart Mill, Silvestre Pinheiro Ferreira e Alexandre Herculano). 75 Cf. TÁCITO, Caio. Poder de polícia e polícia do poder. In: TÁCITO, Caio (Coord.). Direito administrativo da ordem pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 56. 76 Cf. TÁCITO, Caio. Poder de polícia e polícia do poder. In: ______ (Coord.). Direito administrativo da ordem pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 56. 77 Cf. HESPANHA, A. Manuel. Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime. In: Poder e instituições na Europa do antigo regime – Colectânea de Textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 66-69. 26 27 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (C) O LIBERALISMO ECONOMICO COMO DOUTRINA ECONÔMICA DO ESTADO LIBERAL Consonante os ideais do LIBERALISMO, passou-se a privilegiar a liberdade, centrando toda preocupação na atribuição de direitos ao indivíduo, devendo toda interferência ter caráter excepcional. A atuação estatal passou a ser exceção, restrita à manutenção da ordem pública, da liberdade, da propriedade e da segurança individual. À autoridade passou a caber (tendencialmente) tão somente um papel negativo de evitar a perturbação da ordem e assegurar a livre fruição dos direitos de cada um. Os NOVOS REGIMES POLÍTICOS que se desenham caracterizam-se, essencialmente, pela garantia dos direitos individuais, inalienáveis e intangíveis, oponíveis ao Estado. (CAIO TÁCITO): O ESTADO LIBERAL deveria apenas evitar a perturbação da ordem e assegurar o livre exercício das liberdades, colocando-se apenas como um poder de equilíbrio, prevenindo e corrigindo os entrechoques individuais.78 O Estado é a estrutura de contenção de excessos de individualismo. A TEORIA LIBERAL CLÁSSICA critica vigorosamente o Estado paternalista, que trata os súditos como se estes fossem filhos menores e incapazes, mas, por outro, preocupa-se com a atribuição de direitos ao indivíduo e apenas admite a interferência estatal em caráter excepcional. A atuação administrativa deve se restringir à manutenção da ordem pública, da liberdade, da propriedade e da segurança individual. (BOAVENTURA DOS SANTOS):79 Mesmo na primeira fase do capitalismo (“CAPITALISMO LIBERAL”), certa regulação pelo Estado era considerada legítima e necessária à manutenção do laissez faire, ou seja, o Estado era chamado a intervir para não intervir. (D) O ESTADO LIBERAL COMO ESTADO BURGUÊS (PAULO BONAVIDES): O PODER ABSOLUTO se retrai perante o domínio dos direitos individuais na sociedade presumivelmente livre e igualitária.80 O ESTADO LIBERAL mostra-se como ESTADO BURGUÊS, identificado com os interesses e valores da burguesia, que conquista o poder político e econômico, o que vem justificar o realce das liberdades individuais (LIBERDADE CONTRATUAL; reverência à ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA a par das liberdades). (CAIO TÁCITO): “a todos, sem distinção, o ESTADO LIBERAL assegurava a plenitude de agir segundo o juízo próprio de conveniência. Conforme a sátira famosa de Anatole France, a lei garantia igualmente ao rico e ao pobre o direito de dormir debaixo da ponte”.81 (PAULO BONAVIDES): “como a igualdade a que se arrima o LIBERALISMO é apenas formal, e encobre, na realidade, sob seu manto de abstração, um mundo de desigualdades de fato – econômicas, sociais, políticas e pessoais -, termina a apregoada liberdade, como Bismark já o 78 Cf. TÁCITO, Caio. O poder..., cit., p. 2. 79 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995, p. 79-80. 80 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 61. 81 Cf. TÁCITO, Caio. Poder de polícia e ..., cit., p. 57. 27 28 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG notara, numa real liberdade de oprimir os fracos, restando a estes, afinal de contas, tão– somente a liberdade de morrer de fome”.82 Sujeito a regras de mercado, consideradas neutras e impessoais, o CAPITALISMO LIBERAL admite desigualdade social, que é atribuída ao desempenho individual ou ao acaso. (LUBLINSKAYA): o absolutismo perdeu as suas posições quando a burguesia comercial e industrial, que crescera graças à força do mesmo absolutismo, se tornou suficientemente independente e a nobreza se tornou suficientemente burguesa.83 A TEORIA LIBERAL, ao condenar os privilégios nobiliárquicos e hereditários, bem como o protecionismo mercantilista, o parasitismo social da aristocracia e o absolutismo político levanta as bandeiras da liberdade e da igualdade, entretanto, a de uma “igualdade formal”, que encobre, na realidade, sob seu manto de abstração, um mundo de desigualdades de fato (econômicas, sociais, políticas e pessoais). Para a lógica liberal, eventuais desigualdades materiais não decorrem das regras do jogo (que devem ser iguais para todos) e não exigem quaisquer reações do Estado, pois se originam da natural desigualdade de fato entre os jogadores. (E) O ESTADO LIBERAL E A PROPRIEDADE PRIVADA O ESTADO LIBERAL DE DIREITO privilegiou a segurança interna e externa. (MARCELO REBELO DE SOUSA): Como ESTADO-ÁRBITRO, não-intervencionista na vida econômica e social, correspondia às aspirações de uma burguesia em rápida ascensão, a quem interessava, por um lado, a salvaguarda jurídica da sua posição, com a eliminação dos privilégios do clero e aristocracia, e, por outro lado, o reconhecimento da igualdade formal perante a lei, consubstanciada no respeito aos direitos civis e políticos, a par da manutenção da desigualdade ao nível econômico e social.84 A concepção de PROPRIEDADE é uma das bases da cultura estadual na sua fase de Estado Absoluto e continuará a sê-lo no Estado Liberal. (MARAVALL): para o autor, o ESTADO é o grande aparelho edificado pela burguesia para defender a propriedade: o Estado soberano alcançou o seu desenvolvimento precisamente pelo fato de a propriedade privada se ter constituído como uma esfera autônoma para corresponder desde então ao Estado, não só respeitar este limite, mas também protegê-lo e até convertê-lo em razão de sua própria soberania.85 82 BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., cit. p. 61. 83 LUBLINSKAYA, A. D. A concepção burguesa contemporânea de monarquia absoluta. In: Poder e instituições na Europa do Antigo Regime – Colectânea de Textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 104. 84 Cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de; GALVÃO, Sofia. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. Lisboa: Publicações Europa- América, 1998, p. 27-28. 85 Cf. MARAVALL, José Antônio. A função do direito privado e da propriedade como limite do poder do Estado. In: Poder e instituições na Europa do Antigo Regime – Colectânea de textos. Lisboa, Editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 233-247. 28 29 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (PAULO BONAVIDES): A burguesia, ao se apoderar do controle político da sociedade, já não mais se interessou por manter, na prática, a universalidade dos princípios basilares da Revolução Francesa como apanágio de todos os homens, mas passou a sustentá-los apenas de maneira formal.86 (F) O ESTADO LIBERAL E A SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL O ESTADO LIBERAL firma uma nítida separação entre Estado e sociedade civil, bem como promove a autonomia da esfera econômica em face da esfera política, cada qual presidida por uma lógica distinta (lucro e poder). (VALLES BENTO):87 A lógica liberal permite a primazia do mercado sobre o Estado, afastando toda forma de intervenção econômica, marcando como modelo ideal o “Estado mínimo”, que possua, da mesma forma, um Governo que governe o mínimo. A esfera política deve limitar-se à garantia do pleno funcionamento dos mecanismos de autorregulação do mercado (aos quais se atribui uma racionalidade intrínseca), à proteção da propriedade privada e da obrigatoriedade dos contratos, à segurança pública.88 (F) A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL No Século XIX, a REVOLUÇÃO INDUSTRIAL propiciou o progresso dos meios produtivos, acelerando o processo de acumulação de capital, aumentado a desigualdade social, agravando problemas sociais, que passaram a exigir a intervenção moderadora do Estado. A burguesia de força revolucionária passa a elemento conservador, reforçando, no processo crescente de acumulação capitalista, a manutenção de uma classe proletária que nada tinha a oferecer senão sua capacidade de trabalho. (G) O ESTADO LIBERAL EM CRISE Marcado por convulsões bélicas e por mudanças cada vez mais rápidas e alicerçadas em avanços tecnológicos sem precedentes, bem como por profundas crises econômicas, o Século XX, em substituição à FASE LIBERAL, o Estado de Direito abre uma FASE SOCIAL. A FASE SOCIAL do Estado de Direito surge a partir do momento que o ESTADO LIBERAL não pôde ficar indiferente à crise social, sob pena de colocar em causa a paz social. (BOBBIO): O modelo social de Estado, agradando ou não, foi resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática.89 (BOBBIO): A partir do momento em que os que nada tinham, exceto a sua força de trabalho, conquistaram o direito de voto ou força para algo exigir, a conseqüência foi que o Estado teve de atender aos anseios de proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais, providências em favor da maternidade, etc.90 86 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do estado..., cit. p. 42. 87 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do Estado: entre eficiência e democratização. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 16. 88 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 3. 89 Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 35. 90 Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro..., cit. p. 35. 29 30 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (JORGE MIRANDA): Sai-se de um Estado mínimo para um Estado de bem-estar, do ESTADO LEGISLATIVO para o ESTADO ADMINISTRATIVO. Avança-se em direção a um Estado intervencionista, social, em contraposição a um laissez-faire liberal.91 O ESTADO SOCIAL abre promessas de direitos econômicos , sociais e culturais , sem se colocar de lado o necessário respeito às liberdades e garantias individuais. (MARCELO REBELO DE SOUSA): A CRISE DO ESTADO LIBERAL fez surgir TRÊS TIPOS DE ESTADO,92 antiliberais, reforçando, todos eles, a Administração Pública, com opção pelo alargamento de suas funções e fins: (1) ESTADO SOCIAL DE DIREITO; (2) ESTADO SOCIALISTA; e o (3) ESTADO FASCISTA. Se no ESTADO SOCIALISTA e no ESTADO FASCISTA verifica-se um regime político ditatorial, no ESTADO SOCIAL DE DIREITO, o regime político democrático limita a força de atuação da administração interventiva, sem, entretanto, afastar as incumbências do Estado de satisfação de diversas necessidades coletivas. 91 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual..., t. I. cit. p. 90-91. 92 Cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de. Lições de direito administrativo. 2. ed. Lisboa: Pedro Ferreira, 1995. v. I, p. 26. 30 31 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 6. O ESTADO DE DESIDERATO SOCIAL 6.1. O ESTADO DE DIREITO E A CRISE SOCIAL A primeira metade do Século XX, marcado por grandes convulsões bélicas e por mudanças cada vez mais rápidas e alicerçadas em avanços tecnológicos sem precedentes, bem como por profundas crises econômicas, assistiu seguir à FASE LIBERAL do Estado Constitucional a sua FASE SOCIAL. O MODELO MAIS SOCIAL DE ESTADO DE DIREITO firma-se, sobretudo, para debelar a crise da ordem capitalista, sem fechamento do sistema político, que permanece pluralista e aberto. A liberdade mantém-se como valor básico, bem como a limitação do poder político persevera como objetivo permanente, mantendo, de forma intransponível, o povo como titular do poder. (PAULO BONAVIDES): Mantêm-se o regime de economia de mercado, sujeito, porém, a alguma tutela ou dirigismo, que não lhe afeta as estruturas, embora subtraia do livre jogo das forças produtivas determinados espaços da ordem econômica.93 O PODER ESTATAL, com outra roupagem e conteúdo mais democrático, ressurge como caminho para a proteção dos economicamente mais fracos, contendo os excessos do capitalismo. A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA deixa de ser a pura salvaguarda do existente para se tornar atividade interventora. (HESPANHA): A Administração Pública passa a tomar a iniciativa e a agir (administração ativa) visando à criação de algo de novo.94 O ESTADO DE DESIDERATO SOCIAL assenta-se em um humanismo democrático, em substituição ao individualismo do Estado Liberal, buscando socializar a satisfação dos interesses pelo Estado, mantendo em relevo a garantia dos direitos fundamentais, sem descurar da garantia dos direitos sociais e da concretização da justiça. (PAULO BONAVIDES): o ESTADO LIBERAL não desapareceu, mas se transformou, dando lugar ao ESTADO SOCIAL, mais apto a conciliar liberdade com isonomia democrática.95 Para tornar efetiva a tutela dos direitos fundamentais, o ESTADO DE DESIDERATO SOCIAL passa a articular direitos, liberdades e garantias individuais (direitos cuja função imediata é a proteção da autonomia do indivíduo) com os direitos sociais (direitos que visam refazer as condições materiais e culturais em que vivem as pessoas). (PAULO OTERO): o ESTADO SOCIAL DE DIREITO busca seu fundamento na dignificação da pessoa humana, que deve ser preservada em sua integridade.96 As conquistas do constitucionalismo liberal não bastaram para assegurar a dignidade do homem, daí por que, a partir da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919, foram-se incorporando direitos sociais aos textos constitucionais. 93 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do estado..., cit., p. 33. 94 Cf. HESPANHA, A. M. Para uma..., cit., p. 68-69. 95 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do estado..., cit., p. 37. 96 Nesse sentido, OTERO, Paulo. O poder de substituição em direito administrativo – Enquadramento dogmático- constitucional. Lisboa: Lex, 1995. v. II, p. 588. 31 32 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (DANIEL SARMENTO): O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando é privado de alguma das suas liberdades fundamentais, mas também quando não tem acesso à alimentação, à educação básica, à saúde, à moradia, etc.97 6.2. O ESTADO PROVIDÊNCIA RECLAMADO PELO CAPITALISMO LIBERAL EM CRISE (A) A PLURALIDADE DE FATORES QUE DERAM ENSEJO À CRISE DO ESTADO LIBERAL Não existem explicações monocausais para o surgimento do WELFARE STATE. Inúmeros foram os fatores determinantes que se combinaram singularmente para cada Estado em particular. As exigências de cunho econômico decorrentes da crise do período que mediou as duas grandes guerras mundiais, que atingiu seu ápice com a quebra da bolsa de Nova York, evidenciaram a necessidade de superação dos postulados liberais de não-intervenção do Estado na economia. O ESTADO DE DESIDERATO SOCIAL é fruto de uma pluralidade de fatores que alteraram o mundo e a sociedade. O modelo vem como resposta às aspirações democráticas e aos clamores sociais, entretanto, é possível se afirmar que as exigências postas pela ciranda econômica e pela crise gerada pela recessão econômica são fatores decisivos para a formatação do novo modelo de Estado. Evitando-se os riscos que uma análise estritamente materialista e histórica pode proporcionar, é possível afirmar que a necessidade de expansão da atividade econômica foi causa marcante do surgimento do ESTADO ABSOLUTO; por outro giro, quando o Absolutismo deixou de ser interessante ao processo de acumulação de capital, o ESTADO LIBERAL firmou-se como paradigma adequado às aspirações burguesas. Da mesma forma, não se pode negar que a crise econômica do capitalismo liberal das primeiras décadas do Século XX foi decisiva para a formatação de um novo paradigma de Estado. (B) AS DEFICIÊNCIAS DO PROCESSO DE ACUMULAÇÃO DE CAPITAL O processo de acumulação de capital promovido pelo mercado, na lógica liberal, tende a gerar concentração de riquezas, dando ensejo a uma sociedade tendencialmente polarizada em classes com antagonismos profundos (proprietários e trabalhadores assalariados). A estrutura oligopolista de mercado afasta as possibilidades de um “capitalismo competitivo”, favorecendo, por outro lado, uma crise de superprodução. (C) A CRISE DA DÉCADA DE 1920 A crise econômica mundial do final da década de 1920 atirou a economia em uma espiral recessiva. A crise de demanda causada pela falta de mercado consumidor capaz de escoar a produção agravou o desemprego, que, em consequência, agravou o consumo, e assim por diante. 97 Nesse sentido, SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2000, p. 63-71. 32 33 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A crise econômica da década de 1920 colocou em causa as bases do Estado Liberal, uma vez que atirou ao descrédito a mítica crença na racionalidade intrínseca do mercado. Ficou evidenciado que as leis do mercado não conseguem garantir salutar competição, mas, ao contrário, favorecem abusos e a constituição de oligopólios, da mesma forma que os atos praticados pelos agentes econômicos produzem consequências imprevistas por estes ou até mesmo indesejáveis. (D) A GRANDE DEPRESSÃO E A REGULAMENTAÇÃO DO SISTEMA BANCÁRIO O CAPITALISMO construiu SISTEMAS BANCÁRIOS (a partir dos ourives) que, em uma lógica especulativa, emprestam dinheiro que, na realidade, não lhes pertence, mas a investidores. Um SISTEMA BANCÁRIO carente de regulamentação gera um clima de desconfiança nos investidores (donos do dinheiro), uma vez que existe a possibilidade dos investidores buscarem seu dinheiro de volta, a qualquer momento, ocasionando a falência de todo o modelo (trazendo a reboque a falência da economia e a do próprio Estado). Em 1907, o pânico (de apenas uma semana), com a corrida aos bancos nos Estados Unidos, em verdadeiro “COMPORTAMENTO DE MANADA”, aliado ao colapso do mercado de ações, geraram severa RECESSÃO ECONÔMICA. (ver questão dos agricultores E DO MORGAN BANK em Krugman) A RECESSÃO ECONÔMICA provocou uma queda na produção e no nível de empregos, evidenciando a inarredável necessidade de uma “reforma bancária”. Em 1913, os Estados Unidos criaram o Federal Reserve System, regulamentando o SISTEMA BANCÁRIO e criando a necessidade de manutenção de reservas adequadas. Entretanto, os mecanismos implantados não foram suficientes para conter a ameaça de uma nova “corrida aos bancos”, tanto que a mais grave crise bancária da história eclodiu no final da década de 1920. No final dos anos 1920, a queda no nível da atividade econômica e do preço das commodities precipitou a inadimplência bancária, sobretudo dos agricultores já endividados, deflagrando CORRIDAS AOS BANCOS por todo o país. A CRISE BANCÁRIA converteu a recessão de então na “GRANDE DEPRESSÃO”, que forçou a criação de um SISTEMA BANCÁRIO com muito mais salvaguardas. Os bancos funcionavam mal, entretanto a GRANDE DEPRESSÃO os forçou a atuar sob rigorosa regulamentação, com proteção de forte rede de segurança. Os movimentos de capitais internacionais, da mesma forma, foram submetidos a restrições, tornando o sistema financeiro mais seguro. (PAUL KRUMAN):(ver pag.) Esse novo sistema, muito mais regulamentado, protegeu a economia norte-americana durante quase 70 anos. (E) AS POLÍTICAS KEYNESIANAS (FLÁVIO CONSTANTINO): O fracasso econômico do liberalismo (na década de 1930) favoreceu o prestígio da TESE KEYNESIANA do PRINCÍPIO DA DEMANDA EFETIVA, que marca que os níveis de renda e crescimento dependem dos gastos (consumo, investimento, gasto público) e não dos estoques 33 34 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG de capital, trabalho e tecnologia, portanto, uma política estatal mais adequada deve estimular os gastos para aquecer a economia, gerar empregos e recuperar a renda.98 Para Keynes, o ESTADO LIBERAL gera desemprego, que se agrava graças às consequentes deficiências do consumo, sobretudo, pela insuficiência de investimentos. O processo de acumulação de capital vale-se da exploração da mão de obra, favorecida pela existência de uma reserva de desempregados. A desigualdade social retira as condições de consumo das classes mais pobres, ao passo que a classe rica tem um baixo consumo proporcional, na medida em que seus rendimentos superam em demasia a capacidade de gasto. Nesse compasso, o capital se encarece, dando ensejo à especulação, desestimulando investimentos. O Estado, sob a ótica keynesiana, para estancar o processo que desencadeia a crise, deve tributar de forma mais pesada as grandes fortunas e adotar uma política de crédito público de juros baixos, incrementando a produção e o consumo, levando, tendencialmente, à obtenção do pleno emprego. Pari passo, uma política de investimentos públicos diretos pode absorver o excedente de mão de obra, possibilitando o estancamento da crise de demanda. 6.3. O ESTADO PROVIDÊNCIA COMO RESPOSTA AOS CLAMORES DA SOCIEDADE PLURALISTA QUE CONQUISTOU O DIREITO DE VOTO A fase social do Estado de Direito surgiu (também) a partir do momento que o ESTADO LIBERAL não pôde mais ficar indiferente à crise social, sob pena de colocar em causa a paz social. (VALLES BENTO):99 A crise econômica agravada das primeiras décadas do Século XX passou a exigir do Estado tanto uma atuação econômica “anticíclica” que pudesse inverter a espiral recessiva causada pelo modelo mais liberal de Estado, como mecanismos de proteção social, a fim de amortecer os efeitos perversos da crise. (HESPANHA):100 Para atender a essa lógica mais social do Estado (Providência), a atividade administrativa deixou de ser a pura salvaguarda do existente para se tornar atividade interventora; a Administração Pública necessitou tomar a iniciativa e agir visando à criação de algo de novo (administração ativa). (BOBBIO):101 Não se pode negar que o modelo social de Estado tenha sido uma resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática. A partir do momento que a massa proletária (os que nada tinham, exceto a sua força de trabalho) conquistou o direito de voto ou força para algo exigir, a consequência foi que o Estado teve de atender aos anseios de proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais, providências em favor da maternidade, etc.102 98 Cf. CONSTANTINO, Flávio. O reinício do debate. In Estado de Minas, Belo Horizonte, 23. fev. 2010, p. 9. 99 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 4. 100 Cf. HESPANHA, A. M. Para uma..., cit. p. 68-69. 101 Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 35. 102 Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro..., cit. p. 35. 34 35 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Curiosamente, as primeiras tentativas de implementação de políticas sociais pelo Estado, na realidade, ocorreram em países de regime político autoritário, visando exatamente impedir o avanço democrático, como na Alemanha de Bismark ou na França de Napoleão III.103 Algo similar, por certo, ocorreu no Brasil de Getúlio Vargas. 6.4. O ESTADO SOCIAL E SUAS FASES (A) O ESTADO SOCIAL CONSERVADOR E O ESTADO PROVIDÊNCIA (SANTAMARÍA PASTOR):104 o ESTADO SOCIAL possibilita a demarcação de três fases principais: (1)PRIMEIRA FASE o Estado assume o encargo de intervir autoritariamente no universo das relações de trabalho (como o fez Bismark, de 1883 a 1889); Primeira tentativa de socialização do risco, com a substituição da caridade privada pelo seguro público, estatizando-se as formas de solidariedade.105 A Alemanha foi a pioneira nessas formas de regulação, como na disciplina da assistência em caso de acidente de trabalho (de 1871). As reivindicações do partido socialdemocrata alemão foram duramente reprimidas por Bismark que, como antídoto político, desenvolveu uma política social ampla, como a lei de 1883 sobre seguro-doença; a lei de 1884 sobre acidentes de trabalho; a lei de 1889 sobre seguro velhice-invalidez, todas elas englobadas no Código dos Seguros Sociais de 1911.106 As conquistas dessa fase aparecem postas mais como beneplácito de um líder carismático do que propriamente como direitos fundamentais conquistados.107 Com o devido respeito às cores e nuances que os distinguem, similar assistencialismo estatal pôde ser verificado na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar, no Estado Novo de Getúlio Vargas. Se clamores sociais e democráticos colocavam em risco a paz social e influenciavam os avanços do Estado Social, a intervenção autoritária do Estado, nessa primeira fase, se exterioriza a partir de políticas paternalistas de governantes pouco democráticos. (2)SEGUNDA FASE o Estado passa a intervir no funcionamento da economia, chamando para si a orientação e regulação da atividade econômica e financeira (como se deu nas duas Grandes Guerras Mundiais); e 103 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 31-34. 104 Cf. SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Fundamentos de derecho administrativo. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 1991. v. I, p. 158-163 105 Para Jean Touchard, a primeira fase é a “fase de experimentação”, ainda tímida e conservadora, que vai de 1870 a 1925, ou seja, das iniciativas de Bismark até a República de Weimar (nesse sentido, vale conferir BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 15). 106 Cf. BITENCOURT NETO, Eurico. O direito ao mínimo para uma existência digna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 47. 107 Nesse sentido, BITENCOURT NETO, Eurico. O direito..., cit. p. 46-47. 35 36 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Na realidade, mesmo antes da Grande Depressão, logo após a Primeira Grande Guerra, o Estado já havia passado a intervir na ordem econômica e social, buscando salvar o próprio capitalismo de si mesmo.108 (3)TERCEIRA FASE a partir do final da Segunda Guerra Mundial, quando o Estado se apresenta como um grande aparato prestador (ESTADO PROVIDÊNCIA). Nessa “FASE DE EXPANSÃO”, verifica-se a mais ampla aplicação prática das políticas keynesianas de intervenção econômica e social, em virtude da necessidade de se reestruturar as economias europeias e do desejo de fazer frente à expansão do socialismo soviético. A partir dessa TERCEIRA FASE, o mundo assiste a um crescimento econômico significativo, muitas vezes acompanhado de uma expansão no endividamento externo.109 Nas duas primeiras fases, o “ESTADO SOCIAL CONSERVADOR” via-se, fundamentalmente, às voltas com a crise econômica, buscando superá-la, sem maiores preocupações imediatas com a justiça social. (VALLES BENTO):110 Nessa fase, além de não conseguir superar a crise do capitalismo, o Estado não conseguiu dar o suporte necessário às instituições democráticas, não abrindo alternativas capazes de superar o surgimento de regimes totalitários. (B) A CRISE DO ESTADO LIBERAL E OS REGIMES TOTALITÁRIOS (MARCELO REBELO DE SOUSA):111 Da crise do Estado Liberal, irrompem três tipos de Estado, todos eles antiliberais, reforçando, todos eles, a Administração Pública, com opção pelo alargamento de suas funções e fins: (a) o Estado Social (democrata); (b) o Estado da Legalidade Socialista; e (c) o Estado de inspiração fascista. As promessas ousadas dos REGIMES POLÍTICOS DITATORIAIS (fascismo e comunismo) deixaram de lado valores fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e o princípio democrático. (EMERSON GABARDO):112 “a crise do capitalismo pós-Primeira Guerra Mundial propiciou um ambiente favorável para a queda da importância da democracia no imaginário popular (que até então relacionava de forma intensa liberalismo econômico e democracia política). E, assim, a ideia de um governo forte tornou-se cada vez mais palatável, quando não obrigatória, seja em termos políticos, seja em termos econômicos, exigindo-se, então, um aparato jurídico que lhe desse respaldo”. (HESPANHA): “a violentação das consciências não provém apenas do Estado, através da lei; pode vir também da sociedade, através da imposição de cânones opressivos de comportamento [...]”.113 108 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 15. Trata-se, na dicção de Jean Touchard, da fase de consolidação, na qual as políticas distributivas keynesianas são experimentadas no New Deal de Franklin Roosevelt. 109 Nesse mesmo sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p.15-16. 110 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 5. 111 Cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de. Lições de direito administrativo. 2. ed. Lisboa: Pedro Ferreira, 1995, v. I, p. 26. 112 Cf. GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade – O Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 161-162. 113 António Manoel Hespanha, aqui citado por GABARDO, Emerson. Interesse..., cit. p. 161-162. 36 37 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG De fato, quando o indivíduo tenta, mas não encontra um caminho para satisfazer suas necessidades vitais, não sendo capaz de obter trabalho, nem podendo contar com a solidariedade, nem com o Estado, só lhe resta mesmo apelar para Deus, ou, quando o pior está prestes a acontecer, entregar seu destino nas mãos de um líder carismático fazedor de promessas, ou entregar mesmo jogar sua sorte ao azar. (PAULO BONAVIDES):114 “se a ditadura parece ser o caminho mais curto que se lhes oferece nas promessas falazes da ambição totalitária, se, por outro lado, são elas a presa fácil da demagogia plutocrática, é a democracia, contudo, em sua verdade conceptual, a grande meta a que elas de fato devem aspirar e a que se poderão um dia chegar, se conduzidas por líderes capazes e esclarecidos, animados do autêntico ardor democrático, possível unicamente onde há escrúpulo, idealismo e abnegação.” No ESTADO SOCIAL (DEMOCRATA), o regime político democrático buscou limitar a força de atuação da “administração autoritativa”, sem, entretanto, afastar as necessárias incumbências do Estado de satisfação de diversas necessidades coletivas. (C) O WELFARE STATE E OS DIREITOS SUBJETIVOS PÚBLICOS A partir do final da Segunda Guerra Mundial, as normas programáticas do ESTADO SOCIAL CONSERVADOR foram se transformando em direitos sociais do “ESTADO DO BEM ESTAR” (WELFARE STATE, ESTADO PROVIDÊNCIA), que não se apresentam como singelas prestações de caridade ou de benevolência do soberano, como nos Estados patrimoniais europeus, mas como direitos subjetivos públicos passíveis de serem exigidos do Estado. Desde a Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919, foram-se incorporando direitos sociais aos textos constitucionais. Em linhas gerais, se a EUROPA CONTINENTAL avançou no sentido de institucionalização de estruturas prestacionais públicas (Welfare State universalista e igualitário), por outro lado, os PAÍSES ANGLO-SAXÔNICOS, em geral, fizeram opção pelo mercado, deixando a prestação de serviços públicos estatais restrita aos hipossuficientes (Welfare State conservador e liberal de atuação residual e seletiva). (VALLES BENTO): Os Estados Unidos bem cedo consolidaram sua democracia, mas só muito tardiamente adotaram o modelo de “bem estar”, se é que algum dia o fizeram.115 O WELFARE STATE deixou evidenciado que o constitucionalismo liberal não bastava para assegurar a dignidade do homem. (DANIEL SARMENTO):116 O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando é privado de alguma das suas liberdades fundamentais, mas também quando não tem acesso à alimentação, à educação básica, à saúde, à moradia, etc. O ESTADO DO BEM ESTAR, no plano ético, traduz uma crítica ao Estado Liberal, buscando o resgate do mesmo humanismo que inspirou e fundamentou os movimentos de conquista das liberdades públicas. 114 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do estado..., cit. p. 195. 115 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 34. Para o autor, em regra, a sociedade civil norte-americana se mobiliza para pleitear redução da carga tributária, mas não para exigir maiores gastos do Estado. 116 Nesse sentido, SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2000, p. 63-71. 37 38 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (D) O ESTADO PROVIDÊNCIA E SUA FUNDAMENTAÇÃO O ESTADO PROVIDÊNCIA aproveita-se da crítica marxista da exploração do capital sobre as massas trabalhadoras, rejeitando, porém, o materialismo histórico e a doutrina do antagonismo irredutível de classes. Sem perseguir igualdade material de forma absoluta e sem buscar necessariamente a homogeneização do proletariado, busca compatibilizar direitos individuais com justiça social. (VALLES BENTO):117 O ESTADO PROVIDÊNCIA parte do pressuposto de que a plena realização dos direitos individuais depende necessariamente da compatibilização destes com o desiderato de justiça social, mantendo as instituições democráticas e, pelo menos a princípio, a filosofia individualista que as fundamenta. Entretanto, não há evidência sociológica qualquer que permita presumir que a classe trabalhadora mobilizada fez uma opção racional pela transformação gradual da sociedade capitalista nos moldes socialdemocrata, até porque esta, mesmo mobilizada, não havia conseguido se constituir em maioria legislativa. (VALLES BENTO):118 Para o Autor, a ideologia socialista e o espírito corporativo forneceram lastro relevante para a mobilização reivindicatória da massa trabalhadora. (PAULO OTERO):119 Para Paulo Otero, a doutrina social da Igreja fornece o embasamento para a concepção do ESTADO SOCIAL, sendo que, desde o século XIX, já vinha associando a ideia de bem- estar ao princípio da justiça. (E) O ESTADO PROVIDÊNCIA REDISTRIBUIDOR E CAPITALISTA O ESTADO PROVIDÊNCIA, em suas pretensões, não se limita apenas à busca da garantia de um mínimo de participação nos bens da vida, mas compreende a busca da REDISTRIBUIÇÃO e de um maior equilíbrio na sociedade. Não se trata de um ESTADO SUBSIDIÁRIO, mas de um Estado de prestações universalistas. (EURICO BITENCOURT NETO):120 O ESTADO PROVIDÊNCIA busca uma sociedade de bem- estar para todos, “na medida das possibilidades de um sistema capitalista, em que as liberdades individuais e a propriedade privada também contam com proteção constitucional”. 6.5. O WELFARE STATE COMO ESTRUTURA DO CAPITALISMO AVANÇADO (A) OS PROBLEMAS DE LEGITIMIDADE DO CAPITALISMO (HABERMAS):121 As políticas públicas distributivas do ESTADO SOCIAL, desenvolvimentistas e de proteção social, acabam, fundamentalmente, por atuar como estruturas funcionais do capitalismo mais avançado para solucionar os problemas de legitimidade do próprio capitalismo, evitando a própria subversão da ordem. 117 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 1-2. 118 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 309-310. 119 Cf. OTERO, Paulo. O poder de substituição em direito administrativo – Enquadramento dogmático-constitucional. Lisboa: Lex, 1995. v. II, p. 587. 120 Cf. BITENCOURT NETO, Eurico. O direito..., cit. p. 72-73. 121 Cf. HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação do capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980, p. 51- 54. 38 39 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (HABERMAS):122 O capitalismo, entregue ao pretenso equilíbrio do mercado, não foi capaz de garantir condições de competição, exigindo do Estado um papel de compensação e reconciliação dos interesses gerais da sociedade com os interesses do próprio capital, como condição de continuidade do sistema. A disciplina estatal das relações trabalhistas, por exemplo, se apresenta como uma espécie de compensação política à própria determinação de preços pelos oligopólios. (B) O ESTADO SOCIAL E A MASSA PROLETÁRIA (MAURÍCIO GODINHO DELGADO):123 A relação empregatícia disciplinada pelo Direito do Trabalho, à luz do paradigma social de Estado, figura, a partir de então, como importante forma de conexão do indivíduo à economia capitalista, submetendo o “moinho implacável da economia a certa função social”, restringindo inegáveis tendências “autofágicas” do capitalismo liberal. Para GODINHO, apenas assim o sistema capitalista, essencialmente desigual, passou, de alguma forma, a poder incorporar massas populacionais à sua dinâmica operativa, “segundo um padrão relativamente racional de desenvolvimento econômico e de distribuição de riquezas”. O ESTADO SOCIAL, enquanto formatação mais madura do próprio capitalismo, porém, não propiciou a emancipação plena dos trabalhadores com relação aos seus empregadores, embora, pelo menos parcialmente, tenha favorecido que estes se tornassem fonte de poder, a partir do momento que a todos os cidadãos, independentemente de seu desempenho no modo de produção do mercado, são atribuídos direitos sociais. O ESTADO SOCIAL se esforçou para manter sistemas previdenciários e de saúde, pensões para idosos, etc. Entretanto, os direitos sociais não representam um processo absoluto de “desmercadorização da mão de obra”. (C) O ESTADO SOCIAL COMO ANTEPARO À LUTA DE CLASSES O ESTADO PROVIDÊNCIA atende às exigências de preservação da própria estrutura capitalista e de mercado. As escolas públicas, por exemplo, capacitam o contingente humano para o mercado, tal como os benefícios previdenciários evitam o confronto entre empregados e empregadores, e assim por diante. As políticas sociais do Estado deslocam a luta de classes para demandas sociais que se dirigem agora à esfera política e à burocracia estatal.124 A fluidez com que essas demandas caminham para a esfera pública vai determinar, na década de 1970, a partir de uma ótica puramente liberal, uma série de medidas e políticas, com especial efeito para os “países do Terceiro Mundo”. As intervenções estatais fazem com que as relações econômicas se politizem, uma vez que o funcionamento da economia passa a depender de decisões administrativas e políticas. 122 Cf. HABERMAS, Jürgen. A Crise..., cit. p. 53-64. 123 Cf. DELGADO, Maurício Godinho. Direito do Trabalho e inclusão social: o desafio brasileiro. In DIAS, Maria Tereza Fonseca; PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Org.). Cidadania e inclusão social. Estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 495. 124 Nesse sentido vale conferir os estudos e análises das ideias de Claus Offe feitas por Leonardo Valles Bento (Governança..., cit. p. 26-29). 39 40 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A partir do momento que o ESTADO SOCIAL assume a condução da política econômica, as crises econômicas acabam por se traduzir em crises políticas e em decorrentes crises de legitimação,125 uma vez que os recursos são escassos e existe uma intransponível impossibilidade financeira de se satisfazer pela via estatal todas as demandas geradas pela sociedade. (VALLES BENTO):126 Na SOCIAL DEMOCRACIA, o mercado consegue atenuar, em alguma medida, os impactos negativos ocasionados pela crise social decorrente das crises econômicas cíclicas do capitalismo, deslocando o foco para questões como a inflação, o déficit público, a crise fiscal, e para a inevitável crise de legitimação. (D) A POTENCIAL EFICIÊNCIA DA RACIONALIDADE DO ESTADO No ESTADO LIBERAL, pelo menos tendencialmente, o mito do progresso econômico incessante é creditado à racionalidade intrínseca do mercado. No ESTADO SOCIAL, a racionalidade e potencial eficiência da intervenção estatal se tornam a esperança maior. (VALLES BENTO):127 No mundo atual, ninguém pode dizer ao certo se a intervenção do Estado necessariamente é alternativa mais eficiente. Na verdade, “que razões levam a crer que a racionalidade do Estado é superior à do mercado, ou, pelo contrário, se os defeitos do mercado não são piores que os do Estado?” (E) O ESTADO SOCIAL E A TECNBUROCRACIA O ESTADO SOCIAL afastou a estrutura estatal ainda mais da sociedade civil. (BOAVENTURA SANTOS):128 No WELFARE STATE, discursos científicos de arraigada racionalidade técnico-científica passam a ser empregados como mecanismos de controle e dominação. Discursos sofisticados e tecnocráticos passam a firmar soluções consideradas salvadoras, afastando a possibilidade de avaliação e crítica por parte da sociedade, que passa a se ver incapacitada de se posicionar, perdida numa gama de conhecimentos especializados. (F) O ESTADO SOCIAL E A MORTE DAS IDEOLOGIAS A “morte das ideologias” deixa à sociedade apenas a possibilidade de reclamar os resultados finais, pelo menos quando estes são identificáveis. 6.6. O ESGOTAMENTO DO ESTADO PROVIDÊNCIA O incremento da atividade estatal proporcionou o alargamento incessante da base tributária, o crescimento da máquina burocrática, com a proliferação de órgãos do serviço público, criando um ambiente que, no final do século XX, colocou em xeque o próprio papel do Estado Social. 125 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 53. 126 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 56-57. 127 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 54. 128 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice..., cit. p. 86. 40 41 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Por isso é que não foi a toa que modelos de índole neoliberal foram buscados; não foi por acaso que terceirizações passaram a ser frequentes. (FLÁVIO CONSTANTINO):129 A partir de meados da década de 1970, o ESTADO PROVIDÊNCIA já evidenciava sua crise. As recomendações de Keynes, levadas a cabo longe demais, acabaram gerando o descontrole das contas públicas, o endividamento externo e o retorno da inflação. A queda nas taxas de crescimento dos países industrializados; a concentração da renda; a estagnação dos salários são fatores, dentre inúmeros, que apontam para um declínio do Welfare State. Em especial na década de 1980, o agravamento do déficit dos orçamentos públicos , em decorrência do financiamento dos programas assistenciais por meio de empréstimos, veio a agravar a crise do Estado Social. FATORES QUE TROUXERAM O ESGOTAMENTO DO ESTADO PROVIDÊNCIA : (1) Constante aumento da carga tributária, mais do que proporcional às prestações recebidas pelos administrados, gerando sentimento de desconfiança e insatisfação dos contribuintes; (PAREJO ALFONSO):130 a erosão de confiabilidade no Estado decorre tanto do descrédito na adaptabilidade da máquina pública às exigências do mundo tecnológico moderno, como da limitação das possibilidades de acréscimo das imposições tributárias, mesmo em face de aparente quebra do “Estado fiscal redistribuidor”. (MOREIRA NETO):131 “o velho Estado Fiscal, tal como entendíamos até recentemente, que gozava de plena e absoluta soberania impositiva, não só passou a se autolimitar por acordos multilaterais como, de fato, ficou autolimitado pelos efeitos negativos de sua política tributária na competitividade econômica do País”. (2) Ineficiência da intervenção de um Estado que cresceu gigantescamente, sem que esse crescimento viesse associado a um aumento do bem-estar individual, mas antes a um desmesurado crescimento da burocracia; (HABERMAS): um dos fatores determinantes da crise do Estado Social pode ser atribuído ao excesso de concentração do Estado no espaço público. (3) Corrupção crescente e nepotismo por parte dos administradores públicos; (4) Prevalência da ideologia capitalista ou “desideologização”, acompanhada de novas preocupações político-sociais, tais como o combate à poluição, a defesa do meio ambiente ou da qualidade de vida; (TOCQUEVILLE):132 “as opiniões, os sentimentos, as ideias comuns são cada vez mais substituídas pelos interesses particulares”. Pergunta-se “se não havia aumentado o número dos que votam por interesses pessoais e diminuído o voto de quem vota à base de uma opinião política”. 129 Cf. CONSTANTINO, Flávio. O reinício..., cit. p. 9. 130 Cf. PAREJO ALFONSO, Luciano. Eficacia y administración: tres estudios. Madrid: Impensa Nacional del Boletín Oficial del Estado, Instituto Nacional de Administración Pública – Ministerio para las Administraciones Públicas, 1995. p. 111-112. 131 Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Sociedade..., cit. p. 68. 132 Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia..., cit. p. 33, 140. 41 42 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (5) Descrédito com a ideia de progresso econômico indefinido associado a um avanço incessante da investigação científico-técnica.133 133 Nesse sentido, PAREJO ALFONSO. Eficacia..., cit. p. 111; PAREJO ALFONSO; JIMÉNEZ BLANCO; ORTEGA ÁLVAREZ. Manual de derecho administrativo. 5. ed. Barcelona: Ariel, 1998. v. 1, p. 98-99. 42 43 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 7. O ESTADO PÓS-PROVIDÊNCIA DA ERA DA RECESSÃO E A MODERNIDADE LÍQUIDA 7.1. O CAMINHAR RUMO A UM ESTADO PÓS-PROVIDÊNCIA NEOLIBERAL (A) A IDEOLOGIA NEOLIBERAL No ambiente de crise do ESTADO PROVIDÊNCIA, a ideologia neoliberal se fortalece, a partir da década de 1970. (FLÁVIO CONSTANTINO):134 A ESCOLA NEOLIBERAL afirma que o excesso de Estado produz não apenas a ineficiência microeconômica, como também a corrupção e o desequilíbrio macroeconômico. (FLÁVIO CONSTANTINO):135 A ESCOLA NEOLIBERAL insiste que o crescimento deve depender exclusivamente da capacidade produtiva do país, independentemente da política discricionária dos governos, ou seja, a burocracia não pode alocar corretamente os recursos, papel que entendem caber ao mercado, via sistema de preços. (FRIEDRICH HAYEK):136 Alega a incapacidade dos governos e oferece uma linha de suporte às críticas ao Welfare State, posicionando-se contra suas políticas intervencionistas e contra o modelo keynesiano, acusando-o de ser prejudicial às liberdades individuais e de favorecer o surgimento de regimes totalitários. Nessa ótica, os controles estatais dos meios de produção são considerados fatores impeditivos das ideias inovadoras e da motivação, que, para HAYEK, apenas podem ser maximizadas no mercado livre e no capitalismo competitivo. Para HAYEK, cabe ao Estado apenas assegurar a livre concorrência e evitar o controle do mercado. A TEORIA NEOLIBERAL defende que as políticas do Estado Providência podem provocar uma severa crise financeira do Estado e propiciar um crônico déficit público, inflação e desemprego, prejudicando o conjunto dos trabalhadores. Para o NEOLIBERALISMO, a crise financeira é causada pelo descontrole político com o gasto público e pelas políticas sociais moldadas para atender a demandas sociais cada vez mais fluídas e desordenadas. Para a TEORIA NEOLIBERAL, tudo isso acaba por provocar déficits públicos e desequilíbrios orçamentários crônicos, com consequente inflação, que destroça as bases do crescimento, gerando desemprego, que por sua vez realimenta o círculo vicioso de incremento do gasto público. Da mesma forma, a TEORIA NEOLIBERAL afirma que as políticas sociais ocasionam o incremento da carga tributária, reduzindo a capacidade de investimento. (B) A IDEOLOGIA NEOLIBERAL E O REFORMISMO DOS ANOS 1980 134 Cf. CONSTANTINO, Flávio. O reinício..., cit. p. 9. 135 Cf. CONSTANTINO, Flávio. O reinício..., cit. p. 9. 136 Cf. HAYEK, Friedrich. Os caminhos da servidão. 2. ed. São Paulo: Globo, 1977, passim. 43 44 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG As IDEIAS NEOLIBERAIS influenciaram a política dos países mais desenvolvidos a partir, sobretudo, dos anos de 1980, especialmente da Inglaterra de Thatcher (que praticou substancial corte nos gastos sociais) e dos Estados Unidos de Reagan (que redirecionou recursos para a indústria bélica). (VALLE BENTO):137 Na Europa Continental, a influência católica e a ascensão da esquerda, favorecida pela reação contra o retrocesso das conquistas sociais (Mitterrand na França; Mario Soares em Portugal; Craxi na Itália), a partir dos anos de 1970, propiciaram avanços neoliberais bem mais abrandados. Mais radical foi o avanço das POLÍTICAS NEOLIBERAIS nos países do leste europeu, após a queda do regime socialista (entre 1989 e 1991). Na Polônia, por exemplo, as propostas do “Solidariedade” (de cooperativismo em substituição às indústrias estatais) sequer foram experimentadas, por exigências do FMI e do Banco Mundial, que preconizavam políticas de “tratamento de choque”. 7.2. OS CÂNTICOS DE GLÓRIA DO CAPITALISMO E A DESTRUIÇÃO DO SONHO SOCIALISTA (A) A CHINA EM DIREÇÃO À ECONOMIA DE MERCADO O CAPITALISMO passou a entoar cânticos de glória quando a CHINA, em 1978, anunciou medidas que a colocariam em direção a economia de mercado (apenas poucos anos depois da vitória do comunismo no Vietnam). (B) A QUEDA DA UNIÃO SOVIÉTICA Alguns FATORES podem ser apontados como CAUSAS DA QUEDA e desmoralização do REGIME SOVIÉTICO: (a) Incapacidade da economia e da indústria soviética de acompanhar o reforço do poderio bélico norte-americano da Era Reagan; (b) Ascensão das economias capitalistas asiáticas; (c) A guerra do Afeganistão, “debilitante e invencível”. Em 1989, o império soviético na Europa Oriental começou a desabar e, em 1991, a própria URSS desmorona. Nas palavras de PAUL KRUGMAN:138 “Acima de tudo, o fracasso humilhante da União Soviética destruiu o sonho socialista. Durante um século e meio, a ideia do socialismo – de cada um, conforme suas capacidades, a cada um, conforme suas necessidades – serviu como foco intelectual de quem discordava das cartas recebidas do mercado.” [...] depois de todos os expurgos e gulags, a Rússia continuou tão atrasada e corrupta como nunca; a China decidiu que ganhar dinheiro era o bem supremo.” 137 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 44-45. 138 Cf. KRUGMAN. Paul. A crise..., cit. p. 13-14. 44 45 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A queda do muro de Berlin evidenciou que a tese marxista do colapso inevitável do capitalismo não vingou, embora a crise que abalou o mundo a partir de 2008 e o crescimento da economia chinesa, pelo menos aparentemente, mostrem sintomas em sentido diverso. (C) O FIM DA GUERRA FRIA E A EMERGÊNCIA DE APENAS UMA SUPERPOTÊNCIA Com a derrocada da União Soviética, a última década do século XX assistiu à hegemonia de uma única superpotência, o que determinou a consolidação da GLOBALIZAÇÃO e o esboço de um modelo NEOCOLONIAL.139 Tudo apontava para um ocaso político e econômico de inumeráveis Estados do Terceiro Mundo, em derradeiro golpe contra as esperanças de construção de um modelo de Estado de desiderato social para a América Latina. (PAULO BONAVIDES):140 “Sujeitos a pressões que lhe arruínam a economia, a moeda, o câmbio e, portanto, a capacidade de atuar com alguma parcela de autonomia nos mercados internacionais, esses Estados passam por um eclipse de soberania. Sua ordem constitucional, por conseguinte, nunca esteve tão quebrantada, tão desfalecida, sem embargo da aparente calmaria das instituições. Um ar pesado, todavia, faz pressentir o desencadear da tormenta”. (PAULO BONAVIDES):141 “Se a primeira modalidade de capitalismo contradiz a consagração definitiva daqueles direitos, que nas esferas sociais mitigaram a luta de classes, a segunda se apresenta mais funesta e devastadora, por atentar contra a justiça dos povos, contra os direitos da terceira geração, contra a soberania das nações”. (PAULO BONAVIDES): “ao cabo do Segundo Milênio todas as nações contemporâneas – por que não dizer assim? – se sentem, em grau maior ou menor, submetidas à servidão da pax americana , que introduziu esta enorme contradição, conceptual e palpável: o direito internacional do mais forte, que faz guerras sem declará-las e poderá, em breve, governar o mundo suprimindo tribunais e soberanias. Esta sim será a mais funesta e inaceitável globalização de todos os tempos, da qual já nos acercamos”.142 Em que pese a GUERRA DO IRAQUE tenha sido uma comprovação das tendências apontadas por Paulo Bonavides, uma vez que os interesses econômicos se revelaram as razões decisivas da invasão (nunca acharam armas químicas, nem as fortalezas subterrâneas), a CRISE DE 2008; a ASCENSÃO DA CHINA como nova superpotência, bem como a própria GLOBALIZAÇÃO DA MODERNIDADE LÍQUIDA mudaram, pelo menos aparentemente, mais uma vez, o cenário. 7.3. AS POLÍTICAS PARA A AMÉRICA LATINA (A) AS TESES DE HUNTINGTON E A SAÍDA AUTORITÁRIA (SAMUEL HUNTINGTON):143 no final dos anos 1960 e década de 1970, HUNTINGTON atribuía a crise de governabilidade aos excessos da participação popular e decorrente sobrecarga de demandas. 139 Para Giovani Clark (O genocídio..., cit. p. 37), a ‘globalização’ não passa da renovação do pacto colonial em bases pós- modernas. 140 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de estado institucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 19. 141 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do país..., cit. p. 26. 142 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do país..., cit. p. 20. 143 Cf. SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, governança e democracia: criação de capacidade governativa e relações executivo-legislativo no Brasil pós-constituinte. In: Dados. v. 40, n. 3, Rio de Janeiro, 1997. Disponível em: <www.scielo.br>, extraído em 17.07.2009, p. 4-5. 45 46 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A tese da crise de governabilidade por excesso de democracia foi reforçada pelas dificuldades de execução dos programas de estabilização, a partir dos anos 1980. Para HUNTINGTON, o funcionamento adequado dos sistemas políticos dependia do equilíbrio entre as instituições de input (sobretudo os partidos políticos) e as instituições governamentais de output (que regulam e implementam as políticas públicas). Para HUNTINGTON, quando surge uma onda de participação, segue-se um aumento da atividade governamental, acompanhado de sobrecarga no governo, falência de outputs e perda de legitimação da autoridade, com subseqüente enfraquecimento das instituições políticas. A solução de HUNTINGTON, para a sobrecarga de demandas sobre o sistema político de países em desenvolvimento, propunha o reforço da autoridade governamental (SAÍDA AUTORITÁRIA). A ênfase era colocada, não na democracia, mas na ordem antes de distribuir poder entendia ser preciso primeiro acumulá-lo. A solução de HUNTINGTON foi abraçada pelo FMI e pelo Banco Mundial como alternativa para a América Latina. Um Estado forte, com predomínio do Executivo no processo decisório e o insulamento burocrático eram as formas de controlar a participação social e garantir a eficácia e a racionalidade das políticas públicas. O lema all good things go together traduzia a idéia de que uma vez garantida a retomada do crescimento econômico com a ajuda das agências econômicas internacionais (FMI, Banco Mundial), o desenvolvimento político das instituições democráticas e a equidade social fluiriam naturalmente. (ARTHUR JOSÉ ALMEIDA DINIZ):144 “a própria natureza das reformas econômicas impede uma genuína democratização – isto é, sua implementação requer (contrariando o espírito do liberalismo anglo-saxão) invariavelmente o apoio do Exército e Estado autoritário”. O ajuste estrutural que estas instituições internacionais proclamam provoca, assim, instituições falsas e uma democracia parlamentar fictícia. (VALLES BENTO): 145 A SAÍDA AUTORITÁRIA propiciou resultados insatisfatórios, sobretudo, o efeito da estaginflação, e a consequente erosão das bases do consenso das classes sociais (que serviu de sustentáculo para o Estado do Bem Estar). (B) O BRASIL E A ESTAGINFLAÇÃO ESTAGINFLAÇÃO: uma combinação de estagnação econômica e inflação capaz de superar os índices de crescimento econômicos já baixos, corroendo as bases da economia. No Brasil, um VERDADEIRO ESTADO SOCIAL sequer chegou a ser implantado. 144 Cf. DINIZ, Arthur José Almeida. Direito internacional público em crise. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, n. 46, p. 38-53, jan../jun. 2005. 145 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 70. 46 47 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (EMERSON GABARDO):146 O que se assistiu foi uma forte intervenção estatal e a proliferação de empresas estatais, acompanhado de um crescimento econômico apenas setorial (fundado na modernização da infraestrutura). Em lugar da necessária política social de eliminação das desigualdades sociais, de distribuição de rendas e de melhoria das condições de vida de todos, o que se assistiu foi uma política assistencialista de uma Administração Pública autoritária e ineficiente. CRISE FISCAL: No Brasil e no restante da América Latina, a partir dos anos 1980, o crescente desequilíbrio fiscal, desordem das contas públicas e inflação galopante imperam. (MARIA HELENA DE CASTRO SANTOS):147 Para a solução da CRISE FISCAL, seguiram-se várias tentativas de estabilização da economia, com uma série de PLANOS a que a população foi submetida, mais ou menos heterodoxos, em uma longa sequencia de ensaios e erros. (GIOVANI CLARK):148 As ditaduras latino-americanas passadas patrocinavam políticas econômicas “suicidas”, onde cada “plano econômico” exterminava o povo e levava os países a abdicar de suas soberanias para serem defendidos pelo “Tio Sam” ou pelas “nações comunistas”. O AGRAVAMENTO DA CRISE FISCAL: A reiterada indisciplina e descontrole fiscal dos Estados latino-americanos, bem como a corrupção, agravaram a CRISE FISCAL. (VALLES BENTO):149 A partir da década de 1980, alguns fatores podem ser apontados como deflagradores do AGRAVAMENTO DA CRISE FISCAL que se abateu por sobre os Estados latino-americanos: (1) déficit público crônico e descontrolado decorrente de uma política de desenvolvimento calcada em políticas e subsídios estatais; (2) dívidas internas e externas exageradas; (3) falta de crédito dos Estados junto às agências multilaterais e organizações financeiras internacionais; (4) crise mundial do petróleo de 1978-1979. (C) O BRASIL E O REFORMISMO DE INDOLE NEOLIBERAL Com o AGRAVAMENTO DA CRISE FISCAL, os organismos internacionais financiadores das reformas dos Estados passaram a estabelecer propostas e remédios de matiz neoliberal e de inspiração político-ideológica neoconservadora (as soluções do chamado “CONSENSO DE WASHINGTON”), todos orientados para o mercado.150 Os Estados latino-americanos, pouco resistentes à pressão internacional, para obterem recursos do FMI ou do Banco Mundial, passaram a seguir rigorosamente a CARTILHA DE RECOMENDAÇÕES que condicionava a concessão de créditos e a ajuda econômica, todas tendentes a reduzir o tamanho e a participação do Estado. 146 Cf. GABARDO, Emerson. Interesse..., cit. p. 166. 147 Cf. SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade..., cit. p. 2. 148 Cf. CLARK, Giovani. A ditadura pós-moderna. In. SOUZA, Washington Peluso Albino de; CLARK, Giovani (Org.). Questões polêmicas de direito econômico. São Paulo: LTr, 2008, p. 28. 149 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 70-71. 150 Nessa mesma direção, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 72-73. 47 48 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (ARTHUR JOSÉ ALMEIDA DINIZ):151 um verdadeiro “governo paralelo”, estabelecido pelas instituições financeiras internacionais passa por cima da sociedade civil, tornando a situação do Terceiro Mundo de desespero social e de falta de perspectiva para uma população empobrecida pelo jogo imperativo das forças de mercado. INGREDIENTES usuais do PACOTE DE RECOMENDAÇÕES do FMI e BANCO MUNDIAL:152 (a) Disciplina fiscal; (b) Reforma tributária; (c) Priorização do gasto público para segmentos de maior retorno econômico; (d) Altas taxas de juros fixadas pelo mercado; (e) Liberação do câmbio; (f) Abertura ao capital internacional; (g) Políticas comerciais liberais não protecionistas; (h) Privatização de empresas estatais; (i) Desregulação da economia (em especial das relações trabalhistas); (j) Proteção da propriedade privada. (MARIA HELENA DE CASTRO SANTOS):153 Modelos de ajuste da economia dentro do MARCO NEOLIBERAL foram assim impostos, produzindo, em um mundo globalizado, agendas governamentais com pequena flexibilidade. Como afirma a Autora, “no Brasil pós-Constituinte, qualquer que seja a extração ideológica do governante, a ele se colocavam os mesmos desafios, com pequena margem de manobra no que se refere às soluções propugnadas”. As TESES NEOLIBERAIS avançaram na América Latina, sobretudo com Salinas no México (1988), Menem na Argentina (1989) e Collor no Brasil (1990).154 Entretanto, mais recentemente, Estados como a Argentina e a Venezuela abusaram das políticas públicas, na prática de um populismo tosco, que os atirou, no final da primeira década de 2000, em severas dificuldades macroeconômicas. A TEORIA NEOLIBERAL, desde meados da década de 1970, lastreou uma verdadeira desconstrução do Estado do Bem Estar. Buscando debelar a CRISE FINANCEIRO-FISCAL, a TEORIA NEOLIBERAL amparou propostas de: (a) Redução do tamanho do setor público; (b) Cortes de gastos sociais; (c) Retomada do controle orçamentário; (d) Desregulamentação e abertura ao capital internacional; (e) Estabilidade monetária; (f) Reforma tributária para desonerar o capital; 151 CF. DINIZ, Arthur José Almeida. Direito internacional..., cit. p.43. 152 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 73. 153 Como registra, em 1997, SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade..., cit. p. 2-3. 154 Nesse sentido, vale conferir a análise bem posta por BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 44-46. 48 49 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (g) Privatização e Desestatização. (D) A AMÉRICA LATINA E O BALANÇO NEGATIVO DAS IDEIAS NEOLIBERAIS O BALANÇO DAS CONSEQUÊNCIAS das IDEIAS NEOLIBERAIS não pode ser considerado positivo: (a) Se as políticas neoliberais conseguiram, com algum êxito, o CONTROLE DA INFLAÇÃO, não foram capazes de dar sustentação a uma significativa RETOMADA DO CRESCIMENTO; (b) O INCREMENTO DOS JUROS não fez com que os investimentos aumentassem, mas gerou um CAPITAL ESPECULATIVO e IMPRODUTIVO; (c) Os “ajustes estruturais” trouxeram RECESSÃO ECONÔMICA e DESEMPREGO, o que agravou os GASTOS com a previdência social, aprofundou a MISÉRIA e a DESIGUALDADE SOCIAL, SOBRECARREGANDO ainda mais o ESTADO com gastos de assistência social e saúde; (d) As vitórias de setores neoconservadores nas eleições (Thatcher, Reagan, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso), aliadas à pressão dos organismos internacionais, reforçada pelo aumento antidemocrático sensível da CAPACIDADE LEGISLATIVA DO EXECUTIVO (e exacerbação de sua predominância com relação ao Legislativo e Judiciário), com uma concentração significativa de competências, favoreceram o DESMANTELAMENTO DO APARATO ADMINISTRATIVO e DA BUROCRACIA PÚBLICA;155 (e) O COLAPSO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS de educação e infraestrutura, nos países menos desenvolvidos, acabou por minar as CONDIÇÕES DE REPRODUÇÃO DO PRÓPRIO CAPITAL, a partir do momento que sequer a mão de obra resultante pode ser capaz de absorver os avanços tecnológicos; (f) A MISÉRIA e a EXCLUSÃO SOCIAL se firmaram como intransponíveis obstáculos ao crescimento e à modernização econômica. As décadas de 1970 e 1980 podem ser consideradas como a ERA DOS GRAVES CHOQUES ECONÔMICOS e das políticas monetárias restritivas, em virtude das taxas de inflação exageradas, que geraram desemprego elevado e queda acentuada da atividade econômica. (E) OS AJUSTES DO PLANO BRADY A CRISE DA DÍVIDA EXTERNA (década de 1980) ameaçava a solvência dos países devedores e dos próprios bancos credores. PLANO BRADY: propunha a renegociação das dívidas, reduzindo os pagamentos a valores mais compatíveis com a capacidade dos Estados. Os ajustes propostos mais se orientaram pelo interesse dos bancos do que pelo interesse dos Estados devedores. (VALLES BENTO):156 As medidas amargas recomendadas para reduzir os desequilíbrios fiscais deixaram sem solução os severos problemas socioeconômicos dos países da América Latina e dificultaram a possibilidade de se retomar a capacidade de investimento e crescimento econômico. (F) AS REFORMAS ESTRUTURAIS NEOCONSERVADORAS 155 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 73. 156 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 74-75. 49 50 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Na América Latina, a partir da década de 1980, algumas iniciativas pontuais de reconstrução da esfera pública puderam ser observadas. As iniciativas tomaram por base REFORMAS ESTRUTURAIS NEOCONSERVADORAS que visavam, segundo lógica toda própria, aprimorar a capacidade organizacional e gerencial do Estado, buscando aprimorar a eficiência do aparato público. A DESCENTRALIZAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO (principal bandeira de modernização administrativa) envolveu programas de privatização de empresas estatais produtoras de bens e serviços, bem como parcerias público-privadas. (G) A DÉCADA DE 1990 E ANOS DOURADOS NO NORTE (PAUL KRUGMAN): Se, na América Latina, nos anos seguintes, a economia ainda derrapava, nos Estados Unidos, a fase seguinte (“ERA GREENSPAN”) foi “celestial”. Nas palavras do autor: “Os empregos eram relativamente abundantes; em fins da década de 1990 e, de novo, em meados da seguinte, a taxa de desemprego caiu para níveis inéditos desde a década de 1960. E, para os investidores financeiros, os ANOS GREENSPAN foram celestiais: o Dow disparou para mais de 10.000 e os preços das ações subiram em média a taxa superior a 10% ao ano”.157 (PAUL KRUGMAN):158 Os bons tempos da economia da década de 1990 apontavam, pelo menos nos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, para a vitória das doutrinas neoliberais mais conservadoras, entretanto, o “excesso de empolgação” e a “exuberância irracional” não prosperaram. Mesmo no HEMISFÉRIO NORTE, o cenário dourado não se manteve. Nos PAÍSES LATINO-AMERICANOS, os índices de desenvolvimento econômico da segunda metade da década de 1990, mais uma vez, foram baixos, demonstrando a ineficácia das políticas neoliberais conservadoras: Os níveis salariais erodiram; a degradação ambiental aumentou; o desemprego prosperou; faixas significativas da população foram atiradas abaixo da linha de pobreza; a prestação de direitos sociais aumentou seu déficit. (ERIC HOBSBAWN):159 No final da primeira década do Século XXI, porém, a dependência econômica ainda é um fato, mas politicamente a América Latina é cada vez mais livre. Washington jamais voltará a exercer a influência de antes, tampouco a apoiar golpes ou ditaduras como fez no passado. O que está acontecendo em Honduras é um sinal disso. Para Hobsbawn, o Brasil tem papel central nesse processo, uma vez que o México se transforma cada vez mais em apêndice dos EUA. 7.4. A CRISE DE 2008 E A ERA DA RECESSÃO 157 Cf. KRUGMAN. Paul. A crise de 2008 e a economia da depressão. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 146. 158 Cf. KRUGMAN. Paul. A crise..., cit. p. 146-149. 159 Cf. HOBSBAWN, Eric. Entrevista concedida à jornalista Sylvia Colombo publicada no caderno "Ilustrada" da Folha de São Paulo, 15 set. 2009. 50 51 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (A) OS SINTOMAS DA CRISE NA ECONOMIA ASIÁTICA No fim da década de 1990, um grupo de ECONOMIAS ASIÁTICAS (que geram cerca de um quarto da produção mundial e abrigam dois terços de um bilhão de pessoas) passou por severa queda na atividade econômica. (PAUL KRUGMAN):160 O acontecimento foi capaz de gerar “sinistras lembranças da Grande Depressão” que evocavam “uma espécie de ensaio para a crise global em andamento”. (PAULO KRUGMAN):161 Estes foram os primeiros sintomas da GRAVE CRISE FINANCEIRA GLOBAL que, em 2008, assolou o mundo, com corridas bancárias maciças, deflagradas, agora, por simples cliques de mouses. (B) O PARALLEL BANKING SYSTEM E A BOLHA HABITACIONAL NOS EUA Na década de 1990, a expansão do SISTEMA BANCÁRIO PARALELO (sem qualquer aumento de regulamentação), bem como novos fluxos de capital internacional, dentre outras razões, prepararam o cenário para crises cambiais devastadoras. Os negócios fora do sistema regulatório (PARALLEL BANKING SYSTEM), em especial no Século XXI, se mostraram cada vez mais atrativos nos Estados Unidos, e o valor de capital neles aplicados agigantou-se.162 A ideologia da Administração George W. Bush, avessa à regulamentação, ignorou os sinais, e a crise, enfim, nessa confluência de fatores eclodiu. (PAUL KRUGMAN):163 A BOLHA HABITACIONAL gerada pela elevação ilusória e exagerada do preço dos imóveis, nos Estados Unidos da América, especialmente a partir de 2004, foi um dos primeiros fatores disseminadores da crise de 2008. A inovação financeira da securitização de empréstimos hipotecários subprime, com cotas de participação, possibilitou a captação de recursos em grande escala. Enquanto o preço das moradias se manteve alto e a inadimplência dos compradores era baixa, os títulos lastreados em recebíveis imobiliários geravam altos lucros. A “GRANDE BOLHA HABITACIONAL” que se formava não foi capaz de impressionar Alan Greespan ou mesmo Ben Bernanke (chairman do FED norte-americano). (PAUL KRUGMAN):164 Com a acentuada queda nos preços dos imóveis, em especial a partir de 2006, os mutuários perderam a capacidade de renegociar os empréstimos ou de vender a casa para liquidar a dívida. A execução de hipotecas sempre gera severos prejuízos para os credores e atira para baixo a lucratividade dos investimentos. 160 Cf. KRUGMAN. Paul. A crise..., cit. p. 3-4, 5. 161 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 200. 162 Como relata Paul Krugman (A crise..., cit. p. 169), no começo de 2007, os novos instrumentos exóticos perfaziam, em conjunto, US$ 2,2 trilhões; os ativos dos fundos de hedge chegavam a cerca de US$ 1,8 trilhão; os balanços patrimoniais combinados dos cinco grandes bancos de investimentos totalizavam US$4 trilhões. 163 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 145-201. 164 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 177-178. 51 52 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A retração da demanda e o fechamento das linhas de crédito agravaram ainda mais a queda do mercado habitacional.165 O GOVERNO FEDERAL NORTE-AMERICANO, em setembro de 2008, assumiu o controle das instituições FANNIE MAE e da FREDDIE MAC. (PAUL KRUGMAN):166 O resultado final continua socialmente alarmante, a partir o momento que o MERCADO IMOBILIÁRIO, após o abalo da crise, se retraiu substancialmente, fechando a possibilidade de aquisição de moradias para uma classe ampla de compradores potenciais que delas carecem. (PAUL KRUGMAN):167 “A queda no preço das moradias exerce um efeito negativo direto sobre o emprego, em consequência do declínio no nível de atividade da construção civil, e tende a reduzir os gastos de consumo, pois os consumidores se sentem mais pobres e perdem acesso a empréstimos garantidos pela casa própria”. “Esses impactos negativos geram efeito multiplicador, na medida em que a diminuição no nível de emprego acarreta contenção ainda maior nos gastos”. A economia norte-americana, a partir da explosão da bolha habitacional, foi atirada em RECESSÃO AGUDA: o mercado de trabalho entrou em deterioração; a taxa de desemprego subiu acentuadamente; a demanda despencou. O círculo vicioso de alavancagem vem sendo capaz de sinalizar para uma possível “SEGUNDA GRANDE DEPRESSÃO”. (PAUL KRUGMAN):168 “[...], as perdas decorreram do colapso do valor de ativos financeiros arriscados, não do colapso do valor da moeda nacional, como na Indonésia ou na Argentina, mas a história é essencialmente a mesma. E a consequência desse processo auto-reforçador foi, com efeito, uma corrida bancária maciça que provocou o fenecimento do sistema bancário paralelo, muito a semelhança do que ocorreu com o sistema bancário convencional, no início da década de 1930”. (C) A CRISE DE 2008 E A FALÊNCIA DO MODELO NEOLIBERAL A crise de 2008, em especial em virtude da falta de regulamentação do sistema financeiro norte- americano, serviu para evidenciar o fracasso da ideologia neoliberal, deixando patente que o Estado precisa fazer necessárias, incisivas e agudas intervenções. Exige-se um novo regime regulatório que ultrapasse as barreiras do Estado nacional. O êxito e o desenvolvimento industrial dos países asiáticos confrontam fundamentalmente a TEORIA NEOLIBERAL, demonstrando que a intervenção estatal pode estrategicamente favorecer o desenvolvimento econômico, no contexto de uma economia globalizada. Um exemplo marcante de intervenção positiva do Estado pode ser colhido da experiência do JAPÃO que, ainda em 1953 (até 1973), experimentou um processo de transformação econômica formidável, vindo a se tornar a segunda maior economia do mundo. 165 Nesse sentido, Paul Krugman (A crise..., cit. p. 177-178) relata que o estouro da bolha habitacional destruiu riquezas no valor de pelo menos US$ 8 trilhões. 166 Cf. KRUGMAN. Paul. A crise..., cit. p. 181-183. 167 Cf. KRUGMAN. Paul. A crise..., cit. p. 188. 168 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 179. 52 53 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (PAUL KRUGMAN):169 Um dos fatores da superioridade do sistema japonês de então era exatamente a intervenção do governo no direcionamento da economia, dando a orientação estratégica. O setor privado era direcionado para indústrias estratégicas que atuavam como “locomotivas de crescimento”, que contavam com um período inicial de proteção contra a competição externa. Na sequência, em um esforço exportador, as empresas ignoravam a lucratividade em prol da conquista do mercado. Garantido o domínio do setor, os esforços se direcionavam para outro setor estratégico. (VALLES BENTO):170 Já não se pode mais falar em “ESTADO MÍNIMO”, mas o desenho e o tamanho do Estado são condicionados por uma variedade de circunstâncias, sendo clara a necessidade de intervenção estatal na economia para corrigir externalidades do mercado e potencializar sua eficiência. (D) A GLOBALIZAÇÃO E A MUNDIALIZAÇÃO DA CRISE A acelerada evolução da tecnologia; a redução dos custos tanto dos transportes, como da comunicação; os meios informatizados recentes de transmissão de dados; a internet e as possibilidades que ela trouxe de interligação acelerada e on line do mundo fizeram a INTEGRAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO DA ECONOMIA MUNDIAL. (PAUL KRUGMAN):171 Em regra, investidores de um país mantêm parcela considerável de suas riquezas em investimentos no exterior; da mesma forma, investidores de diversos países mantêm investimentos consideráveis naquele. Nesse compasso, quando as coisas dão errado em um país (mesmo nos Estados Unidos), esses investimentos transfronteiriços atuam como “MECANISMO DE TRANSMISSÃO”. Assim, uma crise que eclode no mercado habitacional dos Estados Unidos, por exemplo, desencadeia sucessivas outras no exterior, e vice versa. (PAUL KRUGMAN):172 O mundo vem cambaleando de crise em crise, todas elas envolvendo o problema crucial de gerar demanda suficiente: Japão, de princípios da década de 1990 em diante; México, em 1995; México, Tailândia, Malásia, Indonésia e Coréia, em 1997; Argentina, em 2002 e 2012; e quase todos, a partir de 2008. (PAULO KRUGMAN):173 Sucessivos países experimentaram recessão que, ao menos temporariamente, desfizeram anos de progresso econômico, e puderam constatar que “as reações das políticas públicas convencionais não parecem surtir qualquer efeito”. (E) A GLOBALIZAÇÃO E A INCAPACIDADE DAS ECONOMIAS NACIONAIS 169 Cf. KRUGMAN. Paul. A crise..., cit. p. 59-60. 170 Nesse mesmo sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 76-77. 171 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 186. 172 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 194. 173 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 194. 53 54 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (BOAVENTURA DOS SANTOS):174 A GLOBALIZAÇÃO reduziu substancialmente a condição dos ESTADOS NACIONAIS de controlar, regular ou mesmo planificar suas economias. Nesse cenário, para o Autor, a legitimidade dos Estados passa a depender cada vez menos de sua capacidade gerencial, planificadora e organizatória, e, cada vez mais, os ESTADOS NACIONAIS ficam a mercê do CAPITAL INTERNACIONAL DE HORIZONTE PLANETÁRIO e do poder que dispuserem de captação de investimentos. Fica difícil, assim, atribuir-se as causas do crescimento econômico à atuação de um determinado governo ou a uma conjuntura econômica internacional qualquer. Sequer os ESTADOS NACIONAIS são por vezes capazes de resistir às jogadas e especulações do moderno capitalismo “ selvagem ”, em especial pelos efeitos reflexos que as “CORRIDAS AOS BANCOS”, “OPERAÇÕES DE MANADA” ou movimentos similares podem causar às economias nacionais. (PAUL KRUGMAN):175 Basta verificar o que a operação financeira levada a cabo por apenas um grupo capitaneado pelo mega-investidor George Soros foi capaz de fazer com a libra inglesa, em agosto de 1990, em um exitoso ataque à moeda, que resultou em agigantada queda, com severos prejuízos para a nação e lucros estratosféricos para um grupo de especuladores. Da mesma forma, basta verificar as dificuldades do governo de Hong Kong, em 1998, de resistir à similar investida. O ESTADO NACIONAL foi, por muitas décadas, mesmo com os avanços do capitalismo, a única organização capaz de conter os excessos do mercado, entretanto, na atual economia globalizada, sequer os Estados nacionais, muitas vezes, têm a possibilidade de zelar pelo mito da felicidade suprema de seus cidadãos. Muitas vezes, os ESTADOS NACIONAIS modernos não conseguem dar respostas suficientes para as necessidades sociais de seus administrados,176 como acontece nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Outras vezes, o poderio regulador dos ESTADOS NACIONAIS isolados não é suficiente para conter o abuso por parte de mega-investidores ou o interesse de grandes conglomerados econômicos que, ademais, em outras situações, exercem poderosa influência sobre a esfera governamental ou sobre o Legislativo e Judiciário. Pode-se verificar, na atualidade, uma efetiva “PERDA DE TRAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS”. As políticas públicas dos ESTADOS NACIONAIS isolados dão sinais de impotência para conter crises como a que se verificou em 2008 e, da mesma forma, são débeis perante “efeitos de ressonância” e “operações de manada”. (GIOVANI CLARK):177 Apesar do poderio do capital privado na economia globalizada, porém, existe a possibilidade da formulação de “políticas econômicas endógenas” por parte dos ESTADOS NACIONAIS, distintas das engendradas pelo poder econômico internacional, passíveis de garantir uma adequação aos comandos das Constituições 174 Nesse sentido, SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice. cit. p. 87-89. 175 Nesse sentido, vale conferir KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 123-143. 176 Como avalia Giovani Clark [O genocídio econômico. In. SOUZA, Washington Peluso Albino de; CLARK, Giovani (Org.). Questões polêmicas de direito econômico. São Paulo: LTr, 2008, p. 38], o Brasil gasta, em média 4% do PIB com a educação, enquanto o ideal seria aproximadamente 10%. Da mesma forma, possui 62 milhões de analfabetos com idade acima de 10 anos, além de 18 milhões de adultos que não sabem ler e escrever (isso sem incluir os analfabetos tecnológicos). 177 Cf. CLARK, Giovani. Política econômica e Estado. In. SOUZA, Washington Peluso Albino de; CLARK, Giovani (Org.). Questões polêmicas de direito econômico. São Paulo: LTr, 2008, p. 74. 54 55 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Econômicas e às necessidades de atuação, com vistas a suprir as carências socioeconômicas de seus povos. Uma efetiva REGULAMENTAÇÃO DO MERCADO GLOBALIZADO exige a articulação entre Estados nacionais, de forma a conter os ímpetos abusivos do capitalismo. (GIOVANI CLARK):178 As políticas econômicas estatais não podem ser mais analisadas isoladamente, fora de um contexto internacional, em virtude da influência crescente do poder econômico transnacional dos Estados desenvolvidos (e comunitários) e dos entes internacionais (OMC, FMI, Banco Mundial). Da mesma forma, não se pode desprezar a interdependência das políticas estatais com as políticas econômicas do capital privado nacional. (VALLES BENTO):179 Na ERA DA GLOBALIZAÇÃO, o ESTADO NACIONAL deve ser reorganizado para atuar sobre a eficiência econômica, em um cenário de “competitividade sistêmica”, alinhando ESTADO e MERCADO funcionalmente, buscando a otimização das condições de competitividade do país. Apenas com a intervenção decisiva dos ESTADOS NACIONAIS reorganizados e reforçados é possível propiciar uma condição de vida digna para a pessoa humana. (F) A QUESTÃO EUROPÉIA (FLÁVIO CONSTANTINO):180 A UNIÃO EUROPEIA, nascida para se contrapor ao poderio norte- americano, mostra que o Estado pode não funcionar como adequado promotor do desenvolvimento, mesmo quando dispõe de capital físico e humano elevado e de qualidade. Grave crise fiscal e de desemprego, já no início de 2010, vêm sendo enfrentadas por países como Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha. Estes Estados, tomados recentemente como referência para o crescimento “pós-euro”, agora, enfrentam déficits crescentes e elevadas dívidas públicas em razão de políticas econômicas irresponsáveis que deixaram a zona do euro em situação delicada.181 (PAULO NOGUEIRA BATISTA JÚNIOR): A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL, a partir de 2008, em especial nos países desenvolvidos europeus, vem provocando a deterioração das economias, em termos de déficit público e nível de endividamento, embora nos países de mercado emergente (COMO O Brasil) o quadro pareça mais favorável.182 178 Cf. CLARK, Giovani. Política..., cit. p. 69. 179 Nesse sentido, BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 78. 180 Nesse sentido, CONSTANTINO, Flávio. O reinício..., cit. p. 9. 181 Nesse sentido, CONSTANTINO, Flávio. O reinício..., cit. p. 9. 182 Cf. BATISTA JÚNIOR, Paulo Nogueira. Da crise financeira à crise fiscal. In: Folha de São Paulo de 18.02.2010. Disponível em <www.clippingmp.planejamento.gov.br>. Extraído em 19.03.2010. Como aponta o economista, Diretor do FMI, “a Grécia parece ser apenas a ponta de um iceberg. Os números são medonhos. Nos Estados Unidos, o déficit fiscal alcançou quase 10% do PIB em 2009. No Reino Unido, mais de 14%. Na Espanha, mais de 11%. Na França, quase 8% do PIB. A dívida pública vem aumentando rapidamente nas economias desenvolvidas. Nos cinco países atingidos por crises financeiras sistêmicas (Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Irlanda e Islândia), a dívida pública aumentou em média cerca de 75% em termos reais de 2007 a 2009. Menos comentados são os dados de dívida externa bruta (dívida pública e privada colocada no exterior) dos países desenvolvidos. Estudo recente de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, que toma por base estatísticas do FMI e do Banco Mundial, mostra que a dívida externa das economias avançadas alcança, em média, nada menos que 200% do PIB. No caso da Europa desenvolvida, a razão dívida externa/PIB chega a 266%! Na América Latina, notória por sua propensão a crises de endividamento externo, a razão dívida externa bruta/PIB está por volta de 50%. Parte considerável da dívida externa dos europeus é dentro da Europa, o que pode mitigar o problema. Mas não há 55 56 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A situação fiscal anterior à CRISE já não era favorável em razão das políticas prestacionais dos Estados europeus de desiderato social, em especial em decorrência do impacto do envelhecimento da população sobre os gastos públicos com previdência e saúde. (PAULO NOGUEIRA BATISTA JÚNIOR):183 Com a deflagração da CRISE (2007-2009), as CONTAS GOVERNAMENTAIS foram fortemente afetadas pelas medidas de socorro ao sistema financeiro, bem como pelos programas de estímulo fiscal e pela própria recessão, deixando os mercados cada vez mais inquietos quanto à sustentabilidade das contas públicas. (PAULO NOGUEIRA BATISTA JÚNIOR):184 A recuperação da atividade econômica europeia ainda está longe de ser consolidada. As dúvidas crescentes quanto à sustentabilidade e confiabilidade das contas públicas devem forçar os governos a iniciar o AJUSTAMENTO FISCAL antes que a recuperação tenha se firmado. O dilema atual está em que os cortes de gastos ou aumentos de impostos podem reforçar a confiança na solvência do governo, mas podem provocar crise social e uma recaída na recessão. (G) A ERA DA RECESSÃO E O TRAÇADO DE UM NOVO PACTO SOCIAL (?) As INICIATIVAS GOVERNAMENTAIS DE CONTENÇÃO DA CRISE e todo caudaloso montante de recursos investidos, nos EUA e Europa, não sinalizam para uma lógica mais socializante, que favoreça condições mais dignas de vida para o indivíduo. O apoio financeiro dado pelo Estado não se fez seguir de exigências de cumprimento da “função social da empresa” por parte das instituições beneficiadas pelo dinheiro dos contribuintes. O caráter universalista das prestações do ESTADO DO BEM ESTAR não parece contar com fôlego suficiente para prosperar. Entretanto, sob pena de ofensa aos princípios basilares das Constituições ocidentais, o ESTADO não pode abrir mão da prestação de serviços essenciais ao atendimento dos necessitados hipossuficientes. Não parece possível o retorno ao anterior modelo de ESTADO PROVIDÊNCIA, entretanto, em homenagem ao PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA e em respeito ao DESIDERATO SOCIAL (como o marcado na CRFB/88), o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO não pode abrir mão de políticas compensatórias com relação aos excluídos. Pelo menos como limite mínimo intransponível, no Estado da Era da Recessão, o PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA exige que a faixa dos MÍNIMOS EXISTENCIAIS não seja transposta. (VALLES BENTO):185 “Convém que os programas sociais sejam residuais, de auxílio apenas àqueles comprovadamente carentes”. dúvida de que a fragilidade das contas europeias aumentou bastante nos anos recentes.” 183 Cf. BATISTA JÚNIOR, Paulo Nogueira. Da crise financeira..., cit. s/p. 184 Nesse sentido, BATISTA JÚNIOR, Paulo Nogueira. Da crise financeira..., cit. s/p. 185 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 49-52. 56 57 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Para o Autor, pelo menos enquanto perdurar esse cenário de aguda crise, o caráter universalista dos serviços sociais, no mínimo, por exigências da CRFB/88, deve ser substituído por políticas de combate à miséria e à indigência, em serviços seletivos de caráter mais assistencial. Seja qual for o modelo político ou econômico, toda discussão deve se dar em meio a um CONFRONTO INARREDÁVEL: de um lado, uma massa significativa de desempregados e hipossuficientes que clama por condição de vida diga e a COBRANÇA POPULAR para que se aprimore e melhore a prestação dos serviços públicos; de outro, o desejo do MERCADO de ver a carga tributária minimizada e certa tentativa de resguardo dos fundamentos do liberalismo. O ESTADO PÓS-PROVIDÊNCIA, porém, não pode traduzir um regresso ao Estado Liberal, pois os administrados não mais admitem abrir mão das garantias estatais de patamares mínimos de satisfação das necessidades públicas mediante a atuação prestacional da Administração. De um lado, reforça-se a necessidade de atendimento de patamares mínimos de bem-estar econômico e social a uma população pobre e necessitada, e, de outro, depara-se com as fronteiras impostas pela carga tributária tolerável, em economias nacionais de baixa capacidade contributiva global, que não crescem em ritmo mais acelerado do que a miséria. Nos países mais pobres, o grave abismo existente entre as camadas abastadas e as massas que clamam por condições de vida mais dignas vem se abrindo, colocando em causa a PAZ SOCIAL. Os sintomas marcantes se fazem observar na crescente violência urbana e no quadro de miséria, responsável pela “FAVELIZAÇÃO” de cerca de metade dos habitantes das cidades brasileiras, que representam, já em 2008, cerca de 80% da população. A CRISE DO NOVO MILÊNIO revela que a desatenção por parte dos Estados nacionais para com as massas de excluídos pode redundar em MOVIMENTOS FUNDAMENTALISTAS, como no Irã; em DEMOCRACIAS POPULISTAS e antiliberais, como na Venezuela, etc. (CHANTAL MOUFFE):186 Se a dimensão política se restringir ao domínio da legalidade, existe o risco de os excluídos se juntarem a movimentos fundamentalistas ou serem atraídos por formas de democracia populista ou antiliberal. Os CLAMORES DOS HIPOSSUFICIENTES e o retrocesso de direitos sociais, mais cedo ou mais tarde, ecoam nas urnas, nas ruas, ou nas revoluções. A TROCA DE COMANDO EM DIVERSAS DEMOCRACIAS EUROPEIAS (na primeira metade de 2012: perda das eleições locais pelos conservadores de David Cameron, na Grã-Bretanha; derrota de Sarkozy na França e demais reações contra governos europeus, seja de direita, seja de esquerda, que apoiaram os PLANOS DE AUSTERIDADE na Europa), bem como os protestos na Grécia ou na França demonstra que os reclamos sociais, mesmo na Era da Recessão, podem também colocar em risco a paz social. No mundo globalizado das facilidades da comunicação, no qual as redes de computadores atingem cada vez mais indivíduos, o povo dos Estados nacionais já não aceita abrir mão de patamares mínimos de satisfação de suas necessidades vitais. Na Era da Recessão, porém, as economias capitalistas em crise apontam para possibilidades limitadas de atendimento das necessidades sociais (por pressuposto, ilimitadas), tendo em conta os limites toleráveis de carga tributária, que alinhava, em traços mais ou menos marcados, os contornos 186 Cf. MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 17. 57 58 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG de um PACTO ENTRE SOCIEDADE CIVIL , ESFERA GOVERNAMENTAL E MERCADO , dotado de certa (pouca) flexibilidade. No modelo adequado para o Brasil das desigualdades sociais, estes contornos não são e não podem ser os adotados para países mais desenvolvidos, como Alemanha ou Estados Unidos da América, entretanto, os países em desenvolvimento não podem se entregar a POLÍTICAS PREDOMINANTEMENTE ASSISTENCIALISTAS, como as inexoravelmente necessárias em nações mais pobres da África. O PACTO SOCIAL firmado nas democracias ocidentais depende, substancialmente, de fatos e situações concretas que apenas a realidade pode colocar, impossíveis de serem alterados imediatamente por determinações normativas, como o padrão de desigualdade social, ou o estágio de desenvolvimento da economia nacional, mas passíveis de serem gradativamente modificados por diretrizes constitucionais. Por isso, os dilemas atuais exigem que se apreenda a normatividade e a facticidade, de modo a se perceber a tensão estruturante do Direito moderno. Se, por um lado, a CRISE DE 2008 impõe novos modelos regulatórios e novos formatos de Estado, por outro, a sociedade globalizada da Era da Recessão reclama políticas prestacionais eficazes e exige o atendimento do mínimo existencial para uma vida digna. Tornou-se crucial, para tanto, lançar mão das mais diversificadas estratégias para a maximização do atendimento das necessidades sociais, novas ou ortodoxas (prestação direta de serviços públicos, parcerias público-privadas, terceirizações, governança social). O severo problema é que o dinheiro público, pelo menos nas iniciativas mais recentes, que poderia ser investido em prol dos necessitados, vem sendo usado para sanar problemas estruturais do próprio mercado, isto é, pagam a conta da crise, mais uma vez, os mais carentes, os miseráveis, que se vêm privados, gradativamente, das prestações mais elementares por parte dos Estados. (H) A TENDÊNCIA INTERVENCIONISTA DOS ESTADOS DA ERA DA RECESSÃO E A DEBILIDADE DOS REMÉDIOS MAIS ORTODOXOS (PAUL SINGER):187 A ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO depende do momento histórico, uma vez que resulta do acúmulo de experiências de desenvolvimento e das instituições econômicas, sociais e políticas vigentes. A ECONOMIA DE MERCADO e o ESTADO são simbioticamente interdependentes. (GIOVANI CLARK): 188 Através dos tempos, em razão dos mais diversos fundamentos, o ESTADO ora agrava a intervenção no domínio econômico, como no período das políticas econômicas mercantilistas patrocinadas pelos Estados absolutistas do Século XVII, ora restringe sua atuação, como no Estado Liberal do Século XIX. (GIOVANI CLARK):189 A intervenção do Estado brasileiro no domínio econômico sempre perdurou através dos tempos, independentemente de possuirmos uma economia eminentemente agrícola ou industrial. 187 Nesse sentido, SINGER, Paul. Desenvolvimento: significado e estratégia - Texto para discussão. Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Maio/2004. Extraído do site: <www.mte.gov.br/geral/publicacoes>. Consultado em 29 de outubro de 2010. 188 Cf. CLARK, Giovani. Política econômica..., cit. p. 75. 189 Cf. CLARK, Giovani. Política econômica..., cit. p. 77. 58 59 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O INTERVENCIONISMO BRASILEIRO, infelizmente, tem, em suas raízes históricas, a supremacia dos interesses privados sobre os sociais e os públicos. O Século XX assistiu o CONTROLE MACROECONÔMICO DAS ECONOMIAS NACIONAIS pelos governos proporcionar, por um período alongado, desenvolvimento, pleno emprego e avanço social, entretanto, a inflação, o déficit público e outros problemas fizeram com que o modelo fosse abandonado. Um passado mais recente viu o crescimento desacelerar, as crises financeiras se multiplicarem, o desemprego em massa ressurgir em muitos países e diversos avanços sociais serem eliminados. A partir da crise de 2008 , as políticas econômicas estatais já sinalizam certa TENDÊNCIA DE INTERVENÇÃO DOS ESTADOS, que, nos últimos anos, vêm injetando grande soma de recursos públicos na economia. Por outro giro, são patentes os sinais de retração nos gastos estatais com a prestação de serviços públicos. Na Era da Recessão, o receituário macroeconômico dos Estados, como antes, adota tendencialmente os mesmos REMÉDIOS MAIS ORTODOXOS (como a taxa de juros manejada à luz das necessidades de refrear ou expandir a economia). A possibilidade de recessão, desemprego e miséria a ser gerada continuam vistos como “detalhes aceitáveis” (odiosos) perante as necessidades da economia nacional. As limitações dos REMÉDIOS MAIS ORTODOXOS vêm provocando (mesmo nos países mais desenvolvidos), ao retorno do desemprego em massa e de longa duração, combinado com um contínuo desgaste no quadro dos direitos sociais. Esse contexto vem acarretando crises sociais em muitos países, bem como ondas de protestos, como se pode verificar na Europa ou mesmo nos EUA (“indignados”). Na América Latina, a pressão do capital financeiro tem obrigado os governos a negar emprego, educação, saúde e outros serviços sociais à população, impondo um sofrimento além do suportável aos hipossuficientes. Não é a toa que propostas de modelos alternativos de governo, muitas vezes de cores populistas e de índole pretensamente socialista vêm sendo moldados na América Latina, como na Venezuela e Bolívia, ou mesmo na Argentina. As limitadas possibilidades das prescrições neoliberais além de traduzir retrocessos sociais, já colocam em causa a paz social, além de corroer a estabilidade dos governos. Os eleitores não tendem a manter ininterruptamente representantes políticos sempre propensos a tomar medidas recessivas. Na ERA DA RECESSÃO, a tendência não é a adoção de modelos prestacionais, mas de POLÍTICAS DE AJUSTAMENTOS FISCAIS (do receituário mais ortodoxo). Sinais apontam para uma atuação estatal mais incisiva em termos de poder regulamentar e exercício do poder de polícia, bem como tudo parece indicar que as políticas de ajustamentos devem tender a reduzir o papel prestacional do Estado (pelo menos nos anos que se avizinham). 59 60 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (PAUL SINGER):190 Se, por um lado, a Europa explode em protestos e a “Zona do euro” vem adotando uma política econômica recessiva e de contenção, por outro lado, China , Índia , Malásia e Taiwan continuam a crescer e todos aplicam políticas do receituário intervencionista. (I) A SAÍDA KEYNESIANA DE CORES MAIS DEMOCRÁTICAS (ERIC HOBSBAWN):191 para o historiador marxista, “a queda do Muro foi o fim de uma era. Não só para a Europa do Leste, mas para o mundo inteiro. O capitalismo chegou a seu limite e a crise econômica mundial indica claramente o fim de um ciclo." O historiador marxista considera que o mundo pós-Guerra Fria ainda não fez a necessária autocrítica. A Era da Recessão atual já assiste o confronto, em muitos países, de forças favoráveis e contrárias ao KEYNESIANISMO. (PAUL KRUGMAN):192 A solução para a PROSTRAÇÃO ECONÔMICA MUNDIAL, em uma ERA DE ECONOMIA DE RECESSÃO, seria mesmo “recorrer aos bons estímulos fiscais, no velho estilo keynesiano”. Nas palavras de KRUGMAN:193 “O próximo plano deve concentrar-se em sustentar e em expandir as DESPESAS DO GOVERNO – sustentar, por meio de ajuda aos governos estaduais e locais, expandir, por meio de gastos em rodovias, em pontes e em outras obras de infraestrutura. [...] Desde que os gastos sejam efetuados com razoável rapidez, seus efeitos se manifestarão em tempo mais que suficiente para ajudar – com duas grandes vantagens em relação às desonerações tributárias. De um lado, o dinheiro efetivamente seria gasto; de outro, algo de valor (por exemplo, pontes que não caem) seria construído.” As POLÍTICAS KEYNESIANAS não podem mais assumir o caráter autoritário que exibiam no Século XX, quando tinham de ser decididas em segredo, para que não fossem usadas por especuladores do mercado financeiro. A necessidade de instituir uma democracia participativa e as necessidades de desconcentração do capital exigem a DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA ECONÔMICA e o CONTROLE DO MERCADO FINANCEIRO, de alguma forma, PELA SOCIEDADE. (PAUL SINGER):194 A MACROECONOMIA DE MOLDES KEYNESIANOS requer outro estilo e outro conteúdo. (PAUL SINGER):195 O modelo de desenvolvimento centralmente planejado, hermeticamente conduzido pela tecnoburocracia (praticado do início dos anos 1930 até o final dos anos 1980), 190 Cf. SINGER, Paul. Desenvolvimento: significado..., cit. s/p. 191 Cf. HOBSBAWN, Eric. Entrevista concedida à jornalista Sylvia Colombo publicada no caderno "Ilustrada" da Folha de São Paulo, 15 set. 2009. 192 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 189, 197. 193 Cf. KRUGMAN, Paul. A crise..., cit. p. 198. 194 Nesse sentido, SINGER, Paul. Desenvolvimento: significado..., cit. s/p. 195 Nesse sentido, SINGER, Paul. Desenvolvimento: significado..., cit. s/p. Para o autor, o desenvolvimento exige certa descentralização das decisões, tanto de produção como de consumo, portanto, reclama a promoção da liberdade de iniciativa na produção, distribuição e consumo de indivíduos, famílias, associações unificadas em empreendimentos. 60 61 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG não se sintoniza com os ideais democráticos, da mesma forma, não favorece o desenvolvimento de novas forças produtivas. (PAUL SINGER):196 Com a queda das ECONOMIAS PLANEJADAS da Europa e seu enfraquecimento na Ásia (China, Vietnam), diversos países já sinalizam para uma GUINADA DEMOCRÁTICA e/ou assumem instituições democráticas (que funcionam, na realidade, em níveis muito diferentes de autenticidade). A grande maioria das nações da Era da Recessão, ou pretende se tornar, ou se diz democrática. Não existem Estados que não se proclamem defensores das políticas de avanços sociais de longo prazo, mesmo adotando políticas recessivas (que alegam ser temporárias). CRÍTICA AO MODELO DE ESTADO PROVIDÊNCIA como alternativa para a Era da Recessão: (a) Formato mais autoritário e paternalista que, ao invés de pedir mobilização ativa da sociedade, pede obediência aos administrados; (b) Rejeita o papel ativo do cidadão que se vê reduzido a uma posição de cliente em relação à Administração, que provê serviços e benefícios.197 (VALLES BENTO):198 O administrado não pode mais ser visto como cliente, mas como cidadão, que não apenas reivindica serviços ou controla a atuação estatal, mas que participa diretamente do processo decisório e, sobretudo, que é capaz de atuar em formas autogestionárias de efetivação de direitos sociais através, muitas vezes, de organizações comunitárias de âmbito local. No ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, o necessário envolvimento da sociedade civil exige um modelo de administração pública mais democratizada e a busca por um Direito Administrativo que possibilite uma maior democratização. (EMERSON GABARDO):199 O equilíbrio necessário ao Estado que precisa intervir materialmente na realidade, somente a DEMOCRACIA pode dar. O equilíbrio necessário depende da exposição, da discussão e da deliberação em público (além da aceitação e da tolerância) dos conflitos entre as diferentes lógicas. (ERIC HOBSBAWN):200 “O socialismo fracassou, agora o capitalismo faliu; o que virá a seguir?”. Para o historiador, o Século XX ficou para trás, mas ainda não se aprendeu a viver o Século XXI, uma vez que a ideia básica que dominou a economia e a política no último século faliu: não se pode mais pensar as economias industriais modernas em termos de dois opostos mutuamente excludentes: capitalismo ou socialismo. As tentativas de realizar esses dois opostos em sua forma pura fracassaram: as economias estatais centralmente planejadas do tipo soviético faliram em 1980; a economia capitalista de livre mercado totalmente sem restrições ou controles está entrando em colapso. 196 No mesmo sentido, SINGER, Paul. Desenvolvimento: significado..., cit. s/p. 197 Nesse sentido, DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito..., cit. p. 158. 198 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 68. 199 Cf. GABARDO, Emerson. Interesse..., cit. p 378. 200 Cf. HOBSBAWN, Eric. O socialismo fracassou; agora o capitalismo faliu; o que virá a seguir? The guardian. 10 abr. 2009. 61 62 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Para HOBSBAWN, a crise de 2008 é maior que a da década de 1930, porque, na época, a globalização da economia não estava tão adiantada quanto está hoje. Ainda não se sabe o alcance e duração, nem as consequências da crise de 2008, mas ela, certamente, assinalou o fim do capitalismo de livre mercado que tomou conta do mundo e seus governos nos anos passados desde Margaret Thatcher e o presidente Reagan. O futuro pertence a economias mistas, em que o público e o privado se entrelacem de uma maneira ou de outra. Não se trata de retornar aos sistemas socialistas do tipo soviético, embora não se possam subestimar suas realizações sociais e educacionais. (ERIC HOBSBAWN):201 Não se sabe como superar a crise atual nenhum dos governos do mundo, bancos centrais ou instituições financeiras internacionais sabe: “Todos são como um cego que tateia em busca da saída de um labirinto, batendo nas paredes com tipos diferentes de bengalas, na esperança de encontrar a saída”. Nem mesmo o “novo trabalhismo” inglês pode propor uma saída para a crise, a partir do momento que nunca deixou de estar engajado com o capitalismo (Tony Blair; Gordon Brown). A ideia básica do Partido Trabalhista, desde os anos 1950, foi que o socialismo era desnecessário, porque era possível confiar no sistema capitalista para prosperar e gerar mais riqueza que qualquer outro O que se precisava fazer era tão somente assegurar a distribuição equitativa da riqueza. Entretanto, a partir de 1997, o “novo trabalhismo” aderiu plenamente à ideologia do revival econômico thatcherista (à ideia de livre mercado global). A Grã-Bretanha desregulamentou seus mercados; vendeu suas indústrias; parou de produzir mercadorias para exportação (diferentemente da Alemanha, França e Suíça) e apostou suas fichas em transformar-se no centro global dos serviços financeiros --logo, um paraíso de lavadores de dinheiro. É por esse motivo que o impacto da crise mundial sobre a economia britânica deve ser grave e a recuperação plena mais difícil. A prova do valor de uma política progressista não é privada, mas pública; não consiste apenas na elevação da renda e do consumo de indivíduos (não basta a maximização do crescimento econômico), mas na ampliação das oportunidades e daquilo que AMARTYA SEN chama de "capacidades " de todos , por meio da ação coletiva . Tornam-se necessárias iniciativas públicas sem fins lucrativos, mesmo que seja apenas de redistribuição do acúmulo privado é preciso decisões públicas voltadas para o desenvolvimento social coletivo, que deve beneficiar todas as vidas humanas. O maior problema que se tem pela frente é a crise ambiental: e a solução para esse problema vai exigir o afastamento do livre mercado e a aproximação da ação pública. E, dado o caráter agudo da crise econômica, essa mudança precisa ser realizada em relativamente pouco tempo. 201 Cf. HOBSBAWN, Eric. O socialismo fracassou, agora o capitalismo faliu; o que virá a seguir? The guardian. 10 abr. 2009. * 62 63 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 8. O ESTADO TRIBUTÁRIO DISTRIBUIDOR SOLIDÁRIO 8.1. O ESTADO TRIBUTÁRIO ENQUANTO FACETA DO ESTADO MODERNO (RICARDO LOBO TORRES):202 a atividade financeira configura uma faceta do Estado Moderno, que se desenvolve desde o desmoronamento do feudalismo até os nossos dias: o ESTADO FINANCEIRO. (RICARDO LOBO TORRES): FASES DO ESTADO FINANCEIRO: ESTADO PATRIMONIAL, ESTADO DE POLICIA, ESTADO FISCAL E ESTADO SOCIALISTA. (DALMO DALLARI):203 O ESTADO MODERNO, enquanto conceito histórico concreto que surge da ideia e prática da soberania, apresenta uma faceta que é dada pela sua atividade financeira que podemos denominar de ESTADO TRIBUTÁRIO. (GROPALLI):204 propõe uma TIPOLOGIA DE ESTADO baseada nos limites do poder: ESTADO PATRIMONIAL, ESTADO DE POLÍCIA e ESTADO DE DIREITO. (A) ESTADO PATRIMONIAL (GROPALLI):205 No ESTADO PATRIMONIAL, o Estado é considerado patrimônio pessoal do Príncipe e o exercício da soberania decorre da propriedade da terra. (LOBO TORRES):206 o ESTADO PATRIMONIAL aparece na Europa, em duas vertentes distintas: (a)Modelo inglês e holandês à surge desde o século XVI em decorrência dos interesses da burguesia, mas não se formam os monopólios estatais. (b)Modelo que predominou na França , Alemanha , Áustria , Espanha e Portugal à monopólios estatais e os rígidos privilégios corporativos. O ESTADO PATRIMONIAL surge da necessidade de uma organização estatal para fazer a guerra e comporta diferentes realidades sociais (políticas, econômicas, religiosas, etc.). O ESTADO PATRIMONIAL vive fundamentalmente das rendas patrimoniais ou dominiais do Governante e apenas secundariamente se apoia na receita extrapatrimonial dos tributos. Baseia-se no PATRIMONIALISMO FINANCEIRO. (LOBO TORRES):207 No ESTADO PATRIMONIAL se confundem o público e o privado; o imperium e o dominium; a fazenda do príncipe e a fazenda pública. (LOBO TORRES):208 O TRIBUTO ainda não havia ingressado plenamente na esfera da publicidade, sendo apropriado de forma privada, como resultado do exercício da jurisdictio e de modo transitório, sujeito à renovação anual. 202 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7-8. 203 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 51-59. 204 Cf. GROPALLI, Alexandre. Doutrina do estado. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 103-104. 205 Cf. GROPALLI, Alexandre. Doutrina..., cit. p. 103-104. 206 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 7-8. 207 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 7. 208 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 7. 63 64 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (SOARES MARTÍNEZ):209 No ESTADO ABSOLUTO (que é um ESTADO PATRIMONIAL), os Príncipes buscavam satisfazer as necessidades do Estado na base da administração dos seus patrimônios próprios que, em verdade, se confundiam com os patrimônios comuns da “respublicas”. Os impostos se confundiam com prestações prediais (espécies de foros enfitêuticos), que derivavam de direitos reais dos soberanos. (B) ESTADO DE POLICIA (GROPALLI):210 No ESTADO DE POLÍCIA, o soberano, governando em nome do Estado (e não em nome próprio), exerce discricionariamente o poder público conforme o que considera interesse do Estado e de seus súditos. Para o Autor, antecede ao ESTADO DE DIREITO, no qual os poderes são rigorosamente disciplinados por normas jurídicas. (LOBO TORRES):211 floresce principalmente na Alemanha e na Áustria e transmigra com certo atraso para a Itália, Espanha e Portugal da época pombalina. Não penetra na Inglaterra, na Holanda e em algumas cidades italianas, nas quais já começam a prevalecer os interesses burgueses; nem na França, onde a passagem do Patrimonialismo ao Liberalismo se faz revolucionariamente. (LOBO TORRES):212 baseia-se na atividade de polícia, que corresponde ao conceito alemão de Polizei, e não ao conceito de polícia no sentido grego ou latino. Visa à garantia da ordem e da segurança e à administração do bem-estar e da felicidade dos súditos e do Estado. O ESTADO DE POLÍCIA é intervencionista, centralizador e paternalista. O ESTADO DE POLÍCIA, com seu absolutismo político e economia mercantil ou comercial, foi historicamente substituído pelo ESTADO FISCAL (TRIBUTÁRIO), de estrutura capitalista e orientado pelo liberalismo político e financeiro. (C) ESTADO TRIBUTÁRIO ESTADO TRIBUTÁRIO: aquele cujas necessidades financeiras são essencialmente cobertas por TRIBUTOS. (LOBO TORRES):213 o ESTADO FISCAL (ou TRIBUTÁRIO) é a projeção financeira do ESTADO DE DIREITO, no qual a receita pública passa a se fundar nos empréstimos (autorizados e garantidos pelo Legislativo), e principalmente nos tributos (ingressos derivados do trabalho e do patrimônio do contribuinte). O Estado deixa de se apoiar nos ingressos originários do patrimônio do Príncipe. 209 Cf. MARTÍNEZ, Soares. Direito fiscal. 9. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 5-6. 210 Cf. GROPALLI, Alexandre. Doutrina..., cit. p. 103-104. 211 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 7-8. 212 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 8. 213 Nesse sentido, TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 8. 64 65 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Dá-se a separação entre fazenda pública e a fazenda do príncipe, entre política e economia. Fortalece a burocracia fiscal. (LOBO TORRES):214 O CAPITALISMO amenizou a crise financeira dos Estados, garantindo os empréstimos com a receita de impostos, bem como permitindo o aumento da arrecadação através do aperfeiçoamento da máquina burocrática, da extinção dos privilégios e isenções do antigo regime e da reforma dos sistemas tributários. Os novos instrumentos jurídicos criados pela burguesia, como as sociedades anônimas e os contratos nominados passam a servir de base racional aos impostos (em especial o imposto de renda), favorecendo a reforma dos sistemas tributários. Os ORÇAMENTOS PÚBLICOS se aperfeiçoam; substitui-se a tributação do campesinato pela dos indivíduos; minimiza-se a intervenção estatal. (KIRCHHOF):215 A existência do Estado e o cumprimento de suas funções poderiam ser financiados através dos rendimentos das atividades econômicas do próprio Estado, ou, transitoriamente pelo crédito público ou pela própria emissão de dinheiro, bem como, da maneira de outrora, através de “tributos de guerra” ou de prestações pessoais dos súditos. Para o Autor, se o Estado garante ao indivíduo a liberdade para sua esfera profissional e de propriedade, tolerando as bases e os meios para o enriquecimento privado, não há como afirmar que o sistema financeiro se baseie na economia estatal, na planificação econômica, na expropriação, ou na emissão de moeda. (PAPIER):216 o ESTADO TRIBUTÁRIO não depende de um amplo ou total controle por sobre os meios de produção, nem da imposição de obrigações cívicas a seus cidadãos, nem tão pouco de sua própria atividade econômica, mas ao contrário, precisamente devido à legitimação constitucional da intervenção tributária é possível garantir-se a propriedade privada, a liberdade profissional e de indústria, assim como as demais liberdades que integram a atividade econômica privada. (D) AS FASES DO ESTADO FISCAL NA VISÃO DE LOBO TORRES (LOBO TORRES):217 No ESTADO TRIBUTÁRIO, se podem destacar TRÊS FASES DISTINTAS: Estado Fiscal Minimalista, Estado Social Fiscal e Estado Democrático e Social Fiscal. (D.1) ESTADO FISCAL MINIMALISTA: (do final do século XVIII ao início do século XX) corresponde à fase do Estado Guarda-Noturno ou Estado Liberal Clássico. Restringia-se ao exercício do poder de policia, da administração da justiça e da prestação de uns poucos serviços públicos. Não necessitava de sistemas tributários amplos, porque não assumia muitos encargos e por não era o provedor da felicidade do povo (como acontecera no Patrimonialismo); 214 Nesse sentido, TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 8. 215 Cf. KIRCHHOF, Paul. La influencia de la Constitución Alemana en su Legislación Tributaría. In Garantías Constitucionales del contribuyente, 2ª ed. Valencia: Tyrant lo Blanch, 1998, p. 26. 216 C. PAPIER, H. J. Ley Fundamental y Orden Económico. In Manual de Derecho Constitucional. Trad. Esp. de Handbuch des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Org. Konrad Hesse, Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 561-612. 217 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 8-9. 65 66 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (D.2) ESTADO SOCIAL FISCAL: aspecto financeiro do Estado Social (de Direito). O Estado deixa de ser mero garantidor das liberdades individuais e passa à intervenção na ordem econômica e social. (SOARES MARTÍNEZ):218 A partir do Século XIX, ao mesmo tempo em que os Estados alargaram o feixe de suas atribuições, com a consequente majoração de suas despesas, em consonância com as doutrinas econômicas e políticas da ocasião, alienavam a maior parte de seus patrimônios. Cada vez mais, a cobertura das despesas públicas passou a depender dos tributos. (MÁXIMO NETO):219 a partir da Revolução Francesa, desaparecem os últimos vestígios das instituições feudais, na grande fragmentação do domínio dos patrimônios imobiliários dos monarcas, aristocratas e do clero, que tiveram os seus bens confiscados, vendidos e disseminados nas mãos de milhares de burgueses. Firma-se, assim, a ideia de um ESTADO TRIBUTÁRIO. Para LOBO TORRES,220 fundamenta-se também na receita de tributos, provenientes da economia privada, mas os impostos deixam-se impregnar pela finalidade social ou extrafiscal, visando desenvolver certos setores da economia ou de inibir consumos e condutas nocivas à sociedade. A Despesa e a atividade financeira se deslocam para a redistribuição de rendas, através do financiamento da prestação de serviços públicos ou da entrega de bens públicos, e para a promoção o desenvolvimento econômico (pelas subvenções e subsídios). O ORÇAMENTO PÚBLICO se expande exageradamente e o Estado Social Fiscal entra em crise financeira e orçamentária a partir do final da década de 70. (D.3) ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL FISCAL: visualização pela faceta financeira do ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO que surge a partir da queda do muro de Berlim (1989) à ESTADO SUBSIDIÁRIO ou ESTADO DA SOCIEDADE DE RISCO. Tem como fatores determinantes de sua formatação: (a) processo de globalização; (b) crise do socialismo e dos intervencionismos estatais; (c) mudança dos paradigmas políticos e jurídicos. Mantém características do Estado Social, mas o ESTADO diminui seu tamanho e restringe seu intervencionismo no domínio social e econômico. Vive precipuamente dos ingressos tributários, reduzindo, pela privatização de suas empresas e pela desregulamentação do social, o aporte das receitas patrimoniais e parafiscais. 218 Cf. MARTÍNEZ, Soares. Manual..., cit. p. 6. 219 Cf. MÁXIMO NETO. Raízes históricas do tributo brasileiro – Uma visão crítica do Sistema Tributário Nacional – O regime fiscal das contratações, dízimos e outros tributos conexos precursores da ação fiscal sobre a produção, circulação e consumo de bens, mercadorias e serviços no Brasil. Monografia patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Belo Horizonte, 1979, p. 19, v. II. 220 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 9. 66 67 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Procura na via da despesa pública, reduzir as desigualdades sociais e garantir as condições necessárias às prestações públicas nas áreas de saúde e da educação, abandonando a utopia da inesgotabilidade dos recursos públicos. Para LOBO TORRES, o ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL FISCAL equilibra justiça e segurança jurídica; legalidade e capacidade contributiva; liberdade e responsabilidade.221 (E) ESTADO SOCIALISTA (LOBO TORRES):222 O ESTADO SOCIALISTA é um Estado neopatrimonialista, que vive precipuamente do rendimento das empresas estatais, representando o imposto um papel subalterno e menos desimportante. Rápida deterioração nos últimos anos, após a reunificação da Alemanha e a extinção da União Soviética, subsistindo apenas em alguns poucos países como a China (e com temperos) e Cuba. Hoje retorna rapidamente à economia de mercado e à atividade financeira lastreada nos impostos, reaproximando-se do Estado Fiscal. Pretendia ser o momento final do Estado Financeiro, substituindo o Estado Fiscal. (CASALTA NABAIS):223 o ESTADO ABSOLUTO foi predominantemente um ESTADO NÃO- TRIBUTÁRIO, da mesma forma que os ESTADOS SOCIALISTAS, que assentam sua base financeira essencialmente nos rendimentos da atividade econômica monopolizada. Ainda hoje é possível a existência de ESTADOS NÃO-TRIBUTÁRIOS, como Mônaco, que retira boa parte de suas receitas da exploração do jogo, ou mesmo a Venezuela, que, pelo menos até bem recentemente, retirava significativa porção de suas receitas da exploração de petróleo, entretanto, nas modernas democracias ocidentais, em regra, os Estados são ESTADOS TRIBUTÁRIOS. (F) O ESTADO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO NA CRFB/88 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO modelado pela CRFB/88 requer a formatação de um ESTADO TRIBUTÁRIO que tenha suas necessidades financeiras supridas essencialmente pela tributação. A CRFB/88, indubitavelmente, firma um Estado que opta pelo SISTEMA ECONÔMICO CAPITALISTA. Consagra o direito de propriedade privada (art. 5º, XXII e art. 170, II); a não intervenção e autodeterminação dos povos (art. 4º); proclama a livre iniciativa econômica (art. 170, parágrafo único); etc. A CRFB/88, da mesma forma, desenha um ESTADO TRIBUTÁRIO. A CRFB/88 apresenta um sistema tributário esboçado minuciosamente (artigos 145 a 161); afasta, em regra, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado (art. 173); firma um Estado que não é senhor dos bens; estabelece uma base financeira para o Estado calcada, sobretudo, em receitas derivadas (e não originárias); etc. 221 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 9. 222 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso..., cit. p. 9-10. 223 Nesse sentido, NABAIS, Casalta. O dever fundamental de pagar impostos – Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coímbra: Almedina, 1998, p. 191-221. 67 68 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 8.2. O ESTADO D EMOCRÁTICO DE DIREITO 8.2.1. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO ESTADO ORIENTADO PARA O BEM COMUM (A) FINALIDADES ESSENCIAIS DO ESTADO A noção de ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO permite extrair um entendimento material que se assenta na afirmação de que a finalidade essencial do Estado está na persecução do BEM COMUM e na realização da JUSTIÇA SOCIAL. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO é constituído para satisfazer as necessidades da coletividade, para propiciar a dignidade da pessoa humana, o bem do homem, nos moldes do que já preconizava ROUSSEAU.224 (B) A IDEIA DE BEM COMUM (ALEXANDRE DE MORAES):225 A ideia de BEM COMUM como finalidade básica de atuação estatal decorre da própria razão de ser do Estado e está prevista, ao menos implicitamente, em todos os ordenamentos jurídicos. (PAPA JOÃO PAULO II):226 “todo poder encontra a sua justificação unicamente no BEM COMUM, na realização de uma ordem social justa”. (LEÃO XIII):227 “a autoridade civil não deve servir, sob qualquer pretexto, para vantagem dum só ou de alguns, uma vez que se constituiu para o bem comum”. Em uma República marcadamente católica, vale tomar as orientações papais, aptas a firmar um norte de orientação para a modelagem de um socialismo cristão. (BENDA):228 el ESTADO SOCIAL ha sido descrito de forma lapidaria, y a la vez en el más amplio de los sentidos, como el Estado orientado al bien común. (C) OS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA NA CRFB/88 Fundamentalmente, a REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL tem como OBJETIVOS FUNDAMENTAIS a persecução do BEM COMUM e a realização da JUSTIÇA SOCIAL. A propósito, são OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA (CRFB/88): Art. 3º. Constituem OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 224 Cf. ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Tradução brasileira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 225 Nesse sentido, MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 299. 226 Cf. PAPA JOÃO PAULO II. A Palavra de João Paulo II no Brasil, 1980 Apud LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 184. 227 Cf. MORAES, Alexandre. Direito..., cit. p. 299. 228 Cf. BENDA, Ernst. El estado…, cit. p. 557. 68 69 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 8.2.2. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO ESTADO SOLIDÁRIO (A) O ESTADO TRIBUTÁRIO CAPITALISTA DE DESIDERATO SOCIAL Agradando ou não, a CRFB/88 mantém a essência conservadora do sistema que se mantém CAPITALISTA e que, pelo menos em alguma porção, compactua com a exploração econômica, em contrapartida, mantém algumas características fundamentais do ESTADO DO BEM-ESTAR. Em alguma medida, a CRFB/88 reconhece e assenta um modo de produção CAPITALISTA, entretanto firma um ESTADO SOLIDÁRIO DE DESIDERATO SOCIAL. Nesse sentido, o Estado brasileiro do Terceiro Milênio não pode deixar de ESTADO SOLIDÁRIO que assuma como responsabilidade a prestação de direitos sociais e os programas de distribuição de benefícios e assistência. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO da Era da Recessão deve ser dotado de capacidade para debelar a crise da ordem capitalista , sem fechamento do sistema político, que deve se permanecer pluralista e aberto. (PAULO BONAVIDES):229 O ESTADO CAPITALISTA brasileiro, à luz da CRFB/88, deve manter o regime de economia de mercado, aberto, porém, a alguma tutela ou dirigismo, que não pode afetar a essência das estruturas estatais, embora possa subtrair do livre jogo das forças produtivas determinados espaços da ordem econômica. No ESTADO SOLIDÁRIO (CAPITALISTA), o poder estatal se mantém como caminho para a proteção dos economicamente mais fracos, contendo os excessos do capitalismo. Exige-se, assim, pelo menos, um CAPITALISMO mais organizado, e reclama-se constitucionalmente do Estado prestações e ações que completem as proporcionadas pelo MERCADO, além de uma atuação estatal regulatória e disciplinadora. Se, por um lado, o contexto de crise parece afastar o desenho de um Estado Providência, por outro, a massa de excluídos e os clamores sociais não permitem o esboço de um ESTADO MERAMENTE SUBSIDIÁRIO que retira atribuições do aparato estatal e as outorga à sociedade civil. A CRFB/88 molda, em uma base econômica capitalista, um ESTADO TRIBUTÁRIO que deve zelar pela JUSTIÇA SOCIAL. Esta é a alternativa plausível para uma DEMOCRACIA, como a brasileira, que privilegia e adota como valores e fundamentos constitucionais, a livre iniciativa, a iniciativa privada, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, mas que crava, ainda, como OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, e, sobretudo, que almeja erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Se a CRFB/88 estrutura um sistema tributário pormenorizado, desenha uma Ordem Social que tem como primado, o trabalho e, como objetivo, o bem-estar e a justiça social. A CRFB/88 traça, portanto, um ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO CAPITALISTA e TRIBUTÁRIO, portanto, um Estado não-patrimonial, não proprietário dos meios de produção, e que, para cumprir sua missão e fazer justiça social, necessita tributar. 229 Nesse sentido, tomam-se as expressões de BONAVIDES, Paulo. Do estado..., cit. p. 33. 69 70 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A República do Brasil é um ESTADO TRIBUTÁRIO, de finalidades sociais bem marcadas. (LOBO TORRES): no ESTADO PATRIMONIAL, o tributo era cobrado com fundamento na só necessidade do Príncipe e a justiça apenas servia de justificativa periférica. (VER PÁGINA) Para LOBO TORRES, com o ESTADO FISCAL, as finanças passam a se basear no tributo, cobrado com fundamento na justiça distributiva e no princípio maior da capacidade contributiva. Para LOBO TORRES, a JUSTIÇA FINANCEIRA é basicamente distributiva, consistindo em tratar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam; mas, às vezes, é comutativa, própria das relações de troca, como ocorre com as taxas e as contribuições. Enfim, o PODER DE IMPOSIÇÃO TRIBUTÁRIA DO ESTADO não se justifica pela mera existência do Estado ou por suas necessidades financeiras, mas pela concepção de um ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, capitalista e tributário, social em seu desiderato, orientado para o bem comum, que deve propiciar justiça social. (B) O ESTADO SOLIDÁRIO DE DESIDERATO SOCIAL A CRFB/88 define um ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, social em seu desiderato, democrático em seus fundamentos. A CRFB/88 firma um modelo de Estado de finalidades nitidamente sociais, que deve erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais, enfim, um Estado fundamentalmente voltado para as questões sociais. Considerando-se a força normativa da Constituição, não basta a mera declaração, nos textos constitucionais, de direitos sociais, culturais, econômicos, mas exige-se que tais finalidades deixem de ser meras ficções e se transformem em realidade. Os artigos 1°, 3° e 170 da CRFB/88 firmam um programa basilar para os três níveis de Poder: construir um ESTADO DE DIREITO necessariamente social e, ao mesmo tempo, democrático. Ao lado de um extenso rol de liberdades e direitos fundamentais, a CRFB/88 apresenta, em seu texto, uma série de direitos sociais aos quais o Estado brasileiro não pode descurar em sua atuação, sob pena de ofensa aos mandamentos constitucionais mais fundamentais.230 Nos moldes postos pela CRFB/88, não basta a idéia de um Estado de Direito, mas exige-se um ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO que reconheça e garanta os direitos fundamentais e que busque equacionar o dilema da justiça social. O que se requer, portanto, é um Estado que busque o fundamento de sua atuação na legalidade, que assegure a liberdade, mas que busque de forma otimizada a igualdade material e a segurança social. 8.3. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO ESTADO DISTRIBUIDOR (A) O MODELO DE ESTADO DISTRIBUIDOR 230 Exatamente por isso, como lembra Eros Roberto Grau (A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 37), a substituição do modelo de economia de bem-estar por outro neoliberal não pode mesmo ser efetivada sem ampla reforma da essência da CRFB/88. 70 71 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO é um ESTADO DISTRIBUIDOR231 (Estado da igualdade material), que deve proporcionar paz social mediante a promoção da justiça social tanto pela sua atuação interventiva, como pela prestacional. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO configura-se, assim, como ESTADO DE DIREITO, SOCIAL em seu desiderato, que não é dono dos meios (ESTADO TRIBUTÁRIO), mas que para atuar e cumprir seu desiderato deve arrecadar recursos de quem pode e prestar serviços a quem deles necessita, conforme as necessidades sociais.232 Se não é dono dos meios, o Estado é um grande “intermediário”, uma vez que deve tributar o excedente de riqueza de alguns, para prestar serviços a outros que deles necessitam, nos limites e à luz do princípio maior da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Em uma versão simplista, pode-se afirmar, com reservas, que, em tese, o modelo é este: cobra- se tributos dos mais ricos para prestar saúde, educação aos que delas necessitam. O ESTADO, pelo menos no modelo democrático ocidental, deve ser justo na cobrança de tributos, por um lado; deve prestar eficientemente seus serviços, por outro. Se tributar mal, injustamente, o modelo fracassa; se for ineficiente ou corrupto, a máquina pública sufoca. No modelo de ESTADO FINANCEIRO e DISTRIBUIDOR brasileiro, pela faceta tributária, a receita deve ser obtida com observância ao PRINCÍPIO DA CAPACIDADE ECONÔMICA (JUSTIÇA FISCAL). À luz dessa ótica, o modelo teórico brasileiro de ESTADO DISTRIBUIDOR FINANCEIRO reclama que a “massa de tributos arrecadados” deva dar suporte a uma atuação estatal que se oriente para proporcionar JUSTICA SOCIAL. Pela faceta financeira, cabem às LEIS ORÇAMENTÁRIAS, votadas pelos Legislativos, decidir e orientar os recursos arrecadados ao atendimento das necessidades da coletividade, condicionados ao desiderato maior de propiciar JUSTIÇA SOCIAL. Nesse compasso, atentam contra o modelo, pela FACETA TRIBUTÁRIA, a sonegação, a tributação regressiva firmada por leis mal formatadas, isenções e anistias casuístas, tributos disfarçados e alheios ao ideal de justiça fiscal, etc. Da mesma forma, são DOENÇAS ADMINISTRATIVAS graves e que precisam ser extirpadas a corrupção, o nepotismo, o clientelismo, os vergonhosos acordos parlamentares para votação das leis orçamentárias que buscam direcionar recursos para bases eleitorais, etc. (B) A NECESSÁRIA GARANTIA DA SEGURANÇA JURÍDICA E A JUSTIÇA FISCAL O DIREITO TRIBUTÁRIO MODERNO deve propiciar normas delimitadoras da ação do Estado, regulamentar as relações entre Poder Público e contribuinte, e disciplinar adequadamente os justos limites das exigências patrimoniais do Estado, mas, da mesma forma, deve consolidar um sistema tributário compatível com a formatação do ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO modelado pela CRFB/88, que essencialmente é um ESTADO TRIBUTÁRIO DISTRIBUIDOR de desiderato social.233 231 Na expressão de WOLFF, Hans; BACHOF, Otto; STOBER, Rolf. Verwaltungsrecht. cit. p. 204. 232 Nessa mesma direção, WOLFF, Hans; BACHOF, Otto; STOBER, Rolf. Verwaltungsrecht, cit. p. 204. 233 Os princípios tributários não se reduzem a limitações constitucionais ao poder de tributar, mas são princípios reitores de uma tributação justa, base e sustentáculo do ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO (tributário e distribuidor). O DIREITO TRIBUTÁRIO MODERNO não mais pode ser encarado como um mero “direito dos contribuintes perante o Estado”, mas como o ramo do direito que visa conformar um sistema tributário justo, que possa refletir o desenho do ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO brasileiro, distribuidor e tributário, social em seu desiderato, democrático em 71 72 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO, porém, não formata seus princípios com lastro único no valor SEGURANÇA JURÍDICA, nem, isoladamente, no valor JUSTIÇA SOCIAL, mas o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, com reforço no elemento “democrático”, sem deixar de ser um ESTADO DE DIREITO, defensor das liberdades individuais, é também um Estado de desiderato social. Não se admite uma tributação alheia à legalidade; a SEGURANÇA JURÍDICA mantém-se como valor básico, firmando a necessidade permanente de se limitar o poder político, mantendo, de forma intransponível, o povo como titular do poder, entretanto, o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO é um Estado distribuidor que visa, também, fundamentalmente, proporcionar JUSTIÇA SOCIAL. (CLEMERSON CLÈVE):234 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO há de ser compreendido como um ESTADO DE JUSTIÇA; “não de qualquer JUSTIÇA, subjetiva e arbitrariamente orientada, ou idealisticamente deduzida de paradigmas pré-jurídicos residentes sobre a Constituição, mas sim de uma justiça historicamente determinada e juridicamente conformada pela própria Constituição ”. Portanto, um Estado que zela, na faceta prestacional, pela “justiça social” e na faceta interventiva pela “justiça fiscal”. Nessa ótica, dois princípios aparecem em relevo: (1) o PRINCÍPIO DA IGUALDADE TRIBUTÁRIA, que proíbe o arbítrio e os tratamentos desiguais, o que acaba por firmar uma idéia de GENERALIDADE DA TRIBUTAÇÃO; (2) o PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. Um segundo entendimento, de conteúdo formal, determina que cabe apenas à lei escolher, dentre as manifestações de CAPACIDADE ECONÔMICA, aquelas que se reputam adequadas à tributação. LEITURA OBRIGATÓRIA: - BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Texto Estado Pós-Providência (ver LIVRO NOVO). - BONAVIDES, Paulo. - CONSTANT, Benjamim. - DALLARI, - EINSTEIN, Albert; FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Indagações entre Einstein e Freud (cartas). seus fundamentos. 234 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 146. 72 73 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG PARTE II – TEORIA DEMOCRÁTICA 1. CONCEITO DE DEMOCRACIA 1.1. O POVO COMO ORIGEM DO PODER E A IDEIA DE DEMOCRACIA (A) DEMOCRACIA: O PODER DO POVO (RENATO JANINE):235 A palavra DEMOCRACIA vem do grego (demos, povo; kratos, poder) e significa poder do povo. “Não quer dizer governo pelo povo. Pode estar no governo uma só pessoa, ou um grupo, e ainda tratar-se de uma DEMOCRACIA – desde que o PODER seja do povo”. O fundamental é que o povo escolha o indivíduo ou grupo que governa, e que controle como ele governa. (LINCOLN): DEMOCRACIA é o “GOVERNO DO POVO, PARA O POVO, PELO POVO”. Para LINCOLN: “governo que jamais perecerá sobre a face da Terra”. GOVERNO DO POVO: traduz a ideia de que todo poder emana do povo. O PODER tem sua origem no POVO e não provém de nenhuma divindade, nem do soberano, mas nasce no povo. Mesmo HOBBES, em uma construção genial, entendia que o PODER provinha do POVO que, em sua visão, abria mão de seu poder para que um governante absoluto pudesse zelar pela felicidade de todos. Sem isso, em sua visão, os homens (maus por natureza) poderiam se autodestruir. Ressalte-se que, em sua construção, o poder desatrela-se de uma origem divina e provém do povo. GOVERNO PARA O POVO: Toda atribuição de poder a um governante apenas se justifica para que este possa zelar pelo BEM COMUM. A ideia de BEM COMUM como finalidade básica de atuação estatal decorre da própria razão de ser do Estado. GOVERNO PELO POVO: O PODER é exercido PELO POVO, diretamente ou por meio de seus representantes eleitos. ESTADO DEMOCRÁTICO é aquele em que o próprio POVO governa. (B) A IDEIA BÁSICA DE DEMOCRACIA NA CRFB/88 (PREÂMBULO): Nós, representantes do povo brasileiro , reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos 235 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 73 74 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (TÍTULO I - DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS): Art. 1º da CRFB/88. A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO e tem como fundamentos: [...]. Parágrafo único. Todo o PODER emana do POVO, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (C) DEMOCRACIA: O PODER SE TORNA PÚBLICO (RENATO JANINE): Inicialmente, as cidades gregas eram governadas por reis, mas, com o tempo, o PODER, que ficava dentro dos palácios, oculto aos súditos, passa à praça pública, vai para "o meio", para o centro da aglomeração urbana, adquirindo transparência, visibilidade.236 Assim começa a DEMOCRACIA: o PODER, de misterioso, se torna público. (D) A DIVERSIDADE DE POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS Existem diversas posições doutrinárias diversificadas acerca do que se pode entender por DEMOCRACIA. (KELSEN): a DEMOCRACIA é um caminho: o da progressão para a liberdade. Para KELSEN, DEMOCRACIA é um procedimento organizado de produção e ordenação das normas jurídicas, fundado no princípio da legalidade, que propicia aos indivíduos a necessária segurança jurídica.237 Em oposição, o REGIME AUTOCRÁTICO ignora os princípios jurídicos elementares da legalidade e da hierarquia normativa.238 No REGIME AUTOCRÁTICO, todo o sistema jurídico fica jungido ao arbítrio do governante, não havendo racionalidade no sistema normativo.239 (E) TRÊS MODALIDADES BÁSICAS DE DEMOCRACIA A doutrina aponta TRÊS MODALIDADES BÁSICAS DE DEMOCRACIA: (E.1) DEMOCRACIA DIRETA DEMOCRACIA NÃO REPRESENTATIVA; (E.2) DEMOCRACIA INDIRETA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA; 236 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 237 Nesse sentido, DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Autocracia. cit. p. 22. 238 Nesse sentido, DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Autocracia. cit. p. 22. 239 Nesse sentido, DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Autocracia. cit. p. 22. 74 75 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (E.3) DEMOCRACIA SEMIDIRETA “DEMOCRACIA DOS TEMPOS MODERNOS” momentos da democracia representativa na qual o povo é chamado para se decidir ou se manifestar diretamente (o povo é chamado para decidir diretamente, não para escolher representantes). (F) A DEMOCRACIA NÃO EXIGE CAPACITAÇÃO TÉCNICA (RENATO JANINE):240 A sociedade grega não conhecia a complexidade da economia moderna. Os cidadãos tratavam da guerra e da paz, de assuntos políticos, mas parte razoável das discussões parecia girar em torno da religião e das festas (também religiosas). “Imaginemos o que é uma polis grega. Uma assembleia a cada nove dias, sim, mas não para tratar de assuntos como os de grêmio estudantil (que é o órgão moderno mais próximo de sua militância). E sim, com alguma frequência, para discutir festas e dividir as tarefas nelas”. Faziam constantes festas ao deus Dionísio (o Baco dos romanos) e, à volta disso, organizavam a vida social. A DEMOCRACIA GREGA dizia respeito a um regime que não lidava com as mesmas questões que nos ocupam hoje a política era bem próxima da vida cotidiana . Poucos foram aqueles, como Platão e outros críticos da democracia, que questionaram a competência do povo simples para tomar as decisões políticas, alegando que para governar seria preciso ter ciência. Um princípio da democracia grega – e de todo espírito democrático – é que a CIDADANIA não reclama ciência ou capacitação técnica. (RENATO JANINE):241 “Aqui, na decisão do bem comum, na aplicação dos valores, todos são iguais – não há filósofo-rei ou tecnocrata.” 1.2. A IDEIA DE DEMOCRACIA NA FILOSOFIA POLÍTICA DEMOCRACIA: forma de organização do poder que teve em HERÓDOTO e PLATÃO suas formulações primitivas e a partir de ARISTÓTELES o refinamento do conceito.242 (A) ARISTÓTELES (RICARDO A. MALHEIROS FIÚZA): (VER) Para ARISTÓTELES haviam TRÊS FORMAS DE GOVERNO NORMAIS (puras): MONARQUIA, ARISTOCRACIA e DEMOCRACIA. Todas elas exercidas para o bem de todos (interesse comum) - a diferença está em quem governa: (1) MONARQUIA governo de um só (em benefício de todos); (2) ARISTOCRACIA governo de poucos (em benefício de todos) – governo dos “melhores”; 240 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 241 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 242 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. In. TRAVESSONI, Alexandre (Coord.). Dicionário de teoria e filosofia do direito. São Paulo: LTr, 2011, p. 95-98. 75 76 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (3) DEMOCRACIA governo de todos (em benefício de todos). Para ARISTÓTELES, a DEMOCRACIA era praticamente impossível. (RENATO JANINE):243 Os gregos distinguiam três regimes políticos: MONARQUIA, ARISTOCRACIA e DEMOCRACIA. A diferença é o número de pessoas exercendo o PODER – um, alguns ou muitos. MONARQUIA é o PODER (arquia) de um só (mono). ARISTOCRACIA é o poder dos melhores (os aristoi, excelentes). São quem tem aretê, a excelência do herói. DEMOCRACIA: não se distingue apenas do poder de um só, mas também do poder dos melhores, que se destacam por sua qualidade. A DEMOCRACIA é o regime do povo comum, em que todos são iguais. Não é porque um se mostrou mais corajoso na guerra, mais capaz na ciência ou na arte, que terá direito a governar ou comandar os outros. (RICARDO A. MALHEIROS FIÚZA): (VER) Para Aristóteles haviam TRÊS FORMAS DE GOVERNO ANORMAIS (impuras): TIRANIA, OLIGARQUIA e DEMAGOGIA. (1) TIRANIA governo de um só, em benefício próprio; (2) OLIGARQUIA governo de poucos, em benefício desses poucos; (3) DEMAGOGIA falsa democracia (é a mentira acaba redundando em uma das duas acima). (RENATO JANINE):244 Para ARISTÓTELES, há três regimes puros e três deformações dos mesmos. Na realidade, são puros a MONARQUIA, a ARISTOCRACIA e um regime que ele chama de politéia, palavra que quer dizer constituição. São suas deformações – respectivamente – a TIRANIA, a OLIGARQUIA e o regime que ele chama de DEMOKRATIA. Quando os críticos gregos da DEMOCRACIA alertam para o perigo de que o povo pobre confisque os bens dos ricos, esse perigo é análogo ao que existe na TIRANIA ou na OLIGARQUIA. Nos regimes puros, o PODER é exercido dentro da lei. Nas deformações, exerce-se o PODER pelo capricho, pelas paixões, pela desmedida Por isso não há grande diferença entre TIRANIA, OLIGARQUIA e DEMOKRATIA. Nas três, quem tem o PODER é movido por um desejo desgovernado. 243 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 244 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 76 77 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Na visão aristotélica, confiscar os bens dos ricos é tão errado quanto o tirano oprimir os pobres, ou os oligarcas usarem da lei a seu arbítrio. O PROBLEMA da apontada eficiência do GOVERNO DE UM SÓ está em que, se exercido no bem de todos (MONARQUIA), ele pode ser muito eficiente, entretanto, a TIRANIA pode ser o mais cruel sistema de governo. (BARACHO JÚNIOR):245 “Em contraposição à MONARQUIA, em que o poder estaria a cargo de um reduzido grupo, a teoria clássica identifica na DEMOCRACIA um governo do povo para si mesmo.” “[...] A esta perspectiva quantitativa, ARISTÓTELES acrescenta uma reflexão qualitativa, na qual procura identificar as formas justas e injustas de organização do poder. Haveria três formas políticas puras e três formas corruptas.” “O governo da maioria ou da ‘multidão’ é designado, em sua forma pura, por POLITIA, e em sua forma corrupta, a DEMOCRACIA seria o ‘governo de vantagem para o pobre’, o qual se diferencia do ‘governo de vantagem para o monarca’, a TIRANIA, forma corrupta da MONARQUIA, e do ‘governo de vantagem para os ricos’, a OLIGARQUIA, forma corrupta da ARISTOCRACIA.” Na verdade, como avalia BARACHO JÚNIOR,246 o termo “DEMOCRACIA” não havia sido empregado por Aristóteles em sentido positivo, mas, na modernidade, a ideia aparece associada à noção de governo da maioria, enquanto uma das formas políticas justas da filosofia aristotélica. (B) MAQUIAVEL Em “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” (1531), sustenta a existência (tendencial) de CICLOS DE GOVERNO: Estado anárquico (DEMAGOGIA) escolha do chefe mais forte escolha do mais justo e sensato o monarca eletivo se transforma em hereditário os herdeiros começam a degenerar e surge a tirania conspirações dos mais ricos e valorosos trazem a aristocracia os descendentes degeneram em utilizar o governo em proveito próprio (oligarquia) o povo se rebela e surge o governo democrático a degeneração traz a anarquia recomeça o ciclo. Para MAQUIAVEL, o único meio de evitar as degenerações é conjugar MONARQUIA, ARISTOCRACIA e DEMOCRACIA em um só governo (cada um deles vigiaria os demais). (DALLARI):247 para o Autor, foi esse tipo de governo que os norte-americanos organizaram. “O Executivo, como expressão de governo unipessoal; o Judiciário, tendo na cúpula um corpo aristocrático; e o Legislativo, representando o componente democrático do governo”. (PAULO BONAVIDES): esta forma mista foi a preconizada por CÍCERO, que assim via o ESTADO ROMANO. Para BONAVIDES, autores modernos admitem que essa forma mista exista na INGLATERRA, com um sistema monárquico no qual a Coroa monárquica, a Câmara Alta 245 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 95. 246 Nesse sentido, BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 95. 247 Cf. DALLARI. Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 245. 77 78 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG aristocrática (Câmara dos Lordes) e a Câmara Baixa democrática ou popular (Câmara dos Comuns) formam conjuntamente o Parlamento. Para MAQUIAVEL, o GOVERNO de um só era TIRANIA e é impossível o GOVERNO de todos (DEMOCRACIA). Para MAQUIAVEL, “muitos idealizaram Estados livres e monarquias, os quais, na realidade não se viu, nem ouviu”. Em “O Príncipe”, MAQUIAVEL afirma que “os Estados e soberania que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou REPÚBLICAS ou PRINCIPADOS”. Para MAQUIAVEL, os nobres jamais têm o simples desejo de conservar o que já possuem, desejando sempre mais assim, colocam em risco a liberdade. Ao longo dos “Discursos...” percebe-se a preferência de Maquiavel pelas repúblicas mistas democráticas. MAQUIAVEL se diferencia dos humanistas, no que diz respeito à LIBERDADE. Para os HUMANISTAS, a LIBERDADE podia ser compreendida através da teoria das origens e pela escolha adequada de governo. Para MAQUIAVEL, a LIBERDADE nasce do conflito e está diretamente ligada a questão da potência. (BIGNOTTO):248 “o que diferencia MAQUIAVEL dos HUMANISTAS CÍVICOS, não é o fato de ter descoberto o papel e a importância das leis, mas o de saber compreender que as leis são fruto do conflito infinito dos desejos oponentes. Isso explica por que MAQUIAVEL nunca acreditou numa solução definitiva do conflito social. Os desejos, sendo não somente contraditórios, mas de naturezas diversas, não podem ser anulados por uma solução constitucional, nem mesmo pela mais perfeita a seus olhos: a REPÚBLICA.” (C) ROUSSEAU (ROUSSEAU): “se houvesse um povo de deuses, esse povo se governaria democraticamente. Tão perfeito governo não convém aos homens”. O Autor chega, assim, à conclusão de que jamais houve e jamais haverá verdadeira democracia. 1.3. DEMOCRACIA COMO MELHOR ALTERNATIVA (A) UMA BREVE CRÍTICA ORIENTAL (parei aqui) (VER Henry Kissinger) DENG XIAOPING, que colocou a CHINA no caminho de se transformar em uma grande superpotência questionava as possibilidades de um GOVERNO DEMOCRÁTICO resolver os graves problemas que a CHINA enfrentava após a Revolução Cultural. 248 Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991, p. 96. 78 79 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A CHINA havia a pouco enfrentado uma severa fome coletiva que havia matado mais de 50 milhões de pessoas e seu questionamento estava em que, primeiro, deveria reorganizar o Estado e apenas depois questões como estas poderiam ser trazidas a baila. Para XIAOPING, as DEMOCRACIAS não conseguiriam ser eficazes para a obtenção do necessário sacrifício coletivo que se exigia do povo chinês. A ideia central é a de que o homem tende a se apoiar na zona de maior conforto, ou seja, tende a não querer fazer os esforços necessários para o crescimento do Estado. Se puder escolher, opta sempre pelo caminho mais confortável; de menor sacrifício. A melhor alternativa para o bem comum não se consegue atingir por esse caminho, porque o homem tende a subalternizar o interesse coletivo em detrimento de seu interesse pessoal. Na visão de XIAPOPING, só um governo forte é capaz de conduzir a nação em busca do bem de todos. O que se pode dizer é que, o sacrifício coletivo em um Estado Democrático Tributário deve se dar sob a formados deveres para com a coletividade, dentre eles por meio do pagamento de tributos, que se tornam, assim, o instrumento de justiça e medida do sacrifício coletivo. DENG XIAOPING refletia com irritação acerca das dificuldades de se negociar e acordar com regimes democráticos que mudavam e tornavam os acordos fluidos. (B) A MELHOR ALTERNATIVA (PAULO BONAVIDES): trata-se da “melhor e mais sábia forma de organização do poder, conhecida na história política e social de todas as civilizações”. (PAULO BONAVIDES): “partindo-se do conceito de que ela deve ser o governo do povo, para o povo, verificar-se-á que as FORMAS HISTÓRICAS referentes à prática do sistema democrático tropeçam por vezes em DIFICULDADES”. (LORD RUSSEL): “quando ouço falar que um povo não está bastantemente preparado para a DEMOCRACIA, pergunto se haverá algum homem bastantemente preparado para ser déspota”. (DALLARI): “e a experiência já comprovou amplamente que a melhor ditadura causa mais prejuízos do que a pior democracia”.249 (CHURCHILL): “a DEMOCRACIA é a pior de todas as formas imagináveis de governo, com exceção de todas as demais que já se experimentaram”. Se por um lado, raros são os GOVERNOS que não se proclamam democráticos, raros TERMOS na ciência vêm sendo objeto de tantas distorções e abusos. (DALLARI): o ESTADO DEMOCRÁTICO nasceu das lutas contra o absolutismo, através da afirmação dos direitos naturais da pessoa humana.250 1.4. PRINCÍPIOS BÁSICOS A SEREM OBSERVADOS EM UMA DEMOCRACIA 249 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 303. 250 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 147. 79 80 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O ESTADO que pretende ser DEMOCRÁTICO tem como BASE FUNDAMENTAL a POSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO GOVERNO, para que sejam garantidos os direitos fundamentais do homem e a dignidade da pessoa humana. (BARACHO JÚNIOR):251 “a DEMOCRACIA MODERNA precisa ser analisada em seus diversos modos de realização, através de diferentes formas de governo (MONARQUIAS ou REPÚBLICAS), formas de Estado (UNITÁRIOS ou FEDERAIS) e sistemas de governo (PARLAMENTARISTAS ou PRESIDENCIALISTAS), e neste sentido como uma concepção autônoma em relação a estas outras formas políticas”. Não há FORMA PREESTABELECIDA para um Estado Democrático, que pode se assentar em uma estrutura capitalista ou socialista; em um governo parlamentar ou presidencial; monárquico ou republicano. Não é possível fixar-se uma forma de democracia válida para todos os tempos e todos os lugares. Um ESTADO DEMOCRÁTICO deve observar pelo menos três PRINCÍPIOS BASILARES:252 (a) SUPREMACIA DA VONTADE POPULAR com a participação popular no governo (autogoverno os próprios governados decidem sobre as diretrizes fundamentais do Estado); O povo é uma unidade heterogênea, não havendo, por vezes, a possibilidade de um acordo total quando às diretrizes políticas. Para que se obtenha a vontade autêntica do povo é necessário: (a.1) a vontade deve ser livremente formada, com a mais ampla divulgação das idéias e o debate sem restrições, para que os membros do povo escolham entre as múltiplas opções; (a.2) a vontade do povo deve ser livremente externada, livre de vícios ou coações, sem influência de fatores artificialmente criados; (a.3) seja assegurado o direito de divergir; (a.4) a exclusão dos indivíduos inaptos a participar das decisões (física ou mentalmente inaptos) deve ser a mais reduzida possível e determinada por decisão inequívoca do povo. (b) PRESERVAÇÃO DA LIBERDADE poder de fazer tudo o que não incomode ao próximo sem a interferência do Estado; As doutrinas individualistas exaltaram a liberdade individual, concebendo cada indivíduo isoladamente, entretanto a liberdade humana é uma LIBERDADE SOCIAL, que deve ser concebida tendo em conta o relacionamento de cada indivíduo com todos os demais, o que implica deveres e responsabilidades. (DALLARI): “é inaceitável a afirmação de que a liberdade de cada um termina onde começa a do outro, pois as liberdades dos indivíduos não podem ser isoladas e colocadas uma ao lado da outra, uma vez que na realidade estão entrelaçadas e necessariamente inseridas num meio social”.253 251 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 96. 252 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 150-151; 304-307. 253 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 305-306. 80 81 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (VASCONCELOS DINIZ):254 a DEMOCRACIA se caracteriza por um relativismo axiológico e pela livre escolha dos valores pelos indivíduos (liberdade intelectual). No REGIME AUTOCRÁTICO, pressupõem-se realidades absolutas, nas quais só se cultiva a ideologia oficial do Estado. (c) IGUALDADE DE DIREITOS proibição de distinções no gozo de direitos. (RENATO JANINE):255 O caráter democrático da política moderna depende dos direitos, mais que da representação. Os direitos são de teor cada vez mais social. A igualdade formal de todos perante a lei não é capaz de assegurar a dignidade da pessoa humana, mas abre as portas para desníveis sociais que tornam impossível o gozo dos direitos fundamentais. (DALLARI): “a concepção de igualdade como igualdade de possibilidades corrige essas distorções, pois admite a existência de relativas desigualdades, decorrentes da diferença de mérito individual, aferindo-se este através da contribuição de cada um à sociedade”.256 (ERNST BENDA): sólo la estabilidad y un buen funcionamiento de la economía proporcionan los necesarios presupuestos para el cumplimiento de las tareas sociales. De ahí que el Estado social no pueda reducirse a hacer política social, sino que no pueda por menos de tener una política económica.257 (DALLARI): “dotando-se o Estado de uma organização flexível, que assegure a permanente supremacia da vontade popular, buscando-se a preservação da igualdade de possibilidades, com liberdade, a DEMOCRACIA deixa de ser um ideal utópico para se converter na expressão concreta de uma ordem social justa”.258 (BARACHO JÚNIOR):259 “As lutas socialistas do século XIX denunciavam a superficialidade da democracia liberal, por consolidar um quadro de fortes desigualdades materiais, o que acabaria por comprometer a própria liberdade política”. 254 Cf. DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Autocracia. cit. p. 22. 255 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 256 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 306. 257 BENDA, Ernst. El estado social de derecho. In: _____. et al. Handbuch des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Tradução espanhola: Manual de derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 550–551. 258 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 306-307. 259 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 97. 81 82 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 2. TEORIA GERAL DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA 2.1. A DEMOCRACIA DIRETA NO MUNDO MODERNO 2.1.1. A IMPOSSIBILIDADE DE RETORNO DA DEMOCRACIA DIRETA DEMOCRACIA DIRETA NA GRÉCIA: liberdade política do homem grego o cidadão livre da sociedade criava a lei, com a intervenção de sua vontade, e a ela se sujeitava à maneira quase de um escravo. O cidadão grego era integralmente político o homo oeconomicus moderno , ao contrário, precisa de prover as necessidades materiais de sua existência, não podendo se volver de todo para a análise dos problemas de governo. (MONTESQUIEU): o povo é excelente para escolher, mas péssimo para governar por isso o povo precisa de representantes, que decidam em nome do povo. Razões de ordem prática fazem do SISTEMA REPRESENTATIVO a condição de essencial para o funcionamento democrático do Estado moderno. O ESTADO MODERNO já não é a CIDADE-ESTADO de outros tempos, mas o ESTADO-NAÇÃO, de larga base territorial. Congregar em praça pública toda a massa do eleitorado seria um tumulto. Só há uma saída possível: um GOVERNO DEMOCRÁTICO DE BASES REPRESENTATIVAS. (LISZT VIEIRA): a CIDADANIA MODERNA sofreu dupla transformação com relação à CIDADANIA ANTIGA: (1) ela se ampliou e se estendeu ao conjunto dos membros de uma mesma nação; (2) ela se estreitou, pois a decisão política foi transferida aos eleitos e representantes.260 (RENATO JANINE):261 “O avanço da democracia moderna (ou do caráter democrático da política moderna) é provocado pelos direitos, não pela representação”. “A REPRESENTAÇÃO é importante, mas ela é o aporte negativo da modernidade à DEMOCRACIA. É o que faz a urna ser menos democrática que a praça ateniense. Já com os direitos, a coisa é diferente. Eles são o motor das reivindicações. Através deles se exprime a pressão popular sobre o PODER. (RENATO JANINE):262 Para os críticos da DEMOCRACIA ela é vista como regime do desejo. Ela assim é vista por seus críticos, mas também por parte de seus defensores. O desejo é a matéria-prima dos DIREITOS Seria errado imaginar que estes surjam de um céu límpido e esplêndido, mas eles nascem do desejo. 260 Cf. VIERA, Liszt. Cidadania e controle social. In. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; GRAU, Nuria Cunill. (Org.). O público não-estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 218. 261 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 262 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia direta. cit. 82 83 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (ROUSSEAU): o homem da democracia moderna só é livre no momento em que vai às urnas depositar seu voto (criticando a democracia indireta ou representativa). Na fala liberal de BENJAMIN CONSTANT:263 “[...] Daí vem, Senhores, a necessidade do SISTEMA REPRESENTATIVO. O SISTEMA REPRESENTATIVO não é mais que uma organização com a ajuda da qual uma nação confia a alguns indivíduos o que ela não pode ou não quer fazer. Os pobres fazem eles mesmos seus negócios; os homens ricos contratam administradores. É a história das nações antigas e das nações modernas. O SISTEMA REPRESENTATIVO é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses defendidos e não tem, no entanto, tempo para defendê-los sozinho. Mas, salvo se forem insensatos, os homens ricos que tem administradores examinam, com atenção e severidade, se esses administradores cumprem seu dever, se não são negligentes, corruptos ou incapazes; e, para julgar a gestão de seus mandatários, os constituintes que são prudentes se mantêm a par dos negócios cuja administração lhes confiam. Assim também os povos que, para desfrutar da liberdade que lhes é útil, recorrem ao SISTEMA REPRESENTATIVO, devem exercer uma vigilância ativa e constante sobre seus representantes e reservar-se o direito de, em momentos que não sejam demasiado distanciados, afastá-los, caso tenham traído suas promessas, assim como o de revogar os poderes dos quais eles tenham eventualmente abusado.” 2.1.2. LANDSGEMEINDE ÚNICA IMAGEM SOBREVIVENTE: minúsculos cantões da Suíça (Uri, Glaris, os dois Unterwald e os dois Appenzells), onde anualmente seus cidadãos se congregam em logradouros públicos para o exercício direto da soberania. A Landsgemeinde é o órgão supremo de pequenos Cantões da Suíça central e oriental durante séculos, começando sua abolição no século XIX. Trata-se de uma assembléia aberta a todos os cidadãos do Cantão (poder/dever). Reúnem-se ordinariamente uma vez por ano, num domingo da primavera, podendo haver convocações extraordinárias pelo Conselho Cantonal (há Cantões que admitem a convocação por certo número de cidadãos). Há publicação prévia dos assuntos a serem submetidos à deliberação. A Landsgemeinde vota leis ordinárias e emendas à Constituição do Cantão, autorizações para cobrança de impostos e para a realização de despesas de certo vulto, naturalização, tratados intercantonais. 2.1.3. A DEMOCRACIA DIRETA E AS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS (DALLARI): “no momento em que os mais avançados recursos técnicos para captação e transmissão de opiniões, como terminais de computadores, forem utilizados para fins políticos será possível a PARTICIPAÇÃO DIRETA DO POVO, mesmo nos grandes Estados.264 263 Cf. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade..., cit. 264 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 153. 83 84 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 2.2. A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA COMO ALTERNATIVA 2.2.1. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA : A IDEIA CENTRAL DEMOCRACIA REPRESENTATIVA (ou INDIRETA): o PODER é do povo, mas o GOVERNO é dos representantes, em nome do povo. Tudo se passa como se o povo realmente governasse. Há a presunção ou ficção de que a vontade representativa é a mesma vontade popular aquilo que os representantes querem vem a ser legitimamente aquilo que o povo haveria de querer, se pudesse governar pessoalmente. 2.2.2. TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA BASES PRINCIPAIS da moderna DEMOCRACIA OCIDENTAL:265 1. Soberania popular: fonte de todo poder legítimo que se traduz através da vontade geral (volonté génerale de Rousseau); 2. Sufrágio universal, com pluralidade de candidatos e partidos; 3. Princípio da distinção de poderes; 4. Igualdade de todos perante a lei; 5. Principio da fraternidade social; 6. Representação como base das instituições políticas; 7. Limitação de prerrogativas dos governantes; 8. Estado de Direito: os representantes fazem a lei e a elas se submetem; 9. Liberdade de opinião, de reunião, de associação, e de fé religiosa; 10. Temporariedade dos mandatos eletivos; 11. Existência plenamente garantida das minorias políticas, com direitos e possibilidades de representação. 265 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 274. 84 85 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 3. A DEMOCRACIA SEMIDIRETA 3.1. A DEMOCRACIA SEMIDIRETA COMO MEIO TERMO DEMOCRACIA SEMIDIRETA: não existe, na realidade, continuamente. De fato ela “acontece” nas democracias indiretas sempre que o povo é chamado para tomar uma decisão direta de governo. Nenhum Estado é aqui classificado (é um acontecimento eventual das democracias indiretas, pois, se existisse continuamente, seria direta). Pode ocorrer, eventualmente, também, em monarquias. DEMOCRACIA SEMIDIRETA: diante da impossibilidade irremovível de alcançar-se a democracia direta, traduz as instituições que possibilitem um meio-termo entre a DEMOCRACIA DIRETA dos antigos e a DEMOCRACIA REPRESENTATIVA tradicional dos modernos. Alteram-se as formas clássicas de democracia representativa para aproximá-la cada vez mais da democracia direta. O POVO não se cinge apenas a eleger, senão que chega a estatuir o POVO não só elege como legisla acrescenta-se à participação política certa participação jurídica. Com a DEMOCRACIA SEMIDIRETA, a alienação política de vontade popular faz-se apenas parcialmente. A SOBERANIA está com o povo, e o GOVERNO, mediante o qual essa soberania se comunica ou exerce, pertence por igual ao elemento popular nas matérias mais importantes na vida pública. Determinadas INSTITUIÇÕES, como o REFERENDUM, a INICIATIVA, o VETO e o DIREITO DE REVOGAÇÃO, fazem efetiva a intervenção do povo: garantem-lhe um poder de decisão de ultima instância, supremo, definitivo, incontrastável. 3.2. A DEMOCRACIA SEMIDIRETA NO SÉCULO XX (A) PROLIFERAÇÃO DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA Após a PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL : larga proliferação nas três primeiras décadas do Século XX. EEUU: algumas instituições da democracia semidireta são conhecidas e praticadas na America do Norte desde fins do século XVIII. A Constituição dos EEUU delas não trata, mas tais INSTITUIÇÕES aparecem nas Constituições dos Estados Membros, que fazem largo uso das mesmas. ALEMANHA (Constituição de Weimar): aparecerem as modalidades originais de emprego dos institutos da democracia semidireta. FRANÇA: o referendum constitucional francês se deu quase sempre no declive da democracia para o cesarismo. (B) OS PARTIDOS POLÍTICOS E O DECLÍNIO DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA Após a SEGUNDA GUERRA MUNDIAL : emprego mais sóbrio das técnicas de democracia indireta. 85 86 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Arrefeceu o entusiasmo que rodeara a democracia semidireta as esperançosas vistas do sistema democrático se voltam para uma nova panacéia: a dos PARTIDOS POLÍTICOS. A confiança deixou de pertencer ao POVO como massa numérica na anárquica e duvidosa expressão de seu voto direto e plebiscitário para pertencer ao POVO-MASSA com sua vontade canalizada através dos condutos partidários. Declínio da democracia semidireta em uma máxima racionalização do poder. Para alguns autores, os problemas dos excluídos só podem ser resolvidos através do poder disciplinado, organizado e racional dos PARTIDOS. A atual descrença generalizada nos partidos tem determinado uma reversão tocante ao futuro dos instrumentos da democracia semidireta. Isto é o que se pode inferir da presença de alguns dos institutos da democracia semidireta na CRFB/88 (art. 17, I, II e III plebiscito, referendo, iniciativa popular). 3.3. OS INSTITUTOS DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA Os MECANISMOS DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA: 1. Referendum; 2. Plebiscito; 3. Iniciativa; 4. Direito de revogação; 5. Veto (referendum facultativo). (ROUSSEAU): “os deputados não são nem podem ser representantes do povo; são apenas seus comissários: nada podem concluir em maneira definitiva”. “Toda lei que o povo pessoalmente não haja ratificado é nula: não é lei.” 3.3.1. REFERENDUM 3.3.1.1. IDÉIA CENTRAL (RICARDO FIUZA): é a consulta feita ao povo a posteriori (depois que determinada legislação foi elaborada pelo órgão próprio de governo). Não é medida tomada ainda se aprovada é que a medida é colocada em vigor. O povo, através do REFERENDO, mantém o poder de sancionar as leis. O Parlamento normalmente elabora a lei mas esta só se torna juridicamente perfeita e obrigatória, depois da aprovação popular. A espécie legislativa é submetida ao sufrágio dos cidadãos, que votarão pelo sim ou pelo não, por sua aceitação ou por sua rejeição. 3.3.2.2. MODALIDADES DE REFERENDUM 86 87 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O REFERENDUM pode ser: (a) Quanto ao objeto: REFERENDUM CONSTITUINTE para leis constitucionais; REFERENDUM LEGISLATIVO para leis ordinárias. Existem critérios mais flexíveis que consideraram por objeto do REFERENDUM não somente os atos normativos (leis), mas todas as questões importantes da vida pública. (b) Quanto aos efeitos: REFERENDUM CONSTITUTIVO a norma jurídica entra em vigor; REFERENDUM AB-ROGATIVO a norma vigente expira. (c) Quanto à natureza jurídica: REFERENDUM OBRIGATÓRIO quando a Constituição dispõe que a norma elaborada pelo Parlamento deve ser submetida à aprovação da vontade popular; REFERENDUM FACULTATIVO quando se confere a determinado órgão ou a parcela do corpo eleitoral competência para fazer ou requerer consulta aos eleitores não se trata de obrigação constitucional. (d) Quanto ao tempo: REFERENDUM ANTE LEGEM anterior, consultivo, preventivo ou programático a manifestação da vontade popular antecede a lei busca-se conhecer de antemão o pensamento da massa eleitoral acerca do ato legislativo ordinário ou de determinada reforma constitucional que se proponha. REFERENDUM POST LEGEM sucessivo ou pós-legislativo segue cronologicamente ao ato estatal para conferir-lhe ou tolher-lhe existência ou eficácia a lei já votada pelo Legislativo ordinário ou constituinte (primeira fase), vai ser sujeita diretamente ao povo (segunda fase), que se manifesta de modo favorável ou desfavorável à mesma. O REFERENDUM CONSULTIVO (ANTE LEGEM) pode ter por objeto distintas formas de ato público e não somente a lei anterior a qualquer ato público. Pode ser (pelas suas conseqüências): (a) VINCULANTE como o que levou a Itália a instituir a forma republicana em 02/06/1946; (b) DE OPÇÃO como o que colocou o povo francês em presença de três soluções políticas, em 21/10/1945: o retorno às leis constitucionais da Terceira República de 1875; a eleição de uma assembléia constituinte munida de plenos poderes ou a eleição de uma assembléia com poderes limitados (solução aceita); (c) MERAMENTE CONSULTIVO sem caráter vinculante, opinativo observância facultativa. O REFERENDUM ARBITRAL (ou DE ARBITRAGEM): instituído na Constituição de Weimar (art. 74) o povo se tornava árbitro de pendências entre os poderes públicos. O povo soberano resolve (em definitivo) eventuais conflitos de natureza legislativa entre o titular do Poder Executivo (Presidente da República) e os membros do Poder Legislativo. Aplicava-se também à solução de controvérsias legislativas entre as duas Casas da Representação (Reichstag e Reichsrat). A Constituição de Weimar previa ainda (art. 73) a possibilidade de o REFERENDUM ARBITRAL ocorrer em caso de conflito sobre leis entre os membros de uma mesma Câmara (Reichstag). 87 88 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 3.3.2.3. VANTAGENS DO REFERENDUM (a) Serve de anteparo à onipotência eventual das assembléias parlamentares; (b) Torna verdadeiramente legítima pelo assenso popular a obra legislativa dos parlamentos; (c) Dá ao eleitor uma arma contra o “jugo dos partidos”. (d) Transforma o povo, de espectador não raro adormecido ou indiferente às questões públicas, em colaborador ativo para a solução de problemas da mais alta significação social; (e) Promove a educação dos cidadãos; (f) Afasta das casas legislativas a influência perniciosa das camarilhas políticas; (g) Retira dos governantes o domínio que exercitam sobre o governo. 3.3.2.4. RISCOS DO REFERENDUM (a) Desprestígio das câmaras legislativas, com conseqüente diminuição de seus poderes; (b) Altos índices de abstenção; (c) A invocação do argumento de Montesquieu acerca do despreparo do povo para governar; (d) Ausência de debates; (e) Risco de repetição freqüente ao redor de questões sem importância, que acabariam provocando o enfado popular; (f) O afrouxamento da responsabilidade dos governantes (ao menor embaraço comodamente transfeririam para o povo o peso das decisões); (g) Possibilidade de desenfreada demagogia; (h) O dissídio essencial da instituição com o sistema representativo. (BISCARETTI DI RUFFIA): Circunstâncias para admissão do referendum: 1. Ser solicitado por uma parcela de eleitores nunca inferior a dez por cento; 2. Oferecer plena informação acerca da questão discutida; 3. Ser alheio ao influxo dos partidos (não devendo coincidir com as eleições parlamentares); 4. Excluir determinadas categorias de leis (urgentes, financeiras, etc.); 5. Cada votação concreta deve limitar-se a poucas questões. Houve manifesto temor de que o povo fosse utilizar o REFERENDO para mudanças sociais intempestivas, abruptas, irrefletidas. Receio que a falta de experiência do povo pudesse gerar um emprego revolucionário que abalasse fundo as estruturas sociais de aparência mais estável. Surpresa espantosa se teve os resultados da aplicação do REFERENDO demonstraram o sentimento do povo avesso às inovações. (BARTHÉLEMY & DUEZ): “no fundo, a massa do povo é conservadora e tem medo do desconhecido”.266 2.3. PLEBISCITO 266 Nesse sentido, BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 287. 88 89 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (RICARDO FIUZA): PLEBISCITO é a consulta feita ao povo a priori (antes que determinada medida seja tomada pelo órgão próprio do Governo). A decisão é diretamente tomada pelo povo depois os legisladores fazem a lei. (SAINT ROMANO; BISCARETTI DI RUFFIA; MORTATI): para os autores, o PLEBISCITO é circunscrito sempre a leis ato extraordinário e excepcional, tanto na ordem interna como externa. Tem por objeto medidas políticas, matéria constitucional, tudo que se refira à estrutura essencial do Estado ou de seu governo, à modificação ou conservação das formas políticas. (LAFERRIÉRE): para o autor, o PLEBISCITO é um “pronunciamento popular válido por si mesmo”, unilateral, que independe do concurso de qualquer outro órgão do Estado. (HAURIOU; DUVERGER) para os autores, o PLEBISCITO tem dois traços principais: (1) Nenhuma alternativa oferece ao corpo eleitoral (estranho à elaboração do ato) o eleitor cinge-se tão-somente a aprová-lo ou rejeitá-lo; (2) O ato, via de regra, implica uma outorga de poderes ou uma manifestação de confiança ao Chefe de Estado se assenta em apelos freqüentes ao povo. (DUVERGER): o REFERENDUM demanda apenas a “aprovação de uma reforma”; o PLEBISCITO consiste em “dar confiança a um homem”. No PLEBISCITO, concedem-se faculdades ilimitadas de poder e prestigia-se o governante com ampla base de sustentação popular, harmonizando sua proposta com os sentimentos e interesses das classes populares. No REFERENDUM vota-se “por um texto”; no PLEBISCITO, “por um nome”. (BARACHO JÚNIOR):267 O PLEBISCITO é uma consulta de natureza eminentemente política, uma vez que o resultado da deliberação plebiscitária não estabelece um vínculo jurídico para os representantes, que podem votar contrariamente ao que foi deliberado pelos representados. (BARACHO JÚNIOR):268 O REFERENDO, além de sua natureza política, característico de uma consulta popular, tem natureza jurídica, uma vez que constitui ato de integração de eficácia de um ato normativo que confirmará ou não a eficácia da norma antes aprovada pelo Legislativo. (DALMO DALLARI): trata-se apenas de um referendum consultivo (na verdade, constitutivo) consulta prévia à opinião popular.269 2.4. INICIATIVA 2.4.1. IDÉIA CENTRAL (RICARDO FIUZA): não é consulta, mas a capacidade que é dada ao povo, pela Constituição, de apresentar, através de “abaixo-assinado”, um projeto de legislação ao órgão próprio de governo. INICIATIVA POPULAR: capacidade jurídica do povo de propor formalmente a legislação que, no seu entender, melhor corresponda ao interesse público. 267 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 97. 268 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 97. 269 Cf. Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 154. 89 90 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Direito passível de ser exercitado desde que, para tanto, determinada fração do corpo eleitoral reúna o número legal de proponentes, indispensável para dar o impulso legislativo. Da iniciativa resultará o estabelecimento de novas leis ou a ab-rogação das existentes (em matéria de legislação ordinária, ou constitucional). (PEDRO LENZA):270 forma direta de exercício do poder (que emana do povo), sem o intermédio de representantes. (CANOTILHO): em uma abordagem mais genérica, em Portugal, entende que “a INICIATIVA POPULAR é um procedimento democrático que consiste em facultar ao povo (a uma percentagem de eleitores ou a um certo número de eleitores) a iniciativa de uma proposta tendente à adopção de uma norma constitucional ou legislativa”. (LAFERRIÈRE): o VETO e o REFERENDUM asseguram ao povo que ele não será submetido a uma legislação que não queira, mas não obrigam juridicamente o parlamento a legislar. Pela INICIATIVA POPULAR, os parlamentos se obrigam tão somente a discutir e votar os projetos de origem popular, mas não a aceitá-los. É freqüente a combinação da INICIATIVA com o REFERENDUM, em determinados sistemas. Surgindo pendência, pode-se buscar a solução no REFERENDUM. Nesse caso, a lei será fruto exclusivo da vontade do povo, sem participação das assembléias representativas, até mesmo contra a resistência política que estas possam lhe mover. (XIFRA HERAS): com a INICIATIVA POPULAR “os cidadãos não legislam, mas fazem com que se legisle”. 2.4.2. FORMAS PRINCIPAIS Duas formas principais de INICIATIVA POPULAR: (1) a iniciativa não formulada e (2) a iniciativa formulada (ou articulada). INICIATIVA NÃO FORMULADA (simples ou pura): os promotores da iniciativa popular consignam apenas os traços gerais, os propósitos, os princípios da lei cabe ao órgão representativo dar forma ao projeto. Similar a “moção” do direito público suíço. O povo exerce apenas um direito de petição vinculante (ou reforçado) que obriga o parlamento a preparar projeto de lei sobre o assunto, discuti-lo e votá-lo votada a lei, exaure-se o processo. Se a assembléia se recusa a pôr em pauta a matéria ou rejeita o projeto a questão volta ao povo, que poderá devolvê-lo à assembléia, ficando esta, então, obrigada a elaborar a lei, a qual será ainda objeto de referendum. INICIATIVA FORMULADA: leva o projeto popular à assembléia num texto em forma de lei (por vezes redigido em artigos), em condições de ser discutido e votado. (LAFERRIÈRE): se a assembléia o recusar, ou fizer-lhe consideráveis alterações, ou mesmo deixar expirar o prazo sem sequer examiná-lo, o projeto oriundo da INICIATIVA é submetido à 270 Cf. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 392. 90 91 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG aceitação ou rejeição do povo (pode a assembléia recomendar a rejeição ou apresentar um contraprojeto, que será igualmente conduzido à votação popular). 2.4.3. EXPERIÊNCIAS CONSTITUCIONAIS Em 1898, adotou-se pela primeira vez a INICIATIVA POPULAR, no Estado de South Dakota, nos Estados Unidos. Oregon (1904) foi o primeiro Estado que fez uso dessa técnica do governo semidireto. CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR: admitia a INICIATIVA quando tomada no mínimo pela décima parte do eleitorado. LEI FUNDAMENTAL DE BONN: a INICIATIVA vem prevista no art. 29, para efeito de modificação do território dos Laender. CONSTITUIÇÃO ITALIANA (1947): 50.000 eleitores (art. 71, inciso 2) podem obrigar o Parlamento a discutir um projeto articulado, oriundo da INICIATIVA POPULAR. 2.5. DIREITO DE REVOGAÇÃO 2.5.1. IDÉIA CENTRAL DIREITO DE REVOGAÇÃO: permite pôr termo ao mandato eletivo de um funcionário ou parlamentar, antes da expiração do prazo legal. Dois países principalmente o admitem: a Suíça e os Estados Unidos. Duas modalidades correntes: o recall e o Abberufungsrecht. 2.5.2. RECALL RECALL: forma de revogação individual do mandato. 12 estados norte-americanos aplicam o RECALL ampla aplicação municipal nos Estados Unidos inexiste no plano federal. Na órbita estadual, apenas um Governador (Oregon, em 1821), saiu pelo RECALL. Capacita o eleitorado a destituir funcionários, cujo comportamento, por qualquer motivo, não esteja agradando. Determinado número de cidadãos (em geral, a décima parte do corpo de eleitores), em petição assinada, faz acusações contra o deputado ou magistrado que não goza mais da confiança popular, pedindo sua substituição, ou intimando-o a que se demita do exercício de seu mandato. Decorrido o prazo sem sua demissão, procede-se à votação, ao qual, ao lado de novos candidatos pode concorrer a mesma pessoa. Aprovada a petição, o magistrado ou funcionário tem o seu mandato revogado rejeitada, considera-se eleito para novo período. 91 92 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Em muitos casos, dá-se a possibilidade do acusado de imprimir sua defesa na própria cédula que será usada pelos eleitores.271 CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR (art. 71): destituição do Presidente do Reich, a pedido do Reichstag, através de votação popular. Feita a consulta, o RECALL se consumava com a queda do Presidente, se o resultado da votação lhe era desfavorável. Caso a votação firmasse sua manutenção no poder, mandato era renovado e dissolvia-se o Reichstag. (DALMO DALLARI): “apontam-se, entretanto, muitos inconvenientes em todas as modalidades de recall, razão pela qual seu uso é relativamente raro, devendo-se notar que os parlamentares, a quem caberia aperfeiçoar esse instituto, preferem eliminá-lo para não ficarem sujeitos aos seus efeitos”.272 2.5.3. RECALL DOS JUÍZES E DAS SENTENÇAS JUDICIÁRIAS CONSTITUIÇÕES do OREGON e da CALIFÓRNIA: estendem o RECALL aos juízes. CRÍTICA: envolvendo-se o juiz em baixos interesses políticos, sua independência pode ficar prejudicada. (JOSEPH BARTHÉLEMY & PAUL DUEZ): entendem que, o povo pode se frustrar mesmo tendo o REFERENDUM para evitar leis más e a INICIATIVA POPULAR para obter boas leis, se o juiz puder paralisar as leis pela declaração de inconstitucionalidade. (THEODORE ROOSEVELT - 1912): defendia o RECALL dos juízes e das decisões judiciais. Defendeu o direito do povo de cassar a sentença dos juízes (faculdade do povo de reformar decisão acerca da constitucionalidade da lei). O sistema foi introduzido no Colorado. ROOSEVELT, em seu projeto, excluía do RECALL as decisões da Suprema Corte. 2.5.4. ABBERUFUNGSRECHT ABBERUFUNGSRECHT: forma de revogação coletiva. Não se trata, como no RECALL, de cassar o mandato de um indivíduo, mas o de toda uma assembléia. Requerida a dissolução, por determinada parcela do corpo eleitoral, a assembléia terá findo seu mandato se votação (por apreciável percentagem constitucional de eleitores) decidir que o corpo legislativo decaiu da confiança popular. Admitido em 7 cantões na Suíça (e um semicantão). 2.6. VETO (RICARDO FIUZA): não é consulta, mas a capacidade dada ao povo, pela Constituição, para, através de “abaixo-assinado”, rejeitar legislação já elaborada pelo órgão próprio de Governo. 271 Nesse sentido, Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 155. 272 Cf. Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 155. 92 93 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Será DIRETO se o povo, no prazo que lhe é dado, rejeitar a legislação; será INDIRETO se o povo, no prazo que lhe é dado, pedir seja feito um REFERENDO e o responder negativamente (Ex.: publica e deixa prazo para o povo se arregimentar e por “abaixo assinado” rejeitar o projeto). VETO: faculdade que permite ao povo votar contra uma medida ou lei, já elaborada pelos órgãos competentes, e em vias de ser posta em execução. Por provocação de certo número de cidadãos, em determinado prazo (em geral 60 a 90 dias), uma lei já publicada pode ser submetida à aprovação ou rejeição do corpo eleitoral. A lei não entra em vigor antes de decorrido o prazo se houver a provocação de certo número de cidadãos, ela continua com sua eficácia suspensa até a votação.273 Se a lei for rejeitada, considera-se a lei inexistente (como se nunca houvesse sido feita) o VETO tem efeito retroativo (não se trata de simples ab-rogação). O povo, perante uma lei acabada (prestes a entrar em vigor), tem o poder de impedir sua aplicação o silêncio popular, porém, equivale à sua aceitação. DUVERGER: para o autor, o VETO se equivale ao REFERENDUM FACULTATIVO. 2.7. MECANISMOS ADOTADOS PELA CRFB/88 A CRFB/88 adotou o PLEBISCITO, o REFERENDO e a INICIATIVA POPULAR: Art. 13. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. Art. 27. § 4º. A lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual. Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] XIII – iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado; [...]. Art. 49. É da COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CONGRESSO NACIONAL: [...] XV - autorizar referendo e convocar plebiscito; [...]. Art. 61. [...] § 2º. A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. No BRASIL, a INICIATIVA POPULAR retrata a possibilidade de o eleitorado nacional deflagrar o processo legislativo de lei ordinária e de lei complementar. Novidade introduzida pela CRFB/88, a exemplo do art. 71 da Constituição Italiana de 1948. (JOSÉ AFONSO DA SILVA): independe de regulamentação legal, pois o próprio texto constitucional já deu requisitos necessários e suficientes. A Lei 9.709/98, porém, regulamenta o instituto. 273 Cf. Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 154. 93 94 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A INICIATIVA POPULAR apenas deflagra o processo legislativo, podendo a Casa Legislativa rejeitar o projeto de lei ou emendá-lo. Nos termos da Lei 9.709/98, o projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a UM SÓ ASSUNTO. (PEDRO LENZA): o dispositivo legal facilita a coleta de assinaturas e a compreensão do que se está assinando.274 Nos termos da Lei 9.709/98, o projeto de lei de iniciativa popular NÃO PODE SER REJEITADO POR VÍCIO DE FORMA, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação a Câmara dos Deputados deve dar seguimento à INICIATIVA POPULAR nos termos das normas do Regimento Interno. (PEDRO LENZA) existem apenas 3 projetos de lei decorrentes de INICIATIVA POPULAR aprovados:275 (1) Lei 8.930/94 (Projeto de iniciativa popular Glória Perez para modificação da Lei de crimes hediondos) embora tenha reunido as assinaturas necessárias, na prática, o projeto foi encaminhado pelo Presidente da República; (2) Lei 9.840/99 (Lei de combate a corrupção eleitoral pela compra de votos) face à dificuldade na coleta de assinaturas, na prática, o projeto foi subscrito pelo Deputado Albérico Cordeiro e outros 59 parlamentares; (3) Lei 11.124/2005 (fundo nacional para moradia popular – 1º projeto de iniciativa popular da história brasileira) tramitou por 13 anos. (PEDRO LENZA): em novembro de 2008, o eleitorado nacional era de 130.394.755 eleitores exigir-se-ia, assim, pelo menos 1.303.947 assinaturas de eleitores, observada ainda a regra do percentual mínimo por Estado assim, faz sentido o dizer de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO de que se trata de “instituto decorativo”.276 Apesar de se tratar de instituto de difícil utilização, trata-se de mecanismo democrático relevante de movimentação da opinião pública e pressão sobre o Parlamento. Embora não enfrentado ainda pelo STF, entendemos que cabe INICIATIVA POPULAR em matérias de iniciativa reservada (ou exclusiva), em especial pelo privilégio que se deve dar ao exercício da democracia direta face às deliberações dos representantes eleitos ou de outros Órgãos do Poder, que apenas de forma derivada exercem o poder que emana originalmente do povo.277 INICIATIVA POPULAR EM EMENDA CONSTITUCIONAL: a maioria da doutrina entende incabível, em decorrência de uma interpretação mais literal do dispositivo do art. 61, § 2º c/c/ art. 60, I, II e III da CRFB/88. Apesar das razões acima expostas, não acompanhamos JOSÉ AFONSO DA SILVA e PEDRO LENZA, no sentido de que é possível a iniciativa popular em PEC para nós, além da vedação decorrente das possibilidades de sentido da letra da CRFB/88, o influxo de sentimentos momentâneos de revolta não coaduna com a rigidez e perenidade que o texto constitucional deve ter. 274 Cf. LENZA, Pedro. Direito..., cit. p. 393. 275 Cf. LENZA, Pedro. Direito..., cit. p. 393-396. 276 Cf. LENZA, Pedro. Direito..., cit. p. 393 e 396. 277 Nessa mesma direção, LENZA, Pedro. Direito..., cit. p. 395-396 e 399. Contra, SILVA, José Afonso da. Comentário contextual..., cit. p. 449. 94 95 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Não cabe INICIATIVA POPULAR em medidas provisórias ou leis delegadas, por se tratar de espécie legislativa de manejo exclusivo e próprio do Presidente da República. Da mesma forma não cabe INICIATIVA POPULAR em resoluções ou decretos legislativos porque estes são instrumentos exclusivos e próprios das Casas legislativas expressarem suas competências privativas. A INICIATIVA POPULAR nos Municípios deve se dar nos termos definidos na LEI ORGÂNICA MUNICIPAL. Nada impede, a nosso sentir, que o constituinte decorrente preveja o instituto da iniciativa popular para EMENDA DE CONSTITUIÇÃO ESTADUAL ou de LEI ORGÂNICA DE MUNICÍPIO (como já ocorre em diversos Estados), em razão do poder de auto-organização dos entes federados e da maior proximidade dos Governos estaduais e municipais do eleitorado, bem como em decorrência da maior segurança proporcionada pela carta de garantias firmadas pela Constituição Federal. 95 96 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 4. A DEMOCRACIA E O ESTADO PARTIDÁRIO (A) O PARTIDO POLÍTICO COMO CANAL DE MANIFESTAÇÃO DAS MASSAS O Estado de nossos dias é dominantemente partidário. (PAULO BONAVIDES): a irresistível pressão oriunda das camadas economicamente inferiores da sociedade produziu a necessidade do emprego de um instrumento que servisse à comunicação dos anseios populares de teor reivindicatório tal instrumento, no século XX, não é outro senão o PARTIDO POLÍTICO.278 Tanto na democracia como na ditadura, o PARTIDO POLÍTICO é hoje o poder institucionalizado das massas. (SIR ERNEST BACKER): forma aquela ponte ou canal, através da qual as correntes de opinião afluem da área da sociedade, onde nascem, para a área do Estado e suas instituições, onde afetam ou dirigem o curso da ação política. (ROUSSEAU): todo o consentimento das massas, manifesto ou presumido, consoante a ordem política seja livre ou autoritária, há de circular sempre através de um órgão ou poder intermediário, onde corre porém o risco de alienar-se por inteiro (hoje, esse órgão é o PARTIDO POLÍTICO). (B) OS RISCOS DO ESTADO PARTIDÁRIO Não raro, os PARTIDOS, considerados instrumentos fundamentais da democracia, se corrompem: não raro, no seio dos partidos, costuma-se formar uma vontade infiel e contraditória com os anseios da massa sufragante, estranha ao povo, alheia de seus interesses. Existe sempre o risco de firmar-se uma DITADURA INVISÍVEL DOS PARTIDOS desvinculada do povo, e desta se estender às CASAS LEGISLATIVAS, com o risco maior de a representação política exercer um mandato imperativo dominado pela direção partidária. (PAULO BONAVIDES): “o partido onipotente, a essa altura, já não é o povo nem sua vontade geral. Mas ínfima minoria que, tendo os postos de mando e os cordões com que guiar a ação política, desnaturou nesse processo de condução partidária toda a verdade democrática.279 (C) O RETORNO DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA COMO CORRETIVO AO ESTADO PARTIDÁRIO Os INSTITUTOS DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA podem ser corretivos constitucionais aptos a contrabalancear o absolutismo da BUROCRACIA PARTIDÁRIA (dos oligarcas que recebem da democracia o poder de destruir a democracia mesma).280 (PAULO BONAVIDES): quando a chamada “lei de bronze” da democracia partidária de nossos dias transfere o poder para a liderança oligárquica cristalizada no seio dos partidos, alguém, levando a contradição até o fim, erguerá o clamor contra os partidos e em nome da democracia mesma pedirá sejam eles suprimidos. (D) O ESTADO PARTIDÁRIO COMO DEMOCRACIA COLETIVISTA A DEMOCRACIA DO ESTADO PARTIDÁRIO do Estado Social não confunde com a DEMOCRACIA PARLAMENTAR e representativa do Estado Liberal. 278 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 277. 279 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 278. 280 Nesse sentido, BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 278. 96 97 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A DEMOCRACIA DO ESTADO PARTIDÁRIO caracteriza-se como democracia coletivista , social , onde a compreensão dos valores humanos terá de fazer-se sempre com referência a grupos e não a indivíduos. O GRUPO não pode, porém, ser considerado como um fim em si mesmo, senão como algo que é o meio e instrumento para as afirmações básicas da personalidade humana. O HOMEM deve se conservar sempre como ponto de partida e destinatário de toda a ação social. (E) O PARLAMENTAR E A COAÇÃO PARTIDÁRIA Com o ESTADO PARTIDÁRIO, todo o sistema representativo tradicional entra em crise. Os PARTIDOS POLÍTICOS se convertem na força condutora do destino da coletividade democrática. A ação dos PARTIDOS POLÍTICOS absorveu a independência do representante fê-lo um delegado da confiança partidária, mudando por conseqüência a natureza do mandato. O DEPUTADO, contemporaneamente, é homem de partido, e não mais livre para atuar do modo que entenda consentâneo com o bem geral. A coação partidária modernamente restringe a liberdade do parlamentar. A consciência individual cede lugar à consciência partidária; os interesses predominam sobre as idéias; a discussão se faz substituir pela transação; a publicidade pelo silêncio; a convicção pela conveniência; o plenário pelas antecâmaras; a liberdade do deputado pela obediência às determinações dos partidos. A DISCIPLINA POLÍTICA NO INTERIOR DOS PARTIDOS sobre o comportamento externo dos seus membros nas casas legislativas vai se tornando cada vez mais efetiva entrega-se, assim, juridicamente, o Estado aos partidos. (F) O ELEITOR E A RESTRIÇÃO DE SUAS OPÇÕES O eleitor não vota livre, isso em, fora dos partidos. Não é admitido a votar senão em nome dos partidos (SISTEMA UNINOMINAL), nas pessoas que representam esses partidos. No SISTEMA PROPORCIONAL, vota-se nas idéias ou no programa dos partidos. Firma-se uma dependência técnica do eleitor ao partido, reduzindo a faculdade deste de intervir ativamente na formação da vontade política, que fica restrita ao sistema de opções que o quadro político- partidário pluralista ofereça. (G) OS PARTIDOS E A DISCUSSÃO PARLAMENTAR A DISCUSSÃO PARLAMENTAR em seus moldes clássicos e solenes fica proscrita, com os partidos e suas representações buscando antes impor-se ao adversário do que persuadi-lo. (GUSTAV RADBRUCH): não se trata de convencer o competidor, mas de coagi-lo ou esmagá-lo, pois a luta pelo poder substitui em definitivo a luta pela verdade. 97 98 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG As CASAS LEGISLATIVAS, dantes órgãos de apuração da verdade, se transformam em instrumentos de oficialização vitoriosa de interesses previamente determinados. 98 99 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 3. O SISTEMA REPRESENTATIVO 3.1. AS DOUTRINAS POLÍTICAS DA REPRESENTAÇÃO (CARL SCHMITT): “não há Estado sem representação” “em todo Estado haverá sempre homens que poderão dizer L’état c’est nous”. (A) A REPRESENTAÇÃO DE DIREITO PRIVADO (LAFERRIÈRE): “em DIREITO PRIVADO, o fenômeno da REPRESENTAÇÃO se vincula à existência de uma relação de direito legal ou convencional entre o representante e o representado. Quando a REPRESENTAÇÃO de um indivíduo por outro não é organizada mediante lei (como a representação do menor pelo tutor), tem ela sua fonte num contrato. A REPRESENTAÇÃO cria entre as partes uma relação jurídica pela qual os atos do mandatário produzem os mesmos efeitos como se emanassem diretamente do mandante. As manifestações de vontade do REPRESENTANTE têm o mesmo valor e produz os mesmos efeitos jurídicos se emanassem do REPRESENTADO. Se o REPRESENTANTE mantém-se nos limites de seus poderes, é considerado como exprimindo a vontade mesma do REPRESENTADO, como se ele mesmo houvesse atuado. (B) A REPRESENTAÇÃO DE DIREITO PÚBLICO (BLUNTSCHID): “a REPRESENTAÇÃO DE DIREITO PÚBLICO é inteiramente distinta da REPRESENTAÇÃO DE DIREITO PRIVADO os princípios fundamentais desta não podem ser aplicados àquela” (MARCEL PRÉLOT): no MANDATO POLÍTICO (IMPERATIVO), ao contrário do MANDATO CIVIL, identifica-se o eleito, mas não se identificam os eleitores, que ficam acobertados pelo voto secreto; da mesma forma, não aparece claro nem determinado o objeto do contrato (pois o programa político a isto dificilmente se prestaria).281 (FRIEDRICH GLUM): a REPRESENTAÇÃO deixa de ser de direito privado e se politiza, desde que seus fins transcendam os fins e interesses individuais. Na REPRESENTAÇÃO DE DIREITO PÚBLICO, a questão que se coloca é a de se saber se há “DUPLICIDADE” ou “IDENTIDADE” com a presença e ação do REPRESENTANTE. (C) A TESE DA DUPLICIDADE X TESE DA IDENTIDADE A DUPLICIDADE foi o ponto de partida para a elaboração de todo o moderno sistema representativo (fórmula política consagrado do Estado Liberal). REPRESENTANTE: tomado politicamente por nova pessoa, portadora de uma vontade distinta daquela do representado. O REPRESENTANTE é senhor absoluto de sua capacidade decisória, presumidamente voltado, de maneira permanente, para o bem comum. 281 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 264. 99 100 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O REPRESENTANTE é órgão de um corpo político espiritual (a NAÇÃO), cujo querer simboliza e interpreta, quando exprime sua vontade pessoal. O CORPO ELEITORAL não possui na realidade vontade soberana, mas atua mais como instrumento de designação, uma vez que o verdadeiro mandante é a NAÇÃO, da qual o representante é o intérprete, sem laços de sujeição ao eleitor.282 O ESTADO LIBERAL consagrava o MANDATO LIVRE, de índole adversa aos partidos políticos. As SOCIEDADES DE MASSAS se inclinam a cercear as faculdades do REPRESENTANTE, jungindo-as às organizações partidárias e profissionais ou aos grupos de interesses, fazendo o MANDATO cada vez mais imperativo. A IDENTIDADE retrata a fidelidade ao mandante retira do REPRESENTANTE todo o poder de intervenção política animada pelos estímulos de sua vontade autônoma e o acorrenta à vontade dos governados. O REPRESENTANTE tem o dever de “reproduzir” a vontade dos REPRESENTADOS. A ficção da IDENTIDADE impregnou todo sistema representativo do século XX. Pode-se distinguir, conforme a TEORIA DA DUPLICIDADE e a TEORIA DA IDENTIDADE os MANDATOS REPRESENTATIVOS e os MANDATOS IMPERATIVOS, respectivamente. No MANDATO REPRESENTATIVO, a cautela recai mais na seleção do representante, do que nas preocupações democráticas triunfo da razão reformadora da sociedade. 3.2. A DOUTRINA DA DUPLICIDADE (A) A DUPLICIDADE E A ORGANIZAÇÃO LIBERAL DA SOCIEDADE Formata a organização liberal da sociedade independência do REPRESENTANTE em face do eleitor. Os REPRESENTANTES se fizeram depositários da soberania, exercida em nome da NAÇÃO ou do POVO. Os REPRESENTANTES puderam, livremente, exprimir idéias ou convicções, fazendo-as valer, sem a preocupação de saber se seus atos e princípios estavam ou não em correspondência com a vontade dos representados. (JOHN MILTON – 1660): depois das eleições, os DEPUTADOS já não são responsáveis perante os eleitores. (ALGERNON SIDNEY – 1698): os membros do Parlamento não são simples emissários desta ou daquela circunscrição eleitoral, mas se acham dotados de competência para atuar em nome de todo o reino. (BLACKSTONE - século XVIII): os membros do Parlamento representam o reino inteiro e não um distrito eleitoral particular. Na DOUTRINA DA DUPLICIDADE marcam-se duas vontades legitimas e distintas atuando no sistema representativo: (1) A VONTADE DO ELEITOR menor e fugaz; restrita à operação eleitoral; (2) A VONTADE DO ELEITO ou representante autônoma e politicamente criadora. 282 Nesse sentido, BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 260. 100 101 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A função dos colégios eleitorais se esvazia com a operação eleitoral (simples instrumento de designação do REPRESENTANTE). A DOUTRINA DA DUPLICIDADE exige: a publicidade; o livre debate no plenário das assembléias; o bem comum fortalecido pelas inspirações da razão; o culto da verdade; o principio de justiça. (B) A DUPLICIDADE E O TEOR ARISTOCRÁTICO DA REPRESENTAÇÃO (MONTESQUIEU): a maior vantagem dos REPRESENTANTES é que eles, em substituição ao povo, são aptos a discutir os negócios. Dos eleitores, bastava o representante trazer uma orientação geral nada de instruções particulares acerca de cada assunto. MONTESQUIEU entendia ser o POVO incapaz para debater a coisa publica ou gerir os negócios coletivos. Cabe ao POVO tão somente escolher os representantes atribuição para a qual o reputa sobejamente qualificado. Afina-se com uma ORDEM POLÍTICA ARISTOCRÁTICA. Empenha-se em arredar o POVO do exercício imediato do poder, mediante justificações acerca de sua incapacidade para governar. (C) A DUPLICIDADE E A ATUAÇÃO EM NOME DA NAÇÃO Com a REVOLUÇÃO FRANCESA firmou-se a absoluta independência política do REPRESENTANTE, capacitado a querer em nome da NAÇÃO, sem mais vínculos ou compromissos com os colégios eleitorais. (BARNAVE – sessão de 10 de agosto de 1791): “o que distingue o REPRESENTANTE daquele que não é senão um FUNCIONÁRIO PÚBLICO é ser ele incumbido, em certos casos, de querer em nome da nação, ao passo que o mero funcionário tem apenas a incumbência de servi-la”. (SIEYÈS): “é para a utilidade comum que os cidadãos nomeiam REPRESENTANTES, bem mais aptos que eles próprios a conhecer o interesse geral e a interpretar sua própria vontade”. Tempo e instrução eram as deficiências que se via nos cidadãos, inabilitando-o ao exercício imediato do poder e justificando a adoção das formas representativas. “Se os cidadãos ditassem sua vontade, já não se trataria de ESTADO REPRESENTATIVO, mas de ESTADO DEMOCRÁTICO”. (CONDORCET): “mandatário do povo, farei o que cuidar mais consentâneo com seus interesses. Mandou-me ele expor minhas idéias, não as suas: a absoluta independência das minhas opiniões é o primeiro de meus deveres para o povo”. Os defensores primeiros da doutrina liberal (MIRABEAU, CONDORCET, BURKE), consideravam o MANDATO IMPERATIVO uma reminiscência do absolutismo.283 (D) A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SISTEMA REPRESENTATIVO 283 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 262-263. 101 102 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Mesmo após a tormenta revolucionária, no século seguinte, o SISTEMA REPRESENTATIVO se institucionaliza. (BENJAMIM CONSTANT): “o SISTEMA REPRESENTATIVO outra coisa não é senão uma organização, mediante a qual a nação incumbe alguns indivíduos de fazerem aquilo que ela não pode ou não quer fazer por si mesma”. (BENJAMIM CONSTANT): “o SISTEMA REPRESENTATIVO é uma procuração dada a certo numero de pessoas pela massa do povo, que deseja que seus interesses sejam defendidos e que nem sempre tem tempo de defendê-los por si mesma”. (CARL SCHMITT - Teoria da Constituição): “parece ter ficado na consciência da teoria do estado é que o REPRESENTANTE não se acha sujeito às instruções e diretrizes de seus eleitores” Para SCHMITT, o REPRESENTANTE é independente não se trata de um funcionário, agente ou comissário. (E) O APOGEU DA DOUTRINA DA DUPLICIDADE A TEORIA DA DUPLICIDADE resguardando a autonomia do representante se propagou da Constituição Francesa de 1791 a outras Constituições, na França e nos demais Estados. (CONSTITUIÇÃO FRANCESA DE 1791): art. 7º, do titulo terceiro, capitulo I e seção 3ª interditava o mandato imperativo (como na Constituição do Ano III, no seu artigo 52). (CONSTITUIÇÃO DO ANO III): “os membros da Assembléia Nacional são representantes, não do departamento que os escolhe, mas de toda a França”. (ESTATUTO FUNDAMENTAL ITALIANO, de 1848): “os deputados representam a nação em geral, e não apenas as províncias pelas quais foram eleitos”. (CONSTITUIÇÃO DE WEIMER, de 1919): “os deputados são representantes de todo o povo, não obedecem senão sua consciência e não se acham presos a nenhum mandato.” (art. 21) No DIREITO CONSTITUCIONAL EUROPEU, influenciado pela doutrina francesa, a regra dominante é a interdição do mandato imperativo. (F) O DECLÍNIO DA TEORIA DA DUPLICIDADE NO SÉCULO XX No SÉCULO XX, varias Constituições continuam ainda abraçadas à DOUTRINA DA DUPLICIDADE. Entretanto, desde a CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR disposições contraditórias e conflitantes (princípios híbridos) começam a abalar a doutrina. A mesma CONSTITUIÇÃO, que proibira o mandato imperativo, trazia a novidade dos instrumentos da democracia semidireta. A DEMOCRACIA SEMIDIRETA se aparta de um sistema autenticamente representativo (pelo menos segundo os moldes habituais do liberalismo). A CF/1967 (e a EC de 1969) rompe com a tradição representativa das Constituições antecedentes abre largo espaço à adoção do Estado partidário e seus anexos plebiscitários. Por um lado, introduz o principio da disciplina partidária (com sanção de perda de mandato); por outro, estreita as imunidades parlamentares retira a tradicional esfera de autonomia de palavra e expressão no uso das prerrogativas de seu mandato, deixando-o 102 103 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG sujeito a uma imperatividade, menos dos eleitores talvez do que das organizações partidárias e dos poderes oficiais do Estado. (G) A CRÍTICA DE ROUSSEAU AO SISTEMA REPRESENTATIVO (ROUSSEAU - Contrato Social): “a tomar a termo em sua acepção rigorosa, jamais houve, jamais haverá verdadeira democracia ”. “Se houvesse um povo de deuses, esse povo governaria democraticamente. Um governo tão perfeito não convém a seres humanos”. (PAULO BONAVIDES): se a DEMOCRACIA lhe parece tão remota, muito mais longe se lhe afigura a forma representativa de governo Rousseau transigirá, de um ponto de vista utilitário, ao buscar fazer aplicação desses princípios para alcançar o menor teor possível de imperfeições na sociedade política.284 A solução democrática, no limite do possível, é a fórmula cujo segredo Rousseau intentará desvelar no Contrato Social. (ROUSSEAU): “se o POVO, pois, promete simplesmente obedecer, ele se dissolve mediante esse ato, perdendo sua qualidade de povo; no instante mesmo em que toma um senhor, deixa de ser soberano, e desde então o corpo político se destrói”. (ROUSSEAU): “a SOBERANIA não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste ela essencialmente na vontade geral e a vontade não se representa: ou é ela mesma ou algo diferente; não há meio termo. “Os DEPUTADOS do povo não são nem podem ser seus representantes, eles não são senão comissários: nada podem concluir em definitivo”. “Toda lei que o POVO não haja pessoalmente ratificado é nula; não é lei”. “O povo inglês cuida que é livre, mas se engana bastante, pois unicamente o é quando elege os membros do parlamento: tanto que os elege, é escravo, não é nada. Nos breves momentos de liberdade, o emprego que dela faz bem merece que a perca”. (ROUSSEAU): “limito-me apenas a dizer as razões por que os povos modernos, que se crêem livres têm representantes e por que os povos antigos não os tinham. Seja como for, na ocasião em que o povo institui representantes, ele já não é livre; deixa de existir”. Seu pensamento apenas se abranda em presença das necessidades de auto-organização do Estado moderno. Rousseau estabelece uma distinção entre o PODER LEGISLATIVO e PODER EXECUTIVO, no que diz respeito à representação. Quanto ao LEGISLATIVO, entende que relativamente à lei e à declaração da vontade geral, o povo não pode ser representado. Quanto ao EXECUTIVO, entende que se trata da força aplicada à lei, daí, o povo não somente pode como deve ser representado. Para evitar os males da corrupção e das deficiências da representação , Rousseau indica dois meios: (1) Renovação freqüente das assembléias, encurtando-se o mandato dos representantes; 284 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 211. 103 104 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (2) Submissão dos representantes às instruções de seus constituintes, a quem devem prestar contas de seu procedimento nas assembléias (mandato imperativo). (ROUSSEAU – Considerações sobre o governo da Polônia): “Uma assembléia toda é impossível de corromper-se, porem fácil de enganar-se. Seus representantes dificilmente se enganam, mas se corrompem com facilidade e é raro que não se corrompam. Vejo dois meios de conjurar esse terrível mal da corrupção, que faz do órgão da liberdade o instrumento da servidão. Consiste o primeiro, como já disse, na freqüência de dietas, que amiúde, variem de representantes, fazendo mais difícil e custosa sua sedução. O segundo meio é o de sujeitar os representantes a seguirem exatamente suas instruções e a prestar contas severas a seus constituintes do procedimento que tiveram na dieta. Não posso aqui deixar de manifestar meu espanto ante a negligência, a incúria, e ouso dizer, a estupidez da nação inglesa que, após haver armado seus deputados com o supremo poder, não lhes acresceu nenhum freio com que regular o uso que dele poderão fazer nos sete anos totais de duração de sua comissão”. (H) MANDATO REPRESENTATIVO TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DO MANDATO REPRESENTATIVO: a generalidade, a liberdade, a irrevogabilidade, a independência.285 GENERALIDADE: o mandatário não representa o território, a população, o eleitorado ou o partido político, mas a NAÇÃO mesma em seu conjunto. LIBERDADE: o representante exerce o mandato com inteira autonomia de vontade, não podendo ser coagido ou ficar sujeito à pressão externa capaz de lhe impedir a ação, pois é o titular da “vontade nacional soberana”. IRREVOGABILIDADE: a faculdade de se exprimir livremente estaria tolhida se houvesse a possibilidade dos eleitores destituírem o mandatário não há lugar para os instrumentos semidiretos do recall ou do Abberufungsrecht suíço. INDEPENDÊNCIA: os atos do mandatário não dependem de ratificação do mandante, presumindo-se que a vontade representativa seja, de fato, a vontade nacional. 3.3. A DOUTRINA DA IDENTIDADE (A) GOVERNANTES E GOVERNADOS EM UMA SÓ VONTADE Fatores que fizeram com que o SISTEMA REPRESENTATIVO DE MOLDES LIBERAIS entrasse gradativamente em CRISE: (1) declínio da doutrina da soberania nacional; (2) queda de prestigio das instituições parlamentares organizadas em moldes aristocráticos, com ascensão política e social da classe obreira; (3) crise cada vez mais intensa nas relações entre o Capital e o Trabalho; (4) novo ideário da participação aberta a todos, fora de quaisquer requisitos de berço, capacidade ou sexo; (5) pressão reivindicante das massas operárias. 285 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 260-262. 104 105 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A DOUTRINA DA IDENTIDADE resume-se num feixe de doutrinas que buscam essencialmente estabelecer a identidade e suprema harmonia da VONTADE DOS GOVERNANTES com a VONTADE DOS GOVERNADOS. Busca maximizar o acatamento aos princípios democráticos apagando os traços distintivos entre o sujeito e o objeto do poder político, entre o povo e governo. A soberania popular, tanto na titularidade como no exercício, deve se constituir em uma peça única e monolítica. A IDENTIDADE, todavia, já se acha ultrapassada pela pulverização daquela suposta vontade popular, canalizada e comunicada oficialmente à sociedade através de grupos de pressão, que se alienam na fechada minoria tecnocrática. A DOUTRINA DA IDENTIDADE não se concilia com a doutrina francesa da soberania nacional (de 1791), mas se harmoniza com a doutrina rousseauniana da soberania popular. (B) A DOUTRINA DA IDENTIDADE E O ESTADO DE CLASSE ÚNICA O LIBERALISMO e a DEMOCRACIA na essência eram distintos (senão opostos). Os princípios liberais buscavam atender à sustentação de privilégios de classe, numa SOCIEDADE CLASSISTA, onde a burguesia tomara o poder político, desde a Revolução Francesa. (MASSIMO SEVERO GIANNINI):286 as SOCIEDADES DO PASSADO, pelo menos até o início do século XX, apresentavam-se com número reduzido de grupos diferenciados (nobreza, clero, burguesia, camponeses, operariado, militares e funcionários públicos), com interesses nitidamente caracterizados, detendo cada um desses grupos parcelas definidas de poder, geralmente sob a hegemonia de um deles. (MASSIMO SEVERO GIANNINI): em fins do século passado o Estado Censatario entra em crise, levando o poder político a outras classes além das participantes, passando, assim, o ESTADO DE CLASSE ÚNICA a um ESTADO DE PLURALIDADE DE CLASSES. “La constitución material sufrió, sin embargo, una profunda modificación puesto que el Estado, en su organización y en su actividad estaba ahora movido por los intereses de todos los grupos de la comunidad y no por los intereses de grupos de presión particulares como ocurría anteriormente. […] Mientras que el Estado de clase única desarrollaba principalmente funciones públicas (defensa, policía, relaciones exteriores, potestad sancionadora, etc.), el de pluralidad de clases desarrolla principalmente servicios públicos (instrucción pública, sanidad, asistencia y previsión social, auxilios materiales y financieros a ciudadanos y a empresas, etc.) y debido a que los diversos grupos que ostentan el poder reclaman para sí nuevos servicios, estos están continuamente en aumento en todas partes”.287 (REINHOLD ZIPPELIUS): o Estado Moderno abre a oportunidade de uma pluralidade de interesses se fazerem valer a nível político, uma vez que O ESTADO NÃO MAIS SE IDENTIFICA A PRIORI COM INTERESSES E OPINIÕES ESPECÍFICOS (como os interesses de uma determinada nacionalidade, classe, confissão ou ideologia) ou recusa liminarmente outros. A vontade una e soberana do povo se decompôs, em nossos dias, na vontade antagônica e disputante de PARTIDOS e GRUPOS DE PRESSÃO. 286 Cf. GIANNINI, Massimo Severo. Derecho Administrativo. Tradução espanhola de Luís Ortega. Madrid: Ministério para las Administraciones Públicas, 1991, v. I, p. 76-77. 287 Cf. GIANNINI, Massimo Severo. Derecho..., cit. p. 76-77, 86. 105 106 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Na sociedade de massas, os interesses econômicos, políticos e sociais, cada vez menos refletem interesses globais do povo e cada vez mais interesses parcelados de grupos e classes conflitantes (GRUPOS DE PRESSÃO). Até o cidadão, titular de um poder soberano e inalienável, acabou-se alienando no partido ou no grupo, a que vinculou seus interesses. Não fala a vontade popular, não falam os cidadãos soberanos, mas fala a vontade dos grupos, falam seus interesses, falam suas reivindicações. (MASSIMO SEVERO GIANNINI):288 em fins do Século XIX, o ESTADO CENSATARIO entra em crise, levando o poder político a outras classes além das participantes, passando, assim, o Estado de classe única a um Estado de pluralidade de classes. Dessa forma, verifica o autor: La constitución material sufrió, sin embargo, una profunda modificación puesto que el Estado, en su organización y en su actividad estaba ahora movido por los intereses de todos los grupos de la comunidad y no por los intereses de grupos de presión particulares como ocurría anteriormente. […] Mientras que el Estado de clase única desarrollaba principalmente funciones públicas (defensa, policía, relaciones exteriores, potestad sancionadora, etc.), el de pluralidad de clases desarrolla principalmente servicios públicos (instrucción pública, sanidad, asistencia y previsión social, auxilios materiales y financieros a ciudadanos y a empresas, etc.) y debido a que los diversos grupos que ostentan el poder reclaman para sí nuevos servicios, estos están continuamente en aumento en todas partes. As sociedades do passado contavam com um número reduzido de grupos diferenciados (nobreza, clero, burguesia, camponeses, operariado, militares e funcionários públicos), portanto, com interesses nitidamente caracterizados, detendo cada um desses grupos parcelas definidas de poder, geralmente sob a hegemonia de um deles.289 O Estado Democrático de Direito moderno, pluralista e participativo, precisa abrir a oportunidade para uma pluralidade de interesses se fazerem valer a nível político, uma vez que o Estado não pode mais se identificar a priori com interesses e opiniões específicos (como os interesses de uma determinada nacionalidade, classe, confissão ou ideologia) ou recusar liminarmente outros.290 Nos termos da teoria contratualista clássica, imaginava-se que a sociedade constituía-se de um amontoado de indivíduos singulares e atomizados, e não por um conjunto de estamentos ou classes. O representante político, nesse compasso, no Estado Liberal, não representava seus eleitores, nem tampouco sua circunscrição territorial, mas a “nação”, a qual era atribuída uma só vontade (a vontade geral e soberana do povo). O voto censitário dava ensejo a uma identidade de interesses entre os representantes e seu eleitorado, uma vez que estes e aqueles pertenciam às camadas superiores da burguesia tornadas hegemônicas com as revoluções liberais. A homogeneidade de interesses se refletia numa homogeneidade de opiniões nos parlamentos, capaz de afastar maiores embates ideológicos. Entretanto, a vontade una e soberana do povo se decompôs na vontade antagônica de grupos de interesse e partidos políticos. Os interesses econômicos, políticos e sociais particularizados cada vez menos refletem interesses globais do povo e cada vez mais interesses parcelados de grupos de pressão. No mundo moderno, o cidadão procura associar-se àqueles que defendem os mesmos interesses, para que em conjunto possam fazer valer suas pretensões. A sociedade pluralista se tornou verdadeira sociedade de grupos. 288 Cf. GIANNINI, Massimo Severo. Derecho Administrativo. Tradução espanhola de Luís Ortega. Madrid: Ministério para las Administraciones Públicas, 1991, v. I, p. 76-77, 86. 289 Cf. MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Sociedade, estado e administração pública. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 33-34. 290 Cf. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 302. 106 107 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Por outro giro, as pessoas alinham-se simultaneamente a diversos grupos de interesse, de modo que não se consegue interligar um indivíduo a um único grupo. Os indivíduos e variados grupos representativos do mais amplo espectro de interesses (econômicos, profissionais, culturais, religiosos, científicos, políticos, etc.) buscam impor suas necessidades pela participação em todos os campos da atividade política, econômica e social, criando uma sociedade participativa,291 que faz da configuração da luta de classes, que havia servido de fundamento para a análise marxista, uma simplificação incompatível com a complexa trama de interesses existentes e em confrontação na atual sociedade hiper-complexa. A partir do momento que os parlamentos passaram a refletir o pluralismo dos interesses da sociedade, reforçaram-se os contornos de um “Estado pluralista” que vem como resposta às demandas da sociedade pluralista (em termos de interesses) e poliárquica292 (em termos de poder), sucedendo ao Estado monoclasse. A universalização do sufrágio subverteu a lógica do sistema representativo, no momento que deslocou o eixo político para as camadas populares (maioria do eleitorado), abrindo-se uma tensão entre o poder econômico da burguesia e o poder político das classes trabalhadoras. O PARLAMENTO transformou-se numa arena de embates ideológicos, onde já não havia condições para a manifestação de uma única vontade geral.293 A batalha pela conquista da maioria parlamentar, na DEMOCRACIA DE GRUPOS, assumiu o lugar que se imaginava ser da razão na persecução da “VONTADE GERAL”. O pluralismo posto pela heterogeneidade dos grupos de interesse da sociedade é levado para dentro dos parlamentos, transformando a luta política numa luta de representantes para fazerem valer interesses particularizados de grupos. Os representantes políticos passam a ter de barganhar e são chamados a responder às demandas da sociedade civil como condição para serem eleitos. A classe política precisa responder às demandas postas pela sociedade civil (serviços públicos, programas sociais, etc.) e, nesse contexto, o pluralismo da sociedade favorece a ampliação do Estado e as demandas sociais pressionam a classe política no sentido de prover um maior número de direitos e serviços. Consequentemente, alarga-se a base tributária e cresce a máquina burocrática. O SISTEMA REPRESENTATIVO foi modelado para servir preponderantemente aos interesses de uma única classe que havia ascendido ao poder. Entretanto, os grupos de interesse não pertencem a uma só classe, mas refletem um pluralismo de interesses. Sequer uma determinada classe marca um determinado grupo de pressão, mas diversos cidadãos compartilham interesses com diversos outros de diversos grupos e classes. (C) A DOUTRINA DA IDENTIDADE E OS GRUPOS DE INTERESSE 291 Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Sociedade..., cit. p. 52. 292 Como leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto (Sociedade..., cit. p. 52), a sociedade civil desenvolveu progressiva articulação em promoção e defesa de seus múltiplos interesses, diversificando, no processo, seus centros de poder. Como afirma, “essa poliarquia refletiu-se no próprio Estado que, passando a ser pluriclasse, renovou-se através de um neocontratualismo, não mais dos indivíduos, mas de grupos organizados de interesses”. 293 Cf. BENTO, Leonardo Valles. Governança..., cit. p. 19. 107 108 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Os grupos, os sindicatos, os partidos políticos, as grandes organizações - e cada vez menos os indivíduos - passam a ser os SUJEITOS POLITICAMENTE RELEVANTES. GRUPOS CONTRAPOSTOS E CONCORRENTES em que se dividem o povo, com relativa autonomia diante do governo central, é que passam a ser os protagonistas da vida política. (DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO): as pessoas alinham-se simultaneamente a MAIS DE UM GRUPO DE INTERESSES, produzindo “um caleidoscópio de situações sociais em permanente mudança”, de modo que não é fácil interligar um indivíduo qualquer a um único grupo, propiciando tudo isso uma intensa mobilidade social. Com consolidação dos GRUPOS DE INTERESSE, o antigo SISTEMA REPRESENTATIVO sofre severo golpe. O que resta da DOUTRINA DA IDENTIDADE (concebida originariamente como expressão da vontade popular) é tão-somente o esforço para fazer a vontade dos representantes traduzir a vontade dos grupos de interesse , dos quais os representantes são meros agentes. (WOLFF): “o SISTEMA REPRESENTATIVO culmina logicamente numa depreciação progressiva da independência do representante, cada vez mais “comissário”, cada vez menos “representante”. A REPRESENTAÇÃO oculta forças vivas e condicionantes do processo governativo, quase sempre invisíveis ao observador desatento. À luz da DOUTRINA DA DUPLICIDADE, o representante é livre no exercício do mandato eletivo: o problema de saber quem ele representa se simplifica ou é a nação, ou a coletividade. O problema se complica com a DOUTRINA DA IDENTIDADE: representa o eleitor, o Estado, o partido, o grupo de interesses? (D) A DOUTRINA DA IDENTIDADE E OS PARTIDOS POLÍTICOS (PAULO BONAVIDES): “a doutrina constitucional pouco progresso fez com relação ao reconhecimento consumado da ‘sociedade de grupos’. Politicamente é essa sociedade pluralista a forma imposta pelas necessidades e problemas oriundos da civilização tecnológica”.294 Quando os PARTIDOS POLÍTICOS começam nas Constituições a receber certidão de maioridade e a ter sua participação explicitada em atos jurídicos, já eles mesmos se acham em parte obsoletos, em virtude do avanço que fazem os GRUPOS DE INTERESSES. A DOUTRINA DA REPRESENTAÇÃO só é explicável se vinculada a dinâmica dos GRUPOS DE INTERESSE aos interesses políticos, econômicos e sociais que eles agitam tenazmente. A ação política dos GRUPOS DE INTERESSE incide de modo decisivo na feição dos governos e no comportamento dos governantes. (HEGEL – Fundamentos da Filosofia do Direito): a REPRESENTAÇÃO não deve ser do indivíduo com seus interesses, mas das “esferas essenciais da sociedade” e seus “grandes interesses”. (KANT): em sentido oposto, o filosofo do liberalismo faz a conexão do SISTEMA REPRESENTATIVO com o povo: “Toda republica verdadeira é, e outra coisa que não pode ser senão um sistema representativo do povo para em nome do povo cuidar de seus direitos, através da união de todos os cidadãos e por intermédio de seus deputados”. 294 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 218-219. 108 109 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A vinculação do REPRESENTANTE ao seu PARTIDO é o primeiro passo que se dá para assentar a imperatividade do mandato. (PAULO BONAVIDES): entretanto, a quem o representante deve fidelidade? Ao povo, à nação, ao partido, à circunscrição eleitoral? Até aonde deve ir sua independência e conseqüente capacidade de divergir de seus eleitores e de sua agremiação partidária? 295 (PAULO BONAVIDES): “desde que os partidos políticos se constituíram em arregimentações não somente lícitas senão essenciais para o exercício do poder democrático, o MANDATO, no regime representativo, está cada vez mais sujeito à fiscalização da opinião, ao controle do eleitorado, à observância atenta de seus interesses, ao escrupuloso atendimento da vontade do eleitor, à fiel interpretação do sentimento popular, à presença já patente de uma certa responsabilidade política do mandatário perante o eleitor e o partido”.296 A CF/1967 se decidiu pela instituição de um ESTADO PARTIDÁRIO. Novas formas de políticas de representação buscaram estabelecer a identidade de vistas do eleito com o eleitor. A EC/1969, ao modificar o art. 149, referente aos PARTIDOS POLÍTICOS, reforçou a fidelidade partidária: perderia o mandato de deputado o representante que mudasse de legenda (usual nas práticas antecedentes). Com a CRFB/88 houve certo retrocesso, voltando a prevalecer a DOUTRINA DA DUPLICIDADE. A questão se agrava quando os COMPONENTES PLEBISCITÁRIOS (democracia semidireta) são introduzidos, alterando o equilíbrio das relações entre o eleito e o eleitor. (PAULO BONAVIDES): onde os instrumentos da democracia semidireta de revogação de mandato (recall, Abberufungsrecht) existem, já se firma juridicamente o MANDATO IMPERATIVO. Nos demais sistemas, poder-se-ia admitir a TEORIA DA IDENTIDADE apenas como realidade de fato, firmada por sobre bases políticas e morais.297 (E) A DOUTRINA DA IDENTIDADE E A REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL A REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL tem sido largamente preconizada por único meio de debelar a crise do sistema representativo. (PRÉLOT): o que entrou em crise não foi o sistema representativo como tal, mas uma modalidade de representação. (CARL J. FRIEDRICH): a REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL foi a única idéia nova significativa que apareceu no domínio da representação política desde a introdução, há mais de cem anos, do sistema de representação proporcional. A REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL (esposada por Stuart Mill) abalou a concepção individualista do liberalismo e seu sistema de representação política a nova técnica sublinhou a importância dos grupos, atada, porém, à base geográfica. Apesar do emprego abusivo feito pelos fascistas (com suas câmaras corporativas), as ORGANIZAÇÕES PROFISSIONAIS e os SINDICATOS são a mais efetiva forma de comunidade da qual o homem moderno participa, em especial nas grandes cidades. 295 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 221. 296 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 264. 297 Nesse sentido, BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 264. 109 110 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A decomposição da vontade popular em VONTADE DE GRUPOS (frustrando a implantação de uma vontade geral soberana - volonté gènèrale) experimentou TRÊS FASES CONSECUTIVAS históricas:298 (1) PRIMEIRA FASE (REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL) reconhecida a presença de grupos de interesses passou-se a apelar para sua prevalência. Entretanto, a REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL atada à base geográfica não lhes dava plena satisfação. (COKER): a divisão geográfica não podia identificar-se com uma opinião ou interesse particular, e a representação acabava sendo de um só ou de alguns dos mais poderosos interesses dentre quantos entravam em competição econômica e social, arvorados pelos distintos grupos minoritários. (2) SEGUNDA FASE (REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL) o descrédito e o abandono total da representação profissional decorrem de sua vinculação ideológica com o fascismo. Entretanto, a representação profissional continuou a aparecer em Constituições do primeiro pós-guerra. CF/1934: nosso país conheceu em seu congresso uma representação profissional – a bancada classista, recrutada nas organizações trabalhistas e patronais, fora do critério político tradicional de seleção pelo sufrágio popular a introdução dessa bancada, porém, em nada concorreu para o aperfeiçoamento do sistema representativo. (3) TERCEIRA FASE (FASE DOS GRUPOS DE PRESSÃO): embora não se tenha eliminado de todo o sistema proporcional e a representação profissional, passou-se a ceder cada vez mais ao influxo dos distintos grupos de interesse. (F) A TEORIA DA REPRESENTAÇÃO DE FUNDAMENTO MARXISTA - SOBOLEWSKY (SOBOLEWSKY): publicista polonês, pensador socialista, raízes marxistas desenvolveu o conceito sociológico de REPRESENTAÇÃO. Entende que a REPRESENTAÇÃO tem por objeto básico determinar o caráter das relações que ocorrem entre governantes e governados. Partindo do modelo de DUVERGER e BURDEAU, entende que à REPRESENTAÇÃO importa estabelecer correlação ou concordância entre as decisões políticas da elite governante e a opinião pública (compreendida esta como as opiniões mais fortes, imperantes na comunidade). O ESTADO é uma representação dos interesses da classe dominante há de investigar, daí, como os cidadãos e as massas podem influir em decisões estatais. As possibilidades desse influxo continuam abertas às massas, cabendo-lhes valer de circunstâncias favoráveis, onde for possível, no intuito final de fazer uma transição para o socialismo. Analisa a REPRESENTAÇÃO como processo, em seu aspecto dinâmico. “A REPRESENTAÇÃO é um processo organizado”. A REPRESENTAÇÃO não se define pelo estado de harmonia ou correspondência da opinião pública com a política governante, mas como processo de assimilação da política e das opiniões, com vistas à mútua aproximação. 298 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 222-223. 110 111 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG “A REPRESENTAÇÃO é um processo, isto é, uma acomodação contínua que se estabelece entre as decisões políticas e as opiniões.” O estado de completa harmonia é apenas um ideal político utópico. O grau de intensidade e eficácia desse processo não só varia no tempo como é modificável. Não se trata de um processo automático, mas se admite a interferência dos participantes. A REPRESENTAÇÃO não consiste apenas de relações diretas entre governantes e governados, mas também, concomitantemente, de relações entre os cidadãos e as distintas organizações intermediárias (que servem de porta-vozes à opinião). Assim, REPRESENTAÇÃO é processo de adaptação da substância das decisões políticas às opiniões e pareceres dos grupos interessados e, em larga escala, às opiniões e pontos de vista que preponderam na classe dominante. REPRESENTATIVO é o sistema de governo no qual funciona um sistema de correlações e onde nas questões importantes e no decurso de largo espaço de tempo não se proceda contra os desejos dos interessados. FORMAS PARA EXPRESSÃO DA OPINIÃO DE GOVERNANTES E GOVERNADOS: eleições, referenda, petições, comícios, notas oficiais e declarações de governantes, etc. INSTRUMENTOS QUE PERMITEM A EXPRESSÃO SISTEMÁTICA DA OPINIÃO: meios de comunicação de massa (imprensa, radio, televisão, etc.), partidos políticos e grupos de interesses. 3.4. O MODELO REPRESENTATIVO E A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA (A) A SOCIEDADE PARTICIPATIVA (DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO): indivíduos e variados grupos sociais representativos do mais amplo espectro de interesses (econômicos, profissionais, culturais, religiosos, científicos, políticos, etc.) BUSCAM IMPOR SUAS NECESSIDADES pela PARTICIPAÇÃO em todos os campos da atividade política, econômica e social, de modo a tornar as decisões amplamente discutidas e concertadas, criando uma SOCIEDADE PARTICIPATIVA. (REINHOLD ZIPPELIUS): o cidadão procura associar-se com àqueles que defendem os mesmos interesses, para que em conjunto possam fazer valer suas pretensões, ganhando INFLUÊNCIA sobre as decisões dos órgãos do Estado. (MASSIMO SEVERO GIANNINI): o Estado passa a estar envolvido por INTERESSES DE TODOS OS GRUPOS DA COMUNIDADE e não por interesses de grupos de pressão particulares. Enquanto o ESTADO DE CLASSE ÚNICA desempenhava apenas atividades de polícia, o ESTADO PLURALISTA desenvolve serviços públicos à os diversos grupos que ostentam o poder reclamam para si NOVOS SERVIÇOS, que estão em contínuo aumento por todas as partes. (REINHOLD ZIPPELIUS): a regra do jogo fundamental em uma SOCIEDADE DEMOCRÁTICA PLURALISTA é que cada indivíduo disponha, na formação da opinião pública e no processo político em geral, de uma COMPETÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO que, por princípio, deve ser respeitada de modo igual. 111 112 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG A configuração simplista da LUTA DE CLASSES que havia servido de fundamento para uma visão dialética da história, perante essa multiplicação de interesses e de centros de poder, dá lugar a uma, cada vez mais complexa, TRAMA DE INTERESSES que ora se colocam em associação ou em confrontação, ora no campo econômico, ora no social, ora no campo político, ora no jurídico. (DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO): sequer a tradicional separação entre interesses privados e interesses públicos é suficiente para enquadrar a NOVA TIPOLOGIA DE INTERESSES em expansão (exemplo: interesse pela proteção ao trabalho; interesses difusos como o por um meio ambiente saudável). (HABERMAS): SOCIEDADE COMPLEXA é a sociedade dotada de “mundos da vida” estruturalmente diferenciados e de subsistemas funcionalmente independentes. (B) OS GRUPOS DE INTERESSE E O PODER INFORMAL (NORBERTO BOBBIO): as exigências da SOCIEDADE PLURALISTA ganham força por meio de MECANISMOS INFORMAIS DE EXPRESSÃO E PRESSÃO, tais como as organizações de base, os sindicatos, as associações de classes e as representações de “sem-terras”, grupos indígenas, etc. Ao contrário, ao lado do poder juridicamente regulado, se faz presente uma REDE DE INFLUÊNCIAS e PODER INFORMAL. (DIOGO DE FIGUIEREDO MOREIRA NETO): destrói-se a ilusão de que o Estado poderia conter, em esquemas jurídicos rígidos, a gama dos poderes políticos, submetendo-os ao controle estatal. (REINHOLD ZIPPELIUS): os GRUPOS DE INTERESSE procuram influenciar indiretamente o poder estatal por intermédio da OPINIÃO PÚBLICA sobre a qual tentam atuar por meio da imprensa ou de outros meios, valendo-se até mesmo do sensacionalismo como mecanismo de pressão, ou praticam o LOBBY, ofertam subsídios eleitorais ou donativos financeiros aos cofres de partidos, etc. Esse conjunto de fatores caracteriza um PLURALISMO INSTITUCIONAL, que supera e faz obsoleto o centralismo e a rigidez do modelo hierárquico. No Estado contemporâneo, ao lado da máquina pública, convivem, atuando e prestando serviços públicos, variados ORGANISMOS NÃO-ESTATAIS. (ANDREAS AUER):299 o processo legislativo faz intervir os principais atores da cena política (partidos políticos, grupos de interesse, etc.), de tal modo que, quando o projeto de lei é submetido ao parlamento, ele já se constitui em um compromisso entre estas diferentes forças políticas, que o parlamento raramente ousa pôr em causa. Assim, o loobying, o entendimento cordial do que se chama classe política, tornam fictício o conceito de REPRESENTAÇÃO POPULAR, que, no entanto, é considerado um dos pilares do princípio da legalidade. (C) PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA Essa diversidade de interesses da sociedade pluralista, organizados e em competição, portanto, exige dos indivíduos intensa PARTICIPAÇÃO. (DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO): o PROGRESSO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO e DOS ELETRÔNICOS favorece o aparecimento de inúmeras MODALIDADES PARTICIPATIVAS, seja na seara legislativa, seja na judicial, seja na administrativa. 299 Cf. AUER, Andreas. O princípio da legalidade como norma, como ficção e como ideologia. In: HESPANHA, Antônio (Org.). Justiça e litigiosidade – História e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 129-131. 112 113 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG (REINHOLD ZIPPELIUS): a DEMOCRACIA pressupõe que todos os possíveis interesses e opiniões devem ter a OPORTUNIDADE DE COMPETIR ENTRE SI, bem como de procurar adquirir INFLUÊNCIA sobre a ação estatal. As FACILIDADES DA “ERA DA COMUNICAÇÃO” possibilitam intenso acesso às informações e, consolidando uma sociedade pluralista, despertam NOVA REAÇÃO DEMOCRÁTICA: a exigência da extensão do direito de participação na tomada das decisões coletivas, isto é, novos espaços para a participação popular (democracia de participação). (D) A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Com a perda do prestígio dos partidos políticos, entrou em declínio a militância partidária, aumentando, assim, aumentando a distância entre o sistema institucional de representação e a sociedade civil organizada.300 O RESGATE DA DEMOCRACIA só se fará por criteriosa abertura da participação política por meio de NOVOS CANAIS, estabelecendo-se, assim, uma DEMOCRACIA PARTICIPATIVA que possa superar as LIMITAÇÕES DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA. (DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO): a PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA é fenômeno em franca expansão, que marca a passagem do ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO REPRESENTATIVO para um ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PARTICIPATIVO. (GARCIA DE ENTERRIA E TOMAS-RAMON FERNANDES): a PARTICIPAÇÃO DOS ADMINISTRADOS surge como REFORÇO À LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA do processo decisório hierárquico, perante a debilidade atual das estruturas constitucionais de gestão participada e o eventual déficit democrático do princípio representativo-plebiscitário. (GARCÍA DE ENTERRÍA E TOMAS-RAMON FERNANDES): responde à NECESSIDADE DE SE INTERIORIZAR O PODER DO ESTADO na sociedade, substituindo a antiga distinção entre Estado e sociedade, que foi base da construção liberal, por uma “osmose” recíproca. (MIGUEL REALE): a ERA DA COMUNICAÇÃO facilitou e tornou efetiva a força da OPINIÃO PÚBLICA, e todo esse levante expressa, pelo voto e por movimentos reivindicatórios, o desenho de NOVA DEMOCRACIA, muito mais participativa, consciente e exigente, que grita e reclama, que exige e não espera. A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA é decorrência da própria formatação contemporânea de uma SOCIEDADE PLURALISTA. (NORBERT ACHTERBERG): o PRINCÍPIO DA PARTIZIPATION quer dizer que o povo, não apenas por intermédio dos parlamentos, mas também pelos órgãos administrativos, exerce o poder estatal à trata-se de instrumento de representatividade popular em uma democracia. (C) O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA brasileira foi estruturada em uma modelagem monolítica e hierarquizada, absolutamente sintonizada com as propostas do modelo burocrático edificado para o Estado Liberal, incapaz de propiciar uma estrutura que favoreça a atuação descentralizada, a participação do administrado e o diálogo cidadão. O Direito Administrativo brasileiro não estudou devidamente mecanismos que pudessem favorecer a atuação administrativa coordenada de pessoas políticas distintas, nem a atuação eficiente do Estado e do mercado em parceria; da mesma forma, não se preparou para disciplinar a atuação administrativa coordenada com iniciativas oriundas da própria sociedade civil. 300 Nesse sentido, VIERA, Liszt. Cidadania e controle social. In. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; GRAU, Nuria Cunill. (Org.). O público não-estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 231-232. 113 114 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG O certo é que o Estado Democrático de Direito modelado pela CRFB/88 de fundamentos democráticos e de desiderato social deve perseguir incessantemente o atendimento otimizado do bem comum e, para tanto, deve estruturar uma Administração Pública democrática, que possa perseguir a eficiência pública e favorecer a participação popular. Nesse contexto, as tendências e perspectivas do Direito Administrativo brasileiro podem ser desenhadas a partir desse desafio maior do Estado da Era da Recessão. Em outras palavras, no Brasil das desigualdades sociais, o Direito Administrativo do Estado da Era da Recessão revela a necessidade inarredável de se estudar estratégias e alternativas que possam, em um contexto democrático, favorecer a incorporação à produção e ao consumo do grande contingente de excluídos. Em decorrência do Princípio da Tipicidade Tributária, a hipótese de incidência legal deve ser exaustivamente posta na lei tributária, entretanto, no que diz respeito ao lançamento tributário, ao processo administrativo, etc., o modelo de ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO requer a participação democrática dos contribuintes na elaboração e na aplicação do Direito. (DI PIETRO): “a participação popular é uma característica essencial do Estado de Direito Democrático, porque ela aproxima mais o particular da Administração, diminuindo ainda mais as barreiras entre o Estado e a sociedade”.301 “A participação popular na gestão e no controle da Administração Pública constitui o dado essencial que distingue o Estado de Direito Democrático do Estado de Direito Social. Corresponde às aspirações do indivíduo de participar, quer pela via administrativa, quer pela via judicial, da defesa da imensa gama de interesses públicos que o Estado, sozinho, não pode proteger”.302 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO dá ensejo à terceira fase da evolução da Administração Pública (após a fase correspondente à Administração do Estado Liberal e à do Estado Social), na qual a participação do administrado se dá mediante atuação direta na sua gestão e controle.303 O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO vinha acolhido nas concepções anteriores, porém, contemporaneamente, aparece com nova roupagem que busca uma intensa participação popular no processo político, nas decisões de governo, bem como na atuação e controle da Administração Pública.304 Pelo menos no que diz respeito ao DIREITO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO, importa verificar que, em decorrência da própria formatação do ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, a Administração Fiscal deve reverência ao PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO, em sua mais moderna acepção. O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO, em seus reflexos diretos na administração pública, marca a idéia de “democracia” enquanto PARTICIPAÇÃO E APROXIMAÇÃO DA DECISÃO ADMINISTRATIVA DOS ADMINISTRADOS, de tal forma que estes se identifiquem com a AP e esta tenha em conta o conjunto real da sociedade. Como decorrência da formatação do Estado de Direito, que deve ser, na dicção constitucional (art. 1° da CRFB/88), “democrático”, exige-se a conformação de uma ADMINISTRAÇÃO DEMOCRATIZADA. (ODETE MEDAUAR): a partir da metade da década de 1950 começa a surgir a preocupação com uma democracia mais ampla, com uma democracia que pudesse transpor o limiar da eleição de representantes políticos para expressar-se também no MODO DE TOMADA DE DECISÃO DOS ELEITOS.305 O valor da democracia depende do modo pelo qual as decisões são tomadas e executadas à surge, daí, a formatação de uma DEMOCRACIA ADMINISTRATIVA, que pode ser compreendida como uma “democracia de funcionamento ou operacional”. Observa-se, assim, o crescente desprestígio das decisões administrativas unilaterais, bem como a abertura das portas da AP para a busca de soluções consensuais, consolidando-se, assim, uma ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL. (ROLF STORBER): a necessidade de PARTICIPAÇÃO DOS ADMINISTRADOS, como decorrência direta do princípio democrático, não pode se limitar às formas de sufrágio, mas a AP deve atuar de forma aberta, possibilitando enquetes, consultas, audiências, garantindo o direito dos administrados de apresentarem 301 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação popular na administração pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, n. 191, jan./mar. 1993. p. 32 302 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação..., cit. p. 38. 303 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação..., cit. p. 32. 304 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 1999. p. 23. 305 Nesse sentido, MEDAUAR, Odete. Direito..., cit., p. 25. 114 115 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG objeções e reclamações, assegurando o DIREITO DE AUDIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO NO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, etc.306 A POSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO AMPLA DOS ADMINISTRADOS NA ATUAÇÃO ADMINISTRATIVA é elemento conformador da ordem democrática necessário em todo processo de formação de vontade e decisões.307 O RESGATE DA DEMOCRACIA só se fará por criteriosa abertura da participação política por meio de NOVOS CANAIS, estabelecendo-se, assim, uma DEMOCRACIA PARTICIPATIVA que possa superar as LIMITAÇÕES DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA. (GARCIA DE ENTERRIA E TOMAS-RAMON FERNANDES): a PARTICIPAÇÃO DOS ADMINISTRADOS surge como REFORÇO À LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA do processo decisório hierárquico, perante a debilidade atual das estruturas constitucionais de gestão participada e o eventual déficit democrático do princípio representativo-plebiscitário.308 (NORBERT ACHTERBERG): o PRINCÍPIO DA PARTIZIPATION quer dizer que o povo, não apenas por intermédio dos parlamentos, mas também pelos órgãos administrativos, exerce o poder estatal à trata-se de instrumento de representatividade popular em uma democracia.309 3.5. O SISTEMA REPRESENTATIVO E A REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL , CORPORATIVA E INSTITUCIONAL 3.5.1. A DESCRENÇA NA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA (DALMO DALLARI): “a descrença na representação política já inspirou várias tentativas de encontro de outra base de representação, visando assegurar maior autenticidade dos representantes”.310 O que se pretende é que o sistema representativo se baseie em fatores sociais espontâneos e significativos, que propicie efetiva participação dos representados busca-se evitar o artificialismo da representação política, na qual apenas uma pequena parcela do povo compreende (não decorre da realidade social). Idéias de representação (em substituição à REPRESENTAÇÃO POLÍTICA): REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL, REPRESENTAÇÃO CORPORATIVA e REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL. 3.5.2. REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL (A) O SURGIMENTO DO SINDICALISMO A REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL tem como FONTE (remota) os movimentos a favor da ascensão política do proletariado (primeira metade do século XIX), intensificados com a Revolução Industrial e o agravamento das injustiças sociais. Não se pretendeu, desde logo, a substituição da base de representação no início, fazia-se acusação contra o próprio Estado (responsabilizado pela prevenção da ordem injusta), acusado de ser um instrumento da burguesia para a exploração do proletariado. 306 Nesse sentido, STORBER, Rolf. Wirtschaftsverwaltungsrecht, Tradução espanhola. Derecho administrativo económico. Madrid: Ministerio para las Administraciones Publicas, 1992. p. 93-94. 307 Cf. STORBER, Rolf. Wirtschaftsverwaltungsrecht, cit., p. 94. 308 Nesse sentido, GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; TOMÁS-RAMÓN FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo. 8. ed. Madrid: Civitas, 1998. v. I, p. 84. 309 Cf. ACHTERBERG, Norbert. Allgemeines Verwaltungsrecht. 2. ed. Heidelberg: C.F. Müller Juristicher Verlag, 1986, p. 356. 310 Cf. Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 168. 115 116 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Assim, era preciso eliminar o Estado, não bastando melhorar os governantes. Nasceu da conjugação do socialismo e do anarquismo. (FRANÇA: LEI LE CHAPELIER, de 1791): proibiu todas as associações (operárias e patronais) declarou não haver mais corporações no Estado, mas somente o interesse particular de cada indivíduo e o interesse geral. (CÓDIGO PENAL DE 1810): previu o crime de coligação objetivava coibir qualquer tentativa de associação dos operários. Atuar individualmente em defesa dos interesses particulares era impossível surgem, daí, tentativas de agrupamento para ação em conjunto contra as injustiças sociais preparou-se, assim, o advento do SINDICALISMO. O governo buscava impedir todas as associações, agindo violentamente contra as que julgava perigosa e subversiva (incluindo-se nestas as associações de trabalhadores). (INGLATERRA): havia a possibilidade de agrupamento dos trabalhadores em associações para mútua ajuda e defesa surge em Manchester, por volta de 1830, as Trade Unions (sementes dos modernos sindicados). (MANIFESTO COMUNISTA DE 1848): Os trabalhadores franceses, que desejavam unir-se, iniciaram em 1840, período de intensas agitações sociais, que evoluiria para a ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES e o lançamento do MANIFESTO COMUNISTA. A partir de 1848, em virtude da intensificação do movimento proletário, dá-se a multiplicação de associações de trabalhadores (já aceitas na França, embora reprimidas suas manifestações mais ostensivas). O MOVIMENTO SINDICAL se bifurca em: (1) SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO (radical e intransigente); e (2) SINDICALISMO REFORMISTA (aceitando a convivência com o Estado e acreditando na melhoria progressiva das condições dos trabalhadores). (B) SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO ANARCOSINDICALISMO: a corrente revolucionária, de fundamento anarquista, considerava inevitável que o Estado fosse um instrumento de classe por isso pregava sua destruição. (GEORGES SOREL – Réflexions sur La Violence – 1906): os sindicalistas não propõem a reforma do Estado, mas querem destruí-lo para realizar a idéia de Marx de que a revolução socialista não deve culminar na substituição de um governo de minoria pelo de outra minoria. Para SOREL era impossível o entendimento entre os sindicalistas e os socialistas oficiais (que aceitavam o Estado e o desenvolvimento das lutas através dos meios legais). As deficiências econômicas dos trabalhadores não lhes permitiam permanecer em constante atividade revolucionária, promovendo greves, praticando atos de sabotagem, mas deixando de receber salários. A política de greve contínua acabou arruinando os sindicatos, porque exigia de seus membros sacrifícios constantes, que só excepcionalmente poder-se-ia exigir por isso, o SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO foi perdendo adeptos. (C) SINDICALISMO REFORMISTA 116 117 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG SINDICALISMO REFORMISTA: acreditava ser indispensável a organização dos trabalhadores para a defesa de seus interesses não acreditava nos partidos políticos, como instrumento eficiente de suas reivindicações. (ROBERT OWEN): acreditava ser a associação o único meio para colocar a Sociedade de acordo com a Natureza (SOCIALISMO ASSOCIACIONISTA). Rico industrial que promoveu a organização de seus próprios empregados, entregando- lhes, praticamente, a direção de suas indústrias (início do Século XIX) considerado utópico por várias correntes socialistas inspirou as Trade Unions e a organização sindical. Na INGLATERRA, a partir de 1830, surgem as TRADE UNIONS, que depois são organizadas nos ESTADOS UNIDOS o sindicalismo norte-americano encontra plena expansão a partir de 1860. (FRANÇA): Lei Waldeck-Rousseau, de 21 de março de 1884 concedeu personalidade jurídica aos sindicatos operários e patronais. Uma vez conquistada a liberdade de sindicalização, surgiu a preocupação com a demarcação de um campo próprio de atuação, paralelamente ao Estado, independente dele para a promoção dos interesses específicos dos trabalhadores. (D) AS IDÉIAS DE REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL (PAUL-BONCOUR - Le Fédéralisme Économique – 1900): a sociedade de compõe de diversos agrupamentos sociais dentre estes devem ser ressaltados os AGRUPAMENTOS PROFISSIONAIS. O autor defende a existência de uma soberania econômica, ao lado da soberania territorial (que pertence ao Estado). A SOBERANIA ECONÔMICA também pertence ao todo, e não a um grupo profissional por isso, os grupos profissionais devem ser coordenados, compondo na sua totalidade a FEDERAÇÃO ECONÔMICA. A base da FEDERAÇÃO ECONÔMICA são os grupos profissionais, cada um dotado de soberania própria, com autonomia por grupo profissional especializado e por região. Ao lado dos interesses específicos de cada grupo, existem os interesses comuns a todos por isso procede-se ao agrupamento dos próprios grupos, chegando-se a uma soberania regional, reunindo os que exercem profissões semelhantes. A coordenação de todos os grupos regionais comporá a FEDERAÇÃO ECONÔMICA (dotada de soberania econômica). Na realidade, a FEDERAÇÃO ECONÔMICA não representará mais do que um conjunto de interesses econômicos (interesses particulares interesses especiais). Apenas participam da soberania os indivíduos reunidos em uma comunidade de interesses. Para dar efetividade à soberania, os grupos profissionais devem ser dotados de poder legislativo e poder executivo. (E) CRÍTICAS Críticas usualmente feitas à idéia da REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL: 117 118 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 1. Existe uma série de atividades não diretamente relacionadas com o trabalho, mas que exercem grande influência sobre ele (educação, transporte e muitas outras atividades) não se consegue, assim, destacar nitidamente o interesse profissional quase tudo deveria ser entregue à Federação Econômica, tornando-se impossível fixar claramente quais seriam as competências destas e as do Estado; 2. O grande número de profissões e sua extrema variabilidade (surgem novas profissões a cada dia) obrigam a que se mantenham, no mesmo conjunto, atividades com interesses diversos; 3. Existem diversos interesses econômicos que não podem ser qualificados como interesses profissionais, e estes ficariam sem quem lhes desse o devido cuidado; 4. A amplitude dos assuntos que ficariam a cargo dos grupos profissionais faria com que os representantes se politizassem, recaindo-se novamente na representação política. A idéia da REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL não prosperou , embora tenha produzido resultados positivos, como o reconhecimento de certo poder normativo às ORGANIZAÇÕES SINDICAIS como as convenções coletivas de trabalho, celebradas entre sindicatos e cuja obediência é assegurada pelo Estado. O SINDICALISMO exerceu influência sobre as organizações políticas, trazendo para as assembléias políticas e programas partidários a consideração dos interesses dos trabalhadores. Inspirou a constituição dos Partidos Trabalhistas, que são um produto direto das atividades sindicalistas. 3.5.3. REPRESENTAÇÃO CORPORATIVA A REPRESENTAÇÃO CORPORATIVA surge em oposição à REPRESENTAÇÃO POLÍTICA, considerando os partidos políticos ultrapassados. Noção orgânica da sociedade e do Estado (corporativismo). A coletividade se reparte, por força do princípio da divisão do trabalho em diferentes categorias de indivíduos, cada qual com funções sociais bem determinadas cada uma dessas categorias funcionais são CORPORAÇÕES. (MIHAIL MANOILESCO – O século do corporativismo - 1933): características fundamentais das CORPORAÇÕES: a) são órgãos naturais através dos quais a vida do Estado se manifesta; b) não são apenas econômicas corporações econômicas, sociais, culturais Exemplos: Igreja, exército, magistratura, corporação da educação nacional, da saúde pública, das ciências e das artes. A teoria da REPRESENTAÇÃO CORPORATIVA apresenta elevada imprecisão afirma o caráter natural das CORPORAÇÕES, ao mesmo tempo em que lhes dá um papel superior ao Estado. Se o Estado entender que existem necessidades funcionais, pode determinar a alteração dos princípios básicos dos organismos (que eles entendem naturais). Desaparece, assim, o caráter natural das corporações, pois elas podem ser moldadas pelo Estado, segundo suas conveniências, a qualquer momento. Não se opõe ao Estado dá largos poderes ao ESTADO CORPORATIVO. (MIHAL MANOILESCO): referências entusiásticas ao fascismo e à Mussolini. 118 119 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Baseia-se em realidades sociológicas e prevê uma organização compatível com essas realidades. Porém, no momento de fazer a coordenação das corporações, se perdem, propondo um ESTADO TOTALITÁRIO. Faz a apologia a um programa nacional que absorve todas as atividades exercidas no Estado. Aplicada na Itália Fascista e em Portugal (coexistiram uma Assembléia Nacional, de base política e uma Câmara Corporativa - 1956). No Brasil (1934): introduziu a REPRESENTAÇÃO CORPORATIVA (ao lado da política) tornou a REPRESENTAÇÃO CORPORATIVA mero apêndice do Poder Executivo, sem nenhum caráter representativo. Não deu contribuição para o aperfeiçoamento da democracia representativa. 3.5.4. REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL Conceito de INSTITUIÇÃO: EMPRESA que se realiza e dura num meio social (Hauriou). EMPRESA: idéia de algo a se realizar, de um valor a atingir qualquer objetivo social. Quando a EMPRESA passa do plano teórico para o plano da realidade, e adquire condições de duração no meio social, elas se institucionalizam. (SERGIO PANUNZIO – Contributo all exame dei problemi relativi all istituzione della Camera dei fasci e delle corporazioni - 1937): dá-se a REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL quando o representante é um ente, não um indivíduo. (TEORIA DA INSTITUIÇÃO): tentativa de substituir a representação política por outra mais autêntica possibilidade da REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL de uma categoria profissional. (VICENZO ZANGARA – La rappresentanza istituzionale - 1952): não se representa a vontade do representado, nem a da lei o vínculo representativo surge das relações necessárias que se estabelecem no surgimento da instituição (no ato do nascimento de uma instituição; no ato de criação da pessoa jurídica). Na REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL estão incluídas as representações de idéias e a representação de interesses compreende a REPRESENTAÇÃO POLÍTICA, a PROFISSIONAL e até mesmo a CORPORATIVA. Um mesmo indivíduo, num determinado momento, aspira a certo objetivo primordial e a outros objetivos concomitantes daí, não é necessário um órgão alheio às instituições para coordená-las, pois elas surgem das idéias e aspirações dos indivíduos. Os interesses do Estado são os interesses superiores das instituições (e dos indivíduos que lhes deram causa). Das relações sociais surgem, espontaneamente, as INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS do Estado. INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS: são aquelas que contam com um número significativo de adeptos. Com as INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS será possível compor-se um ÓRGÃO LOCAL de GOVERNO (Legislativo e/ou Executivo), onde estejam representadas as instituições. 119 120 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Os ÓRGÃOS LOCAIS representativos, agrupados regionalmente, revelam as instituições desejadas em âmbito regional, as quais, uma vez constituídas, elegerão representantes num ÓRGÃO REGIONAL. A reunião dos ÓRGÃOS REGIONAIS revelará as instituições que constituem aspiração de todo o povo do Estado, cabendo a estas escolher os componentes do GOVERNO do Estado. GOVERNO em três níveis, de base institucional mantém-se a possibilidade de surgimento de novas instituições sempre que ocorrerem mudanças na realidade social. As instituições existentes numa região podem não coincidir com as que existam em outras (aumenta a autenticidade e a eficácia da representação). Exemplo próximo: Iugoslávia. A ASSEMBLÉIA COMUNAL compreendia o CONSELHO COMUNAL e o CONSELHO DAS COMUNIDADES DE TRABALHO. O CONSELHO COMUNAL era eleito diretamente pelos cidadãos. O CONSELHO DAS COMUNIDADES DE TRABALHO era eleito pelos trabalhadores que, no território da Comuna, faziam parte das organizações de trabalho, dos órgãos estatais, das organizações sócio-políticas, das associações, dos membros das cooperativas, bem como pelos demais cidadãos que trabalhavam no território da Comuna e eram designados por Lei. O segundo nível era constituído pelos DISTRITOS, com estatutos próprios e dotados de uma ASSEMBLÉIA (membros eleitos pelos componentes das Assembléias Comunais). Na mesma ordem, existiam as ASSEMBLÉIAS DAS REPÚBLICAS. A ASSEMBLÉIA FEDERAL era composta pelo CONSELHO FEDERAL (Conselho dos delegados dos cidadãos das Comunas e das Repúblicas), pelo CONSELHO ECONÔMICO, do CONSELHO DE EDUCAÇÃO E CULTURA, do CONSELHO DE ASSUNTOS SOCIAIS E SAÚDE e do CONSELHO POLÍTICO-ORGANIZACIONAL. (DALMO DALLARI): para o autor, “entre as idéias novas que será preciso aceitar, para que se chegue ao Estado Democrático autêntico e eficaz, talvez esteja a da superação dos partidos, vislumbrando-se já a REPRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL como a mais apta a corresponder às novas exigências da realidade”. 120 121 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 4. O SUFRÁGIO 4.1. IDÉIA CENTRAL (DALMO DALLARI): uma vez que é impossível confiar-se ao povo a prática direta de ATOS DE GOVERNO, é indispensável fazer-se a escolha daqueles que irão praticar tais atos em seu nome.311 Critérios utilizados, ao longo dos tempos, para escolha dos governantes: (1) força física; (2) sorteio; (3) sucessão hereditária; (4) eleição. (RENATO JANINE):312 O estranho, na democracia antiga, é que mal havia eleição. Na verdade, não havia cargos fixos, ou eles eram poucos. Havia encargos. Uma assembléia tomava uma decisão; era preciso aplicá-la; então se incumbia disso um grupo de pessoas. Mas estas não eram eleitas, e sim sorteadas. Por quê? A eleição cria distinções. Quando se escolhe, pelo voto, quem vai ocupar um cargo permanente (ou encargo temporário), a escolha se pauta pela qualidade. Procura-se eleger quem se acha melhor. Entretanto, o lugar do melhor é na ARISTOCRACIA! A DEMOCRACIA é um regime de iguais. Por pressuposto, em uma DEMOCRACIA, todos deveriam poder exercer qualquer função. Um exemplo é o júri Os principais julgamentos eram, na Ágora, atribuídos a um tribunal especial, cujos membros eram sorteados (o que hoje se chama júri). A maior exceção à regra da escolha por sorteio: os chefes militares. Deles, e de poucos outros, se exige uma competência técnica que não se requer nas tarefas cotidianas. Nestas um nível de desperdício é tolerado, porque é mais importante a igualdade (isonomia) entre os cidadãos do que a perfeição na execução das tarefas. (DALMO DALLARI): Nos dias de hoje, “a escolha por ELEIÇÃO é a que mais se aproxima da expressão direta da vontade popular”. “O POVO, quando atua como corpo eleitoral, é um verdadeiro órgão do Estado”. (PAULO BONAVIDES): SUFRÁGIO é o poder que se reconhece a certo número de pessoas (corpo de cidadãos) de participar direta ou indiretamente na soberania, isto é, na gerencia da vida pública.313 PARTICIPAÇÃO DIRETA: o povo politicamente organizado decide através do sufrágio, determinado assunto do governo (como nos institutos da democracia semidireta votação). PARTICIPAÇÃO INDIRETA: o povo elege representantes (como na democracia indireta eleição). 311 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 182. 312 Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u351772.shtml>. Extraído em 18 ago.2011. 313 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 228. 121 122 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 4.2. A DEMOCRACIA COMO VONTADE DA MAIORIA (BARACHO JÚNIOR):314 a ideia de DEMOCRACIA associada à ‘vontade do povo’ ganha na modernidade a configuração de DEMOCRACIA como ‘vontade da maioria’. É que o processo de universalização de direitos, acentuado a partir do Século XX, à ideia de POVO vão se integrando as mulheres, comunidades tradicionais, crianças e, em diversos aspectos, até os estrangeiros.315 A ideia de DEMOCRACIA MODERNA traz como característica a ideia de “governo da maioria” compatível com a “proteção da minoria”. (HANS KELSEN):316 a existência da maioria pressupõe a existência de uma minoria, portanto, o direito da maioria pressupõe o direito à existência de uma minoria. Disso resulta não tanto a necessidade, mas principalmente a possibilidade de se proteger a minoria contra a maioria. A ideia, em KELSEN, de “maioria relativa” traduz dinamicidade (a possibilidade de alternância no poder), isto é, a possibilidade da minoria se tornar maioria. (VASCONCELOS DINIZ):317 “O reconhecimento democrático da maioria implica necessariamente a proteção do princípio da minoria; não fosse assim, estaríamos num REGIME AUTOCRÁTICO, no qual se impõe autoritariamente uma única vontade. Entre ambas, existe uma vontade mútua de cooperar sob um mesmo sistema, em que deve ser normalmente aceita a alternância de posição entre elas.” O ponto fulcral da DEMOCRACIA reside nos direitos e liberdades das minorias, assegurados na Constituição para evitar eventuais tentativas de violação. Como ensina KELSEN, a sociedade absorve e resolve esse conflito, perfazendo continuamente a paz social por meio do Direito. (BARACHO JÚNIOR):318 se tomada a ideia de DEMOCRACIA, estritamente, como ‘vontade da maioria’ pode-se deixar de considerar dimensões indispensáveis de uma concepção mais moderna. Em ESTADOS PLEBISCITÁRIOS, as decisões políticas podem ser tomadas pela maioria dos eleitores, em decisões plebiscitárias, mesmo que neles não se tenham garantidos direitos fundamentais individuais, como a intimidade, a liberdade de expressão, ou a liberdade de associação ou de reunião, etc. Como assinala BARACHO JÚNIOR, “esta possibilidade existe em particular quando governam líderes carismáticos, que restringem a arena de debates políticos e sustentam seus projetos em uma pauta bastante restrita, de fácil absorção pelos setores menos informados ou críticos do eleitorado”. 319 “A DEMOCRACIA como vontade da maioria só alcança densidade quando estruturalmente vinculada ao Estado de Direito, no qual os direitos e garantias fundamentais, tanto de natureza individual como política são efetivados”.320 314 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. In. TRAVESSONI, Alexandre (Coord.). Dicionário de teoria e filosofia do direito. São Paulo: LTr, 2011, p. 95-98. 315 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 96. 316 Cf. KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 68. 317 Cf. DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Autocracia. cit. p. 22. 318 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 96. 319 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 96. 320 Cf. BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Democracia. cit. p. 96-97. 122 123 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Nesse quadro, a DEMCORACIA não se realiza apenas como ‘deliberativa’, pois se “estende pelos debates que antecedem as deliberações”. 4.3. NATUREZA JURÍDICA DO SUFRÁGIO DIREITOS POLÍTICOS: não são direitos de defesa contra o Estado, mas direitos de integração ao Estado (liberdade-participação) assegurados à determinada categoria de nacionais (cidadãos). DUAS CORRENTES PRINCIPAIS: 1. DOUTRINA DA SOBERANIA NACIONAL o sufrágio é uma função chega-se a admissão do sufrágio restrito; 2. DOUTRINA DA SOBERANIA POPULAR o sufrágio é um direito reconhece-se o sufrágio universal. 4.3.1. DOUTRINA DA SOBERANIA NACIONAL O eleitor é apenas instrumento ou órgão com o qual a NAÇÃO conta para criar o órgão maior – o CORPO REPRESENTATIVO - a quem se delega o poder soberano, do qual a NAÇÃO, todavia, se conserva sempre titular. A sede da soberania é a NAÇÃO. A NAÇÃO atribui competência constitucional ao eleitor para exercer o sufrágio, portanto, a NAÇÃO é o poder que traça as regras e condições do SUFRÁGIO à NAÇÃO cabe a faculdade de determinar quem deve fazer parte do corpo eleitoral. O SUFRÁGIO não é a vontade autônoma do eleitor, mas a vontade soberana da NAÇÃO. Decorre com mais freqüência, além do sufrágio restrito, a obrigatoriedade do voto e a doutrina da dualidade do mandato representativo (atuação independente do eleito em face do eleitor). (BARNAVE – 1791 - durante a Revolução Francesa): “a qualidade de eleitor não é senão uma função pública, a qual ninguém tem direito, e que a sociedade dispensa, tão cedo prescreva seu interesse”. 4.3.2. DOUTRINA DA SOBERANIA POPULAR SUFRÁGIO-DIREITO: o povo é soberano, portanto, cada indivíduo, como membro da coletividade política, é titular de parte ou fração da soberania. O SUFRÁGIO é expressão da vontade própria, autônoma, primária, de cada individuo componente do colégio eleitoral. Se o VOTO é um direito, seu exercício será facultativo. Decorre que o mais lógico para a natureza do mandato seria considerá-lo imperativo e não representativo (doutrina da identidade). (ROUSSEAU - Contrato Social): “o direito de voto é um direito que ninguém pode tirar aos cidadãos”. 123 124 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 4.3.3. SUFRÁGIO COMO “ DIREITO DE FUNÇÃO ” (SAINT ROMANO – La teoria dei diritti pubblici subbiettivi - 1900):321 solução eclética para a natureza jurídica do sufrágio (“DIREITO DE FUNÇÃO”) para conciliar o sufrágio universal com a obrigatoriedade do voto e sanções impostas ao eleitor. É a idéia de poder/dever; direito/dever. Como FUNÇÃO ELEITORAL: o sufrágio é direito público subjetivo outorga poderes ao seu titular, como o de exigir a inscrição nos registros eleitorais; o de ser admitido às votações; exigir cancelamento de eleitores irregulares; etc. Para BISCARETTI DI RUFFIA, porém, o eleitor exerce a FUNÇÃO de modo coletivo e não individual direito corporativo e não “direito subjetivo individual” passível de ser exercido em nome próprio (para mim, contraditoriamente). Como CORRETO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ELEITORAL: o exercício do voto é obrigatório e apresenta-se como “dever cívico”. O eleitor sujeito às sanções da ordem jurídica quando se abstiver de votar ou se valer do voto para auferir vantagens pessoais indevidas. (DALMO DALLARI):322 a opinião absolutamente predominante é a de que se trata de um direito e de uma função, concomitantemente. Como DIREITO DE SUFRÁGIO, configura um direito subjetivo público direito de votar: direito político fundamental. Como há a necessidade de se escolher governantes para que se complete a formação da vontade do Estado, o sufrágio corresponde também a uma FUNÇÃO SOCIAL. Entendo que se trata de um poder ( direito ) / dever : direito fundamental político de participação (direito subjetivo público individualizado) e um dever fundamental de participação na formatação da vontade nacional. Trata-se da expressão máxima da idéia de cidadania, enquanto liberdade social, com compromisso solidário. 4.4. O SUFRÁGIO RESTRITO (A) IDÉIA CENTRAL SUFRÁGIO RESTRITO: o poder de participação é conferido apenas àqueles que preencham determinados requisitos especiais (de riqueza ou instrução, nascimento ou origem). JUSTIFICATIVAS HISTÓRICAS: o SUFRÁGIO RESTRITO justificava-se pelo PRINCÍPIO SELETIVO (princípio de ordem racional para justificar a melhor aplicação da teoria da representação). PRINCÍPIO SELETIVO: buscava conduzir ao governo os mais aptos, os mais capazes, os mais sábios, os melhores. Defendia-se que o sufrágio deveria ser restrito, não para assegurar o domínio social de uma classe, mas para se chegar de forma mais ágil ao governo dos melhores. 321 SAINT ROMANO. La teoria dei diritti pubblici subbiettivi. In ORLANDO, V. E. (Org.). Primo trattato completo de diritto amministrativo italiano. Milano: Societá Editrice Libreria, 1900, p. 110-220. 322 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 182-183. 124 125 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Tornou-se tão-somente um eficaz instrumento de exclusão de parcelas consideráveis do povo de toda participação política. O poder da burguesia dominava, por inteiro, a cena governativa. Pensamento dominante da democracia liberal do século XIX. (B) MODALIDADES DE SUFRÁGIO RESTRITO MODALIDADES DE SUFRÁGIO RESTRITO: SUFRÁGIO CENSITÁRIO (riqueza); SUFRÁGIO CAPACITÁRIO (instrução); SUFRÁGIO ARISTOCRÁTICO (classe social); SUFRÁGIO RACIAL (raça). SUFRÁGIO CENSITÁRIO: sufrágio pecuniário. Dava-se, em geral, a partir de uma das seguintes exigências: a) o pagamento de um imposto direto (sistema censitário francês de 1814 a 1848); b) o ser dono de uma propriedade fundiária (o sistema inglês, gradativamente abolido, e que se extinguiu com a reforma eleitoral de 1918); e c) o usufruir certa renda. SUFRÁGIO CAPACITÁRIO: critério de limitação dado pelo grau de instrução. Visava afastar as pessoas mais rudes (do ponto de vista cultural e intelectual) de qualquer ingerência política acreditava-se que não seriam capazes de favorecer a boa qualidade da representação (formação da elite dirigente). SUFRÁGIO ARISTOCRÁTICO: por efeito de discriminação social “sufrágio privilegiado”. SUFRÁGIO RACIAL: exclusão por odiosas questões raciais. SUFRÁGIO MASCULINO: exclusão por motivo de sexo, como ocorre com as mulheres em alguns países. 4.5. O SUFRÁGIO UNIVERSAL 4.5.1. IDÉIA CENTRAL Na realidade, todo sufrágio é restrito, pois não há sufrágio universal pleno. SUFRÁGIO UNIVERSAL: a participação não é restringida por condições de raça, sexo, riqueza, instrução, nascimento. (PAULO BONAVIDES): “em geral, excluídas as restrições de riqueza ou capacidade, estamos já em presença do SUFRÁGIO UNIVERSAL”.323 (BISCARETTI DI RUFFIA): no SUFRÁGIO UNIVERSAL são estabelecidos apenas “requisitos de ordem geral”; no SUFRÁGIO RESTRITO, “requisitos específicos, censitários e culturais” 324 (meio confusa a idéia do clássico autor italiano). (DALLARI): “a conquista do SUFRÁGIO UNIVERSAL foi um dos objetivos da Revolução Francesa e constou dos programas de todos os movimentos políticos do século XIX, que se desencadearam em busca da democratização do Estado”.325 323 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 233. 324 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 233. 325 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos..., cit. p. 183. 125 126 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG 4.5.2. RESTRIÇÕES AO SUFRÁGIO UNIVERSAL (A) NACIONALIDADE NACIONALIDADE: qualidade de um indivíduo como membro de um Estado. Indivíduos que mantêm um vínculo jurídico-político com o Estado de que fazem parte (povo). Submete o indivíduo à autoridade e proteção da soberania (estado de dependência, fonte de deveres e direitos). ESTRANGEIRO: é o não-nacional devem também ter condição jurídica que lhes preserve a dignidade. AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE: cabe ao Estado legislar (existem diversas regras de Direito Internacional). Art. 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (ONU): todo homem tem direito a uma nacionalidade ninguém será privado arbitrariamente de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade. CRITÉRIOS: jus soli (nacional é o indivíduo nascido no território do Estado); jus sanguinis (a nacionalidade é atribuída em razão da descendência); misto. NACIONALIDADE ORIGINÁRIA (não pressupõe vínculo anterior); NACIONALIDADE DERIVADA (aquisição da nacionalidade mediante naturalização). NACIONALIDADE: primeira condição de capacidade política. (JULIEN LAFERRIÈRE): “condição mínima de vinculação ao país e à coisa pública”.326 (PAULO BONAVIDES): “é natural que os estrangeiros sejam excluídos de participação na vida política do Estado onde porventura se achem”.327 (B) RESIDÊNCIA Usualmente, exige-se prazo mínimo de residência em certa parte do território nacional, visando evitar abusos e vícios, como o deslocamento de eleitores de uma para outra circunscrição eleitoral ou região do mesmo Estado. (C) SEXO Existiram em geral até ao fim da Primeira Grande Guerra Mundial. O SUFRÁGIO FEMININO aparece pela primeira vez, em 1869, nos Estados Unidos, no Estado de Wyoming. Norma constitucional desde 1920 (19ª Emenda à Constituição Americana). O SUFRÁGIO FEMININO é adotado na Inglaterra em 1928. Apenas após a Segunda Guerra Mundial é adotado na França, Brasil, Argentina, Bélgica, Peru, Chile, etc. 326 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 233. 327 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. cit. p. 233. 126 127 NOTAS DE AULA DE TEORIA DO ESTADO - II Onofre Alves Batista Júnior – onofrebj@hotmail.com Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa - Doutor em Direito pela UFMG Professor Adjunto de Direito Público do Quadro Permanente da Graduação e Pós-Graduação da UFMG Em 1956, em levantamento da ONU, apenas 11 Estados ainda negavam o direito de sufrágio às mulheres.328 A Suíça só recentemente adotou o voto feminino (1971). (D) IDADE Em geral, os Estados tomam uma idade mínima para o exercício do direito de voto. Justificada pela pretensa capacidade de discernimento e maturidade que se alega indispensáveis à participação política consciente. Retrata o tendencial temor do sentimento reformista manifesto da mocidade. Quanto mais democrática a ordem constitucional, maior a tendência para a redução da idade eleitoral mínima. Usualmente, a maioridade civil coincide com a maioridade política (eleitoral). Na França e na Inglaterra: maioridade eleitoral aos 21 anos de idade. Constituição francesa de 1814: direito de voto aos 30 anos de idade. No Brasil, dispõe a CRFB/88: Art. 14. A soberania popular será exercida pelo SUFRÁGIO UNIVERSAL e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. § 1º - O ALISTAMENTO ELEITORAL e o VOTO são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. O eleitor, além de reunir todos os requisitos de capacidade exigidos por lei, deve se alistar, para que lhe seja conferido o título de eleitor e seu nome possa constar previamente das listas oficiais de participação. § 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos. § 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasileira; II - o pleno exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição; V - a filiação partidária; VI - a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador. § 4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos. [...]. § 9º - Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa,