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A PROTEÇÃO CONTRA A DISPENSA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA Danilo Gonçalves Gaspar1 RESUMO: Este trabalho analisa o instituto da “dispensa socialmente justificável” no ordenamento jurídico brasileiro e sua relação com o fenômeno da “constitucionalização simbólica”. Enfoca a rescisão do contrato de trabalho efetuada de forma unilateral e sem causa objetiva pelo empregador, o que, para muitos, representa um direito potestativo, que pode ser exercido independentemente de prévia consulta e consentimento do empregado. Palavras-chave: Simbólica, Dispensa, Arbitrária, Reintegração. SUMÁRIO: Introdução – 1. A Proteção Contra a Dispensa Arbitrária ou Sem Justa Causa no Brasil – 2. A Ineficácia do art. 7º, I, da C.F/88 e a “Constitucionalização Simbólica”. – 3. Caminho(s) para se Alcançar a Eficácia Plena da Proteção Contra a Dispensa Arbitrária ou Sem Justa Causa. 3.1. A Convenção nº 158 da OIT. – 3.2. O Direito Fundamental à Efetivação da Constituição e a Proteção contra a Dispensa Arbitrária ou sem Justa Causa. – 3.3. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. – Conclusão. – Referências. Introdução A proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa prevista no artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal Brasileira de 1988, até a presente data, não passou de uma promessa. A garantia ali consignada, que, teoricamente, garantiria aos empregados a proteção contra a dispensa ad nutum¸ em razão da mora do Poder Legislativo e da omissão do Poder Judiciário, se tornou, ao longo desses mais de 20 anos de promulgação do referido texto constitucional, um exemplo daquilo que Marcelo Neves denominou de “Constitucionalização Simbólica”.2 Dentro do modelo tricotômico proposto de Kindermann apresentado por Marcelo Neves, podendo o conteúdo de legislação simbólica revelar uma confirmação de valores sociais, 1 Mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho (Curso Preparatório para Carreira Jurídica JUSPODIVM Salvador/BA). Bacharel em Direito (Faculdade Ruy Barbosa Salvador/BA). Advogado. Professor de Direito do Trabalho da Universidade Salvador - Unifacs, da Faculdade Batista Brasileira - FBB e da Faculdade Maurício de Nassau. 2 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 2 uma demonstração da capacidade de ação do Estado e/ou um adiamento da solução dos conflitos sociais através de compromissos dilatórios3, parece evidente – e é o que se buscará demonstrar com o presente ensaio – que a ineficácia e falta de vigência social da garantia prevista no artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal Brasileira de 1988 é fruto da hipertrofia da função simbólica da atividade legiferante e do seu produto, a lei, sobretudo em detrimento da função jurídico-instrumental. 4 Outrossim, o presente artigo pretende, a partir de uma análise da ratificação pelo Brasil da Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, da eficácia dos direitos sociais e do princípio da dignidade da pessoa humana, analisar a existência de instrumentos jurídicos que viabilizem a concretização da referida garantia constitucional que representa uma ferramenta importantíssima em favor dos empregados na luta pela continuidade da relação de emprego. 1 A proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa no Brasil Dentro do contexto de uma sociedade cuja economia se fundamenta no sistema capitalista neoliberal, como ocorre no caso brasileiro, é, sem dúvida, a relação de emprego a principal forma de inserção social dos indivíduos. Diante desta realidade, questiona-se se haveria alguma forma, então, no Brasil, de se preservar/garantir a relação de emprego daqueles que ainda não fazem parte do grupo de desempregados ao menos com relação às dispensas arbitrárias ou sem justa causa? A resposta ao questionamento acima, teoricamente, parece fácil diante da regra expressa do artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988 que garante aos empregados à proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa. Por ora, basta trazer a primeira parte da redação do dispositivo em questão, ressalvando-se, desde já, que a segunda parte do referido é o grande motivo da ineficácia da proteção trazida à baila. 3 Ibidem., p. 33. 4 Ibidem., p. 23. 3 Todavia, as dificuldades da resposta pretendida se multiplicam e serão aqui analisadas. Inicialmente, cumpre destacar que o que se pretende garantir com a norma em questão é proteção da relação de emprego contra as dispensas imotivadas, leia-se, sem exposição dos motivos. Nesse sentido, cumpre ressaltar que não se trata simplesmente de proteger a relação de emprego contra as dispensas que não possuem motivos. Em verdade, assim como em todo e qualquer ato do ser humano5, toda e qualquer dispensa perpetrada pelo empregador decorre e se fundamenta em algum motivo. O que se busca proteger, assim, é a relação de emprego contra a dispensa perpetrada por motivo banal, subjetivo, uma vez que, conforme já dito, a ausência completa de motivo jamais ocorre. A inexistência de indicação do fato gerador (motivo) por parte do empregador apenas evita a divulgação do fundamento da dispensa, o que não implica a inexistência do mesmo. 6 Não sendo esse o momento adequado para se analisar eventuais diferenças e ou convergências entre os institutos da dispensa arbitrária ou da dispensa sem justa causa, o fato é que, pela leitura do inciso I do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, fica a impressão de que o constituinte utilizou tais expressões como sinônimas, ambas sendo formas de terminação unilateral do contrato de trabalho por parte do empregador sem uma causa objetiva. Diante disto, verifica-se que, a partir da garantia constitucional de vedação da dispensa arbitrária ou sem justa causa, o empregador somente pode dispensar o empregado de forma unilateral caso esse cometa uma das faltas previstas no artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (dispensa por justa causa) ou na ocorrência de um dos motivos (técnico, econômico, disciplinar ou financeiro) previstos no artigo 165 da CLT, dispositivo este que conceitua a dispensa arbitrária. 5 O homem age, em todo e qualquer caso, impulsionado por algum motivo. Se o homem se alimenta, por exemplo, ou é porque está com fome, ou porque sentiu desejo em ingerir aquele alimento ou por qualquer outro motivo que o fez praticar aquela ação. 6 TEIXEIRA, Sérgio Torres. Proteção à Relação de Emprego. São Paulo: LTr, 1998, p. 151. 4 Diante do quadro jurídico acima apresentado, o fato é que independentemente da eficácia jurídica que se queira atribuir ao inciso I do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, tema que será abordado em seguida, parece evidente que a nova Constituição abriu uma fase de transição jurídica no que concerne ao tratamento deferido à ruptura contratual no Direito brasileiro, rompendo com uma ótica estritamente individualista e anti-social, que prega a viabilidade jurídica da dispensa sem um mínimo de motivação socialmente aceitável e defende a dispensa do empregado como direito potestativo empresarial. 7 Historicamente, como ensina Robortella, os sistemas de garantia de emprego podem ser esquematizados através de três modelos. O primeiro modelo, baseando-se nos moldes clássicos, previa a plena liberdade patronal, assegurando ao empregador o pleno direito de despedir o empregado, podendo, assim, exercer livremente seu direito potestativo.8 O segundo modelo, por sua vez, segundo o autor, surgido nos anos pós-guerra, prevê rigoroso sistema de garantia de emprego, como, por exemplo, a extinta estabilidade decenal prevista no art. 492 da CLT, cabendo ao Estado tanto um controle a priori quanto a posteriori, possibilitando a reintegração do empregado ao emprego (art. 495 da CLT). A dispensa flexível, expressando cunhada pelo professor Robortella, representaria o terceiro modelo. Seria ela a proteção do empregado contra a dispensa arbitrária, ou seja, a dispensa ad nutum. Nesta mesma linha histórica, Fábio Hiroshi Suzuki argumenta que encarar a liberdade do empregador de por fim ao contrato como algo absoluto, dependente única e exclusivamente de sua vontade, representa negar a autonomia do Direito do Trabalho em face do Direito Privado.9 7 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 1119. 8 ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorin. O Moderno Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1994. 9 SUZUKI, Fábio Hiroshi. Proteção Contra Dispensa Imotivada no Direito do Trabalho Brasileiro. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo. a. 32. n. 123, p. 07-52, jul./set. 2006, p. 29. 5 Diante desta última ótica, não se pode conceber que a dispensa continue sendo encarada como um direito unilateral potestativo, sob pena de continuar concebendo a idéia primitiva de que o empregador possui um poder sobre o empregado de tal forma como o pátrio poder. Destarte, soa, no mínimo, incoerente, sustentar que a dispensa seja um direito potestativo, ou seja, que o empregador possa despedir o empregado de acordo com o seu arbítrio, ao mesmo tempo em que o texto constitucional veda expressamente a dispensa arbitrária (art. 7, I, C.F/88) e o Princípio da Continuidade da Relação de Emprego prega que a terminação do contrato de trabalho seja uma exceção. Assim, a natureza que deve, atualmente, ser atribuída ao direito de dispensa por parte do empregador, de acordo com as lições de Suzuki 10é a de direito-função, ou, como ensina Teixeira11, direito relativo, que se traduz na idéia de que é a dispensa um ato unilateral mitigado, ou seja, não pode ser exercido sem que para tanto haja incorrido alguma justa causa prevista em lei ou um motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro, sob pena do ato da dispensa ser configurado como um abuso de direito. É, portanto, diante desse quadro que, a partir da Constituição Federal de 1988, se desenvolveu no ordenamento jurídico brasileiro a proteção da relação de emprego contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, exigindo, portanto, para a legalidade da extinção unilateral do contrato de trabalho por parte do empregador, a ocorrência de uma das faltas previstas no art. 482 da CLT ou de um dos motivos previstos no art. 165 da CLT. Todavia – e esse é o principal motivo do presente ensaio –, tal garantia constitucional não passou, até o presente momento, de uma promessa vazia, ineficaz e demagógica do constituinte, revelando-se, portanto, tal direito constitucional um exemplo de produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo- jurídico.12 10 Ibidem. 11 Op. Cit. 12 Op. Cit., pg. 30. 6 2 A ineficácia do art. 7º, I, da C.f/88 e a “constitucionalização simbólica” Uma breve síntese da obra escrita por Marcelo Neves “A Constitucionalização Simbólica” 13 se faz necessária para esclarecer o motivo da ineficácia, durante mais de 20 anos de vigência da atual Constituição Federal, da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa no Brasil. No primeiro capítulo de sua obra, o Autor trata da legislação simbólica, questionando se o fracasso da função instrumental da lei – lei aqui como instrumento de mudança social14 – é fruto apenas de um problema de ineficácia das normas jurídicas. É nesse momento que Marcelo Neves, a partir da resposta negativa à questão anterior, inicia o debate em torno da função simbólica de determinadas leis. 15 Conceituando a legislação simbólica como a “produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico” 16, Marcelo Neves apresenta, a partir do modelo tricotômico proposto por Kindermann, os tipos de legislação simbólica, afirmando que a legislação simbólica pode ter como objetivos: confirmar valores sociais, demonstrar a capacidade de ação do Estado e adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios.17 De acordo com os tipos de legislação simbólica acima destacados, tem-se que o primeiro conteúdo da legislação simbólica – confirmação de valores sociais – é utilizado comumente para diferenciar grupos e os respectivos valores e interesses.18 19 13 Ibidem. 14 Ibidem, pg. 29. 15 Ibidem, pg. 30. 16 Ibidem, pg. 30. 17 Ibidem, pg. 33. 18 Ibidem, pg. 35. 19 “Um clássico exemplo no estudo da legislação simbólica é o caso da ‘lei seca’ nos Estados Unidos, abordado pormenorizadamente por Gusfield. A sua tese central afirma que os defensores da proibição de consumo de bebidas alcoólicas não estavam interessados na sua eficácia instrumental, mas sobretudo em adquirir maior respeito social, constituindo-se a respectiva legislação como símbolo de status. Nos conflitos entre protestantes/nativos defensores da lei proibitiva e católicos/imigrantes contrários à proibição, a ‘vitória legislativa’ teria funcionado simbolicamente a um só tempo como ‘ato de deferência para os vitoriosos e de degradação para os perdedores’, sendo irrelevantes os seus efeitos instrumentais. Embora contestada quanto à 7 Já o segundo tipo de legislação simbólica – aquela que pretende demonstrar a capacidade de ação do Estado – atua como, nos dizeres de Marcelo Neves, uma “Legislação-álibi”. O que pretende o Estado com a legislação-álibi é fazer com que a sociedade nele confie, crendo, assim, nos sistemas político e jurídico a ela conferidos. 20 A principal característica da legislação-álibi é o caráter secundário da produção ou não dos efeitos sociais desejados com o referido texto legal. O que importa, primariamente, é a sensação perante a sociedade de que o Estado está “satisfazendo” as expectativas dos cidadãos. Deixa claro Marcelo Neves que a legislação-álibi é elaborada em meio a um clima de pressão direta da sociedade, em face da insatisfação popular perante determinados acontecimentos ou em casos de emergência de problemas sociais. Nessas situações, o Estado acaba por elaborar leis para satisfazer tais expectativas, leis estas, entretanto, que não possuem um mínimo de condições de serem efetivadas ou que muito provavelmente não irão contribuir para a solução dos respectivos problemas sociais. 2122 No Brasil, a alteração da Lei de Crimes Hediondos23 – Lei nº 8.072 de 25 de Julho de 1990 – ocorrida no ano de 1994 é um bom exemplo de como o Estado atua, simbolicamente, em momentos de pressão ou comoção social. A lei de Crimes Hediondos, editada originariamente no ano de 1990, foi alterada no ano de 1994 – Lei nº 8.930 de 06 de setembro de 1994 –, através de emenda popular, (a primeira da História do Brasil), encabeçada pela autora de novela da Rede Globo de Televisão sua base empírica, é de reconhecer que a contribuição de Gusfield possibilitou uma nova e produtiva leitura da atividade legislativa”. (Ibidem, pg. 33-34) 20 Ibidem, pg. 36. 21 Ibidem, pg. 36. 22 “No Direito Penal, as reformas legislativas surgem muitas vezes como reações simbólicas à pressão pública por uma atitude estatal mais drástica contra determinados crimes”. (Ibidem, pg. 38) 23 “A Lei de Crimes Hediondos representa uma grande mutação da forma com que o Estado passou a tratar determinados crimes; crimes estes considerados pelos legisladores, como de maior gravidade social. Estes, a partir do início da vigência da Lei de Crimes Hediondos, passaram a ser tratadas com uma forma punitiva mais agressiva por parte de um Estado que, na época, já se via acuado por crimes como o seqüestro, por exemplo, que já chocavam a população, que, por sua vez, clamava por punições mais severas para os mesmos”. VEIGA, Marcio Gai. Lei de Crimes Hediondos: uma abordagem crítica. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3637>. Acesso em: 30 nov. 2009. 8 Glória Perez, depois do assassinato de sua filha Daniela Perez24. A alteração consistiu em incluir o homicídio qualificado25 – crime que ceifou a vida da filha da Glória Perez – na Lei dos Crimes Hediondos. O fato é que, passados mais de 15 anos da edição da referida lei, ou seja, completadas quase duas décadas de enquadramento do crime de homicídio qualificado como crime hediondo, o tipo penal em questão continua sendo praticado em grande número no Brasil, motivo pelo qual se conclui que trata-se de um exemplo claro de como o Estado, por intermédio de uma legislação-álibi, busca despertar um sentimento de confiança perante a sociedade, dando a falsa aparência de que está resolvendo determinados conflitos/problemas sociais. O terceiro tipo de legislação simbólica visa “adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios”26, fazendo com que a solução do conflito seja adiada para um futuro incerto e indeterminado.27 Ainda no primeiro capítulo, o Autor faz uma distinção importante entre eficácia, efetividade e vigência social para que se possa identificar uma determinada legislação como simbólica. Enquanto a eficácia da lei está relacionada à concreção do vínculo se-então 24 “Destaca-se, preliminarmente, que o homicídio qualificado é definido como crime hediondo, nos termos do art. 1º, I, da Lei n. 8.072/90, com redação determinada pela Lei n. 8.930, de 6 de setembro de 1994. Todos conhecem as razoes que levaram o Congresso Nacional a editar este último diploma legal”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 65. 25 “Em seu § 2º, o art. 121 contém as formas qualificadas do homicídio, cominando para elas as penas de reclusão de 12 a 30 anos. São casos em que os motivos determinantes, os meios empregados ou os recursos empregados demonstram maior periculosidade do agente e menores possibilidades de defesa da vítima, tornando o fato mais grave do que o homicídio simples”. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial. Arts. 121 a 234 do CP. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2005, pg. 69. 26 NEVES, Op. Cit, pg. 41. 27 “Como ‘compromisso-fórmula-dilatório”, expressão utilizada por Schimitt em relação à constituição de Weimar, enquadra-se perfeitamente o caso da Lei norueguesa sobre empregados domésticos (1948), investigado muito habilidosamente por Aubert. A função manifesta dessa Lei teria sido a regulamentação de relações de trabalho; instrumentalmente o seu fim haveria sido a melhora das condições dos empregados domésticos e a proteção dos seus interesses. A suavidade das normas sancionadoras a serem aplicadas às donas de casa nas hipóteses de violação do diploma legal, dispositivos punitivos cujas finalidades de aplicação decorreriam da própria Lei, constituía um fator importante para garantir a sua ineficácia. Também a forte dependência pessoal dos empregados domésticos em relação às donas de casa atuava como condição negativa de efetivação do texto legal. Foi exatamente essa previsível falta de concretização normativa que possibilitou o acordo entre grupos ‘progressistas’ e tendências ‘conservadoras’ em torno do conteúdo da Lei. Os primeiros ficaram satisfeitos porque a Lei, com os seus dispositivos sacionatórios, documentava a sua posição favorável a reformas sociais. Aqueles que eram contrários à nova ordem legal contentaram-se com a falta de perspectiva de sua efetivação, com a sua ‘evidente impraticabilidade’. Dessa maneira, abrandava-se um conflito político interno através de uma ‘lei aparentemente progressista’, ‘que satisfazia ambos partidos’, transferindo-se para um futuro indeterminado a solução do conflito social subjacente”. Ibidem, pg. 41-42. 9 abstrata e hipoteticamente previsto na normal legal, a efetividade se vincula à implementação do programa finalístico que orientou à criação da Lei, ou seja, a concretização do vínculo meio-fim que decorre abstratamente do texto legal. 28 No caso da legislação simbólica, entretanto, não basta, para a sua configuração, que a Lei seja eficaz, mas não realize os fins para os quais foi editada. É necessário ainda que a vigência social da norma – assim entendida como a capacidade do sistema jurídico de assegurar expectativas normativas – seja prejudicada. 29 Por fim, no primeiro capítulo, o Autor aponta que a legislação simbólica assume tanto um caráter negativo – falta de eficácia normativa e vigência social – como um caráter positivo, qual seja: produção de efeitos relevantes para o sistema político, de natureza não especificamente jurídica. 30 Partindo para o segundo capítulo da obra, quando Marcelo Neves abre o debate acerca da constitucionalização simbólica, partindo da teoria dos sistemas para concluir que, sendo o sistema jurídico um sistema autodeterminado ou fechado operacionalmente, a Constituição revela-se como a forma através da qual o sistema jurídico reage à própria autonomia, funcionando o Direito Constitucional, assim, como um “limite sistêmico interno para a capacidade de aprendizado (abertura cognitiva) do direito positivo”31, determinando a Constituição “como e até que ponto o sistema jurídico pode reciclar-se sem perder sua autonomia”.32 De acordo com essa linha de raciocínio, a Constituição desempenha, no seio de uma sociedade caracterizada pela supercomplexidade, uma função descarregante para o direito positivo, mediante a adoção do princípio da não-identificação33, impedindo que o “sistema 28 Ibidem, pg. 47-48. 29 Ibidem, pg. 51-53. 30 Ibidem, pg. 53. 31 Ibidem, pg. 71. 32 Ibidem, pg. 71. 33 “Para a Constituição ele significa a não-identificação com concepções abrangentes (totais) de caráter religioso, moral, filosófico ou ideológico. A identificação da Constituição com uma dessas concepções bloquearia o sistema jurídico, de tal maneira que ele não poderia produzir uma complexidade interna adequada ao seu ambiente hipercomplexo”. Ibidem, pg. 73. 10 juridico seja bloqueado pelas mais diversas e incompatíveis expectativas de cmportamento”. 34 O princípio da não-identificação acima referido assume posição de destaque na institucionalização dos direitos fundamentais pela Constituição uma vez que é através dessa que a Constituição reconhece a hipercomplexidade da sociedade e define que inexiste um sistema social supremo, servindo os direitos fundamentais como resposta “às exigências do seu ambiente por livre desenvolvimento da comunicação (e da personalidade) conforme diversos códigos diferenciados”. 35 E o que seria, então, o fenômeno da constitucionalização simbólica? Marcelo Neves responde a esta questão apresentando as características desse fenômeno, apontando, inicialmente, o sentido negativo da constitucionalização simbólica, que se refere à “falta generalizada de concretização das normas constitucionais” 36. A falta de concretização das normas constitucionais – assim como ocorre com a legislação simbólica –, não se restringe ao problema da ineficácia da norma constitucional. Ganha relevo mais uma vez que a questão da vigência social da norma, desta vez, da norma constitucional escrita, revelando, assim, uma falta generalizada de “orientação das expectativas normativas conforme as determinações dos dispositivos da Constituição”, faltando ao texto constitucional, então, normatividade. 37 Todavia, a constitucionalização simbólica não só exerce uma função negativa de ausência de concretização das normas constitucionais, como também assume um papel positivo de resposta às exigências e objetivos políticos concretos, podendo-se afirmar que “a constitucionalização simbólica desempenha uma função ideológica” 38, transmitindo um modelo cuja realização é impossível sob as condições sociais daquele ambiente. 34 Ibidem, pg. 72. 35 Ibidem, pg. 75. 36 Ibidem, pg. 91. 37 Ibidem, pg. 92. 38 Ibidem, pg. 97. 11 Quanto aos tipos de constitucionalização simbólica, o Autor propõe uma classificação seguindo a mesma linha do que fora feito com relação à legislação simbólica, apontando três tipos básicos, quais sejam: a constituição destinada à confirmação de determinados valores sociais; a constituição como forma de compromisso dilatório e a constitucionalização-álibi39, deixando claro o Autor que “é através das ‘normas programáticas de fins sociais’ que o caráter hipertroficamente simbólico da linguagem constitucional vai apresentar-se de forma mais marcante.”.40 Desta forma, através de uma constitucionalização simbólica, o Estado realiza um papel hipertroficamente simbólico da atividade constituinte e do discurso constitucionalista, servindo esses dois institutos como “uma parada de símbolos para a massa dos espectadores, sem produzir os efeitos normativo-jurídicos generalizados previstos no respectivo texto constitucional”.41 No terceiro capítulo, Marcelo Neves, utilizando-se dos conceitos de autopoiese42 43e alopoiese44, enquadra o fenômeno da constitucionalização simbólica como alopoiese do sistema jurídico. Explica o Autor que, no caso da constitucionalização simbólica, códigos de comunicação outros, em especial os códigos econômico (ter/não-ter) e político (poder/não-poder), se sobrepõem sobre o código lícito/ilícito, em detrimento da eficiência, funcionalidade e racionalidade do Direito. 45 Conclui o Autor afirmando que46: É na capacidade de ‘releitura’ própria das determinantes ambientais que o sistema se afirma como autopoiético. Na medida em que, ao contrário, os agentes do sistema jurídico estatal põem de lado o 39 Ibidem, pg. 102. 40 Ibidem, pg. 115. 41 Ibidem, pg. 120. 42 Significa inicialmente que o respectivo sistema é construído pelos próprios componentes que ele constrói. Ibidem, pg. 127. 43 A aplicação do instituto da alopoiese no Direito impõe afirmar que o Direito constitui um “sistema normativamente fechado, mas cognitivamente aberto”. Ibidem, pg. 136. 44 “Derivada etimologicamente do grego állos (‘um outro’, ‘diferente’) + poíesis (‘produção’, ‘criação’), a palavra designa a (re)produção do sistema por critérios, programas e códigos do seu ambiente. O respectivo sistema é determinado, então, por injunções diretas do mundo exterior, perdendo em significado a própria diferença entre sistema e ambiente. Ibidem, pg. 142. 45 Ibidem, pg. 146. 46 Ibidem, pg. 146-147. 12 código-diferença ‘lícito/ilícito’ e os respectivos programas e critérios, conduzindo-se ou orientando-se primária e freqüentemente com base em injunções diretas da economia, do poder, das relações familiares etc., cabe, sem dúvida, sustentar a existência da alopoiese do direito. Desta forma, fica claro que o que ocorre no fenômeno da constitucionalização simbólica é uma sobreposição do sistema político ao Direito, servindo a política como um bloqueio da reprodução operacionalmente autônoma do sistema jurídico.47 Além de atuar como um bloqueio do direito pela política, o fenômeno da constitucionalização simbólica ainda cria, perante a sociedade, a imagem de um Estado identificado com os valores constitucionais, “apesar da ausência de um mínimo de concretização das respectivas normas constitucionais”. 48 Como se vê, há, no fenômeno da constitucionalização simbólica, uma interferência de códigos externos (econômico e político em especial) sobre o Direito de tal maneira que este perde sua autonomia funcional, culminando necessariamente na ausência de concretização das normas constitucionais, justamente o que ocorre no tema objeto do presente ensaio. Vale ressaltar ainda que o Autor, em sua obra, conclui sua pesquisa com o capítulo denominado “Perspectiva”, capítulo este que, entretanto, não será objeto de explanação no presente artigo dado que não agrega ao objetivo que aqui se propõe. 49 O que de há de fundamental da obra de Marcelo Neves50, então, para o presente ensaio, é a correlação existente entre a ineficácia da garantia contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa prevista no artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988 e o fenômeno da constitucionalização simbólica. Desta forma, parece evidente que a garantia em questão foi fruto justamente desse caráter simbólico da Constituição na medida em que, à primeira vista, a partir da leitura do inciso I 47 Ibidem, pg. 149. 48 Ibidem, pg. 151. 49 Ibidem, pg. 191-200. 50 Ibidem. 13 do artigo 7º da Constituição Federal de 198851, pode-se imaginar que aquele dispositivo vinha, naquela oportunidade, a agasalhar uma das mais importantes lutas da classe trabalhadora: a luta pela proteção da relação de emprego. Todavia, quando se analisa a realidade jurídica brasileira do tema em questão ao longo desses mais de 20 (vinte anos) de Constituição, se verifica que a inserção no texto constitucional da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, da forma como foi feita, foi fruto de “finalidades políticas de caráter não especificamente normativo- jurídico”. 52 Portanto, essa “falta generalizada de concretização das normas constitucionais” 53, aqui representada pela ineficácia, até a presente data, da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa prevista na Constituição Federal de 1988 (art. 7º), revela a incapacidade do sistema jurídico de assegurar as expectativas normativas, revelando, portanto, a falta de vigência social da norma constitucional em questão. 54 O Argumento lançado por aqueles que opinam pela ausência de eficácia plena e imediata do direito contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa é no sentido de que a norma constitucional em questão condicionou a sua própria eficácia à edição de uma lei complementar, motivo pelo qual enquanto não for editada a referida lei complementar deve prevalecer única e exclusivamente o quanto disposto no inciso I do artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal do Brasil de 1988 que diz que: “Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição: I – fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, caput, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966;”. 55 51 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Alexandre de Moraes. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003, pg. 34. 52 NEVES, Loc. Cit. 53 Ibidem, Loc. Cit. 54 Ibidem, pg. 51-53. 55 BRASIL, Op. Cit., pg. 227. 14 Desta forma, atualmente, se reconhece, no Brasil, de forma majoritária – tanto doutrinária como jurisprudencialmente – o direito potestativo56 do empregador dispensar o empregado sem justa causa, desde que, para tanto, arque com a multa equivalente a 40% dos depósitos de FGTS existentes na conta vinculada do empregado (art. 10, I, ADCT da Constituição Federal de 1988). O professor Amauri Mascaro do Nascimento, por exemplo, diz que, até que seja editada a lei em questão, tanto o empregado despedido sem justa causa quanto o empregado despedido arbitrariamente teriam somente, como medida protecionista ou compensatória, a indenização prevista no art. 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) (quatro vezes da porcentagem prevista no art. 6º, caput, da Lei nº 5.107/1966), vulgarmente chamada de multa de 40% do FGTS, bem como as parcelas rescisórias devidas nos casos de resilição do contrato por iniciativa do empregador.5758 Independentemente da fragilidade do argumento acima citado e dos elementos jurídicos existentes no ordenamento jurídico brasileiro capazes de garantir a plena eficácia da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa – tema que serão objeto de análise no próximo capítulo – o fato é que, diante da ineficácia, até a presente data, da referida proteção, verifica-se que a mesma foi utilizada pelo Estado para, a um só tempo, demonstrar sua capacidade de ação e para adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios.59 56 Representam os direitos potestativos, segundo os professores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, uma das classificações atribuídas aos direitos subjetivos quanto a sua finalidade. Explicam os autores que: “Nesta segunda categoria, enquadram-se os direitos mediante os quais determinadas pessoas podem influir, com declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outras. Trata-se de direitos insuscetíveis de violação, pois a eles não corresponde qualquer prestação, como, por exemplo, a revogação de um mandato ou uma despedida sem justa causa de empregado não estável”. (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 485). 57 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. 58 Na mesma linha de pensamento temos, a título de exemplo, os posicionamentos dos professores Arnaldo Sussekind (SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: LTr, 2005, vols. I e II, pg. 566); Evaristo de Moraes Filho e Antônio Carlos Flores de Moraes (MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antonio Carlos Flores de. Introdução ao Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: LTR, 2003, pg. 387); Orlando Gomes e Edson Gottschalk (GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Edson. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. rev. e atual. por Jose Augusto Rodrigues Pinto. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pg. 345) 59 NEVES, Op. Cit., pg. 33. 15 A inserção no texto constitucional da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, por si só, criou um sentimento social – sobretudo da classe trabalhadora – de conquista, de vitória, de contemplação com um direito vital para o Direito do Trabalho: o direito de manutenção da relação de emprego. Assim sendo, o Estado (constituinte) pretendeu demonstrar à classe trabalhadora que estava agindo, atuando em prol da melhoria das condições de trabalho. Todavia, ao condicionar a eficácia da referida proteção à edição de uma Lei Complementar – lei que até a presente data não foi editada pelo Poder Legislativo – e ao limitar tal proteção ao pagamento da multa de 40% do FGTS até que seja editada tal lei, o Estado (constituinte) acabou por adiar a solução desse conflito social através de um compromisso dilatório, o que vem fazendo até os dias atuais com a omissão do Poder Legislativo – que não edita a referida lei complementar – e do Poder Judiciário que não aplica a proteção prevista no texto constitucional. Portanto, a ausência de eficácia e de vigência social da proteção constitucional contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa revela claramente como o Estado (constituinte) se utilizou de dispositivos constitucionais com caráter hipertroficamente simbólico para adiar a resolução de conflitos sociais e causar a falsa impressão de que estava atuando em prol da melhoria das condições sociais, quando, em verdade, tais dispositivos já nasceram com o objetivo de terem sua eficácia bloqueada por questões não jurídicas, mas sim por questões políticas e econômicas. Diante desse quadro, é tarefa do Direito enquanto sistema autônomo e auto-referencial, buscar elementos e institutos capazes de retirar o bloqueio empregado pela hipertrofia do caráter simbólico do dispositivo constitucional que prevê a proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa e efetivar, de uma vez por todas, tal direito. É, portanto, o que se buscará fazer a partir de agora. 16 3 Caminho(s) para se alcançar a eficácia plena da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa 3.1. A Convenção nº 158 da OIT Como já visto, a eficácia da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa prevista no inciso I do artigo 7º da Constituição Federal de 1988 foi condicionada à edição de uma lei complementar que, até a presente data, ainda não foi editada. Todavia, alguns argumentos (caminhos) que implicam a eficácia plena da referida proteção merecem ser lançados ao debate, dentre eles o processo de ratificação pelo Brasil da Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi fruto da evolução histórica do Direito do Trabalho, em especial no que tange ao seu caráter internacional. Fruto, ao final da I Guerra Mundial, do Tratado de Versalhes (28 de junho de 1919), a OIT foi constituída como um dos organismos permanentes da Sociedade das Nações.60 O Brasil integra a OIT desde a sua fundação (1919), tendo, inclusive, dela participado. Desta forma, verifica-se que o Brasil possui, ao longo da trajetória do órgão, forte participação no que a OIT possui de principal: sua função normativa, tarefa esta de incumbência da Conferência Internacional do Trabalho. O Brasil, enquanto Estado-membro, ratificou diversas Convenções aprovadas pela OIT, cujo rol é trazido pelo professor Evaristo de Moraes Filho em sua obra61. Dentre elas, 60 “Firmado o pacto da Sociedade das Nações, dispôs o seu art. 23 que a mesma expressa que os seus membros ‘se esforçarão por assegurar condições de trabalho eqüitativas e humanitárias para o homem, a mulher e a criança, em seus próprios territórios e nos países a que se estendam suas relações de comércio e indústria, e, como tal objetivo, estabelecerão e manterão as organizações internacionais necessárias’. O primeiro princípio inscrito no art. 427 é o de que ‘o trabalho não é mercadoria nem artigo de comércio’, daí decorrendo todos os demais, para uma proteção mínima quanto à mulher, ao menor, à duração do trabalho, etc. Escolhida a Suíça para sede da OIT, foi seu primeiro presidente o socialista Albert Thomas, um dos seus próprios criadores”. (MORAES FILHO; MORAES, Op. Cit., p. 221). 61 Ibidem. 17 destaca-se a Convenção da OIT n. 158, de 1982, que trata do término da relação do trabalho por iniciativa do empregador. Dentre alguns dos antecedentes históricos da Convenção n. 158, destaca-se a Recomendação n. 119 da OIT, de 1963 que, já àquela época, previa que a terminação do contrato de trabalho não deveria ocorrer sem que, para tanto, incorresse alguma causa justificada relacionada à capacidade ou conduta do empregado ou se baseasse nas necessidades de funcionamento da empresa.62 A Convenção n. 158 da OIT foi o resultado de uma preocupação internacional com relação à preservação da relação de emprego. Os avanços tecnológicos, as novas formas de relação de emprego e o crescimento do índice de desemprego foram fatores que fizeram com que a Conferência Internacional do Trabalho se reunisse e aprovasse a referida Convenção.63 Em seu corpo, a Convenção n. 158 da OIT traz expressamente a previsão e consagração do instituto da dispensa socialmente justificável, já tratado anteriormente, estabelecendo, em seu art. 4º que: Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço. 62 A Recomendação n. 119 (1963) representou importante passo ao estabelecer diretrizes gerais que mais tarde seriam ampliadas, dentre as quais a noção de despedida com causa justificada. Significa o direito do empregado de não ser dispensado sem que um motivo o justifique. De acordo com pesquisa da Comissão de Peritos da OIT, após a adoção da Recomendação n. 119, 45 países a adotaram expressamente em suas legislações ou convenções coletivas de trabalho, outros 12 países promoveram medidas contra dispensas abusivas ou injustificadas, dados que revelam a tendência do direito internacional e comparado no sentido de dar à ruptura do contrato de trabalho por ato do empregador uma nova disciplina jurídica. 63 “É de se registrar, de logo, que os princípios insculpidos na referida Convenção n. 158 consagram um dos principais alicerces de justiça social, que é o da proteção ao emprego (que não se confunde com a estabilidade), uma vez que o emprego é a fonte por excelência do alimento do empregado e dependentes, ao tempo que dignifica a pessoa do trabalhador, enquanto receptáculo dos direitos fundamentais universalmente consagrados, e, ainda, vem ao encontro da moderna concepção das relações trabalhistas, onde o empregado deve ser visto como um parceiro e co-partícipe do empreendimento, e não mais, como um número, uma máquina ou até, um opositor do empregador. Além do mais, os países de concepção mais avançada das relações de trabalho já adotam os princípios de proteção ora em comento”. (CARVALHO, José Otávio Patrício. Aplicabilidade da Convenção n. 158, da OIT, nas relações de emprego no Brasil. Revista LTr. São Paulo. a. 60. n. 04, p. 516-519, abr/ 1996, pg. 516) 18 Buscando dar eficácia ao instituto, a referida Convenção, em seu art. 7º, prevê um procedimento prévio nos casos de dispensa por motivo disciplinar ou técnico, dispondo que: Não deverá ser terminada a relação de trabalho de um trabalhador por motivos relacionados com seu comportamento ou seu desempenho antes de se dar ao mesmo a possibilidade de se defender das acusações feitas contra ele, a menos que não seja possível pedir ao empregador, razoavelmente, que lhe conceda essa possibilidade. Importante também destacar, de logo, a redação do art. 10 da Convenção n. 158. De importância incomparável, o aludido dispositivo prevê as conseqüências para o caso em que a dispensa efetuada pelo empregador seja considerada sem um motivo socialmente justificado. Eis o teor do art. 10: Se os organismos mencionados no artigo 8 da presente Convenção chegarem à conclusão de que o término da relação de trabalho é injustificado e se, em virtude da legislação e prática nacionais, esses organismos não estiverem habilitados ou não considerarem possível, devido às circunstâncias, anular o término e, eventualmente, ordenar ou propor a readmissão do trabalhador, terão a faculdade de ordenar o pagamento de uma indenização adequada ou outra reparação que for considerada apropriada. Como se vê, a própria Convenção n. 158 prevê, como regra, nos casos em que a dispensa for considerada socialmente injustificada, a reintegração do empregado. Só nos casos em que a reintegração não for aconselhável, então, deve ser ordenado o pagamento de uma indenização substitutiva. A Convenção n. 158, em seus arts. 5º e 6º, apresenta um rol de causas que não justificam motivo para dispensa do empregado, dentre elas, por exemplo, a participação em atividades sindicais e a apresentação de reclamação trabalhista. Eis, portanto, um instrumento de importância e eficácia ímpar na proteção das relações de emprego, motivo pelo qual foi a Convenção n. 158 da OIT ratificada pelo Brasil no ano de 1992, através do Decreto Legislativo n. 68. Depositada a carta de ratificação no dia 05 de janeiro de 1995, a referida Convenção, então, entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro no dia 06 de janeiro de 2006, doze meses após o depósito da carta de ratificação como estabelecido no art. 16 da própria Convenção n. 158 da OIT. 19 Sua eficácia, no entanto, se deu com a publicação do Decreto n. 1.855, de 11 de abril de 1996, que divulgou o teor da Convenção n. 158 da OIT, devidamente traduzida para a língua portuguesa. Portanto, os trâmites formais para aplicabilidade da Convenção n. 158 da OIT no Brasil foram todos observados detalhadamente, o que retira qualquer dúvida acerca da lisura do aspecto formal da aplicabilidade da Convenção n. 158 da OIT no Brasil, o que levou, inclusive, o Ministro Celso de Mello, Relator da ADI-MC 1480 / DF – DISTRITO FEDERAL (Medida Cautelar em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade promovida pela Confederação Nacional do Transporte e pela Confederação Nacional da Indústria em face do Presidente da República), em seu voto, a afirmar que: Devo assinalar, por necessário, que a Convenção n. 158 da O.I.T (1982) – que estabelece a disciplina normativa concernente ao término da relação de trabalho por iniciativa do empregador e que fixa regras de proteção contra a dispensa arbitrária do trabalhador – acha-se definitivamente incorporada à ordem jurídica doméstica do Estado brasileiro, eis que já se concluiu o procedimento de sua solene recepção pelo sistema de direito positivo interno do Brasil. Assim sendo, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que todos os trâmites exigidos pela Constituição Federal de 1988 foram satisfeitos, tanto a aprovação definitiva pelo Congresso Nacional, como exige o art. 49, I, da C.F, que se deu com o Decreto Legislativo n. 68, quanto a promulgação do texto convencional pelo presidente da República (Decreto n. 1.855/96), conforme preleciona o art. 84, VIII da C.F/88. Vê-se, então, que, já àquela época, o STF, valendo-se de uma posição, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “dualista moderada”, ou seja, que exige a ratificação pelo Congresso Nacional e a promulgação pelo presidente da República do texto convencional para que a norma internacional tenha eficácia no ordenamento jurídico interno brasileiro, já havia consagrado a posição de que a Convenção n. 158 da OIT havia, pelo menos formalmente, se submetido a todos os trâmites exigidos pelo ordenamento jurídico interno. Foi nesse sentido, então, que, antes da denúncia efetuada pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso – tema que será abordado ainda nesse tópico –, os Tribunais Trabalhistas passaram a aplicar a Convenção n. 158, dando eficácia aos seus institutos, conforme se pode extrair da ementa do acórdão que julgou o processo de nº 02854/96 do TRT da 17ª Região, que teve como Relator o Juiz Danilo Augusto Abreu de Carvalho: 20 EMENTA: CONVENÇÃO 158 DA OIT. O Direito Internacional adotou, e isso é incontroverso, o conceito de dispensa socialmente justificável. É dizer: nem tanto ao mar, nem tanto à terra: nem a estabilidade decenal rígida da Consolidação das Leis do Trabalho (praticamente inexistente), nem a instabilidade jurídica com o direito potestativo de resilir. Hoje a Justiça do Trabalho, numa imagem, está menos para o médico que para o legista: trata de cadáveres (relações de emprego já extintas) nove vezes mais que de doentes (relações de emprego em curso), o que em si já é uma distorção. Não será em todas as situações que o Juiz deverá determinar a reintegração do empregado. Muitas circunstâncias deverão ser sopesadas, a cada caso concreto. Coragem, serenidade, respeito ao Capital – produtor de riquezas, fator de progresso –, dignidade para o Trabalho – destinatário do progresso, eis os parâmetros pelos quais deverá a Justiça do Trabalho se pautar, para extrair da Convenção 158 exegese que não seja anacrônica, mas instrumento de aprimoramento da Cidadania, e assim um passaporte para o Direito do Trabalho do terceiro milênio. Somente com garantia no emprego haverá verdadeira negociação coletiva. A Convenção 158 é constitucional, auto-executável e impede dispensas que não sejam socialmente justificáveis em todo o território nacional. Estabelece procedimentos para a dispensa coletiva. Obriga dar-se ao trabalhador prévia ciência dos motivos pelos quais está sendo dispensado, dando-lhe oportunidade para defender-se, salvo se isso não se mostrar razoável. Permite a reintegração, a critério do Poder Judiciário, conquanto não seja essa, necessariamente, a conseqüência da dispensa injustificável. Recurso ordinário provido para determinar-se a reintegração dos recorrentes. Como se vê, a decisão em comento determinou a reintegração dos empregados com base nos dispositivos da Convenção n. 158 da OIT, chegando até mesmo a destacar que a referida é uma Convenção da espécie regulamentar, ou seja, auto-aplicável. Mantinha-se, entretanto, mesmo antes da denúncia efetivada pelo presidente da república, um debate acerca da aplicabilidade material da Convenção n. 158 no Brasil. O conteúdo das normas da Convenção n. 158 foi alvo de intenso debate doutrinário, que, na verdade, representava uma tentativa esdrúxula de impedir a irradiação dos efeitos da referida Convenção no ordenamento jurídico interno.64 64 “Enfrentar as falsas polêmicas sobre a aplicação das normas da Convenção 158 no Brasil e concentrar esforços no sentido de usar, sem pudor, todos os mecanismos disponíveis à sua execução, podem representar passos seguros na criação de alicerces às futuras adequações da legislação do trabalho a nossa realidade e à evolução das relações trabalhistas em todo o mundo”. (CORTEZ, Rita de Cássia S.; XAVIER, José Luis Campos. Sobre a Convenção 158 da OIT, ratificada pelo Brasil, sobre o término da relação do trabalho por iniciativa do empregador. Revista LTr. São Paulo. a. 60. n. 04, p. 505-515, abr/ 1996, p. 505). 21 O aspecto material da Convenção n. 158, em que pese alvo de intenso debate doutrinário, se mostra totalmente compatível com a ordem constitucional nacional. De início, vale destacar que a Constituição Federal de 1988, já em seu art. 1º, IV eleva os direitos sociais ao patamar de princípio fundamental. Quando do capítulo reservado à Ordem Econômica, a Constituição renova o destaque dado ao trabalho humano, prevendo, em seu art. 170, que a ordem econômica deve ter como fundamento a valorização do trabalho humano. O rol de direitos do art. 7º da C.F/88 deixa ainda mais clara a concepção de valorização do trabalho humano pregada pelo constituinte, que, dentre outros direitos, previu, no inciso I, a proteção do emprego contra a dispensa arbitrária ou se justa causa. O aspecto da compatibilidade material da Convenção n. 158 que mais gerou posicionamento contrário à aplicabilidade da Convenção no Brasil foi justamente o fato de que o art. 7º, I, remete a proteção da relação de emprego contra dispensa arbitrária à edição de lei complementar. Vozes soavam com veemência defendendo a tese de que, por não ser lei complementar, a Convenção n. 158 da OIT jamais poderia ser um instrumento capaz de efetivar a proteção prevista no inciso I do art. 7º da C.F/88, o que reforça, mais uma vez, o caráter hipertroficamente simbólico do referido dispositivo constitucional. Foi este, inclusive, o argumento utilizado pelo Ministro do STF Celso de Mello, no julgamento da ADI-MC 1480, para conceder parcialmente a medida liminar requerida pelas Confederações Nacional da Indústria e do Transporte para afastar qualquer exegese senão aquela que considera a Convenção n. 158 como não auto-aplicável: E, no caso, como já enfatizado, o instrumento exigido pela constituição brasileira deve ser a lei complementar (art. 7º, I), que revela – enquanto espécie normativa autônoma – meio formal absolutamente infungível, não podendo, em conseqüência de expressa reserva constitucional, ser substituído por qualquer outro diploma. 22 Três argumentos, entretanto, são de suma importância para desmistificar a tese ora apresentada e adotada pelo STF, que entendeu pela ausência de auto-aplicabilidade da Convenção n. 158 por considerar que a proteção do art. 7, I, somente pode ser efetivada mediante lei complementar. O primeiro reside no fato de que, decidindo de tal forma, o STF acabou por aplicar a malfada premissa de “dois pesos e duas medidas”. Isto porque o Código Tributário Nacional (CTN), em que pese ter sido instituído pela Lei Ordinária n. 5.172/1966 e, em contrapartida, a C.F/88 dizer em seu art. 146 que cabe à Lei Complementar, dentre outras coisas, estabelecer normas gerais em matéria tributária, está em plena vigência no ordenamento jurídico brasileiro. Como se vê, em que pese o CTN ter sido instituído por Lei Ordinária e a Constituição Federal de 1988 exigir Lei Complementar para fixação de normas gerais em matéria tributária, o STF reconhece o CTN como instrumento legal hábil para fixação das normas gerais em matéria tributária. A utilização de uma definição dissociadora do conceito de exigência de Lei Complementar leva a conclusão de que a Convenção n. 158 da OIT, após passar por todos os seus trâmites formais, foi elevada ao status de lei complementar, assim como fez o Ministro Carlos Velloso em se voto divergente quando do julgamento da ADI-MC 1480: Então se, para a regulamentação de uma determinada norma constitucional, exige a Constituição lei complementar, e se, no trato da matéria, celebra o Presidente da República um Tratado que vem justamente regulamentar matéria constitucional que exige lei complementar, aprovado este tratado pelo Congresso Nacional e incorporado ao direito interno, por Decreto do Presidente da República, essa incorporação ocorre como lei, nesse caso essa lei é lei complementar. É que, conforme já foi dito, lei é gênero, da qual lei complementar, lei ordinária, medida provisória e lei delegada constituem espécie. Na mesma linha de pensamento, Cortez e Xavier65 concluem que: A mais simples leitura do texto da Convenção 158, em pleno vigor, atesta que veio para dar corpo, para materializar, ou melhor, para completar o princípio inserto na Constituição Federal, inciso I, art. 65 Ibidem. 23 7º. Chegou, para complementá-la, repetimos, atendendo a própria exigência do inciso I do art. 7º. Nosso direito constitucional é de tal forma flexível que chaga a admitir que os legisladores brasileiros utilizem métodos rápidos de complementação das normas constitucionais, dentre eles, os chamados atos complementares. Pedro Henrique Casals, na obra ‘Aulas de Direito Constitucional’, Editora Autora, pág. 121, conceitua os atos complementares como sendo, de acordo com sua própria designação: ‘[...] textos legislativos que complementam um texto constitucional pré- existente. Soa apenas uma nova maneira de dar nome ao valho processo, segundo o qual os textos constitucionais devem ser complementados, nos seus pormenores de aplicação e de interpretação, por leis ordinárias [...]’. Ora, uma vez aprovada pelo Congresso Nacional, a Convenção 158 tem força e hierarquia de lei. Se é lei ordinária, suas normas podem perfeitamente complementar o texto constitucional, tão como está previsto no inciso I do art. 7º. Vê-se, então, que uma interpretação desprendida da literalidade implica reconhecimento de que existem atos que, dada a sua forma de aprovação, podem rigorosamente complementar o texto constitucional quando exigido por esse último, até porque, resta inconcebível a tese de que um direito constitucionalmente assegurado como ocorre no caso do art. 7º, I, transforma-se em mera letra morta em razão da mora do legislador infraconstitucional. Quase vinte anos já se passaram da promulgação da Constituição da República de 1988 e, até a presente data, o legislador infraconstitucional não se deu ao trabalho de editar a lei complementar a qual o art. 7º, I, faz referência. Alguns projetos de lei foram, é verdade, ao longo destes quase vinte anos, elaborados, como ocorre no caso do Projeto de Lei Complementar (PLP) 8/03, do deputado Maurício Rands (PT/PE) que está tramitando no Congresso Nacional. Mas, a verdade é que, conforma já visto, quase unânimes são as posições conservadoras de estabelecer que, enquanto não advier lei complementar, caberá ao empregado, no caso de dispensa arbitrária, somente a indenização prevista no art. 10 dos ADCT da C.F/88 – 40% do FGTS. Raras são as posições que buscam efetivar de imediato o referido dispositivo constitucional como as que vêm sendo tomadas pelo Juiz Jorge Luiz Souto Maior que, defendendo e aplicando na prática a Convenção n. 158 da OIT, determina, via de regra, a reintegração do empregado nos casos de dispensa arbitrária, como o fez no julgamento do Recurso 24 Ordinário de nº 00935-2002-088-15-00-3, cujo acórdão foi publicado no Diário Oficial da 15ª Região no dia 07/05/2004.66 Como se não bastasse tal fundamento, o terceiro ponto que merece destaque é que a regra prevista no art. 5º, LXXVII, §2º da C.F/88 estabelece que: “Os direitos e garantias previstos nessa constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.67 Outrossim, a C.F/88, em seu art. 4º, II, estabelece que, na ordem internacional, o Brasil irá reger-se de acordo com a prevalência dos direitos humanos, direitos estes que podem ser consagrados por Tratados o Convenções de Direitos Humanos. Assim, é inquestionável que há previsão expressa na Constituição Federal estabelecendo que os tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja parte possuem força normativa constitucional independentemente dos direitos já consagrados na própria Constituição.68 66 “No presente caso, o reclamante trabalhou para o reclamado 27 anos e após dedicar praticamente toda a sua vida ao reclamado, obtendo promoções (a demonstrar a presteza de seu trabalho) simplesmente de um dia para o outro deixou de ser interessante para o reclamado, que, então, por motivos não revelados, resolveu utilizar o seu direito potestativo de resilição contratual, transformando o homem em uma equação matemática. Por todos estes argumentos, reforma-se a sentença de origem para o fim de determinar a reintegração do reclamante aos quadros do reclamado, com pagamento de salários e demais consectários desde a indevida dispensa até a efetiva reintegração, compensando-se do valor devido aos reclamantes os valores que lhe foram pagos a título de verbas rescisórias no ato da rescisão contratual, declarada nula neste ato”. 67 BRASIL, Op. Cit, pg. 34. 68 “Ora, ao prescrever que ‘os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais’, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo dos direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Esse processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos. Ao efetuar a incorporação, a Carta atribui aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Essa conclusão advém ainda de interpretação sistemática e teleológica do Texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional”. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pg. 52. 25 Há, portanto, por parte da própria Constituição Federal de 1988, o reconhecimento de que a Convenção n. 158 integrou o ordenamento jurídico interno com força normativa constitucional e, outrossim, por força do art. 5º, LXXVIII, §1º, com aplicação imediata, o que faz com que seja desmistificada a tese de que a referida Convenção não seria auto- aplicável pelo simples fato do art. 7º, I, exigir Lei Complementar. Muito se questionou também acerca da compatibilidade da Convenção n. 158 da OIT no que tange à reintegração do trabalhador quando a dispensa for considerada socialmente injustificada. Houve, como ainda, há, quem argumente que, mesmo com base na Convenção n. 158 da OIT, a reintegração somente poderia ser determinada nos seguintes casos: quem tiver direito à estabilidade decenal do art. 492 da CLT, adquirida antes da vigência da Constituição de 1988; quem estiver amparado pela estabilidade ou garantia de emprego, estipulada em convenção, acordo coletivo, sentença normativa, regulamento de empresa ou no próprio contrato de trabalho; quem se enquadrar em uma das hipóteses de estabilidade provisória previstas na C.F/88 ou na legislação infraconstitucional, como no caso, por exemplo, de dirigente sindical, gestante, membro da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) etc.69 Malgrado o entendimento ora apresentado, para que se tenha uma efetiva proteção à relação de emprego conforme definido tanto na Convenção n. 158 da OIT quanto no próprio art. 7º, I, da C.F/88, imperioso que se tenha a reintegração do empregado ao seu posto de trabalho como regra, sendo o pagamento de uma indenização uma medida de caráter excepcional, como, aliás, se pode extrair dos arts. 49570 e 49671 da CLT, de aplicação analógica aos casos de dispensa arbitrária. Portanto, a reintegração do empregado ao seu posto de trabalho nos casos de dispensa arbitrária é uma medida, além de compatível como o ordenamento jurídico nacional, de 69 Sobre o tema, eis o posicionamento do professor Süssekind (1996, p. 738): “Como escrevemos alhures, a referência a indenização em caso de despedida arbitrária, adotada como regra, excluir a reintegração, que seria o corolário jurídico da despedida sem justa causa do empregado com direito à estabilidade”. 70 “Reconhecida a inexistência de falta grave praticada pelo empregado, fica o empregador obrigado a readmiti-lo no serviço e a pagar-lhe os salários a que teria direito no período da suspensão”. 71 “Quando a reintegração do empregado estável for desaconselhável, dado o grau de incompatibilidade resultante do dissídio, especialmente quando for o empregador pessoa física, o tribunal do trabalho poderá converter aquela obrigação em indenização devida nos termos do artigo seguinte”. 26 extrema necessidade para efetivação dos objetivos prescritos na Convenção n. 158 da OIT. Caso o pagamento da indenização fosse a regra, a preservação da relação de emprego, o que, diga-se de passagem, é o objeto da Convenção n. 158 da OIT, não seria alcançada. Muito se fala também que a Convenção n. 158 da OIT e, portanto, o instituto da dispensa socialmente justificável, é incompatível com o sistema do FGTS inaugurado pela Lei n. 5107, de 1966, que, em seu artigo 6º, passou a permitir a dispensa sem motivo relevante, tendo como único encargo, nesses casos, o acréscimo do percentual de 10% por conta do empregador. Todavia, o fato é que o que é efetivamente é incompatível com o sistema do FGTS é o antigo sistema da estabilidade decenal anteriormente consagrada pela CLT (art. 492). O sistema da garantia do emprego, entretanto, é rigorosamente compatível com o FGTS, até porque, conforme já exaustivamente dito, a própria Constituição Federal de 1998 consagrou expressamente a proteção da relação de emprego contra a dispensa arbitrária. A mesma Carta Constitucional, outrossim, previu, nas suas disposições transitórias, o aumento em quatro vezes da multa prevista na Lei do FGTS, enquanto não advier lei complementar. Afora as críticas já feitas a este dispositivo, o fato é que tal previsão legal comprova que não há incompatibilidade entre a dispensa socialmente justificável e o sistema do FGTS, até porque a Constituição Federal de 1988 ao prever a proteção da relação de emprego contra dispensas arbitrárias não previu, em conseqüência, a extinção do sistema do FGTS o que, caso houvesse sido feito, comprovaria a incompatibilidade entre os institutos. Portanto, materialmente, a Convenção n. 158 da OIT possui completa compatibilidade com o ordenamento jurídico nacional. Ocorre que, como se não bastasse toda a tentativa de impedir a aplicação da referida Convenção no ordenamento jurídico interno enquanto inquestionavelmente em vigor no Brasil, no ano de 1996, precisamente no dia 23 de dezembro de 1996, o Poder Executivo do Brasil, por intermédio do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, tornou pública a denúncia da Convenção n. 158 realizada pelo governo em carta enviada à ONU no dia 20/11/1996. 27 Entretanto, a denúncia efetuada pelo governo brasileiro, em que pese acatada pela grande maioria da doutrina e jurisprudência nacional como ato pleno e eficaz capaz de retirar a vigência da Convenção n. 158 do ordenamento jurídico interno, foi feita de forma irregular. A irregularidade reside no fato de que o art. 17 da Convenção n. 158 da OIT, ao disciplinar o ato de denúncia da norma internacional dispõe que: Todo Membro que tiver ratificado a presente Convenção poderá denunciá-lo no fim de um período de 10 (dez) anos, a partir da data da entrada em vigor inicial, mediante um ato comunicado, para ser registrado, ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho. A denúncia tornar-se-á efetiva somente 1 (um) ano após a data de seu registro. Como se vê, o governo brasileiro, tendo em vista que a Convenção n. 158 da OIT entrou em vigor no Brasil no dia 06/01/1996, somente poderia denunciá-la no fim de um período de 10 anos, ou seja, somente a partir de 07/01/2006, até porque, o prazo de 10 anos conta-se a partir de cada ratificação e não do prazo de vigência internacional da Convenção Original. Como se não bastasse a irregularidade formal da denúncia, materialmente, a mesma se apresenta inconstitucional, uma vez o ato de denúncia efetivado pelo governo brasileiro não foi precedido de nenhum tipo de análise prévia ou votação por parte do Congresso Nacional, que, por força do art. 49, I, da C.F/88, possui competência exclusiva para decidir definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais. É, no mínimo, desproporcional, que se imponha para a vigência de uma Convenção Internacional a aprovação pelo Congresso Nacional e se admita, em contrapartida, para a retirada de sua vigência, um ato unilateral do Chefe do Poder Executivo. É por essa razão, inclusive, que a denúncia à Convenção n. 158 feita pelo presidente da República foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1625, que ainda está sendo julgada pelo STF. Pelo que parece, a tendência é que a ação seja julgada procedente para determinar que a denúncia, para que tenha eficácia, seja aprovada pelo Congresso Nacional. Foi nessa linha que já votaram o Ministro Relator Maurício Correa e o Ministro Carlos Britto. O Ministro Joaquim Barbosa também votou pela procedência total da ação para declarar a inconstitucionalidade do decreto impugnado por entender não ser possível ao Presidente da 28 República denunciar tratados sem o consentimento do Congresso Nacional, deixando claro que, uma vez declarada inconstitucional a denúncia efetivada unilateralmente pelo Presidente da República, este, caso deseje que a denúncia produza efeitos também internamente, terá de pedir a autorização do Congresso Nacional e, somente então, promulgar novo decreto dando publicidade da denúncia já efetuada no plano internacional. Será que, uma vez declarada inconstitucional a referida denúncia – realidade que está se desenhando – o Presidente da República em exercício no momento da decisão em questão deixará, finalmente, que a Convenção nº 158 da OIT tenha eficácia plena no Brasil o que, conseqüentemente, efetivaria também o art. 7º, I, da C.F/88, ou, mais uma vez, a sociedade brasileira terá a prova de que a inserção no texto constitucional da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa decorreu de uma hipertrofia do caráter simbólico da Magna Carta de 1988, não sendo objetivo de tal inserção a efetividade do dispositivo? A resposta a essa questão não parece fácil e não é esse o momento para se fazer apostas. O que importa, em verdade, é deixa claro que, por tudo o que foi apresentado, fica fácil perceber que a Convenção n. 158 da OIT é material e formalmente compatível com o ordenamento jurídico interno e está em plena vigência no Brasil, tanto com base no art. 5º, XLVIII, § 2º da C.F/88, quanto a partir da constatação de que a denúncia foi inconstitucional. 3.2. O Direito Fundamental à Efetivação da Constituição e a Proteção contra a Dispensa Arbitrária ou sem Justa Causa Na luta pela eficácia plena do inciso I do artigo 7º da Constituição em detrimento da hipertrofia do seu caráter simbólico, posição de destaque ganha o tema da eficácia dos direitos sociais – direitos fundamentais de segunda dimensão. Os direitos fundamentais servem, seja enquanto referenciais para aferição do grau de democracia de um país72, seja enquanto potencializadores da liberdade dos indivíduos73 ou 72 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2008, pg. 147. 73 SASTRE IBARRECHE, Rafael. El derecho al trabajo. Madrid: Trotta, 1996, pg. 72. (tradução nossa). 29 – utilizando um conceito próximo da realidade do Direito do Trabalho – como limites aos poderes do empregador74, assumiram, ao longo da história, vital importância na construção de uma sociedade mais livre e menos desigual, papel que exercem até a presente data e que, com segurança, exercerão ao longo da história da humanidade. A Teoria Geral dos Direitos Fundamentais é fruto de uma evolução marcada por diversas classificações, seja ela de caráter terminológico, funcionais ou puramente dogmáticos, motivo pelo qual não se poderia, para alcançar o objetivo que se pretende com o presente ensaio, ignorar tal evolução. Terminologicamente, vale ressaltar que os direitos fundamentais, dado ao seu caráter histórico e contínuo, já assumiram diversas outras denominações, como, por exemplo: liberdades públicas; direitos individuais; direitos subjetivos e direitos humanos. É importante destacar que apesar das críticas tecidas contra essas expressões – críticas estas de extrema felicidade75 - não se pode deixar de reconhecer, em contrapartida, que todas elas possuem sua razão de ser já que, quando pensadas, estavam de acordo com a própria evolução dos direitos fundamentais. Nesse sentido, é importante destacar que, inicialmente, os direitos fundamentais, ao menos no que tange à sua positivação76, foram pensados para afirmar a liberdade do individuo perante o Estado (direitos de liberdade), fruto da Revolução Francesa (1789); posteriormente se exigiu não somente uma abstenção do Estado, mas também uma ação positiva dele para diminuir as desigualdades sociais (direitos de igualdade ou direitos sociais), sendo o Direito do Trabalho fruto desta concepção; servindo os direitos fundamentais, em sua terceira etapa, como direitos de proteção dos interesses individuais e homogêneos de modo a resguardar os direitos das presentes e futuras gerações. 74 GIL y GIL, José Luis. Princípio de la buena fe y poderes del empresario. Sevilla: Mergablum, 2003, pg. 231. 75 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2009, pg. 532- 535. 76 Não se pretende, nesse momento, enfrentar o debate acerca da preexistência ou não dos direitos fundamentais para saber se a vigência dos mesmos depende ou não do reconhecimento constitucional . Parte- se, no presente ensaio, da positivação dos direitos fundamentais marcada, sobretudo pelas Revoluções Francesa e Norte-Americana. 30 Em resumo, pode-se dizer que os direitos fundamentais, dentro de um contexto de evolução histórica, podem ser didaticamente divididos em dimensões (primeira, segunda, terceira e quarta), sendo certo que a utilização da expressão dimensões em detrimento da expressão gerações de direitos fundamentais possui decorre substancialmente do fato de que esta última comporta a falsa idéia de que os direitos fundamentais de primeira geração não se confundem nem se relacionam com os de segunda, terceira e quarta gerações, quando, em verdade, a verdade é que tais direitos não somente se relacionam como mantêm entre si uma relação de cumulatividade e complementaridade, daí o motivo pelo qual se opta, no presente estudo, pela expressão dimensões. Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que os direitos fundamentais de primeira dimensão (liberdade) são direitos fundamentais de caráter notadamente individualista, comportando direitos do cidadão perante o Estado, direitos estes, então, de defesa, fruto do momento histórico da época (fim do século XVIII), marcado pela tomada do Poder pela burguesia francesa que ululava àquela época pela abstenção do Estado frente às relações entre os particulares: são os chamados direitos civis e políticos que, de acordo com a Teoria dos Status de Jellinek, formam o grupo do “status negativo” ou “status libertatis”. 77 Os direitos fundamentais de segunda geração (sociais, econômicos e culturais), por sua vez, comportam uma atuação positiva do Estado, fruto do contexto histórico da época (século XX) marcado pelas desigualdades sociais causadas pelo liberalismo exacerbado típico do Estado Liberal dos séculos XVIII e XIX. O surgimento, portanto, do Estado do Bem-Estar Social nesse contexto histórico, decorreu da constatação de que não era o bastante, para a integral proteção do indivíduo, assegurá-lo os direitos de liberdade uma vez que uma abstenção integral do Estado nas relações sociais e econômicas fez com que aqueles que ocupavam posições sociais e econômicas favorecidas impusessem àqueles em situação diametralmente opostas suas regras, gerando uma grande desigualdade social e, por conseqüência, um grande clamor social por uma intervenção do Estado. 77 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros. 2008, pg. 258. 31 Outrossim, constatou-se, primeiramente, a insuficiência da liberdade puramente jurídica – liberdade para se fazer ou deixar de fazer algo –, sendo requisito para a efetividade daquela a liberdade material, fática, real, ou seja, “a possibilidade fática de escolher entre as alternativas permitidas”78, bem como que, no seio de uma sociedade industrial, exige-se, para concretização da liberdade fática, a realização de atividades estatais uma vez que o substrato material da liberdade fática nesse contexto não se encontra em um espaço controlado pelos titulares da referida liberdade.79 Surgem, então, os chamados direitos de igualdade, marcados pela busca do Estado de reduzir as desigualdades sociais e econômicas desencadeadas pela realidade vivenciada no seio do Estado Liberal. Eis, de acordo com a Teoria dos Status já apontada, o “status positivo” dos direitos fundamentais. 80 Vale destacar, entretanto, que os direitos fundamentais de segunda dimensão – notadamente os direitos sociais – não comportam somente prestações positivas do Estado (direito à saúde, por exemplo), mas também liberdades do indivíduo frente o Estado (liberdade sindical, por exemplo) e prestações devidas não pelo Estado, mas pelos próprios particulares. Cumpre destacar ainda que os direitos sociais, enquanto direito a prestações, se subdividem em direito a prestações em sentido estrito (prestações fáticas) e direito a prestações em sentido amplo (prestações normativas) 81. Os direitos fundamentais de terceira dimensão, por sua vez, seriam os direitos destinados à proteção do ser humano não em sua individualidade, mas sim dentro de um contexto social, comportando, desta forma, os direitos de titularidade transindividual como, por exemplo, o direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado. 78 Ibidem, pg. 503, 79 Ibidem, pg. 504. 80 Ibidem, pg. 263-267. 81 Ibidem, pg. 202. 32 Por fim, já se aponta na doutrina a existência dos direitos fundamentais de quarta dimensão que comportariam, por exemplo, o direito à democracia direta e os direitos relacionados à biotecnologia. 82 Desta forma, o que importa para o estudo em questão é demonstrar a importância que os direitos fundamentais possuem no âmbito do Estado Democrático de Direito, sendo aqueles fruto de uma evolução histórica com vistas, em todos os casos, à promoção e consagração da dignidade do ser humano. 83 Assim é que, nos termos do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, a efetivação dos direitos fundamentais deve ser potencializada de modo a garantir ao cidadão a efetiva promoção de sua dignidade. É justamente dentro desse contexto que se busca defender, diante da omissão do Estado (Poder Legislativo) que, até a presente data, não editou a Lei Complementar a que se refere o inciso I do artigo 7º da C.F/88, a eficácia plena e imediata deste dispositivo constitucional. Para tanto, vale-se tanto do direito social a prestação normativa84, como do direito fundamental à efetivação da constituição que implica o reconhecimento de que todas as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais possuem aplicabilidade direta e imediata, independentemente da concretização legislativa. 85 E não se diga que os direitos sociais – enquanto direitos fundamentais de segunda dimensão – não merecem aplicação direta e imediata. Nesse diapasão, cumpre ressaltar que, quanto 82 JUNIOR, Op. Cit., pg. 592. 83 “Se, por um lado, considerarmos que há como discutir – especialmente na nossa ordem constitucional positiva – a afirmação de que todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual seriam concretizações, constata-se, de outra parte, que os direitos e garantias fundamentais podem – em princípio e ainda que de modo e intensidade variáveis -, ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas, como bem destaca Jorge Miranda”. SARLET, Ingo Wolfgang: Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, pg. 83. 84 ALEXY, Loc. Cit. 85 JUNIOR, Op. Cit., pg. 150. 33 aos direitos fundamentais de defesa, por exigirem somente uma abstenção do Estado, a questão da aplicação direta e imediata de tais preceitos não comporta maiores debates. No que tange aos direitos sociais, entretanto, a questão ganha corpo uma vez que estes exigem do Estado uma prestação, seja ela material – que encontra limite na questão da reserva do possível86 –, ou seja ela política – que encontra limite no princípio da separação dos poderes87. São justamente esses limites que devem ser superados para, no caso da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, se obter uma eficácia direta e imediata. De início, cumpre ressaltar que o primeiro e, sem dúvida, o mais forte argumento utilizado para se combater uma eficácia plena e imediata de todos os direitos sociais indistintamente – a questão da reserva do possível – não pode ser utilizado, quando se está diante da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, como limite à eficácia da proteção em questão uma vez que esse direito não impõe nenhuma prestação fática em face do Estado que eventualmente poderia esbarrar na questão da escassez dos recursos materiais, como ocorre, por exemplo, com a questão do direito à saúde. 88 O que se tem, no caso da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, é um direito social garantido pelo Estado e que deve ser exercido perante o particular (empregador). Torna-se, portanto, uma questão de eficácia horizontal dos direitos fundamentais. 89 86 “Dentro dessa dicotomia, formam-se, grosso modo, três correntes: a dos que negam eficácia aos direitos sociais, já que a carga positiva depende de mediação do legislador e de meios materiais; a dos que vêem os direitos sociais com o mesmo nível que os direitos individuais, muitas vezes decorrendo uns dos outros; e uma terceira, que vê os direitos sociais vigendo sob a reserva do possível, eis que a realização demanda emprego de meios financeiros”. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha. Critérios Jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. 2. ed. Lumen Juris, 2010, pg. 87 “Mas não é só. Em regra, esses direitos sociais, como se costuma apontar, também dependem de concretização legislativa executora das prestações que constituem seu objeto, dado o fato de que, por não disporem, em nível de Constituição, de conteúdo normativo determinado e consistente (problemas diretamente relacionados com a forma de positivação desses direitos, ou seja, à sua estrutura normativa), só o legislador ordinário pode conformá-los (liberdade de conformação), dando-lhes suficiente densidade normativa”. (JUNIOR, Op. Cit., pg. 293). 88 AMARAL, Op. Cit. 89 “Os direitos fundamentais, mormente os conhecidos como direitos de defesa, foram inicialmente concebidos como poderes jurídicos outorgados aos indivíduos para se protegerem contra a opressão do Estado. Nesse sentido, a doutrina sempre se posicionou pela aplicação dos direitos fundamentais nas relações indivíduo e Estado. No entanto, com a complexidade das relações sociais, agravada pela crescente e lamentável desigualdade entre os homens, a doutrina dos direitos humanos começou a perceber que a opressão das liberdades não decorria apenas do Estado, mas também do próprio homem em sua relação com o seu semelhante. Daí a necessidade de se estender a eficácia dos direitos fundamentais às relações havidas 34 Sendo assim, a questão da aplicabilidade direta e imediata do direito fundamental à proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa encontraria óbice tão somente na questão da separação dos poderes na medida em que se indaga se, diante da omissão do Poder Legislativo que, no caso em questão, passados mais de 20 anos da promulgação da Constituição Federal, até a presente data ainda não editou a Lei Complementar a que se refere o dispositivo constitucional que consagra a proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa, o Poder Judiciário teria competência e legitimidade para concretizar o referido direito. 90 Nesse diapasão, é importante destacar que o sistema tripartite de Poder proposto por Montesquieu foi pensado para evitar “a concentração e o exercício despótico do poder, isto porque as conseqüências da concentração do poder são desastrosas”. 91 O Direito Constitucional Brasileiro consagrou a Teoria da Separação dos Poderes assentada na independência e na harmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo certo que “o que caracteriza a independência entre os órgãos do Poder político não é a exclusividade no exercício das funções que lhes são atribuídas, mas sim, a predominância no seu desempenho” 92, sendo certo, portanto, que o exercício de funções atípicas é característica própria da fórmula checks and balances¸ desde que não seja sacrificado o seu núcleo essencial. 93 Não se pode admitir, portanto, que o Judiciário, diante da omissão dos demais poderes – no caso em questão do poder Legislativo - assuma uma posição igualmente passiva, omissa, de entre os homens, com o fim de proteger o homem da prepotência do próprio homem, em especial de pessoas, grupos e organizações privadas poderosas. (JUNIOR, Op. Cit., pg. 612). 90 “Pode-se dizer, nesse sentido, que no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos); no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na economia; já no Estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito”. (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 55) 91 JUNIOR, Op. Cit., pg. 335. 92 Ibidem, pg. 338. 93 Ibidem, pg. 340. 35 meros aplicadores do Direito. Charles Chaplin, em “O Último Discurso”, já pronunciava: "Juízes, não sois máquinas! Homens é o que sois!". A acomodação, a inércia, o conformismo revelam, como expressado no testemunho de um “velho magistrado aposentado” à Piero Calamandrei94, o grande mal de um magistrado: Creia-me, a pior desgraça que poderia ocorrer a um magistrado seria pegar aquela terrível doença dos burocratas que se chama conformismo. É uma doença mental semelhante à agorafobia: é o pavor da independência própria, uma espécie de obsessão, que não espera as recomendações externas, mas precede-as, que não se dobra às pressões dos superiores, mas as imagina e satisfaz antecipadamente. Portanto, tem-se que não pode o Poder Judiciário, diante da omissão dos Poderes Legislativo e/ou Executivo, manter-se igualmente omisso dado que, diante da posição de destaque que assume no Estado Democrático de Direito, a ele cabe concretizar as os dispositivos constitucionais, notadamente aqueles que não demandem uma alocação de recursos materiais. Ressalte-se, inclusive, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Injunção nº 712-8 Pará, concluiu que, diante da inércia do Poder Legislativo em editar a Lei de Greve no Serviço Público a que se refere o inciso VII do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, incumbe ao Poder Judiciário produzir a norma suficiente para tornar viável o exercício do referido direito constitucional, aplicando-se a Lei de Greve (Lei nº 7.783/89) no que couber. O voto do Ministro Gilmar Mendes contempla justamente o dever do Poder Judiciário de, diante da omissão do Poder Legislativo, criar meios jurídicos capazes de concretizar e efetivar um dado direito constitucional: No caso do direito de greve dos servidores públicos, afigura-se inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos (CF, art. 9°, caput c/c art. 37, VII), de um lado, com o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua (CF, art. 9°, §1°), de outro. Evidentemente, não se outorga ao 94 CALAMANDREI, Piero. Eles os juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pg. 279. 36 legislador qualquer poder discricionário quanto à edição ou não da lei disciplinadora do direito de greve. O legislador poderá adotar um modelo mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do serviço público, mas não poderá deixar de reconhecer o direito previamente definido na Constituição. Identifica-se, pois, aqui a necessidade de uma solução obrigatória da perspectiva constitucional, uma vez que ao legislador não é dado escolher se concede ou não o direito de greve, podendo tão-somente dispor sobre a adequada configuração da sua disciplina. É esse, portanto, mais um dos caminhos que se pode seguir para se garantir a eficácia plena e imediata da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa prevista no inciso I do artigo 7º da C.F/88, reconhecendo a eficácia plena e imediata do referido direito fundamental, o que deve ser feito pelo Poder Judiciário. 3.3. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O terceiro caminho aqui proposto para se chegar à eficácia plena e imediata da proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa é através do Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana95, previsto no inciso III da Constituição Federal Brasileira de 1988 como fundamento do país. Verifica-se, então, que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, III e IV, ao elevar o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da valorização social do trabalho ao patamar de Princípios Fundamentais, está por afirmar que o Estado, em todas as suas ações, sejam elas legislativas, judiciárias ou executivas, deve, em todo e qualquer caso, respeitar e realizar tais preceitos fundamentais. Instado a diferenciar os princípios fundamentais, o professor Ivo Dantas96 os coloca em posição hierarquicamente97 superior a todas as demais normas afirmando que: 95 “Constituem-se dos “princípios definidores da forma do Estado, dos princípios definidores da estrutura do Estado, dos princípios estruturantes do regime político e dos princípios caracterizadores da forma de governo e da organização política em geral”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, pg. 94). 96 DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Juirs, 1995, pg. 86. 97 “Trata-se do princípio maior do Direito Constitucional contemporâneo, espraiando-se, com grande intensidade, no que tange à valorização do trabalho”. (DELGADO, Maurício Godinho. Princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2004, pg. 40.) 37 Em nosso modo de entender, a partir da consagração, pelo texto constitucional, de Princípios Fundamentais e de Princípios Gerais voltados para determinado setor, parece-nos possível estabelecer entre ambos uma nova hierarquia. Nesta, os primeiros ocupam o ápice da pirâmide e os segundos uma posição intermediária entre os Princípios Fundamentais e as normas a que chamamos de setoriais. Desse modo, constata-se, de plano, a posição de destaque98 assumida pelo princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro, sendo este princípio, nos dizeres de Flávia Piovesan99, o que dá unidade e sentido a ordem constitucional de 1988100, colocando, portanto, o ser humano como o centro das sociedades. Indubitavelmente, o trabalho humano possui íntima relação com o princípio da dignidade humana, até porque é o trabalho humano, num Estado capitalista neoliberal como o brasileiro, a principal fonte de subsistência do homem e, muitas vezes, de todo o restante de sua família. Não é leviano afirmar que o desemprego, por si só, já é uma violação frontal ao postulado da dignidade da pessoa humana. O homem, na procura incansável pelo trabalho, tem, neste e através deste, a possibilidade real de, lícita e dignamente, satisfazer as necessidades básicas de saúde, alimentação, higiene e lazer, suas e de sua família. É por isso, então, que se tem na relação de emprego uma fonte única e preciosa de dignificação do ser humano que, seguindo a mesma linha, quando parte integrante de uma relação de emprego (empregado), não pode se tornar mais um desempregado sem que, para tanto, haja, no mínimo, uma justificativa social.101 98 “Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do Direito Constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade da pessoa humana simboliza, desse modo, verdadeiro super-princípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido”. PIOVESAN, Op. Cit., p. 31). 99 Ibidem. 100 “Considerando que toda constituição há de ser compreendida como unidade e como sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade da pessoa humana como valor essencial que lhe dá unidade e sentido. Isto é, o valor da dignidade da pessoa humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular”. (Ibidem, p. 28). 101 “Ora, o valor social não pertence nem ao empregado, nem ao empregador, mas sim à sociedade como um todo. Ela não poderá, dia após dia, receber em seu seio pessoas que, sem motivo e por simples fundamentação no poder de despedir, percam o emprego sem motivo justificado, como, aliás, entendem, além da Alemanha, os sistemas italiano, espanhol e português.” (DANTAS, Op. Cit, pg. 97.) 38 Tanto a premissa acima é verdadeira que o constituinte, de forma expressa, protegeu a relação de emprego, como já exaustivamente tratado ao longo deste trabalho, contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa. A previsão constitucional de que tal proteção deve ser dada nos termos da lei complementar não pode, jamais, sob pena de violação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, impedir a eficácia da norma em questão. Não se pode admitir que a mora legislativa tenha o condão de impedir a produção dos efeitos da norma constitucional de proteção à relação de emprego. Conforme adverte Ivo Dantas, com extrema felicidade102: “Fala-se, nesse inciso, em ‘lei complementar’. Mas, enquanto não for elaborada, papel fundamental, na interpretação do inciso ora sob análise, há de ser desempenhado tanto pela doutrina, como pela jurisprudência de nossos tribunais.” A atividade jurisdicional, nesse momento, assume posição de destaque, na medida em que deve se valer de todos os instrumentos jurídicos existentes no ordenamento para, de forma eficaz, fazer valer o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no caso concreto, em especial, na proteção do empregado contra a dispensa arbitrária. Para tanto, deve o intérprete valer-se da função normativa própria dos princípios, que, atualmente, não podem ser mais visto como meros enunciados prescritivos destinados única e exclusivamente a orientar o intérprete tanto na formulação quando na aplicação da lei.103 Nesse sentido, é de fundamental importância trazer a reboque a distinção entre regras e princípios feita por Robert Alexy, distinção esta que, na visão do Autor, “é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais”. 104 Reunindo regra e princípio no conceito de norma, Alexy conceitua o princípio como uma mandamento de otimização, representando uma espécie de norma que determina que algo 102 Ibidem, pg. 96. 103 DELGADO, Op. Cit. 104 ALEXY, Op. Cit, pg. 85. 39 seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fática e jurídicas existentes (estabelecem direitos prima facie), sendo que, em contrapartida, as regras seriam normas que contêm determinações, sendo normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas (estabelecem direitos definitivos).105 A distinção entre regras e princípios, portanto, perpassa pela forma de resolução dos conflitos entre as regras e das colisões entre os princípios. No primeiro caso, ou resolve-se um conflito entre regras com a introdução de uma cláusula de exceção que elimine o conflito106, ou resolve-se declarando uma das regras inválida. 107 Já no caso de colisão entre princípios, a resolução se opera através da ponderação, ou seja, um princípio cede ao outro naquele caso concreto, mantendo sua validade no ordenamento jurídico. Trata-se de uma questão de dimensão de peso. 108 Portanto, verifica-se que a existência da força normativa dos princípios o coloca, no mínimo, em pé de igualdade ao da regra, sendo que ambos se referem a espécies de normas, diferenciados sobretudo pelos critérios acima. Ocorre que um dos critérios acima – o fato dos princípios direitos prima facie e as regras direitos definitivos – não pode levar à conclusão de que os princípios não podem, em hipótese alguma, impor razões definitivas. Em verdade, os princípios não serão razões definitivas quando analisados em si mesmos. Todavia, quando um princípio constituir, em última análise, uma razão decisiva para um 105 Ibidem, pg. 90. 106 “Um exemplo para um conflito entre regras que pode ser resolvido por meio da introdução de uma cláusula de exceção é aquele entre a proibição de sair da sala de aula antes que o sinal toque e o dever de deixar a sala se soar o alarme de incêndio. Se o sinal ainda não tiver sido tocado, mas o alarme de incêndio tiver soado, essas regras conduzem a juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si. Esse conflito deve ser solucionado por meio da inclusão, na primeira regra, de uma cláusula de exceção para o caso do alarme de incêndio”. (Ibidem, pg. 92). 107 “Esse problema pode ser solucionado por meio de regras como lex posterior derogat legi priori e lex specialis derogat legi generali, mas é também possível proceder de acordo com a importância de cada regra em conflito”. (Ibidem, pg. 93). 108 Ibidem, pg. 93. 40 juízo concreto, esse princípio torna-se o fundamento de uma regra, que, por sua vez, representa uma razão definitiva. 109 Desta maneira, mesmo reconhecendo-se que não há princípios absolutos, nem mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana,110 tem-se que um princípio pode constituir uma razão decisiva para um juízo concreto, tornando-se o fundamento de uma regra, representando, assim uma razão definitiva. Assim é que, utilizando-se do princípio da dignidade da pessoa humana, se conclui que a relação de emprego não pode ficar protegida somente pelo art. 10, I e II do ADCT, até porque, a multa fundiária de nada serve para proteger a relação de emprego, no máximo onera o empregador. A interpretação do art. 7, I, da C.F/88, então, deve ser feita a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, já que o fim consagrado pelo princípio deve ser seguido pelo intérprete na solução do caso concreto, conforme adverte Ivo Dantas:111 Apliquemos tudo o que foi dito a um exemplo, para tornar mais claro nosso posicionamento. Tomemos o art. 7º, I, da Constituição. Entendemos que o conteúdo do referido preceito (inciso I do art. 7º), ao tratar da ‘relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos’, não poderá ser compreendido apenas nos estreitos limites do art. 10, incisos I e II do ADCT, mas o julgador terá de levar em conta que a Constituição consagra, entre os seus Princípios Fundamentais, ‘a dignidade da pessoa humana’ e ‘os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa’ (art. 1º, III e IV). Em decorrência, parece-nos que o poder potestativo de despedir por parte do empregador não é algo ilimitado. Ao contrário, ao ser exercido não poderá confrontar-se com os referidos incisos. Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana, por si só, é capaz de fazer com que o intérprete dê eficácia, no caso concreto, ao direito da proteção à relação de emprego previsto no art. 7º, I, da C.F/88, independentemente de elaboração da lei complementar prevista no referido dispositivo. 109 Ibidem, pg. 108. 110 Alexy explica que não existem princípios absolutos. O que ocorre com a dignidade da pessoa humana é que se trata uma norma que constitui tanto um princípio quanto uma regra. (Ibidem, pg. 111). 111 DANTAS, Op. Cit, pg. 91. 41 Isto porque a atividade de interpretação não pode ser feita de forma isolada, ou seja, o intérprete não pode, pura e simplesmente, sob argumento de que o art. 7º, I, da C.F/88 estabelece que a proteção à relação de emprego se dará nos termos de lei complementar, negar a referida proteção. Negando a proteção à relação de emprego contra a dispensa arbitrária, o intérprete, conseqüentemente, estará negando os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direitos previstos no art. 1º, II, III e IV da C.F/88, quais sejam: cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e livre iniciativa. Conclusão A realidade vivenciada até a presente data no que tange à proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa prevista no inciso I do artigo 7º da Constituição Federal de 1988 revela que tal norma constitucional é fruto do fenômeno da constitucionalização simbólica. A falta de eficácia e de vigência social da proteção em questão – passados já mais de 20 anos da promulgação do referido texto constitucional – comprova que se trata de fato de um dos dispositivos constitucionais marcados pela hipertrofia de finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico, dada a falta de concretização deste direito constitucional. Desta forma, restou comprovado no presente ensaio que a garantia em questão foi fruto justamente desse caráter simbólico da Constituição na medida em que, à primeira vista, a partir da leitura do inciso I do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, poder-se-ia imaginar que aquele dispositivo vinha, naquela oportunidade, a agasalhar uma das mais importantes lutas da classe trabalhadora: a luta pela proteção da relação de emprego. Ocorre que, em verdade, constatou-se que a inserção da proteção contra a dispensa arbitrária o sem justa causa no texto constitucional – da forma que foi feita – serviu para o Estado adiar a resolução de conflitos sociais e causar a falsa impressão de que estava 42 atuando em prol da melhoria das condições sociais, quando, em verdade, tal dispositivo já nasceu com o objetivo de ter sua eficácia bloqueada por questões não jurídicas, mas sim por questões políticas e econômicas. Foi de acordo com essa realidade que esse ensaio se propôs a, além de constatar a realidade acima descrita, apresentar caminhos capazes de concretizar integral e imediatamente a proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa prevista na Constituição Federal de 1988. Para tanto, deve o Poder Judiciário, diante da omissão do Poder Legislativo, valer-se seja da Convenção nº 158 da OIT ratificada pelo Brasil, seja do direito fundamental à efetivação da constituição implicitamente reconhecido ou seja, finalmente, por intermédio do princípio da dignidade da pessoa humana, garantir à sociedade a eficácia plena e imediata do referido dispositivo constitucional. Referências ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros. 2008. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha. Critérios Jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. 2. ed. Lumen Juris. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 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