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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÃNEA ANDRÉ BONELLI REBOUÇAS GUARDA DOS FILHOS MENORES DE CASAIS SEPARADOS: COMO DECIDIR EM JUÍZO? Salvador 2008 2 ANDRÉ BONELLI REBOUÇAS GUARDA DOS FILHOS MENORES DE CASAIS SEPARADOS; COMO DECIDIR EM JUÍZO? Dissertação apresentada à Universidade Católica do Salvador como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea. Orientador: Prof. Dr. José Euclimar Menezes Co-Orientador: Prof. Dr. Camilo Colani Salvador 2008 3 TERMO DE APROVAÇÃO ANDRÉ BONERLLI REBOUÇAS GUARDA DOS FILHOS MENORES DE CASAIS SEPARADOS: COMO DECIDIR EM JUÍZO? Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, pela seguinte banca examinadora: Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti Doutora em História – Universidad de León Camilo de Lelis Colani Barbosa Doutor em Direito – PUC-SP José Euclimar Xavier de Menezes Doutor em Filosofia - UNICAMP Salvador, 20 de agosto de 2008. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente, pela oportunidade de ingressar e cursar o Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea : A Ritinha, minha mulher, pelo apoio que recebi: foi muito importante; A meus filhos: André, Marina, Clara, Breno e Enzo, pela compreensão pelos momentos em que não me fiz presente; A meu orientador, Prof. Dr. Menezes, pela dedicação e atenção a este trabalho, orientando-me com grande esmero e competência. A Júlia e Gorete, pelo apoio logístico: meu muito obrigado. 5 RESUMO Esta tese busca discutir a guarda de filhos menores no pós-separação dos pais, um desafio constante para a boa solução dos litígios intrafamiliares.Perpassa, ,inevitavelmente, por aspectos culturais de nossa sociedade, de raízes fincadas no patriarcado; revela os meandros psicológicos dos genitores e de seus filhos; e questiona o sistema jurídico do Direito de família e do Direito processual, com especificidades de cunho conceitual, hermenêutico e operativo.Sob o aspecto cultural, percebe-se que ainda remanesce, em algumas das decisões judiciais relativas à guarda a crença derivada do senso comum de que a mãe deve ser a guardiã dos filhos porque,,detentora do ‘instinto materno’, lhe confere maior aptidão para o convívio e educação da prole. Ao homem deve ser confiado o papel de provedor e visitante. Mas esse posicionamento, que já não corresponde à orientação majoritária da jurisprudência, parece tender a esmaecer. Já se percebe que os operadores do direito, ante a constatação da dificuldade de solucionar as lides familiares apenas pela ótica jurídico-positivista, buscam seu equacionamento fundados na interdisciplinaridade, de modo que a custódia de menores, ainda que decidida pelo juiz, passa a ser abordada por outras fontes do saber. Neste sentido, tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA como o Código Civil, CC abrem espaço à instrução processual motivada na perícia interdisciplinar. O menor deve ser visto como o foco principal nas ações relativas à sua guarda. É, pois, um sujeito de direito, o que implica ser uma pessoa suscetível de satisfazer suas necessidades juridicamente protegidas : o direito ao aleitamento materno, à ludicidade adequada, à escola qualificada, à assistência médica apropriada, à convivência comunitária e familiar, ao respeito; enfim, todo modo apropriado que possibilite seu bem-estar, conforme indica o ordenamento jurídico que lhe é protetivo. Se a criança ou adolescente é o foco, a modalidade da guarda a ser adotada —unilateral, compartilhada ou alternada —, não é importante por seus próprios atributos, mas em função do que, no caso concreto, pode proporcionar ao filho, em termos de garantir seu melhor interesse e a proteção integral de seus direitos.Por isso, a fixação da guarda não poderá contrapor-se à igualdade de gênero, constitucionalmente consagrada. Palavras chaves: Família; Guarda de filhos menores; Critérios para decisão: Instrução Processual; Efetivação das decisões. 6 ABSTRACT This thesis seeks to discuss the custody of minor children after separation from their parents, a constant challenge to the proper solution of disputes within the family. The text exists, inevitably, in the cultural aspects of our society, by from roots planted in patriarchy, it reveals the psychological intricacies of parents and their children and it questions the legal system of Family law and Procedural law, with specific features of conceptual imprint, hermeneutic and operating. Under the cultural aspect, we find that still remains, in some court decisions concerning the care, the belief derived from common sense that the mother should be the guardian of the children because she’s holding the “maternal instinct” and she giving it greater ability for the living and education of offspring. The man should be given the role of provider and visitor. But this position tends to weaken, because doesn’t correspond to the major direction of jurisprudence. Now, you can see that the operators of the law, at the conclusion of the difficulty of solving the deal between the families only positivist legal perspective, seek to align themselves based on interdisciplinary, so the custody of minors becomes approached by other sources of knowledge, even if decided by the judge. In this sense, both the ECA as the Civil Code provides room for instruction on procedural grounds interdisciplinary expertise. The minor must be seen as the main focus on actions relating to their custody. The minor is a subject of law, which requires a person be susceptible to satisfy their needs legally protected: it’s entitled to breast- feeding, the playful approach, the school qualified, appropriate medical care, the living community and family, respect ; finally, all the appropriate manner which allows their well-being, as indicated by the legal system it’s protective. If the child or adolescent is the focus, the type of custody to be adopted - unilateral, alternately or shared – it’s not important for their own attributes, but in the light of that, in this case, the child can provide in terms of their best interest and ensure full protection of their law. Hence the setting of the guard can’t interpose itself to gender equality, constitutionally enshrined. 7 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AI – Agravo de Instrumento ApCv – Apelação Cível CC – Código civil CDC – Código de Defesa do Consumidor CF – Constituição Federal CP – Código Penal CPC – Código de Processo Civil DJ – Diário da Justiça ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística REsp – Recurso Especial STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TJBA – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia TJMG - Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais TJPE - Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco TJPR - Tribunal de Justiça do Estado do Paraná TJRJ - Tribunal de Justiça do Estado do rio de Janeiro TJRS - Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul TJSE - Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM OLHAR PARA O PASSADO 23 1.1 Regramentos jurídicos brasileiros até o Código de Menores de 1979 26 2 .DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO MELHOR INTERESSE DO MENOR: UM SUJEITO DE DIREITO 32 3.DO PODER FAMILIAR 46 4 DO DIREITO DE CONVIVÊNCIA: UM RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA 64 5 DA GUARDA 70 5.1 Considerações históricas 70 5.2 Aspectos conceituais 76 5.3 Classificação da guarda quanto à origem 80 5.4 Das modalidades de guarda 83 5.4.1 Da guarda unilateral 83 5.4.2 Da guarda alterada 90 5.4.3 Da guarda compartilhada 92 5.4.3.1 A regulamentação da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo antes da Lei 11 698, de 13 de junho de 2008 96 5.4.3.2 Mais diretamente sobre a Lei 11 698, de 13 de junho de 2008, que altera os artigos 1 583 e 1 584 do Código Civil e dispõe sobre a guarda unilateral e compartilhada 107 5.4.3.3 Guarda compartilhada pressupõe consenso dos pais? 118 5.4.3.4 Na guarda compartilhada em que casa o infante deve ficar? 130 6 A INSTRUÇÃO PROCESSUAL NAS AÇÕES DE GUARDA 135 9 7 A FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DETERMINA A GUARDA 143 8 DA EFETIVAÇÃO DA DECISÃO QUE FIXA A GUARDA 148 CONCLUSÃO 159 REFERÊNCIAS 163 10 INTRODUÇÃO . JUSTIFICATIVA A questão da guarda de filhos menores em decorrência do dissenso dos pais tem sido objeto de debates e indagações, que vão desde a situação e aspirações dos próprios pais até as expectativas e o resguardo dos interesses dos menores. Guarda é um conjunto de direitos e deveres para filhos e pais, respectivamente, que pode ser exercido de modo espontâneo ou em função de determinação judicial, mas sempre como uma manifestação do direito de convivência familiar. Por isso, coexistem entendimentos, na doutrina, na jurisprudência e agora ratificados pelo texto da Lei 11. 6981, de 13 de junho de 2008, que deu nova redação aos arts 1 Lei 11.698/08 e a nova redação dos arts 1 583 e 1 584 do Código Civil: “Art. 1º - Os arts. 1.583 e 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, passam a vigorar com a seguinte redação: "Art. 1 583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores, ou a alguém que o substitua (art. 1,.584, § 5º) e, por guarda compartilhada, a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres, do pai e da mãe, que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II - saúde e segurança; III - educação. § 3º A guarda unilateral obriga o pai, ou a mãe, que não a detenha, a supervisionar os interesses dos filhos. "Art. 1 584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: I - requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma, de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. § 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. § 3º - Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob a guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar 11 1.583 e 1.584 do Código Civil, na direção de sustentar que: a guarda pode ser unilateral, ou seja, permite a apenas um dos pais a custódia da criança ou adolescente na pós ruptura do casal, restando ao cônjuge não guardião o direito de visitas ao filho; guarda conjunta, quando compartilhada entre os pais, que, embora separados, continuam em interação recíproca e quotidiana com o menor, dispensada assim a figura do pai ou mãe visitante; e, ainda, a guarda alternada, na qual o infante reveza períodos, isoladamente, com o pai e com a mãe. Os que criticavam o compartilhamento da guarda da criança ou adolescente argumentavam, a princípio, que esta espécie de custódia não era sequer regulada pelo direito brasileiro, pois a legislação nacional, antes da edição da Lei 11.698/08, pressuporia a presença contínua e inseparável do menor junto ao genitor guardião. Afirmavam também que, quando há animosidade entre os pais separados, é impossível a fixação conjunta da guarda 2, visto que isto poderia causar aos menores problemas de instabilidade emocional, perda de referências, ausência de definição de responsabilidade entre o pai e a mãe. E como derradeira justificativa defendiam que a guarda deve ser prevalentemente decidida em favor da mulher em razão do seu “instinto materno”, que tende a proporcionar melhores condições afetivas e educacionais para a prole. Por esse raciocínio, conforme delineia Eduardo de Oliveira Leite (2004, p. 264): Enquanto a família permanece unida, a guarda conjunta é perfeitamente admissível. Questionar-se-ia sobre a realidade de tal expressão quando a família já se encontra separada. A separação dos pais e o inevitável afastamento de um dos genitores da presença do filho impediriam a guarda conjunta. Mesmo após a vigência da Constituição Federal de 1988, nossos Tribunais se manifestaram a favor da guarda unilateral, como regra (TJRS, ApCv 70005760673, § 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. § 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe , deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade." Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos 60 (sessenta) dias de sua publicação. 2 Conforme Rolf Madaleno (2004, 91-92) e Marilene Silveira Guimarães (2004, 5/6) 12 j. 12/03/03; TJRS, ApCv 70002792919, j. 01/11/01; TJMG, ApCv 1.0000.00.344568- 1/000, DJ 05/02/04)). É de se destacar que segmentos da jurisprudência chegavam até a julgar extinto, por impossibilidade jurídica do pedido, o processo no qual se pleiteava a guarda compartilhada do filho menor que se encontrava sob a custódia exclusiva de um dos ex-consortes. Argumentavam que o ordenamento brasileiro prévio à Lei 11. 698/08 não reconhecia nem acolhia o compartilhamento da guarda a fim de garantir o direito da criança de conviver com os pais no caso de dissenso destes quanto àquela custódia. Para os que advogam o compartilhamento da guarda entre os pais, defendem-na, mesmo antes da publicação da nova Lei de Guarda (11.698/08), em função do melhor interesse do menor e de sua integral proteção, o direito à convivência familiar, assegurado pela Constituição Federal, já que para esses, a guarda compartilhada denota um efeito simbólico: reafirma a necessidade da criança poder estar — em disponibilidade —, tanto com a mãe como com o pai, reforçando em si sentimentos de inspiração e aceitação mútuas, tão importantes para a sua constituição psíquica. Pai ou mãe não guardião deixaria de exercer o papel de “visitante”, ato que não possibilita à família uma de suas mais significativas características: a intimidade do convívio. Há, ainda, quem avente a possibilidade da guarda alternada divisão simétrica do tempo e do espaço em que os pais exerceriam a custódia dos filhos. Observando as mudanças socioculturais em nossa sociedade e seus reflexos na questão da guarda, interessantes são as observações de Leila Maria Torraca Brito (2004, p. 360), Não se pode desprezar o fato de que, na sociedade ocidental, os estudos iniciais sobre a relação materno-infantil indicavam que as mulheres seriam portadoras do instinto materno, determinismo biológico que fixava lugares e atribuições e forjava estereótipos. Definia-se, ainda, que só a expressão do amor materno saberia dosar os cuidados e carinhos necessários ao adequado desenvolvimento infantil. Quanto aos homens, eram preparados para zelar pela honra da família, ao mesmo tempo em que eram afastados das tarefas domésticas. Como demonstram os estudos sobre gênero, as desigualdades em relação aos direitos e deveres entre homens e mulheres eram naturalizadas e legitimadas culturalmente. Dessa forma, a fiscalização, prevista inicialmente na legislação como prerrogativa do pai visitante, 13 retratava o mesmo como figura de autoridade, afastado do contexto diário com os filhos e a quem caberia avaliar o desempenho da ex-mulher na promoção do desenvolvimento infantil. Hoje, percebe-se que o significado do nascimento engloba, além do nascimento de um filho, o nascimento dos genitores nos lugares estruturais de pai e mãe, papéis que aprendemos a desempenhar. Tal condição pode ser enfraquecida, porém, quando a educação da criança passa a ser encaminhada, prioritariamente, pelo genitor responsável pela guarda. Atribuir ao genitor classificado como visitante o lugar prioritário de fiscal contraria as indicações atuais tanto dos documentos internacionais quanto das Ciências Humanas, que recomendam uma ampla aproximação e participação de ambos os pais no desenvolvimento dos filhos, sendo que o lugar e as funções dos genitores devem ser referendados pelos textos jurídicos. Observa-se, dessa forma, a existência de uma dinâmica social e, em virtude disto,l novos quadros se desenham, e as leis tendem a se adaptar a nova caminhada social. Diante deste cenário surge a indagação: quais são os mecanismos que o Direito dispõe para possibilitar a fixação da guarda de modo mais adequado aos interesses do menor? Responder a essa pergunta é o objeto dessa dissertação que se justifica em função dos critérios de interpretação e aplicação do Direito. A partir de investigações e posicionamentos da doutrina, da jurisprudência e da das próprias leis, consideram- se os princípios que salvaguardam os interesses do menor, e que convergem em pensar a criança como sujeito, que tem desejos, prerrogativas, direitos e deveres, e não como objeto de manipulação dos que os cercam. Propõe-se, também, a demonstrar em que medida há necessidade da manutenção ou não dos laços de convivência entre os pais e seus filhos após a separação, divórcio, dissolução da união estável e, ainda, sobre os filhos nascidos de relações casuais ou acidentais, em que não houve um consenso sobre com quem permanecerão os filhos. 14 . PROBLEMATIZAÇÃO Para tratar do problema suscitado pelo presente trabalho, referente ao estudo dos mecanismos jurídicos de hermenêutica e aplicação do Direito a fim de fundamentar a decisão que definirá a guarda unilateral ou compartilhada ou mesmo alternada, é preciso que sejam analisados alguns princípios jurídicos que circundam o tema. Há que se desvelar o alcance e sentido de expressões e princípios que norteiam as relações do direito de família, tais como: o melhor interesse do menor, a proteção integral, o poder familiar, a maternidade e a paternidade responsáveis, o direito de convivência, a isonomia de gêneros, alicerces para melhor compreensão e solução de conflitos dessa natureza. Essas acepções precisam ser entendidas desde os seus sentidos mais específicos até os mais latos, para que se possa estudar o assunto com maior precisão e mais segurança epistemológica, pois a análise da guarda exorta o observador a conhecer determinadas variáveis do direito, numa compreensão que perpassa, interdisciplinarmente, pela psicologia, psiquiatria, sociologia e outras ciências afins. O princípio do melhor interesse da criança que traz a Constituição Federal - CF em seu art. 2273, e o Código Civil, sobretudo nos seus arts. 1.583 e 1.584, e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente em vários de seus dispositivos, é informador no sentido de que pode o magistrado conceder a guarda a um ou a ambos os pais, ou ainda a um terceiro, de modo que seja garantida a integridade física e psicológica do menor como precisamente, afirma Rosana Fachin (2005, p. 125): O melhor interesse da criança descreve-se como sendo aqueles essenciais cuidados para viver com saúde, incluindo física, emocional e intelectual, cujos interesses, inicialmente, são dos pais, mas que, se negligenciados, o Estado deve intervir. De acordo com a Constituição, o modelo institucional de família é atenuado para residir na relação entre pais e filhos o poder paternal que está centrado na idéia de proteção. A paridade de direitos e deveres tanto do pai quanto da mãe está em assegurar aos filhos todos os 3 Art. 227 da CF – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 15 cuidados necessários para o desenvolver de suas potencialidades para a educação, formação moral e profissional, revelando a transformação e a revalorização de cada um de seus componentes. Já o poder familiar é formado sobre novos conteúdos e significados inseridos na isonomia de gêneros de que trata o art. 226, § 5º 4, da Constituição Federal e os arts. 1.6305 e seguintes do Código Civil, que não deve ser entendido como fonte de força acintosa, exercida pelos pais, para revelar a igualdade de suas potencialidades no disputado comando da família, mas como poder familiar que tem sentido se for tradutor de uma relação familiar interativa entre pais e filhos. Lançando mão de uma perspectiva histórica, remetendo-se ao ambiente greco-romano para, em seguida, contextualizar poder familiar na atualidade, Caio Mário da Silva Pereira (2005, p. 417 e 421) acentua: No direito antigo, a estrutura autocrática da família, alicerçada no princípio da autoridade, constitui na noção de pátrio poder em termos rígidos e severos. A tendência foi forçosamente a consagração da bilateralidade nas relações pais-filhos, a atribuição do poder parental a ambos os pais e a predominância dos deveres e do sentido de proteção e defesa dos interesses do menor sobre toda a idéia de prerrogativa paterna ou de direito dos pais sobre os filhos. Por isso mesmo, as definições tradicionais se desprestigiam, por acentuarem um lado apenas da relação jurídica. Daí, dizemos nós, fixando o conceito deste instituto após a Carta de 1988 compreendendo: ‘complexo de direitos e deveres quanto à pessoa e bens do filho, exercidos pelos pais na mais estreita colaboração, e em igualdade de condições’. Não pode também o intérprete, para a definição da guarda, perder de vista o princípio responsável, da paternidade e da maternidade, que vincula os pais aos filhos menores, fazendo aqueles responderem pelos danos que causam a estes e bem assim por danos que os próprios filhos causem a terceiros. Segundo Vieira (2004, p 47-48), devem os genitores, solteiros, casados, separados, divorciados ou viúvos, ter a exata consciência de seu mister como pais e educadores de cidadãos do futuro, sendo certo que atos por eles praticados poderão gerar graves prejuízos em face dos filhos. 4 Art. 226, § 5º, da CF: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 5 Art. 1 630 do CC: Os filhos estão sujeitos ao poder familiar enquanto menores. 16 A guarda dos filhos menores, quando da ruptura familiar, até antes do advento da Lei 11.698/08, foi decidida, de ordinário, segundo a adoção de critério interpretativo literal do art. 1.5846, caput, do Código Civil, que, com antiga redação já revogada, pugnaria pela guarda unilateral. É preciso também ter em vista que o tema deve ser contextualizado com os princípios que alicerçam o direito de convivência do menor, consagrados na legislação constitucional e infraconstitucional, que deve ser interpretado e efetivado com o auxílio interdisciplinar de outras ciências sociais afins, principalmente considerando os diversos matizes e questionamentos que cercam os atores envolvidos — pais e filhos —, mas tendo a prole sempre como protagonista. Os pressupostos da guarda no ordenamento jurídico brasileiro, as suas modalidades e os critérios de racionalidade observados segundo os fatos da causa são aportes dos quais o juiz se vale para decidir qual dos consortes revela melhores condições de exercê-la, ou se ambos, concomitante ou alternativamente, podem fazê-lo no sentido de preservar o direito de convivência familiar (art. 227 da Constituição Federal). Esta escolha reclama, todavia, uma percepção mais ampla do julgador quanto à subjetividade dos envolvidos, exigindo-lhe um conjunto de informações que devem passar por abordagens multidisciplinares associados ao novo desenho constitucional do Direito de Família, sem o que a sua decisão estará desconectada da realidade a ser regulada. Por isso, rompendo as amarras das tradições, alguns intérpretes como Gustavo Tepedino (2004, p. 307) alerta para esses novos enfoques: Cuida-se, pois, de uma reconstrução das categorias do direito de família, renovado pelos valores existenciais, processo hermenêutico cuja importância avulta no exame da filiação. A relação parental, com efeito, e em particular a filiação, põe em evidência uma série de situações jurídicas existenciais incompatíveis com o tratamento dogmático tradicionalmente forjado nas relações patrimoniais. Ou seja, estudam-se com freqüência as 6 Art. 1.584 do CC: Decretada a separação ou o divórcio, sem que haja acordo entre as partes quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la (texto alterado pela Lei 11.698/08). 17 relações entre pais e filhos a partir da estrutura do direito subjetivo, categoria típica dos direitos patrimoniais e, por isso mesmo, inapto a servir de paradigma para as situações jurídicas existenciais que medeiam o reconhecimento da filiação e a educação dos filhos como processo destinado à afirmação e ao desenvolvimento da personalidade. Por isso, deve-se visualizar em que medida os mecanismos de instrução processual, as técnicas de interpretação e de efetivação da decisão hoje disponíveis oferecem ao juiz os elementos necessários à adequada resolução dos problemas que envolvem a custódia dos filhos menores. Não é difícil constatar que a maioria das decisões judiciais, ao tornar unilateral a guarda o faz em direção da mãe, conforme se observará no percorrer deste trabalho, subestimando a figura paterna. A um só tempo, essas decisões criam um distanciamento dos filhos em relação ao pai, pois imprime a este a perda da reciprocidade do afeto ante a ausência do convívio. Isto pode ser reflexo de uma cultura pigmentada ainda com resquícios do patriarcado porque, quando se enaltece o papel da mulher na família, nem sempre é para notabilizá-la, mas, nas entrelinhas, para circunscrevê-la às prendas e muros domésticos. Para um esclarecimento epistemológico, há de se fazer quanto ao modo usual de fixação judicial da guarda do menor de forma disjuntiva ou conjunta ou alternada, aferido pelo julgador que nem sempre dispõe, numa perspectiva interdisciplinar, de ferramentas adequadas para decidir. Como se trata de questão multifacetada, a sua abordagem exige a apuração também do contexto sócio-antropológico e suas conseqüências sobre a estrutura psicológica do menor e dos pais, fundamentos que o juiz, isoladamente, a partir apenas dos seus conhecimentos jurídico-dogmáticos não alcança. É em nome da proteção integral ao melhor interesse da criança, observado inclusive por uma ótica interdisciplinar, também na crença de uma instrução processual e em técnicas de decisão que possibilitem essa concepção e, ainda, firme em critérios mais eqüitativos para se determinar o presente e o futuro de um sujeito (ainda) em formação, que se estabelece o fio condutor deste trabalho. 18 Com atenção voltada para essa realidade, em que se trabalha com relações jurídicas, sentimentos, emoções, inserções culturais e psíquicas, não se pode negar que a Constituição Federal trouxe ao Direito de Família uma nova tábua axiológica, vertendo seu eixo para a preservação e valorização da pessoa. Com isso, exige-se dos intérpretes do Direito uma releitura dos conceitos do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Processo Civil postos à luz da própria Constituição. Este é o encaminhamento para o trato dos interesses e conflitos no núcleo familiar. João Batista Villela (1980, p. 132) denomina de “intinerário da liberdade” essa mudança da família, em razão do aprofundamento afetivo ocorrido no interior do grupo que lhe deu novo rosto. Tornou-se um canon, na contemporaneidade, sustentar que a família vem sendo moldada sob novos paradigmas, passando a ser o principal locus de construção da realização pessoal de seus membros. Como decorrência dessas mudanças, em contraposição a um quadro outrora pincelado com as linhas do domínio autoritário e ensimesmado dos pais, o menor passou a ser o ponto central da entidade familiar, o seu “novo interlocutor” (PERLINGIERI, 1997, p. 244), e isto com efeitos concretos e importantes nas nossas Leis e nosso Direito, no modo de interpretá-los e de aplicá- los. Não é sem razão que o Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA destaca o valor intrínseco do menor como ser humano e a necessidade de especial respeito a sua condição de pessoa em desenvolvimento. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, que serviu de fonte inspiradora ao ECA, ressalta, como se constatará mais adiante, a importância da manutenção e continuidade dos laços familiares da criança e ascendente, a fim de preservar o seu bem-estar. Os pais, mesmo que separados pelos seus próprios conflitos, têm o dever de preservar tais laços com os filhos, vínculos que são pilares de vida da pessoa. Todavia, situações poderão ocorrer em que a continuidade da convivência com um ou ambos os pais será nefasta para a boa formação psicofísica da criança, e nesses casos, a decisão sobre a guarda deverá contemplar outras possíveis variáveis, incluindo-se, até mesmo, a hipótese do menor ficar sob a custódia do Estado. 19 Os operadores do direito, principalmente os juízes, porque têm o poder de decisão, por mais que queiram, não estão habilitados a compreender sozinhos as relações familiares, dado sua complexidade. Devem ser analisados os aspectos jurídicos e afetivos dos filhos, que necessitam de proteção a seus direitos e de acompanhamento quotidiano com orientação, equilíbrio e amor. Sem se considerar essa conjuntura não se pode pensar em julgamento justo. Em uma perspectiva de ampliação e fortalecimento do princípio da paternidade/maternidade responsável, é necessário que os aplicadores do Direito busquem sempre o auxílio dos valores sociais e da dignidade pessoal previstos na Constituição, como elos estruturantes da personalidade, da família e da cidadania. O Direito, como uma das ciências sistematizadoras das relações intersubjetivas, precisa abarcar para si elementos colhidos da interdisciplinaridade da cultura humana, com vistas a contribuir para melhor aparelhar advogados, promotores e juízes no trato das questões que envolvem a guarda de crianças e adolescentes. A atividade jurisdicional deve considerar a subjetividade de cada um, moldando-a aos ajustes sociais/normatizantes que forem adequados. A melhor interpretação da Lei será aquela realizada por esse prisma, pois em derredor do Direito gravitam outras ciências sociais de suma importância para a compreensão e solução dos conflitos de família. Não se devem decidir essas questões de modo isolado, afinal, nada é sozinho, senão é nada. O ECA ,entretanto, já sinaliza nessa direção. Num primeiro momento, ressalta o dever dos pais (arts. 4º7 e 198) — dos dois, portanto —, de conviverem com os filhos, sem excepcioná-la no pós-separação, desde que a convivência seja salutar ao desenvolvimento infantil. A lei 11.698/08 trouxe para o Código Civil concreta manifestação do direito de convivência familiar, ao tornar pragmática a guarda 7 art. 4º do ECA: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 8 Art. 19 do ECA: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família, e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. 20 conjunta como regra geral do pós-separação em seu art. 1.584, § 2º 9. Conviver em família é um direito mútuo e recíproco de todos que integram esse núcleo. Além do mais, também não foram esquecidos pelo ECA (art. 15110) e pela nova Lei de Guarda (art. 1.584, § 3º 11) os insumos da interdisciplinaridade para o trato da questão, de modo a contribuir para que a prática forense possa conjugar princípios do direito, da psicologia, da sociologia e da antropologia em direção à construção de um ser humano melhor. Esses trabalhos instrumentam o juiz durante todo o processo, prestando-lhe auxílio indispensável para compor os fundamentos da decisão judicial. Ainda no campo das inovações processuais trazidas pelo ECA, há a inédita possibilidade do próprio juiz re-decidir o mérito do que acabou de sentenciar (art. 198, VII 12), o que se traduz numa importante exceção à regra geral do esgotamento da atividade cognitiva prevista no art. 463 13 do Código de Processo Civil. De seu turno, a Lei 11.698/08 conferiu amplos poderes ao juiz para deferir, inclusive ex officio, a concessão da guarda em atenção às necessidades prementes do menor (art. 1.584, inc. II14), o que é um aspecto importante na outorga de tutela protetiva da criança/adolescente. O que se pode notar é que o ECA e o Código Civil estão atentos à nova realidade jurisdicional, que exige que a decisão proferida pelo Juiz possa ser edificada também sobre os vários alicerces do saber humano e que esse Magistrado deve ser 9 Art. 1.584, § 2º, do CC: Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. 10 Art. 151 do ECA: Compete à equipe interpessoal, dentre outras atribuições que lhes forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação da autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico. 11 Art. 1.584, § 3º, do CC: § 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar 12 Art. 198, VII, do ECA: VII – antes de determinar a remessa dos autos à instância superior, no caso de apelação ou de instrumento, no caso de agravo, a autoridade judiciária proferirá despacho fundamentado, mantendo ou reformando a decisão, no prazo de cinco dias. 13 Art. 463 do CPC: Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: I – para corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhes retificar erro de cálculos; II – por meio de embargos de declaração. 14 Art; 1.584,II: A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. 21 detentor de maiores poderes, a serem utilizados na direção do melhor interesse infanto-juvenil. Numa ordem seqüencial, pode-se afirmar que o indivíduo integra a família, que, de sua vez, compõe a coletividade como seu elemento estruturador. A boa formação da criança, nessa cadeia indivíduo>família>sociedade, é, portanto, essencial à harmonia das relações sociais. Daí porque a Constituição de 1988 foi tão incisiva ao dispor que a família é base da sociedade (art. 22615) e que é dever da família, da sociedade e do Estado — e aí seguramente está incluído o juiz com as decisões que produz —, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput). A família é o maior dos fenômenos humanos de coexistência e suas relações devem ser interpretadas num amplo contexto. Luis Edson Fachin (2003, p. 14-15), com inegável sensibilidade, diz: A família, como fato cultural, está antes do Direito e nas entrelinhas do sistema jurídico. Mais que fotos nas paredes, quadros de sentido, possibilidades de convivência, na cultura, na história; prévia a Códigos e posteriores a emoldurações. No universo jurídico, trata-se mais de um modelo de família e de seus direitos. Vê-la tão só na percepção jurídica do Direito de Família é olhar menos que a ponta de um iceberg. Antecede, sucede e transcende o jurídico, a família como fato e fenômeno. Como fenômeno que habita as divisas do Direito, mas que também vasa as suas fronteiras, não pode, sob nenhum argumento, ser visto apenas pelos olhos de quem vê a literalidade da Lei. Reclama que o exegeta tenha braços mais longos para manusear outros ramos do saber humano, em cooperação constante. O juiz tem o dever, pela letra da Constituição, de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, inclusive psíquica; à 15 Art. 226 da CF: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 22 educação, também em seu sentido mais lato de cidadania; ao lazer, como possibilidade de dar asas às brincadeiras que os colocam em estado de felicidade; à cultura, que informa e projeta; à dignidade, que os faz respeitar o próximo e por ele serem respeitados; e, por derradeiro, à convivência familiar que proporciona à criança/adolescente e a seus pais o aprendizado recíproco do afeto e generosidade. Esse juiz, que tem sobre os ombros o dever/função de assegurar todos esses direitos, não tem como fazê-lo sozinho, com o respaldo apenas no seu conhecimento jurídico que carreou das leis. . OBJETIVOS Analisam-se em que medida os operadores do direito, em especial o juiz, dispõem, com fundamentação jurídica e sustentada por uma visão interdisciplinar, de critérios e mecanismos adequados para a definição da guarda unilateral, ou da compartilhada, ou da alternada dos filhos. Faz-se necessária, desse modo, a utilização de mecanismos processuais com vistas a proporcionar uma instrução multidisciplinar da demanda; a implementação de critérios sistemático e zetético de interpretação da norma, aí considerados os princípios e valores constantes da Constituição; e, ainda, a efetivação das decisões judiciais embasada nas novas técnicas do cumprimento de tutelas específicas. 23 1. CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM OLHAR PARA O PASSADO Até por volta dos Séculos XVIII e XIX, os adultos não olhavam as crianças com os olhos da atualidade. A sociedade, de um modo geral, não lhes dispensava a devida atenção em termos de políticas públicas com adequações específicas, estabelecidas a partir das carências infantis e voltadas para o seu bem-estar, porque pessoas em formação. O Estado, mais especialmente, não desenvolvia mecanismos jurídico- sociais de proteção aos interesses da sua população de crianças e adolescentes, capazes de resguardá-los de todo modo de abusos, discriminações e violências, inclusive dentro do seio da própria família. Aliás, a família — os pais, mais notadamente —, detinha o exclusivo poder sobre os destinos e educação dos filhos, bem como de seus modos de viver e de ser, ainda que isto implicasse em cerceio às suas aptidões psíquicas, morais ou físicas, utilizando, muitas vezes, meios cruéis, constrangedores e opressores. O núcleo familiar não deixava espaço para atuação institucional externa e, assim, as primeiras investidas do Estado deparavam-se nos muros domésticos, instransponíveis, servis aos excessos dos pais. A estrutura familiar no Império Romano (750 a.c a 450 d.c), que se propagou no tempo e por grande parte do ocidente, é aqui tomada como referência histórica porque moldou o direito de família ocidental, deixando ainda enorme legado para as normas que regem a família na contemporaneidade, não só nos países de origem latina e integrantes do chamado sistema civil law, isto é, aquelas nações que mantiveram o sistema romano onde a lei é a principal fonte do Direito, mas também nos países de origem anglo-saxônica, que adotaram o método common law, no qual o Direito se origina na lei, nos costumes sociais e é também construído pelos próprios tribunais. Seja como for, o esboço normativo que hoje regula as relações de família tem assento no Império Romano. Analisando o perfil do núcleo familiar em Roma antiga, Ricardo Pereira Lira (1997, p. 87) comenta: 24 O pater familias era o chefe absoluto, sacerdote incumbido de oficiar a veneração dos penates, deuses domésticos. Como chefe do grupo familiar, excedente do poder marital, tinha direitos absolutos sobre a mulher e os filhos, inclusive com direito de vida e morte sobre os últimos, decorrente do jus vitae necisque. O pater familias era titular do jus noxae dandi, consistente no abandono reparatório do filho em favor da vítima que houvesse sofrido prejuízo com a prática pelo filho de um ilícito privado. Podia exercer também o jus vendendi, que era a faculdade de alienar o filho, mediante o mancipatio, a outro pater familias. Subespécie do jus vitae necisque era o jus exponendi, faculdade do pater familias de abandonar o filho recém-nascido ao seu destino. Ter o direito de matar um filho ou de abandoná-lo ou de vendê-lo era, no contexto, algo inerente à condição paterna. Que significado tinha a criança/adolescente para o adulto de então? Não obstante o contexto, compreender essa relação entre pais e filhos estabelecida no Império Romano exige uma análise que dê conta de sua complexidade, sobretudo quando se investiga o papel da criança desde então até o final de Idade Média. Observando a criança e em seu entorno,a partir do que a arte medieval retratou do cotidiano das pessoas na Europa, num período compreendido entre os séculos XI até XV, Philipe Ariès (1981, p.51: p. 55) constata que a criança não tinha significação expressiva para a sociedade. A arte refletia, assim, o descaso dos adultos em relação às crianças e adolescentes. {...} a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. Não se pensava como normalmente acreditamos hoje, que a criança já contivesse a personalidade de um homem. Elas morriam em grande número. Consta que durante muito tempo se conservou no País Basco, o hábito de se enterrar em casa, no jardim, a criança morta sem batismo. Talvez houvesse aí uma sobrevivência de ritos muito antigos, de oferendas sacrificiais. Ou será que simplesmente as crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar, como hoje se enterra um animal doméstico, um gato ou um cachorro?16 16 Philippe Ariès analisa algumas gravuras do XI a XIII e relata: “Uma miniatura otoniana do século XI nos dá uma idéia impressionante da deformação que o artista impunha então aos corpos das crianças, num sentido que nos parece muito distante do nosso sentimento e da nossa visão. O tema é uma cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas, sendo o texto latino claro: parvuli. Ora, o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros homens, sem nenhuma das características da infância: eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor. Apenas seus tamanhos os distinguem dos adultos. Numa miniatura francesa do século XI, as três crianças que São Nicolau ressuscitou estão representadas numa escala mais reduzida que os adultos, sem nenhuma diferença de expressão ou de traços. O pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, nos raríssimos casos em que era exposta, a musculatura do adulto: assim, no livro de salmos de São Luiz de Leyde, datado do fim do século XII ou do início do século XIII, Ismael, pouco depois de seu nascimento, tem os músculos abdominais e peitorais de um homem. Embora exibisse mais sentimento ao retratar a infância, o século XIII continuou fiel a esse procedimento”. 25 Se se interpretar a suspeita de Àries a respeito dos costumes medievais como indiferença dos adultos em relação às crianças e o hermetismo da família em face da sociedade e do próprio Estado, pode-se ter como hipótese que o mundo medieval proporciona um domínio absoluto dos pais sobre seus filhos e, mais especificamente, um poder desmedido do próprio pai sobre a prole. Isto é verificado não só na Europa dominada tantos séculos pelos romanos, mas também em outros povos, mesmo já por volta do século XVIII, como constata Göran Therborn (2006, p. 31): Em algumas sociedades, particularmente nas africanas, mas, em princípio, também na China imperial, o poder patriarcal era o poder supremo e elaboraram-se práticas religiosas para veneração dos ancestrais e para o contato com seus espíritos. As regras do confucionismo ortodoxo, mais precisamente os códigos penais da China imperial, colocavam o dever filial acima da lealdade ao Estado e às suas Leis, de modo a, de forma explícita, endossar ou permitir, respectivamente, a cobertura dos crimes cometidos pelos pais ou por outro membro graduado da família. As primeiras manifestações a dedicar proteção às pessoas com hipossuficiência psicofísica de convivência desenvolvem-se lentamente e ainda que de forma apenas embrionária, na Inglaterra, por volta do século XIV, através do regime do parens patriae, que era concebido como a autoridade herdada da família pelo Estado, em situações muito singulares e que não se aplicavam aos filhos menores, para atuar como guardião de um indivíduo com limitação de sua capacidade jurídica, tal é o relato de Tânia Pereira (2000, p. 2-3), em prospecção histórica da obra de Daniel B. Griffith. Mas, só a partir do século XVIII que as Cortes de Chancelaria inglesas passaram, no contexto do parens patriae, a distinguir as crianças daquelas outras pessoas portadoras de determinadas limitações, como os loucos ou os pródigos. Desta época consta, segundo a referida autora acima, a primeira decisão judicial, ainda que isolada, em que o interesse do menor é exaltado a um patamar em que se sobrepõe aos interesses dos próprios pais. É o tímido limiar de uma era em que os poderes constituídos passam a intervir na órbita familiar para resguardar interesses da prole, conforme afirma: 26 A criança era considerada uma coisa pertencente a seu pai (thing to be owned). Era predominante a preferência da custódia para o pai, sem que se importasse com as conseqüências dela decorrentes. Griffith, referindo-se às origens históricas do parens patriae, reporta-se ao caso Finlay versus Finlay, julgado pelo Juiz Cardozo, em que ficou ressalvado que, ao exercitar o parens patriae, a preocupação não deveria ser a controvérsia entre as partes adversas e nem mesmo compor as diferenças entre elas. O bem- estar da criança deveria se sobrepor aos direitos de cada um dos pais. Dois julgados do Juiz Lord Mansfield, em 1763, envolvendo medidas semelhantes ao nosso procedimento de ‘busca de apreensão do menor’, identificados como o caso Rex versus Delaval e o caso Blissets, são conhecidos no Direito Costumeiro inglês como os precedentes que consideraram a primazia do interesse da criança e o que era mais próprio para ela. Somente em 1836, porém, este princípio tornou-se efetivo na Inglaterra. Esses são os primeiros movimentos político-sociais, ainda incipientes, na direção de se começar a reconhecer na criança um sujeito de direito. Eram os passos iniciais no caminho de se ver a criança como titular do direito à sua proteção psicofísica pela família, pela sociedade e pelo Estado. 1.1 Regramentos jurídicos brasileiros até o Código de Menores de 1979 Antes do rei D. João VI desembarcar no Brasil, em 1808, estava em vigências as Ordenações Filipinas, uma legislação imposta pela Coroa portuguesa, criada pela dinastia dos Felipe, reis espanhóis que governaram Portugal entre os anos de 1580 a 1640. Essas Ordenações retratavam com fidedignidade o tratamento que era dispensado às crianças e aos adolescentes brasileiros até o início do século XIX, o que nos impele a significar, para a nossa realidade, as observações de Ariès sobre a infância pincelada pela arte da Idade Média. Em seus estudos sobre a história da responsabilidade penal do menor no Brasil, Janine Borges Soares (2007, p. 40) constata: De acordo com as Ordenações Filipinas, a imputabilidade penal iniciava-se aos sete anos, eximindo-se o menor da pena de morte e concedendo-lhe 27 redução da pena. Entre dezessete e vinte e um anos havia um sistema de ‘jovem adulto’, o qual poderia até mesmo ser condenado à morte, ou, dependendo de certas circunstâncias, ter sua pena diminuída. A imputabilidade penal plena ficava para maiores de vinte e um anos. Antes de 1830, quando foi publicado o primeiro Código Penal do Brasil, as crianças e os jovens eram severamente punidos, sem muita diferenciação quanto aos adultos, a despeito do fato de que a menor idade constituísse um atenuante à pena. A adolescência confundia-se com a infância, que terminava em torno dos sete anos de idade, quando iniciava, sem transição, a idade adulta. Observa-se que não se distinguia praticamente a criança do adulto naquilo que correspondia aos deveres deste e suas respectivas sanções pelo não cumprimento. O menor era, sobretudo, um ser de deveres, como se pudesse discernir entre o certo e o errado; entre o possível e o não permitido. A criança era punida quase com que se adulto fosse. Não havia diferenças significativas. É como se o ser humano (ainda) em formação fosse o ser humano (já) formado ou como se a punição excessiva fosse exemplar e profilática. O que levaria a sociedade de então a punir com reclusão a criança que cometesse um “crime” aos sete anos de vida? Que espécie de “crime” seria esse? O Código Penal do império, de 1830, e também o primeiro Código Penal da era republicana, de 1890 foram inspirados pelo que se chamou da “Doutrina do Direito Penal do Menor”, preocupavam-se especialmente com a delinqüência infanto-juvenil e baseavam a imputabilidade na pesquisa do discernimento, em que se atribuía ao Juiz a competência para determinar o grau de esclarecimento do infrator quanto à menor ou maior gravidade do ato que tivera praticado. O art. 13 do Código, de 1830 autorizava o juiz punir a criança com menos de quatorze anos de idade, com pena de reclusão, nos seguintes termos: Art. 13 – Se se provar que os menores de quatorze anos, que tiverem cometido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos às casas de correcção, pelo tempo que ao juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda a idade de dezesete annos. Assim, segundo Liborni Siqueira (1979, p. 32), cabia ao magistrado verificar se o jovem era ou não capaz de dolo e, para tal fim, levaria em conta a sua vida 28 pregressa, seu modo de pensar, sua linguagem, não justificando basear-se apenas numa razão, obrigando-o a pesquisar um conjunto de elementos informadores. Vivia-se no Brasil dessa época, ainda uma era de mecanismos excessivos e, às vezes, cruéis de punição, quando, ao redor do mundo, outros países do continente europeu já acenavam com novas formas de repressão institucionalizada. Era preciso, então, distinguir o punido do punidor: este, quando voraz e selvagem, se igualava, aos olhos da modernidade, ao criminoso a ser punido. A sociedade reclamava humanização na aplicação da pena. O esquartejamento público, a fogueira que ardia nos corpos dos condenados, o ferro em brasa que lhes deformavam as faces, a castração, etc., etc., vão cedendo espaço a outros modos de punição. Michel Foucault (2003, p. 12) investiga esse momento da história, ao que denomina de nova justificação moral e política do direito de punir, revelando: No fim do século XVIII e começo do século XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. Nessa transformação misturam-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento e ou de administração. A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por um breve tempo; o pelourinho foi supresso em 1789; a Inglaterra aboliu-o em 1837. As obras públicas que a Áustria, a Suíça e algumas províncias americanas, como a Pensilvânia, obrigavam a fazer em plena rua ou nas estradas — condenados com coleiras de ferro, em vestes multicores, grilhetas, trocando com o povo desafios, injúrias, zombarias, pancadas, sinais de rancor ou de cumplicidade — são eliminados mais ou menos em toda a parte no fim do século XVIII, ou na primeira metade do século XIX. O suplício de exposição do condenado foi mantido na França, até 1831, apesar das críticas violentas — ‘cena repugnante’, dizia Real; ela é finalmente abolida em abril de 1848. Quanto às cadeias, que arrastavam os condenados a serviços forçados através de toda a França, Brest e Toulon, foram substituídas em 1837 por decentes carruagens celulares, pintadas de preto. A punição, pouco a pouco, deixou de ser uma cena. E tudo que pudesse implicar em espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções da cerimônia penal deixavam de ser compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um ‘fecho’ ao crime mantinha com ele afinidades espúrias; igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê- los afastados, mostrando-lhes a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com o criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do suplicado um objeto de piedade e de admiração. 29 Se o mundo experimenta, na passagem pela Idade Contemporânea, novos modos de tratar seus criminosos, é provável que disso tenha também defluido as novas formas de tratamento diferenciado que se ensaiava para as crianças e adolescentes, no final do século XIX, distanciando-os dos adultos e remetendo esses menores, pouco a pouco, para um sistema jurídico protetivo, com regras que os reconhecem sujeitos titulares de direitos, não necessariamente os mesmo direitos dos adultos, mas outros, mais específicos, que se compadeciam de suas vulnerabilidades. A nossa primeira legislação dedicada exclusivamente à pessoa de menor idade (até 21 anos, então) foi o Código de Menores de 1927, também denominado de Código Mello de Mattos, instituído pelo Decreto Federal 17 943-A, de 12 de outubro de 1927, que, embora guardasse resquícios da legislação anterior (como a permissão para o trabalho de crianças maiores de 12 anos — art. 101, por exemplo), continha alguns elementos que se inspiravam em recentes documentos internacionais vigentes na ocasião, como a Declaração de Genebra, de 1924, que já estabelecia “a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial”. O referido Código ainda fundava-se na teoria do discernimento e na aplicação de processos repressivos, remanescentes do Brasil imperial, em vez da adoção de medidas socioeducativas (CARVALHO, 1977). Além de ser uma legislação de cunho autoritário, para Janine Borges Soares,(2006), simbolizava a intenção de controle das crianças e jovens, constituindo mecanismo de intervenção sobre a população pobre. Nesse momento constrói-se a categoria do “menor”, que, ainda, segundo a autora , referia-se à infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do restante da infância. Muito embora se constituísse o Código de 1927 numa legislação autoritária, contemplava um aspecto relevante, na época, para a criança e o adolescente, consistente na possibilidade de intervenção do Estado no seio da família, para proteger os menores dos excessos e maltratos dos pais, como se constata do seu art. 26, VII e respectivas alíneas: Art. 26 – Consideram-se abandonados os menores de 18 annos: 30 VII, que, devido à crueldade, abuso de autoridade, negligência ou exploração dos Paes, tutor ou encarregado de sua guarda, sejam: a) victimas de máos tratos physicos habituaes ou castigos immoderados; b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis à saúde; c) empregados em ocupações prohibidas ou manifestamente contrarias à moral e aos bons costumes, ou que lhe ponham em risco a vida ou a saúde; d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem; Com o advento do novo Código de Menores, de 1979, o Brasil adotou a “Doutrina Jurídica da Situação Irregular”, mas essa legislação apresentava-se defasada em face de documentos internacionais (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969) e de outras legislações estrangeiras. Esse Código, nos termos do seu art. 1º, I, dispunha sobre a assistência, proteção e vigilância de menores que se encontrassem em situação irregular, isto é, praticantes de atos que infringissem, sobretudo, as leis criminais. Eis o teor do dispositivo: Art. 1º - Este Código dispõe sobre a assistência, proteção e vigilância de menores: I – até 18 (dezoito) anos de idade, que se encontrem em situação irregular. Em algumas situações, o referido Código de Menores estabelecia, relativamente aos processos judiciais, mecanismos que submetiam crianças e adolescentes ao mesmo tratamento dos adultos, em vez de legislar de modo diferenciado e específico a proteção infanto-juvenil. No seu art. 84, por exemplo, determina aquele diploma: Art. 84. A jurisdição de menores será exercida, em cada Comarca, por Juiz a quem se atribuam as garantias constitucionais da magistratura, especializado ou não, e, em segundo grau, pelo Conselho da Magistratura ou órgão Judiciário equivalente, conforme dispuser a Lei de Organização Judiciária. Jurisdição, como se sabe, é atribuição do Estado ao qual, através do juiz, cabe dirimir os conflitos interpessoais mediante aplicação impositiva do Direito, na busca do ideal de paz social. A jurisdição de menores representa, então, a atuação do 31 Estado para solucionar os conflitos de interesses que envolvam crianças e adolescentes e, como tal, seria mais efetiva se aplicada, diferentemente do que preconizou o Código, apenas por juízes especializados, com conhecimento apurado na área de sua competência, até porque, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos já exortava, antecedentemente àquele Código, medidas diferenciadas, com jurisdição especializada, para o tratamento da criança e do adolescente, com vistas à sua proteção integral, pela família, pela sociedade e pelo Estado. Nos seus arts. 5º, V, e 19 a citada Convenção estatuía: Art. 5º - Direito à integridade pessoal: V – Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a um tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. Art. 19 – Direitos da Criança Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte de sua família, da sociedade e do Estado. Márcio Marques (2000, p. 468) bem discorre sobre o período de vigência do Código de Menores no Brasil: No Brasil, o Código de Menores foi o instrumento mais poderoso na consolidação da chamada doutrina da situação irregular, esta instituída com foco estigmatizante, no mais das vezes, por se referir quase sempre àquele infanto-juvenil em situação de desajuste familiar, por questões principalmente de ordem econômica, alcançando notadamente meninas e meninos habitantes de rua, adictos ou de qualquer forma marginalizados, excluindo-os ainda mais do gozo dos direitos e garantias que teriam, se adultos fossem. O ‘paternalismo’ das instâncias com ações voltadas às crianças e adolescentes traduzia uma perspectiva de que a criança e o adolescente somente seriam conhecidos como objetos de medidas de proteção, em uma perspectiva tutelar, pelo que sua dimensão ôntica, como pessoa em desenvolvimento, era substituída por uma condição de receptor da prática assistencialista, como benesse, e, portanto, sem considerar seus direitos à convivência familiar e comunitária, à opinião, ao respeito e à dignidade. Esses são movimentos que a sociedade brasileira experimenta e vivencia até o advento da Constituição de 1988, diploma que significou um marco para o tratamento jurídico da criança e adolescente. 32 2. DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO MELHOR INTERESSE DO MENOR: UM SUJEITO DE DIREITO. No decorrer do século XX, surgem documentos internacionais de defesa dos direitos humanos, como a Declaração de Genebra, de 1924, que passam a propugnar pela “necessidade de proclamar à criança uma proteção especial”. O mesmo teor é ratificado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, das Nações Unidas, de 1948. Entretanto, só com a Declaração Universal de Direitos da Criança, de 1959, é que o menor passa a ser alvo de destaque como titular de direitos que preservam sua integridade como ser humano em sua completude, conforme exorta o seu Segundo Princípio: A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança. Há um aspecto interessante: a Declaração Universal de Direitos da Criança destaca, pela primeira vez, num documento internacional voltado para os interesses da criança, a inserção da afetividade como direito seu e elemento essencial para a formação da sua personalidade. Neste sentido, o Sexto Princípio enuncia: A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe. A sociedade e as autoridades públicas terão a obrigação de cuidar especialmente do menor abandonado ou daqueles que careçam de meios adequados de subsistência. Convém que se concedam subsídios governamentais, ou de outra espécie, para a manutenção dos filhos de famílias numerosas. 33 Vai-se desenhando, assim, nos textos legais, por volta de meados do século passado, o reconhecimento da criança como pessoa necessitada de cuidados especiais; um ser humano que é peculiar por sua própria condição de estar em desenvolvimento. Alguém que merece ser tratado com proteção compatível com a sua circunstância de ser hipossuficiente diante das demais pessoas. Em termos de eficácia dos documentos internacionais — vale esclarecer —, as Declarações contêm princípios que, embora possam inspirar as legislações dos países, não têm, todavia, caráter de obrigatoriedade para impor aos Estados que adotem e que cumpram o quanto nelas se contém. Somente as Convenções dispõem de regras que, adaptáveis às circunstâncias culturais de cada povo, devem ser recepcionadas e obedecidas pelas legislações dos chamados Estados-partes. Os países signatários de tratados internacionais se obrigam, através de suas próprias leis, a dar seguimento àquilo que prescrevem as Convenções. Em 1969, a Convenção Americana de Direitos Humanos, referendada pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, dispôs, em seu art. 19, que “toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado”, diante do que os países partícipes daquele Pacto obrigaram-se a reproduzir, em seus textos legais, dispositivos que assegurassem a proteção integral capitulada na citada Convenção. Com atenção voltada exclusivamente para a criança, a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, após um longo período de dez anos de discussões e amadurecimento de teses e propostas, aprova a sua Resolução nº L.44 e assim promulga o documento político-jurídico de grande relevância prática: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a qual, no seu art. 3º, dispõe expressamente que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. Mais especificamente, com relação à garantia do direito de convivência familiar, prerrogativa da criança que se espraia nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, 34 aquela Convenção enuncia regras que impõem aos Estados-partes o dever de proporcionar, naquilo que for de suas competências, o convívio entre pais e filhos, como se vê do seu art. 9��� � Art. 9º. 1. Os Estados-partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e com os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus-tratos ou descuidos por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança. 2. Caso seja adotado qualquer procedimento em conformidade com o estipulado no parágrafo primeiro do presente artigo, todas as partes interessadas terão a oportunidade de participar e de manifestar suas opiniões. 3. Os Estados-partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse da criança. Incrementam-se, por todo o mundo, a partir da segunda metade do século XX, as manifestações da sociedade, reveladas em textos legais, que indicam a necessidade de se disponibilizar mecanismos que dêem efetividade aos direitos que crianças e adolescentes foram vagarosamente conquistando a partir dos séculos XVIII e XIX. Já na fase final que antecedeu sua elaboração e mesmo antes de ter sido promulgada, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança trouxe significativa e determinante influência para Constituição brasileira de 1988 e, posteriormente, para o próprio ECA — Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Essa influência não se dá só pela obrigação protocolar diplomática do Brasil em referendar os ditames de uma Convenção que subscreve, mas responde também aos anseios da sociedade brasileira que também pugna pela criação e execução de políticas protetivas infantis. Nesse sentido, a Constituição Federal brasileira estabelece em seu art. 227 que: 35 Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. De igual modo, o ECA, que define como criança “a pessoa com até doze anos de idade incompletos, e adolescente, aquela entre doze e dezoito anos de idade” (art. 2º), estabelece normas protetivas que desdobram e regulamentam o enunciado pelo art. 227, da Constituição e pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, , com ênfase no contido em seus arts.1º, 4º e 5º: Art. 1º - Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Mais especificamente, com relação à guarda de menores no pós-separação, o Código Civil manifesta regra protetiva dos filhos, em seu art. 1 583, § 1º (redação da Lei 11..698/08), ao estabelecer a responsabilidade conjunta dos pais, dispondo que “compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores, ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada, a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres, do pai e da mãe, que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. É por intermédio da Constituição Federal de 1988, que o Brasil, enfim, chancela a “Doutrina da Proteção Integral”, o que só se fez possível em face de um longo processo evolutivo da sociedade brasileira em derredor das questões que envolvem a criança e o adolescente. A família é conduzida para a Constituição em meio a debates, na sociedade e no Congresso constituinte, envolvendo entidades representativas dos interesses dos menores, das mulheres, parlamentares, juristas, 36 governo, judiciário, órgãos de classe, igrejas, etc.. Acolhiam-se também, assim, as orientações emanadas da Convenção Americana de Direitos Humanos (de 1969) e as teses e princípios que logo seriam referendadas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989. O significado que a Constituição trouxe e trará para a família, e em particular para seus filhos menores, é algo que deve ser vivenciado e avaliado pela própria sociedade, com o passar do tempo. A letra da Lei, por si só, não é muito; pouco ou nada pode significar, se não for interpretada e aplicada com o sentido, no particular, de salvaguardar os interesses da criança e do adolescente. A Lei não basta por si mesma. Eros Grau (2006, p. 27; p. 82) enfatiza: Compreender é algo existencial, consubstanciando, destarte, experiência. O que se compreende, no caso da interpretação do direito, é algo — um ‘objeto’ — que não pode ser conhecido independentemente de um ‘sujeito’. As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem. Não obstante, a Carta constitucional de 1988 representa um avanço. A criança e o adolescente que, desde os tempos mais remotos, foram tratados como objeto passivo de manipulação, passam a ser, com a promulgação da Constituição, sujeitos titulares de direitos fundamentais, que são um conjunto de direitos e garantias outorgados ao ser humano para protegê-lo do arbítrio de quem quer que seja, preservando sua integridade como pessoa e estabelecendo condições mínimas para viver e se desenvolver, tais como: o direito à vida, à dignidade, à honra, à liberdade, à igualdade social, à nacionalidade, à fraternidade, ao meio ambiente equilibrado, etc. Tal como os adultos, os menores incorporam uma série de possibilidades, prerrogativas e necessidades juridicamente protegidas. Porém, mais que os adultos, são alvo de proteção especial, dada a sua condição singular de pessoa em desenvolvimento, que os fazem mais frágeis e, portanto, destinatários de tratamento 37 desigual como tentativa de equalizá-los, em sua hipossuficiência, diante do restante da sociedade. A proteção integral é, em verdade, uma manifestação do princípio da isonomia de que fala a Constituição da República (art. 5º, caput17) e que proporciona igualdade de tratamento a todas as pessoas, independentemente de idade, credo, sexo, etnia, etc.. Proteção do menor que se realiza em duas mãos: de um lado, devem crianças e adolescentes, ser protegidos pela própria família, sociedade e Estado e, do outro, serem protegidas das omissões ou excessos da própria família, da sociedade e do Estado. A proteção integral está contida num conjunto de normas jurídicas que tanto exorta a família, sociedade e Estado a guarnecerem o menor, como, também,, reprime os atos desses mesmos agentes que possam ser-lhes prejudicial. Aliás, o ECA é bastante incisivo neste sentido: Art. 98 – As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I — por ação ou omissão da sociedade ou do Estado II — por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; Embora seja esse jovem, no campo das relações jurídicas, uma pessoa incapaz ou relativamente incapaz para exercer, por si mesmo, os atos da vida civil em sua plenitude, conforme limita o Código Civil, necessitando, pois, enquanto menor, de representação ou assistência de seus pais ou curadores para casar, vender, transacionar, renunciar, etc. isto não se lhe retira a titularidade de direitos que lhe seja específica, a fim de que possa exercer a sua cidadania no quadrante que lhe for possível como pessoa em construção de si própria. Gomes da Costa (1990, p. 39) acentua que, não obstante a sua incapacidade para os atos da vida jurídica, a condição de peculiar desenvolvimento do menor Não pode ser definida apenas a partir do que a criança não sabe, não tem condições e não é capaz. Cada fase do desenvolvimento deve ser reconhecida como revestida de singularidade e de completude relativa, ou seja, a criança e o adolescente não são seres inacabados, a caminho de uma plenitude a ser consumada na idade adulta, enquanto portadora de 17 Art. 5º, caput, da CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,[...] 38 responsabilidades pessoais, cívicas e produtivas plenas. Cada etapa é, à sua maneira, um período de plenitude que dever ser compreendido e acatado pelo mundo adulto, ou seja, pela família, pela sociedade e pelo Estado. A cada momento o menor já se faz merecedor de especial atenção e destinatário de direitos que lhe forem pertinentes a cada fase da vida infanto-juvenil. O direito ao aleitamento materno, à ludicidade adequada, à escola qualificada, à assistência médica apropriada, à convivência comunitária e familiar, ao respeito; enfim, todo modo de garantir seu bem-estar, conforme indica o ordenamento jurídico que lhe é protetivo. É, pois, um sujeito de direito, o que implica em ser uma pessoa suscetível de satisfazer seus direitos, isto é, desejos, capacidades e necessidades juridicamente protegidas. Sujeito de direito é aquele que pode dispor de meios que garantam a satisfação de seus desejos socialmente consensados e permitidos. Ou meios que garantam sua satisfação no momento e oportunidade em que lhe convier. Ou que lhe possam assegurar que outros desenvolvam atividades e prestações em seu favor, cujo objeto lhe seja social e licitamente tutelado. Há, assim, interseção entre o sujeito de desejo, estudado pela psicanálise, e objeto das leis simbólicas, e o sujeito de direito, alvo das normas jurídicas socialmente postas. Segundo Lenita Pacheco Lemos Duarte (2006, p. 73): A lei simbólica rege os homens na condição de seres que habitam a linguagem, e as leis sociais são feitas pelos homens para regular as relações entre eles. A lei simbólica é estrutural, ou seja, independe do lugar, do momento histórico e da constituição social. A lei simbólica está referida para a psicanálise como a noção de lei primordial, como fundadora das leis sociais que mudam no decorrer da história da civilização de acordo com o lugar, ou seja, cada cultura estabelece suas próprias leis. Com sua estrutura de linguagem, a lei simbólica comparece no inconsciente por intermédio de suas manifestações: sonhos, sintomas, chistes, esquecimentos e atos falhos. Podemos reconhecer afinidades entre o Direito e a Psicanálise, pois estas disciplinas incluem o registro simbólico que nos permite passar da natureza para a cultura. Com base nessas premissas, é possível verificar que fazem parte do contexto familiar, simultaneamente, sujeitos do desejo e do direito, na medida em que as particularidades de cada sujeito são permeadas por um ordenamento jurídico e vice-versa. 39 O Direito e a Psicanálise abraçam um único sujeito, mas cada um de seu modo. Sobre o sujeito, a Psicanálise algo explica, pouco prescreve e muito questiona; sobre o Direito muito prescreve, algo explica e pouco questiona. O Direito normatiza e a Psicanálise investiga. O sujeito de desejo está contido no sujeito de direito, mas neste só os desejos socialmente consentidos. Desejos socialmente reprimidos integram o sujeito de direito, apenas. Os impulsos devem ser reprimidos e ordenados, diz o Direito. Os impulsos são investigados e compreendidos, diz a Psicanálise. Para Giselle Câmara Groeninga (2004, p. 256): Se existe a Lei é porque existe o desejo; para a Psicanálise, o sujeito está assujeitado a outra lógica, às leis regidas pelo inconsciente e pelo desejo, pelos nossos impulsos, impulsos da sexualidade e, friso, da agressividade. Tanto o Direito quanto a Psicanálise abordam um só sujeito, visto como Sujeito de Direito e Sujeito de Desejo; um só sujeito, assujeitado a campos do saber, até recentemente estanques, que encontra na conjugação das duas visões uma possibilidade de certo resgate de sua integridade, a visão do Sujeito de Direito Desejante. Esse sujeito de direito — ou, como se queira, sujeito de desejos socialmente permitidos —, é também um sujeito de poder. De poder de até nada desejar, isto é, de não desejar mesmo aquilo que o Direito permite que se deseje. Esse poder é tutelado e, ao mesmo tempo, restringido pelo Direito, que é o modo “civilizado” de repressão, conforme organizada pelo homem. Esta repressão o homem criou para si, na sua passagem de homem-animal para homem-social; do homem da natureza para o homem da civilização. Herbert Marcuse (2006, p. 34-35), interpretando Freud, traduz essa passagem dos desejos dos instintos para os desejos socialmente permitidos, pontuando: O homem animal converte-se em ser humano somente através de uma transformação fundamental de sua natureza, afetando não só os anseios instintivos, mas também os ‘valores’ instintivos — isto é, os princípios que governam a consecução dos anseios. Freud descreveu essa mudança como transformação do princípio do prazer em princípio de realidade. Mas o princípio do prazer irrestrito entra em conflito com o meio natural e humano. O indivíduo chega à compreensão traumática de que uma plena e indolor gratificação de suas necessidades é impossível. E, após essa experiência de desapontamento, um novo princípio de funcionamento mental ganha ascendência. O princípio de realidade supera o princípio de prazer: o 40 homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo, incerto e destrutivo, substituindo-o pelo prazer adiado, restringido mas ‘garantido’. O homem aprende, com o prazer restringido, mas garantido, que há uma ordem social que lhe assegura possibilidades, o que é positivo, pois lhe dá balizas e segurança sobre o que pode e o que não pode — e aí se revela o Direito. Mas também há perdas de prazeres, que se limitam ou se reprimem ante os ganhos sociais. A repressão é um fenômeno histórico criado pelo próprio homem, pelos mecanismos de poder que constrói e que usa em seu próprio benefício, ou, pelo menos, por ele definido como sendo em benefício da sua espécie. Estabelece uma ordem social que o reprime e o condiciona em jogos de poderes. Como diz José Joaquim Calmon de Passos (2005, p. 9 -10), remetendo-se a Foucault : Se a ordem social é produzida pelos homens e se eles a produzem sob fortes condicionamentos que lhes são postos, previamente, pela sociedade, essa ordem social, salientam os estudiosos, é resultante de um processo que se inicia com a habitualização de condutas, as quais, por sua vez, se institucionalizam ao se revestirem de dimensão social significativa, instituições que se operam, por seu turno, mediante indivíduos investidos de papéis socialmente desempenhados. Por outro lado, fenômeno presente em toda sociedade é o poder. Esqueçamos as muitas divergências existentes a respeito do que seja poder. Aqui, trabalhamos com o poder entendido como capacidade, para qualquer instancia que seja (pessoal ou impessoal), de levar alguém (ou vários) a fazer (ou não fazer) o que, entregue a si mesmo, ele não faria necessariamente (ou faria talvez). O poder não é uma substância, como adverte Foucault, algo que se detém, sim uma relação. Também,como ele, podemos aceitar que o poder se estende a todas as relações sociais, formando uma intrincada rede de micropoderes. É desse micropoder que cuidaremos. É ele, poder político, o organizador da coerção que assegura, em última instancia, a sobrevivência da ordem (social) de dominação instituída, ao lado do poder econômico, que lhe dá o pressuposto material, e do poder ideológico, que organiza o consenso (justificação) e implementa a persuasão. O Direito é uma instância à parte, super ou infra estruturalmente relacionada com os poderes referidos, sim o que os integra para formação da ordem social impositivamente implementável. A criança é, do homem, quem tem seu desejo mais acurado, menos refreado; a expressão desiderativa que se manifesta ainda indomada..Seu vão de liberdade, sonho e prazer são incontidos. Mas, ao mesmo tempo, talvez por isso mesmo. tenha sido, ao longo dos séculos, alvo de desproporcional repressão. Sem defesa, seus próprios pais poderiam lhe decretar até mesmo a morte. Sentir na própria pele o 41 poder das instituições voltadas contra si, das formas mais arbitrárias e cruéis. Moldurando o Império Romano, o menor foi vítima do jus vitae necisque, do pater famílias; do jus noxae dandi; do jus vendendi e do mancipatio. A ideologia do poder não se voltou para assistir a criança/adolescente o direito, instrumento dessa ideologia, mas, pelo contrário, se manteve em complacência com a ordem social de então. Quando se diz hoje que o menor é também um sujeito de direito fala-se dessa nova ordem jurídico-social que se estabeleceu, mais acentuadamente, ao final do século XIX e meados do século XX. Se o poder é uma relação, e assim pode ser compreendido, o menor integra essa relação, dela participa e assim é também agente do poder. Uma das manifestações de poder da criança, colocando-a como partícipe de um sistema institucionalizado, surge no final do século XIX, quando a Lei do Ventre Livre (Lei nº 2 040, de 28 de setembro de 1871) define como uma das atribuições do ministério público o dever de zelar para que os filhos livres de mulheres escravas pudessem ser devidamente registrados. Não seria apenas a livre vontade dos pais, como ocorria com crianças não negras, mas um fator determinante para que uma criança tivesse nome e ascendência reconhecidos pelo Estado. O próprio Estado, através de poderes delegados ao ministério público, entendia ser essencial garantir esse ato de cidadania ao menor. Mas só pela dicção do Decreto-Lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, que o ministério público passa a desenvolver um papel fundamental na defesa dos interesses do menor e do adolescente. Para Euclydes Souza (2008, p.15), a intervenção desse órgão, nos moldes do Decreto-Lei, visava proteger basicamente aos valores e interesses sociais então considerados indisponíveis ou mais importantes, como as relações jurídicas do direito de família, casamento, registro, filiação e defesa de menores. Hoje se pode falar em “melhor interesse” como sendo algo em favor do menor, garantias em seu favor, um poder que exerce e que lhe é assegurado por um “Direito Especial” da criança que, conforme definido por Antônio Fernando Amaral e Silva 42 (1994, p. 263), é um novo ramo criado a partir da Constituição de 1988, inspirado na doutrina da proteção integral e regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente; que se prende aos princípios gerais, às regras técnicas do direito, aos conceitos da ciência jurídica, buscando a realização do justo, do bem comum e da equidade. Mas nem sempre é fácil identificar esse melhor interesse do menor. Pelo contrário, é preciso ser prudente, parcimonioso, para não arrogar defini-lo sem considerar as circunstâncias de cada situação em que o jovem esteja envolvido. Não se pode esquecer a sua condição de sujeito de direito para principiar o entendimento do que seja, para ele, o melhor interesse. Como compreender esse fenômeno? Então, como interpretar esse melhor interesse? Que elementos devem ser considerados? Quais critérios adotar para que as decisões não signifiquem arbítrio dos operadores do direito ou daqueles que atuam com o menor? Algumas considerações são feitas por Tânia da Silva Pereira (2000, p. 20- 21) que assegura: Perceber a criança ou o adolescente como sujeito e não como objeto dos direitos dos adultos reflete, talvez, o maior desafio para a própria sociedade e, sobretudo, para o Sistema de Justiça. Considerá-los em suas individualidades não parece ser a primeira preocupação no Sistema de Justiça e entre os operadores do Direito. Ser sujeito de direito é ser titular de uma identidade social que lhe permita buscar proteção especial, já que se trata de uma pessoa em desenvolvimento. Sua identidade pessoal tem vínculo direto com sua identificação no grupo familiar. ... O fato de a criança e o adolescente serem sujeitos de direito fundamentais constitucionais deve refletir a prioridade em face de todas as políticas públicas e programas comunitários, sem afastar a primazia de seus interesses na família, na escola, nos hospitais, nos meios de transporte, etc. A idéia de melhor interesse tem provocado importantes debates, não só entre os operadores do direito mas também em várias outras áreas do saber ligadas ao atendimento da infância-adolescência. A aplicação deste princípio enfrenta, na realidade, inúmeras dificuldades. Cabe um alerta no sentido de não conceder ao juiz um poder discricionário ilimitado. Com base em uma interpretação sistemática e nas normas constitucionais e legais, deverão os operadores do direito tratar com atenção os conflitos que envolvem crianças, adolescentes, suas famílias. O melhor interesse deve ser focado em elementos que estão à volta do menor, isto é, aspectos de sua vida social que devem ser sopesados, tais como, as melhores 43 condições para seu ensino, seu lazer, atendimento médico, etc. Governos, entidades, família devem estar ciosos em relação aos aspectos para os quais será necessário atendimento específico a fim de que a criança/adolescente tenha tratamento compatível à sua condição e formação. Os modos de assistir ao menor são diferenciados e é, nesse contexto, que as políticas públicas devem ser planejadas e executadas. Entretanto, o melhor interesse também se ocupa de outro ângulo de abordagem e diz respeito às questões mais íntimas da criança ou jovem. Relacionam-se aos seus desejos, vínculos, medos e alegrias. Por isso, deve ser identificado em que lugar a criança estará melhor guarnecida de maus-tratos, violências físicas e psíquicas e todo modo de privações. Como fazer para que ela se sinta mais valorizada ou mais respeitada; como identificar onde essa individualidade que se forma pode estar melhor aparelhada para tornar possível um crescimento mais saudável, mais equilibrado. O ECA deu um importante salto nessa direção ao proporcionar, para fins de fundamentação da decisão do juiz, o aporte de pareceres técnicos elaborados por uma equipe multidisciplinar, conhecedora desses aspectos que envolvem a subjetividade do menor. Eis o teor de seu art. 151: Art. 151 – Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhes foram reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico. Do mesmo modo, a Lei 11.698/08 trouxe para o Código Civil, pela nova dicção do seu art. 1.584, § 3º, a regra que também possibilita ao juiz utilizar os fundamentos científicos de outras fontes do conhecimento, quando dispôs: Art. 1.584 - . 44 § 3º - Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob a guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar Em ambas as situações, quer nos pontos que gravitam no entorno da criança/adolescente quer no seu íntimo, é preciso se certificar em que ponto se faz presente o seu melhor interesse. Novaes (2000, p. 526-527) (contribui esclarecendo: Sem dúvida, uma família estruturada, uma boa escola, a garantia de uma saudável alimentação e de satisfatória assistência médica são fundamentais; entretanto, há outros indicadores igualmente importantes, tais como: a compreensão de seus desejos, a possibilidade de estabelecer vínculos afetivos estáveis, o fortalecimento da auto-estima, autoconfiança, o estímulo ao convívio social, à comunicação a ao diálogo aberto, nem sempre levados em consideração. A criança é o eixo, e seu melhor interesse é o pressuposto a ser considerado por quem tenha que por e para ela decidir. Tudo o quanto traduzir compromisso ético, zelo, afeto, harmonia estará sendo refletido no menor e atendendo ao que lhe mais interessa como pessoa por desenvolver-se. O ECA enfatiza nessa direção, ao estabelecer em seu art. 6º que: “na interpretação desta Lei, levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. À família também cabe atuar e, fincada nesse princípio, estar ciente de que os anseios dos pais em relação aos filhos menores só serão legítimos ou legitimados se forem também compatíveis com os legítimos anseios dos filhos. Se a família não se desincumbe dessa atribuição, o Estado, por suas regulares instituições, pode intervir, destituindo-a do poder familiar, como consagra o Código Civil (arts. 1.637 e 1.638), ou aplicando-lhes medidas socioeducativas ou repressivas, consoante estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 129)., mas sempre sabedores de que criança é o eixo. Rosana Fachin (2005, p. 125), remetendo-se a Eeclkaar, afirma 45 O melhor interesse, de acordo com John Eeclkaa, assume um contexto que, em sua definição, o descreve como ‘basic interest, como sendo aqueles essenciais cuidados para viver com saúde, incluindo física, emocional e intelectual, cujos interesses, inicialmente, são dos pais, mas, se negligenciados, o Estado deve intervir para assegurá-los. Os princípios da proteção integral do menor e do seu melhor interesse, os quais notabilizam-nos como sujeito de direito, são pressupostos essenciais a serem considerados, quando da disputa pelos pais, para a definição sobre a guarda da criança ou adolescente. 46 3. DO PODER FAMILIAR Quando se discute na atualidade sobre o melhor interesse e da proteção integral da criança e do adolescente, ou quando se aborda o complexo de questões que envolvem a guarda de filhos disputados por pais separados, exige-se uma reflexão mais ampla sobre a relação entre pais e filhos, ao longo da história, e uma visão das estruturas sociais de poder e sua repercussão na interação familiar. Hoje, a rede de relacionamentos que envolvem pais e filhos é denominada, sob o ponto de vista jurídico, de poder familiar, que é concebido como uma evolução do antigo pátrio poder, na medida em que este se caracterizava como uma relação dominial e arbitrária do pai (apenas) em face dos filhos, enquanto que o poder familiar pressupõe direitos e obrigações de ambos os pais, num plano material e emocional, em relação aos filhos. Fazendo uma incursão no tempo, percebe-se que não se pode falar de pátrio poder sem tomá-lo como significativa expressão do patriarcado. O pátrio poder pode ter sido a manifestação mais importante desse regime, porque desde cedo moldava filhos e filhas a pensarem o mundo a partir da centrípeta figura paterna, símbolo de comando, veneração e poder sem limites. Embora o patriarcado tenha duas vertentes fundamentais, uma fincada na relação assimétrica do pai com a prole e outra, também assimétrica, do marido com a esposa, é da primeira de que se cuidará nesse momento. Já se viu, em linhas atrás, que o poder paterno sobre os filhos excedia o próprio poder do Estado sobre o cidadão, quando se fez referência, por exemplo, ao fato de que, na China imperial, um filho se tornava inimputável, caso tivesse cometido um crime por ordem do pai. Isso evidencia que as leis do Estado se abstinham de punir o infrator que estivesse submetido aos ditames paternos, de modo que se pode dizer que o filho tinha um grau de subordinação e reverência em relação ao pai, maior do que, enquanto cidadão, em face do Estado e seu ordenamento jurídico. Primeiro o pai, depois o Estado e suas leis. A relação filho-pai se sobrepõe à relação cidadão- Estado. Era mais importante, no contexto do pátrio poder, cumprir o que o pai 47 impunha do que aquilo que Estado/sociedade consensara como normas jurídicas que viabilizavam o exercício de cidadania e convivência entre os homens. Durante muitos séculos e pelos mais variados povos, tal estrutura de poder dentro da família se fez presente, o que não quer dizer que, nos dias atuais, ainda não se constatem suas remanescências. Os resquícios culturais do patriarcado ainda tangenciam a sociedade brasileira, conforme se vê dos estudos de Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena Koller18 (2007, p.4)) e isto repercute, inclusive, nas questões que envolvem a guarda de filhos, como se observará, em capítulos posteriores, das decisões de nossos tribunais. O fenômeno patriarcal é correlato à própria trajetória do homem. Para Göran Therborn (2006, p. 22), o poder paterno é o significado central do patriarcado, histórica e etimologicamente várias vezes e em vários lugares, transcende fronteiras do tempo e do espaço. Mesmo tendo sofrido mitigações ao longo do século XX e de passar a ser combatido pelas leis brasileiras no último quartel daquele século, é certo que o pátrio poder ainda remanesce no imaginário social. Lançando os olhos para a História, percebe-se que as regras jurídicas que a sociedade criou para a família, como se vê na Grécia ou Roma antigas, as fez sempre em direção de sistematizar e institucionalizar o pátrio poder. O direito de família atual tem suas raízes em algumas das normas que o império romano instituiu, entre elas as relativas ao pátrio poder, que proclamava o pai como o chefe absoluto, sendo que, nesta condição, tinha direitos ilimitados sobre a mulher e os filhos, inclusive com direito de vida e morte sobre os últimos, decorrente do jus vitae necisque. O pai — pater familias — era titular do jus noxae dandi, que consistia no abandono reparatório do filho em favor da vítima que houvesse sofrido prejuízo com a prática de um ilícito pelo infante. Podia exercer também o jus vendendi, que era a faculdade de alienar o filho, mediante o mancipatio, a outro pater familias. Subespécie do jus vitae necisque era o jus exponendi, faculdade do pater familias de abandonar o filho recém-nascido ao seu destino. 18 As pesquisadoras se ancoram em especialistas para sustentarem essa presença insidiosa do patriarcado nas relações sociais ainda em nossa sociedade, embora não nos remetamos a eles por razões de delimitação, apostando que os seus relatos recolhem o essencial dos discursos formulados pelos aqueles a que se referem. 48 Os romanos, com exímio domínio da escrita, normatizaram suas regras de convivência (Lei das XII Tábuas) e, assim, as perpetuaram no cenário mundial, fazendo-as conhecidas até a atualidade. Todavia, outros povos também instituíram regramentos, mesmo que não escritos, a serviço do pátrio poder. Francisco Pontes de Miranda (2001, p.133) constata: Afirmava Gaio (I, 55) que em nenhum outro povo, salvo os Gálatas, o pátrio poder era tão bem organizado como em Roma; mas é certo que os seus caracteres principais se encontram entre os Hebreus, os Persas, os Gauleses e outros povos (Aristóteles, Ethic. Nicom., VIII; César, De bello gallico, VI, 19). Segundo Caio Mário da Silva Pereira (2005, p. 417), o pátrio poder na civilização grega tinha características menos severas em relação ao que se praticava em Roma, o que se atribui à economia voltada para o comércio marítimo, que contribuía para descentralizar os vínculos de subordinação na família. Os helênicos, inclusive, deslocavam a autoridade do pai atingido pela senilidade para o filho mais hábil, por exemplo, como descreve Homero, no caso de Ulisses astuto em face do pai Laertes. Também os germânicos, ainda conforme o mesmo autor, adotavam essa estrutura patriarcal, mas o instituto do pátrio poder começa a apresentar aí sinais de evolução quando começa a atribuir ao pai, além de ilimitados poderes, o dever de criar e educar o filho. De todo modo, o que se evidencia é que a humanidade conviveu durante séculos, seguidamente, com a estrutura patriarcal de poder no núcleo familiar. No Brasil, cujo direito é egresso do mesmo sistema jurídico das Ordenações lusitanas, as quais, por sua vez, têm matriz e moldagem nas leis romanas, o pátrio poder seguiu os parâmetros dessas legislações. Nossos documentos legais da Era Colonial (Ordenações Manuelinas e Filipinas), Imperial (Resolução de 31 de outubro de 1831) e Republicana pré-Constituição de 1988 (Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, Código Civil, de 1916 e o Estatuto de Mulher Casada, de 1962) disciplinaram e consolidaram o exercício do patriarcado. Tanto que Beviláqua (1956, p. 257) como o autor do projeto do Código Civil de 1916, definiam o pátrio poder 49 como o complexo de direitos que a lei confere ao pai, sobre a pessoa e os bens dos filhos menores de 21 anos. A figura materna e os infantes eram subestimados pela Lei, de modo que o pai decidia sozinho sobre todas as questões pessoais ou patrimoniais que envolvessem a mulher e os filhos menores, sem ter que ouvi-los a respeito. Código Civil de 1916, que vigorou entre nós, com poucas atualizações, até a vigência do novo Código de 2002, trazia em sua redação original evidência do tratamento discriminatório que, durante todo o século passado, se dispensava aos membros da família, priorizando sempre o poder paterno e permitindo que a mulher atuasse de modo subordinado, auxiliando, como figurante, o marido na educação dos filhos.. A mulher só poderia participar da direção da família excepcionalmente na falta ou no impedimento do marido - chefe, como se vê da redação original do Diploma de 1916, no seu art. 380: Art. 380. Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe da família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, a mulher. Os bens dos filhos menores eram administrados exclusivamente pelo pai, pois só na sua falta, ocasionada por sua morte ou ausência/desaparecimento ou incapacidade, permitia-se à mãe tal função. Na dicção do art. 385 daquele Código, lia-se: Art. 385. O pai e, na sua falta, a mãe são os administradores legais dos bens dos filhos que se achem sob o seu poder, salvo o disposto no art. 225. E, caso a mãe, após obter anulação do casamento — o que acontecia em situações muito específicas, como a do matrimônio da raptada com o raptor —, viesse a contrair novas núpcias, a Lei civil a punia com a perda dos direitos residuais que detinha a título de pátrio poder, de modo que sequer o direito à convivência com os filhos poderia exercer. Neste sentido, o art. 393 do CC enuncia: Art. 393. A mãe, que contrai novas núpcias, perde, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder (art. 329); mas, enviuvando, os recupera. 50 Com relação à mulher, a Lei Civil de 1916 (art. 242) restringia seu poder de atuação tanto no seio da família como, de resto, perante a própria sociedade: Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I. Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235). II. Alienar, ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, nº II, III, VIII, 269, 275 e 310). III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outro. IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado. V. Aceitar tutela, curatela ou outro munus público. VI. Litigiar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251. VII. Exercer profissão (art. 233, nº IV). VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal Além das restrições impostas à mulher e aos filhos, o marido, de seu turno, era definido como chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe, entre muitas prerrogativas, a de representar a família, a de administrar os bens da mulher, de determinar em que local a família residiria, de autorizar a profissão da esposa, tudo conforme se constata da redação do art. 233: Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família. II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311). III. O direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, nº IV). IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III). V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277. Art. 234. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o seqüestro temporário de parte dos rendimentos particulares da mulher. 51 Parte desses poderes concedidos exclusivamente ao marido foi mitigada pelo Estatuto da Mulher Casada19, Lei 4.121 de 27 de agosto de 1962, que ainda reconhecia a supremacia do marido nos assuntos da família. Só com a promulgação da Constituição de 1988 é que no Brasil dispôs-se sobre a plena igualdade entre marido e mulher (art. 5º, I, e art. 226, § 5º)20, que põe, pelo menos em termos de textos legais, ao sistema patriarcal, sendo instituído, daí por diante, o chamado poder familiar. Deixa o patriarcado de ser chancelado pelas leis brasileiras, o que é um indicativo do tratamento isonômico a ser observado e assimilado pela sociedade e, particularmente, pelos operadores do Direito. Dessa forma, vai a sociedade migrando da concepção patriarcal da família para um contexto de co-participação do pai e da mãe na criação e orientação da prole. Busca-se, hoje, com o apoio da Lei, redesenhar a atuação paterna, deslocando-a de um patamar de poder impositivo e ilimitado para um cenário em que o pai, ao lado de exercitar o seu direito/dever, possa, conjuntamente com a mãe, orientar e impor limites, como também destinar afeto ao filho e proporcionar-lhe as melhores condições para seu desenvolvimento biopsicossocial. Procurou-se uma expressão que pudesse refletir esses novos padrões relacionais entre os pais, reciprocamente, e entre estes e seus filhos. A doutrina lançou mão de locuções que indicassem um afastamento do significado autoritário do pátrio poder, ensaiando expressões que pudessem revelar os princípios de igualdade entre os cônjuges e suas atuações dirigidas à proteção integral da prole, agora preconizada pela Constituição Federal. Alguns autores, como Bittar (1993, p. 245), entenderam que esse vínculo jurídico entre pais e filhos deveria denominar-se de poder paternal, sendo a palavra paternal 19 Com relação ao pátrio poder, o Código Civil de 1916 sofreu algumas alterações que lhes foram inseridas pelo Estatuto da Mulher Casada, de 1962. Porém, ainda assim, era visível a supremacia do pai, como se observa da nova redação então conferida ao art. 380 daquele Código: “Durante o casamento, compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher”. A mulher era ainda uma colaboradora no exercício de poder do marido. O art. 385/CC atualizado pelo Estatuto também prescrevia tratamento desigual: “O pai, e na sua falta, a mãe, são os administradores legais dos bens dos filhos.” 20 Art. 5º da CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; Art. 226 da CF – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Parágrafo 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 52 derivada do latim patres, que abarca as figuras do pai e da mãe. Outros, conforme diagnostica Waldyr Grisard Filho (2005, p. 40) referindo-se aos estudos de Cortiano Jr., preferem a locução poder parental, que revelaria com mais precisão a interferência paterna e materna. Luiz Edson Fachin (1997, p.593) pugnou pela adoção da expressão poderes e deveres parentais, por entender traduzir a correspectividade de direitos e deveres entre pais e filhos. Não obstante, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, embora tenha sido promulgado após a Constituição, cometeu o equívoco de ainda utilizar em seu texto a antiga expressão pátrio poder, o que se traduz numa inadequação, certamente um lapso do legislador, porque revelaria apenas o poder do pai, enquanto que a Carta constitucional já estabelecia a estrita igualdade entre pai e mãe. A doutrina e a jurisprudência, entretanto, atestaram a atecnia do ECA, reinterpretando-o no particular, e impingiram à expressão pátrio poder o significado atualizado de poder familiar, mesmo porque é o próprio Estatuto que expressamente afirma em seu art. 21 que o pátrio poder será exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe, o que, por si só, já afastaria o exclusivismo paterno. Em outras palavras, o ECA utiliza a nomenclatura pátrio poder, mas dá-lhe o sentido e alcance igualitário de poder familiar. A locução poder familiar terminou por alcançar o consenso dos meios jurídicos, sendo adotada pelo atual Código Civil, nos termos do Capítulo V, intitulado “Do Poder Familiar”, que compreende os artigos 1.630 a 1.636. Desse modo, o referido Código, ao regular o exercício do poder familiar em o seu art. 1.634, dispõe que Art. 1.634 - Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I- dirigir-lhes a criação e a educação; II- tê-los em sua companhia e guarda; III- conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV- nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V- representá-los até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI- reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII- exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição 53 A palavra poder aí referida não deve ser concebida como sinônimo de força opressiva dos pais em relação aos filhos, conforme instituído pelos romanos, repetido pelas Ordenações e reiterado pelo Código Civil brasileiro de 1916. Uma compreensão mais atinente com o movimento transformador das relações familiares é sugerida por Francisco Pontes de Miranda (2001, p. 138), que lhe dá o sentido de exteriorização do querer, e não de imposição e violência. Não que os pais fossem, ao tempo da vigência do antigo Código, somente impositores e violentos. O que se quer afirmar é que o autoritarismo e a violência habitavam a linguagem da Lei, que discriminava mulheres e crianças, colaborando para que alguns pais pudessem, em nome da Lei, exceder-se em seus atos. Por isso, não se pode dizer que a simples instituição legal do poder familiar possa hoje, magicamente, conduzir os pais para uma atuação justa, isonômica e responsável em relação a seus filhos. O que se pode assegurar, todavia, é que não é mais a Lei que patrocina a desigualdade familiar, isto é, a supremacia do homem sobre a mulher e filhos. O que pretende essa nova ordem legal: A Constituição Federal de 1988 - (CF/88), o Código Civil de 2002-(CC/02) e o Estatuto da Criança e do Adolescente-(ECA) visa a incitar nos pais o desejo de proteção dos filhos, obrigando-os a dar-lhes orientação, educação, afeto, companhia e também a necessidade de lhes impor limites, deles exigindo obediência, respeito e os chamados serviços próprios de sua idade e condição. Este poder ainda compreende o direito dos pais de representar os filhos menores e o dever de vigiar e responder por seus atos que eventualmente causem danos a terceiros. A exigência de obediência, de respeito e dos serviços próprios da idade será exercida em que dimensão pelos pais? Seria esta mais uma forma de violência aos menores? Qual a medida dessa repressão? Essas indagações nos remetem a refletir sobre o alcance da repressão dos pais em face dos filhos. Longe da crueldade que nos historia Michel Foucault,(2003), em seu Vigiar e Punir, já aludido, ou da imputabilidade penal aplicada pelo Código Penal do Brasil, de 1830, às crianças com idade a partir dos sete anos, pode-se afirmar que o 54 CC atual prescreve modos de socialização, na busca de transformar o homem instinto (princípio do prazer) em homem civilizado (princípio da realidade), o que traduz a linha de pensamento retratado por Herbert Marcuse e Freud (2006). Esse processo de transformação é resultante da compreensão traumática de que uma plena e indolor gratificação dos desejos e necessidades é impossível. O homem precisa saber, desde cedo, inclusive a partir das relações familiares, que em face dos outros homens também lhes deve obediência, respeito e a prestação de serviços que sejam próprios da organização da vida em torno do trabalho sistematizado. É o início do processo de socialização. Quando o Código Civil (art. 1.634) orienta de que os pais devem exigir dos filhos menores obediência, respeito e prestação de serviços próprio da idade, está sinalizando para o equilíbrio da ordem familiar; para a equidade nas relações de forças, estabelecendo uma interseção entre o desejo-instinto e o conviver civilizadamente. Os excessos repressivos dos pais não podem ser aceitos; a ausência de limites sobre os filhos também não. Os sujeitos ocupam o seu lugar no mundo, modificando-o e modificando-se, afirma Sílvia Lesser de Mello (2002, p. 18) para acrescentar que a socialização põe ordem, estabelece categorias, permite organizar o caos por intermédio da linguagem, coloca cada coisa em seu lugar, atribui qualidades e valores, retoma e retoca o modo como estão impressos nas relações humanas. Por isso, o poder familiar toma como premissas uma série de direitos e deveres mútuos e recíprocos entre pais e filhos. Pais têm direito à convivência com a prole; a dirigir-lhes à educação; a dar-lhes afeto e deles exigir respeito e obediência, que são deveres dos filhos. Têm os pais, ainda,, o dever de prestar assistência material e emocional aos filhos; de proporcionar-lhes boa educação; de respeitar a sua situação de pessoas em formação, fornecendo-lhes meios e condições compatíveis ao seu desenvolvimento; bem assim responder por seus atos ilícitos, etc. Os filhos, por sua vez, também têm direitos à convivência, à educação, ao amor, à assistência material e obrigam-se também a cumprir os deveres de obediência e de colaboração com os serviços próprios de sua idade e condição, etc. 55 Quando se fala em respeito à condição de pessoa em formação, este respeito consiste, conforme o ECA, em seu art. 17 21, na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da sua imagem, identidade, autonomia dos seus valores, idéias e crenças, dos espaços que ocupam e dos objetos pessoais que possuem. Estabelece, pois, o poder familiar uma relação complexa, entrelaçada de atribuições, de funções, de quereres, de poderes, de afetos e de variadas emoções, tudo muito diferente daquela relação familiar vigente à época do fulgor e apogeu do patriarcado ou, ainda mesmo, das atuais relações jurídicas tipicamente patrimoniais. Pode-se afirmar que o poder familiar hoje se traduz numa relação entre pessoas — pai, mãe e filhos —, unidas por vínculos afetivos, via de regra parentais, e que guardam entre si direitos e deveres tendentes a assegurar um relacionamento de respeito ao bom desenvolvimento e dignidade de cada um dos componentes da família. As leis brasileiras procuram,a partir do último quartel do século XX, estabelecer um norte ideal, uma referência, para o convívio da família, em que os interesses do menor passaram a ter enfoque mais relevante do que fora prescrito em tempos anteriores. Daí o direito deve ser pensado como um pacto entre os homens, não apenas como um instrumento organizador e repressor, mas, também, como um veículo de educação do homem e da sociedade. É de grande valia, nesse contexto do ordenamento jurídico, a consagração do vínculo afetivo como uma das características essenciais do poder familiar. A Constituição Federal, o Código Civil e o ECA discorrem sobre um sistema protetivo da criança e do adolescente, ressaltando-lhes prerrogativas tais como direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, à convivência familiar e ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, que só têm sentido se forem ladeados por relações de afeto. 21 Artigo 17 do ECA: “ O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.” 56 Paulo Luiz Lobo (2007, p.4-5),, buscando avaliar a juridicidade do afeto nas questões que envolvem a filiação, sustenta que: A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou mãe e seus filhos. A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou na cogitação dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado nos laços de afetividade. Os princípios constitucionais são expressos ou tácitos. São tácitos quando emergem do sistema de normas e valores constitucionais. O princípio da afetividade é fato jurídico-constitucional, pois é espécie do princípio da dignidade humana e emerge das normas que o sistematizam. Diferentemente da psicanálise, o conceito de afeto para o Direito tem sentido mais restrito. Para a psicanálise, conquanto se esteja longe de apurar um significado preciso, o afeto exprime qualquer estado afetivo, penoso ou agradável, vago ou qualificado, mediante o qual resultam sofrimento e prazer no sujeito, que pode frustar ou sufocar (LOPES, 2007, p. 2). Refere-se, assim, o afeto, conforme Silvane Maria Maarchesini (2007, p. 3), a um dos estados emocionais, cujo conjunto constitui a gama de todos os sentimentos humanos, do mais agradável ao mais insuportável, que se manifesta por uma descarga emocional violenta, física ou psíquica, imediata ou adiada. O mesmo afeto que pode oprimir também pode libertar; é ambivalente. Fernando Pessoa (1996, p. 114-115) retrata em seus versos Quer pouco: terás tudo. Quer nada: serás livre. O mesmo amor que tenham Por nós, quer-nos, oprime-nos Não só quem nos odeia ou nos inveja Nos limita e oprime; quem nos ama Não menos nos limita. Que os deuses me concedam que, despido De afetos, tenha a fria liberdade Dos píncaros sem nada 57 No direito, o afeto adquire um sentido rente àquele atribuído pelo senso comum, sendo, pois, algo positivo, como um sentimento propício a criar um ambiente de felicidade; uma manifestação de fraternidade e dedicação para com o próximo, capaz de proporcionar-lhe satisfação e bem estar emocional. É expressão de carinho. São os bons sentimentos do pai e da mãe para impregnar nos filhos elementos de compensação e proteção ante os males da vida. É este o sentido revelado na lei, jurisprudência e doutrina. Na construção do conceito de poder familiar, há de se considerar como seu elemento constitutivo, a existência de relações afetivas entre os pais e os filhos. Quer seja tal poder exercido em razão da paternidade/maternidade biológica, quer seja da paternidade/maternidade denominada de socioafetiva, ou seja, aquela edificada pelo convívio familiar, posto que paternidade ou maternidade não se limita ao fato de que é pai ou é mãe quem gera biologicamente um filho. Nessa perspectiva, ser pai ou ser mãe se revela pela experiência prazerosa de realizar a função de ser pai ou de ser mãe. É exatamente por isso que se pode afirmar, seguindo tal direcionamento, que paternidade/maternidade, antes mesmo de ser um fato biológico, é um fato cultural. Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 388), embora analisando a questão sob o ponto de vista do abandono dos filhos apenas pelo pai biológico, discorre acerca da importância dos laços afetivos, o que vale para pais ou para mães: Mesmo que se atribua uma paternidade pela via do laço biológico, jamais se conseguirá impor que o genitor se torne um pai. Com isto podemos entender que a Constituição brasileira de 1988, ao interferir no sistema da filiação, deu um passo importante para o entendimento da paternidade no seu sentido mais profundo e real. Ela está acima dos laços sangüíneos. Um pai, mesmo biológico, se não adotar seu filho, jamais será pai. Por isso podemos dizer que a verdadeira paternidade é a adotiva e está ligada à função, escolha, enfim, o desejo. O novo Código Civil deu outro passo adiante sobre a paternidade e os laços de parentesco. Em seu artigo 1.593 22 reconhece que o parentesco não está somente preso aos laços sangüíneos. 22 Artigo 1.593 do Código Civil: “O parentesco é natural ou civil, conforme resultante de consangüinidade ou de outra origem.” 58 O Código Civil também confere o exercício do poder familiar ao pressuposto do afeto nas relações pais e filhos, e isto pode ser observado, por exemplo, quando o Código indica como causas de sua extinção, mediante ato judicial, a prática de castigos imoderados ou o abandono dos filhos ou a submissão destes a atos contrários à moral e aos bons costumes. A perda do poder familiar em decorrência de tais condutas dos pais indica a presunção legal de que, quem assim age, o faz por falta de laços de afetividade para com a prole. Cessa, por isso,, o poder familiar, porém não os deveres de prover e sustentar os filhos, já que a obrigação alimentar não é derivada do poder familiar em si, mas do vínculo que antes existiu, quer tenha sido apenas biológico ou decorrente de adoção legal ou “à brasileira” ou apenas da convivência socioafetiva. O Estatuto da Criança e do Adolescente acolhe a afetividade como parte integrante do poder familiar. Vê-se, por exemplo, nas situações em que, ante a inexistência da família natural, decorrente do abandono dos filhos por seus pais e mães, se buscará colocar a criança/adolescente nas chamadas famílias substitutas, as quais passarão a exercer o poder familiar. Para tanto, porém, a afetividade é pressuposto, conforme disciplina o art. 28 e seus parágrafos: Art. 28 – A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta lei § 1º - Sempre que possível, a criança ou o adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião devidamente considerada. § 2º - Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as conseqüências decorrentes de tal medida. Comentando esse dispositivo, Valter Kenji Ishida (2006) explica que o ECA menciona dois critérios balizadores para a colocação em família substituta: (1º) o grau de parentesco: os parentes próximos ao menor devem, de certo modo, possuir prioridade, como no caso de irmãos, tios, avós; (2º) verificada a impossibilidade destes, devem-se buscar pessoas com afinidade e afetividade. Por afinidade, deve-se entender as pessoas que possuem bom relacionamento e facilidade com a 59 criança e o adolescente, e, por afetividade, entende-se o comportamento sentimental e amoroso das pessoas em relação à criança/adolescente. A lei 11.340/06, denominada de Lei Maria da Penha, por sua vez, ao definir em seu art. 5º, II, a família como sendo “uma comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”, captura o afeto para a estrutura da entidade familiar, haja ou não laços de consangüinidade. Isto porque permite considerar que as pessoas possam formar um núcleo familiar pela vontade de estar próximas, interligadas por laços que propiciem esta aproximação, interagindo, pois, sob as luzes da afetividade. Mais recentemente, a Lei 11.698/08, ao alterar o art. 1.583 do Código Civil, indicou o afeto como um dos fundamentos essenciais à atribuição da guarda: Art. 1.583 - ... § 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; Silvana Maria Carbonera (1998, p. 285-286), por seu turno, salienta que: A formação da família já se dava à margem da esfera jurídica, a preocupação com os sujeitos sobrepunha-se àquela relativa à adequação ao modelo legal. Ganhou dimensões significativas um elemento que anteriormente estava às sombras: o sentimento. E, com ele, a noção de afeto, tomada como um elemento propulsor da relação familiar, revelador do desejo de estar junto a outra pessoa ou pessoas, se fez presente. Como é possível, então, pensar o poder familiar sem considerar os vínculos afetivos que envolvem os membros da família, sobretudo, no particular, os filhos menores em face de seus pais? Como atesta Cenise Monte Vicente (2005, p. 48-49), nos primeiros anos de vida, a criança depende dessas ligações para crescer. Ela carece de cuidados com o corpo, com a alimentação e com a aprendizagem. Mas nada disso é possível se ela não encontrar um ambiente de acolhimento e afeto. Pais 60 conflituosos e instáveis produzem uma relação de ambivalência que pode prejudicar à criança. Não que uma situação de conflitos familiares implique, necessariamente, jovens desestruturados. Mas, os estudos especializados apontam que a adversidade afetiva é um caminho curto para a desestruturação psíquica. No processo interativo, tanto a criança quanto o adulto têm papel ativo na constituição da ligação afetiva. Separar ou perder pessoas queridas ou romper temporária ou definitivamente os vínculos produz sempre sofrimento, fato que pode desestabilizar o equilíbrio psíquico. A propósito, a jurisprudência tem dedicado atenção no sentido de conceber o afeto como componente ínsito do poder familiar, como se vê desse acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais,deferido pelo desembargador Unias Silva e relatado por Patrícia Pimentel Ramos (2005, p.89): No seio da família da contemporaneidade desenvolveu-se uma relação que se encontra deslocada para a afetividade. Nas concepções mais recentes de família, os pais de família têm certos deveres que independem de seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado. Assim, a família não deve ser mais entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade. O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. (Apelação nº 408.550-5, julgado em 1/04/2004). Daí porque o abandono e maus tratos dos filhos menores — o avesso da afetividade — é sancionado pelo Código Civil com a perda do poder familiar e tipificado no Código Penal como conduta criminosa (arts. 244 a 247 23), punida com pena de 23 Art. 244 – Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou do filho menor de 18 anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 anos, não lhe proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer ascendente ou descendente, gravemente enfermo. Art. 247 – Permitir alguém menor de 18 anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância: I – Freqüente casa de jogo ou mal afamada, ou conviva com pessoa viciosa ou de má vida; II – Freqüente espetáculo capaz de pervertê-lo ou de ofender-lhe o pudor, ou participe de representação de igual natureza; III – Resida ou trabalhe em casa de prostituição; IV – Mendigue ou sirva a mendigo para excitar comiseração pública. 61 reclusão de até quatro anos, a depender das circunstâncias específicas de cada caso. Não constitui o poder familiar uma relação jurídica de cunho meramente patrimonial, embora também o seja, mas uma relação jurídica complexa e desafiadora porque envolve toda uma genealogia com vínculos biológicos e afetivos estruturantes da formação de cada um dos membros do núcleo familiar, mais ainda para as crianças e os adolescentes, como,, para os pais, porque não se nasce pai ou mãe, se aprende a ser sendo, com os filhos. Daí porque, no poder familiar, os direitos e deveres se fundem e se confundem, ora caminhando na direção de atendimento aos direitos dos filhos, ora na direção dos direitos paternais. Às vezes, buscando o cumprimento dos deveres dos pais, às vezes, procurando impingir os filhos a cumprirem seus deveres, mas tudo sempre com vistas a patrocinar o melhor interesse da prole. Este poder familiar, denominado por Luiz Edson Fachin (2003, p. 222-223) de autoridade parental, revela, segundo o autor, um conjunto de circunstâncias que vão informar as características do exercício desses direitos e a assunção de correspectivos deveres. Não se trata de ‘poder’ nem propriamente de função. Não há relação de subordinação. É mais que um ‘direito-dever’, expressão híbrida equivocada. Os filhos não são e nem poderiam ser objeto da autoridade parental. Em verdade constituem um dos sujeitos da relação derivada da autoridade parental, mas não sujeitos passivos, e sim no sentido de serem destinatários do exercício deste direito subjetivo, na modalidade de uma dupla realização de interesses do filho e dos pais. As relações pessoais enfeixadas no poder familiar focalizam aspectos patrimoniais, e aí o direito tradicional transita com segurança e desenvoltura, embora atinja facetas existenciais dos membros da família e, nesse caso, os velhos dogmas e categorias do direito precisam ser reconstruídos para tutelar esses novos interesses. Gustavo Tepedino (2004, p.312)24 procura estabelecer essas diferenças e a 24 Gustavo Tepedino detalha seu pensamento, asseverando: ” O estudo da disciplina da autoridade parental no Brasil revela, de pronto, duas peculiaridades essenciais. Em primeiro lugar, trata-se de situação jurídica subjetiva existencial, caracterizada pela atribuição dos pais do poder de interferência na esfera jurídica dos filhos menores, no interesse desses últimos, e não dos titulares do chamado poder jurídico. 62 necessidade de repensar a aplicação de velhos institutos jurídicos às novas situações existentes nas relações pais e filhos na contemporaneidade. Explica ele que o poder familiar denota uma situação jurídica subjetiva existencial, em que os pais têm o poder de interferência sobre os filhos, mas no interesse destes, o que difere da noção tradicional de direito subjetivo, cuja atribuição de poderes é assegurada para proteger o titular do próprio interesse. Entende que o poder familiar não é propriamente derivado de um direito potestativo dos pais em relação aos filhos, pois estes não se sujeitam passivamente a submeter-se à ingerência dos pais, apenas, para a satisfação de seus interesses. Afirma que: Na concepção contemporânea, a autoridade parental (poder familiar) não pode ser reduzida, portanto, nem a uma pretensão juridicamente exigível, em favor de seus titulares, nem a um instrumento jurídico de sujeição dos filhos à vontade dos pais. Há que se buscar o conceito da autoridade parental na bilateralidade do diálogo e do processo educacional, tendo como protagonistas os pais e os filhos, informados pela função emancipatória da educação. No caso da autoridade parental, a utilização dogmática de uma estrutura caracterizada pelo binômio direito-dever, típica das situações patrimoniais, apresenta-se incompatível com a função promocional do poder conferido aos pais. A interferência na esfera jurídica dos filhos só encontra justificativa funcional na formação e no desenvolvimento da personalidade dos próprios filhos, não caracterizando posição de vantagem juridicamente tutelada em favor dos pais. Diferentemente dos idos tempos de um patriarcado institucionalizado, nutrido e proclamado pela sociedade, o poder familiar fornece lastro de regras para a família, porém não mais a enclausula em si mesma. O pai ou a mãe não detém poderes absolutos e estão sempre sob a vigilância da sociedade, por meio das instituições do Diferencia-se assim, o chamado poder parental da noção do direito subjetivo, em que a atribuição de poderes é assegurada para a proteção de interesse ou de posição de vantagem do próprio titular. O direito subjetivo de crédito, por exemplo, reflete interesse patrimonial dotado de exigibilidade específica, consistente em uma pretensão em face de deveres imputados ao centro de interesse do devedor — a todo direito subjetivo corresponde um jurídico a ele contraposto. Ao lado do direito subjetivo, tem-se o direito potestativo, uma espécie, portanto, de situação jurídica subjetiva, em que há um direito contraposto a um dever, senão a possibilidade de interferência na esfera jurídica alheia para a tutela de interesse próprio, restando ao titular do centro de interesse atingido submeter-se passivamente àquela ingerência. Ao lado de tais situações jurídicas situam-se as chamadas situações de poder, configuradas pelo ordenamento em razão da vulnerabilidade de certas pessoas. Eis a hipótese do poder familiar, ou autoridade parental, em que é assegurado aos pais interferir na esfera jurídica dos filhos não no interesse dos pais, titulares do poder jurídico de educação, mas no interesse dos filhos, as pessoas em cuja esfera jurídica é dado ingerir.” 63 Estado, passíveis de serem orientados, ou mesmo sancionados, se desassistirem a prole. A família já não pode manter os invioláveis muros de outrora e, como diz Fábio Coelho Ulhôa (2006, p. 185), o poder familiar é um simples instrumento para a realização dos objetivos de preparação dos filhos para a vida; objetivos que a sociedade reserva aos pais e espera que sejam atendidos, senão tanto pode ser suspenso ou mesmo retirado dos pais. O Código Civil enfatiza, no seu arts. 1.637 e 1.63825, que o poder familiar pode ser suspenso ou extinto, pois fica submetido ao princípio da proteção integral, de modo que se os pais não protegem os filhos o Estado o fará, por seu intermédio ou de terceiros. A guarda de filhos e os problemas relativos à sua definição, quando das disputas dos pais, passam pela compreensão do instituto do poder familiar. Assimilar a dimensão e alcance de tal poder, seus aspectos objetivos e subjetivos é significativo para que a família, assistentes sociais, psicólogos e operadores do direito possam melhor se aparelhar para o estabelecimento de critérios que definam a guarda de filhos na busca do seu melhor interesse. 25 Art. 1.637 – Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando lhe convenha. Art. 1638 – Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I – Castigar imoderadamente o filho; II – Deixar o filho em abandono; III – Praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV – Incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. 64 4. DO DIREITO DE CONVIVÊNCIA: UM RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA INFANTO-JUVENIL. O homem é um ser sociável por natureza. Não é gerado de um ato solitário e, sozinho, não consegue se desenvolver. Salvo manifestações de auto-suficiência projetadas em ficção, como ensaiou Daniel Defoe, através de seu personagem Robson Crusoé, o certo é que o ser humano não é uma ilha. Não vive só para si e não consegue sobreviver sem a reprovação ou o consentimento alheio. O outro jamais lhe será indiferente ou prescindível. Haverá sempre interseção entre as pessoas, dependências necessárias às suas complementaridades, de modo a construir um todo que também é cada um de si. Em cada um de nós, há um pouco de um outro, e nele, parte de nós. Eu, tu e ele somos um pouco de um de nós. Ângela Ales Bello (2006, p.61-66), interpretando Husserl, acentua: Nós vivemos de forma individual, mas ligados à estrutura universal. Por isso, quando falamos dessa estrutura universal, podemos dizer ‘nós’. Podemos perguntar como chegamos a dizer ‘nós’ e como se passa do eu para o nós. Todos os seres humanos estão centrados em um eu, com capacidade de ter consciência de si, e com base neste eu — do ponto de vista da antropologia filosófica —, pode-se chegar a dizer nós. Husserl utilizava a palavra Einfühlug, e sua peculiaridade é a de sentirmos imediatamente que estamos em contato com outro ser humano, de tal modo que podemos falar de ‘nós’. O ato de Einfühlug, entropatia, quer dizer que sinto a existência de um outro ser humano. Através da entropatia, entramos em um mundo intersubjetivo, cuja vivência ajuda nosso desenvolvimento pessoal, do ponto de vista fundamentalmente espiritual e cultural. Esse sentimento de abertura para o próximo, é característica indissociável de nós mesmos. Desde cedo, nos primeiros anos de vida, incluindo a vida intra-uterina, os vínculos se criam e se estabelecem, e a necessidade de mantê-los é algo inerente à nossa própria condição humana. Vera Regina Röhnelt Ramires (2004, p.5-6) influenciada pelo pensamento de Bowlby, em pesquisa em que procura compreender como crianças e adolescentes vivenciam a separação dos pais e as novas uniões parentais, atesta que há propensão dos seres humanos a estabelecerem fortes vínculos afetivos com outros. Tal propensão não está alicerçada nos conceitos de energia psíquica ou impulso, mas reflete uma tendência inata de todo ser humano a vincular-se com outros seres humanos. Seria, segundo 65 argumenta Ramires, uma relação estreita entre as experiências das crianças com seus pais e sua capacidade posterior para estabelecer vínculos afetivos, pontuando que essa relação possui repercussão significativa do ponto de vista da psicopatologia. A qualidade dos vínculos construídos pelas crianças, bem como dos modelos representacionais que lhes correspondem, pode se constituir um importante fator de resiliência no enfrentamento das crises geradas pelas transições familiares. A criança não dispõe de um repertório suficiente para se desenvolver sem a participação de um outro significativo, que supra sua inabilidade para subsistir, face sua falta de autonomia, afirma Cenise Monte Vicente ((2005, p.51), complementando que: A criança tem direito de viver, de desfrutar de uma rede afetiva, na qual possa crescer plenamente, brincar, contar com a paciência, a tolerância e a compreensão dos adultos sempre que estiver com dificuldade. O vínculo é um aspecto tão fundamental na condição humana, e particularmente essencial ao desenvolvimento, que os direitos da criança o levam em consideração na categoria convivência — viver junto. Quando a família, (tenha ela a configuração que tiver) e a comunidade não dão conta de garantir a vida dentro dos limites de dignidade, cabe ao Estado assegurar aos cidadãos tais direitos para que a criança desfrute de bens que apenas a dimensão afetiva pode fornecer. O vínculo tem, portanto, uma dimensão política quando, para sua manutenção e desenvolvimento, necessita de proteção do Estado. Neste momento, o vínculo, por meio do direito de convivência, passa a fazer parte de um conjunto de pautas das políticas públicas. Em regra, as separações conjugais são traumáticas para os próprios pais, para os filhos e também para a família extensa. Mas é de fundamental relevância a continuidade da manutenção dos vínculos entre pais e filhos e, de certo modo, com todo o restante da família. Sabe-se que nesse contexto crítico de pós-separação e, às vezes por muitos anos, a vida do menor pode se transformar num palco privilegiado de conflitos, velhos e novos. São alterações de suas rotinas, com a saída de casa de um dos pais; a perda da própria casa (com todo o simbolismo que disto pode resultar); o sentimento de culpa da criança ou do jovem; a diminuição da condição econômica familiar; as mudanças no seu relacionamento social ; e, ainda, a reorganização da vida afetiva dos pais, com a inclusão de seus novos parceiros, personagens que se inserem na “família”. Estabelece-se um clima que mistura sentimentos de tristeza, raiva, perplexidade, alívio e novidade. Essas experiências 66 podem acrescer quanto atenuar velhos problemas, ou mesmo, favorecer a adaptação e crescimento de todos. Mas, de todo modo, o ajustamento infanto-juvenil no pós-separação parece estar diretamente relacionado à quantidade e à qualidade de contato e de vínculo que a criança criou com as figuras parentais, conforme se tem constatado. Essas considerações são suficientes para justificar o fato de a Assembléia Constituinte de 1988 ter inserido, no texto da Constituição Federal, o preceito segundo o qual “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito [ ...] à convivência familiar” (art. 227). O que está posto na Constituição é genuíno reflexo da necessidade de manutenção dos vínculos familiares — no curso ou após a ruptura do casamento, na família de origem ou na substituta —, como um dos modos de garantir ao menor as melhores condições de sociabilidade. Esse direito à convivência familiar e comunitária também está assegurado no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 4º 26), pois, no seu Capítulo III, intitulado “Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária”, o Estatuto estabelece especificamente que “toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar [ ..].” (art. 19). A mais recente demonstração de relevância do direito de convivência familiar, como fundamento essencial à efetivação dos princípios protetivos da criança e adolescente, está contida em todo o sentido na nova Lei de Guarda e, mais especificamente, na redação que ela deu ao art. 1.584, § § 3º e 4º: Art. 1.584 - ... 26 Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; precedência de atendimento nos serviços públicos e ou de relevância pública; preferência na formulação de na execução das políticas sociais públicas; destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção da infância e da juventude. 67 § 3º - Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob a guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar § 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. Machado (2003, p. 161) caracteriza o direito à convivência como sendo alicerce da doutrina da proteção integral, esclarecendo: No direito à convivência familiar de crianças e adolescentes repousa um dos pontos de esteio da chamada doutrina da proteção integral, na medida em que implica reconhecer que a personalidade infanto-juvenil tem atributos distintos da personalidade adulta, em decorrência da particular condição de pessoa ainda em desenvolvimento, e que, portanto, crianças e adolescentes são sujeitos de direito e não meros objetos de intervenção das relações jurídicas dos seres adultos. O direito de convivência é prerrogativa da criança e do adolescente que deve orientar e sedimentar as decisões acerca da sua guarda. Os profissionais do direito, os psicólogos e assistentes sociais, enfim, todos aqueles que trabalham associadamente no interesse do menor nesse contexto processual-judicial, têm que tomar em consideração, principalmente, os vínculos afetivos que integram a criança/adolescente ao núcleo familiar de origem. Como concebe Waldyr Grisard Filho (2005, p. 179), é importantíssimo que os filhos sintam que há lugar para eles, na vida do pai e da mãe depois do divórcio. Os pais precisam confirmar aos filhos que os vínculos com os dois genitores serão mantidos. Essa confirmação ajuda a minorar a maior preocupação que o divórcio/separação suscita na criança: o medo de perder os pais. Para afastar esse temor, é imprescindível estabelecer uma boa cooperação parental após a dissolução da sociedade conjugal. A exclusão da criança do lar de origem é, em regra, nociva e produz efeitos profundos, como os constatados por Primo Levi (apud VICENTE, 2005,p. 52), pensador italiano que, na infância, foi afastado da família e internado numa instituição para menores. 68 Imagine-se agora um homem ao qual, junto com as pessoas amadas, lhe são levados sua casa, seus hábitos, suas roupas, tudo enfim, literalmente tudo que possui: será um homem vazio, condenado a sofrimento e necessidade, esquecido da dignidade e discernimento, já que acontece facilmente a quem perdeu tudo de perder-se a si mesmo. Esse direito à convivência familiar e comunitária que a Constituição prescreve em favor do menor envolve um dos aspectos tutelados pelo princípio da dignidade da pessoa humana de sede constitucional: reconhecer que a criança e adolescente têm o direito de poder estar, de poder se inserir na vida dos pais e da família como um todo; de poder ser alvo da constante influência do convívio, é indicativo de que possam ser dignos em seus valores e em modos-de-ser. O Estado brasileiro está alicerçado em três fundamentos, como dispõe o art. 1º da Constituição: a soberania, a cidadania e a dignidade humana das pessoas. Esta dignidade humana seria, nas palavras de Alexandre de Moraes (2004, p.128), um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, e que traz consigo o desejo de respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se, num mínimo, invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais. Este princípio apresenta-se em uma dupla concepção: prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado seja em relação aos demais indivíduos; e estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário do próprio semelhante. Pode ser, entretanto, que a convivência na família natural, compreendida como aquela formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes (ECA, art. 25), não resulte em algo que seja construtivo para a personalidade da criança, fato tratado pela Lei como uma excepcionalidade, e por isso merece atenção especial. Já se observou linhas atrás que o Código Civil (arts. 1 637 e 1 638) impõe aos pais a suspensão ou mesmo a perda do poder familiar, isto é, a perda do direito de convivência com a prole, caso os pais cometam abusos de autoridade, castigos imoderados, abandono do filho, prática de atos contrários à moral e aos bons 69 costumes. Vê-se desse modo que nem sempre a convivência com a família natural é positiva ou produz conseqüências desejáveis para a prole. Ademais, família não pode ser considerada apenas como um grupo formado por pais (ou apenas um deles) e seus filhos. A própria Lei 11.340 (Lei Maria da Penha), define família como sendo “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (art. 5º, II). A convivência e a manutenção de vínculos afetivos ocorrerão no seio da família natural ou na família constituída por laços afetivos, mas o fundamental é que o menor não se sinta ao relento, desamparado. O direito de convivência pode se estabelecer nos mais diversos modos de núcleos familiares, quer seja na família substituta, ou mediante tutela, guarda e adoção, ou convívio informal com aparentados ou não. O que mais importa é que a criança/adolescente tenha um ambiente acolhedor e que esse grupo que o acolhe possa ser identificado, conforme Heloísa Szymansk (2002, p. 10), como um núcleo em torno do qual as pessoas se unem por razões afetivas, dentro de um projeto de vida em comum, em que compartilham um quotidiano e, no decorrer das trocas intersubjetivas, transmitam tradições, planejem o futuro, acolham-se, e, assim, atendam aos idosos e formem crianças e adolescentes. Mesmo nos abrigos de que trata o ECA (art. 92 e seus incisos), a Lei busca preservar o direito de convivência familiar na medida do possível, mediante a preservação de vínculos familiares (inc. I); integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem (inc. II) e não desmembramento de grupo de irmãos (inc. V). O direito de convivência é, desse modo, fundamento essencial para esclarecer as questões que envolvem a decisão judicial que definirá a guarda do menor no pós- separação. 70 5. DA GUARDA Neste capítulo,, analisam-se alguns aspectos importantes que envolvem o instituto da guarda, num breve contexto histórico para o direito brasileiro; avaliam-se nuances conceituas de que se ocupam a doutrina e a jurisprudência; esquematizam- se as modalidades de guarda ; e tecem-se alguns comentários sobre a Lei nº 1 .698, de 13 de junho de 2008, que dispõe sobre a guarda compartilhada. 5.1 Considerações históricas Para o direito brasileiro, conforme Waldir Grisard Filho (2005, p. 55), o primeiro dispositivo legal a dispor sobre a guarda de filhos menores, quando da ruptura do casamento, vem expresso no texto do Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, de autoria de Ruy Barbosa, em que promulga regras sobre o casamento civil. Em seu art. 90, estabelece-se que: Art. 90 – A sentença do divórcio mandará entregar os filhos comuns e menores ao cônjuge inocente e fixará a cota com que o culpado deverá concorrer para a educação deles, assim como a contribuição do marido para a sustentação da mulher, se esta for inocente e pobre. Vê-se que a lei de então vinculava a guarda não ao interesse do menor, mas a existência de uma atribuída culpa de um dos pais pela ocorrência do divórcio. Condicionava-se o papel de pai/mãe ao papel de marido/mulher, de modo que, se, aos olhos do juiz, um dos pais tivesse sido um bom cônjuge, cumpridor de seus deveres matrimonias, seria declarado inocente, o que o habilitaria a ter dirigido para si a guarda dos filhos. Se, do contrário, um dos cônjuges fosse tido por culpado pela separação, isto implicaria em não ter condições de ser um pai ou uma mãe dedicado e amável para com a prole. 71 Poucas décadas após a edição do Decreto 181/90, é promulgado o primeiro Código Civil brasileiro, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1917, e que traz artigos que contemplam a guarda de filhos no pós- separação, conferindo liberdade aos pais para que pudessem determiná-la, desde quando a dissolução se desse de modo amigável, consoante o previsto em seu art. 32527. Entretanto, continuava o Código Civil a definir o critério da guarda vinculado ao elemento causal da separação, isto é, correlacionava os motivos que deram origem à separação para defini-la, não permitindo que o cônjuge, considerado culpado pelo desenlace matrimonial, pudesse ter os filhos sob sua custódia. Era nesse sentido que dispunha o art. 326 daquele Estatuto, destacando ainda que, no caso de serem ambos culpados, haveria diferenças na distribuição da guarda em razão do sexo e da idade dos filhos menores,traduzindo, mais uma vez, a forte presença da cultura do patriarcado em nossa legislação. Art. 326. Sendo o desquite judicial, ficarão os filhos menores com o conjugue inocente. § 1º Se ambos forem culpados, a mãe terá direito de conservar em sua companhia as filhas, enquanto menores, e os filhos até a idade de seis anos. § 2º Os filhos maiores de seis anos serão entregues à guarda do pai. Ao se verificar o artigo, isolam-se índices discriminatórios de gênero. As mulheres eram veementemente penalizadas porque sabiam, de antemão, que se dessem causa à separação perdiam a guarda de todos os filhos (aliás, nesse particular, os homens também) e se fossem parcialmente culpadas, perderiam a guarda da prole masculina depois que completasse os seis anos de idade. Os homens, de seu turno, se também culpados pela separação, perderiam a guarda das filhas durante a menor idade delas. Discriminavam-se filhas, filhos, pais e mães. Talvez fossem as mulheres as mais sacrificadas, porque, se considerar–se que uma das causas da separação poderia ser a falta de cumprimento do chamado débito conjugal da mulher em relação à demanda sexual do marido (intitulado 27 Art. 325. No caso de dissolução da sociedade conjugal por desquite amigável, observar-se-á o que os conjugues acordarem sobre a guarda dos filhos. 72 eufemisticamente pelo antigo Código de “dever de vida em comum no domicílio conjugal”, art. 231, II), estaria a esposa compelida a satisfazê-lo na medida da sôfrega necessidade dele, sob pena de, se não cumprisse tal dever, poderia dar causa à separação, sendo, por isso, considerada culpada e, conseqüentemente, ser- lhe imposta a perda da guarda de seus filhos. É verdade que o referido Código Civil, excepcionalmente, permitia ao Estado interceder nas relações familiares à bem dos filhos, para dispor sobre a guarda de modo diverso do quanto estabelecido no citado art. 326, mas apenas quando houvesse graves motivos analisados caso a caso pelo juiz, conforme determinava o seu art. 327 28. Em 1962, com o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), nova redação foi dada ao art. 326 supra transcrito, acarretando-lhe algumas alterações, de tal sorte que, a partir de então, ao cônjuge inocente seria ainda destinada a guarda de todos os filhos menores, mas, sendo ambos culpados, com a mãe ficariam os filhos, sem qualquer distinção de sexo ou idade destes. A guarda de filhos passa a ter tratamento jurídico com mais algumas outras alterações a partir da promulgação da Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) que, ao regular as hipóteses de separação e dissolução do casamento, passa a fazê-lo combinando o já conhecido princípio do desfazimento por culpa (art. 5º, caput) 29 consagrado nas legislações anteriores com situações de dissolução sem culpa dos cônjuges (art. 5º, §§ 1º e 2º)30. 13 Art. 327. Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira diferente da estabelecida nos artigos anteriores a situação deles para com os pais. Parágrafo único. Se todos os filhos couberem a um só conjugue, fixará o juiz a contribuição com que, para o sustento deles, haja de concorrer o outro. 29 Art 5º - A separação judicial pode ser pedida por só um dos cônjuges quando imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum. 30 Art. 5º - ... § 1º A separação judicial pode, também, ser pedida , se um dos cônjuges provar a ruptura da vida em comum há mais de um ano consecutivo, e a impossibilidade de sua reconstituição. § 2º - O cônjuge pode ainda pedir separação judicial quando o outro estiver acometido de grave doença mental, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de cinco anos, a enfermidade tenha sido reconhecida como de cura improvável. 73 Com efeito, a guarda dos filhos, no caso de divórcio ou de separação, passou a ser estabelecida da seguinte forma: a) ruptura fundada no caput do art. 5º, os filhos menores ficariam com o cônjuge que não deu causa, conforme estabelecido no art. 1031 da Lei do Divórcio; b) ruptura com base no § 1º do art. 5º, os filhos permaneceriam com o cônjuge em cuja companhia estavam durante o tempo do desfazimento da vida em comum, consoante o art 1132 daquela Lei; c) ruptura ocorrida pelo motivo do § 2º do art. 5º, a guarda seria destinada ao cônjuge que estivesse em condições de assumir, normalmente, a custódia, nos termos do art. 1233 da citada Lei. Lastreado nos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança/adolescente, inaugurados pela Constituição de 1988 e também referidos pelo ECA em 1990, o Código Civil brasileiro de 2002 trata da guarda de filhos de modo diferenciado do revogado Código de 1916, pois dá um passo à frente, ao desvincular a análise da existência de culpa,ou não,dos pais, pela separação/divórcio, da questão da titularidade em que cada um deles exercerá relativamente à guarda dos filhos. Gustavo Tepedino (2004,p.309) percebe esse marco importante na legislação civil pátria ao cotejar os dois diplomas. Sobre o antigo Código, atesta: Tradicionalmente, a guarda era tratada como um direito subjetivo a ser atribuído a um dos genitores na separação, em contrapartida ao direito de visita deferido a quem não fosse outorgado esta posição de vantagem. Dessa forma acaba-se por desvirtuar o instituto da guarda, retirando-lhe a função primordial de salvaguardar o melhor interesse da criança ou do adolescente. Tal perspectiva, contudo, nitidamente inspirada na dogmática do direito subjetivo, próprio das relações patrimoniais, torna-se ainda mais inadequada quando a legislação leva em conta a conduta (culpada ou inocente) dos cônjuges antes da separação como critério para a atribuição da guarda. O papel da culpa torna-se assim determinante. Já ao se debruçar sobre o Código Civil de 2002, o mesmo autor (2004, p.311) resume: 31 Art. 10 - Na separação judicial fundada no ‘caput’ do art. 5º, os filhos menores ficarão com o cônjuge que a Lei não houver dado causa. 32 Art. 11 – Quando a separação judicial ocorrer com fundamento no § 1º do art. 5º, os filhos ficarão em poder do cônjuge em cuja companhia estavam durante o tempo de ruptura da vida em comum. 33 Art. 12 – Na separação judicial fundada no § 2º do art. 5º, o juiz deferirá a entrega dos filhos ao cônjuge que estiver em condições de assumir, normalmente, a responsabilidade de sua guarda e educação 74 Os artigos 1.583 e seguintes em boa hora apartaram a disciplina da guarda dos critérios relacionados à culpa na separação. Do ponto de vista jurídico, no sistema brasileiro, as regras de conduta relacionadas à autoridade parental, combinando-se a disciplina do Código Civil com as dos arts. 21 e ss. do ECA, abrangem as relações patrimoniais e existenciais próprias da filiação, sendo as modalidades de guarda um problema menos jurídico e mais psicológico, atinente ao comportamento, à personalidade, ao caráter e ao temperamento de cada genitor após a separação conjugal. É tanto que o art. 1.632 do atual Código Civil desvincula o papel de marido/mulher, vivido ao longo do casamento, do dever de pai/mãe que permanecerá, e estabelece que a relação pais e filhos não sofrerá alterações pelo fim da união dos genitores. Assim disciplina : Art. 1.632 – A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. São as novas ordens vigentes pelo Código Civil que, no processo de falência do matrimônio, instituiu regras protetivas aos interesses dos filhos menores. Camilo de Lelis Barbosa Colani (2006, p. 147), em suas observações, também constata: Inovou o Código Civil de 2002, no que diz respeito à proteção dos filhos em caso de dissolução da sociedade conjugal ou do vínculo. A bom tempo o legislador voltou seus olhos para a complexa situação jurídica e social a que se submetem os filhos, mormente aqueles de idade menor, na hipótese de separação dos pais. A bem da verdade, não raras vezes passam a ser pivôs dos conflitos, objetos de manipulação de um ou outro cônjuge, os quais freqüentemente confundem os interesses dos filhos com os do ex-cônjuge. Manifestou, outrossim, o novo legislador a opção pelo real interesse do menor, para fins de atribuição de direitos tais como a guarda. Enfim, promoveu alterações de há muito reconhecidas pela doutrina e pela jurisprudência. Entre tais alterações, importante é a que diz respeito à figura da culpa, outrora determinante da separação e, por via de conseqüência, também da fixação da guarda. Se a culpa já não vem sendo admitida por segmentos da doutrina como 75 motivo sequer para a separação do próprio casal, conforme prospecta, por todos, Cristiano Chaves de Farias(2004,p.114-115), não haveria qualquer fundamentação dogmático-jurídica ou zetética, fincada na observação transdisciplinar das ciências afins ao direito, que pudesse justificar a exclusão do cônjuge, considerado culpado pela ruptura, da possibilidade de assumir (ou assumir também) a guarda dos filhos ao fim do casamento. O que as legislações passadas propagavam era uma espécie de punição, para o pai ou mãe considerado culpado pelo desenlace, impondo–lhe a perda da guarda e, com a ausência do convívio do filho, punia-se também a criança/adolescente ante a impossibilidade de uma convivência familiar plena. Hoje, pelo que se vê da redação do art. 1.632 do CC, o fim do casamento não altera as relações entre pais e filhos, de modo que, se atenderem ao melhor interesse destes, aqueles terão o direito de tê-los em sua guarda e companhia, independentemente de puderem ter sido considerados culpados ou não pelo término da relação conjugal. Há que se notar que o referido art. 1.632 estabelece que o desfazimento do casamento e/ou da união “não alteram as relações entre pais e filhos”. Logo, este direito à convivência permanecerá também para os filhos. Além do mais, fundamental assinalar que a Constituição (art. 227) e o ECA (art. 4º) asseguram, como direito fundamental da criança, a convivência familiar, o que confere aos menores o direito à companhia dos genitores e com eles conviverem mesmo que estes já não mais se relacionem maritalmente. Nesse contexto foi sancionada a Lei 11.698/08 que altera os arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil dando-lhes nova redação ao incluir a guarda compartilhada como alternativa de custódia dos filhos no pós-separação. Com novo teor, o art. 1.583, § 1º. do CC dispõe: Art. 1.583 – A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1º - Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. 76 Mais adiante serão feitas considerações de natureza processual e material sobre essa Lei de Guarda compartilhada. 5.2 Aspectos conceituais. Conceituar um determinado instituto nem sempre é tarefa muito simples, mesmo porque a concepção que cada um faz pode ser rebordada com alguns in sights que, sem desvirtuar da sua essência, completam o seu sentido e alcance. Com a guarda de filhos não é diferente, e é interessante que se estabeleça seus contornos conceituais como premissa básica para definição de critérios que fixem a custódia da prole no pós separação, divórcio, ruptura de união estável, ou mesmo de filhos nascidos de relações acidentais ou eventuais. Sob o aspecto etimológico, De Plácido Silva (1978,p.365), fazendo um apanhado nas origens germânicas do vocábulo “guarda”, assinala que é derivado da antiga palavra alemã “wargen”, que significava guarda ou espera, de que proveio também o inglês “warden”, que pode ser traduzido também como guarda, de onde se formou o francês “garde”, de idêntico significado. Para Silvana Maria Carbonera (2000, p. 27), no atual direito de família, “guarda” vem a ser: Um instituto jurídico através do qual se atribui a uma pessoa, o guardião, um complexo de direitos e deveres a serem exercidos com o objetivo de proteger e prover as necessidades de desenvolvimento de outra (pessoa) que dele necessite, colocada sob sua responsabilidade em virtude de lei ou decisão judicial. Enquanto Moura (2002) descreve a guarda como convivência efetiva dos pais ou responsável com o menor, sob o mesmo teto — o que, a princípio, excluiria essa possibilidade para aquele que não tivesse o filho consigo na mesma casa —,Waldyr Grisard Filho (2005) a advoga sem que estejam necessariamente sob o mesmo teto, 77 posto que a guarda não se define por si mesma, senão através dos elementos que a assegura. Surge como um direito-dever natural e originário dos pais, prossegue o autor, que consiste na convivência com seus filhos, e é o pressuposto que possibilita o exercício de todas as funções parentais. Para Patrícia Ramos (2005), há um dever conjugal de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 1.566, IV34 e art. 1.72435 do CC/02), sendo que a guarda é um atributo decorrente do poder familiar, com previsão no art. 1.634, I e II 36do CC. Examinada sob a perspectiva do poder familiar, a guarda, frisa Ramos, é tanto um dever como um direito dos pais: dever, pois incumbe aos pais criar e educar os filhos, sob pena de estarem deixando o filho em abandono; direito, no sentido dos pais participarem do crescimento dos filhos, orientá-los e educá-los, exigindo-lhe obediência, podendo retê-los no lar, conservando-os junto a si, sendo, portanto, indispensável a guarda para que possa ser exercida a vigilância, uma vez que o genitor é civilmente responsável pelos atos do filho. De seu lado, J. M. Leoni Lopes de Oliveira (000, p.00) define a guarda como: Um complexo direitos e deveres que uma pessoa ou um casal exerce em relação a uma criança ou adolescente, consistindo na mais ampla assistência à sua formação moral, educação, diversão e cuidados para com a saúde, bem como toda e qualquer diligência que se apresente necessária ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades humanas, marcada pela necessidade de convivência sob o mesmo teto, implicando, inclusive, na identidade de domicílio entre a criança e o(s) respectivo(s) titular(es). Pode-se dizer, então, que a guarda está contida no feixe de direitos-deveres que formam o poder familiar, sendo, pois, um de seus componentes, como enfatiza Albuquerque (2004, p.173). O poder familiar, mais amplo, contempla, como já visto em capítulo anterior, uma série de atribuições, funções, direitos e deveres que organizam juridicamente a vida familiar, estabelecendo relações de 34 Art. 1.566, IV do CC: São deveres de ambos os cônjuges: IV – sustento, guarda e educação dos filhos; 35 Art. 1.724 do CC: As relações pessoais entre companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito, assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos. 36 Art. 1.634, I e II do CC: Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e a educação; II – tê-los em sua companhia e guarda. 78 interdependência entre pais e filhos. O Art. 1.634 do CC estrutura o poder familiar estabelecendo que aos pais compete, quanto à pessoa dos filhos menores, “dirigir- lhes a criação e a educação; tê-los em sua companhia e guarda; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; representá-los até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha” e, finalmente, “exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”. Nesta rede de relações entre os partícipes da família que compõe o poder familiar, se insere a guarda de filhos: direito dos pais de poder tê-los consigo para tentar orientá-los segundo os costumes, regras morais e jurídicas de uma sociedade, buscando ainda (res) guardá-los dos dissabores da vida, enquanto menores de idade. Direito à guarda que também é dos filhos, pois, mesmo com a ruptura do casamento/união, estes mantêm o direito de serem (res) guardados por seus pais, consoante se vê nos documentos internacionais, na Constituição Federal e na legislação infra-constitucional brasileira, como se observará mais adiante, ao se tratar da guarda compartilhada A guarda enseja proteção, vigilância e convivência. Proteção revelada em manifestações de zelo para com a integridade física e psíquica do menor; vigilância, que se traduz na atenção e prudência dos guardiões em relação aos riscos potenciais a que está exposto o menor em face de suas naturais vulnerabilidades e, por fim, o convívio, que possibilitará à criança/adolescente viver e desfrutar de uma rede afetiva, estabelecendo vínculos e socializando-se, aspectos fundamentais à condição humana e particularmente essencial ao seu desenvolvimento. Este é o tripé essencial que conforma o conceito da guarda, a qual se relaciona mais estreitamente e se conjumina com outros atributos do poder familiar elencados no citado art. 1.634 do CC, tais como a criação, a educação e a companhia dos filhos, além da possibilidade de exigir que eles prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. 79 Há, todavia, outros elementos do poder familiar que não detêm relação necessária com a guarda. Há hipóteses em que os pais (ou um deles) não sejam mais titulares da guarda, mas continuam a exercer os atributos do poder familiar, como nos casos em que, mesmo que os pais (ou um deles) não detenham a custódia dos filhos, terão ainda o poder/direito de, em relação à prole: conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; nomear-lhes tutor, por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; representá-los até os dezesseis anos, nos atos da vida civil; assisti- los, após essa idade e até os dezoito, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; e reclamá-los de quem ilegalmente os detenha. Como evoca Grisard (2005,), a guarda é um atributo de poder familiar e não se define por si mesma, está conectada àquele poder e tem forte assento na idéia de posse. Por isso, afirma o jurista, a guarda não é da essência do poder familiar, sendo apenas de sua natureza, pois podem ambos conviver pacificamente, ou seja, a primeira (a guarda) não exclui o segundo (o poder familiar). A guarda é dos elementos do poder familiar o de maior destaque. Desse modo, é plausível enunciar que o poder familiar pode ser exercido em sua plenitude, o que inclui a guarda de filhos, pois todos os membros da família se encontram física e espiritualmente unidos. Mas se pode também exercer tal poder sem que se tenha a guarda dos menores, como na circunstância em que separados, um dos pais detenha o papel de genitor visitante não-guardião. Neste caso, o genitor não-guardião continuará a exercer as outras atribuições do poder familiar, menos a guarda. Podem ocorrer situações em que o titular da guarda do menor não o seja do poder familiar, como nas hipóteses em que o Estado/Juiz intervém na família para dela retirar a custódia do menor e caminhá-lo para uma entidade ou a parentes (§ 5º do art. 1.584 CC37) que deterá a sua guarda, mas não o poder, já que este poderá permanecer ainda com os pais. 37 Art 1.584, § 5º: Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade. 80 5.3 Classificação da guarda quanto à origem. Têm-se deparado os estudiosos com tentativas de classificar a guarda de menores cuja finalidade é procurar melhor compreender as situações específicas de demandas familiares em torno do assunto. Quanto à origem da guarda, a classificação, preconizada por W. Grisard Filho (2005, p. 80), divide-se em comum, desmembrada e delegada. Guarda comum, denominada de originária, é aquela coexistente à constância do casamento/união e consiste na convivência e na comunicação diária entre pais e filhos. Esta guarda integrada ao poder familiar dos pais é natural e não depende de concessão do Estado ou da Lei, porque preexiste ao ordenamento jurídico, que apenas a regula para o seu correto exercício. A guarda desmembrada, chamada de derivada, decorre de designação judicial e se opera em situações de menor abandonado ou em situação de perigo, nos quais atua em virtude da função social que, através de si, assume o Estado. É uma guarda desmembrada do poder familiar, em que há intervenção do Estado, representado pelo juizado da infância e juventude, que outorga a guarda a quem não detém o poder familiar, para a devida proteção do menor. Seria uma guarda desmembrada e, ao mesmo tempo, delegada, pois é exercida em nome do Estado(autoridade oficial) por quem não tem a representação legal do menor.. Trata ainda o mesmo autor da guarda de fato, definindo-a como aquela que se estabelece por decisão própria de uma pessoa que toma o menor a seu cargo, sem qualquer atribuição legal (reconhecida aos pais ou tutores) ou judicial, não tendo sobre ele nenhum direito de autoridade, porém todas as obrigações inerentes à guarda desmembrada, como assistência e educação. Desmembrada, mas não 81 delegada, uma vez que inexiste controle e avaliação tanto sobre o guardião como sobre o menor. Repetindo a praxe jurisprudencial, o referido autor informa sobre a guarda provisória e definitiva. É provisória aquela que surge da necessidade de atribuir a guarda a um dos genitores na pendência de processos de separação ou de divórcio, como modo primeiro de organizar a vida familiar. Trata-se de uma medida provisória tendente a clarear-se quando sentenciada a demanda, tornando-se definitiva, após o exame cuidadoso de todos os critérios para atribuição da guarda ao genitor mais apto. Em verdade, arremata: a guarda nunca é definitiva, pois seu regime há de seguir a evolução das circunstâncias que envolvem a vida dos personagens,. Prefere-se nomear de guarda urgente ou em regime de urgência aquela que ordinariamente tem sido denominada de provisória. Provisório é tudo que não é definitivo; é tudo o que não se perpetua no tempo, é indefinidamente. Por isso,, quando na pendência de processo judicial ou na iminência de seu ajuizamento, situações emergenciais de conflitos familiares violentos explodem ameaçadores para os menores, reclama-se a célere atribuição da guarda para algum dos pais ou a um terceiro. Nesse caso, é mais coerente falar-se em guarda urgente ou em regime de urgência, concedida pelo juiz em caráter liminar, porque estão presentes os requisitos da plausibilidade do direito de proteção ao melhor interesse do menor (fumus boni iuris) e a evidência de que uma definição tardia pode por em perigo a proteção desse interesse (periculum in mora). Nesse sentir, a guarda nunca pode ser considerada simploriamente como definitiva, porque as circunstâncias que a ensejam são mutáveis. Mudam ou estão sujeitas a mudanças as condições materiais e psicológicas dos pais bem como a dos filhos, ao longo de suas vidas. Nesse diapasão, a guarda estará respaldada em situações passageiras, sendo duradoura só enquanto permanecerem imutáveis as circunstâncias que a determinaram. Por isso, em vez de denominá-la de definitiva seria mais pertinente nominá-la de guarda regular, como já admite parte da doutrina/jurisprudência. Desse modo, a sentença que define e fixa a guarda pode, a qualquer tempo, ser modificada, desde que haja alteração no suporte fático que a definiu. 82 Amparando relações jurídicas continuativas38 passíveis de alteração, o Código de Processo Civil, embora defina que a sentença tem como qualidade tornar imutável e indiscutível aquilo que nela foi decidido — o que é conhecido como coisa julgada (art. 467 39) —, abre algumas exceções ao princípio da res judicata e, prevendo situações jurídicas duradouras e alvo de mutabilidade ao longo do tempo, dispõe em seu art. 471, I, que Art. 471 – Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que a parte poderá pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; Portanto, não há que se falar em guarda definitiva porque a perpetuidade não é de sua essência, sendo certo que, embora possa o juiz sentenciar a guarda em favor de determinado genitor ou de ambos, tal decisão será objeto de revisão sempre que fatos novos, legitimados, justifiquem modificação do satus quo ante. Pode dizer que, em determinadas situações emergenciais, que suscitem atuação célere e enérgica do juiz para definir a quem caberá circunstancialmente a guarda de um menor, estar-se-á falando de guarda de urgência ou em regime de urgência, a ser concedida mediante tutela liminar, de cognição sumária, que pode ser revestida de caráter assecuratório ou mesmo antecipatório. Mas, se a situação fático-jurídica que serviu de motivação para a decisão judicial da guarda apresentar sedimentos suficientes para que a guarda se estabeleça em favor de alguém de modo mais duradouro, se estará diante da chamada guarda regular. Ainda assim, 38 Tratando relação jurídica continuativa como espécie do gênero relação jurídica, Sérgio Gilberto Porto explica: “Por relação jurídica entende-se o vínculo capaz de gerar conseqüências jurídicas, estabelecido entre pessoas sujeitos de direito. O gênero relação jurídica, no mínimo apresenta duas espécies diversas: a) relação jurídica de natureza estável; b) relação jurídica de natureza continuativa. Aquela, de regra, não sofre adequação pelo decurso do tempo, mantendo-se tal qual concedida originariamente. Esta, ao contrário, existe exatamente para regular as relações nas hipóteses em que as variações pelo transcurso do tempo são da essência do negócio jurídico. Com efeito, se posto em causa direito que tem por suporte relação jurídica continuativa, ou seja, aquela que se adapta ao decurso do tempo, possível, pois, a redecisão, haja vista que se trata de relação cujos efeitos se projetam no tempo. (2000, 207). 39 CPC, art. 467 – Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. 83 como já se comentou, mesmo a guarda regular poderá ser modificada, desde que fatos novos ocorram a ensejar alteração da custódia. 5.4 Das modalidades de guarda. Diz a Lei, doutrina e jurisprudência, sobre a existência de modalidades de guarda, quanto aos modos de relação entre os guardiões e os menores, que há três formas: unilateral, alternada e compartilhada. 5.4.1 Da guarda unilateral. Durante muitos anos, prevaleceu no direito brasileiro, e isto pode ser visto em termos de textos legais desde a edição do Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, que a guarda de filhos menores foi sempre, como regra geral, dirigida para um dos cônjuges em caso de dissolução judicial não amigável, também chamada de dissolução contenciosa ou litigiosa. Segundo aquele Decreto, a guarda preferencialmente destinava-se para o genitor considerado não culpado pela separação. Ao longo da vigência do Código Civil de 1916, que durou até que o Código Civil de 2002 passasse a vigorar, a legislação brasileira preconizou que, diante da separação/divórcio contencioso, os filhos ficariam com o genitor que não tivesse dado causa ao desenlace, isto como regra geral. Conseqüentemente, em todo esse período, os tribunais brasileiros pronunciaram-se favoráveis à unificação da guarda para apenas um dos ex-consortes, salvo situações em que os casais, amigavelmente, optassem por dividir entre si a guarda dos filhos após o advento da separação, o que nem sempre ocorria, ou ainda nem sempre ocorre, uma vez que razões de ordem sociocultural pinceladas em nossa história (a exemplo do patriarcado que deixou cicatrizes, como indicado anteriormente), influenciaram e influenciam juízes, promotores, advogados, psicólogos, assistentes sociais, etc., além dos próprios pais — é claro —, a entenderem a guarda no pós-separação como uma atribuição de um só genitor, e de preferência a mulher. 84 Esta é uma realidade que se espera que possa ser mudada a partir da edição da Lei 11.698/08, muito embora se saiba que uma lei, se não rebate na vontade social, encontra dificuldade em sua efetiva aplicação. Quão preponderante é a cultura sobre um texto legal que alguns acórdãos, mesmo diante do que já dispunham a Constituição Federal, o ECA e o Código Civil antes da alteração que lhe impôs a Lei 11.698/08, chegaram a concluir que o conjunto das leis do Brasil só regulava e contemplava a guarda na modalidade unilateral, de modo que seria impossível pleitear na Justiça a comunhão, pelos pais, da guarda de filhos, se um dos genitores discordasse desse compartilhamento. A título de exemplo, neste sentido, pronunciou-se o Tribunal de Justiça de Minas Gerais: Ementa: União estável. Menor sob guarda exclusiva da mãe. Pedido do varão em torno da guarda compartilhada. Extinção do processo sem julgamento de mérito. Inteiro teor: O que se vê dos autos é que o apelante pretende o provimento do presente recurso, para que o juiz vá ao mérito do pedido, manifestando-se sobre a pleiteada guarda compartilhada dos filhos menores, que estão sob a guarda unilateral da mãe. É certo que os novos tempos vão soprando inovações sobre a vasta seara do direito de família, de tal forma que na maioria dos Estados americanos do norte, assim como na França, Holanda, Alemanha e Suécia, os ordenamentos jurídicos prevêem o advento da guarda compartilhada, ... Assim, para aqueles ordenamentos jurídicos alienígenas, o ideal é, antes do acordo tradicional, tentar-se a guarda compartilhada do menor, pois aí o casal compartilha a criação e a educação dos filhos e o desejo destes de manter relacionamento com ambos os pais, de forma contínua e simultânea e, dessa maneira, os pais são chamados ao exercício conjunto da autoridade parental, sem provocar nos filhos qualquer instabilidade emocional ou psíquica, comprometendo o seu normal desenvolvimento. Não há dúvida de que a guarda compartilhada tem claros sinais de um modelo ideal para os pais e para os filhos, mas não há dúvida de que tal modelo, como prevêem algumas legislações, só é possível, quando decorre do desejo de ambos os genitores e de o requererem conjuntamente ao juiz, que não perde o poder discricionário de apreciar a conveniência de tal ajuste, no interesse dos genitores, mas também e antes de tudo, no interesse dos menores. Acontece, porém, que, por ora, não há legislação própria e doutrina peculiar, no Brasil, instituindo a guarda compartilhada, prevalecendo ainda o sistema tradicional monoparental, em que a guarda do menor fica com um dos cônjuges ou companheiros, com o direito de visita e acesso do outro. Com esses fundamentos, mantenho a sentença e nego provimento ao recurso. (TJMG, 5º Câmara, processo nº 1.0000.00.344568-1/000 (1), rel. Desembargador Cláudio Costa,DJ de 05/02/2004) grifou-se 85 Mais adiante, será apreciada a questão relatada nesse julgamento do TJMG que entendia que as leis brasileiras regulavam, antes da Lei 11.698/08, apenas a guarda unilateral, quando da disputas pelos pais em rupturas não amigáveis, porque entendiam que só esta modalidade de guarda estaria prevista no nosso ordenamento jurídico, o que convergiu para a extinção do referido processo, sem resolução do mérito. Guarda unilateral, ou única, ou exclusiva é aquela exercida apenas por um dos genitores, cabendo ao outro o papel de visitante. Esta guarda pode resultar de separações amigáveis ou judiciais; pode também advir da morte ou da incapacidade civil ou prisão ou abandono de um dos genitores. Pode, inclusive, se originar de relações eventuais ou acidentais ocorridas entre os pais do menor. O que importa nessa modalidade de custódia é que apenas um dos pais tenha o filho a seus cuidados, companhia e convívio cotidiano, sob o mesmo teto, restando ao outro exercer o direito de visitas. Para o Código Civil, a guarda unilateral, que está prevista no seu art. 1.583, § 2º, com redação dada pela Lei 11.698/08, é assim definida Art. 1.583 – A guarda será unilateral ou compartilhada. § 2º - A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: i – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II – saúde e segurança; III – educação. Segundo relato de Eduardo de Oliveira Leite (1998) em observação à jurisprudência praticada antes do advento da nova Lei, a guarda unilateral se justificaria pelo(a): desenvolvimento físico e moral da criança, qualidade de suas relações afetivas e sua inserção no grupo social, idade da criança, sexo (sendo as filhas comumente confiadas à mãe), irmandade (cuidado em não separar os irmãos), apego ou 86 indiferença que a criança manifesta em relação a um de seus pais, ou a estabilidade da criança. Nessa linha de pensamento, a criança se sentirá mais segura de si se estiver sob a guarda de apenas um dos genitores. Isto implica que ela desenvolva-se física e emocionalmente de modo mais equilibrado, o que contribuirá para a qualidade de suas relações afetivas. Além do mais, a criança nutre maiores vínculos com um genitor do que com o outro ou tem sentimento de indiferença em relação a um deles. Esses motivos justificariam a exortação à definição da guarda para só um dos genitores, preferencialmente à mãe, que teria natural vocação para cuidar dos filhos. O que ainda se constata nos dias atuais é reflexo de tempos mais remotos. Rolf Hanssen Madaleno, (2004, p.82) atesta que, na generalidade das decisões proferidas em demandas separatórias, era outorgada a guarda judicial materna dos filhos. Prevalecia ,nas relações conjugais desfeitas pela crença — e não se sabe por quanto tempo assim será —, de ser a mãe a natural guardiã da prole, por dispor do dom de quem abriga o filho desde a concepção e de tempo livre para se dedicar às tarefas domésticas, em contraponto ao trabalho externo e a menor dedicação do pai. Essas são algumas das razões que indicam a guarda unilateral como a mais indicada nas dissoluções litigiosas. Os tribunais, em algumas de suas decisões, ratificam esse pensamento, como se constata da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da Bahia, que, no rastro de tantas outras, atribuiu a guarda de menor à mãe pelo simples fato de que a mulher estaria naturalmente vocacionada para a criação de filhos. Eis um trecho do acórdão proferido no processo da ação de guarda de nº 29680-6/2006, julgado pela Quarta Câmara Cível daquele Tribunal em 28 de fevereiro de 2007: Quanto à indagação de qual dos pais caberia a guarda permanente, respeitado, é claro, o direito de visitação do outro, não seria questão penosa se efetivamente comprovada a incompatibilidade de um destes para com as responsabilidades inerentes a tal múnus. Em casos que tais, sem que se cogite de qualquer forma de preconceito, deve prevalecer o já socialmente consagrado elo materno, em prol da tradicional estabilidade sócio-afetiva naturalmente derivada das práticas comuns ao matriarcado na criação dos filhos. 87 Tais conceitos permanecem vívidos na sociedade, uníssona na preferência em favor da mãe para a guarda dos filhos do casal. Há ainda algumas ementas40 — cujo inteiro teor dos acórdãos se encontra indisponíveis sob o fundamento da tratar-se de processo em segredo de justiça —, que indicam a guarda unilateral, de preferência materna, como a mais apropriada para o bom desenvolvimento psicológico da criança/adolescente Em pesquisa realizada no Rio de Janeiro, pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, concluída em 2002, quando foram entrevistados cinqüenta operadores do direito — juízes, advogados e promotores que atuam nas varas de família —, a professora Leila M. Torraca de Brito (2004, p. 355-356) colheu informações desses profissionais sobre o exercício do poder familiar/guarda nas hipóteses de pais separados, comentando os resultados no IV Congresso Brasileiro de Direito de Família, ocorrido na cidade de Belo Horizonte, em setembro de 2004. Sobre a pesquisa explica que visou observar a opção de alguns profissionais pela guarda única e o desagrado quanto à modalidade da guarda conjunta. Esclarece a autora que, dentre os defensores da guarda unilateral, ela constatou Que alguns defendiam a preferência pela guarda materna, justificada, basicamente, por meio de dois conceitos. O primeiro se refere à tradição cultural e o segundo acha-se sedimentado na idéia de instinto materno, fator que seria responsável pelo fato de ‘a mulher ser talhada para o sacrifício’, de ‘ter capacidade de renúncia mais acentuada do que o homem’, ‘ser mais disponível para os filhos’ e ‘compreender melhor as crianças’. Como exemplos, temos algumas respostas que traduzem esse entendimento: ‘Só se houver motivos graves a guarda fica com o pai’; ‘Só em casos graves se retira a criança da mãe’; ‘Se há empate a criança fica com a mãe. Sendo assim, foram comuns os argumentos de que ‘um pai amoroso abdica em favor da mulher’, ‘ os homens precisam ser mais responsáveis com os 40 As decisões judiciais em seguir transcritas são ementas (resumos), porque assim foram publicadas nos sites oficiais dos respectivos tribunais, e por isso não oferecem muitos detalhes sobre o caso concreto julgado. Todavia demonstram a ocorrência de guarda unilateral em favor da mãe como sendo a mais indicada para o interesse do menor. Neste sentido a ementa do julgamento dos autos do Agravo de Instrumento nº 37387- 8/2003, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia: “Agravo de Instrumento. Guarda de Menor. Não havendo situação de risco para o menor, ou qualquer motivo que justifique a alteração da guarda, deve o menor permanecer sob os cuidados e guarda da mãe, até para evitar a incidência de possíveis danos morais e psicológicos.” Ementa do julgamento dos autos da Apelação Cível nº 2007.001.45173, publicado em 25/09/2007, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “Filho Menor. Guarda. A posse e a guarda de menor sob o pátrio poder sujeitam-se ao exclusivo interesse da criança que, assim revelado, defere-se à mãe.” 88 filhos’ ou ainda que ‘os pais não se preocupam com os filhos’, motivos pelos quais os advogados desaconselhavam os homens a solicitar a guarda. Para os operadores que justificam a guarda unilateral, ainda segundo essa pesquisa, isto se daria porque: Alguns entrevistados insistiram na argumentação de que para uma boa educação infantil é preciso ‘um comando único’. Que ‘quem fica com a guarda é quem sabe das necessidades do cotidiano do filho; ‘o genitor que possui a guarda em relação aos direitos e deveres de seus filhos lida como o único guardião, sendo ao mesmo tempo pai e mãe dessa criança, ficando o outro genitor com a função de fiscal das atividades do guardião, exercendo eventuais reclamações dos filhos’. Na linha de defesa do comando único, foi corrente a justificativa de que a criança precisa de ‘estabilidade’ ou de ‘um ponto de referência’ para seu adequado desenvolvimento. Há, pelo visto, os que defendem a guarda unilateral na convicção de que ela representa a modalidade de custódia que melhor atende aos interesses do menor, além do que, à época, antes da vigência da referida Lei 11.698/08, se contava com o respaldo da legislação brasileira, nos termos de seus arts. 1.584, cuja redação já se encontra alterada em face da mencionada Lei, e 1.589 do Código Civil de 2002, que estabelecem Art. 1.584 – Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja acordo entre as partes quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la. Art. 1.589. O pai ou a mãe, cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá- los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar a sua manutenção ou educação. Este primeiro dispositivo, numa interpretação literal que se dava à época de sua vigência, estaria a afirmar que o juiz, em não verificando acordo entre os pais sobre a guarda, deveria atribuí-la a quem dos dois (um deles, só) detivesse melhores condições de exercê-la, posto que quem é pronome indefinido que significa aquele que; alguém que, revelando-se, portanto, na norma e na sintaxe, a idéia de 89 singularidade, de unicidade que o Código Civil quis atribuir à guarda decorrente de desfecho litigioso. O segundo artigo, numa interpretação gramatical, dispõe que O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los, sendo utilizada a conjunção disjuntiva ou — que une palavras ou orações que exprimem idéias alternadas —, para atribuir a guarda a um ou ao outro cônjuge. Então, ao estabelecer que o destinatário da titularidade da guarda poderia ser escolhido alternativamente e que, com a escolha de um genitor, estaria sendo excluindo o outro, a Lei estaria estabelecendo a guarda unilateral como a modalidade a ser observada. Esta problemática restou superada na medida em que a Lei 11.698/08 veio a definir e autorizar as hipóteses de concessão da guarda unilateral e da guarda compartilhada, de modo que doravante, restará ao juiz analisar qual a modalidade de guarda mais indicada ao caso concreto e, desse modo, fixá-la. Deve, todavia, o magistrado optar pela guarda unilateral, apenas como alternativa excepcional, se verificar que o convívio da criança/adolescente com ambos os pais não será o mais indicado ao seu melhor interesse e, aí, optará, por aquele cônjuge que, nos termos do novo art. 1 583, § 2º, revele melhores condições para exercê-la e mais aptidão para propiciar aos filhos afeto nas relações com o genitor e com o grupo família, além de saúde, segurança e educação. Haverá situações, portanto, em que a convivência com um dos cônjuges não será a mais adequada para o filho, quer porque o genitor lhe seja muito agressivo, seja porque possa molestar-lhe sexualmente; seja porque o conduz a ambientes nocivos à sua formação psicológica e moral, etc. Os casos específicos serão apreciados pelos juízes para que, diante de tais especificidades tão graves que superem o exercício do direito à convivência familiar, possam decidir pela guarda unilateral. 90 5.4.2 Da guarda alternada Nesta espécie, os pais se alternam no exercício da guarda, de modo que o filho terá períodos pré-fixados pelos pais ou pelo juiz para que possa gozar da companhia e do convívio rotineiro de cada um dos genitores ou demais irmãos, mas em momentos isolados. De certo modo, a guarda alternada é, momentaneamente, unilateral, porque só um dos pais, por certo espaço de tempo, detém a guarda. Não há compartilhamento porque, embora os pais consintam em que a guarda não seja exclusiva de nenhum deles por tempo indeterminado, também sabem que não é de ambos a um só tempo. Determinam-se regras, espaços próprios, tempos próprios e o filho participará dessa alternância sistematizada de convivência. O filho, então, ficará sob a guarda da mãe por um lapso temporal previamente acordado com o pai ou estipulado judicialmente e, com o pai, atendidos os mesmos requisitos. Pode ser uma semana com um e a seguinte com o outro; um mês com um e o seguinte com outro etc. Esses períodos são estimados segundo as conveniências ou necessidades tópicas. Nessa modalidade de guarda, para seus defensores, fica resguardado o interesse do menor na medida em que permanecerá inalterada a sua convivência com ambos os pais. Ora com um, ora com outro, mas sempre sem perder o vínculo emocional resultante do convívio. Para W. Grisard Filho (2005,), este modelo de guarda implica em que cada um dos genitores, no período de tempo pré-estabelecido, exerça a exclusiva totalidade dos direitos-deveres que integram o poder parental. É de se esclarecer que, embora um dos pais que detém a guarda alternada é, no espaço de tempo que a exerce, titular da totalidade dos direitos-deveres que compõem o poder familiar, continuará a exercê-los parcialmente nos momentos em que a prole não esteja sob sua guarda. Como adverte José Antônio Santos Neto (1994), não existe nenhuma relação entre o direito dever de administrar os bens do menor e o fato de tê-lo ou não sob sua guarda. 91 Por isso, mesmo nos períodos em que um dos pais não esteja com a guarda dos filhos, estará ele, todavia, a exercer as outras atribuições do poder familiar41, podendo, por conseguinte, consoante autoriza o art. 1.634 do CC, interferir na criação e na educação dos filhos e “conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; representá-los até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha” e, finalmente, “exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. É de se ver que a nova Lei de Guarda nada dispõe sobre a guarda alternada, regulando apenas a unilateral e a compartilhada. Todavia, não nos parece algo proibido e que deva ser peremptoriamente excluído do sistema jurídico, porque o essencial é a preservação do melhor interesse do infante. Talvez seja possível, num ou noutro caso isolado, que os pais e os filhos possam chegar a um consenso da possibilidade de conviver na alternância da custódia. Se essa alternância não se traduzir maléfica para o menor, não há porque, aprioristicamente, indeferi-la. Só a título de exemplo, é possível que os pais separados residam próximos e que possibilitem à criança o convívio num só ambiente de amigos da rua ou do bairro; junto à escola, o parque que freqüenta etc., e que, além de tudo, demonstre o menor, em face de uma cuidadosa avaliação psicossocial, o real interesse de morar alternadamente na casa de cada um dos pais, por períodos distintos e pré-definidos. Não haveria nisto nada que, a princípio, pudesse contrariar o melhor interessa da criança ou invalidar o direito de convivência familiar. 41 Rolf Madaleno(2004,p.84) complementa, articulando que “a simples destituição da guarda física do filho pela separação dos pais não implica, sob nenhum aspecto, a perda do poder familiar, talvez até reforce o seu exercício pela redução do contato do genitor não guardião com o filho que ficou com a guarda do outro ascendente. Nem significa admitir, sob qualquer pretexto, pudesse a cisão da guarda prejudicar por alguma forma o direito-dever de os genitores manterem uma sadia convivência (Direito de Família em pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 92 5.4.3 Da guarda compartilhada. Também chamada de guarda conjunta, essa modalidade de custódia vem instigando as atenções dos meios jurídicos, dos consultórios de psicólogos, ocupando o cotidiano de assistentes sociais e pedagogos, bem assim de outros profissionais que, enfim, estão direta ou indiretamente vinculados às questões da família e ao bem-estar de suas crianças e adolescentes. Desde antes do advento da Lei . 11.698/08 e mesmo agora no curso de sua vigência, essa modalidade de guarda exigirá sempre reflexões. O casamento, a união estável, o concubinato, os encontros eventuais ou acidentais ou mesmo as técnicas de reprodução humana assistida caracterizam-se como situações capazes de gerar filhos. Mas, seja como for, com o nascimento da criança haverá, para o direito brasileiro, um vínculo entre pais e filhos, fincado em direitos e deveres mútuos e recíprocos, denominado de poder familiar. Como já se viu passos atrás, a dissolução dessas uniões afetivas/carnais entre pessoas, duradouras ou casuais, formais ou informais, põe fim aos enlaces havidos entre os casais, encerrando tais relacionamentos, mas não liames do poder familiar, segundo a perspectiva do art. 1.63242 do CC. O nascimento de filhos gera o estabelecimento dessa relação jurídica denominada de poder familiar, independentemente de que seus pais ainda estejam ou não unidos. Já se viu também que a Constituição Federal de 1988 estatuiu o que denominou de direito de convivência familiar (art. 227 43), como sendo um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. É também esta Constituição que prescreve que homens e mulheres são iguais perante a lei (art. 5º, I 44) e, 42 Art. 1.632 do CC: A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre os pais e os filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. 43 Art. 227 da CF -É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 44 Art. 5º da CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; 93 especificamente nas relações familiares, há também igualdade de direitos e deveres para as mulheres e os maridos (§ 5º do art. 226 45). Tudo isso surge, em verdade, como um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana exaltado pelo art. 1º, III 46, do texto constitucional. É, pois, como reflexo das demandas sociais pela igualdade entre as pessoas, inspiradas pelos ideais institucional-democráticos que se instalam no país, a partir do início dos anos oitenta, e influenciado por documentos internacionais de proteção aos direitos humanos, e notadamente aos direitos infanto-juvenis, que o direito positivo brasileiro constituído no último quartel do século passado vai preconizando, em suas normas, premissas voltadas para o que podemos chamar de isonomia familiar, e que afasta a idéia da família hierarquizada de que relata Luiz Edson Fachin (2003)47. Mulheres e homens se igualam em suas oportunidades e possibilidades, quer na constância do casamento, quer depois de dissolvida a conjugalidade. É perceptível atualmente o marco fundamental da isonomia como alicerce das relações de gênero. Aliás, neste sentido são bem-vindas as palavras de Rita Simões Bonelli (2004, p. 254) O tempo presente não mais segue o compasso de uma época na qual a razão conjugal debruçava-se sobre traços nitidamente assimétricos. No plano das relações familiares, a dicção utilizada pela norma constitucional informa, às claras, a existência do princípio isonômico, auxiliando a definir, pelo viés do Direito, a conduta dos consortes. O papel social correspondente a esses atores, portanto, está pautado num contexto outro que não aquele hierarquizado, patriarcalista, autoritário, discriminatório, individualista e materialista legado pela lei civil codificada em 1916. 45 Art. 226 da CF – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Parágrafo 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 46 Art. 1º da CF – A Republica Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constituir-se-á em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana; 47 Luiz Edson Fachin(2203, p.00) comenta sobre a passagem da família de ontem, hierarquizada, para a família de hoje, igualizada: “Na ‘lei das desigualdades’ da família se assentava um estatuto de regulação diferenciada dos papeis familiares. Essa situação foi congruente com o modelo patriarcal, matrimonializado e hierarquizado, cuja superação só viria a ocorrer com a substituição do padrão hierarquizado pelo princípio da igualdade, em sede constitucional. A partir de então à matrimonialização não é dado mais o condão de estatuir a legitimidade jurídica; a família deixa de ter uma direção unitária e passa a ser diárquica. Assim também se apresenta do CCB de 2002. A repercussão da igualdade nas relações familiares e nas conjugais é o reflexo da passagem do Código de 1916 à Constituição, e é aí que a igualdade vem já se apresentar ap Direito contemporâneo como uma exigência ética, cuja dignidade é constitucionalmente assegurada. Da Constituição se projeta para o CCB de 2002. Na ordenação concreta das situações familiares, por força do conceito ativo de igualdade, o termo de referencia é a dignidade humana ou social que proíbe tratamento jurídico diferenciado para o marido e para a mulher.” Teoria Crítica do Direito Civil. São Paulo: Renovar, 2003, p. 292/293. 94 Busca-se, então, com essa isonomia, a participação e a interação entre maridos e mulheres e também seus filhos, do mesmo modo que a legislação procurou estabelecer a desvinculação dos papéis de marido e mulher (culpados ou não pela separação) dos de pai e mãe. O casamento/união é dissolúvel, a filiação não. Não há que se falar mais de pai ou mãe guardião e de pai ou mãe visitante como sendo, para os filhos, uma conseqüência necessária natural ou legal do fim do matrimônio. Em princípio, os pais e as mães podem, depois da ruptura conjugal, continuar a serem pais e mães em toda a inteireza de seus significados. São reflexos de mudanças socioculturais que não podem escapar a quem se debruça sobre a família de hoje. Contabilizando essas mudanças, Leila M. Torraca de Brito (2004, p.360) pondera : Como demonstram os estudos sobre gênero, as desigualdades em relação aos direitos e deveres entre homens e mulheres eram naturalizadas e legitimadas culturalmente. Dessa forma, a fiscalização, prevista inicialmente na legislação como prerrogativa do pai visitante, retratava o mesmo como figura de autoridade, afastado do contexto diário com os filhos e a quem caberia avaliar o desempenho da ex-mulher na promoção do desenvolvimento infantil. Hoje, percebe-se que o significado do nascimento engloba, além do nascimento de um filho, o nascimento dos genitores nos lugares estruturais de pai e mãe, papéis que aprendemos a desempenhar. Tal condição pode ser enfraquecida, porém, quando a educação da criança passa a ser encaminhada, prioritariamente, pelo genitor responsável pela guarda. Atribuir ao genitor classificado como visitante o lugar prioritário de fiscal contraria as indicações atuais tanto dos documentos internacionais quanto das Ciências Humanas, que recomendam uma ampla aproximação e participação de ambos os pais no desenvolvimento dos filhos, sendo que o lugar e as funções dos genitores devem ser referendados pelos textos jurídicos. Desponta nesse ambiente o desejo e a busca de ambos os pais e dos filhos pela guarda compartilhada. Essa espécie de custódia pode ser concebida como a prorrogação da convivência da família após a separação do casal. O casamento se encerra para o casal e com o seu fim também termina para os consortes o sentido de manutenção de qualquer vínculo relativo. Definitivamente a mulher e o homem que se afirmam separados, com ou sem o referendo jurisdicional, desfazem o compromisso ético, moral, afetivo e jurídico nutrido pela conjunção de suas vidas. Mas os filhos são os filhos. Os filhos nascem dos pais, não da esposa e do esposo 95 unilateralmente. A esposa e o esposo já não existem mais, porém os pais e os filhos se perpetuarão como tais, e o direito precisa estar atento a isso. Esta perpetuação das relações entre pais e filhos decorre do que a doutrina, mesmo antes da publicação da Lei 11.698/08, denominava de princípio da unidade familiar. Fabíola Albuquerque (2004, p.172-173) já sustentava que: A unidade familiar é um elo que não corresponde nem com a convivência nem tampouco com a ruptura dos genitores. É um elo que se perpetua, independentemente da relação dos genitores. Nossa legislação civil confere àquele que deixa de ter a guarda apenas o direito de visita e de ter o filho em sua companhia, bem como fiscalizar sua manutenção e educação. A despeito disso, verifica-se crescente movimento no plano doutrinário e jurisprudencial demonstrando que aquela não é a solução adequada para concretizar a idéia de manutenção da unidade familiar, bem como da realização dos princípios do melhor interesse do filho, da realização pessoal dos cônjuges e da dignidade da pessoa humana, pois estes somente se densificarão mediante a sedimentação da guarda compartilhada. É com fundamento nesse melhor interesse da prole, na igualdade dos genitores e na tentativa de garantir a continuidade das relações entre pais e filhos que, precedentemente à nova Lei, Waldyr Grisard Filho, (2005, p.125-126) incita: O melhor interesse dos filhos e a igualdade dos gêneros levaram os tribunais a propor acordos de guarda conjunta, como uma resposta mais eficaz à continuidade das relações da criança com os dois genitores na família pós-ruptura, semelhantemente a uma família intacta. A guarda compartilhada, ou conjunta, é um dos meios de exercício da autoridade parental que os pais desejam continuar exercendo em comum quando já fragmentada a família. De outro modo, é um chamamento dos pais que vivem separados para exercerem conjuntamente a autoridade parental, como faziam na constância da união conjugal. Pela continuidade do convívio é que Pimentel (2005, p.63; p.67) aporta seus argumentos em favor dessa modalidade de guarda O termo guarda compartilhada ou guarda conjunta de menores refere-se à possibilidade dos filhos de pais separados serem assistido por ambos os 96 pais. Nela os pais têm efetiva e equivalente autoridade legal, não só para tomar decisões importantes quanto ao bem-estar de seus filhos, como também de conviver estes filhos em igualdade de condições. Com a separação, divórcio ou dissolução da união estável é interessante manter, tanto quanto possível, um ambiente semelhante ao qual a criança estava habituada. Assim, a permanência da criança na mesma residência e na mesma escola é sempre recomendável. Da mesma forma, se ambos os pais eram presentes, amorosos e disponíveis para os filhos, a guarda compartilhada vem atender aos anseios de bem-estar da criança ao manter o seu convívio com ambos os pais. A guarda compartilhada, assim, pode significar um respeito ao tempo da criança, na medida em que possibilita um convívio permanente dos pais com os filhos, evitando traumas na criança pela ausência de um deles durante o período de seu crescimento e formação. Analisando a questão do compartilhamento da guarda com seus conhecimentos em psicologia jurídica, Leila T. Brito (2004, p.360) ressalta o papel que o pai e a mãe têm no desenvolvimento da personalidade dos filhos e de como a convivência com ambos é fundamental para todos: Hoje, percebe-se que o significado do nascimento engloba, além do nascimento de um filho, o nascimento dos genitores nos lugares estruturais de pai e de mãe, papeis que aprendemos a desempenhar. Tal condição pode ser enfraquecida, porém, quando a educação da criança passa a ser encaminhada, prioritariamente, pelo genitor responsável pela guarda. Atribuir ao genitor classificado como visitante o lugar prioritário de fiscal contraria as indicações atuais tanto dos documentos internacionais quanto dos ensinamentos das ciências humanas, que recomendam uma ampla aproximação e participação de ambos os pais no desenvolvimento dos filhos, sendo que o lugar e as funções dos genitores devem ser referendados pelos textos jurídicos. A paternidade e a maternidade devem ser desempenhadas em igualdade de condições e oportunidades, como regra geral, independentemente da permanência do matrimônio. Este é o sentido e espírito que se consolidou na lei 11.698/08. 5.4.3.1 A regulamentação da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo antes da Lei 11.698, de 13/06/08 A guarda compartilhada se traduz como uma das manifestações do direito de convivência familiar e da igualdade de marido e mulher de que trata a Constituição 97 Federal (arts. 5º,I, 226, § 5º e 227 48) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 4º. 19 e 21 49). A prole não tem o direito de conviver com os pais apenas enquanto estes estiverem casados/unidos, mas por todo o tempo de duração da menor idade. Não há legislação no Brasil, nem documento internacional do qual nosso país tenha sido subscritor que restrinja o direito de convivência dos filhos para com os pais apenas enquanto estes permanecerem em união conjugal. Esse direito de convivência é, pois, previsto em Declarações e Convenções internacionais que dispõem sobre direitos humanos e, em particular, sobre os direitos da criança e do adolescente, documentos que inspiraram e orientaram a trajetória da legislação brasileira. Assim, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, datada do ano de 1959, já estabelecia que: A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe. A sociedade e as autoridades públicas terão a obrigação de cuidar especialmente do menor abandonado ou daqueles que careçam de meios adequados de subsistência. Convém que se concedam subsídios governamentais, ou de outra espécie, para a manutenção dos filhos de famílias numerosas (grifo nosso). Já constava na referida Declaração que a criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade e, sempre que possível, crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus pais. 48Art. 5º da CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; Art. 226 da CF – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Parágrafo 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher Art. 227 da CF -É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 49 Art. 4º do ECA: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 19 – Toda criança e adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substancias entorpecentes. Art. 21 – O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência. 98 Para a criança, isso significa conviver com os genitores, no seu dia-a-dia, porque amparo e responsabilidade a distância, nem sempre condizem com um desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade da criança. Esse amparo não se resume ao apoio material, somente. A Declaração preconiza uma relação de amor/afeto, compreensão e segurança moral, valores que não se justificariam se fossem concebidos ocasionalmente ou à distância, mas que se compatibilizam e se adaptam ao convívio cotidiano dos pais com os filhos, que, no caso de casais separados, se materializa através do compartilhamento da guarda. As Convenções internacionais, como se sabe, dispõem de regras que, adaptáveis às circunstâncias culturais de cada povo, devem ser recepcionadas e obedecidas pelas legislações dos chamados Estados-partes. Os países signatários de tratados internacionais se obrigam, através de suas próprias leis, a dar seguimento àquilo que prescrevem as Convenções. Assim, a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, após um longo período de dez anos de discussões e amadurecimento de teses e propostas, aprovou a sua Resolução nº L.44 e desse modo promulgou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a qual, no seu art. 3º, dispõe expressamente que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. O convívio familiar corresponde ao interesse do menor. Mais especificamente, com relação à garantia do direito de convivência com a família, prerrogativa da criança que se espraia nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, aquela Convenção enuncia regras que impõem ao Brasil, como Estado-parte signatário, o dever de proporcionar, naquilo que for de sua competência, o convívio entre pais e filhos, como se vê do seu art. 9��� � � Art. 9º. 4. Os Estados-partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e com os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal 99 determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus-tratos ou descuidos por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança. 5. Caso seja adotado qualquer procedimento em conformidade com o estipulado no parágrafo primeiro do presente artigo, todas as partes interessadas terão a oportunidade de participar e de manifestar suas opiniões. 6. Os Estados-partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse da criança (grifo nosso). A separação de filhos e, outrossim, de pais é tratada pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança como uma medida de caráter excepcional, que só deve ser aplicada se for necessária para atender aos interesses da criança. A regra é da manutenção do convívio. De ordinário, diz a Convenção, deve ser respeitado o direito da criança de, em casos de pais separados, manter regularmente relações pessoais e contatos direto com ambos. Ao que se observa, essas relações e esse contato direto não se restringirá a um dos pais, apenas; mas com o pai e com a mãe, por toda a menor idade dos filhos. A Convenção não cuida de interações eventuais entre a prole e seus pais. O Código Civil brasileiro, de 2002, nasce num contexto em que documentos internacionais, a Constituição Federal e, de modo mais restrito, o ECA discorrem sobre a necessidade de atendimento do direito de convivência familiar das crianças e adolescentes como forma de garantia da sua fundamental dignidade de pessoas humanas em desenvolvimento Acontece que, pelo visto no item 4.4.1, há entendimentos no sentido de que, até antes do advento da Lei 11.698/08, a guarda compartilhada não estaria contemplada pelo ordenamento jurídico pátrio. Os que assim pensavam articulavam que não existia texto legal no país que se referisse a tal modalidade de custódia, por isso a guarda deveria ser judicialmente decidida sempre em favor de um dos ex-consortes, a menos que eles, de modo próprio, consintam em fazê-lo de forma conjunta. Entende-se diversamente. A guarda compartilhada passou a constar do ordenamento brasileiro desde a Constituição de 1988, quando esta veio a 100 estabelecer a igualdade de homens e mulheres e o direito de convivência familiar como um dos alicerces da proteção integral que Estado, sociedade e família devem protagonizar em favor do menor, respeitando o seu melhor interesse (ver capítulo 3). Não é despretensiosamente que o ECA traz, em seu primeiro artigo, o enunciado pórtico de que “esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Ao assim dispor, estabelece-se uma série de comandos normativos voltados para tornar efetiva a dignidade da pessoa humana infanto-juvenil, pontuando que “é dever da família, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes [...] à convivência familiar” (art. 4º). Assegurar a efetivação do direito ao convívio com a família é, necessariamente, ter em vista que os pais como corolário dessa regra devem manter sempre que possível o convívio com seus filhos, mesmo após a ruptura do casamento, o que se efetiva pelo exercício da guarda compartilhada, porque conviver não é promover visitas ocasionais, ainda que sistemáticas. Em uma primeira observação, pode-se afirmar que a guarda compartilhada esteve, sim, a partir de 1988, presente no ordenamento pátrio através da igualdade de gêneros e do direito à convivência familiar pugnados pela CF e pelo ECA. Estava contemplada no Código Civil, mesmo antes da Lei 11.698/08, e não poderia ser diferente porque, pelo princípio da hierarquia das leis, a legislação infraconstitucional não pode se contrapor ao texto constitucional e deve ser interpretado sempre conforme o que dispuser a Constituição. Uma Lei, um Código não assegura por si só, mas conforme o que orienta a Constituição, de modo que tudo o quanto está num desses subsistemas é, e deve ser, sempre reflexo do que o texto constitucional traz como princípios e valores da sociedade, como alerta Alexandre de Moraes (2003, p. 104) 50. Principalmente, quando se tratam dos chamados direitos fundamentais como aqueles contidos nas normas protetivas da integridade física e 50 Alexandre de Morais, de uma forma bem didática sistematiza as finalidades de uma interpretação constitucional das leis: “As finalidades a serem perseguidas pela interpretação constitucional são de grande importância, porque visam à garantia da efetividade da Carta Magna e à aplicabilidade de seus preceitos. A primeira finalidade básica da interpretação constitucional é garantir o máximo de efetividade do texto magno, consagrando sua força normativa e garantindo a interpretação de todo o ordenamento jurídico em conformidade com suas normas. A segunda finalidade da interpretação constitucional é a integração do ordenamento constitucional. A terceira finalidade constitui na realização do controle formal e material das leis e atos normativos editados pelos poderes constituídos. A quarta finalidade é a de eleger a solução mais correta e justa para o caso, do ponto de vista dos princípios e Direitos Fundamentais consagrados no texto constitucional, verdadeiros paradigmas para a aplicação do Direito Positivado (Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2003, p.104) 101 psicológica de crianças e adolescentes, dispostas na Constituição brasileira atual. Consoante assinala Paula Sarno Braga, (2008, p. 115),de todas as inovações trazidas para o campo dos direitos fundamentais a mais aplaudida foi a irradiação de sua eficácia valorativa por toda a ordem jurídica51, de sorte que os dispositivos constitucionais que contemplam regras de proteção à saúde, à alimentação, à educação, à convivência familiar, à dignidade, ao respeito, etc. infanto-juvenis têm sua eficácia espraiada por todo o sistema jurídico nacional. Luiz Guilherme Marinoni (2006, p. 51-52), percebendo a jurisdição como atividade do Estado de aplicar o direito segundo sua conformação constitucional, enfatiza que: O Estado contemporâneo, caracterizado pela força normativa da Constituição, obviamente não dispensa a conformação das regras aos princípios constitucionais e sabe que isso apenas pode ser feito com o auxílio da jurisdição. Não há qualquer dúvida, hoje, de que toda norma constitucional, independentemente do seu conteúdo ou da forma de sua vazão, produz efeitos jurídicos imediatos e condiciona o ‘modo de ser’ das regras. Portanto, a compreensão da lei a partir da Constituição expressa uma outra configuração do positivismo, que pode ser qualificada como positivismo crítico ou pós-positivismo, não porque atribui às normas constitucionais o seu fundamento, mas sim porque submete o texto da lei a princípios materiais de justiça e direitos fundamentais, permitindo que seja encontrada uma norma jurídica que revele adequada conformação da lei. O juiz não é mais a boca da lei, como queria Montesquieu, mas sim o projetor de um direito que toma em consideração a lei à luz da Constituição e, assim, faz os devidos ajustes para suprir as suas imperfeições ou encontrar uma interpretação adequada. O Código Civil, então, só por sua simples promulgação, já acata todo o manancial de princípios, valores e comandos normativos que vêm da Constituição, em face de toda sua supremacia material e axiológica, como adverte Dirley da Cunha Junior (2007,p. 71-72) 52, Por isso mesmo, a leitura, interpretação e aplicação do Código 51 Paula Sarno complementa seu raciocínio, afirmando que “ O ordenamento jurídico foi invadido e tomado por valores como dignidade da pessoa humana, igualdade substancial, solidariedade e proporcionalidade (justiça), que passam a servir de diretrizes para a instituição, interpretação e aplicação das normas pelo Estado. Todo esse substrato axiológico deve servir de parâmetro para o operador do direito, devendo ser manipulado e empregado no cotidiano jurídico, tanto nas sanções mais comuns e triviais, como naquelas mais críticas, em que revela uma verdadeira ‘crise no ordenamento’, quando se depara com normas ambíguas, desarmônicas, incompatíveis com o texto constitucional, conferindo-lhes uma interpretação conforme a Constituição” (in Aplicação do Devido Processo Legal nas Relações Privadas, p. 115) 52 Dirley da Cunha Jr. argumenta que “o constitucionalismo moderno, forjado no final do século XVIII a partir dos ideais iluministas da limitação do poder, permaneceu inquestionável entre nós até meados do século XX, ocasião em que se originou, na Europa, um novo pensamento constitucional voltado a reconhecer a supremacia material 102 devem estar em congruência com o que a Constituição adredemente já afirmou. Se a Constituição expõe, como garantia fundamental de toda criança e adolescente, o direito à convivência familiar, sem restrições no pós-separação de seus pais, o Código só pode referendá-lo. Desse modo, o Código Civil de 2002 contém quase uma dezena de artigos que, interpretados sistematicamente e conforme a Constituição, apontavam para soluções que têm no compartilhamento da guarda o seu elemento inspirador fundamental. Veja-se o que prescreve o seu art. 1.566, IV: Art. 1.566 – São deveres de ambos os cônjuges: IV – Sustento, guarda e educação dos filhos; Ambos os cônjuges tem o dever — logo, direito dos filhos —, de tê-los em sua guarda, sendo que esses deveres dos dois cônjuges se protraem no pós-ruptura em relação à prole. Sabe-se que os deveres/direitos conjugais extinguem-se, como regra, em relação a cada um dos consortes, depois de selada a separação (CC, art. 1.576 53). Todavia, o Código Civil é explícito em consignar que a dissolução do casamento não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos, como atestam seus arts. 1.579 e 1.632: Art. 1.579 – O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos. Art. 1.632 – A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos. e axiológica da Constituição, cujo conteúdo, dotado de força normativa e expansiva, passou a condicionar a validade e compreensão de todo o direito e a estabelecer deveres de atuação para os órgãos de direção política. Com efeito, até a Segunda Grande Guerra Mundial, a teoria jurídica vivia sob a influência do Estado Legislativo de Direito, onde a Lei e o Princípio da Legalidade eram as únicas fontes de legitimação do Direito, na medida em que uma norma jurídica era válida não por ser justa, mas sim, exclusivamente, por haver sido posta por uma autoridade dotada de competência normativa. O neoconstitucionalismo, ou o novo direito constitucional como também é conhecido, destaca-se, nesse contexto, como uma nova teoria jurídica a justificar a mudança do paradigma, de Estado Legislativo de Direito para Estado Constitucional de Direito. Assim, com a implantação do Estado Constitucional de Direito opera-se a subordinação da própria legalidade à Constituição, de modo que as condições de validade das leis e demais normas jurídicas depende não só da sua forma de produção como também da compatibilidade de seus conteúdos com os princípios e regras constitucionais.” (Temas de Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Salvador: Podivum, 2007 ) 53 Art. 1.576 do CC: “A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens”. 103 Ora, se os direitos de pais e filhos permanecem reciprocamente inalterados no pós ruptura, o direito de convivência desses, constitucionalmente assegurado, mantém- se incólumes ao desfazerem-se os laços matrimoniais, de sorte que aí já residia a fundamentação legal da guarda compartilhada no Código Civil, mesmo antes da explícita ratificação promovida pela Lei 11.698/08, ao alterar os arts. 1.583 e 1.584 daquele diploma. É a Lei civil garantindo que o direito de convívio de filhos e pais esteja mantido mesmo após os desencontros e dissabores de seus genitores, na condição de casal. O Código Civil estatui que os filhos estão sujeitos ao poder familiar enquanto menores (art. 1.630 54), isto é, desde o nascimento até completarem 18 anos de idade — e isto independentemente da existência ou não de laços conjugais entre seus pais —, sendo que, relativamente ao poder familiar, compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos, tê-los em sua companhia e guarda (art. 1.634, II 55), e mesmo que contraiam novas núpcias ou estabeleçam nova união estável, não perderão os pais, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos do poder familiar (art. 1.636 56), entre tais direitos de ambos os pais, o de guarda. Não se pode olvidar que o art. 1.690 e seu § único57 estabelecem que é da competência de ambos os pais representar e assistir os filhos até que completem a maioridade, sendo que devem decidir em comum as questões relativas a sua prole. É evidente que o atual Código Civil, em seu conjunto de normas, já acolhia e regulamentava a guarda compartilhada. Em nenhum instante tal Lei indicou a guarda unilateral como a única solução possível a ser adotada pelos pais ou pelo juiz, após a ruptura da vida em comum. Se o fizesse estaria operando contra a Constituição, o que é inimaginável. 54 Art. 1.630 – Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores. 55 Art. 1.634 – Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: II – Tê-los em sua companhia e guarda; 56 Art. 1.636 – O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro. 57 Art. 1.690 – Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade, representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los até completarem a maioridade ou serem emancipados. Parágrafo único – Os pais devem decidir em comum as questões relativas aos filhos e a seus bens; havendo divergência, poderá qualquer deles recorrer ao juiz para solução necessária. 104 Os que entendiam que a guarda unilateral seria a modalidade recepcionada pelo Código Civil de 2002, buscaram respaldo no art. 1.584 58, já agora modificado pela nova Lei de Guarda, e no art. 1.589 59, o que parece absolutamente equivocado, porque o primeiro dispositivo apenas estava a afirmar que, nos casos de ruptura da sociedade conjugal, a guarda seria atribuída a quem revelasse melhores condições para exercê-la. O que se via nesse dispositivo era tão só uma das manifestações do princípio do melhor interesse do menor, de modo que, se um dos pais não detivesse boas condições de guardar sua prole, o juiz escolheria o que demonstrasse mais aptidão para tanto. Mas, se ambos desejassem a manutenção integral dos vínculos de convivência e/ou se revelassem boas condições afetivas e morais, estes vínculos deveriam ser sempre assegurados. Já o artigo 1.589 daquele Código afirma que, caso um dos pais não detenha a guarda dos filhos, o que é perfeitamente possível, se a convivência com esse genitor não se revelar saudável aos interesses dos menores, restar-lhe-á, então, o exercício do direito de visitas. Isto não implica numa regra disjuntiva, pois a guarda ou seria atribuída à mãe ou endereçada ao pai. Isso só assegura ao genitor, que por um determinado motivo não detenha a guarda, o direito de visitar os filhos. Para Patrícia Pimentel Ramos, (2005, p.78-79), a fundamentação legal da guarda compartilhada é decorrente do direito constitucional à convivência familiar, e por isso aduz: O direito à convivência familiar é um direito fundamental e constitucionalmente assegurado e vem previsto no art. 227 da Carta Magna, que consiste no direito de ser criado e educado no âmbito da própria família. Há necessidade premente de se buscar uma inter-relação axiológica visando a unidade sistemática e a efetiva realização dos valores estabelecidos na Carta diante do direito infraconstitucional. Frisa-se que decorre do poder familiar a obrigação de estar presente no processo de desenvolvimento do filho. 58 Art. 1.584 – Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja acordo entre as partes quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la. (redação posteriormente alterada pela Lei 11.698/08) 59 Art. 1.589. O pai ou a mãe, cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar a sua manutenção ou educação. 105 Mesmo quando não existia norma explícita sobre a guarda compartilhada, Waldyr Grisard Filho (2005, p.157-158) advogava o entendimento de que esta espécie de guarda já se fazia regulada no direito brasileiro: Embora inexista norma expressa nem seja usual na prática forense, a guarda compartilhada mostra-se lícita e, possível, em nosso direito, como o único meio de assegurar uma estrita igualdade entre os genitores na condução dos filhos, aumentando a disponibilidade do relacionamento com o pai ou a mãe que deixa de morar com a família. Ao ratificar a Convenção sobre os Direitos da Criança, comprometeu-se o Brasil a envidar seu esforços a fim de assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns em relação à educação e desenvolvimento dos filhos, como preocupação fundamental, visando o interesse maior da criança, e aos filhos o direito de conhecer seus pais e de ser cuidado por eles. Nessa perspectiva, e sem grande esforço, garimpamos nas leis vigentes vários dispositivos que mostram a possibilidade de utilização da guarda compartilhada em nosso direito. O referido autor encontra fundamentação legal para a concessão da guarda conjunta nos arts. 226 e 227 da Constituição Federal, que tratam da igualdade de direitos da mulher e do marido e do direito de convivência dos filhos, respectivamente, além de encontrar no Capítulo III do ECA — Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária —, motivações normativas suficientes que autorizam a concessão daquela guarda. Em complemento, o jurista recorre ao Código Civil para dele se respaldar, antes até da reforma ocorrida com o advento da Lei 11.698/08, a previsão da guarda conjunta : Outra lição não se extrai do parágrafo único do art. 1.690, que atribui aos pais decidirem em comum as questões relativas aos filhos e as questões relativas a seu bens, como efeito da conjunção aditiva que une as duas orações. Assim, compete aos pais decidirem em comum as questões relativas à pessoa dos filhos (criação, educação, companhia, e guarda, autorização para casar, representação e assistência) e também decidirem em comum as questões relativas aos bens dos filhos (usufruto e administração). É pois dever jurídico comum dos pais, encargo que a lei atribui, decidir sobre a vida e o patrimônio dos filhos, tanto durante como depois da separação, cabendo ao juiz cobrar-lhes o exercício do múnus desta forma, compartilhadamente. Eis aí o fundamento normativo da guarda compartilhada no novo Código Civil. Infere-se, então, que a guarda compartilhada já se encontrava acolhida em nosso sistema de leis, primeiro porque tem previsão nos valores, princípios e normas 106 constitucionais, notadamente aquelas que se referem à igualdade de gênero e ao direito de convivência de crianças e adolescentes para com sua família; depois porque tanto o ECA como Código Civil — este, mesmo antes da vigência da nova Lei —, concebem dispositivos que cuidam do direito de pais e filhos permanecerem se relacionando como tais, mesmo após o insucesso do casamento/união. Na jurisprudência, inobstante posicionamentos contrários como demonstrado anteriormente, a guarda compartilhada já vinha sendo acolhida por nossos magistrados, confirmando assim a concepção de que o ordenamento jurídico brasileiro pós-Constituição de 1988 sempre contemplou essa modalidade de custódia. Recolhe-se do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, este acórdão Guarda compartilhada. Cabimento. Tendo em vista que o pai trabalha no mesmo prédio que a infante, possuindo um contato diário com a filha, imperioso se mostra que as visitas se realizam de forma livre, uma vez que a própria genitora transige com a possibilidade da ampliação das visitas. Agravo provido por maioria. (AI nº 70018264713, 7ª Câmara Cível, TJRS, Redatora do acórdão Desembargadora Maria Berenice Dias, julgado em 11/04/2007.Disponívelem:<http://www.tj.rs.gov.br/versão_impressao/impres sao.php,> Acesso em: em 23 jan.2008. Reformando sentença de primeira instância, que atribuía a guarda à mãe apenas, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro consumou entendimento em favor da guarda conjunta, assim: Acordo sobre a guarda dos filhos, de forma compartilhada, rechaçada pelo juízo a quo ao fundamento de que, se os menores residirão com a genitora, a guarda deve ser expressamente atribuída à mesma. A família vem sofrendo profundas mudanças em todo o mundo, deixando de ser um simples núcleo econômico e de reprodução para transformar-se num espaço de amor e companheirismo. No momento em que ocorre a separação do casal, desde que haja harmonia, a guarda compartilhada é uma opção madura para a saudável convivência entre filhos e pais separados, já que não se refere apenas à tutela física ou custódia material, mas também a outros atributos da autoridade perental. Em caso de separação ou divórcio consensual, deve ser observado o que os cônjuges acordaram sobre a guarda dos filhos. Inteligência do art. 1.583 do Código Civil. A intervenção estatal na questão só se justifica quando apurado que a convenção não reserva sufucientemente os interesses dos menores, o que não é o caso dos autos. 107 O simples fato da fixação da residência dos menores com a mãe ou um dos pais residirem em bairros distintos ou distantes, por si só, não tem o condão de afastar a intenção dos agravantes de exercerem, conjuntamente, os poderes inerentes ao pátrio poder, de forma igualitária e com a mesma intensidade, participando das grandes decisões relativas às crianças, consagrando o direito dos filhos de serem criados por seus dois pais. Provimento do Agravo. Decisão Unânime (AI nº 2007.002.02406, Desembargador Relator Paulo Maurício Pereira, 9ª Câmara Cível do TJRJ, julgado em 08/05/2007, Disponível em: <http://www.tj.rj.gov.br/scripts/weblink.mgw?MGWLPN=JURIS&LAB=XJRPx WEB&PGM=WEBJRPI,> Acesso em: 23 jan. 2008. Pode-se observar, portanto, que, longe de haver unanimidade, já existia um consenso de que a guarda compartilhada estava albergada pelas leis brasileiras. 5.4.3.2 Mais diretamente sobre a Lei 11.698, de 13/06/2008, que altera os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil e dispõe sobre a guarda unilateral e compartilhada. Conquanto já constassem do sistema normativo brasileiro todos os insumos e diretrizes suficientes para se ter a guarda compartilhada como modalidade de custódia abraçada pelo nosso Direito,, e não obstante já fosse possível extrair da Constituição e de nossas leis a indicação da guarda compartilhada como a preservadora dos princípios da igualdade de gêneros, do direito da convivência familiar e do melhor interesse de crianças e adolescente, ainda assim, se fez necessária (aos olhos de alguns), para tornar indiscutível sua implantação nos casos em que fosse devida, a expressa previsão feita por um dispositivo legal. Isto é fruto do excesso de positivismo europeu do Século XIX que freqüentou nossas faculdades de Direito, nossos livros e nossa cultura jurídica como um todo. Chega a parecer que se tem mais sede de leis do que de justiça., isso porque grande parte de juristas e operadores no Brasil pensa e entende Direito como sinônimo de Lei, sem perceberem que a Lei é ou pode ser um referencial, em maior ou menor intensidade, mas não se esgota em si mesma. Em breve investigação Luis Roberto Barroso (2007, p. 3) reconhece a força e o poder da lei no cenário do positivismo jurídico, mas constata seu declínio. 108 O jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do séc. XVI, aproximou a lei da razão e transformou-se na filosofia natural do direito. Fundado na crença em princípios de justiça universalmente válidos, foi o combustível das revoluções liberais e chegou ao apogeu com as Constituições escritas e as codificações. Considerado metafísico e anti-científico, o direito natural foi empurrado para a margem da história pela ascensão do positivismo jurídico, no final do séc. XIX. Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente anunciada com o fim do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da lei. Lênio Streck (2005, p. 18) coloca a lei não como um modelo que se completa, mas como um enunciado capaz de potencializar o direito; a abrir espaços ao seu fazimento Isto porque o texto, preceito ou enunciado normativo é alográfico. Não se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. A interpretação do Direito faz a conexão entre o aspecto geral do texto normativo e a sua aplicação particular: ou seja, opera sua inserção no mundo da vida e a ordem jurídica, em seu valor histórico concreto, é um conjunto de interpretações. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é uma ordem jurídica apenas potencialmente, é um conjunto de possibilidades, um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Os intérpretes e aplicadores do Direito já dispunham de bastante material que proporcionava a convicção de que o sistema jurídico brasileiro, com seus princípios e valores, possibilitava e autorizava o deferimento da guarda compartilhada. Mas o legislador, talvez pelas razões expostas, editou um texto legal que evidenciou redundantemente, pois tal espécie de custódia está concebida em nosso Direito. Assim, pelas recalcitrâncias ao entendimento de que a guarda conjunta já habitava nosso ordenamento jurídico desde a promulgação da Constituição de 1988 e também para dar ênfase à necessidade de sua aplicação, sempre que for a espécie de guarda mais adequada aos interesses do menor, é que foi sancionada a Lei em epígrafe, a qual deu novas redações ao anterior teor dos arts. 1.583 e 1.584 do 109 Código Civil 60. De todo modo, é melhor que tenha sido editada esta Lei porque, mesmo que não seja totalmente inovadora, obriga os renitentes a reconhecerem o que já estava posto difusamente no sistema, e isto é relevante porque tem como principais destinatários nossas crianças e adolescentes, carentes do reconhecimento do seu direito de convivência. Aqueles dispositivos passaram a vigorar com a seguinte redação: Art. 1º - Os arts. 1.583 e 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – do Código Civil passam a vigorar com a seguinte redação: "Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores, ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada, a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres, do pai e da mãe, que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II - saúde e segurança; III - educação. § 3º A guarda unilateral obriga o pai, ou a mãe, que não a detenha, a supervisionar os interesses dos filhos. "Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: I - requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma, de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. § 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. § 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. § 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução 60 Esta é a redação dos arts 1.583 e 1.584 do Código Civil, anterior à Lei 11.698/08 que lhes alterou: Art. 1. 583 – No caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal pela separação judicial por mútuo consentimento ou pelo divórcio direto consensual, observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda de filhos. Art. 1.584 – Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la. Parágrafo único. Verificando que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, de preferência levando em conta o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade, de acordo com o disposto na lei específica. 110 de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. § 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade." Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos 60 (sessenta) dias de sua publicação. Destarte, pelo que dispõe essa Lei, a guarda compartilhada passa a ser a regra em termos de modalidade de custódia e a ter tratamento nominalmente explícito no Código Civil, em que se define este modelo de guarda (art. 1.583, § 1º) como sendo a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres, do pai e da mãe, que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. Observou-se que, pelo Código atual, entre as atribuições do poder familiar encontra- se o de guarda (art. 1.634, II61), de modo que, sem inovar, a Lei 11.698/08 apenas torna didaticamente evidente que, sendo o poder familiar inerente aos dois pais, durante e depois de dissolvido o casamento/união, e que, sendo a guarda um de seus atributos, continuarão, o poder parental e a guarda, competindo aos pais, mesmo que não estejam mais unidos sob o mesmo teto. Desse modo, essa espécie de custódia que já estava contida no sistema infraconstitucional (CC e ECA), na Constituição e aceita pela maioria da doutrina e da jurisprudência, passa a constar expressamente no Código Civil, com regulamentação mais detalhada. O parágrafo segundo do art. 1.583 não traz novidades, senão o fato de inserir no Código, agora de forma manifesta, o afeto como um dos pressupostos da concessão da guarda. O seu parágrafo terceiro também não inova, apenas alerta para o fato de que a guarda unilateral não desobriga o pai ou a mãe não guardião de exercer os poderes/deveres inerentes ao poder familiar. Já na nova redação que a Lei imprime ao art 1.584 se lê que a guarda compartilhada pode ser requerida por apenas um dos pais em ação autônoma ou como pedido adicional em ação de divórcio, separação, dissolução de união estável ou cautelar (inc. I). Com isto se constata a crença do novo legislador na possibilidade da concessão da guarda conjunta, ainda que contra a vontade de um dos ex- 61 Art. 1.634 – Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: II - tê-los em sua companhia e guarda. 111 conviventes. Se a ação com vistas a tutelar a guarda compartilhada pode ser requerida por apenas um dos pais, é certo que o outro seja o réu, por isso não estaria a concordar com a pretensão de compartilhamento do genitor acionante. Neste caso, o juiz analisará a postulação, os motivos da recusa da custódia compartilhada, realizará a instrução que se fizer necessária e, considerando também a igualdade de gênero, fundamentará sua decisão conforme o melhor interesse do filho, de modo que poderá ser procedente o pedido da guarda conjunta, mesmo em desacordo com a vontade do genitor demandado. Com isto, parece que o fato da dissolução ser litigiosa, pontuada por conflitos entre os pais, não significa, necessariamente, que a guarda compartilhada não pudesse ser deferida. Ou, por outras palavras, o acordo prévio do casal sobre a custódia dos filhos não é requisito à concessão da guarda conjunta. Consolidando esse entendimento, o parágrafo segundo do art. 1.584 determina que “quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”. A guarda compartilhada passa a ser a regra. Se os pais consensarem, ele será compartilhada, mas se não acordarem quanto ao compartilhamento, ainda assim, o juiz, sempre que for possível, buscará meios de fixar a guarda conjunta. Além de poder ser a guarda, unilateral ou compartilhada, requerida pelos cônjuges ou por um deles apenas, como se observa do artigo ora comentado, existe outro aspecto muito interessante e inovador deste dispositivo: a assertiva de que a guarda, além de requerida pela iniciativa dos genitores, poderá ser também decretada pelo juiz, conforme texto do II do art. 1.584, e, ao que parece de ofício. De início, é oportuno ressaltar que, em face do princípio da inércia (art. 2º e 262 do CPC 62), o juiz só decretará a guarda, seja ela em que modalidade for, no curso de uma ação já proposta pelas pessoas legitimadas e referidas naquele dispositivo. Ou seja, é preciso que um dos pais proponha ação de divórcio ou separação ou dissolução de união estável para que o juiz possa pronunciar-se sobre a concessão da guarda. 62 Art. 2º do CPC: Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional, senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais. Art. 262 do CPC: O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial 112 Mas a dúvida que subsiste é a seguinte: poderia mesmo o magistrado deferi-la ex- officio? E ainda: concedendo a guarda de ofício, estaria julgando extra petita? Ao que se percebe da nova regra, ela está a permitir a definição e concessão da guarda, também independentemente do requerimento dos pais, no bojo de uma ação de divórcio/separação/dissolução já em curso. Chega-se a esta conclusão porque, primeiramente, há que se ter em mente que não seria necessário constar da nova redação do dispositivo que o juiz está autorizado a decretar a guarda, uma vez que, em razão de ter sido provocado pelo demandante, o magistrado já estaria obrigado a se posicionar sobre a decretação ou não da custódia, posto que o direito de ação é constitucionalmente garantido e para o qual corresponde o dever estatal de prestar jurisdição (art. 5º, XXXV 63, da CF). Desse modo, a decretação ou não da guarda é uma conseqüência natural e necessária da provocação jurisdicional e, assim, não precisaria constar da Lei autorização para que o juiz, uma vez provocado, pudesse deferir a guarda. Se o novo legislador verbaliza explicitamente que o juiz pode decretar a custódia, é porque o está autorizando a fazê-lo de modo próprio ou de ofício, como se costuma dizer, quando verificar, conforme dito no mencionado inciso II, a necessidade específica da distribuição do tempo necessário ao convívio do filho com os pais. Assim, se o juiz verificar, por sua própria percepção e independentemente de pleito da parte, que a melhor solução para a criança é que ele defina e decrete de logo a guarda unilateral ou compartilhada — o que pode acontecer no início ou no transcorrer do processo, ou mesmo em concomitância com a sentença de separação/divórcio/dissolução —, o fará autorizado agora pelo CC e em nome do melhor interesse da criança/adolescente, do princípio da proteção integral (arts. 1º, 63 CF, art. 5º - Todos os brasileiros são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito 44Art 1º do ECA: Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Art. 4º do ECA: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 113 4º e 22º do ECA64) e, ainda, da dignidade da pessoa humana infanto-juvenil (art. 18 do ECA65). Destarte, estaria o juiz autorizado a conceder uma tutela de mérito, independentemente de provocação dos litigantes, o que se traduziria como mais uma das poucas exceções ao princípio da congruência ou da correlação, capitulado nos arts. 128 e 460 do Código de Processo Civil 66. Este princípio, como se sabe, proíbe que o magistrado conheça e decida sobre questões não suscitadas pelas partes no processo, e por cujo respeito à lei exige que elas tomem a iniciativa, para que se estabeleça uma congruência/correlação entre o que as partes postulam e o que o juiz julga, de modo a proporcionar condições para a manutenção da sua imparcialidade diante do caso concreto. Não seria a primeira vez, todavia, que o legislador nacional admite que o juiz conceda tutela de mérito mesmo que não pleiteada pelos litigantes ou pela diversa daquela por eles requerida. Já se tem a regra excepcional do art. 461 e do seu § 5º, do CPC 67, que autoriza ao julgador, nas ações que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, se procedente o pedido, determinar outras providências que garantam o resultado prático equivalente, de modo que o juiz já estaria nestes casos autorizado proceder julgamento exta petita, pelo sistema do Código de Processo Civil. Fredie Didier Júnior, Rafael Oliveira e Paula Sarno (2007, p.325-326; p. 344) falam dessa regra excepcional contida no CPC, proclamando que Art. 22 do ECA: Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. 65 Art. 18 do ECA: É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, podo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. 66 Art. 128 do CPC: O juiz decidirá a lide nos termos em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige iniciativa das partes. Art. 460 do CPC: É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que foi demandado. 67 Art. 461 do CPC: Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providencias que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 5º - Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com o requisito de força policial. 114 Daí se vê que, embora haja uma prioridade na busca e na concessão da tutela específica, o caput do art. 461 do CPC autoriza que o magistrado, à luz do caso concreto, ponderando os valores em jogo, tome providências no sentido de garantir ao credor um resultado prático equivalente ao que obteria com a tutela específica ou com o adimplemento voluntário da obrigação imposta. Essa via alternativa — que deve ser trilhada como rota subsidiária e excepcional —, configura exceção ao princípio legal da congruência objetiva, segundo o qual a decisão deve ficar adstrita ao pedido formulado pela parte, na medida em que permite ao magistrado transbordar- se dos limites objetivos fixados até mesmo no pedido mediato (bem da vida) formulado pelo demandante. Além de poder conceder o resultado prático equivalente ao do adimplemento, nos casos em que isso é mais conveniente que a concessão da tutela específica, o magistrado também não se adstringe ao pedido formulado pelo autor quanto à escolha da medida coercitiva que tenha por escopo dar efetividade ao comando decisório. Esta é a noção que se pode extrair da leitura do § 5º do art. 461 do CPC. Em verdade, essa regra excepcional do CPC já corresponde ao que o Código de Defesa do Consumidor previa em seu art. 84, §§ 1º e 5º 68, desde os primórdios da década de 90. Desse modo, o inc. II do art. 1.584 em referência, capturando precedentes da própria legislação, estaria também a autorizar que o juiz, na peculiar circunstância da guarda de filhos, realizasse o julgamento extra petita, concedendo a tutela de custódia de filhos, mesmo sem ter sido provocado pelos pais. Outra precedência em desfavor do princípio da congruência/correlação reside na Lei 8.560, de 29 de dezembro de 1992, conforme mencionado por José Roberto Bedaque (2002, p.36)69, que dispõe sobre investigação de paternidade de filhos fora do casamento e em seu art. 7º que determina: “sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisórios ou definitivos do reconhecido que deles necessite”, donde se vê que basta que seja esclarecida a paternidade para que o juiz ordene o pagamento de pensão alimentícia, independentemente de requerimento do reconhecido. 68 Art. 84 do CDC: Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providencias que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º - A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. § 5º - Para a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial. 69 Para Bedaque “hipótese mais evidente de julgamento ultra petita, expressamente admitido pelo sistema é, sem dúvida, a tutela condenatória ex officio versando pensão alimentícia, em demanda com pedido exclusivamente declaratório de reconhecimento de paternidade (Lei 8.560, de 29.12.1992, art. 7º)”. 115 Ainda com relativa similitude à concessão de decisão de mérito pelo juiz, ex officio, protetiva de direitos do menor como a que ora se comenta, a Lei de Alimentos (nº. 5.478/68) prevê em seu art. 4º 70 que o juiz fixará desde o início da demanda os alimentos provisórios. É verdade que neste caso os alimentos já foram requeridos na petição inicial, mas, mesmo que não tenha sido formulado pedido de pagamento liminar da verba alimentícia, firmou-se na doutrina e na jurisprudência71 que a antecipação da tutela alimentar pode ser deferida desde logo, com base no dispositivo mencionado, ex officio pelo juiz. É típica antecipação de tutela sem requerimento da parte, o que diverge no enunciado pelo caput do art 27372 do CPC. Percebe-se que em alguns casos que versam sobre direitos indisponíveis, como na hipótese de alimentos da Lei 8.560/92 antes referida e agora também na guarda de menores, pela dicção do mencionado inc. II do art. 1.584, o princípio da congruência é mitigado. Mas, saliente-se, a concessão de tutela de ofício deve ser precedida, como regra, da possibilidade do exercício do contraditório às partes, sob pena de violação ao preceito do art. 5º, LV73, da CF, que pugna pelo direito do contraditório e da ampla defesa inerente a todos os litigantes. Por conseguinte, se, na hipótese de decretação da guarda de ofício o juiz verificar, pelas circunstâncias dos autos, que precisa regulamentar e deferir a guarda ou o tempo de sua distribuição entre os consortes, informará às partes sobre a necessidade de solução da custódia na direção do melhor interesse da criança/adolescente e, decorrido o prazo assinado para a manifestação dos litigantes, poderá decretar a guarda ex officio, com ou sem o pronunciamento dos pais. 70 Art. 4º da LA: Ao despachar o pedido, o juiz fixará desde logo os alimentos provisórios, a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita. 71 Sobre a antecipação de alimentos ex officio, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Nery salientam que “devem ser fixados de ofício pelo juiz, quando despachar a petição inicial. Têm natureza de adiantamento da tutela de mérito (tutela antecipatória). A presunção é a de que o autor precisa dos alimentos provisórios, devendo o juiz fixá-los ex officio ao despachar a inicial”(Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. São Paulo: RT, 2006, p. 689). Na jurisprudência, neste mesmo sentido a Revista Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nº 104/44. 72 Art. 273 do CPC: O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: 73 Art. 5º, LV, da CF: Art. 5º - … LV – Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 116 Aliás, acerca da excepcional decisão de mérito ex officio, José Roberto Bedaque (2002, 36/38) constata em seus estudos sobre a correlação da causa de pedir e o pedido com a sentença, o seguinte Sustenta-se mesmo, talvez com certa dose de exagero, que o princípio da congruência encontra-se em crise e tendente a desaparecer do sistema. Nessa linha, chega-se a sugerir, de forma ampla e genérica, a possibilidade de o julgador considerar fatos não postos na inicial (cf. Jairo Parra Quijano). A correlação, é preciso deixar claro, não pode ser considerada um dogma inafastável. Daí porque a eventual transgressão às regras da correlação entre a demanda e o provimento somente será considerada como fator de nulidade do processo se impedir a realização plena do contraditório. Por fim, observa-se que as regras da adstrição ou da correlação da sentença ao pedido estão relacionadas fundamentalmente com a matéria fática. Isso porque a correta aplicação das normas jurídicas é função do juiz, que sequer está vinculado ao direito invocado pelas partes. Cremos, então, que o citado dispositivo autoriza a possibilidade da concessão ex officio da guarda, mas atendidos o contraditório e a ampla defesa, garantias dos litigantes que só podem ser diferidas, e excepcionalmente postergadas para um momento ulterior, caso o maior interesse dos filhos sofra ameaça de dano irreparável ou de reparação difícil, diante do que o juiz decretará a guarda inaudita altera pars e, após, intimará as partes da decretação. Nesse caso, a fundada ameaça de ineficácia da aplicação de medidas que assegurem os princípios da proteção integral e do melhor interesse do menor é bastante para ensejar a projeção do contraditório do genitor ou genitores para uma etapa posterior àquela da decisão ex offício, de sorte que assim restará plenamente assegurada a dignidade da pessoa da criança ou adolescente. O principal valor a tutelar é o interesse maior da criança/adolescente; é este o valor a ser sopesado e priorizado pelo juiz. O parágrafo segundo do art. 1.584 traz nítida opção da Lei pela guarda compartilhada, como espécie de custódia a ser concedida de ordinário. Pelo dispositivo, a guarda será sempre compartilhada, seja em caso de separação consensual ou litigiosa, seja em caso de consenso ou não dos pais a respeito da custódia. Se for possível, ou seja, se for compatível com o melhor interesse da criança, a guarda deverá ser sempre conjunta. É salutar essa disposição expressa 117 da norma porque evidencia, de uma vez por todas, que a crise da conjugalidade não implica necessariamente na relação parental de pais e filhos. Relativamente à instrução processual, isto é, à coleta de provas, o § 3º do art. 1.584 traz para o Código Civil providência já prevista no ECA (art. 151 74), quando afirma que “para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou equipe interdisciplinar”. Registre-se, inicialmente, a omissão do dispositivo quanto ao direito das próprias partes, pai e mãe, de requererem também a prova pericial realizada por técnico- profissional ou por equipe interdisciplinar. Este é um direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, constitucionalmente consagrado (art. 5º, LV, da CF), que não pode ser ceifado dos litigantes. Portanto, em que pese o silencio da Lei é certo que os genitores poderão requerer que profissionais especializados em ciências afins (psicologia, psiquiatria, pedagogia, assistência social, sociologia, etc) façam seu estudos no caso concreto e elaborem seus pareceres/laudos a fim de dar essencial fundamento às decisões do juiz. No mais, é muito salutar a introdução de importante medida de instrução interdisciplinar no Código Civil, mas não é inovadora no ordenamento jurídico porque, como já referido, prevista no ECA há quase duas décadas, motivo pelo qual já vem sendo inclusive adotada em alguns julgamentos de nossos tribunais. Mais adiante, ao nos referirmos à dilação probatória nas ações de guarda de filhos, faremos mais alguns comentários sobre a prova pericial técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. 74 Art. 151 do ECA: Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudo ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico”. Quando o artigo 151 menciona autoridade judiciária está se referindo à figura do juiz de direito, consoante estabelecido no art. 146 do ECA, que pugna: “A autoridade a que se refere esta Lei é o Juiz da Infância e da Juventude ou o Juiz que exerce essa função, na forma de Lei de Organização Judiciária local”. Ao que me parece, seria muito mais razoável que em todos os dispositivos que se fizesse referência à atuação da autoridade judiciária fosse ela apenas designada simplesmente como juiz. 118 Seriam estas ligeiras considerações sobre a Lei 11.698/08, que, certamente, será objeto ainda de muito debate em torno do seu alcance e significado. 5.4.3.3 Guarda compartilhada pressupõe consenso dos pais? Esta é uma questão nodal. É, sim, um nó difícil de ser desatado pelos que operam com o direito e pelos profissionais que os subsidiam. Pela nova Lei de Guarda, conforme o § 2º do art. 1.584, quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. Mas quando é que será possível a aplicação da guarda conjunta para pais em desacordo? Se formos pelas palavras da jurisprudência e pela parte da doutrina até então disponíveis seremos levados a constatar que guarda conjunta depende do consenso e aceitação dos pais. É pré-requisito à sua concessão que ambos os pais estejam em harmonia; que vivam em um ambiente conciliatório e propício à divisão eqüitativa da guarda. Se os ânimos dos consortes se mostrarem conflituosos em relação ao casamento em vias de dissolução ou já faticamente acabado; se há discórdia quanto à partilha do patrimônio ou se buscam responsabilizarem-se pela crise existencial e desfazimento do matrimônio e pela dilaceração do afeto de antes ou, ainda se um deles não concorda em repartir com o outro a convivência com os filhos, não há porque se cogitar do estabelecimento da guarda compartilhada. O conflito dos pais se espraia de tal modo que, perpassando a esfera do casal, atingiria os vínculos relacionais destes com seus filhos, maculando-os também. São muitos os acórdãos neste sentido, proferidos pelos mais diversos tribunais brasileiros. Este é o pensamento predominante de nossos juízes, até antes a edição da Lei 11.698/08. Por amostragem, começamos por Sergipe, onde seu Tribunal de Justiça tem firmado que Apelação Cível. Ação de separação judicial litigiosa. Guarda compartilhada. Convivência desarmoniosa entre os genitores. Consoante entendimento assente em nossos Tribunais pátrios, a guarda compartilhada se mostra recomendável somente quando entre os genitores houver relação pacífica e cordial, hipótese inocorrente nos autos. 119 Presente a litigiosidade entre os pais, não há como se acolher o pedido, impondo-se manter a guarda deferida com exclusividade ao genitor. (ApCv 2007204406, TJSE, rel. Desembargador José Alves Neto, julgamento em 16/07/2007. Disponível em: < http://www.tj.se.gov.br/tjnet/jurisprudencia/processo.wsp >. Acesso em:, em 23 jan.2008. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem-se manifestado pelo mesmo fundamento Medida cautelar postulada pelo Genitor, convertida em ação ordinária de posse e guarda. Sentença de improcedência. Apelação pleiteando a modificação da guarda ou seu compartilhamento. Impossibilidade. A definição da guarda não deve ter em conta a conveniência dos pais, mas o interesse da criança. A adoção do sistema de guarda compartilhada só é recomendável se existir entre os genitores uma relação marcada pela harmonia, onde não existem disputas nem conflitos. O equilíbrio na relação entre as partes é requisito indispensável para a concessão desse modelo de guarda, sob pena de ser, ao contrário do esperado, prejudicial ao infante. Apelação a que se nega provimento. (ApCv 2007.001.18864, 16ª Câmara Cível do TJRJ, rel. Desembargador Agostinho Teixeira de Almeida Filho, julgamento em 11/09/2007.Disponível em:<http://www.tj.rj.gov.br/scripts/weblink.mgw>. Acesseo em: 23 jan./2008. Civil. Família. Guarda de filho. Interesse do menor. Permanência com a mãe. Visitação deferida ao pai. A fundamental presença paterna na formação e educação dos filhos, aliada à extensa prova produzida pelas partes, autoriza a deferir a visitação da filha ao pai, nos termos determinados na sentença, notadamente considerando que o laudo pericial e o estudo social nada apontam de grave capaz de obstar a relação entre pais e filha. Somente se defere a guarda compartilhada quando os pais estão de acordo e convivem em harmonia, a fim de evitar problemas que possam desestabilizar a menor. (ApCv 2006.001.12762, 17ª Câmara Cível do TJRJ, relator Desembargador Henrique de Andrade Figueira, julgamento em 16/07/2006. dsiponível em:<http://www.tj.rj.gov.br/scripts/weblink.mgw>..Acesso em: 23 jan. 2008. No Rio Grande do Sul, o TJRS caminha pela mesma trilha da inadmissibilidade da guarda conjunta quando houver animosidade do casal em processo de separação. Guarda compartilhada ou visitação livres Indeferimento. Havendo animosidade entre o casal separando, desaconselhável a guarda compartilhada ou a visitação livre do pai aos filhos menores, mantendo-se a estipulação feita na decisão hostilizada, de fins de semana alternados. 120 Agravo de Instrumento desprovido. (AI 70015113707, relator Desembargador José Ataídes Siqueira Trindade. Julgamento em 22/06/2006.Disponível em:<http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php >.Acesso em: 23 jan.2008. Apelação Cível. União estável. Guarda compartilhada. Descabimento, no caso concreto. Consoante entendimento assente nesta Corte, a guarda compartilhada se mostra recomendável somente quando entre os genitores houver relação pacífica e cordial, hipótese inocorrente nos autos. Presente a litigiosidade entre os pais, não há como se acolher o pedido, impondo-se manter a guarda deferida exclusivamente à genitora. Ainda que se reconheça a importância do convívio da menor com o pai e com os avós paternos, merece acolhida o pedido da requerida quanto à redução das visitas semanais acordadas em audiência, para um pernoite, atento a que dois pernoites durante a semana importam em muitos deslocamentos e alteração na rotina de uma criança, acabando por ser contra-producente ao seu desenvolvimento, considerando que as visitas se dão também em finais de semana alterados e tendo em conta, ainda, a beligerância existente entre os genitores, que não se toleram nem mesmo quando do apanhamento e devolução da menor (ApCv 70018528612, 7º Câmara Cível do TJRS, rel. Desembargador Ricardo Raupp Ruschel, julgamento em 23/05/2007. Disponívelem:<http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php>.Acess o em: 23 jan.2008. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais confirma a jurisprudência dos demais Tribunais Separação Judicial Consensual. Guarda compartilhada. Ajuste entre o casal. Possibilidade. Não é a conveniência dos pais que deve orientar a definição da guarda, e sim o interesse do menor. A denominada guarda compartilhada não consiste em transformar o filho em objeto à disposição da cada genitor por certo tempo, devendo ser uma forma harmônica ajustada pelos pais, que permita a ele (filho) desfrutar tanto da companhia paterna como da materna, num regime de visitação bastante amplo e flexível, mas sem perder suas referências de moradia. Não traz ela (guarda compartilhada) maior prejuízo para os filhos do que a própria separação dos pais. É imprescindível que exista entre eles (pais) uma relação marcada pela harmonia e pelo respeito, na qual não existam disputas nem conflitos. (ApCv1.0000.00.300938-8/000 (1), rel. Desembargador Hyparco Immesi, julgado em 24/02/2005.Disponível em:<http://www.tjmg.gov.br/juridico/jt_/juris_resultado.jsp?acordaoEmenta=a cordao&todas=guarda+comparti >. Acesso em: 23 jan. 2008. Os tribunais brasileiros têm perfilhado o entendimento de que haveria uma correlação necessária entre a harmonia e a cordialidade do casal e a possibilidade da concessão da guarda conjunta. Se os ex-consortes encontram-se numa melindrosa situação em que os ânimos estão acirrados, em razão do insucesso que 121 obtiveram em seu casamento, isto é motivo bastante à denegação daquela espécie de custódia. Parcela da doutrina defende a mesma concepção. Entoando o eco da jurisprudência, Rolf Madaleno (2004,p. 91-92) assegura que A guarda conjunta não é modalidade aberta ao processo litigioso de disputa da companhia física dos filhos, pois pressupõe para o seu implemento, total e harmônico consenso dos pais. A guarda compartilhada exige dos genitores um juízo de ponderação, imbuídos da tarefa de priorizarem apenas os interesses de seus filhos comuns, e não o interesse egoísta dos pais. Como a guarda compartilhada pressupõe o consenso, que não podem exercê-la casais separados, que não mantenham qualquer diálogo e relação de espontâneo entendimento, com espíritos pacificados pela total resolução das diferenças, e das represadas, que precisam ser desfeitas a tempo de permitir a serena adoção da guarda conjunta, só praticável por mútuo consenso. Em consonância Pedro Augusto L. Carcereri (2001,p.47), ainda na vigência do atual CC sem as alterações da Lei de Guarda, chega mesmo a afirmar que a sentença judicial não pode impor à parte o exercício de um direito subjetivo. Seria, na verdade, diz o autor, atribuir um dever que, no caso da guarda conjunta, por não possuir respaldo legal, ofenderia o princípio constitucional de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei (CF, art. 5º, II)”. Desse modo, só com o consenso do casal seria possível ao juiz deferir a custódia conjunta. Visualizando graves problemas na manutenção da guarda compartilhada por casais conflituosos, Marilene Silveira Guimarães (2004, p. 5-6) justifica: A falta de hierarquia (relativa ao poder familiar) nas decisões relativas à vida do filho exige dos genitores uma maturidade e um legítimo interesse pelo bem estar da criança e do adolescente, assim como um profundo respeito e o desejo de colaborar com o ex-cônjuge, sob pena de o arranjo não funcionar e os pais viveram acorrendo ao judiciário para resolver as questões mais simples da vida cotidiana, como a opção pela escola ou a sua melhor criação e educação. Sempre que os pais conseguirem ser participativos na vida dos filhos, envolvendo-se diretamente com sua educação e seus interesses, quem ganha são os filhos, e o genitor consegue viver plenamente a ventura da parentalidade. 122 Portanto, apesar das vantagens já apontadas, a guarda compartilhada não é solução recomendável para todos os casais, principalmente se faltar comunicação e respeito entre os genitores. Se o litígio conjugal for muito acirrado, a guarda compartilhada jamais será possível. Após fazer algumas considerações sobre quem seria melhor para decidir a respeito da guarda — se os pais em comum acordo ou se por imposição do Judiciário diante do conflito conjugal —, Waldyr Grisard Filho. (2002, p.1 p.4) pondera: A questão deve ser analisada incluindo-se todos os interessados, menores e cada um de seus pais, para que a solução dada seja aquela que mais beneficiar os filhos, mas também complete os pais, a fim de que nenhum deles negligencie da criação e da educação dos filhos. A solução desta questão encontra duas vertentes: ou se a resolve da forma privada ou nela interfere o Judiciário impondo uma decisão. Não há dúvida de que a resolução acordada entre os pais é a melhor, pois evita o conflito e seus reflexos negativos sobre a pessoa dos filhos. Porém, como decidir sobre a guarda — em qualquer modelo usual —, é do supremo interesse dos pais, pois ninguém melhor do que eles é capaz de salvaguardar o interesse dos filhos, cabe-lhes, com primazia, a solução a ser confirmada posteriormente pela homologação judicial. O consenso parental sobre a guarda de filhos menores, constituindo parâmetro auxiliar ao consentimento judicial, evita os conflitos que possam estabelecer-se em torno dessa tormentosa questão. De mais a mais, o acordo é mesmo desejado pelo texto legal (art. 1.121, II, do CPC). A imposição de uma decisão judicial — repita-se, em qualquer modelo usual —, é a menos desejável, porque alheia, estranha mesmo, ao ambiente familiar, como enfatiza Eduardo de Oliveira Leite. Volta-se a fazer a afirmativa da qual se lançou mão na primeira linha desse capítulo: Esta é uma questão nodal. É de difícil resolução e exige muita acuidade e reflexão dos pais e de todos os profissionais que vão atuar no processo de separação/divórcio/dissolução de união ou da definição judicial de guarda, tais como os juízes — principalmente —, além de promotores, advogados e da equipe multidisciplinar. Ao lado dos que entendem que a existência de conflito e desavenças do casal em processo de separação litigiosa seja obstáculo à concessão da guarda compartilhada, existe quem arrazoe de modo diverso, pugnando pela possibilidade de dar acesso à guarda do filho a um dos genitores (também) mesmo que com o 123 outro mantenha a animosidade que costuma povoar em derredor dos casais em processo de dissolução ou com os casamentos já dissolvidos. Para Leila Torraca de Brito (2004, 364-365), a guarda conjunta funciona como um sólido suporte, uma ancoragem social para o exercício da paternidade, portanto, sua prática deve ser estimulada tanto no litígio quanto no consenso, até porque muitos litígios acontecem em razão da contrariedade de os pais serem colocados como visitantes. E assim adverte aquela pesquisadora do Instituto de Psicologia da UERJ Não há que pensar que a guarda conjunta só pode ocorrer em ocasiões especiais ou quando os pais concordam em relação a toda a educação da criança, quem sabe quando ainda representam uma só voz. Conclui-se que a exigência de um bom relacionamento entre os pais para a aplicação da guarda conjunta, ou, ainda, a idéia da necessidade de um comando único remonta a um ideal de conjugalidade que não faz parte de nosso contexto. Agora, a isonomia reconhecida entre o pai e a mãe aponta para a igualdade de direitos, mas reconhece, ou permite que as diferenças entre os dois sujeitos distintos, singulares, sejam evocadas. Vislumbra-se, pelo visto, que, há, ainda de forma subjacente, a idéia de que a harmonia ou não do casal guarda correspectividade necessária com a harmonia ou não das relações pais e filhos, de modo que se o casal fala uma só voz, mesmo na dolorosa crise da ruptura, os vínculos com a filiação serão também harmoniosos. Se, do contrário, o casal apresenta desavenças e discórdias entre a forma de pensar de cada um em face do casamento que míngua ou que já sucumbiu, resta à guarda conjunta as indesejáveis cores dessa discórdia, portanto desaconselhável. Percebe- se que a conjugalidade (mulher X marido) está aí muito associada à parentalidade (pais X filhos), sendo aquela determinante desta. O foco nesse contexto é o casal; os filhos o secundam. Esta mixagem dos papeis de casal X pais X filhos já vimos no passado, e com a cumplicidade e o aval da lei (item 4.1 desse trabalho). Essa simbiose das funções marido/mulher com as atribuições pais/filhos já foi posta pela sociedade e referendada, com o louvor do texto do Código Civil revogado e pela Lei do Divórcio, quando relacionavam o bom ou mau desempenho do casal ao bom ou mau desempenho dos pais e, justo por isso, proibia-se ao genitor, considerado 124 responsável pela separação, isto é, aquele que não teria tido talento para manter o matrimônio, de poder ter os filhos em sua guarda. Era como uma morte anunciada: se um dos consortes foi o culpado pela separação, como concebê-lo exitoso na relação com seus filhos? Uma má esposa jamais seria uma boa mãe e um mau marido nunca poderia ser um bom pai. Daí porque o Código Civil de 1916 não vacilou em vedar a esse genitor a possibilidade de pleitear a guarda da prole, já que tudo isso evidenciava um mapeamento impreciso e confuso sobre os limites da conjugalidade e os espaços da parentalidade. Refletir sobre como a indissociabilidade de marido/mulher e de pais/filhos ainda pode estar, latentemente, impregnada no imaginário dos operadores do direito, impulsiona-os resistir à separação dos papéis. Pensam: se os casais, em sua conjugalidade, não estão a interpretar seus scripts com o talento esperado, não saberão desempenhar, no campo da parentalidade, os papéis de pais. Para nossos tribunais e parte da doutrina, pelo que se constataram passos atrás, só quem se separaria sem litígios, sem mágoas, sem conflitos, sem dores, sem ressentimentos, sem desnudar os defeitos do outro, sem reconhecer-se fracassado, incapaz ou acuado seria capaz de compartilhar a guarda dos filhos com o ex-cônjuge. Mas quem é que se separa sem litígios, sem mágoas, sem conflitos, sem dores, sem ressentimentos, sem desnudar os defeitos do outro, sem reconhecer-se fracassado, incapaz ou acuado?! Quem não é tomado por um grande vazio, que massacra a alma. Fernando Pessoa (1996, p.81) bem relata: Onde pus esperança, as rosas murcharam logo. Na casa, onde fui habitar, O jardim que eu amei por ser Ali o melhor lugar, E por quem essa casa amei — Deserto o achei, E, quando o tive, sem razão pra o ter Onde pus afeição, secou A fonte logo. Da floresta, que fui buscar Por essa fonte ali tecer Seu canto de rezar — Quando penetrei, Só o lugar achei Da fonte seca, inútil de se ter Pra que, pois, afeição, esperança Se perco, logo Crer ou amar — Até à raiz, do peito onde alberguei 125 Tais sonhos e os gozei, O vento arranque e leve onde quiser E eu não os possa achar. Essa separação pacífica e harmoniosa, propagada pelo ideal-delirante que se vê na jurisprudência ou doutrina, parece não condizer com a realidade que cerca homens e mulheres em seus ‘desrelacionamentos’. As separações são problemáticas mesmo, senão não aconteceriam. Separações sinalizam perdas e perdas são perdas, algo que se desejou, que até se teve e que se foi. Ninguém aceita isto com prazer, irresignadamente. Não que se pretenda reduzir o conflito dos pais na fase de ruptura ou pós-ruptura à banalidade, negando que tais embates não reflitam nas suas relações com os filhos e, conseqüentemente, no comportamento patológico destes ou daqueles. Não é isto que se afirma, não. O que se quer destacar é que os confrontos, as diferenças e a desarmonia são inerentes à crítica passagem pelos caminhos do desenlace afetivo/conjugal, e vão-se esmaecendo com as marcas do tempo, de modo que o argumento apressado e superficial dos tribunais, de que o litígio do casal é causa para negação da guarda conjunta soa, pelo menos, minimalista. O grande problema reside em saber se o Poder Judiciário pode enfrentar essa questão e, se pode promover resultados práticos efetivos em prol da proteção integral e do melhor interesse do infante. É preciso compreender que o conflito é algo com o que o homem convive por toda a sua existência, primeiro em relação a si próprio e depois em face de seus pares. Conforme ressalta Sidney Shine (2002,p.63), conflito significa embate, luta, combate, colisão. A noção de conflito psíquico é basilar para a psicanálise, que o entende como o embate entre as exigências internas contrárias. O próprio sintoma individual é compreendido como o resultante de um processo interno no qual forças e pressões antagônicas estão em jogo. O conflito nasce do embate entre o pólo do desejo e o pólo da defesa, entre instâncias psíquicas nomeadas pela semântica psicanalítica de Consciente, Pré Consciente e Inconsciente, diz Shine. 126 O processo de separação de uma relação afetiva acirra esses mecanismos psíquicos e traz à tona distúrbios que, antes de subestimados, necessitam ser analisados e compreendidos para que, através de procedimentos de orientação ou mesmo de repressão possam ser equacionados. Em vez de apenas proibir a efetivação da guarda conjunta pelo simples fato do casal encontrar-se em litigâncias e confrontos, é importante que sejam estudados e entendidos os mecanismos que possibilitem à Justiça, ora com apoio na investigação da psicologia ora com apoio nas interdições da direito, a dar razoável encaminhamento à efetivação do direito de convivência dos filhos e dos seus pais, após a dissolução da conjugalidade. Assinalamos, assim, que a aceitação e compreensão do conflito como um fenômeno da natureza humana é um ponto de partida. Dizer somente, como se tem dito na jurisprudência e doutrina, que pais em litígio e em situações de desavenças não podem compartilhar a guarda de seus filhos é ser muito simplista, no mínimo. É necessário e salutar entender que o conflito existe como característica intrínseca em uma pessoa e que ele pode se manifestar e se projetar com mais intensidade quando se está em situação de crise, como na dissolução de um casamento. Sidney Shine (2002, p. 67/68) esclarece que Em termos metapsicológicos podemos entender que, com a separação, vários aspectos inconscientes de ambas as partes projetadas e contidas pelo outro ficam ‘à solta’. Na vigência do término da relação os indivíduos têm que se haver com todos os conteúdos negativos e positivos, até então mantidos em equilíbrio dinâmico pelo casal. Nesse sentido, concordo com autores que entendem o casal como formando uma ‘unidade’, no qual o mecanismo de identificação projetiva responde por uma circulação de representações psíquicas próprias da entidade casal para além da entidade individual marido-mulher. Portanto, quanto menos elaborado o luto e maior a necessidade de se manter uma visão cindida e parcial do outro, pior será a capacidade do indivíduo em separar a briga do casal com as questões dos filhos. A criança se torna o foco privilegiado desse conflito porque, por definição, é um ser que necessita de cuidado, proteção e orientação. Em termos narcísicos, podemos entender a criança como uma extensão do ‘eu’ dos pais, com a atribuição fantasiosa de aspectos idealizados e desejados. Mas também a criança se torna a lembrança viva do outro, pois traz no semblante, nos trejeitos e na forma de ser e de se expressar muito do que aprendeu com o pai e com a mãe. Traduzido em litígio processual, isso pode dar margem a uma tentativa de moldar a criança a um único modo de isolar a influência do outro. Penso que a psicanálise dá ferramentas que não só ajudam a entender a psicodinâmica da família (Pincus & Dare, 1981) como permite uma atuação 127 terapêutica com as famílias e uma recomendação informada para juízes, promotores a advogados. Compreender e atenuar ou resolver o conflito não é, todavia, uma tarefa fácil e, sobretudo para os magistrados, que precisam entender as idiossincrasias humanas, as singularidades da alma, para poder sobre elas decidir. Ninguém decide nada, de forma justa, sem entender do que está decidindo. Daí porque parece ser mais fácil apenas afirmar — como se fosse uma premissa básica a incontestável, quase um dogma —, que casais conflituosos não podem ter a guarda conjunta dos filhos, dirigindo-a nesses casos à figura materna, em regra75. Este entendimento pode estar refletindo um equivoco colhido do senso comum, remanescente de uma cultura patriarcal que, teimando com uma realidade mutante, ainda subjuga a mulher aos azulejos domésticos e, por outro lado, exalta um homem onipotente, provedor e insensível, pondo a criança como um reduzido objeto de manipulação. Isto nos remete a Göran Therborn (2006, p. 195): A despeito das tremendas e marcantes mudanças, é pesada a carga de dominação paterna e marital trazida ainda para o século XXI. A longa noite patriarcal da humanidade está chegando ao fim; está alvorecendo, mas o sol é visível apenas para uma minoria. Decidir com a ajuda suplementar do senso comum, embora seja até possível em situações mais específicas (art. 335 do CPC76), não deve ser o fundamento predominante da decisão judicial. É imprescindível que os operadores do direito busquem referências técnico-científicas hoje disponíveis nas ciências humanas circunvizinhas, para moldurarem suas compreensões e decisões, numa visão 75 Há um estudo realizado por Euclydes de Souza sobre dados fornecidos pelo IBGE onde ele assegura: “Por causa desse entendimento preconceituoso, as mães são consagradas com a guarda dos seus filhos em 91% dos casos (fonte: IBGE, 2002), baseado no ‘mito’ de que só ela tem o dom natural de criar os filhos, o que fere plenamente o preceito constitucional da isonomia entre o homem e a mulher”. 76 Art. 335 do CPC: “Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvando, quanto a esta, o exame pericial.”. Na primeira parte deste dispositivo é autorizado ao juiz que possa ele se utilizar, como fundamento de suas decisões, as chamadas regras de experiência comum, que nada mais são do que observações do senso comum. Ajudam, sim, é verdade, ao magistrado a julgar, pois, como assinala Gonçalves (RP 37/85) em transcrição de Nelson Nery Jr (2007, 614) essa regras “representam juízo de valores, tanto na aplicação da lei como na aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito, juízos de valores estes individuais. Embora individuais, adquirem autoridade porque trazem consigo a imagem do consenso geral, pois certos fatos e certas evidências fazem parte da cultura de uma determinada esfera social”. Mas não há dúvida de que é um auxílio suplementar de que dispõe o juiz, mas quando não dispuser de normas jurídicas que possam norteá-lo. 128 zetética do Direito. De posse desse aparato de informações prestadas por profissionais afins (art. 151 do ECA77 e § 3º do art. 1.584 do CC), o juiz vai entender melhor as causas do conflito do casal ou do conflito pessoal de cada cônjuge; as nuances e os objetivos que querem empreender, consciente ou inconscientemente, com a instalação ou a manutenção do conflito e como ele pode ser resolvido ou encaminhado judicialmente. Compreendendo a origem do conflito, o magistrado se habilita a avaliar melhor que repercussão terá sobre o compartilhamento da guarda. É possível que a litigiosidade seja até instransponível, a ponto de não ser recomendada a conjunção da guarda, sob pena de causar danos emocionais à formação do menor. É factível que a odiosidade insana de um dos consortes ou de ambos seja de tal ordem que um deles ou os dois se voltem contra os filhos e agridam-nos, para atingirem-se reciprocamente. É possível que um dos pais esteja usando a criança/adolescente para punir ou ferir o outro. O pai que requer o compartilhamento pode, no fundo, nem pretender conviver com o filho nem tê-lo em sua companhia ocasional, mas apenas provocar e agredir a mãe que, ciente do descaso do seu ex-consorte para com a prole, atormentada, vislumbra o quão prejudicial serão os períodos em que o filho esteja na companhia paterna. Pode também ocorrer o inverso. É possível que a mãe, sendo conhecedora da vontade e da capacidade do pai de também ter consigo a guarda do filho, entenda por negar tal desejo paterno, forjando o conflito para assim obter decisão judicial contrária à guarda compartilhada, alcançando o seu intento de vingança/punição do pai, ante a negação do pretendido convívio com o filho. Enfim seriam inúmeros os exemplos nessa direção. Estas questões reclamam um tratamento apropriado dos juízes e promotores, principalmente, o que significa um tratamento multidisciplinar da família e de seus conflitos. É preciso ingressar no eixo da tormenta e de lá afastar a criança/adolescente, e buscar a manutenção dos vínculos com seus pais. Os profissionais do direito e das demais áreas que atuam na seara das relações familiares não podem perder de vista que, mesmo com as vicissitudes do fracasso 77 Art. 151 do ECA: “Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudo ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico”. 129 matrimonial, o que mais importa é assegurar a efetivação dos princípios da proteção integral, da preservação do melhor interesse infanto-juvenil e da garantia do direito de convivência familiar. Essa é a mira. Esses são os princípios que devem nortear a instrução e a decisão dos processos que envolvem a guarda e a separação/divórcio/dissolução do casamento. Quando se elege o conflito conjugal como obstáculo ao exercício do direito de convivência dos filhos se está priorizando o casal; enaltecendo seus problemas e referendando-se a incapacidade de resolvê-los ou mitigá-los, e isto tudo opera em desfavor do interesse da criança. Esta postura jurisdicional de, aprioristicamente, rotular as relações conjugais conflituosas como sendo óbice irremovível ao deferimento da guarda conjunta, é tão equivocado quanto o foi, no passado, a premissa social e legal de que genitor culpado pela separação é genitor sem direito à guarda do filho. É óbvio, e de tão óbvio nem merece tanta explicação, que haverá situações excepcionais de conflitos motivados pelo fato de que um dos pais guarda traços psicóticos ou neuróticos; sintomas que revelam um comportamento patológico que denota uma companhia nociva para o filho e, nestas circunstâncias, respaldado numa avaliação psicossocial, o juiz deverá negar a concessão da guarda, porque a resistência do genitor guardião é momentaneamente fundada. Mesmo em questão de logística, o compartilhamento resultaria inadequado, por exemplo, nas circunstâncias em que os pais residam em países diferentes ou localidades muito distantes. Estas são situações, entretanto, não comuns. Só circunstâncias desse jaez autorizam a vedação ao direito de convivência porque esta seria uma convivência perversa, maligna ou inoportuna para a criança ou adolescente. Mas o conflito/litígio conjugal, por si só, não deve ser motivo para o indeferimento da custódia compartilhada. Há mecanismos legais que possibilitam a resolução dessa equação — separação litigiosa versus guarda compartilhada —, ora solucionando as arestas ora mitigando- as; ou impondo procedimentos que limitem ou inibam a atuação danosa do genitor que, na complexa dissolução litigiosa, opõe-se, sem justo motivo, ao compartilhamento da guarda. Se o juiz, após desenvolver sua atividade cognitiva no 130 processo, consistente na apreciação dos fatos e na análise das provas; na observação das circunstâncias em que a criança está envolvida e na verificação do perfil sócio/econômico/psicológico dos pais, vier decidir, com fundamento nas regras jurídicas, pela guarda compartilhada, tal decisão deve ser acatada pelos pais, que providenciarão atendê-la com a fidelidade necessária à boa convivência de pais e filhos. É neste sentido que o § 2º do art. 1.584 do CC exorta o juiz a aplicar, sempre que possível em relação ao interesse do menor, a guarda compartilhada, estando ou não os pais em disputa sobre a custódia. 5.4.3.4 Na guarda compartilhada em que casa o infante deve ficar? A guarda compartilhada, como já vista, revela o desejo e a busca de pais e de filhos de continuarem convivendo como família, conquanto eles, os pais, já não formem mais um casal. Essa espécie de custódia se traduz como uma forma de prorrogação da convivência familiar após a separação do casal. O casamento se encerra para o casal e, com o seu fim, também termina para os consortes o sentido de formar um todo em relação a si próprios. Definitivamente a mulher e o homem que se afirmam separados, com ou sem o referendo jurisdicional, desfazem o compromisso ético, moral, afetivo e jurídico nutrido pela conjunção de suas vidas. Mas os filhos são os filhos e assim continuarão, ou devem continuar, a dividir suas rotinas com seus pais. A ida da criança/adolescente à escola, ao médico, ao shopping, à casa do colega pode ser feita diária ou constantemente em condução e companhia do pai ou da mãe. As conversas, a troca de carinho, as orientações, as brincadeiras, as reprimendas, tudo isso pode ser feito também diária ou constantemente pelo pai ou pela mãe. E esta criança/adolescente mora na casa do pai ou da mãe? Para fins da guarda compartilhada, este aspecto não é fundamental. O compartilhamento da guarda não pressupõe necessariamente o compartilhamento da casa. Não é preciso que o filho rotineiramente pernoite em ambas as casas, do pai e da mãe, para que isto possa configurar a custódia compartilhada. Nesta modalidade de guarda, como nos lembra Ana Silveira Akel (2008, p.114), um dos pais detém a guarda física do 131 filho, embora mantidos os direitos e deveres emergentes do poder familiar em relação a ambos. E acrescenta: Um dos genitores permanece com a prole e, ao outro, é conferida total flexibilidade para participar de sua vida, resultando a ambos os pais a convivência permanente com os filhos, principalmente, no que tange a assuntos importantes referentes à sua formação e educação, preservando, assim, a continuidade e o fortalecimento dos laços afetivos que existem entre pais e filhos, desde o momento da concepção. Compartilhar a guarda é possibilitar a convivência diária ou constante de cada um dos genitores com seus filhos, independentemente do local do pernoite ou de refeições habituais destes. Pode até acontecer que o compartilhamento da guarda se dê também com o compartilhamento das moradias, mas isto não é condição indispensável ao exercício da convivência comungada entre pais e filhos. No modelo de guarda conjunta, resume Leila Torraca de Brito (2004, p.356), apesar de a criança residir com um dos pais, deve-se garantir uma convivência ampliada com ambos os genitores. O menor pode fazer refeições numa casa e pernoitar em outra; pode passar um ou mais dias na casa de um dos pais ou noutra. Os pais podem se alternar no transporte até a escola ou ao clube ou ao shopping, etc. Os arranjos poderão ser os mais variados possíveis. A vida, o cotidiano das pessoas não pode ser assim tão simétrico e matemático. Sobretudo o cotidiano de uma criança. Se há que se escolher uma residência referencial para o menor, que seja aquela que atenda aos seus interesses a partir de outros parâmetros que não necessariamente o de ser a casa escolhida a do pai ou a da mãe, apenas porque pai ou mãe, mas sim aquela moradia que lhe dê possibilidade de manter as relações de amizade, as conveniências de proximidade da escola ou dos seus espaços de lazer, etc. Se uma determinada casa facilita essa ambientação, ela poderá ser escolhida como a ancoragem para o exercício do compartilhamento da guarda. Mas apenas como ancoragem. 132 Também para Waldir Grisard Filho (2005, p.164) a conjunção do exercício da guarda não passa pelo compartilhamento da casa dos pais. Segundo ele: O primeiro aspecto a considerar na operacionalização do modelo é sobre a residência do menor. Essa nova modalidade de guarda deve ser compreendida, então, como aquela forma de custódia em que o menor tem uma residência fixa — única e não alternada —, próxima ao seu colégio, aos vizinhos, ao clube, à pracinha, onde desenvolve suas atividades habituais e onde, é lógico presumir, tem seus amigos e companheiros de jogos. Os critérios de determinação da guarda, dentre eles a situação dos pais, definirão o local de residência do menor, atendendo-se, sempre, ao seu melhor interesse, devendo ficar com aquele dos pais que apresente melhores condições ao seu pleno desenvolvimento. Cada caso é um caso à discricionariedade do juiz, que deve evitar as fórmulas estereotipadas, utilizadas automática, invariável e tradicionalmente. Os tribunais brasileiros começam a construir suas decisões fundamentadas nessas mesmas crenças. Os maiores cuidados se debruçam sobre a manutenção do ambiente sociopsicológico que entorna o menor, de modo que o local de moradia tem menor importância se analisado apenas por seus aspectos físico-ergonômicos. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, reformando a sentença da 1ª Instância, decidiu pela desvinculação do significado de guarda compartilhada ao de casa/moradia compartilhada. Direito de Família. Divórcio Consensual. 1) Acordo sobre a guarda dos filhos, de forma compartilhada, rechaçada pelo Juízo a quo, ao fundamento de que, se os menores residirão com a genitora, a guarda deverá ser expressamente atribuída à mesma. 2) A família vem sofrendo profundas mudanças em todo o mundo, deixando de ser um simples núcleo econômico e de reprodução para transformar-se num espaço de amor e companheirismo. No momento em que ocorre a separação do casal, desde que haja harmonia, a guarda compartilhada é uma opção madura para a saudável convivência entre filhos e pais separados, já que não se refere apenas à tutela física e material, mas também a outros atributos da autoridade parental. 3) Em caso de separação ou divórcio consensual, deve ser observado o que os cônjuges acordem sobre a guarda dos filhos. Inteligência do art. 1.583 do CC. 4) A intervenção estatal na questão só se justifica quando apurado que a convenção não preserva suficientemente os interesses dos menores, o que não é o caso dos autos. 5) O simples fato da fixação da residência dos menores com a mãe, ou dos pais residirem em bairros distintos e distantes, por si só, não tem o condão de afastar a intenção dos agravantes (pais) de exercerem, conjuntamente, 133 os poderes inerentes ao pátrio poder, de forma igualitária e com a mesma intensidade participando das grandes decisões relativas às crianças, consagrando o direito de os filhos serem criados por seus pais. 6) Provimento ao agravo. Decisão unânime. (TJRJ, 9ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento 2007.002.02406, relator Desembargador Paulo Maurício Pereira, j. em 08/05/2007.Disponível em:< http://www.tj.rj.gov.br/scripts/weblink.mgw>. Acesso em: 23 jan.2008. Selando este mesmo entendimento, o Superior Tribunal de Justiça resume: Ação de revisão de acordo judicial de separação do casal e de guarda da filha. Guarda compartilhada. Pluralidade de domicílios. Local onde deve ser exercida. Preservação do interesse do menor. 1) A guarda, ainda que compartilhada, não induz à existência de mais de um domicílio acaso os pais residam em localidades diferentes, devendo ser observada a prevenção do Juízo que homologou a separação do casal, mediante acordo. (STJ, 2ª Seção, CC 2003/0201570-9/PE, relator Ministro Aldir Passarinho Junior., Diário da Justiça de 06 de junho de 2005. Disponível em:<http://www.stj.gob.br/SCON/jurisprudência/doc.jsp?acao=imprimir&livre =guarda+e+compartilhada&&b>. Acesso em: 23 jan. 2008. Compartilhar a guarda passa a ser, a comunhão das rotinas dos filhos pelos pais, mesmo que um dos genitores não resida na mesma casa em que residem os filhos do casal. É sabido que há circunstâncias fáticas que criam fortes obstáculos ao exercício da guarda conjunta e à fixação do local de residência da criança, uma vez que, com a separação, os pais podem vir a morar em cidades distantes, ou mesmo estados e até países diferentes. Este é um aspecto que traz impedimentos ao convívio da prole com ambos os pais no pós-ruptura conjugal. Como conciliá-los é tarefa difícil ou às vezes impossível para quem vai decidir. Aí, mais uma vez, as atenções devem ser vidradas no melhor interesse dos filhos, de modo que não comprometam sua integridade psicofísica. O que se deve ter em mente, como um ideal a ser perseguido, é que a dissolução da sociedade conjugal não represente a dissolução da convivência de pais e filhos. Mas, eventualmente, este intento pode não se concretizar, em face de acontecimentos outros, às vezes alheios à vontade dos próprios pais, que terminam por obstar o convívio das gerações. 134 Deve-se analisar, nestas circunstâncias, caso a caso, a fim de que possam ser encontrados arranjos que possibilitem a continuidade do convívio, ainda que mitigadamente. Isso dependerá das situações postas no caso concreto a ser decidido, lembrando sempre, conforme as palavras de Waldyr Grisard Filho (oooo,p.000), que cada caso é um caso à discricionariedade do juiz, que deve evitar as fórmulas estereotipadas, utilizadas automática, invariável e tradicionalmente. O conclamo que se faz é que pais, operadores do direito e psicólogos estejam imbuídos de que a convivência familiar é um direito fundamental da infância e da juventude a ser sempre alvejado e, como conseqüência, que a guarda compartilhada é a regra no Direito brasileiro (§ 2º do art. 1.584 do CC) 135 6. A INSTRUÇÃO PROCESSUAL NAS AÇÕES DE GUARDA Um processo judicial começa, como se sabe, com a narrativa de um sujeito, o autor, sobre determinados fatos; certos acontecimentos dos quais ele pretende obter uma conseqüência jurídica que entende ser pelo Direito prevista, ante a resistência à sua pretensão por outro sujeito, o réu. Citado o réu, se o desejar, apresentará sua defesa onde poderá negar os fatos articulados pelo autor ou manifestar outros que impeçam ou extingam ou modifiquem o direito pretendido por ele. Esta é, de forma simplificada, a dinâmica ocorrente sempre que se discute sobre o mérito na fase inicial de um processo, denominada de fase postulatória. Há, portanto, fatos que vêm ao processo dos quais as partes, autor e réu, pretendem extrair uma determinada conseqüência jurídica que, em forma de decisão, irá certificar a existência ou inexistência do Direito reclamado. Vê-se, então, que o suporte fático de uma demanda é fundamental à obtenção ou não do bem da vida que se pretende alcançar. Quem decide sobre o Direito aplicável a cada caso é o juiz e, como tal, precisa convencer-se da verdade das alegações dos fatos e,,a partir daí, dar início ao seu processo criativo da decisão judicial. Este mecanismo de leitura dos fatos e da coleta da prova é que se denomina de instrução processual ou fase instrutória. Nas ações que visam à definição da guarda de filhos menores existirão também alegações fáticas, ou seja, narrativas de fatos acontecidos, em face dos quais o pai ou a mãe, autor ou réu, pretendem ver certificados e obter direitos relativos aos seus filhos menores. Na disputa pela guarda dos filhos, um ou outro genitor pode trazer ao processo um acervo de acontecimentos capaz, segundo acredita, de fazê-lo o mais adequado guardião de seus filhos. Ao juiz cabe, diante de cada fato narrado, e sendo tal fato pertinente e relevante à construção da norma jurídica singular — a decisão —, determinar a realização da respectiva prova, a fim de que, se verdadeira a afirmação, possa ou não fazer incidir determinada norma abstrata, com a graduação e na medida em que se fizer necessária. 136 Tem consensado a doutrina mais atualizada que a prova tem um objeto, qual seja a alegação sobre o fato narrado; tem uma finalidade, que é a busca do convencimento do juiz sobre a veracidade das alegações fáticas e tem, ainda, um destinatário principal, que é o próprio juiz, aquele que tem função e poder decisório O juiz, na sua atividade probatória, dispõe, para a coleta e construção do suporte instrutório que o orientará em sua decisão, do que se denomina de fontes de prova e de meios de prova. Cândido Rangel Dinamarco (2007,p. 87) explica: Fontes de prova são as pessoas ou coisas das quais se possam extrair informações capazes de comprovar a veracidade de uma alegação. As coisas são fontes reais de prova. As pessoas também são fontes reais, quando submetidas a exames feitos por outrem (perícias médicas, etc); mas serão fontes pessoais quando chamadas a tomar parte na instrução probatória mediante a realização de atos seus e concurso de sua vontade (testemunhas). Meios de prova são técnicas destinadas à investigação de fatos relevantes para a causa. Diferentemente das fontes, eles são fenômenos internos do processo e do procedimento. A lei processual estabelece os modos como se desenvolve cada uma dessas técnicas, relacionando-as com as fontes a serem exploradas e com as suas peculiaridades. Cada espécie de fonte tem sua peculiaridade, que exige técnicas de extração dotada de peculiaridades correspondentes. Da fonte se busca extrair, no presente, a revelação de um fato tal como ele ocorreu no passado, e, para tanto, se utiliza das técnicas de extração, isto é, os meios, que o CPC estabelece e que são o depoimento pessoal, a confissão, o testemunho, a perícia, o documento e a inspeção judicial. Uma pessoa pode ser fonte e desta pode se fazer uso de meios processuais de coleta de prova, por exemplo: a perícia (exame médico), da qual se retira dados acerca de um fato (doença, lesão corporal, etc); ou o próprio depoimento da pessoa que, como testemunha, revelará o que viu ou ouviu sobre determinado fato. Logo, uma só fonte (pessoa) pode produzir provas por dois ou mais meios probantes, sendo testemunha ou sendo objeto de perícia. Nas ações de guarda de menores pode-se coletar e produzir provas através de quaisquer dos meios supra mencionados, isto a partir de fontes reais ou pessoais, não havendo, nesse aspecto, maiores especificidades em relação às técnicas processuais comuns, a não ser relativamente aos meios de prova pericial e 137 testemunhal. Nessas ações, sendo o menor a fonte da prova, a perícia deve seguir determinadas características e cuidados a fim de que não possa atingi-lo em sua integridade psicológica. O menor pode ser objeto, a partir do que ele produz como informação de si próprio, do seu estado emocional, seus desejos, etc. mas do que ele visualiza sobre as condutas (alheias) de seus pais e do ambiente familiar. Ou seja, analisando-se as reações e atitudes da criança/adolescente a perícia psicossocial pode obter dados que revelam o comportamento dos pais e do próprio menor examinado. Com efeito, o menor é, nestas circunstâncias, a própria fonte da prova que o juiz vai utilizar como fundamento de sua decisão. Mas pode o menor ser um meio de prova, atuando como testemunha, obedecidos certos critérios. O artigo 2º do ECA define como criança a pessoa de até 12 anos de idade, incompletos, e como adolescente aquele que tiver de 12 a 18 anos. Toda criança ou adolescente é considerado menor, uma vez que o Código Civil define os 18 anos como o limite da menoridade. O Código de Processo Civil, por sua vez, ao dispor de regras sobre as possibilidades e limites da realização da prova testemunhal em juízo, proíbe que o menor de 16 anos possa atuar como testemunha, por isso se conclui que o adolescente que tiver entre 16 e 18 anos pode atuar como tal. Do ponto de vista cronológico, o adolescente que estiver enquadrado nesses limites poderá depor como testemunha. Ocorre, todavia, que a prova testemunhal é atingida por limitações postas pelo artigo 40578 do CPC, que vão desde sua condição física (surdez, insuficiência visual, etc.), passando pelo seu interesse material ou profissional da própria demanda, chegando até as vedações decorrentes dos vínculos emocionais existentes entre a testemunha 78 Art. 405 do CPC: Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas e suspeitas. § 1º - São suspeitas: III – o menor de 16 (dezesseis) anos; IV – o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos sentidos que lhe faltam; § 2º São suspeitos: I o cônjuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou colateral, até terceiro grau, de alguma das partes por consangüinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público, ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova, que o juiz repute necessária ao julgamento. § 3º São suspeitos: o inimigo capital da parte ou seu amigo íntimo 138 e as pessoas envolvidas na causa ou mesmo os fatos ali narrados, como acontece com o cônjuge, os pais, os filhos, os inimigos capitais, os amigos íntimos da parte. Essas pessoas mantêm vínculos emocionais com os litigantes, que vão desde os laços afetivos até a inimizade grave, que impossibilitam um depoimento imparcial, capaz de revelar a verdade dos fatos, sem a interferência que tais vínculos poderiam produzir. A prova testemunhal, como se sabe, deve guardar imparcialidade em relação às partes e ao próprio fato em si. Quando se fala em testemunha, se concebe que seja alguém — um terceiro —, que não tenha interesse no resultado da lide, senão apenas o de expor o fato tal como o presenciou. Acontece que, nas causas que envolvem relações familiares, cujos eventos dão origem às ações judiciais, ocorrem, na maioria das vezes, dentro do ambiente doméstico, e por isso nem sempre é fácil ter este terceiro, estranho aos fatos e às pessoas, como testemunha. São situações geralmente presenciadas pelos próprios membros da família, o que inclui os adolescentes maiores de 16 anos, capazes, em regra, de depor. Como constata Misael Montenegro Filho (2008, p. 475-476): Deparamo-nos com pessoas estritamente ligadas a uma das partes do litígio, por uma relação de parentesco natural ou civil, presumindo-se que a testemunha se afastaria da verdade, tentando beneficiar a pessoa com a qual mantém vínculo tão próximo. Como os fatos próprios das ações de família desdobram-se no interior dos domicílios, incontroverso que a parte à qual foi imposta a responsabilidade de provar a veracidade de suas afirmações sofre dificuldade natural de se valer de depoimentos de terceiros, que tenham presenciado o acontecimento que gerou a postulação, como uma agressão física, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave, conduta desonrosa etc., fatos que são presenciados por filhos ou outros parentes próximos, admitindo-se, de forma excepcional, a tomada de seus depoimentos em juízo. Esta forma excepcional de depoimento está prevista no § 4º 79 do art. 405 do CPC, que autoriza ao juiz coletar o depoimento, por exemplo, de um adolescente maior de 16 anos, o qual poderá conter revelações importantes para o deslinde da causa. Não resta dúvida de que é um depoimento a ser tomado com algumas reservas e 79 Art. 405, § 4º, do CPC: “Parágrafo 4º - Sendo estritamente necessário, o juiz ouvirá testemunhas impedidas ou suspeitas, mas os seus depoimentos serão prestados independentemente de compromisso (art. 415) e o juiz lhe atribuirá o valor que possa merecer”. 139 cautelas, porque sabe o juiz que há envolvimento entre o depoente e os fatos da demanda ou as pessoas nela envolvidas. Mas, nem por isso, os dizeres desse menor podem ser subestimados por esta sua condição, uma vez que, ainda assim, ele detém importantes informações a serem prestadas, cabendo ao juiz atribuir-lhes o valor que possam merecer. Como assinala Fábio Tabosa (2004, p.1.247): É inevitável considerar que, em abstrato, o depoimento de uma testemunha em tese isenta sugere maior confiabilidade que o de uma pessoa desde logo marcada pelo impedimento ou suspeição, aspecto que tende a influir na apreciação de um e outro; formalmente, entretanto, não há hierarquia entre eles, nada impedindo que o juiz, fazendo uso da regra de livre interpretação da prova (CPC, 131) e mediante a necessária justificação, acolha as palavras de um informante em detrimento do depoimento de uma testemunha regular. Do ponto de vista do direito processual, o menor adolescente com mais de 16 anos pode prestar seu testemunho, na condição de informante, sobre um fato que envolve a situação de seus pais na disputa da guarda. É importante ressaltar que não se está tratando aqui da simples oitiva da criança/adolescente sobre sua preferência pela guarda, se unilateral ou compartilhada ou alternada, mas sim o de coletar, através do depoimento do menor, a revelação de fatos e condutas dos pais. É preciso fazer distinções entre o que significa a oitiva do menor e a tomada do seu depoimento como informante. A linha divisória é tênue, mas existe. Pode o juiz, se for possível e razoável ao melhor interesse do menor, ouvi-lo, seja qual for a idade que tenha, desde que demonstre certo grau de discernimento, sobre as suas próprias expectativas em relação aos fatos que estão postos na demanda. Esta é a hipótese de que trata o art. 161, § 2º, do ECA80. Pode o juiz tomar o depoimento do adolescente maior de 16 anos, na condição de informante, para que ele preste esclarecimentos sobre os fatos da causa, que podem envolver atitudes/comportamentos de seus pais, que não signifiquem exatamente os desejos e sentimentos do menor em relação a um ou ambos, mas as informações que detém sobre a dinâmica da família e sobre fatos que são 80 Art. 161, § 2º do ECA: Art. 161 - ... § 2º - Se o pedido importar em modificação de guarda, será obrigatória, desde que possível e razoável, a oitiva da criança ou adolescente. 140 reveladores das condutas paternas. Este depoimento é, pois, possível à luz do art. 405, § 1º, III, , CPC, antes transcrito, porém sempre haverá o juiz de tomar todas as precauções para que o testemunho do menor não lhe seja constrangedor ou lhe cause um maior dano psicológico. A prova pericial é um instrumento de grande valia com que dispõe o magistrado no momento de decidir sobre as questões que envolvem a guarda de menores. A perícia, ao que se sabe, consiste na possibilidade de o juiz ter acesso a determinados dados técnicos que envolvem certo fato alegado pelas partes, de modo que isto facilite sua compreensão sobre esse fato e serva de fundamento à decisão a ser proferida. Um fato pode trazer elementos complexos, de cujo entendimento a seu respeito refoge à compreensão do senso comum e que, por isso, necessita de que um ou mais especialistas naquele assunto possam emitir parecer técnico sobre sua causa, características, efeitos, etc. É preciso, para melhor compreensão do juiz e dos litigantes, todos leigos, que técnicos especialistas procedam à leitura do fato acrescentando-lhe informações que a ciência construiu a seu respeito. Na modernidade, em que o conhecimento, mais que a intuição, conquistou espaços nas relações humanas e no modo de viver das pessoas, o ato de julgar passou a depender de perícia técnica sobre muitos dos fatos de uma demanda judicial. Não basta ao juiz pautar-se na sua experiência de homem comum (art. 33581, do CPC), de pai ou de mãe, de marido ou de mulher, para daí extrair dados que lhe auxiliem na compreensão de determinadas situações que envolvem as relações familiares e suas conseqüências jurídicas. É imprescindível ao magistrado dispor,, de orientação técnico profissional para arregimentar-se de elementos que o habilitem a decidir melhor os conflitos, bem como valer-se da interdisciplinaridade desses profissionais.. Nesse sentido, a nova Lei de Guarda (nº 11.698, de 13/06/08) dá nova redação aos arts. 1.583 e 1.584 do CC, em reforço ao que já dispunha o ECA no art. 151, já anteriormente citado: 81 Art. 335 do CPC: Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvando, quanto a essa, o exame pericial. 141 Art. 1.584 - ... § 3º - Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob a guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. O novo dispositivo evidencia os saltos de qualidade em relação às letras que lhe são anteriores. Mas poderia avançar mais. Primeiramente, a prova pericial não se restringe, em termos de guarda de filhos, apenas para a definição das atribuições dos pais e dos períodos de convivência entre os membros da família. Esta prova será útil, e por vezes necessária, sempre que o juiz tiver que decidir sobre todos os temas e questões que envolvem a guarda, seja ela compartilhada, unilateral, alternada ou transferida para um terceiro, que não seja o pai nem a mãe. Em segundo lugar, a realização da prova pode dar-se por ordem do juiz, de ofício, ou por requerimento do Ministério Público, embora o dispositivo não esclareça, também por requerimento da parte, que tem legítimo interesse na realização de qualquer prova (arts. 282, VI82, e 300 83, do CPC), inclusive a perícia, a fim de que possa ver o fato constitutivo do seu direito devidamente comprovado. A prova pericial pode, desse modo, ser realizada por um especialista, um psicólogo, por exemplo, ou por mais de um especialista, que poderia ser um psiquiatra, ou antropólogo, ou pedagogo, ou assistente social, etc. O importante é que um determinado problema possa ser analisado por tantos experts quanto o exigir as facetas do fato/objeto examinado. Não é sem motivo, aliás, que o CPC estabelece em seu art. 431-B que “tratando-se de perícia complexa, que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais de um perito e a parte indicar mais de um assistente técnico”. É esse poliedro de enfoques que entornam a guarda de filhos que exige uma percepção mais ampla do juiz, desafiado a afastar-se de julgar apenas conforme a lei para ter que julgar a partir de uma exegese zetética do fato. Como lembra Waldir 82 Art, 282m VI do CPC: Art 282 – A petição inicial indicará: VI – as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados 83 Art. 300 do CPC: Compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor, especificando as provas que pretende produzir. 142 Grisard Filho (2005, p.77), a guarda é uma questão que ultrapassa os limites da lei, uma tarefa de nítido corte interdisciplinar. 143 7. A FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DETERMINA A GUARDA A jurisdição é uma função do Estado mediante a qual se busca dissolver os conflitos intersubjetivo, fazendo que atue a vontade do Direito. Esta é uma vontade coletivizada, resultado das condutas humanas que a sociedade, ao longo de sua cultura, consensou como válidas, transformando-as em normas jurídicas. Dizer isto não é dizer tudo ou pretender que se possa entender que a aplicação do Direito seja algo simples e restrito às normas jurídicas já postas. Pelo contrário, a aplicação do Direito, o fazimento da jurisdição, é algo complexo. Decidir sobre o conduzir das pessoas exige esforços metodológicos coordenados e sistematizados, para por fim a um conflito juridicamente qualificado. Robert Alexy (2005,p.33) ciente das dificuldades de se fazer justiça, pondera que: Em grande número de casos, a decisão jurídica que põe fim a uma disputa judicial, expressa em um enunciado normativo singular, não se segue logicamente das formulações das normas jurídicas que se supõem vigentes, juntamente com os enunciados empíricos que se devam reconhecer como verdadeiros ou provados. Para tanto, há no mínimo quatro motivos: (1) a imprecisão da linguagem do Direito, (2) a possibilidade de conflitos entre as normas, (3) a possibilidade de haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, uma vez que não cabem em nenhuma norma válida existente, bem como (4) a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria a literalidade da norma. Embora constate as dificuldades para a construção de uma decisão judicial em face do caso concreto, Aley propõe em acurada reflexão: Quando ocorre de a decisão de um caso singular não se seguir logicamente nem as normas pressupostas nem de enunciados solidamente fundamentados de um sistema qualquer, nem poder ser fundamentada definitivamente com a ajuda das regras de metodologia jurídica, então resta ao intérprete um campo de ação em que tem que escolher entre várias soluções, a partir das normas jurídicas, regras metodológicas e enunciados de sistemas jurídicos não determinados ulteriormente. 144 A sentença é um enunciado normativo singular e difícil de ser elaborado, por isso devem ser considerados fatos específicos e as circunstâncias próprias que envolvem os litigantes, a partir de um conjunto de pressupostos evidenciados nas normas jurídicas e nas suas respectivas regras de hermenêutica e aplicação. Esta construção multifacetada é fruto de uma abordagem zetética desse fenômeno jurídico que envolve a guarda do menor. É recomendável ao juiz não se desvencilhar de questões como o sentimento de perda da criança a quem foi negado o direito de conviver ou a manutenção de uma convivência doentia e prejudicial ao menor, a fim de evitar conseqüência psicológicas futuras. Nem sempre se pode compreender, sozinho, o perfil comportamental, que sinaliza a presença de traços psicóticos, neuróticos ou depressivos do pai ou da mãe a quem não se deve conceder a titularidade da guarda. Não se consegue vislumbrar também a existência de certos transtornos psíquicos do menor, ocasionados pelo afastamento do convívio sadio de um dos pais. Só a Lei subsidiará o julgador? O Direito, apenas com sua dogmática jurídica, auxiliará o juiz a caminhar na direção da justa decisão? Certamente que não. É necessário investigar outros campos do conhecimento humano para associá-los à operação jurisdicional. A propósito, Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2003,p.43;p.47) sustenta : É preciso reconhecer que o fenômeno jurídico, com toda a sua complexidade, admite tanto um enfoque zetético, quanto um enfoque dogmático, em sua investigação. Isso explica que sejam várias as ciências que o tomem por objeto. Em algumas delas, predomina o enfoque zetético, em outras, o dogmático. O campo das investigações zetéticas do fenômeno jurídico é bastante amplo. Zetéticas são, por exemplo, as investigações que têm como objeto o direito no âmbito da sociologia, da antropologia, da psicologia, da história, da filosofia, da ciência política, etc. Nenhuma dessas disciplinas é especificamente jurídica. Todas elas são disciplinas gerais que admitem, no âmbito de suas preocupações, um espaço para o fenômeno jurídico. A zetética jurídica corresponde, como vimos, às disciplinas que, tendo por objeto não apenas o direito pode, entretanto, tomá-lo como um de seus objetos precípuos. O jurista, em geral, ocupa-se complementarmente delas. Elas são tidas como auxiliares da ciência jurídica sticto sensu. Esta última, nos últimos 150 anos, tem-se configurado como um saber dogmático. É óbvio que o estudo do direito pelo jurista não se reduz a esse saber. Assim, embora ele seja um especialista em questões dogmáticas, é também, em certa medida, um especialista nas zetéticas. 145 O arrazoado exposto sugere que o juiz não deve olhar apenas para a Lei; nem enxergar tão somente os dogmas do direito extraídos dos textos legais ou deles gerados e, imaginar que está decidindo conforme o ideal de justiça. Nem sempre o Direito, visto por essa apertada ótica positivista-dogmática, tem todas as respostas ou oferece todas as soluções. As relações jurídico-humanas não podem ser resolvidas na perspectiva de quem está observando apenas objetos, mas sim com o sentido de quem está julgando sujeitos (complexos) e suas condutas (múltiplas).Desse modo o intérprete deve proceder ao apreciar as situações concretas que lhes forem submetidas, buscando compreendê-las em sua inteireza. Numa perspectiva de direito comparado, a Constituição da Alemanha estabelece, nos termos do § 3º do seu art. 20, que a atividade jurisdicional deve sujeitar-se “à Lei e ao Direito”. Isso nos ajuda a colocar as coisas nos seus devidos lugares. O ato de interpretar fatos, condutas, desejos e interdições, para sobre eles poder dispor impositivamente — a sentença —, deve ser em conformidade com as Leis, mas também segundo um universo reflexivo das ciências humanas, inclusive do Direito, que atua como uma conjunção de regras sistematizadas, e até da sociedade com os costumes que lhes sejam próprios. Alexy (2005, p..53-54), com apoio em pronunciamento do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, faz considerações importantes sobre esse consórcio lei+direito+concepção de justiça da coletividade, que a Constituição daquele país preconiza: O Tribunal constata, primeiro, que em relação ao art 20, § 3º, da Lei Fundamental “o Direito não se identifica com o conjunto de leis escritas”. O juiz não está, portanto, “constrangido pela Lei Fundamental a aplicar ao caso concreto as indicações do legislador dentro dos limites do sentido literal possível”. A tarefa do aplicador do Direito pode “exigir, em especial, evidenciar e realizar valorações em decisões mediante um ato de conhecimento valorativo em que não faltam elementos volitivos. Tais valorações são imanentes à ordem jurídica constitucional, mas não chegam a ser expressas nos textos das leis ou o foram apenas parcialmente. O juiz deve atuar sem arbitrariedade; sua decisão deve ser fundamentada em uma argumentação racional. Deve ter ficado claro que a lei escrita não cumpre sua função de resolver o problema jurídico de forma justa. A decisão judicial preenche, então, essa lacuna, segundo os critérios da razão prática e as concepções gerais de justiça consolidadas na coletividade”. 146 Essas considerações do Tribunal Constitucional Federal podem ser consideradas razões jurídico-constitucionais . Se, como dito, a lei não cumpre a sua função de resolver o problema de forma justa, seja porque não expressa as valorações emanadas da Constituição, seja porque o faz apenas parcialmente, é indispensável que o juiz atue com olhos fincados na Carta constitucional,,percebendo-a zeteticamente, num necessário recorte interdisciplinar. O que a coletividade consolida como justo é, em regra, fruto da sua cultura, dos valores ético-históricos que cristalizou consciente ou inconscientemente. Isto não pode ser desdenhado por quem julga, porque quem julga, o faz em nome do povo e por ele. Fundamentar uma decisão é dizer à sociedade, e em particular às partes, porque se está decidindo nessa ou naquela direção. Fundamentar uma decisão é um dever que o juiz realiza na exata medida que justifica, à luz de um sistema de regras, postas ou validamente construídas segundo os valores e princípios constitucionais, como chegou à conclusão contida em seu comando. Por isso a necessidade de coletar a prova dos fatos de modo a possibilitar uma investigação multidisciplinar sobre os mesmos, porque a boa compreensão dos fatos é que vai permitir a boa construção da norma jurídica singular: a decisão judicial. Uma liminar antecipatória ou uma sentença final tem sempre que ser motivada (art. 16584 do CPC e art. 93, IX85, da CF), isto é, devidamente justificada. Como assinala Luiz Guilherme Marinoni (2007, p. 104) A legitimidade da decisão jurisdicional depende não apenas de estar o juiz convencido, mas também de o juiz justificar a racionalidade de sua decisão com base no caso concreto, nas provas produzidas e na convicção que formou sobre as situações de fato e de direito. Ou seja, não basta ao juiz estar convencido — deve ele demonstrar as razões de seu convencimento. Não basta, porém, que o juiz torne explícitas suas razões, é necessário que essas razões gozem de estima pública. Como anota Cass Sunstein, numa 84 Art. 165 do CPC: As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância no art. 45; as decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso. 85 Art. 93, IX, da CF: art. 93 - … IX – Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes; 147 democracia constitucional, ‘o poder público deve sempre ter uma razão para aquilo que faz. A razão exigida deve contar com uma razão de consideração pública’. Nessa complexa tarefa de construir uma decisão judicial, tanto mais quando se trata de relações de família, do cotidiano e da vida de nossas crianças e adolescentes, não pode o juiz quedar-se ao confortável apelo de julgar conforme a simples aplicação da lei, como se a lei, por si mesma, pudesse tudo definir e tudo prescrever. Para interpretar, compreender e aplicar o direito de família é preciso entender como o faz Luiz Edson Fachin (2000, p.19), ao advertir que O Direito de Família é menos que a família e seus direitos, e é mais que o mero espelho ‘judicializado’ de um modo de conviver. É uma opção de um modelo social, cultural, político e religioso. No direito positivado fotografa-se um instante de uma realidade mutante. O direito positivado, isto é, o conjunto de leis que rege determinada matéria, é importante como sistematização da norma jurídica, mas não é tudo. Fotografa um momento da realidade, que é, todavia, composta de muitos momentos e circunstâncias. Na sua fundamentação, o juiz pode aplicar a lei, dispor de princípios e valores constitucionais, se utilizar da analogia, sopesar os costumes sociais, mas só não pode ser injusto. 148 8. DA EFETIVAÇÃO DA DECISÃO QUE FIXA A GUARDA Pode acontecer — e com certa freqüência ocorre —, que um dos genitores mantenha-se renitente à perda provisória ou ao compartilhamento da guarda, atuando de modo a criar obstáculos à sua efetivação, mesmo diante da determinação judicial. Como resolver esse impasse? O direito disponibiliza ferramentas para tanto? Esta é uma questão um tanto delicada porque implica numa ingerência externa em assuntos que, a princípio, dizem respeito à privacidade da família, a mesma família que, como vimos em outras oportunidades deste trabalho, era inviolável às inserções exteriores e que por isto permitia toda gama de abusos contra suas crianças e adolescentes (ou mesmo mulheres e idosos). O direito de família passou, juntamente com a própria família, por profundas mudanças ao longo do século XX, de modo a permitir o ingresso da regulação social/estatal nos recônditos das relações familiares, com vistas a garantir o exercício dos direitos fundamentais de seus componentes. Com clareza Luiz Edson Fachin (1999,p. 42-43) observa: Escapando do privado clássico, a ‘publicização’ do direito de família traduz questões sem respostas satisfatórias sobre esse enquadramento classificatório. Cabe esse exame agora, especialmente considerando que a reestruturação dos direitos individuais clássicos passou pela influência da teoria dos direitos fundamentais, garantidos constitucionalmente. O privado não é mais o direito das relações ‘domésticas’ da família, e o público não é mais, apenas, o direito que diz respeito ao Estado e ao político. Mais que isso, no mesmo horizonte, haveria o direito público de família e o direito privado de família, semicircunferências, partes de um todo, distintas, mas congruentes, separadas porém interagindo. A família, proclama-se, deixou de ter um regimento submetido à vontade dos indivíduos. Se o Estado também pode regrar e gerir as relações familiares, nessa interseção público/privado, o juiz, que é a personificação do Estado na resolução dos conflitos dos indivíduos, deve estar aparelhado para fazer cumprir o que o sistema de normas jurídicas estabelece. Não basta apenas a lei dispor que tal conduta deve ser deste 149 ou daquele modo, é preciso fazer valer a vontade da norma quando as pessoas não querem submeter-se espontaneamente a ela; é preciso aplicar o Direito e fazê-lo efetivo, concretamente. E aí surgem as regras do direito processual. O processo, como instrumento da jurisdição, serve para fazer valer o direito material não realizado pela livre vontade de cada um. Este é o grande desafio do direito processual: dar concretude ao que o direito material define como regra de conduta. Esse desafio parece ainda maior quando as regras materiais pertencem ao direito de família, talvez porque essas regras regulem o que há de mais íntimo, pessoal e emocional nas relações humanas. Isso exige especial atenção dos profissionais do direito a fim de garantir a efetividade dos direitos fundamentais da criança. O ordenamento jurídico dispõe de medidas, tanto de caráter orientador como repressivo, que possibilitam encaminhamentos com vistas à solução do problema. O Código de Processo Civil regula meios de aplicação impositiva de normas materiais ao caso concreto e à efetivação de decisões judiciais que objetivam a entrega de tutelas jurídicas, tanto genéricas quanto específicas. Tutelas genéricas são aquelas em que a decisão não entrega exatamente o bem da vida que foi retirado do indivíduo demandante, mas sim um equivalente em dinheiro. Postula-se, como tutela genérica, não a recomposição exata de uma determinada situação jurídica ou a devolução de um determinado bem, mas um ressarcimento, em pecúnia, que equivalha àquilo que foi perdido para alguém e que não pode ser mais recuperado. Nesses casos o dinheiro substitui o bem da vida. O dinheiro substitui um bem da vida? Às vezes sim, às vezes não. O carinho, o amor, o respeito, a dádiva, a solidariedade, o prazer, a convivência são bens da vida sobre os quais se assenta o direito de família e, nessas situações, como substituí-los por dinheiro? O direito sempre dispôs de muitas técnicas para viabilizar as chamadas tutelas genéricas ou tutelas pelo equivalente pecuniário que, em vez de realizar determinada atividade, o réu se limita a pagar certa quantia e, assim, se desobriga de prestar o fato. Porém sempre foi trabalhoso regular a tutela específica. Sempre foi problemático dar efetividade às denominadas tutelas específicas que, ao invés de condenar alguém a pagar quantia certa a outrem, determina-lhe que cumpra uma obrigação de fazer ou de não fazer ou de dar coisa. Dá-se ao outro exatamente 150 aquilo que do outro foi retirado ou lhe foi negado. É a recomposição a seu titular do mesmo bem da vida que lhe fora retirado ou sequer lhe foi entregue. Se lhe retiraram sua casa, que lha devolvam; se foi seu filho, que o devolvam; se foi um determinado fazer, que lhe façam. Só no meado da década de 1990 é que o Direito Processual brasileiro enfrentou e disciplinou a efetivação das tutelas específicas, inicialmente pela dicção do CDC (art. 84) e depois por intermédio da nova redação dada ao art. 46186 do Código de Processo Civil. Cássio Bueno Scarpinella (2004,p.1.404), em breves considerações, trata dessa modalidade de tutela: Por tutela específica deve ser entendida a maior coincidência possível entre o resultado da tutela jurisdicional pedida e o cumprimento da obrigação caso não houvesse ocorrido a lesão de direito no plano material. Embora jurisdicionalmente, o que o autor pretende é obter o mesmo resultado que decorreria do cumprimento da obrigação no plano do direito material. Mesmo quando não for possível a obtenção da tutela específica, isto é, da mesma prestação que deveria decorrer do adimplemento da obrigação no plano do direito material por ato praticado pelo próprio devedor, o caput do dispositivo autoriza que o magistrado determine providência que assegure o resultado prático equivalente. A tutela jurídica vem ao encontro do direito de família para servir-lhe de modo efetivo, fazendo com que o bem da vida postulado por pais ou filhos possa-lhes ser entregue. Não haveria espaço nem sentido substituir direitos tão pessoais por uma equivalência pecuniária. O Código de Processo Civil, no desdobramento do mencionado art. 461, estabelece que o juiz pode, para cumprir decisão que obrigue alguém a fazer algo, ou abster-se de fazer ou ainda entregar certa coisa, impor ao obrigado outras medidas, tais como a fixação de multa diária, busca e apreensão, remoção de pessoas ou de coisas, 86 Art. 461 do CPC: Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providencias que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. 151 desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial (§ 5º do art. 46187 ). Quando o assunto é guarda de menores, unilateral, alternada ou compartilhada, pensa-se que a consagração da tutela específica no Direito Processual brasileiro vem a ser de muita valia para dar efetividade ao exercício da custódia, em qualquer de suas modalidades, fixada pelo juiz. Um juiz de família dispõe hoje de mecanismos suficientes a fazer cumprir e realizar no mundo fático aquilo que ele dispôs em sua decisão. Se, até o início da década passada, pelas técnicas processuais da ação de execução de então, era difícil solucionar os entraves criados por pais e mães no sentido de dificultar a operacionalização da guarda, na atualidade há mecanismos processuais eficazes que possibilitam que um genitor renitente dê faticidade a um comando judicial. Uma das formas coercitivas mais freqüentes utilizadas pela jurisprudência, para se fazer cumprir decisão judicial em casos que envolvem direito de família, tem sido a fixação de multa diária, cumulativa, até que a ordem do juiz venha a ser cumprida. Capturou o direito brasileiro as astreintes do direito francês que, tal como a nossa multa diária, se traduz numa técnica de coerção indireta para pressionar o devedor da obrigação a ter de cumpri-la. Embora o valor apurado com a aplicação da multa diária reverta para o credor da obrigação, não tem ela significado indenizatório ou mesmo punitivo. Ela existe para incutir no devedor da obrigação o sentimento que ele está perdendo algo mais pelo não atendimento da obrigação determinada pelo juiz, algo mais que importará em decréscimo de seu patrimônio, uma espécie de empobrecimento decorrente da renitência. O devedor se vê coagido e passa a perceber que pode ser melhor realizar a tutela concedida, porque do contrário estará propiciando ao seu adversário processual o ganho de significativa soma em dinheiro. Na prática, essa medida vem apresentando resultados satisfatórios e sendo aplicada em questões que envolvem o direito de convivência de pais e filhos em processos de separação/divórcio daqueles. O Superior Tribunal de Justiça a respeito decidiu 87 Art. 461, § 5º, do CPC: Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com o requisito de força policial. 152 Recursão Especial. Regulamentação de visitas. Descumprimento. Execução. Cabimento. No campo das visitas, o guardião do menor é devedor de uma obrigação de fazer, ou seja, tem o dever de facilitar a convivência do filho com o visitante nos dias previamente estipulados, devendo se abster de criar obstáculos para o cumprimento do que fora determinado em sentença ou fixado no acordo. A transação, devidamente homologada em juízo, equipara-se ao julgamento de mérito da lide e tem valor de sentença, dando lugar, em caso de descumprimento, à execução da obrigação de fazer, podendo o juiz inclusive fixar multa a ser paga pelo guardião renitente. (STJ, 4ª Turma, Resp. 701872/DF, rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJ de 01/02/2006, p. nº 565. Disponível em:< http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?acao=imprimir&livre=con vivencia+guarda+filho>. Acesso em: 25 jan.2008. (grifou-se). Além da multa diária por atraso no descumprimento da medida judicial, o parágrafo 5º do mencionado art. 461 autoriza que o juiz possa, para dar efetividade a sua decisão, se valer de outras medidas, tais como, a busca e apreensão, remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com o requisito de força policial. Pode, assim, o magistrado, determinar a busca e apreensão do menor na casa do genitor renitente, ou remover o pai ou a mãe que obsta o cumprimento da decisão, ou ainda impedir a realização de qualquer atividade que seja nociva aos interesses do menor e esteja em desacordo com a decisão deferida. Se o juiz entender necessário, para tanto pode designar o auxílio de força policial. São medidas extremas, mas que eventualmente podem representar o único meio de garantir a concretização dos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança/adolescente. Tem-se admitido com freqüência que as medidas necessárias à efetivação da tutela específica constantes do referido § 5º do art. 461/CPC não é conclusivo, por isso permitem-se outras medidas a serem decretadas pelo juiz da causa, incluindo entre tais a prisão civil do obrigado inadimplente. Há imensa polêmica em derredor do assunto, tanto na doutrina como na jurisprudência. Na doutrina, Fredie Didier Júnior (2007, p.364), em trabalho criterioso, elenca o nome de importantes juristas brasileiros que não admitem a prisão civil como medida coercitiva para pressionar o devedor a cumprir obrigação de fazer, não fazer e dar coisa, entre eles: Olvídio Baptista da Silva, Carlos Alberto de Oliveira, João Miguel Garcia Medina, Eilton Venturini e Humberto Theodoro Junior. Os que são favoráveis ao uso da prisão civil 153 como técnica de coerção processual, o referido autor aponta Luiz Guilherme Marinoni, Marcelo Lima Guerra, Pontes de Miranda, Donaldo Armelin, Sérgio Shimura, Rogéria Dotti e Lise Nery Mota. No Superior Tribunal de Justiça, conquanto seja assente que a aplicação de multa é um eficiente mecanismo para coagir alguém a fazer determinada atividade, inclusive nas relações jurídicas reguladas pelo direito de família, mantém-se o entendimento da não incidência da prisão civil coercitiva, a não ser nos estritos casos do depositário infiel de dívida alimentar, autorizados pelo art. 5º, LXVII88, da Constituição. De todo modo, a aplicação de tutelas específicas e de técnicas de coerção processual tem proporcionado mais efetividade às decisões judiciais proferidas em processos que envolvem direito de família. Sempre se exigirão do juiz cautela e bom senso porque está em voga um manancial de emoções que envolvem crianças e pais. Alessandra Monteiro89 (2004, p. 462) adverte que O juiz de família precisa estar dotado de poderes mais amplos para bem desempenhar a sua função. O processo de família não comporta formalismos e apego excessivo à lei. O juiz, na tarefa de zelar pelo cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer, assume relevante função, pois é a sua sensibilidade, na escolha das medidas a serem aplicadas, que determinará o êxito da aplicação da tutela do art. 461 do CPC ao direito de família. As medidas devem ser escolhidas com prudência, com base no princípio da proporcionalidade, a fim de que não sejam excessivamente gravosas para uma das partes. O juiz deve ter sempre em 88 Art. 5º, LXVII, da CF: art. 5º-… LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo o responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel; 89 Alessandra Monteiro traz exemplos de situações em que a aplicação de tutelas específicas e das suas técnicas de coerção processual pode resultar no fiel cumprimento das decisões judiciais em processos de família. Assim, afirma essa autora que: “ Por vezes o magistrado entenderá que a multa é a medida indicada para forçar o cumprimento específico de uma obrigação, mas não a sua periodicidade diária, e decida aplicar um montante fixo para cada vez que o dever de fazer ou não fazer for inobservado, como em casos de agressões físicas e psicológicas do pai ao filho. Por outras compreenderá que será difícil comprovar a resistência do devedor, para fins de aplicação de sanção pecuniária, e já determine, em casos extremos, a forma de cumprimento da obrigação para facilitar a prova. Por exemplo: para verificar se a mãe vem cumprindo o dever de permitir ao pai visitar o filho, o juiz pode determinar que, por certo período, a criança seja entregue ao genitor no Fórum. Outras vezes, ainda, notará, eventualmente, que a aplicação de multa pecuniária não é a modalidade de sanção mais indicada, mormente quando as partes envolvidas são pobres, e prefira impor alguma outra. Exemplo: regulando o direito de visita, o juiz pode ordenar que, para cada dia que a mãe impeça o pai de ver seu filho durante os dias da semana, seja acrescido um dia de visita para o pai durante as férias e feriados. Enfim, é na riqueza da vida cotidiana que o juiz, valendo-se dos poderes genéricos que lhe foram atribuídos pelo art. 461 do CPC e de sua criatividade, zelará por um processo mais humano e que, efetivamente, seja um instrumento de justiça.” 154 consideração que o fundamento último de sua atividade, principalmente nessa seara, é garantir a dignidade da pessoa humana e, para isso, deve estar sempre aberto a dialogar com as partes envolvidas, para compreender os seus dramas internos e poder, de fato, ajudá-los na solução. Também pela nova redação que a Lei 11.698/08 imprimiu ao art. 1.584 do CC, há possibilidade de aplicação de medidas coercitivas, em face da não efetivação das tutelas de guarda, conforme estabelece o § 4º do citado artigo: Art. 1. 584 - ... § 4º - A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. Esta é uma norma jurídica em aberto, pois deixa nas mãos do magistrado os modos e formas que adotará para reduzir as prerrogativas do pai ou mãe renitente/inadimplente, inclusive sobre a redução de tempo com o filho. Em cada caso poderá ser adotada uma medida restritiva diferente, conforme a sua utilidade e/ou necessidade. Assim, se, por exemplo, o genitor guardião criar obstáculos a que o genitor visitante exerça seu direito à visitação e companhia do menor, o juiz poderá reduzir a extensão dos dias de guarda e aumentar os de visita; ou, na guarda compartilhada, incrementar o convívio com um em detrimento do outro que descumpriu a cláusula. Se o descumprimento for do genitor não guardião,, ser-lhe-á reduzidos os dias de visitas. Todas essas medidas ou outras similares devem ser adotadas com cuidado e moderação uma vez que punindo um dos pais, pune-se a criança também. Ao reduzir o período de estadia entre pais e filhos, o magistrado condenará o menor,a sentir a ausência do genitor sancionado. Há assim, na atualidade, um forte aparato legal a possibilitar a concessão e execução de medidas judiciais que objetivem a regulação e o exercício da guarda unilateral, alternada ou compartilhada. Mas, às vezes, isto não basta; é preciso ir além. Faz-se necessária a adoção de medidas extras processuais, de cunho 155 educativo/orientativo, como mecanismo de viabilizar no dia-a-dia um bom convívio dos pais, que já foram casados/companheiros, com seus filhos. Às vezes uma ordem judicial pode ser cumprida fielmente parecendo satisfatória, à primeira vista. Porém isso pode resultar em um alto custo emocional para os envolvidos, sobretudo, para as crianças e os adolescentes. É preciso mais, não basta tentar proteger os direitos infantis com o uso apenas de rígidas interdições legais. O juiz pode e deve incitar a adoção de outras medidas, que despertem nos genitores o sentido e alcance da paternidade e maternidade responsáveis. Nesse sentido o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece no seu art. 129: Art. 129 – São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; II – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento de alcoólatras e toxicômanos; III – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; IV – encaminhamento a cursos ou programas de orientação; V – obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar; VI – obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado; VII – advertência; VIII – perda da guarda; IX destituição de tutela; X – suspensão ou destituição do pátrio poder. Sobre o dispositivo, Gustavo Tepedino (2005, p,321), ressaltando a função orientadora do direito, concebe: O art. 129 prevê inúmeras medidas a serem postas em ação pelo Judiciário, com a participação ativa do Ministério Público, para a efetividade de uma formação consentânea com a doutrina da proteção integral. O legislador especial (ECA) preocupou-se com a função promocional do direito, prevendo, ao lado das sanções repressivas, a serem aplicadas em casos extremos, medidas de educação e estímulo aos pais, visando a assunção de suas responsabilidades, próprias da autoridade parental. Assim é que o Ministério Público e a Magistratura, além de sua atuação junto aos menores, têm efetivamente promovido junto aos pais reuniões, seminários, cursos, colóquios com o apoio de psicólogos, no intuito de dar efetividade social à autoridade parental, como múnus privado de realização da personalidade dos filhos. 156 As medidas previstas no art. 129 do ECA podem ser impostas diretamente pelo juiz ao genitor ou responsável (incisos VIII a X) e como também ser por ele solicitadas ao Conselho Tutelar (incisos I a VII), cabendo ao Ministério Público fiscalizar a atuação do Conselho no exercício de suas funções. O que chama a atenção nesse contexto é saber os limites funcionais de uma decisão judicial, ou, por outras palavras, poder avaliar até que ponto a solução do conflito pode ser judicializada totalmente. Há medidas que podem ser diretamente determinadas pelo juiz, tais como a perda da guarda, a destituição de tutela ou a suspensão ou destituição do pátrio poder, que são extremas e têm forte conteúdo repressor, mas podem não ser a solução para o problema que aflige a família. Impor a um mau pai a perda do poder familiar ou a uma mãe desidiosa a perda da guarda pode não ser, do ponto de vista existencial/psicológico, a melhor resolução para uma determinada situação conflituosa na família. É essencial que se compreenda que as decisões judiciais podem ser efetivadas no mundo fático e executadas e obedecidas com exatidão, mas é necessário que se entenda que, mesmo assim, isso poderá não ser o bastante. O término de um processo judicial — quase sempre longo e doloroso —, não representa o fim do conflito, a solução do problema na intimidade dos envolvidos. O processo termina e se encerra não porque atingiu o objetivo íntimo de cada litigante ou de um deles pelo menos. O processo finaliza porque o direito foi aplicado, à exaustão, dentro dos limites que o próprio direito consegue impor. Do ponto de vista técnico-jurídico, o conflito está extinto com a decisão final transitada em julgado e dessa maneira a Justiça se retira da vida das pessoas, mas para eles a injustiça continua. Como lembra Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2004, p. 309) A institucionalização do conflito e do procedimento decisório confere aos conflitos jurídicos uma qualidade especial: eles terminam. Ou seja, a decisão jurídica é aquela capaz de lhes por um fim, não no sentido de que os elimina, mas que impede sua continuação. Ela não os termina por meio de uma solução, mas os soluciona, pondo-lhes um fim (cf. Ballweg, 1970:105). Ao contrário de outros conflitos sociais, como os religiosos, os políticos, os econômicos, os conflitos jurídicos são tratados dentro de uma situação em que eles encontram limites, não podendo ser retomados ou levados adiante indefinidamente (noção de coisa julgada). 157 Por isso, os magistrados devem estar cientes dos limites de seus superpoderes institucionais e reconhecerem-se, em certas ocasiões, como co-partícipes nos encaminhamentos dos conflitos familiares. Em muitos casos, a atuação do Judiciário é o único meio eficaz de fazer valer direitos e interesses, em outros, porém, há que se reconhecerem as limitações do Estado, por mais intervencionista que agora seja. Os conflitos intrafamiliares devem também ser alvo de abordagens multidisciplinares e submetidos a outras fontes de poder/saber humano. A decisão de um juiz, como agente estatal de poder, deve, inexoravelmente, ser cumprida em sua inteireza, por isso o magistrado só pode decidir sobre o que será realizado faticamente pelo obrigado, isto é, conforme aquilo que o ordenamento jurídico previamente regrou. Acontece que, nas relações familiares, há condutas que passam por planos subjetivos, conscientes ou inconscientes, que fogem aos domínios do direito, mas se esses planos da subjetividade não podem ser normatizados pelo direito, não poderão também por ele ser comandados. O direito só obriga sobre o que previamente normatizou. Quando o conflito familiar tem raízes nesse universo de subjetividades estranhas ao direito, essas raízes serão regadas por outras fontes do saber humano. O conflito precisa ser juridicamente qualificado para ser alvo de uma decisão juridicamente realizável. Na medida em que o direito não chega a qualificar ou regular o amor, a ternura ou a tristeza será impotente para regrá-los. O juiz, constatando o desequilíbrio emocional de uma mãe, que por seu turno implica em sofrimento para seu filho, poderá condená-la a realizar tratamento psicológico (obrigação de fazer), mas isto não significa que o tratamento seria exitoso, já que depende da demanda da própria mãe. O sucesso ou não do tratamento não passa pela ordem do magistrado e sim pela conscientização da paciente ,de que precisa e tem condições de se reorientar sobre certas atitudes suas. O juiz não pode aconselhar um criminoso a não mais praticar um crime e com isso esperar que ele se redima. Por esta razão, só lhe resta julgá-lo e fixar a pena de reclusão, que será inexoravelmente cumprida. Em casos assim, a atuação do Estado é implacável. Essas interdições penais são violências institucionalizadas que satisfazem a sede de justiça da sociedade. Para o Direito de família, o poder repressor estatal deve ser mitigado conforme cada situação específica. Para um pai que maltrata e despreza a filha seria bastante a 158 decretação judicial da perda do poder familiar? Esta perda é a melhor solução para essa filha? Ou será que o tratamento psiquiátrico ou psicológico desse pai não seria uma solução a ser perseguida? Isso requer algumas reflexões: (a) os juízes na atualidade dispõem de mecanismos eficazes e aptos para dar efetividade e concretude às suas decisões; (b) alguns comportamentos são muito pessoais, muito íntimos e o direito não os alcança por inteiro; e, por isso, (c) alguns conflitos reclamam tratamento interdisciplinar. 159 CONCLUSÃO A guarda de filhos menores no pós-separação dos pais tem sido um desafio constante para a boa solução dos litígios intrafamiliares. Perpassa por aspectos culturais de nossa sociedade, de raízes fincadas no patriarcado; atinge os meandros psicológicos dos genitores e de seus filhos e afeta o sistema jurídico do Direito de família e do Direito processual, com especificidades de cunho conceitual, hermenêutico e operativo. Sob o aspecto cultural, se viu que ainda remanesce em algumas das decisões judiciais relativas à guarda a crença derivada do senso comum de que a mãe deve ser a guardiã dos filhos porque detentora do ‘instinto materno’, que lhe confere maior aptidão para o convívio e educação da prole. Ao homem deve ser confiado o papel de provedor e visitante. Mas esse posicionamento, que já não corresponde à orientação majoritária da jurisprudência, parece tender a esmaecer. Já se percebe que os operadores do Direito, ante a constatação da dificuldade de solucionar as lides familiares apenas pela ótica jurídico-positivista, vêm abrindo espaço ao seu equacionamento fundados na interdisciplinaridade, de modo que a custódia de menores, ainda que decidida pelo juiz, passa a ser abordada por outras fontes do saber. Nesse sentido, tanto o ECA como o Código Civil abrem espaço à instrução processual motivada na perícia interdisciplinar. O menor deve ser visto como o foco principal nas ações relativas à sua guarda. É, pois, um sujeito de direito, o que implica em ser uma pessoa suscetível de satisfazer seus direitos, isto é, desejos, capacidades e necessidades juridicamente protegidas. Como sujeito de direito, pode dispor de meios que garantam a satisfação de seus desejos socialmente consensados e permitidos: o direito ao aleitamento materno, à ludicidade adequada, à escola qualificada, à assistência médica apropriada, à convivência comunitária e familiar, ao respeito; enfim, todo modo de garantir seu bem-estar, conforme indica o ordenamento jurídico que lhe é protetivo. 160 Se a criança ou adolescente é o foco, a modalidade da guarda a ser adotada — unilateral, compartilhada ou alternada —, esta não é importante por seus próprios atributos, mas em função do que, no caso concreto, pode proporcionar ao filho, em termos de garantir seu melhor interesse e a proteção integral de seus direitos. De outro lado, a fixação da guarda não poderá contrapor-se à igualdade de gênero, constitucionalmente consagrada. É possível que a guarda unilateral se apresente como a modalidade mais adequada de custódia. Deve o magistrado optar pela guarda unilateral, apenas como alternativa excepcional, quando verificar que o convívio da criança/adolescente com ambos os pais não será o mais indicado ao seu melhor interesse e, por isso, optará, por aquele cônjuge que revele melhores condições para exercê-la e mais aptidão para propiciar aos filhos afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; saúde, segurança e educação. Haverá situações, portanto, em que a convivência com um dos cônjuges não será a mais adequada para o filho, quer porque o genitor lhe seja muito agressivo, ou porque possa molestar-lhe sexualmente; seja porque o conduz a ambientes nocivos à sua formação psicológica e moral, etc. Os casos específicos serão apreciados pelos juízes para que, diante de tais situações tão graves, suprimam o exercício do direito à convivência familiar, decidam pela guarda exclusiva. Pode ser que diante de determinadas circunstâncias, a guarda alternada se apresente como solução cômoda e congruente para com os interesses do menor. A nova Lei de Guarda nada dispõe sobre a guarda alternada, regulando apenas a unilateral e a compartilhada. Todavia, não parece algo proibido e que deva ser peremptoriamente excluído do sistema jurídico, porque o essencial é a preservação do melhor interesse do infante. Talvez seja possível num ou noutro caso isolado, que os pais e os filhos possam consensar a possibilidade de conviver na alternância da custódia. Se essa alternância não se traduzir maléfica para o menor, não há porque, aprioristicamente, indeferi-la. Só a título de exemplo, é possível que os pais separados residam bem próximos e que possibilitem à criança o convívio num só ambiente de amigos da rua ou do bairro; junto à escola; ao parque no qual freqüenta, etc. e que, além de tudo, demonstre o menor, em face de uma cuidadosa 161 avaliação psicossocial, o real interesse de morar alternadamente na casa de cada um dos pais, por períodos distintos e pré-definidos. A guarda compartilhada é o ideal a ser perseguido. O casamento, a união estável, o concubinato, os encontros eventuais ou acidentais caracterizam-se como relações humanas passíveis de gerar filhos. Mas seja como for, mesmo com o fim dessas relações, haverá, para o direito brasileiro, um vínculo entre pais e filhos, fincado em direitos e deveres mútuos e recíprocos, que enfeixam o poder familiar. A dissolução dessas uniões afetivas/carnais entre pessoas, duradouras ou casuais, formais ou informais, põe fim aos enlaces havidos entre os casais, encerrando tais relacionamentos, mas não os liames do poder familiar. O nascimento de filhos gera o estabelecimento de uma relação jurídica independente de que seus pais ainda estejam ou não unidos. Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 estatuiu o direito à convivência familiar como sendo um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Esta Constituição também prescreve que homens e mulheres são iguais perante a lei e, especificamente nas relações familiares, há também igualdade de direitos e deveres para as mulheres e os maridos. Tudo isso surge, em verdade, como um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana exaltado pelo texto constitucional. É, como reflexo das demandas sociais pela igualdade entre as pessoas, inspiradas pelos ideais institucional-democráticos que se instalam no país a partir do início dos anos 1980, e também influenciado por documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e notadamente aos direitos infanto-juvenis, que o direito positivo brasileiro, constituído no último quartel do século passado, preconiza em suas normas premissas voltadas para o que podemos chamar de isonomia familiar, e que afasta a idéia da família hierarquizada. Busca-se, então, com essa isonomia, a participação e a interação entre maridos e mulheres e também seus filhos, do mesmo modo que a legislação procurou 162 estabelecer a desvinculação dos papéis de marido e mulher (culpados ou não pela separação) dos papéis de pai e mãe. O casamento/união é dissolúvel, a filiação não. Não há, de regra, que se falar mais de pai ou mãe guardião e de pai ou mãe visitante como sendo, para os filhos, uma conseqüência necessária natural ou legal do fim do matrimônio. Em princípio, os pais e as mães podem, depois da ruptura conjugal, continuar a serem pais e mães em toda a inteireza de seus significados. São reflexos jurídicos das mudanças socioculturais que não podem escapar a quem se debruça sobre a família de hoje. Desponta nesse ambiente o desejo e a busca de ambos os pais e dos filhos pela guarda compartilhada. Essa espécie de custódia pode ser concebida como a prorrogação da convivência da família após a separação do casal. O casamento se encerra para o casal e, com o seu fim, também termina para os consortes o sentido de formar um todo em relação a si próprios. Definitivamente, a mulher e o homem que se afirmam separados, com ou sem o referendo jurisdicional, desfazem o compromisso ético, moral, afetivo e jurídico nutrido pela conjunção de suas vidas. Mas os filhos são os filhos. Os filhos nascem dos pais, não da esposa e do esposo, no seu sentido de casal apenas. A esposa e o esposo já não existem mais, porém os pais e os filhos se perpetuarão como tais por toda vida, e o direito tem que estar atento a isso. 163 REFERÊNCIAS AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. O Estatuto, o Novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. São Paulo: Malheiros, 1994. AKEL, Ana Carolina Silveira. Guarda Compartilhada: um avanço para a família. São Paulo: Atlas, 2008. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda h. Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC1981. BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/43852,1>. Acesso em: 19 jun. 2008. BEDAQUE, Jose Roberto. 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