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1 REFLEXÕES SOBRE A OBRA O ESPÍRITO DAS LEIS (LIVROS I, II, III, V, IX E X) Victor Hugo Veppo Burgardt1 INTRODUÇÃO O objetivo principal da presente conferência é discutir os reflexos da teoria política de Montesquieu na política internacional e provocar uma discussão sobre seus possíveis desdobramentos na república brasileira, muito embora eu vá chamar muito pouco à atenção sobre o caso do Brasil, pela limitação temporal desta apresentação, o que me força a deter-me mais nos comentários sobre a obra aqui considerada. A obra O ESPÍRITO DAS LEIS, de Montesquieu, é muito ampla, razão pela qual escolhi seis livros da obra Espírito das Leis para refletirmos, por achar que são os que mais diretamente se relacionam com nosso curso de Relações Internacionais, sem deixar de admitir, também, que a análise que aqui faço não é a única. Há muito mais a ser analisado nestes livros. Trata-se de uma leitura entre as leituras já feitas sobre a obra do grande iluminista. Outra observação que faço nesta pequeníssima introdução é o fato de eu utilizar pouquíssimos referenciais teóricos, pois, se estabelecesse um diálogo de Montesquieu com outros teóricos de outras épocas, estas páginas não comportariam um conteúdo que pudesse ser trabalhado no tempo previsto para uma aula. Penso que se trata de uma leitura altamente importante para o acadêmico de Relações Internacionais, pelo que Montesquieu representa como teórico fundamentador de princípios políticos que influenciaram a construção de importantes Estados, entre os quais a república norte-americana, conforme veremos ao estudarmos os federalistas desta república. Chamo a atenção nesta oportunidade sobre os seguintes livros do grande iluminista: sobre as leis gerais, sobre as leis derivadas da natureza dos governos, sobre os princípios dos três tipos de governos (ressalto que o pensador ora se refere a 1 Historiador, professor de Fundamentos de Ciência Política e de Teoria Política Moderna e Contemporânea, da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). 2 governo, ora se refere a Estado, como se sinônimos.), sobre as leis e as relações que estas devem ter com os princípios governamentais (ou constitucionais), sobre a relação das leis com a guerra defensiva e, por último, sobre as leis e suas relações com a guerra ofensiva (ou de conquista). Pela distribuição dos livros no texto já se pode ter uma ideia sobre o método utilizado por Montesquieu para explicar a importância do assunto que ora apresento. Se atentarmos para isto, perceberemos que, num primeiro momento comenta as leis em sua origem, para logo em seguida refletir sobre a natureza e os princípios dos governos. Somente após estas reflexões se percebe que a política externa, tanto de defesa quando de conquista, requer leis específicas e estas são, na verdade, um reflexo da formação natural e dos princípios governamentais, o que caracteriza as ações de cada tipo de Constituição no trato das questões de foro internacionais. Deixo de entrar aqui na questão da divisão dos poderes, tema muito importante e que se constitui em uma marca das Constituições contemporâneas, uma vez que pretendo discutir este assunto em aulas futuras. Passo, então, a discorrer sobre o primeiro livro da obra que me proponho apresentar, convidando-os a percorrerem comigo este caminho traçado pelo grande iluminista. Livro I – Das leis gerais Se atentarmos às primeiras páginas da obra de Montesquieu, perceberemos logo alguns traços da pessoa do grande iluminista, aliás, perscrutando toda obra podem-se perceber tais traços, afinal, as condições de produção sempre irão influenciar, em maior ou menos grau, a personalidade e a escrita do texto. As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica (ORLANDI, 2000:40). Num contexto em que as ideias pululavam e de avanço rápido do ateísmo característico da modernidade (ou do agnosticismo) ele aparenta certa preocupação em arrumar em sua obra um lugar para Deus, ao definir limites entre o que é natural e 3 o que é humano, colocando-O no primeiro destes níveis e isto fica bem evidente quando demonstra certo desconforto com a expressão “fatalidade cega”, i.e., uma concepção materialista da criação universal. Talvez, pelo fato de ter, com a proposta de positivação das leis, rompido “com a tradicional submissão da política à teologia” (ALBUQUERQUE, 2006:115), teve sua obra colocada no índex da Igreja Católica. “Faziam parte da lista clássicos literários e científicos da cultura ocidental como, O Espírito das Leis e Cartas Persas, de Montesquieu, Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, e A Origem das Espécies, de Charles Darwin” (ABRIL CULTURAL, srd:1). Ora, não entrando no mérito das ideias agnóstica ou ateia de improbabilidade ou de inexistência de Deus, o fato é que ele acredita, ou diz acreditar em uma influência originária do Criador contida nas leis naturais (não devemos aqui descarar qualquer possibilidade de certa escrita “politicamente correta”, por vezes utilizada pelos autores). Discorda em parte de Hobbes e da teoria contratualista do Leviatã, pois, em determinado momento, mesmo reconhecendo as limitações humanas, limitações estas que acabam por fazer o homem desviar-se das leis divinas e de suas próprias leis, infere que a guerra de todos contra todos começa no momento em que o homem decide aceitar o pacto e viver em sociedade, razão pela qual passa a portar armas e colocar chave nas portas. Percebe-se aqui uma aproximação de Rousseau. As leis, concebidas como naturais e positivas seriam, portanto, a consolidação do pacto, i.e., uma forma de as sociedades enfrentarem-se individual e coletivamente, ou seja, estabelecerem relações entre os indivíduos como seres sociais e entre as sociedades como nações, aliás, as leis são tão analisadas em sua essência na obra deste iluminista que em boa parte do livro aqui em análise há uma fundamentação natural no estabelecimento das legislações e, com isto, nos princípios e nas formas dos governos. Refiro-me a fundamentação natural no sentido de influência do meio natural na legislação, nos legisladores e na população como um todo, o que se pode traduzir em uma única palavra: determinismo. Não percebo em Montesquieu um momento em que este desconsidera as leis naturais, mas, ao contrário, ele é determinista e dispensa a estas leis uma importância muito grande e, ainda, o fato de serem anteriores ao pacto as tornam elementos primordiais no processo legislativo. A positivação das leis seria o estabelecimento de uma norma relacional entre os seres humanos entre si e o meio natural. As leis naturais seriam, neste contexto, um norteamento das atitudes humanas, por estarem os seres humanos, inexoravelmente, delas dependentes, desdobrando-se, segundo a obra, na 4 escrita das leis civis, aqui denominadas: DIREITO DAS GENTES, DIREITO POLÍTICO e DIREITO CIVIL. Segundo Bittar, a obra de Montesquieu “visa, num contexto em que impera a razão, denunciar a importância das leis na constituição da sociedade, bem como enunciar os princípios, as regras e as formas pelas quais se pode garantir sua primazia para o governo das coisas humanas” (2008:193). Tão importante é a teoria política do grande iluminista que veio influenciar decisivamente, além da emblemática Revolução Francesa, a construção de várias repúblicas, entre estas a norte-americana. A influência de Montesquieu sobre a formação desta grande república é muito clara quando se analisa os textos escritos pelos federalistas que construíram politicamente os Estados Unidos da América. Livro II – Das leis que derivam diretamente da natureza do governo Observando a tríade estabelecida por Montesquieu, com relação às formas de governo (república, monarquia e despotismo), podem-se constatar algumas diferenças com relação ao que já estudamos nos demais contratualistas até aqui analisados. Aparentemente dá uma atenção maior ao modelo republicano e estabelece diferenças entre uma república democrática e uma república aristocrática. Naquela atribui ao povo o status de monarca e de súdito, dependendo das condições em que se encontra a democracia, i.e., o povo é monarca quando para ele são estabelecidos sufrágios, manifestações de suas vontades. Montesquieu entende que cabe ao povo, na república democrática, escolher representantes (até certos níveis), desde que tenha conhecimento sobre os escolhidos, e.g.: se um guerreiro fora muitas vezes para o combate, certamente seria uma ótima escolha para general; se um juiz era tido como, na prática, avesso à corrupção, seria uma boa escolha para o cargo de pretor;2 se um cidadão fosse admirável ou rico, poderia ser uma ótima escolha para edil3 e, assim, os demais representantes. “O povo é admirável quando escolhe aqueles aos quais deve delegar uma parte de sua 2 Funcionário da justiça na Roma antiga. Os cidadãos apresentavam suas queixas ao pretor e este decidia quais eram justificadas e as despachava para serem julgadas pelos juízes. 3 Título concedido aos membros de uma junta de magistrados eleitos anualmente na antiga Roma. A junta era responsável pela manutenção da ordem pública. Além disso, supervisionava o comércio, o mercado e as provisões de água e alimentos, ocupando-se também de vários encargos públicos. Até 367 a.C., a junta era formada por dois plebeus. Depois, a ela foram acrescentados dois patrícios. Vereador 5 autoridade. Ele deve ser determinado apenas por coisas que não pode ignorar e por fatos que se encontram à vista” (MONTESQUIEU, 2005:20). Se por um lado há em Montesquieu o entendimento que o povo, por conhecer as pessoas, esteja em condições de escolhê-las para representantes, por outro discorda que na escolha do administrador público a “arraia miúda” seja competente para tal, pois, “assim como a maioria dos cidadãos, que têm pretensão bastante para eleger, mas não para ser eleito, o povo, que tem capacidade suficiente para fazer com que se prestem contas da gestão dos outros, não está capacitado para gerir” (id., p. 21), observação esta justificada por exemplos históricos da antiguidade greco-romana. Outra constatação que se faz no texto sobre a natureza da república democrática é a necessidade da divisão em classes sociais e como a Grécia resolveu o problema da representação, mas, o que mais me chamou a atenção no encerramento deste capítulo foi a importância dos chamados “conluios”, o que, aliás, está na essência da dignidade de um povo: A infelicidade de uma república é quando não há mais conluios; isto acontece quando se corrompeu o povo com dinheiro; ele começa a ter sangue-frio, afeiçoa- se ao dinheiro, mas não mais se apega aos negócios; sem preocupação sobre o governo e sobre o que nele é proposto, espera tranquilamente seu salário (MONTESQUIEU, id. p. 23). Chamo a atenção sobre este fragmento discursivo do grande pensador aqui considerado e trago à reflexão aos dias atuais de nossa república brasileira. Com relação à natureza da outra forma republicana, a aristocracia, deixa bastante evidente seu repúdio, chegando a afirmar que esta se difere da monarquia apenas no número de integrantes no poder de soberania e, alertando sobre o perigo de um governo aristocrático com poderes ilimitados, sugere um senado, como instrumento de controle sobre o poder dos nobres e como filtro das matérias a serem legisladas. Na verdade, um senado como regulamentador da própria aristocracia, i.e., quase um poder legislativo. Eu arrisco afirmar que este “quase poder legislativo” estaria para a nobreza, assim como o pretor estava para os juízes, com uma diferença: naquele caso seriam vários a preparar as matérias legislativas, ao passo que, neste apenas um decidiria as matérias relevantes a julgar. Além de explicar a natureza do governo aristocrático, reconhece períodos de exceção e comenta as situações históricas das repúblicas romana e veneziana, bem como as formas ditatoriais e inquisitoriais e, ressalta ainda que a grandeza do poder de 6 uma magistratura é proporcional à suficiência de seu tempo de duração. Propõe, por conseguinte, a popularização da aristocracia, pela manutenção de um pequeno número de excluídos. Segundo Montesquieu, “a melhor aristocracia é aquela na qual a parte do povo que não tem participação no poder é tão pequena e tão pobre, que a parte dominante não tem nenhum interesse em oprimi-la” (id. p. 25), afinal, segundo ele, a imperfeição da aristocracia ocorre quando esta se aproxima do modelo monárquico, ao contrário da aproximação do modelo democrático. Com relação às leis e a natureza do governo monárquico, apresenta dois instrumentos necessários no controle do próprio governo: os grupos intermediários aparecem como instância por onde flui o poder e é aqui o lócus onde se tenta controlar o próprio poder soberano (não limitá-lo, mas, simplesmente controlá-lo) e sugere a Igreja como um destes instrumentos. Segundo ele, “assim como o poder do clero é perigoso numa república, ele é conveniente numa monarquia, principalmente naquelas que tendem para o despotismo” (MONTESQUIEU, id. p. 27). Outro instrumento de controle do poder soberano é o chamado “depósito de leis”, instância que seria um complemento do controle exercido pelos grupos intermediários e repousaria nos chamados “corpos políticos”, que anunciariam as leis e lembrariam sobre o cumprimento destas quando esquecidas. Retira do Conselho do soberano a responsabilidade por este “depósito”, por não ser conveniente deixá-lo nas mãos da nobreza. Como se percebe até aqui, detém-se Montesquieu a maior parte deste livro no modelo republicano, sendo bastante sucinto com relação ao modelo monárquico e, mais sucinto ainda sobre o modelo despótico. Aliás, com relação a este modelo de Estado, afirma o iluminista que não há nem leis fundamentais nem “depósitos de leis” e vê aqui uma importância muito grande da religião e dos costumes, tendendo, por vezes, se tornarem as próprias leis. Pelas qualidades negativas do soberano, há necessidade no despotismo de um encarregado da administração, recaindo tal responsabilidade sobre o chamado vizir.4 A instituição do vizir seria quase uma norma fundamental no despotismo e, ao que parece, pela leitura que faço deste livro, o déspota se torna uma figura decorativa, escravo de seus próprios prazeres. 4 Título usado em alguns países muçulmanos para designar autoridades como ministros de Estado. A palavra vizir vem da palavra árabe wazir, que quer dizer aquele que ajuda alguém a carregar um fardo. No Império Otomano, os vizires chefiavam os ministérios do governo. No séc. XIX, a autoridade mais importante do império era o grão-vizir, que era uma espécie de primeiro-ministro. 7 Livro III – Dos princípios dos três governos O que Montesquieu concebe como princípio de governo? Ele aponta como princípio, as paixões humanas capazes de imprimir movimento ao governo, i.e., as razões subjetivas que provocam o agir na condução do poder e, neste sentido, aponta quatro princípios importantes que norteiam as três formas de governo, tais sejam: virtude, moderação, honra e medo. O princípio republicano democrático O governo republicano é regulado pelo princípio da VIRTUDE. Ora o que vem a ser esta virtude que perpassa o poder e os cidadãos de uma república, principalmente se esta república tem um caráter mais popular do que aristocrático? Montesquieu, antes de chamar a atenção sobre a virtude como princípio do governo republicano, da a entender que nos governos não republicanos ou, pelo menos, nos não democráticos, é desnecessário que se tenha tanta preocupação com a retidão, integridade de caráter, honestidade e outros valores muito caros à república, uma vez que nos governos de princípios alheios ao princípio republicano, a força e a ameaça mantém o povo sem o direito de agir contra os desmandos porventura cometidos pelo poder, i.e., não lhe é facultado o direito a contestação, diferente do que ocorre na forma republicana. No governo republicano, além do governante estar submetido à lei, é ele que suporta o peso da própria lei, ou seja, cada vez que a lei provoca consequências desastrosas para a sociedade, é sobre os ombros do mandatário que recairá todo o peso do desastre. É neste caso que se pode perceber o sentido da participação popular nas decisões e é aqui que, mesmo sem Montesquieu ter citado, porém, como contratualista que é, deixa uma pista suficientemente clara sobre o sentido do pacto social hobbesiano, em seu sentido primeiro, ou seja, no que concerne a autoridade representativa a quem se entrega a soberania. Num governo republicano todos (governantes e governados) se rejubilam nos tempos bons, de glória, mas, todos também sofrem as consequências das tragédias ou, pelo menos, assim parece que deveria ser, no pensamento do grande iluminista. 8 Mais recentemente, Bobbio retoma este tema e lembra que “democracia é um conjunto de regras” (2011:30). O cumprimento da lei, portanto, pela leitura que faço deste livro e, atento à teoria política mais recente, ao que parece, é o verdadeiro sentido que se pode dar ao princípio republicano da virtude. “Quando num governo popular as leis tiverem cessado de ser executadas, como isto só pode vir da corrupção da república, o Estado já estará perdido” (MONTESQUIEU, 2005:32). Ao cessar esta virtude, segundo este, “a ambição entra nos corações que estão prontos para recebê- la, e a avareza entra em todos ( ... ). A república é um despojo; e sua força não consiste em nada além do poder de alguns cidadãos e na licenciosidade de todos” (id. p. 33). O princípio republicano aristocrático Com relação ao governo republicano aristocrático, a virtude não está dispensada como princípio de governo, porém, como pondera Montesquieu, esta, ainda que necessária, não se consagra como totalmente necessária, uma vez que o papel do povo diante da aristocracia é o mesmo do povo diante do monarca, portanto, a partir de uma necessidade maior de controlar a tendência do povo em participar com mais intensidade do governo, por se tratar de uma república, há que articular estratégias para dissuadi-lo. Tais estratégias, no entanto, jamais se constituem na abdicação ao princípio da virtude. Toda forma de desvirtuamento deve parecer parte da virtude e é neste contexto que a nobreza mascara a virtude criando um controle de si mesma, com mecanismos legais que subtraem da nobreza a necessidade de seguir a lei destinada ao povo. Segundo Montesquieu, “o governo aristocrático tem por si mesmo certa força que a democracia não possui. Nele, os nobres formam um corpo que, por sua prerrogativa e pelo seu interesse particular, reprime o povo: basta que existam leis neste sentido, para que elas sejam executadas” (id. p. 34). E continua o grande iluminista: “mas, tanto quanto é fácil para este corpo reprimir os outros, é difícil que ele reprima a si mesmo. A natureza deste regime é tal que parece que ela coloca as pessoas sob o poder das leis, e ela mesma as subtrai a este poder” (id. ibid.). Percebem-se no governo republicano aristocrático duas formas de se reprimir a nobreza, tais sejam: a conscientização da nobreza da necessidade de igualar-se ao povo, o que direcionaria o modelo para uma república popular; e a MODERAÇÃO, i.e., a igualdade entre os próprios integrantes da nobreza, princípio responsável pela 9 própria conservação deste segmento. Ao que parece, Montesquieu considera esta última mais eficaz na aristocracia, uma vez que, comentando o princípio aristocrático, ressalta que “a moderação é a alma destes governos”. (id. ibid.), ou seja, moderação aqui admitida contendo em suas bordas, um mínimo de virtude cívica. Penso que esta forma aristocrática consolida o modelo liberal, bem de acordo com a burguesia ascendente na França e já implantado na Inglaterra quase um século antes, classe esta que virá substituir a nobreza, apropriando-se de seus valores, os que lhe são úteis. O princípio monárquico O princípio do governo monárquico se distancia do princípio republicano democrático e tende a se aproximar do modelo aristocrático. Se neste ainda se valoriza o patriotismo, a abnegação, a busca da glória, etc..., na monarquia estes valores desaparecem, pois, a virtude não é o princípio deste governo, muito menos se pode cogitar certa moderação, embora esta tenda a ocorrer no interior do segmento nobre. Segundo Montequieu, “não é raro que existam príncipes virtuosos; mas estou dizendo que, numa monarquia, é muito raro que o povo o seja” (id. p. 35). Ora, o povo não é virtuoso porque é súdito e o status de súdito, a meu ver, não é compatível com o status de cidadão, pois, este é compatível com a soberania típica do modelo republicano democrático. Assumo a responsabilidade por esta observação, uma vez que o grande pensador utiliza frequentemente em seu texto a palavra cidadão quando se refere ao súdito. Objetivando mostrar o princípio monárquico de governo, o iluminista tece críticas bastante contundentes aos integrantes da corte observando os desvios de caráter da maioria dos príncipes, em oposição à honradez da maioria dos súditos (para Montesquieu cidadãos) que, segundo ele, são pessoas de bem. Após esta observação, Montesquieu apresenta o verdadeiro princípio do governo monárquico: a HONRA, i.e., o sentimento de dignidade (DIIONÁRIO ON LINE) que, a meu ver, pode ser entendido como o enobrecimento da alma. Nobres são os de origem, ou seja, filhos da nobreza, porém, a nobreza de caráter é estendida a todos e a honra pessoal faz parte deste enobrecimento de alma, apanágio do homem digno. O que fica mascarado é o fato de a honra ter duas vias: de um lado a honra que desce, ou seja, é cobrada do cidadão (que seja honrado); do outro a honra que sobe, proclamada pela 10 nobreza. Todos devem ter honra e, segundo Montesquieu, esta “toma o lugar da virtude política da qual falei e a representa em todos os lugares. Pode inspirar as mais belas ações: pode, junto à força das leis, levar ao objetivo do governo, como a própria virtude” (2005:36). E alega ainda o pensador que, “em termos filosóficos, é uma falsa honra que conduz todas as partes do Estado; mas esta falsa honra é tão útil para o público quando o seria a verdadeira honra para os particulares que poderiam possuí-la” (id. p. 37). A honra, portanto, perpassa todas as instâncias do corpo político e se torna necessária, até mesmo, para o controle da sociedade. No entendimento da nobreza, há apenas uma diferença: o nobre nasce com a honra, o povo adquire-a. O princípio do despotismo No modelo despótico de governo, nem honra, nem moderação, nem virtude, mas, MEDO, ou TEMOR, o motor que move este modelo, onde o povo está em regime de igualdade (escravos), sem preferências, o que sugere um sistema onde um manda e todos obedecem. Além do mais, diferente de uma monarquia, onde a honra é regulada por leis, no regime despótico as leis não são fixas, por dependerem exclusivamente dos caprichos do déspota, portanto, o valor da honra aqui é desconsiderado. Montesquieu vê na coragem e na ambição dois grandes perigos ao governo despótico, pois, possibilita situações propícias a revoluções, razão pela qual o medo passa a ser o melhor instrumento que o Estado lança mão para controlar a sociedade. “Pessoas capazes de estimarem-se muito a si mesmas seriam capazes de promover revoluções. Logo, é preciso que o temor acabe com todas as coragens e apague o menor sentimento de ambição” (MONTESQUIEU, id. p. 38). Objetivando fazer com que o leitor entenda bem este modelo ao qual tece críticas, o pensador iluminista busca embasamento em modelos já experimentados em várias partes do mundo, razões pelas quais faz idas e vindas à história da antiguidade. Deixa com tais exemplos, bastante evidente que, o despotismo se sustenta enquanto o braço do déspota estiver erguido, o que desencoraja tanto os ocupantes dos “primeiros lugares”, quanto os integrantes da grande massa popular. É interessante o fato de Montesquieu estabelecer certas diferenças entre Estados moderados e despóticos, à medida que ressalta a prática do despotismo. Assegura, ainda, que o poder na monarquia e no despotismo é o mesmo, restando uma diferença: 11 “na monarquia, o príncipe tem luzes, e os ministros nela são infinitamente mais habilidosos e mais calejados nos negócios do que num Estado despótico” (MONTESQUIEU, id. p. 40). Reconhece, no entanto, o pensador, ao analisar o exemplo persa, que, em certos casos, a religião se torna a única oposição à vontade do príncipe despótico, por serem os preceitos anteriores ao Estado e estarem acima do déspota e da própria sociedade, o que não significa que o chamado direito natural tenha de ser considerado. Pelo contrário, nem este está acima da vontade do déspota. Aproveita Montesquieu, ao final da exposição sobre os princípios de governo, para ressaltar que escreve estas considerações em nível do “dever ser”, i.e., não afirma que todos sejam virtuosos na república, nem sejam honrados na monarquia, muito menos tenham temor no despotismo, mas, seria necessário tê-los, para perfeição do governo. Livro V – As leis que o legislador cria devem ser relativas ao princípio de governo Após deter-me nos aspectos relacionados aos princípios de governo, i.e., princípios que, na verdade, significam aquilo que move as ações de governo e são peculiares a cada modelo político: virtude, moderação, honra e temor, passo a refletir um pouco mais sobre cada um destes, uma vez que neste capítulo, Montesquieu nos brinda com um esclarecimento mais aprofundado do que seja cada uma destas molas propulsoras da sociedade política, ou seja, o que mantém o Estado em pé. A virtude Como princípio do governo republicano democrático, a virtude se trata do amor pela própria república e está presente em todos os segmentos do povo, independente da colocação na pirâmide social. Segundo Montesquieu, “o amor à pátria leva à bondade dos costumes, e a bondade dos costumes leva ao amor à pátria” (id. p. 54). Ora, se o princípio do amor sugere certa reciprocidade, sugere também aquilo que não pode faltar nesta relação: a doação, aqui considerada em seu caráter político de abandono dos interesses particulares em prol do ente maior: a república. 12 É neste contexto de amor à república que o autor insere categorias importantes, tais como: igualdade e frugalidade, pressupostos da república democrática, a partir de leis que as estabeleçam. Mas, até que ponto estes pressupostos estariam de acordo com o modelo republicano? Penso que a igualdade proposta por Montesquieu não se trata de uma pura e simples igualdade de classes sociais. Afirma que “as riquezas dão um poder que um cidadão não pode utilizar para si mesmo, pois assim não seria mais igual. Elas oferecem delícias das quais ele tampouco deve desfrutar, porque feririam a igualdade da mesma forma” (id. p. 54). Com relação à igualdade, Albuquerque, ao interpretar a ideia de república em Montesquieu, pondera que “tudo o que contribui para diversificar o povo e aumentar a distância cultural e de interesses entre suas classes, conspira contra a prevalência do bem público” (2006:118). Penso que a igualdade a que se refere o iluminista é a nascente igualdade de direitos, muito bem considerada na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, documento este que se torna o grande pilar de sustentação do modelo liberal amadurecido. Ora, ao mencionar classes diferentes, já sugere diferenças e estas já implicam privilégios. A frugalidade seria benéfica ao próprio Estado e esta constatação se consubstancia em dois fragmentos discursivos do grande iluminista: “assim, as boas democracias, ao estabelecerem a frugalidade doméstica, abririam a porta para os gastos públicos”.(MONTESQUIEU, 2005:54) e, o bom senso e a felicidade dos particulares consiste em larga medida na mediocridade de seus talentos e de suas riquezas. Uma república onde as leis tiverem formado muitas pessoas medíocres, composta por pessoas sábias, será governada sabiamente; composta por pessoas felizes, será muito feliz (id. p. 55). Como se percebe no parágrafo anterior, com relação à frugalidade, aqui considerada como sobriedade ou temperança ou, ainda, simplicidade de costumes e de vida (DICIONÁRIO ON LINE), o pensador parece censurar a posse de riqueza, sugerindo a qualidade frugal como princípio para que os próprios governantes adotem a simplicidade, o que oneraria bem menos os cofres públicos (MONTESQUIEU, 2005:54), recheados com o excedente da riqueza familiar. Não deixa, ainda, de argumentar que “para que se ame a igualdade e a frugalidade numa república, é preciso que as leis as tenham estabelecido” (id. p. 55). 13 O estabelecimento das leis normativas da igualdade, em Montesquieu, são tão difíceis na prática que ele busca na história de gregos e romanos exemplos das tentavas anteriores de corrigir desigualdades. Pondera, nesta oportunidade, questões relacionadas à divisão das terras, mas, após vários exemplos, sugere uma forma de se estabelecer a igualdade na república democrática, argumentando, no entanto, que a própria supressão da igualdade, por vezes acreditada como necessária, não se trata de suprimi-la em proveito da democracia, mas, corrigir as distorções que criam desigualdades. Mesmo sendo um teórico muito bem aceito pelos seguidores das ideias liberais, pelo que se percebe analisando-se os argumentos que apresenta sobre a igualdade, difere do outro contratualista, John Locke, uma vez que, diferente deste, propõe um pouco mais de poder ao Estado, ideia esta oposta ao princípio liberal mais clássico e isto fica evidente quando alega que tem de haver regulamentação de todos os mecanismos geradores e mantenedores da igualdade, mas, reconhece que “ainda que na democracia a igualdade real seja a alma do Estado, ela é, no entanto, tão difícil de ser estabelecida que uma extrema exatidão neste sentido nem sempre seria conveniente” (MONTESQUIEU, id. p. 57). Com relação à normatização da frugalidade, alega Montesquieu que esta sempre estará relacionada à igualdade e uma não sobrevive sem a outra. Mesmo estabelecendo diferença entre democracia de Estados com tendências mais comerciais e Estados de tendências mais agrícolas, o grande óbice é o mesmo: o acúmulo de riqueza. Há no capítulo um fragmento discursivo muito interessante onde se evidencia não só o tipo de igualdade concebida pelo iluminista, mas, ainda, a forma de corrigir as desigualdades sociais mais gritantes e, também, a forma de dificultar a especulação financeira. Ainda que extenso penso que vale à pena destacá-lo, por ser bastante pertinente: Para manter o espírito de comércio, é preciso que os próprios cidadãos principais o pratiquem; que este espírito reine só e não seja obstruído por nenhum outro; que todas as leis o favoreçam; que estas mesmas leis, por suas disposições, dividindo as fortunas à medida que o comércio as engorda, proporcionem a cada cidadão pobre um conforto razoável, para que ele possa trabalhar como os outros, e a cada cidadão rico uma tal mediocridade [medíocre no sentido do que está entre o grande e o pequeno, o bom e o mau, conforme primeiro sentido atribuído a esta palavra no Dicionário On Line], que ele precise de seu trabalho para conservar ou para adquirir (MONTESQUIEU, id. p. 59). (Grifos meus). 14 Penso que os grifos assinalam partes interessantes que per se já sugerem a importância da vida frugal para a constituição da república democrática. Além destas evidências que descortinam boa parte do funcionamento do sistema republicano democrático proposto por Montesquieu, há um complemento que ajuda ao fortalecimento da virtude. Refiro-me à tríade tradição, senado e censura, pilares estes que ganham importância à medida que se tornam instrumentos que o Estado dispõe para manter o controle da sociedade e o próprio princípio republicano de governo. A moderação Na república aristocrática a igualdade, ainda que buscada por todos, é mais difícil de realizar, pela natureza deste modelo político que, a exemplo da democracia tem no povo cidadãos, mas, a exemplo da monarquia, permite uma classe nobre, portanto, desigual, ainda que esta esteja controlada. Este controle faz parte do que Montesquieu chama de moderação, aliás, é esta moderação que as leis tendem a promover, a fim de acabar ou impedir a desigualdade gritante, o que promoveria per se um mínimo de virtude. Montesquieu faz referência a dois tipos de desordens nestes Estados aristocráticos: a gritante desigualdade entre os que governam e os que são governados e a desigualdade entre os que fazem parte do grupo governante. É na antiguidade clássica que embasa seus pressupostos, ou seja, na Roma e na Grécia antigas e, nestas duas realidades aponta vícios comuns e desastrosos no governo da aristocracia, especialmente quando o governo tender a ficar sob o controle da nobreza: isenção do pagamento de subsídios, fraudes, apropriação dos recursos públicos, etc..., o que se consegue tornando o povo tributário, dividindo entre si os impostos cobrados a este. Embora admitindo o iluminista que este é um caso raro nos governos aristocráticos, reconhece que se trata do exemplo mais duro de governo onde fracassa a moderação. Uma das críticas de Montesquieu é direcionada às chamadas distribuições ao povo, por se tratar de algo pernicioso, em qualquer dos modelos republicanos. Se numa democracia faz mal por não gerar cidadania, i.e., assistencialismo gera apenas tutela, sem dar dignidade (virtude), na aristocracia será igualmente maléfica, pois, aproxima o povo da cidadania e coloca em perigo o modelo aristocrático. 15 A cobrança de tributos sempre foi um tema nevrálgico em todos os modelos de governo e Montesquieu faz um alerta para não deixar esta cobrança nas mãos dos nobres, uma vez que “rapidamente, os lucros que ali houvesse seriam encarados como um patrimônio que a avareza aumentaria à sua fantasia” (id. p. 64), o que resultaria na diminuição gritante da produção e da circulação de mercadorias, pelas perdas patrimoniais e diminuição gritante dos recursos públicos, causadas pela avareza. Da mesma forma alerta o pensador sobre o perigo da prática do comércio pela classe nobre, pois, os monopólios viriam logo a seguir, chegando ao ponto de o governante ser mercador, o que colocaria a república sob o perigo de se transformar em despotismo, conforme exemplos da história. “Dentre os Estados despóticos, os mais miseráveis são aqueles onde o príncipe é mercador” (MONTESQUIEU, id. p. 64). Até aqui se percebe a grande preocupação de Montesquieu com a ocupação do governo pela nobreza no Estado aristocrático, fato que colocaria em perigo a moderação característica deste modelo de governo. Alerta, ainda, quase ao final desta reflexão, para dois fatores que, segundo ele, são perniciosos na aristocracia: a pobreza extrema da nobreza e suas riquezas exorbitantes, o que o levou a definir estratégias e dispositivos legais para controle destas desigualdades e tentativas de igualar as famílias. Percebe-se, portanto, que este modelo, ainda que republicano, guardadas as especificidades, possui semelhanças com o sistema monárquico, ao mostrar uma classe nobre bastante influente e, pela análise das palavras do iluminista, sempre desejosa de assaltar o poder, o que justifica a preocupação deste com o controle de tal segmento, como pressuposto do princípio de governo republicano aristocrático, entendido como moderação. A honra Na parte destinada a explicação sobre a relação das leis com o princípio monárquico Montesquieu comete o mesmo erro que cometeu ao tentar explicar o princípio de governo da monarquia, ou seja, é bastante sucinto e, praticamente, fala sobre a honra apenas an passant, procurando, sempre que possível, fazer comparações deste princípio com o princípio despótico. Segundo Montesquieu, “sendo a honra o princípio deste governo, as leis devem relacionar-se com ela” (id. p. 66) e argumenta que as referidas leis devem ser o 16 sustentáculo da nobreza e, neste sentido, devem torná-la hereditária, pelo papel importante que o segmento nobre tem no contexto da monarquia, tal seja, a ligação entre povo e soberano. A honra, portanto, nesta parte do texto, está subentendida nas leis, uma vez que a estas deve nortear. A partir deste ponto, Montesquieu discorre sobre o funcionamento das leis referentes à economia, ressaltando as questões de herança de propriedades e, ainda, sobre sugestões a respeito das leis comerciais, deixando claro que todas estas leis são elaboradas visando manter o controle da nobreza sobre estas atividades, o que preserva não apenas o princípio do governo, mas, ainda, a força deste segmento e do próprio povo. E conclui, alegando ser preciso no sistema monárquico “que as leis favoreçam todo o comércio que a constituição deste governo pode promover, para que os súditos possam, sem definhar, satisfazer às necessidades sempre novas do príncipe e de sua corte” (MONTESQUIEU, id. p. 66). Nas asserções acerca das leis referentes ao comércio, sugere o iluminista certa prudência nas leis relativas à cobrança de tributos. Estes devem ser ordenados de forma a não pesar demasiadamente, referindo-se aos tributos que sustentam a corte. O peso demasiado dos encargos pode ter reflexos danosos e a questão dos tributos sempre expôs a monarquia a perigo, como e.g., as lutas entre soberano e nobreza na Inglaterra, lutas estas que culminaram com a Carta Magna do Rei João Sem-Terra, documento este firmado em 1215, que modificou, em parte, o papel do rei na Inglaterra. (PAIXÃO e BIGLIAZZI, 2008:37). Montesquieu reconhece que há certa vantagem do governo monárquico sobre o republicano, pelo fato de os negócios serem decididos por uma única pessoa, o que tende a tornar o processo mais rápido, muito embora reconheça, também, que as leis devem exercer certo freio sobre a presteza e consertar os abusos decorrentes da natureza deste modelo. Esta é uma das evidências que os autores se utilizam quando atribuem ao iluminista a preferência pelo sistema monárquico. Se por um lado o pensador reconhece a vantagem do modelo monárquico sobre o republicano, por outro reconhece, também, a vantagem daquele sobre o modelo despótico. A vantagem do modelo monárquico consubstancia-se na segurança proporcionada pelas diversas ordens (instituições) existentes no sistema e que dele dependem, tornando, desta forma, o Estado mais estável, até mesmo pela reciprocidade entre tais ordens e o príncipe, o que torna o sistema mais eficaz até mesmo contra possíveis sedições. “É raro que as ordens do Estado estejam 17 inteiramente corrompidas. O príncipe depende dessas ordens, e os sediciosos, que não têm nem a vontade nem a esperança de derrubar o Estado, não podem nem querem derrubar o príncipe” (MONTESQUIEU, 2005:68). Encerrando o escrito sobre o princípio do governo monárquico, Montesquieu ressalta, mais uma vez comparando a monarquia com o despotismo, o valor da glória, valor este muito importante e que, a meu ver, está diretamente relacionado ao valor da honra, opondo, de certa forma independência da alma à grandeza, quando encerra sua análise com o seguinte fragmento que, por pertinente, transcrevo: “É nas monarquias que veremos em volta do príncipe os súditos receberem seus raios; é nelas que todos, possuindo, por assim dizer, um espaço maior, podem exercitar estas virtudes que dão à alma, não independência, e sim grandeza” (id. p. 69). O temor Sobre o governo despótico, a explicação, ainda que mais densa, é bastante rica, pois, ao longo das partes que compõe o texto, as comparações do governo despótico com o republicano e o monárquico enriquecem muito o conteúdo e oportunizam ao leitor uma retomada de pontos importantes destes modelos. A ideia do despotismo é apresentada por Montesquieu de forma bastante pragmática: “quando os selvagens da Luisiana querem ter frutas, cortam a árvore e apanham a fruta. Eis o governo despótico” (id. ib.). Diferente dos modelos de Estado já aqui analisados, o modelo despótico tem características muito peculiares, a começar pelas próprias leis. Estas, segundo Montesquieu, pelas características do próprio povo oprimido, são poucas e devem “girar em torno de duas ou três ideias” (id. ib.). As características do modelo despótico são mostradas por Montesquieu, utilizando-se de comparações, ora do despotismo com a monarquia, ora com a república. Chama a atenção de forma mais contundente sobre as questões relacionadas à sucessão do déspota, procurando embasar suas asserções sempre nos exemplos históricos. Ressalta, também, o erro de os governantes despóticos assumirem os negócios, o que, pela forma com que governam o Estado, além de tornarem o peculato uma regra e o confisco uma necessidade, afastam os investimentos, acabam com a produção e desestimulam o comércio. Eis aqui um povo escravo. 18 A pobreza e a incerteza das fortunas, nos Estados despóticos, tornam natural a usura; todos aumentam o preço de seu dinheiro na proporção do risco que existe em emprestá-lo. Logo, a miséria vem de todos os lugares nestes países infelizes; tudo é suprimido, até o recurso aos empréstimos (MONESQUIEU, id. p. 75). Já houve até aqui, referência a certa influência religiosa no governo despótico. Segundo Montesquieu, “nestes Estados, a religião tem mais influência do que em qualquer outro; é um temor que se acrescenta ao temor. Nos impérios maometanos, é da religião que os povos retiram em parte o respeito que têm por seu príncipe” (id. p. 71). Ora, não seria necessário um exemplo maometano para esta observação, uma vez que os princípios “toda autoridade vem de Deus”, ou “é rei por direito divino”, muito comuns nos Estados monárquicos europeus, já bastam para embasar o argumento do iluminista. Outro aspecto muito bem abordado por Montesquieu ao explicar o princípio do modelo despótico de governo e suas relações com a lei é o “presente” (agrado), prática muito utilizada por aqueles que procuram um superior, aliás, isto já é costume em muitos países com modelos semelhantes, o que não é compatível nem com o principio republicano, nem com o principio monárquico, uma vez que, segundo o iluminista, não é condizente com a virtude, muito menos com a honra. Se por um lado, nos regimes despóticos o “presente” se torna uma das únicas formas de o cidadão se aproximar do príncipe, por outro, há certa reciprocidade, uma vez que em certas ocasiões este resolve recompensar certas pessoas. Esta recompensa constitui-se exclusivamente de dinheiro, segundo Montesquieu, o que é pernicioso tanto na república quanto na monarquia, pois, de toda forma, fere os princípios da virtude e da honra. E complementa: “é regra geral que as grandes recompensas numa monarquia e numa república são sinal de sua decadência, porque provam que seus princípios estão corrompidos” (id. p. 78). As aplicações dos três princípios Montesquieu, antes de encerrar o quinto livro, levanta algumas questões e as responde. Em linhas gerais, sobre a obrigação do cidadão de aceitar o emprego público, é de parecer que, na república sim, uma vez que a magistratura é testemunho de virtude, confiança que a pátria deposita em um cidadão que viverá neste caso, única 19 e exclusivamente para o serviço dela, não ocorrendo o mesmo na monarquia, pois, como se trata de uma questão de honra, o trabalho não é uma obrigação. Com relação a outro ponto, relativo à aceitação de um posto inferior no exército, uma vez já estado em posto superior, invoca o iluminista o sacrifício republicano como parte da virtude; na monarquia este sacrifício virtuoso se torna uma verdadeira desonra. Isto não é relevante no despotismo, pois, ocupar um posto mais alto ou mais baixo na hierarquia é indiferente, uma vez que a vontade do déspota é a lei. Montesquieu demonstra uma preocupação, também, com o acúmulo de emprego nos meios civil e militar. Na república o pegar em armas é uma obrigação na defesa da pátria, porém, difere das atividades civis e deve haver distinção entre servidores civis e militares. Na monarquia, pelo que observa o iluminista, os “militares só têm como objetivo a glória, ou pelo menos a honra ou a riqueza” (id. p. 79). E complementa: “deve-se evitar dar emprego civis a tais homens; é preciso, pelo contrário, que sejam contidos pelos magistrados civis e que as mesmas pessoas não tenham ao mesmo tempo a confiança do povo e a força para dele abusar” (id. p. 79-80). A venda de cargos públicos também é uma preocupação de Montesquieu e, a questão levantada é se isto é ou não permitido. Responde de imediato que não é possível no despotismo, pois, é uma prerrogativa do déspota. Já na república se torna uma afronta à virtude e, na monarquia esta prática é boa, pois, oportuniza a apropriação pela família. A última questão levantada por Montesquieu é sobre qual modelo de governo teria necessidade da censura. E responde que, no governo republicano ela é necessária, uma vez que a falta de vigilância coloca em jogo a destruição da virtude, portanto, não só previne o descumprimento da lei, mas, previne ainda, seu enfraquecimento, o que é diferente no governo monárquico, pois, a natureza da honra não contribui na prática para censurar a desonra, uma vez que os censores ficariam sujeitos a agrados (honrarias) e pressões (o peso da corrupção). Nos governos despóticos os censores se tornam desnecessários pelo próprio princípio de governo (temor), muito diferente da virtude e da honra. Eis, portanto, uma breve apresentação sobre a relação existente entre as leis e os princípios das três formas de governo propostas por Montesquieu. Penso que, para o objetivo a que me propus i.e., fazer com que os acadêmicos de Relações Internacionais ao terem contato, ainda que superficial, com a teoria política deste grande iluminista, inspirador de outros grandes teóricos da política ocidental, discutam 20 seus reflexos na nossa política interna brasileira e seus desdobramentos na política internacional. Resta, ainda, a parte relativa à relação das leis com as forças defensivas e ofensivas de um Estado. É o que veremos nas próximas páginas. Livro IX – Das leis na relação que possuem com a força defensiva Considerando as prioridades que temos no curso de Relações Internacionais, retomando a obra do grande iluminista, passo ao livro IX, onde, em breves palavras, comento o escrito de Montesquieu. Este, após criticar as extensões territoriais por serem, em seu entendimento, fatores determinantes da força ou da fraqueza dos Estados, chama a atenção para algumas condições que seriam necessárias à segurança de um Estado e, ao que parece, mostra certa simpatia pela república federativa, por esta forma possuir “todas as vantagens internas do governo republicano e a força externa da monarquia”, (MONTESQUIEU, id. p. 141). Certamente que o grande iluminista se inspira no modelo republicano democrático, vendo na virtude uma arma poderosa de coesão interna, o que reflete nas condições de segurança externa, não só pelo respeito dos demais Estados vizinhos, mas, pela força que adquire com a moral intestina e, por conseguinte, a emergência da liderança emanada do próprio contexto republicano. Vê na extensão territorial um fator fundamental para a política de defesa. Percebo, no entanto, que Montesquieu se torna um pouco ambíguo ao se referir à federação, pois, em certas ocasiões, trata-a por confederação, que é diferente na teoria política. Em Nawiasky (apud BONAVIDES, 2007:194-195) há vários critérios para diferenciar uma de outra, porém, não cabendo aqui discutir por não ser o objetivo desta apresentação. Muito embora o iluminista faça referência à confederação, os traços do Estado federal vão se tornando perceptíveis ao longo dos capítulos deste livro, traços estes consubstanciados no elogio do modelo republicano holandês, quando se constata que as províncias desta república não podiam fazer alianças com outras que não fizessem parte deste ente federativo. Mais uma vez, nesta obra, Montesquieu tece comparações entre a monarquia e o despotismo. No livro aqui comentado mostra as formas de prover a defesa territorial nestes dois Estados de formas distintas. Se há entre estes a distinção de forma, há, 21 também, a distinção do método de defesa. Enquanto a monarquia se preocupa em manter toda sua área territorial, com fortificações e exércitos, o despotismo mantém-na entregando parte do território para benefício do núcleo. Há duas expressões que chamam a atenção na penúltima parte do livro IX: grandeza real e grandeza relativa. Segundo Montesquieu, “é preciso que se tome bastante cuidado para que, procurando aumentar a grandeza real, não se diminua a grandeza relativa” (2005:47). Ora, entendo por grandeza real as ações e reações necessárias à manutenção ou ampliação do território e, por grandeza relativa a manutenção das boas relações com os Estados vizinhos, mantendo neste caso a soberania própria e respeitando a dos demais entes estatais. Este respeito implica em respeitar mesmo a fraqueza dos vizinhos, pois, esta situação sugere a grandeza do outro que, neste contexto, nada mais é do que a soberania, elemento que caracteriza o Estado moderno. X - Das leis na relação que possuem com a força ofensiva Após discorrer sobre a relação das leis com as ações defensivas, sem prolongamentos discursivos, passo a comentar de forma breve o que Montesquieu nos legou sobre as relações da norma com as ações ofensivas de um Estado, ressaltando nesta oportunidade as guerras de conquista. Estas, segundo ele, são norteadas pelo chamado direito das gentes, uma vez que, segundo Montesquieu, a vida dos Estados é semelhante à vida dos homens. “Estes possuem o direito de matar no caso de defesa natural; aqueles possuem o direito de fazer a guerra para sua própria conservação” (id. p. 149). Definindo força ofensiva, Montesquieu passa a justificar a necessidade ou as razões de ser das guerras. Entende que estas seguem as regras individuais, i.e., pode uma nação agredir outra quando se sente ameaçada por outra sem, contudo, descartar a ambição pessoal como motivo da beligerância. Como desdobramento da guerra, Montesquieu aponta a conquista. Discorre sobre esta bem como suas possíveis consequências naturais: a destruição e a escravidão. Refiro-me as consequências naturais o fato de a conquista ser regulada por quatro tipos de leis, entendidas por ele como naturais: lei da natureza (conservação das espécies); lei da luz natural (reciprocidade no tocante ao tratamento dispensado ao 22 outro); lei que forma os Estados (sem uma duração estipulada pela natureza); e lei tirada da própria coisa (os desdobramentos da conquista são fatores determinantes desta lei). São princípios que justificam não a destruição, mas, a conservação, segundo o grande iluminista. Com relação ao tratamento dispensado pelo Estado vencedor ao vencido, apresenta igualmente quatro tratamentos distintos: “continua a governá-lo segundo suas leis e só toma para si o exercício do governo político e civil; ou dá-lhe um novo governo político e civil; ou destrói a sociedade e dispersa-a; ou enfim extermina todos os cidadãos” (MONTESQUIEU, id. p. 150). E, no rastro destas asserções, faz desfilarem razões que o caracterizam como um pensador humanista, pelo valor que parece atribuir ao ser humano, ao opor o primeiro ao quarto tratamento ora enunciados. Ressalta o primeiro e o quarto como característicos, respectivamente, dos tempos modernos e antigos, opinião, portanto, bem de acordo com o humanismo da modernidade e discorre detalhadamente sobre as razões que devem inspirar o direito das gentes no controle da conquista. Após discorrer sobre o direito de conquista, ou do conquistador, passa a ponderar no sentido de enunciar certas vantagens ao conquistado e, se detém não em atitudes que possam partir dos conquistadores, mas, razões internas do Estado conquistado, e.g., a dificuldade deste em manter a norma legal ou, ainda, a exploração interna por parte de segmentos sociais ou do próprio ente estatal ou, então, a própria sobriedade da força de conquista em dispensar um tratamento generoso ao povo vencido que este desconhecia. Após estas ponderações, descortina exemplos negativos na conquista da América, i.e., erros que os espanhóis cometeram ao conquistar o México. Conclui as ponderações aqui enunciadas com um fragmento discursivo do direito das gentes que, até hoje, o mundo não levou em consideração: “É dever de um conquistador reparar uma parte dos males que fez. Defino assim o direito de conquista: um direito necessário, legítimo e infeliz, que sempre deixa a pagar uma dívida imensa para coma natureza humana” (MONTESQUIEU, id. p. 153). A prática mais usual nas guerras contemporâneas é o estabelecimento da chamada “dívida de guerra” que, além de acabar com a economia do povo vencido, acaba, também, com sua autoestima e, de forma indireta, suas condições materiais de sobrevivência. Na maior parte deste livro (décimo) Montesquieu fundamenta sua argumentação nos exemplos da história, conforme nos demais, porém, por se tratar de assunto referente à conquista, seu discurso aproxima-se por vezes do discurso de Maquiavel, 23 principalmente no que concerne aos primeiros capítulos do Príncipe, onde o grande florentino aconselha sobre a manutenção de conquistas. Ambos se referem às leis da conquista. Em momento algum deste livro Montesquieu cita Maquiavel, mas, certamente que, mesmo sendo o grande humanista que aparenta ser, parece não negligenciar ao ponto de ignorar a teoria daquele. O fato de não fazer referência à obra do florentino, penso que seja pela mesma razão de não tê-lo feito com relação aos contratualistas que lhe antecederam. Mostra- se, ainda, bastante pragmático com relação ao estabelecimento das leis, pelas quais muito zela (e não poderia ser diferente, considerando-se o título e a essência da obra), detendo-se na maior parte do texto a considerar os regimes republicano e monárquico, deixando para o final as considerações sobre a conquista despótica e, nesta parte, explica melhor o que sugeriu no livro anterior (sobre a relação das leis com a força defensiva), i.e., a criação dos chamados Estados feudatários. Pode-se, portanto, inferir com certa margem de segurança que, mesmo não sendo Montesquieu um ícone do humanismo iluminista, não pode ser considerado no sentido oposto ao espírito da época, não só pelo fato de ter sua preocupação maior com as leis e a regulação dos conflitos, tanto de natureza defensiva quanto ofensiva, mas, pela sua perceptível preocupação com o ser humano, chegando a sugerir que sendo a sociedade a união dos homens e não os homens, em se tratando de guerra de conquista, “o cidadão pode morrer e o homem permanecer”, i.e., como parte das ações referentes à conquista, pode-se escravizar (uma parte da sociedade, ou por um determinado tempo, até a consolidação da conquista), mas, nunca exterminar o homem, ou seja, o ser humano. CONSIDERAÇÕES FINAIS A critério do conferencista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRIL CULTURAL, http://mundoestranho.abril.com.br/materia/everdade-que-a- igreja-catolica-tem-uma-lista-de-livros-que-nao-podem-ser-lidos-pelos-fieis. ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT, Francisco (org). Os clássicos da política. São Paulo: Editora Ática, 2006, p. 111-185. 24 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: 2011. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. DICIONÁRIO ON LINE DE PORTUGUÊS. http://www.dicio.com.br/ . HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2008. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. E dez cartas. 3ª ed. Brasília: Editora da UnB, 1999. MONTESQUIEU, Barão de. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ORLANDI, Eni P. Análise De Discurso. Princípios & Procedimentos. Campinas: Editora Pontes, 2000. PAIXÃO, Cristiano. e BIGLIAZZI, Renato. História Constitucional Inglesa e Norte- americana . Do Surgimento a Estabilização da Forma Constitucional. Brasília: EdUnB, 2008. ABERTURA AO DEBATE SUGESTÃO DE LEITURAS Por ser pertinente, sugiro a leitura dos livros XX (Das leis em suas relações com o comércio considerado em sua natureza e suas distinções) e XXI (Das leis em sua relação com o comércio considerado nas revoluções que sofreu no mundo) da obra O Espírito das Leis, uma vez que tratam de assunto muito caro às relações internacionais. Sugiro, ainda, as leituras dos textos de J. A. Guilhon Albuquerque (Montesquieu: sociedade e poder) e de Eduardo Bittar (As leis e a tripartição do poder).