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Editora da UFSC
HUMANASR e v i s t a d e C i ê n c i a s
Revista filiada à:
COMPORTAMENTO ANIMAL E
PSICOLOGIA COMPARATIVA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitor Lúcio José Botelho
Vice-Reitor Ariovaldo Bolzan
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Diretor João Eduardo Pinto Basto Lupi
Vice-Diretor José Gonçalves Medeiros
EDITORA DA UFSC
Diretor-Executivo Alcides Buss
Conselho Editorial Belnice Sueli Nodari (Presidente), José Isaac Pilati, Luiz
Teixeira do Vale Pereira, Luiz Henrique de Araújo Dutra, Sérgio Fernando Torres de
Freitas, Tânia Regina Oliveira Ramos e Vera Lúcia Bazzo.
REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS
Editor José Gonçalves Medeiros
Editor Especial Rogério F. Guerra
Comissão Editorial Cynthia Machado Campos, Hector Ricardo Leis, José Gon-
çalves Medeiros (Presidente), Marco Antônio Frangiotti , Maria Juracy
FilgueirasTonelli, Norberto Olmiro Horn Filho, Rafael José de Menezes Bastos e
Tamara Benakouche.
Conselho Científico Alcir Pécora (UNICAMP); Artur Cesar Isaia (UFSC); Car-
men Silvia Rial (UFSC); Cécile Raud Mattedi (UFSC); Cleci Maraschin (UFRGS);
Darlei Dall’Agnoll (UFSC); Edmilson Lopes Junior (UFRN); Erly Euzébio dos Anjos
(UFES); Fernando Ponte de Souza (UFSC); Franz Josef Brüseke (UFSC); Grauben
Assis (UFPA); Jane Russo (UERJ); João Cleps Junior (UFU); José Carlos Zanelli
(UFSC); Leila Christina Duarte Dias (UFSC); Luis Henrique Araújo Dutra (UFSC);
Márcio Lopes da Silva (UFV); Maria Bernardete Ramos (UFSC); Maria Cecilia Marin-
goni de Carvalho (UNICAMP); Maria Teresa Santos Cunha (UDESC); Mauricio Roque
Serva de Oliveira (PUC-PR); Mauro Pereira Porto (UNB); Olga Lucia Castreghini de
Freitas Firkowski (UFPR); Oscar Calavia Sáez (UFSC); Rafael Raffaelli (UFSC); Silvio
Paulo Botomé (UFSC); Walquiria Krüger Corrêa (UFSC).
Organização Geral Luiz Carlos Cardoso e Allysson Sérgio Vieira
Tiragem 500 exemplares
Data de circulação Junho de 2004
Periodicidade Semestral
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
ISSN 0101-9589
HUMANASR e v i s t a d e C i ê n c i a s
Revista de Ciências Humanas Florianópolis E D U F S C n. 34 p.209-494 Out. 2003
COMPORTAMENTO ANIMAL E
PSICOLOGIA COMPARATIVA
Editoração eletrônica
Allysson Sérgio Vieira
allysson@cfh.ufsc.br
Capa
Allysson Sérgio Vieira
A Revista de Ciências Humanas é uma publicação semestral do Centro de Filoso-
fia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Lançou, em
1982, o seu primeiro número e tem sido um importante veículo na disseminação do
conhecimento interdisciplinar nas diferentes áreas das humanidades. Publica com
regularidade dois números por ano com uma tiragem de 500 exemplares por volu-
me, além de números temáticos anuais. Os artigos são revisados por três relatores
ad hoc, preferencialmente vinculados a instituições nacionais.
Endereço para assinatura
Mailing address subscriptions
Universidade Federal de Santa Catarina
Editora da UFSC
Campus Universitário - Trindade
Caixa Postal 476
88040-900 - Florianópolis - SC / Brasil
Endereço para correspondência
Mailing address
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Revista de Ciências Humanas
88040-900 - Florianópolis - SC / Brasil
Revista indexada por:
— Sociological Abstracts - SA;
— Linguistics & Language Behavior Abstracts - LLBA;
— Social Planning / Policy & Development Abstracts - PODA;
— Public Affairs Information Service, Inc. - PAIS;
— Nisc Pensylvania Abstracts, inc. - NISC.
— Qualis/CAPES
Revisão geral
José Gonçalves Medeiros
Renato Tapado
Ilustração da Capa
Mãe amamentanto seus filhotes (gerbilo da
Mongólia, Meriones unguiculatus). La-
boratório de Psicologia Experimental, 2002.
Revista de Ciências Humanas (Temas de Nosso Século) /
Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e
Ciências Humanas.- v.1, n.1 (jan. 1982) - Florianópolis :
Editora da UFSC, 1982-
v.; 21cm
Semestral
ISSN 0101-9589
I. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de
Filosofia e Ciências Humanas.
(Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina)
Revista de Ciências HUMANAS (Florianópolis)
número 34 outubro 2003
S u m á r i o
Apresentação................................................................................215
Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões
preliminares
Ana M. A. Carvalho
Maria Isabel Pedrosa.............................................................219
Princípios morais e a evolução de um senso moral
Dennis Werner........................................................................253
Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
Emma Otta
Fernando Leite Ribeiro
Vera Sílvia Raad Bussab...........................................................283
Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao compor-
tamento parental
Alessandra Bonassoli Prado
Mauro Luís Vieira....................................................................313
Edição Temática
COMPORTAMENTO ANIMAL E
PSICOLOGIA COMPARATIVA
Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas
dos pequenos primatas neotropicais
Cristina Valéria Santos.............................................................335
Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Carlos Roberto de Oliveira Nunes
Vera Sílvia Raad Bussab
Rogerio F. Guerra...................................................................365
Uma análise evolucionária da parturição e do desenvolvimento
infantil em mamíferos
Rogério F. Guerra.................................................................395
Contribuições recentes da Neurociência à Psicologia
Emílio Takase........................................................................441
Relação dos Consultores ad hoc 2003.....................................459
Normas para publicação..............................................................461
Retrospectiva de títulos e autores publicados (1982-2003) .....469
Apresentação
E ste número da Revista de Ciências Humanas (RCH, n.34,referente a outubro de 2003) é inteiramente dedicado à psicolo-
gia comparativa e é resultado de reflexões de alguns colegas que traba-
lham com comportamento humano ou animal, vinculados ao pensamento
evolucionário, com o propósito de trazer informações sobre temas varia-
dos e apresentar proposições originais.
Nesse sentido, são abordados temas relacionados com o desenvol-
vimento ontogenético e filogenético da linguagem, a evolução da morali-
dade humana, a persistente dicotomia do inatismo e ambientalismo, os
fatores ambientais e evolucionários que norteiam o investimento paren-
tal, estratégias reprodutivas (poliginia e poliandria ou estratégias K e r,
por exemplo) em primatas e mamíferos de modo geral.
Também são discutidos os efeitos do enriquecimento ambiental, da
privação social e manipulação neonatal sobre a plasticidade cerebral e
modulação do comportamento. Em um outro texto são analisados a par-
turição em diferentes espécies e as teorias que explicam o desenvolvi-
mento infantil em mamíferos; aqui, são apontadas as diferenças entre as
espécies altriciais e precociais, a modulação da interação mãe-filhote,
a importância do choro e do aspecto físico dos bebês como eliciadores
do comportamento parental. Existem poucas análises evolucionárias so-
bre a parturição e desenvolvimento do comportamento humano, de for-
ma que estes textos procuram preencher esta lacuna.
No último texto é apresentado o modo como os avanços da neuro-
ciência auxiliam na compreensão do comportamento e o impacto desse
conhecimento para o desenvolvimento da atividade profissional dos psi-
cólogos; os estudos sobre o cérebro têm aumentado vertiginosamente,
graças às modernas técnicas de neuroimagem, cujas informações
pode-
rão resultar em um conjunto sofisticado de métodos de tratamento de
distúrbios comportamentais e neurodegenerativos.
Os textos foram construídos de forma mais abrangente possí-
vel, visando permitir que profissionais e estudantes de pós-graduação
possam fazer uso deles. Uma leitura atenta permite concluir que os
temas mantêm uma ligação entre si, pois é difícil discorrer sobre a
linguagem humana sem esbarrar na dicotomia instinto vs. aprendiza-
gem, da mesma forma que as postulações teóricas sobre o sistema
monogâmico, cuidados biparentais à prole e o suporte emocional às
parturientes estão relacionadas e refletem os custos energéticos ele-
vados da atividade reprodutiva na espécie humana. Curiosamente,
alguns pesquisadores brasileiros utilizam uma estranha palavra de
origem grega, doula, para designar a mulher que acompanha as ges-
tantes no momento em que vão dar à luz; trata-se de um estrangeiris-
mo desnecessário, pois a nossa cultura dispõe de um vocábulo muito
mais rico, do ponto de vista sentimental e etimológico, que é palavra
“comadre”. Quando falamos em comportamento parental sempre vem
à mente o relacionamento mãe-filhote, mas nos esquecemos que
machos de algumas espécies também exibem respostas afiliativas
em direção aos filhotes; uma análise comparativa pode auxiliar a com-
preensão deste fenômeno, tal como pode ser visto em dois textos
arrolados neste número especial da Revista de Ciências Humanas.
O pensamento evolucionário não é novo, pois suas raízes se
encontram na obra do naturalista Charles Darwin (1809-1882); a no-
vidade é um dos enunciados para a explicação do comportamento hu-
mano, podendo contribuir para a compreensão de temas como mono-
gamia e estratégias reprodutivas, investimento parental, origem dos
valores morais e assim por diante. Trata-se de uma ousadia intelectual,
mas o pensamento científico sempre está associado com inovações e
explorações de terrenos desconhecidos – além do mais, um leitor mais
atento poderia argumentar, com algum grau de razão, que a explicação
do comportamento humano à luz dos princípios evolucionários significa
apenas o uso de antigas ferramentas para lidar com velhos problemas.
Por último, deixamos registrado algo obvio: a publicação de um
texto científico no Brasil é uma proeza de alto significado e deve ser
comemorada, por mais modesta que seja. Devido às precárias condi-
ções de trabalho e excesso de burocracia (gastamos a maior parte do
nosso tempo redigindo relatórios ou participando de reuniões), o pensa-
mento original não é estimulado nas universidades públicas; buscando
fugir do rótulo da improdutividade, as pessoas tentam vencer os obstácu-
los, mas acabam mergulhando num mar de frustrações. Diuturnamente
somos solicitados a justificar sobre a importância do nosso trabalho, mas,
feito isto, nem sempre recebemos o que solicitamos e muitas vezes se-
quer somos merecedores de atenção das autoridades – nesse contexto,
tudo parece conspirar contra a atividade científica.
Deixando as queixas de lado, os autores e o editor especial deste
número esperam que a comunidade faça bom proveito das reflexões
aqui arroladas. Torcemos para que este empreendimento seja útil aos
espíritos inquietos! Que viceje a ciência!
Rogério F. Guerra – Editor especial
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
__________________________________________________
* Phylogenetic and ontogenetic precursors of language: a preliminary reflection
1
 Endereço para correspondências: Rua da Invernada, 12, Fazendinha, Carapicuíba, SP, 06355-
340 (E-mail: amacarva@uol.com.br). Apoio CNPq/ FAPESP.
2
 Endereço para correspondências: Laboratório de Interação Social Humana, Depto. de
Psicologia, UFPE, Av. Prof. Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, Recife, PE, 50670-
901 (E-mail: icpedrosa@uol.com.br).
Precursores filogenéticos e ontogenéticos da lin-
guagem: reflexões preliminares*
Abstract
This paper presents a preli-
minary reflection on possible phylo-
genetic and ontogenetic precursors
of language. This reflection is part
of an ongoing research project on
the ontogenetic transition from ex-
clusively non-verbal to the charac-
teristically human integration of
verbal and non-verbal communica-
tion. A synthesis of the functional
contexts of communication in na-
ture and possible analogues in hu-
Ana M. A. Carvalho1
Universidade de São Paulo
Maria Isabel Pedrosa2
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
Apresenta-se uma reflexão
preliminar sobre precursores filo-
genéticos e ontogenéticos da lingua-
gem, como subsídio para um proje-
to de pesquisa sobre transição on-
togenética da comunicação não-
verbal para a integração entre co-
municação não-verbal e linguagem
verbal que caracteriza a comuni-
cação humana. É sintetizada uma
revisão sobre contextos funcionais
da comunicação na natureza e pro-
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
220 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
man ontogeny is presented. The
literature on imitation – a funda-
mental process in the acquisition
of language and of other cultu-
rally mediated behaviors – focu-
ses on three theoretical traditions:
classic studies of interactionist
scholars, research on joint atten-
tion and imitation in non-human
primates, and studies on the role
of imitation in the emergence of
coordinated actions in child-child
interactions. This literature su-
ggests that the phylogenetic pre-
cursors which enabled the diffe-
rentiation of human culture and
language lie in the realm of social
learning, and particularly in a spe-
cific modality of imitation that
produces faithful copies of a mo-
del. The requisite pre-adaptations
for this type of imitation are the
motivational priority of other hu-
man beings as focuses of attenti-
on, and joint attention, related to
the precocious human capacity
for understanding others as inten-
tional agents. Joint attention, imi-
tation and perception of intentio-
nality are the focus of ongoing pro-
jects in this line of research.
Keywords: Development, imitati-
on, language, cognition, ontogene-
sis, phylogenesis.
cessos análogos na ontogênese hu-
mana. Focaliza-se a seguir a litera-
tura sobre imitação, processo essen-
cial na aquisição da linguagem e de
outros comportamentos cultural-
mente mediados, sob três vertentes:
autores interacionistas clássicos,
pesquisas a respeito de atenção con-
junta e imitação em primatas não
humanos, e estudos sobre o papel
da imitação na emergência de ações
coordenadas na interação criança-
criança. A literatura sugere que os
precursores filogenéticos que per-
mitiram a diferenciação da cultura
e da linguagem humanas se situam
no âmbito da aprendizagem social,
particularmente em uma modalida-
de específica de imitação, que pro-
duz a cópia fiel das ações de um
modelo; pré-adaptações possibilita-
doras dessa imitação são a priori-
dade motivacional do outro ser hu-
mano como foco de atenção e aten-
ção conjunta, relacionada à capaci-
dade precoce do ser humano de
perceber o outro como agente in-
tencional. Atenção conjunta, imita-
ção e percepção de intencionalida-
de são focos dos projetos em anda-
mento nesta linha de pesquisa.
Palavras-chave: Desenvolvimento,
imitação, linguagem, cognição, on-
togênese, filogênese.
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 221
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
Situando a questão
A o longo dos últimos vinte e cinco anos, aproximadamente, vimostrabalhando sobre interação criança-criança com um enfoque psi-
coetológico (segundo conceituação de ADES, 1986). Esse percurso se
caracterizou inicialmente por esforços metodológicos no sentido de des-
crever interações sociais em situações “naturais”3
– isto é, grupos de
crianças brincando em ambientes cotidianos em nossa cultura, tais como
creches e pré-escolas (cf., por exemplo, CARVALHO e MORAIS,
1987); evoluiu posteriormente para a discussão do próprio conceito de
interação social e tentativas de desenvolver uma forma de análise capaz
de apreender sua dinâmica (CARVALHO, 1988; BRANCO et al., 1989;
CARVALHO et al., 2002) e para o desenvolvimento de conceitos sobre
a natureza dos fenômenos interacionais na troca social humana (CAR-
VALHO, 1992, 1994; IMPÉRIO-HAMBURGER et al., 1996; PEDRO-
SA et al., 1997; CARVALHO et al., 1998). As características centrais
desse percurso, a nosso ver, são, por um lado, o foco nas dimensões
sociais do fenômeno da infância, tomadas como uma instância dos fenô-
menos sociais humanos pertinentes ao âmbito da Psicologia – e, parale-
lamente, pressupostas como constitutivas do desenvolvimento individual.
Este pressuposto caracteriza tanto a perspectiva psicoetológica quanto
as teorizações contemporâneas sobre desenvolvimento usualmente iden-
tificadas como interacionistas, construtivistas, sócio-históricas ou sócio-
interacionistas, tais como as de Piaget, Vygotsky e Wallon, que aponta-
ram a interação como fator constitutivo das aquisições “mentais”, pro-
curando superar vieses inatistas e ambientalistas. Por outro lado, o viés
etológico de nossa perspectiva encaminha nossas perguntas e nossa aná-
lise para os significados funcionais dessas dimensões em termos de adap-
tações características da espécie, mais do que para suas conseqüências
em termos de desenvolvimento individual. A confluência dessas verten-
tes conduziu ao interesse pelos fenômenos da comunicação nos primei-
ros anos de vida, o que, por sua vez, encaminhou para o presente interes-
se por precursores da linguagem, objeto da reflexão preliminar exposta
neste texto e dos projetos de pesquisa atualmente em andamento.
__________________________________________________
3
 O conceito de “situação natural” é controvertido no caso do ser humano, quando se supõe
que os processos biológicos de evolução estão estacionados para nossa espécie; sem entrar
nessa controvérsia, utilizamos aqui a expressão “situação natural” em sentido operacional,
especificado no texto, em contraposição a situações de laboratório ou qualquer outra
condição de interação criada artificialmente pelo pesquisador.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
222 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
O surgimento da questão a partir de um olhar evolutivo
Carvalho e Pedrosa (2004a) resumem um olhar comparativo e
evolucionário sobre a comunicação, procurando analisá-la em termos
de funções adaptativas, processo evolutivo e processo ontogenético.
Esse texto constituiu o ponto de partida da presente proposta de traba-
lho, motivo pelo qual é revisto mais detalhadamente a seguir.
A definição psicobiológica de comunicação não é consensual,
identificando-se freqüentemente com uma definição mais ou menos
abrangente de interação. De fato, em sentido amplo a comunicação
pode ser entendida como uma característica universal dos sistemas
vivos, incluindo a comunicação entre abelhas e flores de forma a
produzir a polinização, a comunicação entre machos e fêmeas de
forma a produzir a reprodução, ou entre animais que caçam de ma-
neira cooperativa de forma a produzir o sucesso da caçada (HAU-
SER, 1996). No entanto, também é consensual o reconhecimento
de que a comunicação humana é um fenômeno único na natureza.
Rejeitando-se a hipótese simplista de que possa ter evoluído brus-
camente, através de emergências ou de mutações sem nenhuma
história anterior, parece interessante especular sobre suas origens
a partir de uma análise comparativa.
Carvalho e Pedrosa (2004a) empreendem essa especulação a
partir da consideração dos contextos funcionais da comunicação na
natureza. Em um primeiro nível, consideram as implicações do aca-
salamento em termos da funcionalidade dos fenômenos comunicati-
vos, apontando o caráter de negociação envolvido nesse contexto
funcional. Segundo as análises clássicas da Etologia, o acasalamento
envolve um processo de negociação, através do qual indivíduos com
motivações semelhantes e ao mesmo tempo conflitantes (atração e
medo, gerando um conflito aproximação-esquiva) administram esse
conflito por meio de rituais de comunicação (em geral ritualizados ao
longo da filogênese) que conduzirão (ou não, em caso de fracasso) a
um objetivo partilhado: a cópula e suas variadas conseqüências em
termos de continuidade de interações. A sugestão é de que, mesmo
em outras espécies animais e possivelmente em estágios filogenéti-
cos ou ontogenéticos em que os recursos comunicativos são pouco
flexíveis, a comunicação consiste em um processo de negociação.
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 223
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
Essa sugestão é ilustrada, no texto, com exemplos de interações de
crianças pequenas, cuja base motivacional parece ser uma forma
de disputa territorial, negociada através de recursos comunicativos
(cf. também CARVALHO e PEDROSA, 2004b; PEDROSA e CAR-
VALHO, 2004).
Em um segundo momento, as autoras consideram os contextos fun-
cionais de sobrevivência – no sentido de proteção contra predadores e
outros sinais defensivos – e de interação social – no sentido de troca de
informações sobre recursos ambientais e de estabelecimento e adminis-
tração de relações sociais nos grupos (HAUSER, 1996). O aspecto sa-
lientado nesta análise é a passagem da comunicação expressiva para a
comunicação referencial, isto é, relativa a aspectos do ambiente físico e
social e não apenas a estados emocionais ou disposições comportamen-
tais dos indivíduos em interação. São exemplos disso a comunicação de
abelhas a respeito da existência e da localização de alimento através da
dança (VON FRISCH, 1967), ou os chamados de alarme de macacos
vervet, cujos vários sinais vocais indicam diferentes tipos de predadores
e resultam em diferentes estratégias de defesa (STRUHSAKER, 1967).
Trata-se de um tipo de comunicação na qual, pode-se dizer, certos sinais
representam certos aspectos do mundo externo.
No terceiro momento, é analisada a transição entre expressão
emocional e comunicação expressiva, através do processo filogenético
de ritualização e de seus análogos ontogenéticos (ritualização onto-
genética, abreviação – LORENZ, 1966; MONTAGNER, 1978; LYRA
e SOUZA, 2003). A essência do argumento é de que a comunicação
ritualizada se deriva da manifestação de estados motivacionais, conver-
tendo-se em sinais através de processos filogenéticos ou ontogenéticos
que simplificam ou abreviam essas manifestações. Montagner, descre-
vendo interações de crianças pequenas, oferece vários exemplos de ri-
tualização ontogenética, que caracteriza como um processo de “[...]
diferenciação de ações, toques, cheiros ou vocalizações até adqui-
rirem valor de sinais” (1978, p. 252).
O termo “ritualização” é tomado de empréstimo ao processo
filogenético através do qual certos animais vêm a apresentar com-
portamentos de topografia estereotipada, simplificada e repetitiva, cu-
jas funções/motivações originais de locomoção, alimentação, defesa,
etc. se separam, ao longo da filogênese, do ato em si, adquirindo este,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
224 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
substitutivamente, valor de sinal – um precursor ou pelo menos um
análogo do símbolo na comunicação não-humana (HUXLEY, 1966).
Um outro exemplo relativo à ontogênese é a análise da constituição do
gesto de apontar, diferenciado a partir do gesto de tentar alcançar algo,
uma diferenciação mediada pelo outro que interpreta o gesto e respon-
de a ele,
em um processo de regulação recíproca (VYGOTSKY, 1984).
O gesto ritualizado representa uma espécie de síntese: um comporta-
mento ou uma seqüência de comportamentos é selecionada, fixada,
especializada no processo interativo; estes comportamentos se simpli-
ficam e se desprendem de seus contextos de origem, adquirindo outro
valor funcional, o valor de sinal.
Nesse desdobramento da emoção ou da motivação vivida em
um gesto passível de tornar-se comunicativo, Wallon (1942/19794)
identifica um desdobramento da realidade em representação e um
prelúdio da função simbólica:
Um gesto ritual não significa nada senão em rela-
ção a um protótipo, não tem outro motivo que não
seja obter por este intermediário um resultado,
cujas condições e possibilidades não pertencem,
totalmente pelo menos, ao campo das circunstân-
cias presentes. É menos um ato que figuração de
um ato. As conseqüências que se procuram não
estão nele, mas nas forças que tende a evocar, isto
é, no que representa. O rito introduz a representa-
ção e a representação, através dele, converte-se
no intermediário ou condensador duma eficiên-
cia que já não está no simples manejo bruto das
coisas nem na simples acção muscular ao contato
dos objetos (p. 129).
A analogia entre ritualização filogenética e ontogenética, evidente-
mente, não se estende aos seus mecanismos, no primeiro caso mediados
por variabilidade genética e seleção natural, e no outro por interação
social e processos culturais. O interesse dessa analogia reside princi-
palmente no que sugere sobre a natureza dos sistemas comunicativos,
__________________________________________________
4
 Quando disponível, informamos o ano da primeira publicação de textos de autores clássicos,
seguido pelo ano da edição consultada.
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 225
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
quer se constituam na filogênese quer na ontogênese: sua dinâmica de
constituição e transformação, de desprender-se dos referentes originais,
de simplificar-se ou abreviar-se aumentando a estereotipia e maximizan-
do e/ou especializando (por exemplo, restringindo a grupos e subgrupos)
sua eficácia comunicativa. A etimologia da linguagem verbal também
pode ser vista como compartilhando essas propriedades como sistema
comunicativo em contínua transformação: Vossa Mercê – Vosmicê –
Você – Cê..., um exemplo entre muitos.
No quarto momento da análise, Carvalho e Pedrosa (2004a) discu-
tem a transição entre comunicação expressiva e comunicação referen-
cial (note-se que há diferença entre as duas transições, de expressão a
comunicação expressiva, e desta a comunicação referencial). Do ponto
de vista adaptativo, a comunicação referencial implica a possibilidade de
reagir a situações nas quais não ocorreu exposição direta, o que é espe-
cialmente importante em espécies sociais cujos membros vivem relati-
vamente dispersos e têm a oportunidade de se deparar com novos obje-
tos ou eventos potencialmente relevantes para o grupo. Do ponto de
vista da filogênese, isto é, da história evolutiva, a comunicação referen-
cial exige a existência de capacidade de associar sinais a aspectos rele-
vantes do ambiente (capacidade associativa), e de mecanismos que per-
mitam a transferência de informação entre os indivíduos e a diversifica-
ção de sinais. O primeiro destes (transferência de informação) envolve-
ria a orientação da atenção para o ambiente mediada pelos parcei-
ros sociais; o segundo (diversificação de sinais) poderia ser baseado em
imitação, entendida frouxamente como cópia potencialmente variável
da ação do outro. Essa “frouxidão” potencial resultaria, no caso do ser
humano, na explosão léxica ou comunicação representacional em sen-
tido estrito (HAUSER, 1996).
Ora, parece estar implícito, nessa seqüência de argumentos, o
surgimento, ao longo da filogênese, de processos ou mecanismos dife-
renciados que possibilitariam uma transformação qualitativa, emergen-
te, da comunicação proto-representacional, ilustrada pelos gestos rituali-
zados, para uma comunicação propriamente representacional, caracte-
rística da linguagem articulada – desde que se admita, como o faze-
mos, que a linguagem articulada, embora emergente em relação a fe-
nômenos produzidos anteriormente pela filogênese, não pode ser des-
vinculada desta, ou seja, tem nela as suas origens.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
226 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
Essa discussão conduziu à questão dos precursores filogenéticos e
ontogenéticos da linguagem verbal, que foi introduzida no argumento do
capítulo que sintetizamos aqui a partir de análises anteriores sobre o
processo interacional (PEDROSA et al., 1997; CARVALHO et al, 1998,
1999) e da discussão corrente na literatura sobre modalidades diferenci-
adas de imitação em primatas não humanos e em seres humanos (TO-
MASELLO et al., 1993; ECKERMAN e DIDOW, 1996; ECKERMAN
e PETERMAN, 2001). Com base nessa literatura, e na análise qualitati-
va de alguns episódios de imitação em crianças nos três primeiros anos
de vida, Carvalho e Pedrosa propõem a noção de protolinguagem para
designar os atos imitativos como atos comunicativos no estágio pré-ver-
bal, em dois sentidos diferentes, porém compatíveis:
1) Como recursos comunicativos que emergem antes da linguagem ver-
bal, tanto na ontogênese quanto na filogênese. Os critérios para a
identificação de certos comportamentos como proto-linguagem nes-
te primeiro sentido são exclusivamente funcionais, baseados na de-
monstração de que as ações em questão têm eficácia comunicativa
em interações intra ou inter-específicas (cf., por exemplo, NADEL
e FONTAINE, 1989; PEDROSA e CARVALHO, 1995).
2) Como precursores ou requisitos da linguagem verbal. Esta é a dire-
ção que vem sendo seguida pela pesquisa comparativa e por al-
guns enfoques sobre desenvolvimento humano, ilustrados pelas re-
ferências acima (TOMASELLO et al., 1993; ECKERMAN et al.,
1989). Os objetivos delineados nesta direção de pesquisa são: a)
Identificar ações e/ ou processos constituintes de uma seqüência
ontogenética que conduz à linguagem verbal, de forma a demonstrar
possíveis elos entre essas ações/ processos e a emergência do ver-
bal; e b) Examinar a species-specificity desses processos de forma
a compreender a singularidade da comunicação humana.
Ontogênese humana: emoção, expressão e comunicação
referencial em crianças pequenas
A criança entra no mundo dos significados bem antes de adquirir
e utilizar a linguagem verbal. Pedrosa e Carvalho (1995) evidenciam a
construção e a reconstrução de sentidos de objetos e de ações no es-
paço interacional de crianças pequenas: gestos ou vocalizações que
adquirem novos significados em contextos interacionais particulares;
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 227
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
enredos construídos de brincadeiras, sinalizados e difundidos para o
grupo; objetos re-significados como componentes de brincadeiras.
Nesse texto, Pedrosa e Carvalho analisam a diferenciação de códigos
comunicativos – expressões faciais, gestos e outros movimentos cor-
porais, expressões verbais primitivas – e a reconstrução de seus signi-
ficados no decorrer de processos interativos de crianças em atividade
lúdica livre.
Pedrosa e Carvalho (2004) analisam a ocorrência de aprendiza-
gem sobre eventos físicos na interação de pares de idade; um dos resul-
tados mais marcantes dessa análise é a evidência de atribuição de inten-
cionalidade ao parceiro em crianças de menos de três anos. Pedrosa e
Eckerman (2000), observando comportamento de crianças de 6 a 18
meses em uma creche, durante períodos de brincadeira livre, evidenci-
am que as crianças compartilham significados através
de ações coleti-
vas (disputa por objetos, ações articuladas e coordenadas, ações de con-
solo, alternância de papéis), tipicamente mediadas por imitação.
O conceito de imitação freqüenta, com maior ou menor desta-
que, praticamente toda a literatura sobre desenvolvimento. Selecio-
namos três vertentes dessa literatura para informar nosso argumento
a respeito do status da imitação como precursora da linguagem: dois
autores interacionistas clássicos que focalizaram a constituição da
mente e do sujeito humano, e que destacaram a imitação como ele-
mento central na ontogênese da representação, da função simbólica
e da linguagem – Wallon e Piaget5; a vertente etológica de pesquisa
comparativa sobre imitação; e os trabalhos de Eckerman e colabora-
dores (1989, 1996, 2001), que hipotetizam uma função importante da
imitação na facilitação do desenvolvimento de meios verbais de con-
secução de ações coordenadas.
a) Imitação e ontogênese da representação: o enfoque de dois au-
tores clássicos da Psicologia do Desenvolvimento
A imitação é um tema constante entre os autores clássicos que
estudaram a ontogênese da representação nos primeiros anos de vida
(PIAGET, 1946/1975; PIAGET e INHELDER, 1966/1980; WALLON,
__________________________________________________
5
 Preservamos nesta revisão termos utilizados pelos autores, tais como mente, representação
e função simbólica, mesmo quando sujeitos a críticas em nosso próprio enfoque ou no de
outros autores.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
228 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
1942/1979, 1949/1971, e os representantes contemporâneos de sua tra-
dição de pesquisa, tais como NADEL e BAUDONNIÈRE, 1981)6.
A discussão sobre o processo imitativo e seu papel na consti-
tuição da representação começa com a dificuldade de se chegar a
um acordo conceitual. Wallon (1942/1979) chama a atenção para
duas formas distintas de conceituar a imitação. A primeira concebe
imitação como um ato que reproduz um modelo. Conceber deste
modo implica admitir a representação do modelo como condição
necessária, isto é, admitir um poder de representação anterior ao
ato imitativo, o que iria de encontro a evidências de comportamen-
tos imitativos de crianças em idades muito precoces (por exemplo,
MELTZOFF e MOORE, 1977), em que o poder de representação
não existe de forma manifesta.
Outra maneira de definir a imitação é pela semelhança entre
dois atos, quando seus protagonistas estão em situação de observa-
ção mútua. Discriminam-se fenômenos que não seriam imitação, tais
como o comportamento de dois animais famintos diante de uma pre-
sa, nos quais a semelhança entre os comportamentos se deve ao des-
pertar simultâneo da mesma motivação: o que regula o comporta-
mento desses animais é a própria presa, e não o parceiro de espécie.
Para ser considerada imitativa, a ação deveria, segundo Wallon, ser
regulada pelo alvo que serve de parâmetro (o outro animal) para que
se possa indicar uma semelhança.
Wallon (1942/1979) concebe a imitação como uma atividade
onde a representação deve chegar a formular-se. As etapas suces-
sivas da imitação:
[...] obrigam a reconhecer um estado de movi-
mento, em que este deixa de se confundir com as
reações imediatas e práticas que as circunstân-
cias fazem surgir dos seus automatismos, e um
estado da representação em que o movimento a
contém já antes de ela saber traduzir-se em ima-
gem ou de explicitar os traços de que deveria ser
composta (p. 137-138).
__________________________________________________
6
 A exposição feita neste item recupera partes da introdução da tese de Doutorado Interação
criança-criança: um lugar de construção do sujeito (Pedrosa, 1989), na qual Wallon foi um
autor particularmente focalizado.
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 229
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
Wallon pensa que o ato imitativo surge da atividade postural e
distingue uma imitação espontânea e uma imitação inteligente. Na pri-
meira, o modelo não se impõe como algo exterior ao sujeito; apesar de
ter surgido sob a forma de percepção, parece-lhe íntimo e o impele ao
ato imitativo que complementa e restabelece um acordo psicomotor.
Na segunda, o ato imitativo distingue-se do modelo; o sujeito decide-se
por imitar, ou não, algo sentido como exterior a si próprio. A passagem
da primeira para a segunda modalidade é um processo lento e comple-
xo. A imitação inteligente tende a estabelecer uma dissociação entre o
que é percebido, desejado ou imaginado e o que é efetuado. Essa opo-
sição propicia o plano da representação. A representação seria o re-
sultado da duplicação do real, ou seja, o desdobramento do plano do
sensível e do concreto em seu equivalente, formado de imagens, de
símbolos e de idéias. Como se dá esse desdobramento?
Segundo a interpretação walloniana, entende-se o processo de imi-
tação como um estado dinâmico de fusão e de diferenciação entre o sujei-
to e o modelo – isto é, o outro. A criança observa ativamente os outros que
a atraem; há uma tendência de se unir a eles numa espécie de participação
efetiva. Formam-se aí os ingredientes básicos do processo imitativo: uma
constelação perceptivo-motriz ou uma plasticidade perceptivo-postural. Es-
tes ingredientes se constituem em uma espécie de modelo íntimo, agrupan-
do impressões diversas e esparsas no tempo numa fórmula global. Esta
fórmula, em seguida, tende a transformar-se, a efetivar-se no meio físico,
em termos sucessivos, para compor o desenrolar do ato imitativo. Aparen-
temente não existe problema nessa transformação, quando se concebe
que a ordem dos gestos está implicada no esquema de seu registro.
Mas não é bem assim que se interpreta o modelo: ele é conce-
bido como um conjunto, como algo organizado que corresponde a
uma impressão global. Visto desse modo, o problema é esmiuçá-lo
em seus termos sucessivos. O êxito de uma imitação é obtido quando
os gestos se articulam com uma topografia e um momento, integra-
dos na realização de sua totalidade.
Começa, então, a oposição ao modelo: a efetivação dos gestos
exige comparação e toda comparação exige desdobramento. Mesmo a
imitação imediata, na presença do modelo, implica a confrontação dos
termos sucessivos atuais com o seu protótipo, apreendido na totalidade
do modelo. O trabalho deve ser dividido entre a execução e o controle do
ato, e nesse trabalho se destaca a noção de semelhança.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
230 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
Para indicar uma semelhança e não apenas reconhecê-la, parece
existir uma figuração que poderia ser considerada uma representação pré-
via. Mas essa figuração pode estar longe ainda de satisfazer as condições
da representação. Quaisquer circunstâncias de que resultem uma conco-
mitância ou outras afinidades podem parecer autêntica semelhança.
Entretanto, é possível reconhecer aí um prelúdio de representação.
A semelhança é uma qualidade que se desprende dos objetos, das ações,
e que permite uni-los, apesar de serem distintos sob outros aspectos. Na
medida em que permite associá-los, a semelhança é, em potência, cate-
goria. Inicialmente ela é destacada por uma espécie de participação
material; mas é a forma ou outra dimensão que se comunica e que se
tornará a qualidade a ser classificada. Nas analogias, mesmo nas mais
simples, são as ações de resultados semelhantes que se convertem numa
espécie de poder simbólico.
A similitude dos processos de imitação e de representação induz a
pensar, também, na influência ou participação do primeiro no segundo.
Os dois processos se desenrolam em planos distintos: um, no plano mo-
tor, e o outro, no das imagens e símbolos. Mas a
força da analogia deve-
se ao fato de que os dois processos compartilham um problema: trans-
formar uma fórmula íntima, resultado de uma condensação de impres-
sões e experiências diversas, em termos sucessivos, devendo, portanto,
ser dimensionada no tempo.
No referencial walloniano, o pensamento parece corresponder a
um sistema no qual as impressões e experiências se delineiam como
figuras e unidades de consciência sobre um campo diverso e difuso.
Imagens ou idéias, qualquer que seja a complexidade de sua realidade,
formam um sistema simplificado, apreendido pela consciência de uma
só vez, instantaneamente. O desenvolvimento do pensamento implica
que ele se torne discursivo, para subsistir e ser utilizado em outros
momentos, em outras realidades. Enquanto isso não acontece, o pen-
samento permanece dominado por impressões sucessivas, sem anali-
sar e diferenciar as relações entre as coisas ou as situações. É um
pensamento concreto e sincrético, impotente para se decompor em
partes que possam ser articuladas e reorganizadas de outra forma, e
assim possam corresponder a outras experiências. Falta ao pensamen-
to um campo de representações onde ele possa evoluir (WALLON,
1942/1979; 1963/ 1986).
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 231
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
Há uma suposta similaridade entre mecanismos inerentes à imi-
tação e à representação: ambas são a redução de impressões mais
ou menos esparsas em uma fórmula global e como que atemporal; a
ambas cabe transformarem-se em termos sucessivos, ou seja, res-
pectivamente, no ato imitativo e no pensamento discursivo, implican-
do o aspecto temporal.
A imitação imediata, na presença do modelo, supõe também,
segundo Wallon, a interveniência da formulação íntima do modelo.
Neste caso, porém, são mais evidentes os indícios comportamentais
de que está havendo regulação recíproca no ato imitativo. Na imita-
ção imediata acontecem casos em que a criança imitada não nota
que está sendo o modelo da outra, mas, na maioria das vezes, isto é
percebido e ela própria se ajusta e se regula por esse fato. É o que
demonstram Nadel e Baudonnière (1981), ao investigarem o signifi-
cado da imitação imediata em crianças de 2 a 3 anos, observadas em
grupos de duas ou três crianças em uma sala em que eram ofereci-
dos, em igual número, objetos de vários tipos.
Utilizando como critérios para a análise os comportamentos de
oferta de objeto, que freqüentemente precediam a imitação, e a imita-
ção do abandono de um objeto, os autores sugerem que a oferta de
objetos sinaliza uma expectativa de ser imitado, e que nem o objeto
nem a atividade que ele suscita são os alvos privilegiados da imitação
intencional, mas antes a própria semelhança de atitudes entre as crian-
ças. A imitação é interpretada como um meio para o estabelecimento
de contato social, permitindo um acordo entre as crianças, que ainda
não podem obtê-lo por meios verbais. A quase simultaneidade das ações
facilita um estado de fusão, e só é possível pela antecipação da atitude
da outra. O desdobramento inerente à representação está implicado na
comparação do ato imitativo com seu modelo.
Na formulação de Wallon, embora o modelo seja íntimo, foi cons-
tituído a partir da fusão com o outro. Para Wallon, o social é a primei-
ra instância do ser humano, que não é concebido como um ser que se
socializa, e sim como um ser que se individualiza (embora nunca com-
pletamente) a partir da fusão inicial com o outro. É no processo de
interação social que o eu se diferencia através da oposição com o
outro (daí o papel relevante do desdobramento implicado na imita-
ção) e se constitui como eu.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
232 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
Segundo Wallon (1959/1986), o primeiro sistema expressivo-co-
municativo organiza-se a partir das relações com o outro, e é constituído
pelas emoções que harmonizam as reações e os impulsos dos parceiros
e os regulam reciprocamente; são as emoções, nesta perspectiva, a ori-
gem da atividade representativa, desde as primeiras manifestações ex-
pressivas como o sorriso, as posturas, as mímicas, progressivamente di-
ferenciadas na interação com o outro, mediador essencial da interação
da criança com o mundo físico. Dada essa perspectiva, a interação
social está presente no processo como parte integrante, ainda que o
outro possa estar concretamente ausente.
Em síntese, a imitação apresenta, segundo Wallon, três facetas re-
levantes como precursora da linguagem (ou da representação): (a) a
segmentação de uma síntese de impressões percepto-motrizes – no caso
da imitação – análoga à segmentação de um pensamento global e difuso
– no caso das imagens/ idéias – de forma a produzir um desdobramento
e um ordenamento no tempo de seus termos sucessivos – dos atos, no
primeiro caso, e da linguagem verbal, no segundo; (b) o modo preponde-
rante de comunicação entre crianças que não possuem ainda recursos
verbais desenvolvidos; (c) a diferenciação eu-outro.
Piaget, contemporâneo e colega de Wallon – e cujas divergências
em relação a este decorrem principalmente da forma de conceber a
relação indivíduo-social no processo de desenvolvimento7 –, também
ressalta o papel da imitação na ontogênese da representação. No con-
texto de análise da constituição ontogenética da função simbólica (ou
semiótica), Piaget e Inhelder (1966/1980) afirmam que, no decorrer do
segundo ano de vida, surge:
[...] um conjunto de condutas que supõe a evoca-
ção representativa de um objeto ou de um aconte-
cimento ausente e envolve, por conseguinte, a
construção ou o emprego de significantes dife-
rençados8, visto que devem poder referir-se não
só a elementos não atualmente perceptíveis mas
também aos que se acham presentes (p. 47).
__________________________________________________
7
 É incorreto dizer que Piaget não levou em conta a dimensão social do processo interacional;
apenas, não a priorizou da mesma forma que outros autores – que devido a isso adotaram a
designação “sócio-interacionistas”; e, diferentemente de Wallon, Piaget concebeu o desen-
volvimento como um processo de socialização antes que de individuação.
8
 Em contraste com significantes perceptivos, ou indícios, que não se descolam de seus
significados e sim constituem um aspectos destes (Piaget e Inhelder, 1980).
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 233
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
Cinco dessas condutas são enumeradas em ordem crescente de
complexidade: a imitação diferida (que principia na ausência do modelo),
o jogo simbólico, o desenho, a imagem mental e a evocação verbal. As
quatro primeiras repousam na imitação, e a própria linguagem é adquiri-
da num contexto necessário de imitação – conduta que:
[...] constitui, ao mesmo tempo, a prefiguração
sensório-motora da representação e, por con-
seguinte, a passagem do nível sensório-motor
para o das condutas propriamente representa-
tivas (ibid, p. 49).
 A imitação é concebida como uma espécie de representação em
atos (e não ainda em pensamento), que começa por contágio e depois se
torna automotivada. No final do período sensório-motor, o domínio da
imitação possibilita a imitação diferida, em que a representação em ato
já é independente da cópia perceptiva e, portanto, em parte, já é repre-
sentação em pensamento, que evoluirá para a representação-pensamento
do jogo simbólico e do desenho, e finalmente para a imagem mental
interiorizada9, “[...] pronta para tornar-se pensamento [...]” (ibid., p.50)
e possibilitar a aquisição da linguagem.
Nota-se nesta breve síntese que o foco da teorização piagetia-
na sobre imitação e seu papel na ontogênese da linguagem é a dife-
renciação entre processos
perceptivos (intervenientes na imitação
imediata, por exemplo) e os que são considerados propriamente re-
presentativos: a ausência do percebido (imitação diferida) é condição
para se pensar a imitação como caminho para a representação. É
como se a percepção impedisse a dedução de ocorrência de proces-
sos internos, ou mesmo se desse na ausência destes, o que quer que
se signifique por interno ou “mental”.
A idéia walloniana de duplicação do real, ou seja, o desdobramento
do plano do sensível e do concreto em seu equivalente, formado de ima-
gens, de símbolos e de idéias – quando busca definir o que é a função de
representação – , é equivalente à libertação da percepção para Piaget.
__________________________________________________
9
 A relação entre interno e externo (e os conceitos decorrentes de interiorização/ internali-
zação) parece-nos ser um foco importante de diferenciação entre autores construtivistas,
e carente de uma reflexão mais aprofundada, apenas esboçada aqui, e que pretendemos
empreender em outro texto.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
234 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
Entretanto, Wallon não lança mão do conceito de interiorização para
dar conta de uma passagem de fora para dentro (para o interno, para o
mental), na medida em que os processos mentais são desdobramentos
do que já ocorre no indivíduo, na sua biologia, transformando-se em mental
pela ação do outro, do parceiro social, que compartilha de um mesmo
processo de significação. Assim, o choro, por exemplo, simples descar-
ga fisiológica, que faz parte do repertório da criança ao nascer, transfor-
ma-se em um sinal comunicativo pela interferência sucessiva de um par-
ceiro da espécie que tenta minimizá-lo, confortando aquele que chora. A
nosso ver, o que mais distancia as concepções walloniana e piagetiana –
tanto neste como em outros tópicos – é o lugar do outro, central na
primeira e quase ausente na segunda.
Tanto Wallon quanto Piaget estudaram o processo de imitação na
criança atribuindo a ele um papel na constituição da sua vida mental,
especialmente na constituição de sua função de representação (função
semiótica, na linguagem de Piaget). Traçaram hipóteses, entretanto, de
mecanismos diferentes, condizentes com seus aportes teóricos: Wallon
realçou os processos de fusão e diferenciação do sujeito com o outro,
inerentes à imitação de outra pessoa pela criança, e afirmou que eles
propiciam comparações entre o fazer próprio e o modelo presente ou
ausente, comparações que resultam em desdobramentos conseqüentes.
Piaget concebeu os processos de assimilação e acomodação como res-
ponsáveis pela estruturação do pensamento infantil, admitindo que na
imitação há um predomínio da acomodação, e na brincadeira de faz-de-
conta há a sua contrapartida, o predomínio da assimilação, ambos os
processos situados no âmbito do interno ou do individual.
Ao priorizar na imitação (imediata ou diferida) a dinâmica entre
fusão e diferenciação, ou eu-outro, Wallon oferece um mote que será
retomado (por vias diversas e independentes) na literatura etológica re-
cente, especialmente a respeito de primatas.
b) Natureza e evolução da imitação no reino animal: algumas novas
(?) perguntas.
A emergência, no decorrer do primeiro ano de vida da criança, de
diversas habilidades “triádicas” – atenção conjunta em relação a obje-
tos, comunicação intencional de desejo de obtenção de objetos ou de
atenção conjunta (apontar, mostrar), aprendizagem de novas ações que
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 235
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
reproduzem não apenas um efeito final, mas também a estratégia
para obtê-los – está documentada na literatura desde a década de
70. Carpenter e colaboradores (1995) sintetizam essa literatura e
sugerem que essa emergência sincronizada no tempo não é aciden-
tal: decorre antes do fato de que todas essas habilidades dependem
da crescente capacidade da criança de:
[...] compreender as outras pessoas como agentes
intencionais cuja atenção e comportamento em
relação a objetos podem ser acompanhados, diri-
gidos e compartilhados (TOMASELLO, 1995)10.
[...] Essas habilidades sócio-cognitivas têm sido
referidas também como “intersubjetividade se-
cundária” (TREVARTHEN, 1979)11 (CARPEN-
TER et al., 1995; p. 218).
Serão essas habilidades sóciocognitivas especificamente huma-
nas? A análise comparativa entre crianças e chimpanzés é o primei-
ro objetivo dos autores em relação a essa questão nesse estudo; o
segundo é investigar as relações entre atenção conjunta e aprendiza-
gem por imitação, definida de uma forma que pressupõe a primeira:
“[...] a aprendizagem por imitação de uma ação sobre um objeto re-
quer que o aprendiz preste atenção não só ao efeito final produzido,
mas também aos meios utilizados pelo demonstrador” (ibid, p. 220) –
em outras palavras, que sua atenção esteja sincronizada com a do
parceiro e se alterne entre as ações deste e o objeto sobre ou com o
qual atua – o que define a atenção conjunta.
Antes de rever os resultados desse estudo, convém esmiuçar
comparativamente a natureza da imitação de que se está tratando.
Whiten e Ham (1992) oferecem uma revisão valiosa, e considerações
precisas e relevantes sobre as evidências comparativas a respeito de
imitação desde os primórdios basicamente anedóticos da Psicologia
Comparativa pós-darwiniana – que teria tido sua atenção atraída para
__________________________________________________
10
 Tomasello, M. Joint attention as social learning. Em: C. Moore e P. Dunham (Eds.) Joint
attention: Its origins and role in development. Hillsdale, N.J.: Erlbaum, 1995.
11
 Trevarthen, C. Instinct for human understanding and for cultural cooperation. Em: M.
von Cranach; K. Foppa; W. Lepenis e D. Ploog (Editores) Human ethology: Claims and
limits of a new discipline. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
236 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
esse fenômeno uma vez que a imitação, a despeito de sua impor-
tância óbvia na transmissão cultural humana, e na aquisição da lin-
guagem em particular, parecia ocorrer também, sob formas mais
simples, entre outros animais. Para examinar as evidências alega-
das, os autores buscam inicialmente uma conceituação de imitação
em comparação com outros processos psicológicos que poderiam
explicar a semelhança de comportamento entre dois animais (uma
preocupação semelhante à de Wallon, indicada anteriormente, mas
desta vez apoiada em uma enorme quantidade de evidência e em
uma sofisticação conceitual de que aquele autor não podia dispor
no início no século XX).
Comparando detalhadamente os fenômenos designados, por di-
ferentes autores e tradições de pesquisa, como imitação ou com os
inúmeros termos relacionados (por exemplo, mimetização; influência
social; contágio, imitação instintiva, instigação pseudo-vicária, facili-
tação social, etc.; realce de estímulo ou de local; imitação inteligente,
imitação simbólica, imitação interna reflexiva, etc.; emulação), Whi-
ten e Ham (1992) propõem uma taxonomia de processos miméticos,
conceituados como processos que resultam em semelhança de com-
portamentos entre indivíduos, com três grandes categorias: (a) pro-
cessos não-sociais, em que a semelhança emerge sem interação so-
cial; (b) influência social, em que ocorre regulação entre indivíduos,
mas não ocorre aprendizagem: por exemplo, contágio, encorajamen-
to social, aprendizagem da ação do outro como estímulo discriminati-
vo; e (c) aprendizagem social, em que ocorre aprendizagem do com-
portamento ou de parte do comportamento do indivíduo mimetizado:
realce de estímulo ou de local; condicionamento
por observação (sob
certos aspectos igualável ao primeiro); imitação de parte da topogra-
fia do comportamento; emulação de objetivos.
Os processos incluídos no segundo e no terceiro grupo são, se-
gundo os autores, os que têm o potencial de operar na transmissão
cultural. Entre eles, parece-nos que os do terceiro grupo são, por
sua vez, os que têm sido focalizados, com maior ou menor grau de
diferenciação entre si, na literatura sobre imitação e desenvolvi-
mento, e que interessam mais diretamente ao nosso argumento.
Realce (enhancement) de estímulo ou de local pode ser diretamente
relacionado à noção de atenção conjunta; imitação, nesta categorização,
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 237
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
refere-se à reprodução da forma da ação, o que se aproxima da
noção de imitação de meios; e emulação de objetivos corresponde à
noção de imitação de fins12. Whiten e Ham (op. cit.) concluem, com
base nessa taxonomia, que apenas no caso de chimpanzés há alguma
evidência de imitação de meios; essa evidência é principalmente ane-
dótica ou obtida em cativeiro (freqüentemente em chimpanzés “en-
culturados”, criados por seres humanos).
Todos os demais relatos examinados em relação a outros primatas
(macaca, cebus, ateles, papio, cercopithecus), e mesmo muitos dos
relativos a chimpanzés poderiam ser explicados por outros mecanismos,
como realce de estímulo/local, ensaio e erro, e facilitação social; em
outros mamíferos (ratos, golfinhos) a evidência é ainda mais escassa ou
controvertida. Os autores concluem, a título de hipóteses de trabalho
ainda a serem mais testadas, que chimpanzés podem imitar (grifo nosso:
não significa supor que o façam em situações naturais); o mesmo se
aplica, com ainda maior margem de dúvida, a golfinhos; e que a imitação
está ausente, ou é apenas incipiente, em outros primatas13. Essa conclu-
são conduz à concepção da imitação como parte de um padrão de dife-
renciação cognitiva peculiar a certas condições evolutivas bem específi-
cas. Entre os possíveis elementos nucleares desse padrão, destacam a
meta-representação ou “leitura da mente” (mind reading):
[...] a imitação, por B, de um padrão de ação de A
envolve copiar um padrão de ação que foi orga-
nizado originalmente a partir do ponto de vista
de A (BRUNER, 1972)14. Esse é necessariamente
um ponto de vista diferente do de B, mas tem que
ser re-representado em sua forma original de
organização para que possa ser desempenhado
do ponto de vista de B. A expressão re-represen-
tado é inevitável e é usada de forma cuidadosa:
__________________________________________________
12
 É interessante apontar que, embora as palavras imitação e emulação tenham a mesma raiz
latina “Im”, que denota “semelhança” (Ayto, J. Dictionary of word origin. New York:
Árcade, 1990), a palavra emulação adquiriu um significado periférico de competição,
concorrência ou esforço de superação, o que talvez esteja relacionado com a desvaloriza-
ção ideológica do imitar como processo inferior do ponto de vista cognitivo, que se reflete
em termos pejorativos como “to ape”, em inglês, ou “macaquear”, em português.
13
 Implicando que o ser humano é superior aos outros primatas em “macaqueação” – uma
implicação no mínimo divertida.
14
 Bruner, J.S. Nature and uses of immaturity. American Psychologist, 27: 687-708, 1972.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
238 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
traduz uma representação de segunda ordem ou
meta-representação [...] pode-se dizer que B tem
que captar o programa de comportamento na
cabeça de A: em outras palavras praticar uma
espécie de leitura da mente (WHITEN e HAM,
1992, p. 271).
A hipótese é testável: a imitação tornar-se-ia tanto mais difícil quanto
mais divergentes fossem os pontos de vista de modelo e imitador (por
exemplo, na interação face a face em oposição à observação do modelo
a partir da mesma orientação espacial). Assim, essa argumentação
comparativa, além de convergente em relação às colocações de Wallon
sobre imitação e diferenciação eu-outro, situa-as em uma nova perspec-
tiva conceitual e empírica.
Essa convergência é instigante. A nosso ver, ela recupera um aspec-
to central da teorização de Wallon: a inseparabilidade entre afetivo/emoci-
onal e cognitivo. A literatura sobre construção da identidade (ou do eu)
situa-se em geral no pólo do afetivo, desvinculada da literatura sobre for-
mação de conceito, fenômeno cognitivo. Essa distinção não tem lugar no
pensamento de Wallon, no qual o eu-outro, ou a fusão-diferenciação, é
conceito estruturante, referente a processos cuja origem está na imitação.
Pode-se dizer que ele está implicado – ou, melhor dizendo, está mais expli-
citado conceitual e empiricamente – na moderna teoria da mente e em sua
interpretação sobre a imitação: para construir o eu, como diria Wallon, é
preciso poder pensar o outro e supor que o outro também pensa o seu
parceiro interacional (cf. também DUNN, 1988).
Carpenter e colaboradores (1995) seguem essa trilha de argu-
mentação explorando comparativamente, por um lado, a correlação
entre atenção conjunta e imitação, e por outro a distinção entre imita-
ção de meios e de fins (emulação de objetivos). Seus sujeitos foram
três chimpanzés “enculturados” (criados em ambiente semelhante ao
de uma criança, em interação com seres humanos adultos); três chim-
panzés criados por suas mães no ambiente típico de cativeiro (no qual
há mais interação com seres humanos do que teria um chimpanzé em
ambiente natural); e seis crianças com 18,4 meses de idade em média
(faixa etária escolhida por ser uma fase em que há uma incidência
significativa de interações que envolvem atenção conjunta com adul-
tos, mas ainda há pouca verbalização).
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 239
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
O procedimento era uma situação de jogo com objetos, em que o
experimentador procurava assegurar a atenção dos sujeitos, apresenta-
va modelos de ações sobre os objetos e esperava suas respostas, even-
tualmente encorajando-as. Foram codificados a atenção visual dos sujei-
tos (olhar para objeto, olhar para face do experimentador, nenhum dos
dois) e seu comportamento em relação aos objetos (reprodução apenas
de meios, sem obtenção do resultado; reprodução do resultado por ou-
tros meios; reprodução de meios e de resultados; e nenhum dos anterio-
res); foi codificado também o comportamento não-verbal dos sujeitos
dirigido ao experimentador.
Os resultados apontam diferenças entre os três grupos em diver-
sos aspectos instigantes. Nos dois grupos de chimpanzés, os olhares para
o rosto do experimentador eram, em sua maioria, curtos, ao passo que os
das crianças eram prolongados. Essa diferença é atribuída ao fato de
que, na interação de experimentadores e chimpanzés enculturados, há
muita ênfase na atenção em relação a objetos, faltando-lhe um compo-
nente ontogenético característico da história interacional humana: as pro-
longadas interações face-a face, os recursos de captação e manutenção
da atenção em relação à face e outras formas de “proto-conversas”
(TREVARTHEN, 1979, cit. CARPENTER et al., 1995; p. 233). Por
outro lado, chimpanzés “enculturados” diferiram dos chimpanzés cria-
dos pela mãe quanto à forma de atentar para objetos e de interagir com
seres humanos a respeito de objetos: olhavam mais tempo para objetos
apresentados pelo experimentador, e envolviam-se durante períodos mais
longos com o objeto e com o experimentador durante momentos de aten-
ção conjunta. Pode-se dizer que os chimpanzés enculturados apresenta-
ram padrões intermediários entre os das crianças e os dos chimpanzés
criados pelas mães. Discutindo esses resultados,
os autores sugerem que:
[...] a instrução intencional por parte de adultos
(como ocorre com crianças e com os chimpanzés
enculturados), a interação com objetos na presença
de outros que encorajam a atenção em relação a
esses objetos, o reforço pela imitação de ações do
adulto, a comunicação com adultos utilizando sím-
bolos convencionais, e ser tratado como agente in-
tencional são todos ingredientes importantes para
compreender outras pessoas como agentes intencionais.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
240 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
Essa compreensão está na base da ontogênese de
habilidades de atenção conjunta, imitação e co-
municação, tanto para seres humanos quanto para
chimpanzés (CARPENTER et al.,1995, p. 235).
Os autores encontram ainda uma relação positiva entre atenção
conjunta e aprendizagem por imitação (no sentido de imitação não ape-
nas de fins mas também de meios): em todos os sujeitos, a porcentagem
de tempo despendida olhando para o objeto durante o período em que o
modelo de ação era apresentado e o escore total de imitação relaciona-
ram-se positivamente, e olhar pelo menos uma vez para o rosto de expe-
rimentador durante esse período correlacionou-se positivamente com a
reprodução de meios e de fins em chimpanzés enculturados. A hipótese
sugerida é de que há informação sobre intenções de ação transmitidas
pelo rosto dos experimentadores que são úteis para a reprodução de
suas ações, mas que são utilizadas apenas quando as habilidades de imi-
tação são de um tipo específico. Conseqüentemente:
[...] o fato de que chimpanzés só apresentam ha-
bilidades sofisticadas de aprendizagem por imi-
tação quando são criados em ambientes que mi-
metizam o ambiente cultural humano (human-
like cultural environments) sugere que chimpan-
zés precisam despender um esforço especial para
desempenhar essas tarefas (tal como ocorre com
a aprendizagem de signos lingüísticos) e que lap-
sos de atenção resultariam em fracasso com fre-
qüência maior do que a que ocorre com crian-
ças. Resulta daí que seria interessante investi-
gar a relação entre atenção conjunta e aprendi-
zagem por imitação em crianças por volta dos
nove meses de idade, quando emergem as capa-
cidades de imitação, para verificar se tal esforço
é exigido também das crianças (CARPENTER et
al., 1995, p. 235).
Essa expectativa não corresponde ao que encontramos em nossas
observações qualitativas, ilustradas pelo episódio de imitação espontâ-
nea descrito a seguir:
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 241
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
A educadora pergunta a Jef (M; 15 m15): “Onde
está o cavalinho?”. Jef, que brincava com um
objeto, olha para cima e levanta o braço, se-
gurando o objeto, na direção dos desenhos pin-
tados no teto da sala. Maya (F; 9 m), que olha-
va para Jef e estava de costas para a educado-
ra, engatinha na direção de Jef, pega o objeto
que ele agora colocou no chão, e segurando-o
levanta o braço na direção do teto, sempre
olhando para Jef.
Essa possível diferença evoca o comentário de Hinde (1987) a
respeito do ensino de linguagens simbólicas a chimpanzés: eles po-
dem aprender, mas, diferentemente de uma criança, não têm nenhu-
ma motivação para fazê-lo e requerem técnicas muito particulares
de treinamento. Esse comentário, por sua vez, remete a Vygotsky,
quando diz que Kurt Lewin define a atividade voluntária como as-
pecto característico da psicologia humana, e complementa: “Há ra-
zões para acreditar-se que a atividade voluntária, mais do que o inte-
lecto altamente desenvolvido, diferencia os seres humanos dos ani-
mais filogeneticamente mais próximos” (VYGOTSKY, 1984, p. 42).
Mais uma vez, e agora em Vygotsky, parece emergir uma associação
entre afetividade/motivação (embora sob o rótulo de “vontade”, pos-
sivelmente implicando consciência) e cognição/ação.
Que “vontade” ou motivação é essa, e que “competências cog-
nitivas” (possivelmente incluída aí a imitação) ela implica? A dire-
ção de resposta sugerida por nosso próprio trabalho, e também pela
literatura, envolve dois termos inseparáveis: a prioridade motivaci-
onal do outro ser humano como foco de atenção – o que está implí-
cito nos conceitos de orientação preferencial de atenção e de aten-
ção conjunta (ver CARVALHO, 1989; CARVALHO et al., 1998;
CARPENTER et al.,1995; TOMASELLO et al., 1993) – e a per-
cepção dos outros como agentes intencionais claramente diferenci-
ados de objetos inanimados (PEDROSA e CARVALHO, 2004;
TOMASELLO et al., 1993):
__________________________________________________
15
 M/ F = sexo masculino/ feminino; idade em meses
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
242 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
Crianças não tentam olhar para onde sua boneca
está olhando, não tentam utilizar uma cadeira
como ponto de referência social, e não pedem que
sua mamadeira realize ações. Só fazem essas coi-
sas quando interagem com outras pessoas, por-
que compreendem o comportamento de outras
pessoas em termos de percepções e intenções sub-
jacentes. De fato, argumentamos, esses comporta-
mentos só fazem sentido se a criança tem alguma
noção a respeito de agentes intencionais (TOMA-
SELLO et al., 1993; p. 498).
Nestes últimos autores encontramos uma síntese particularmente
instigante do argumento desenvolvido neste item, e que introduz o próxi-
mo. Segundo eles, a enorme diferença observável entre sociedades hu-
manas e as de outros animais pode ser explicada por pequenas (mas
importantes) diferenças em termos de processos:
Colocado de forma simplificada, seres humanos
aprendem com o outro através de maneiras que
animais não-humanos não apresentam. Particu-
larmente, seres humanos “transmitem” ontogene-
ticamente comportamentos e informações adqui-
ridos, tanto intra- quanto inter-gerações, com um
grau muito maior de fidelidade [grifo nosso] do
que qualquer outra espécie animal. O processo
de aprendizagem que garante essa fidelidade ser-
ve para evitar perda de informação [...] e, junta-
mente com a inventividade individual e coopera-
tiva, constitui a base da evolução cultural. Seres
humanos são capazes de aprender uns com os
outros desta forma porque têm formas potentes, e
talvez incomparavelmente poderosas, de cogni-
ção social. Seres humanos compreendem e assu-
mem a perspectiva dos outros de uma maneira e
em um grau que lhes permitem participar mais
intimamente do que qualquer animal não-huma-
no dos conhecimentos e habilidades de seus co-
específicos (TOMASELLO et al., 1993, p. 495).
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 243
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
Tomasello e colaboradores (1993) comentam ainda que essa pers-
pectiva não é nova e que recupera um tema central da obra de Vygotsky,
a diferença entre aprendizagem “cultural” e “natural”; mas sustentam
que o papel fundamental da cultura no desenvolvimento humano, apon-
tado por Vygotsky, pressupõe uma capacidade especificamente humana
para a aquisição de cultura, ou seja, uma co-evolução entre cultura e
capacidade para sua aquisição, que Vygotsky e seus seguidores teriam
negligenciado. E propõem buscar essa capacidade em três situações
interacionais básicas: a aprendizagem por imitação, a aprendizagem por
instrução e a aprendizagem cooperativa entre pares de idade. São a
primeira e a última que interessam prioritariamente a nosso argumento, e
que retomamos no trabalho de Eckerman e colaboradores (1989, 1993,
1996, 2001), não sem antes finalizar este item com uma citação que
corrobora todo o raciocínio anterior.
A verdadeira aprendizagem por imitação, em nos-
sa definição, envolve
a reprodução, pela criança,
das estratégias comportamentais do adulto [grifos
nossos, salientando o conceito de imitação de mei-
os; e acrescentaríamos e/ou da outra criança, como
ocorre na aprendizagem cooperativa] em seus con-
textos funcionais adequados, o que implica a com-
preensão de intenções subjacentes ao comporta-
mento (TOMASELLO et al., 1993, p. 497).
c. A teorização de Eckerman e colaboradores sobre o “padrão
imitativo”
Eckerman e Peterman (2001) apóiam-se na idéia de ações coope-
rativas coordenadas – caracterizadas por regulação mútua, semelhança
temática ou semântica, e uso integrado dos modos verbal e não-verbal
de comunicação – para propor trajetórias de desenvolvimento relaciona-
das à transição do não-verbal para o verbal, iniciando-se com ações
coordenadas ritualizadas – inicialmente limitadas a rituais praticados com
adultos e crianças mais velhas; passando pelo surgimento de ações
coordenadas não ritualizadas, que emergem a partir de atos imitativos
não-verbais; e chegando a ações coordenadas resultantes de meios não-
verbais e verbais de comunicação. Eckerman e colaboradores (1989)
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
244 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
já tinham salientado o papel da imitação não-verbal no desenvolvimento
da ação coordenada no segundo ano de vida e, com base nesse resulta-
do, apresentaram a hipótese de que essa atividade imitativa facilitaria o
domínio do verbal como meio de atingir a coordenação de ações, uma
hipótese confirmada por achados de Eckerman e Didow (1996) sobre
aumento de freqüência de tipos de fala facilitadores de ações coordena-
das após a emergência do que as autoras chamam “padrão imitativo”.
Eckerman (1993) sustenta que, embora os seres humanos se en-
volvam em ações coordenadas com parceiros sociais desde o nascimen-
to, a forma dessas ações e o tipo de contribuição da criança transfor-
mam-se acentuadamente no decorrer dos primeiros três anos de vida,
das interações face a face características dos primeiros meses para a
construção de brincadeiras, o faz-de-conta, e as conversações e argu-
mentações verbais das crianças de três anos. Nesse processo, a partici-
pação da criança evolui das pré-adaptações para a troca social, tais como
responsividade a estímulos sociais, contato visual, atenção sustentada,
para antecipação de ações do outro e geração de modalidades novas de
troca social. A transição do segundo para o terceiro ano de vida seria
particularmente crucial nesse processo. Antes disso, a participação da
criança tipicamente se restringiria a rituais de interação já exercitados,
como o esconde-esconde, dar e oferecer objetos, indicar partes do corpo
– rituais propostos e dirigidos basicamente pelo adulto, e gradualmente
assumidos e iniciados também pela criança. A primeira transição rele-
vante seria para a ação coordenada, cooperativa e não ritualizada, e
nessa transição o papel fundamental seria desempenhado pela imita-
ção, tanto de parceiros “mais competentes” como de pares de idade.
O que Eckerman veio a chamar de padrão imitativo foi identi-
ficado originalmente em um estudo longitudinal com crianças de 16 a
32 meses, relatado em Eckerman e colaboradores (1989). Esse estu-
do produziu dois achados relevantes: o de que a imitação de atos não-
verbais explicava praticamente todas as ações cooperativas nesse
período, e o de que ocorria um aumento acentuadamente escalonado
na freqüência de atos imitativos, em média entre 20 e 24 meses, mas
com ampla variação individual. Essa prontidão emergente para imi-
tar, que foi denominada padrão imitativo, gerava uma diversidade
de formas de ação cooperativa tais como brincadeiras de imitação
recíproca, brincadeiras de seguir o líder, e outros padrões mais complexos.
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 245
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
Esses resultados foram replicados utilizando um parceiro adulto ins-
truído para se comportar de formas que possivelmente maximizariam
a probabilidade de ações cooperativas; novamente, a maioria das ações
cooperativas consistiu de imitação de ações não-verbais (ECKER-
MAN e DIDOW, 1989).
Sintetizando os resultados desses diversos estudos, bem como ou-
tros dados da literatura, Eckerman e Peterman (2001) propõem que, ao
construírem brincadeiras através de imitação não-verbal, as crianças
geram uma compreensão compartilhada sobre o que estão fazendo em
conjunto; essa compreensão as ajudaria a falar a respeito de suas ativi-
dades e a compreender e responder de forma significativa às falas do
parceiro, e dessa forma desdobrar seus esforços em termos de comuni-
cação verbal com os outros.
A seqüência ontogenética proposta pelas autoras acima para essas
aquisições é bem mais tardia (a partir de 15-18 meses) do que a que
vínhamos encontrando na literatura revista anteriormente. As próprias
autoras admitem que essa cronologia pode estar distorcida pelo fato de
trabalharem com parceiros que não têm familiaridade anterior, e suge-
rem que parceiros já familiarizados podem apresentar ações coordena-
das em idades mais precoces – o que é corroborado por diversas de
nossas observações (cf., por exemplo, PEDROSA e ECKERMAN, 2000;
PEDROSA e CARVALHO, 2004). Concluem indicando que:
[...] a ação coordenada construída por pares pro-
picia experiências peculiares que podem facilitar
o desenvolvimento de habilidades sociocogniti-
vas em crianças pequenas. Brincadeiras de imita-
ção recíproca, por exemplo, parecem ser um con-
texto primordial para que crianças pequenas vi-
venciem tanto sua diferença quanto sua similari-
dade em relação ao outro, bem como o sucesso de
suas inferências sobre objetivos/ intenções do
outro. (ECKEMAN e PETERMAN, 2001, p. 345).
Amarrando os fios
Um olhar comparativo sobre os fenômenos de comunicação no
reino animal indica diversos mecanismos e processos que podem ser
considerados como precursores filogenéticos da comunicação humana:
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
246 — Precursores filogenéticos e ontogenéticos da linguagem: reflexões preliminares
a negociação, a transformação da expressão em recursos comunica-
tivos, seja na filogênese ou na ontogênese, e a emergência de comu-
nicação referencial em grupos filogenéticos tão distantes quanto abe-
lhas e primatas. Todos esses processos são identificáveis também na
comunicação humana, que no entanto evoluiu para uma forma única,
sem análogos no reino animal. Da mesma maneira, embora fenôme-
nos culturais ou protoculturais – no sentido de serem transmitidos na
ontogênese através de aprendizagem social – ocorram em diversos
primatas (HUFFMAN, 1996; INOUE-NAKAMURA e MATSUZA-
WA, 1997; RESENDE e OTTONI, 2002), nenhum primata, exceto o
ser humano, é biologicamente cultural no sentido de depender da cul-
tura como modo de vida e adaptação.
A implicação sugerida pela literatura revista é que os precursores
filogenéticos que permitiram a diferenciação da cultura e da linguagem
humana se situam no âmbito da aprendizagem social, e particularmente
em uma modalidade específica de imitação, através da qual se produz a
cópia fiel das ações de um modelo; pré-adaptações possibilitadoras des-
sa forma de imitação são a prioridade motivacional do outro ser humano
como foco de atenção e a atenção conjunta – que podem ser produzidas
em outros primatas em certas condições particulares, quando se mimeti-
za o ambiente cultural humano, mas parecem não ocorrer sistematica-
mente em condições naturais – , e que estão relacionadas à capacidade
precoce do ser humano de perceber o outro como agente intencional.
Essa linha de argumentação sugere direções e perguntas específi-
cas de pesquisa sobre a transição da comunicação exclusivamente não-
verbal
para a comunicação conjuntamente não-verbal e verbal que ca-
racteriza a interação social humana; além disso, sugere que essa transi-
ção apresenta saltos qualitativos (parâmetros de controle, na linguagem
de teoria de sistemas) a partir da segunda metade do primeiro ano de
vida, em torno dos 8-9 meses – coincidindo, possivelmente de forma não
acidental, com as manifestações comportamentais do primeiro vínculo
afetivo, a relação de apego.
Tentar amarrar alguns desses fios é o desafio que estamos nos
colocando em nossos projetos atuais de pesquisa (SESTINI, 2003; CAR-
VALHO, 2003). Esperamos que nossos resultados possam contribuir
para a solidificação e/ou para um detalhamento do argumento de Ecker-
man sobre o papel do “padrão imitativo” na transição para a comunica-
ção verbal, bem como para a articulação teórica entre esse argumento,
Ana M. A. Carvalho e Maria Isabel Pedrosa — 247
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.219-252, outubro de 2003
a posição clássica de Wallon a respeito de imitação e representação, e
os correlatos dessas teorizações na literatura etológica e em nossa pró-
pria argumentação teórica.
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(Recebido em outubro de 2003 e aceito para
publicação em março de 2004)
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Princípios morais e a evolução de um senso moral*
Resumo
Estudiosos muitas vezes con-
fundem descrições ou explicações
a respeito do que é com julgamen-
tos a respeito do que deve ser. As
falácias naturalísticas, relativistas e
moralísticas que se derivam desta
confusão são especialmente comuns
nas avaliações de teorias sobre a
evolução da moralidade. Esta revi-
são da literatura examina aspectos
do nosso senso moral que evoluíram
do altruísmo comum nos grupos de
parentesco e da acomodação às
hierarquias de dominância e reci-
procidade mais típicas em grupos
__________________________________________________
*
 Moral principles and the evolution of a moral sense
1
 Endereço para correspondências: Departamento de Psicologia, CFH, UFSC, Campus Uni-
versitário, 88040-900, Florianópolis, SC (E-mail: dennis@floripa.com.br).
Abstract
Scholars of ten confuse
descriptions or explanations of
what is with judgments about
what ought to be. The natura-
listic, relativistic and moralistic
fallacies, which derive from this
confusion, have been particular-
ly common when evaluating the-
ories about the evolution of mo-
rality. This review examines as-
pects of our moral sense that
evolved from the altruism com-
mon to kin groups and from the
accommodation to dominance
hierarchies and reciprocity typi-
Dennis Werner1
Universidade Federal de Santa Catarina
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
254 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
maiores. Muitos estudos apontam
para a necessidade de cautela a res-
peito do nosso senso moral. Mais es-
pecificamente, a nossa indignação
moral e o nosso senso de justiça re-
fletem principalmente uma preocu-
pação com o nosso lugar nas hie-
rarquias de dominância, e não preo-
cupações morais legítimas. Um sis-
tema moral baseado no princípio de
aumentar o “bem-estar” em vez de
“justiça” permite aproveitar pesqui-
sas empíricas para descobrir as
melhores maneiras de aumentar o
bem-estar. Também evita a depen-
dência no livre-arbítrio tão importan-
te em outros sistemas morais, e as-
sim permite uma visão mais deter-
minista-científica da natureza huma-
na. Estes temas de filosofia moral
são pelo menos tão antigos como a
Reforma Protestante.
Palavras-chave: Evolução da mo-
ralidade, altruísmo, reciprocidade,
justiça, Reforma Protestante.
cal in larger groupings. Many
empirical studies show how we
need to be wary of our innate
sense of morality. In particular,
our moral indignation and sense
of justice mostly reflect con-
cern with our place in the sta-
tus hierarchy rather than legiti-
mate moral concerns. A moral
system based on the principle of
increasing “well-being”, rather
than “justice” permits us to use
empirical research to uncover
the best ways to increase well-
being. It also avoids the depen-
dency on free will important to
other moral systems, and so per-
mits a more deterministic-scien-
tific view of human nature. The-
se themes in moral philosophy
are at least as old as the Pro-
testant Reformation.
Keywords: Evolution of morali-
ty, altruism, reciprocity, justice,
Protestant Reformation.
Introdução
D ificilmente existe um tema mais polêmico na literatura sobre evo-lução do que as origens do nosso senso moral. Em A descendên-
cia do homem, Darwin (1998/1874) explicou que:
“[...]qualquer animal dotado de instintos sociais bem
marcados, incluindo os afetos de pais e filhos, inevitavel-
mente adquiriria um senso ou consciência moral, logo
que as suas capacidades intelectuais tivessem ficado
quase ou igualmente desenvolvidas quanto no homem”.
Dennis Werner — 255
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Já na época reflexões como estas provocaram protestos veemen-
tes. O reverendo Leonard Jenyns afirmou numa carta a Darwin que não
podia acreditar que:
[...] as capacidades de raciocínio do homem, e
sobretudo o seu senso moral poderia ter sido ad-
quirido de progenitores irracionais, ou da sele-
ção natural... Isto me parece eliminar totalmente
a Imagem Divina que constitui a distinção intrans-
ponível entre o homem e os brutos (ênfase minha,
citado em UCHI,1996).
Quase um século e meio depois, a polêmica continua. Uma busca
na internet pela expressão moral evolution resultou em milhares de
páginas, a maioria escrita por pessoas indignadas com
a tentativa dos
evolucionistas em explicar a moralidade. Por exemplo, Raymond Boh-
lin, Ph.D. em Biologia Molecular, e organizador de Creation, evoluti-
on and modern science, argumenta que a idéia da evolução de mora-
lidade pode apenas levar a “desespero, negação, ou esperança irracio-
nal”, uma vez que implica na inexistência de um significado para a vida
fora dos ditames da biologia (BOHLIN, 2003). Na grande maioria das
vezes os autores afirmam que só Deus ou uma força divina poderia dar
conta da moralidade.
O cerne da polêmica gira em torno de um velho tema na filosofia
moral resumido por David Hume na idéia da intransponibilidade entre is
(o que é) e ought (o que deve ser). Como esta distinção é tão importan-
te, vale a pena examinar algumas das suas ramificações.
O que é e o que deve ser
Em outros trabalhos (WERNER, 1999a; 1999b) distingui três
“falácias” que resultam da confusão entre o que é e o que deve ser.
São elas: 1) a falácia naturalística; 2) a falácia relativista; e 3) a
falácia moralística. Na falácia naturalística conclui-se que, se algu-
ma coisa de fato existe na natureza (“é natural”), logo ela tem que
ser considerada boa. Esta falácia tem pelo menos duas versões bási-
cas. Na versão mais simples conclui-se que devemos seguir as “leis
da natureza”, não a artificialidade do que advém do ser humano.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
256 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
Normalmente quem adota esta posição acredita que a natureza é bondo-
sa e faz o bem. Mas algumas pessoas, mesmo reconhecendo que a na-
tureza muitas vezes é cruel, ainda acham que devemos seguir os ditames
da natureza. Foi o caso do Marquês de Sade (como sátira ou não das
idéias de pensadores como Rousseau) e, mais recentemente, de grandes
empresários como Andrew Carnegie e John D. Rockefeller. Como Ro-
ckefeller pregava nas suas aulas de escola dominical: “O crescimento de
grandes empresas é simplesmente a sobrevivência do mais apto... Isto
não é uma tendência má dos negócios. É simplesmente a realização de
uma lei da natureza e de uma lei de Deus” (citado em RACHELS, 1991).
Em meados do século XX intelectuais como Georges Bataille (1949)
elogiariam o lado “bom” das crueldades da natureza. Mas, evidentemen-
te, muitos discordam desta visão. Como comentou Katherine Hepburn
no seu papel de missionária no filme clássico “Uma aventura na África”
(African Queen): “A natureza é o que fomos colocados na terra para
superar” (Nature is what we were put on earth to overcome).
Numa outra versão da falácia naturalística, conclui-se que deve-
mos seguir os ditames da nossa própria natureza humana. Devemos,
por exemplo, buscar dentro de nós os fundamentos do bem e da justi-
ça. Alguns evolucionistas recentes têm adotado uma ou outra versão
deste tipo de argumento. Eles sugerem, como Charles Darwin, que as
exigências de uma vida em grupo têm criado no ser humano um senso
moral, mas vão além desta constatação a respeito do que é para con-
cluir que o nosso senso moral deveria ser o que é, pelo menos nas
suas formas mais evoluídas (WILSON, 1998). Por exemplo, Brom-
berg (2003) sugere que o significado da palavra “bom” evoluiu de sig-
nificados mais específicos (concretos) para significados mais gerais
(abstratos), e que isto, de fato, é e deveria ser a fundamentação da
nossa moral. Desta forma acredita que podemos achar na Biologia
uma base objetiva para a nossa moralidade. Outros teóricos buscam
esta fundamentação na concordância universal entre seres humanos a
respeito de um princípio básico de moral.
Para Wilson (1998)
 “[...] o dever é a tradução, não da natureza humana,
mas do arbítrio público, que pode se tornar cada vez
mais sábio e estável através de uma compreensão das
necessidades e falhas da natureza humana”.
Dennis Werner — 257
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Wilson vê no consenso a fundamentação da nossa moral. Esta
visão de Wilson é parecida com aquela de Durkheim (1915) para quem
também encontramos na vida grupal a única força maior do que o indiví-
duo que poderia ,fundamentar um sistema moral. Mas enquanto Du-
rkheim enfatizava diferenças culturais e sistemas morais variados, Wil-
son, como a maioria dos evolucionistas, busca princípios universais. Para
ter validade, o “consenso” de Wilson não poderia ter exceções, mas teria
que ser realmente universal. Caso contrário, acabamos entrando no lado
negativo da solidariedade grupal – a xenofobia.
Estas últimas reflexões remetem à distinção entre uma moralidade
“objetiva” (ou “transcendental”), baseada em algo externo ao ser huma-
no (como Deus), e uma moralidade “subjetiva” (ou “empírica”), baseada
na consciência humana. Para muitos religiosos, uma moralidade “subje-
tiva” é vazia, sem âncora, e só um Deus poderia fornecer a fundamenta-
ção para uma moralidade objetiva. Na tentativa de tirar da Biologia (e
mais especificamente da vida grupal) uma âncora para a moralidade
objetiva, os evolucionistas ainda precisam esclarecer por que aceitam os
ditames da vida grupal como fundamento para a moral e não outros
aspectos da Biologia. Aceitar a concordância universal como base para
a moralidade não resolve o problema, pois todo mundo pode estar moral-
mente errado, e ainda não está claro quem (quais espécies, por exemplo)
seria incluído nesta concordância! (BOHLIN, 2003).
As críticas dos religiosos são bem vindas, mas a sua resposta – “só
Deus pode fornecer esta objetividade” – não resolve o problema, no
meu entender. Como muitas pessoas, eu aceitaria como princípio básico
da moralidade “fazer o bem” (aumentar o bem-estar) por razões que
não posso justificar. No caso de um Deus que tem como mandamento
principal “fazer o bem” ou “amar a seu vizinho como a si mesmo” não
haveria problema, mas se Deus queria que as pessoas prejudicassem os
outros e premiasse este tipo de comportamento, acho que seria moral-
mente correto não obedecer esta vontade e fazer tudo no nosso poder
para contrariá-la. No meu entender, fazer algo simplesmente porque
ganharíamos um prêmio divino ou evitaríamos uma punição eterna seria
um ato egoísta, não um ato moral. No fundo, obedecer as “leis da natu-
reza” ou as “leis de Deus” acarreta o mesmo problema. Estas leis de-
vem ser seguidas quando visam ao bem, mas não quando visam ao mal.
Considere–se o caso de Jacó no Velho Testamento. Cometeu extorsão,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
258 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
falsidade ideológica, estelionato e quebras unilaterais de acordos de paz
– todos atos que beneficiavam a ele ou a seu grupo, enquanto prejudica-
vam os outros. O seu Deus premiava estes comportamentos egoístas
com um legado de muitos descendentes. Difícil não perceber neste Deus
algo muito parecido com a seleção natural no seu nível mais bruto. A
intransponibilidade do que é para o que deve ser continua mesmo colo-
cando Deus no meio.
Não podendo fundamentar a moral na natureza, outros pensadores
recorrem à “falácia relativista”, na qual se conclui que as regras e os
princípios morais que uma cultura de fato tem, são as regras e osprincí-
pios que a cultura deveria ter. Esta posição é ainda mais difícil de sus-
tentar, pois leva a conflitos insolúveis entre culturas que possuem siste-
mas morais diferentes. Além disso, não consegue lidar com mudanças
culturais, nem com diferenças de idéias dentro de uma mesma cultura.
Para alguns, a dificuldade em achar uma base objetiva para a moralida-
de leva à conclusão de que a moral simplesmente não existe. Esta postu-
ra de niilismo moral acarreta outros problemas, pois ninguém consegue
evitar de pensar no que se deve fazer, pois toda decisão depende disto.
Parece que temos uma tendência irresistível de confundir o que é
com o que deve ser.
Observe–se, por exemplo, a facilidade com que
passamos de uma constatação do que é, para uma constatação moral
ao pensar na causalidade. Dizemos que “A causa B” (uma simples
constatação do que é), e “A é responsável por B”, e “A é culpado por
B” (uma constatação moral). Até o nosso vocabulário mais elementar
confunde o que é com o que deve ser. As palavras “certo” e “errado”,
por exemplo, podem tanto se referir a uma constatação do que é (como
numa prova de assinalar) como podem se referir a atos que considera-
mos morais ou imorais. Esta tendência é tão forte que fazemos a pas-
sagem sem perceber. Não é de se admirar então que passamos, sem
perceber, também de constatações morais (opiniões sobre o que deve
ser) para constatações do que de fato existe. Esta passagem constitui
a falácia moralística. Percebemos muito esta “falácia” no mundo
acadêmico quando pessoas argumentam, por exemplo, que homens e
mulheres deveriam ser iguais, e por isso concluem que de fato são
iguais (e ai de quem diga o contrário), ou, no caso de estudos sobre
moralidade, pensamos que as pessoas deveriam ser altruístas puras, e
ai de quem argumenta que não somos. Precisamos ser lembrados cons-
tantemente que “explicar não é justificar”, e vice-versa.
Dennis Werner — 259
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Em vista da dificuldade em achar uma fundamentação objetiva para
a moral, acho melhor encarar as teorias de evolução da mesma forma
como encaramos outras teorias científicas a respeito da moral (psicoló-
gicas ou sociológicas, por exemplo) – como tentativas de descrever e
explicar os nossos sistemas morais, não como tentativas de justificar ou
fundamentar estes sistemas.
Conceitos básicos na explicação evolucionista da moralidade
Seguindo as idéias originais de Darwin, a grande maioria dos evo-
lucionistas tem buscado explicações para a nossa moral na evolução da
vida em grupo. Dependendo do que querem explicar, pesquisadores têm
enfatizado o impacto de 1) grupos de parentes; 2) grupos de não paren-
tes caracterizados pela reciprocidade; e 3) grupos caracterizados por
hierarquias de dominância. Junto com a vida em grupo, Darwin e pesqui-
sadores mais recentes também ressaltam a importância do desenvolvi-
mento de certas capacidades cognitivas.
Grupos de parentes – altruísmo, empatia e simpatia
Na época de Darwin, um dos maiores enigmas da teoria de sele-
ção natural foi a constatação de que alguns animais estavam dispostos
a sacrificar as suas próprias vidas e a sua própria reprodução para o
bem dos outros. Se tais animais não conseguiam se reproduzir, como é
que as suas características altruístas poderiam continuar em futuras
gerações? A resposta veio com a idéia de “seleção de parentes” ou
“gene egoísta” (HAMILTON, 1963; DAWKINS, 1976). O indivíduo
poderia, sim, ser altruísta, mas os seus genes, presentes também nos
seus parentes, poderiam bem ser “egoístas”. O que interessa na sele-
ção natural é a continuação de genes, não de indivíduos (que sempre
morrem). Isto explicaria porque alguns insetos se sacrificam para o
bem da colméia. Por exemplo, algumas vespas trabalhadoras possuem
mais genes em comum com as suas irmãs do que teriam com os seus
próprios filhos. Uma destas vespas passaria mais genes para o futuro
ajudando a produzir mais irmãs (por exemplo, sacrificando-se para sal-
var a mãe-rainha) do que tentando se salvar para poder ter filhos pró-
prios (WILSON, 1980, p. 193-196).
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
260 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
Embora muitas pessoas pudessem classificar tais atos reflexos como
amorais, Darwin (1998/1874) argumentou que seria difícil fazer uma dis-
tinção clara entre atos reflexos e atos que resultam de uma deliberação
mais consciente. Definindo um ser moral como aquele “[...] capaz de
comparar motivações ou atos passados e futuros e de aprovar ou desa-
provar destes atos [...]”, Darwin (1998/1874) esclareceu que não havia
razão para acreditar que algum animal inferior pudesse ter esta capaci-
dade. No entanto, destacou que muitos atos e motivações humanos não
permitem distinguir entre instintos ou reflexos e atos realizados com de-
liberação. Por exemplo, a capacidade de sentir simpatia em muitas espé-
cies teria se originado nas relações de pais com filhos, e seria este sen-
timento que iniciaria o caminho para um senso moral. É difícil saber nos
seres humanos quanto dos seus atos morais decorrem de uma simpatia
pouco refletida, e quanto de uma deliberação mais consciente.
De qualquer maneira, pesquisas mais sistemáticas têm revelado
um viés claro no ser humano de se comportar de forma mais “altruís-
ta” em situações que implicam maior probabilidade de passar os seus
próprios genes para o futuro. Por exemplo, em muitas situações as
mães sacrificam a satisfação da sua própria fome para poder cuidar
melhor dos seus filhos – o que parece ser o caso em muitos animais e
no ser humano (DALY e WILSON, 1988; WALLACE, 1979). Além
disso, pesquisas comparativas (Taiwan versus Estados Unidos, por
exemplo) mostram que as pessoas dão preferência praticamente igual
a parentes próximos quando precisam escolher quem seria salvo em
dilemas morais, mesmo quando estes dilemas envolvem outras ques-
tões complicadoras, como “diferenças no número de vítimas”, “status
relativo das vítimas”, “aceitação contratual de riscos” ou “possibilida-
de de não agir” (O’NEILL e PETRINOVICH, 1998).
Mas as previsões a respeito de altruísmo podem ser muito mais
sutis. Por exemplo, Euler e Weitzel (1999) perguntaram a netos de
alemães quais dos seus avós eram mais atenciosos. Independente-
mente de distâncias geográficas ou idades, os netos tinham maior
probabilidade de citar as avós maternas. Os avôs paternos foram
considerados os menos atenciosos. Os autores argumentam que isto
se explica pelo problema de incerteza de paternidade, ou seja, a mãe
sempre sabe quem é realmente seu filho, mas o pai fica na dúvida. A avó
materna tem muita certeza de que os seus netos são realmente dela.
Dennis Werner — 261
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
O avô paterno pode ter dúvidas tanto a respeito do próprio filho quanto
do filho deste. Wright (1996) cita inúmeras pesquisas demonstrando
a conformidade dos dados com diferentes variações desta mesma
lógica de investimento paterno. Para citar apenas um exemplo, o grau
de pesar sentido por pais que perdem um filho está estreitamente
relacionado ao esforço que investiram nele. A morte de filhos ado-
lescentes, por exemplo, causa mais pesar que a morte de filhos muito
menores. Adolescentes já receberam mais investimento dos pais, mas
ainda não deram retorno em termos de netos (CRAWFORD et al.,
1989, citado em WRIGHT, 1996).
Esta mesma lógica de parentesco também explica fontes de
conflitos entre diferentes pessoas. Por exemplo, embora em geral
mães e filhos possuam os mesmos interesses (em termos de passar
genes para o futuro), há momentos no ciclo de vida quando os inte-
resses divergem. As divergências podem começar já com a gesta-
ção. Normalmente o enjôo das primeiras semanas de gravidez é
adaptativa, na medida em que evita que as mães comam alimentos
com tóxicos que poderiam prejudicar o feto neste período delicado.
A prova disso é que mães sem enjôo sofrem mais abortos espontâ-
neos e parem mais filhos deficientes do que mães com enjôo (PRO-
FET, 1992). Mas quando a saúde da mãe é seriamente prejudicada
pelo enjôo, surge um conflito de interesse. O feto possui mecanis-
mos de provocar mais enjôo do que seria bom para a mãe. Outros
momentos de conflito ocorrem quando nascem novos filhos, quando
mães precisam escolher entre cuidar mais de uma criança doente
ou de uma criança saudável, ou quando mães novas se casam com
outros homens. Os conflitos entre
mãe e filho diminuem na medida
em que envelhecem as mães. Isto porque as mães mais velhas têm
menos chances de terem outros filhos e, conseqüentemente, saem
melhor (em termos de passar mais prole para o futuro) se cuidam
melhor dos filhos que já possuem em vez de se resguardar para
possíveis filhos futuros. Com efeito, Wallace (1979) cita evidências
de que são as mães mais velhas que se dedicam mais aos seus
filhos; da mesma forma, Daly e Wilson (1988) mostraram para vá-
rias sociedades que a probabilidade de uma mãe cometer infanticí-
dio diminui com a sua idade.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
262 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
O parentesco também é importante em explicar atos prejudici-
ais aos outros. Por exemplo, na sua análise de violência, Daly e Wil-
son (1988) mostraram que em todas as sociedades humanas estuda-
das um contato com um não parente tem maior probabilidade de le-
var a um homicídio do que um contato com um parente. Isto também
se aplica ao caso de madrastas e padrastos em comparação com
mães e pais. Dentro das famílias a grande maioria dos homicídios
ocorre entre marido e mulher (que podem ter alguns interesses gené-
ticos em comum – os filhos – mas não compartilham tantos genes
entre si). Além disso, embora a probabilidade de um pai matar um
filho diminua com a sua idade, não diminui tanto como no caso da
mãe. Isto, segundo os autores, porque os homens mais idosos ainda
possuem chances de se reproduzirem, enquanto as mulheres não.
Normalmente os filhos mais idosos são mais problemáticos para
os pais, e de fato sofrem maiores probabilidades de serem mortos
por um padrasto ou madrasta do que crianças mais novas. No en-
tanto, para os pais biológicos os filhos mais idosos representam um
maior investimento biológico do que crianças pequenas. Afinal, fi-
lhos maiores receberam muito mais atenção e estão à beira de co-
meçar a se reproduzir. Seria de esperar que os pais teriam mais
inibições em matar um filho maior, pois isto implicaria uma perda
biológica maior. Com efeito, pais biológicos (à diferença de padras-
tos) têm maior probabilidade de matar um filho mais jovem do que
um filho mais velho.
Ainda há outras correlações: parece que os pais biológicos se
refreiam mais do que os filhos quando se trata de conflitos grandes.
Os filhos já adultos (>16 anos) têm uma probabilidade maior de ma-
tar os seus pais, do que os pais nestas mesmas faixas etárias mata-
rem os seus filhos. Daly e Wilson (1988) argumentam que, nestes
casos, os pais têm muito mais interesse em ver os filhos vivos (e
reproduzindo) do que os filhos têm em ver os seus pais vivos (já que
os pais têm menos capacidade para reprodução futura). Como nas
mesmas faixas etárias a probabilidade do padrasto ser assassinado
num conflito não é maior do que do enteado, esta diferença nas pro-
babilidades de morrer não poderia ser atribuída a características etá-
rias dos dois (maior força física ou menor controle emocional dos
mais jovens, por exemplo).
Dennis Werner — 263
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
A importância dada por Darwin à simpatia no comportamento
moral também tem sido confirmada em pesquisas. Na sua revisão da
literatura sobre as relações entre emoções e desenvolvimento moral,
Eisenberg (2000) cita as correlações positivas encontradas entre sim-
patia e comportamentos “pró-sociais” (de ajuda). Mas a pesquisadora
alerta para a necessidade de distinguir entre “empatia” (que implica a
capacidade de reconhecer sentimentos alheios, mas não a capacidade
de distinguir a própria situação da situação do outro) e “simpatia” (que
exige a capacidade de fazer a distinção entre o “eu” e o “outro”).
Muitas vezes a empatia leva a criança a prejudicar o outro na sua
tentativa de aliviar a sua própria dor.
Reciprocidade – cooperação, justiça
Embora Darwin (1998/1874) atribuísse as origens dos compor-
tamentos e sentimentos morais às relações entre parentes, ele reco-
nheceu que diferentes animais (como cães e macacos) às vezes de-
monstram estes comportamentos e sentimentos para não parentes, e
até para membros de outras espécies. Ele atribuiu isto às vantagens
da reciprocidade. Nas últimas décadas pesquisadores têm dedicado
muita atenção a esta questão (AXELROD, 1984; RIDLEY, 1996;
ALEXANDER, 1987). Muitos destes pesquisadores têm formação
em Economia e usam os modelos desta área (como teoria de jogos)
para esclarecer como a reciprocidade poderia ser adaptativa. Muita
atenção tem sido dedicada ao “dilema do prisioneiro”.
Neste jogo os participantes precisam decidir se vão cooperar
ou não. Recursos são distribuídos de tal forma que a cooperação
mútua resulta nos maiores ganhos totais (digamos cinco pontos para
cada jogador –, dez no total). Se um indivíduo passa a perna no
outro, ele, pessoalmente, pode ganhar mais (digamos seis pontos),
mas o total de recursos diminui (digamos para oito – o outro jogador
recebendo apenas dois pontos). Se os dois tentam trapacear, o gan-
ho é menor (digamos três pontos para cada). Através de simula-
ções de computador pesquisadores têm tentado inventar regras
de comportamento que diriam quando um jogador deve cooperar
ou não para maximizar o seu ganho individual. Campeonatos têm
sido organizados para ver quem descobre as melhores regras.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
264 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
Dependendo dos pressupostos originais (capacidade para lembrar
como agiram os outros, por exemplo) as regras otimizantes podem mu-
dar. Por exemplo, quando os grupos são muito grandes, quem não coo-
pera ganha mais pontos; em grupos menores os cooperadores saem
melhor. Se existe a possibilidade de “cair fora” e ficar sozinho, eventual-
mente se juntando com outros solitários em grupos menores, o sistema
pode vacilar, ora favorecendo cooperadores, ora não cooperadores (HAU-
ERT et al., 2002). Também a possibilidade de punir os não cooperadores
aumenta a cooperação. A presença de castigadores altruístas (que ao
punir não ganham nada) é mais viável que a presença de cooperadores
altruístas em grupos maiores (BOYD et al., 2003).
Estas simulações ajudam a esclarecer o que as teorias prevêem
em termos de reciprocidade entre animais, mas não fornecem dados a
respeito do que realmente ocorre. Outros pesquisadores, principalmente
da área de Psicologia (ou “Economia Experimental”), têm feito experi-
ências para descobrir como animais e humanos realmente agem. Os
seus estudos mostram um certo descompasso entre o que os humanos (e
animais) realmente fazem e o que as teorias prevêem. Por exemplo,
uma série de pesquisas sobre decisões de cooperação foram realizadas
em 15 sociedades de pequeno porte, incluindo sociedades de forrageiros
como os hadza da África Oriental, agricultores extensivos como os índi-
os aché e machiguenga da América do Sul, e outras sociedades não
ocidentais, como os mongóis da Ásia e agricultores de Zimbábue.
Nestes estudos os indivíduos participam de um jogo no qual uma
quantia X de dinheiro era mostrada para dois jogadores (cujas identida-
des foram escondidas para garantir anonimato). O primeiro jogador ti-
nha a opção de ficar com todo o dinheiro ou de dar uma parte para o
segundo jogador. Se o segundo jogador aceitava a proposta, o dinheiro
seria dividido de acordo com a proposta, e o jogo terminaria ali. Caso o
segundo jogador recusasse a proposta, ninguém receberia o dinheiro, e o
jogo terminaria. Segundo a teoria do homo economicus, o primeiro joga-
dor não deveria oferecer muito, mas o segundo jogador deveria aceitar
qualquer coisa, pois assim cada um estaria cuidando dos seus próprios
interesses econômicos da melhor maneira possível. Mas em todas as
sociedades pesquisadas o segundo jogador recusava propostas conside-
radas “injustas”, preferindo ficar sem nada para poder punir a injustiça
do primeiro jogador (SIGMUND et al., 2002; GINTIS et al., 2003).
Dennis Werner — 265
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Os autores argumentam que estes dados mostram que o ser humano
possui um senso de “reciprocidade forte”, uma espécie de altruísmo que
vai além do previsto pelas simulações de computador. Os autores suge-
rem que este comportamento punitivo “altruísta” é compatível com a
evolução, desde que reconheçamos que as nossas motivações psicológi-
cas precisam se adequar às pressões da seleção natural, mas não pre-
cisam ser perfeitamente adaptadas.
Nas condições de vida no grande período em que ocorreu a evolução
humana as pessoas reencontrariam os seus parceiros de jogo, e o anoni-
mato de transações econômicas teria sido raríssimo. Nestas situações uma
motivação para cooperar e para sentir injustiça teria sido quase sempre
vantajosa, independentemente da situação, o que é suficiente para a sele-
ção natural. Uma confirmação da “irracionalidade” dos sentimentos hu-
manos a respeito da cooperação vem de pesquisas com jogos semelhantes
feitos com estudantes (CHAUDHURI et al., 2002). Nesta pesquisa ficou
evidente que os cooperadores simplesmente tinham uma personalidade ou
disposição maior ou menor para cooperar. O fato dos outros participantes
do jogo cooperarem ou não não afetava em nada o seu comportamento.
Sentimentos de indignação com comportamentos considerados in-
justos também têm sido observados em animais. Numa experiência reali-
zada com macacos-prego, os animais aprenderam a trocar fichas por pe-
daços de pepino. As trocas funcionavam bem até que um macaco obser-
vava os pesquisadores darem uma uva para outro macaco. Depois de ver
isto, o primeiro macaco recusava fazer a troca da ficha apenas por um
pedaço de pepino. Se o primeiro macaco observava o pesquisador dar
uma uva para o segundo sem a necessidade de troca, o primeiro macaco
jogava a sua ficha no pesquisador, numa aparente amostra de indignação
moral (pesquisa relatada em The Economist, 2003). Outros pesquisado-
res têm observado chimpanzés intervirem em conflitos de forma desinte-
ressada e mostrarem mais preocupação com vítimas de agressão do que
com os que iniciaram o conflito (FLACK e DE WAAL, 2000). Embora
estas reações possam parecer “boas” no sentido de tentarem resguardar a
“justiça”, a indignação nem sempre tem este resultado. Quando um babu-
íno ou um macaco rhesus recebe uma reação agressiva de um animal
mais alto na hierarquia de dominância, a reação não é contra o agressor,
mas sim contra algum inocente que por acaso esteja perto (CHENEY et
al., 1986). Talvez estas reações possam ser explicadas em termos da ma-
nutenção da sua posição nas hierarquias de dominância dentro do grupo.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
266 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
O macaco que recebe a bronca do dominante se encontra numa situação
precária, pois o seu status de subordinado fica demonstrado. Nesta situação
ele precisa afirmar ainda sua posição superior a outros indivíduos, o que faz
atacando alguém de um status mais baixo ainda.
Estes sentimentos de injustiça ressaltam o valor dado ao respeito
que os animais recebem de outros membros do grupo e a importância
das hierarquias de dominância.
Hierarquias de dominância – indignação moral, respeito à autori-
dade e bem-estar
A importância que Darwin deu à memória na evolução de um
senso moral está muito ligada à distinção que fez entre instintos passa-
geiros, como a fome (que desaparece logo que for satisfeita), e instin-
tos duradouros (que continuam sempre). Um instinto passageiro pode
dominar um instinto duradouro – por exemplo, o instinto de um pássaro
para migrar com os primeiros sinais de outono pode dominar tempora-
riamente o instinto de cuidar da prole. Mas, se um animal possui uma
boa memória, logo que o instinto passageiro for satisfeito, podem ocor-
rer o remorso e o arrependimento, quando voltar a dominar o instinto
mais duradouro. Em animais que vivem em grupo, um dos instintos
mais duradouros seria o desejo de adquirir a estima e o respeito dos
outros (DARWIN, 1998/1874).
Este desejo de estima nos remete a um aspecto muito importante
da vida em grupo – as hierarquias de dominância. Em todos os animais
que vivem em grupo e que reconhecem indivíduos e não apenas catego-
rias (como “abelha operária”) existem hierarquias de dominância (WIL-
SON, 1980). A convivência social exige ajustes de comportamento para
lidar com estas hierarquias. Por exemplo, Thomas (1993) notou que ca-
chorros passam muito do seu tempo avaliando o status relativo uns dos
outros. Dúvidas quanto a status levam a brigas, mas uma vez estabeleci-
da a hierarquia, os animais conseguem viver numa paz relativa (como
“colegas de departamento” para usar a analogia da autora). Mas parece
que existem algumas regras tácitas. Por exemplo, cachorros dominantes
têm mais direitos a ter filhotes, enquanto cadelas mais baixas na hierar-
quia ficam nervosas na gravidez e dedicam menos atenção aos filhotes,
aparentemente devido ao medo dos dominantes.
Dennis Werner — 267
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Baseando-se em pesquisas com vários primatas, De Waal (1991)
descreve como os animais conseguem manter a paz via rituais de conci-
liação que seguem as brigas para status, os quais confirmam a aceitação
das desigualdades. Muitas vezes estes rituais envolvem atividades sexu-
ais (por exemplo, um animal monta o outro). Olhando as pesquisas rea-
lizadas com várias espécies de primatas, Werner (1998) argumentou que
a cooperação passou por várias etapas na evolução. Uma cooperação
simples consiste na marcação de territórios, que estabelece algumas re-
gras de conduta (ficar fora do território do outro implica paz). Onde a
cooperação é maior e diferentes animais compartem o mesmo território,
ocorre uma pequena modificação na ritualização – os cheiros usados
para marcar territórios são usados para marcar papéis de dominação e
submissão (o submisso é marcado pelo cheiro do dominante e/ou obriga-
do a “prestar homenagem” ao dominante ao sentir os seus cheiros).
Onde a cooperação se torna ainda mais complexa e animais formam
alianças para poder dominar em conjunto, os marcadores de território/
status são cooptados para marcar alianças – isto é, os aliados trocam
papéis (e cheiros) para simbolizar a disponibilidade tanto para dominar
como para ceder às vezes ao parceiro.
Parece que a seleção natural segue uma regra simples: “em time
que está ganhando não se mexe”. Na complexificação que ocorre na
evolução de organismos unicelulares para organismos maiores o que mais
muda é a reorganização de peças pre-existentes. As peças menores
mudam pouco. Por isso os seres vivos são mais semelhantes ao nível do
seu DNA ou RNA (aliás, todos se baseiam no DNA ou RNA) do que ao
nível das suas células. Células são mais parecidas entre diferentes orga-
nismos que tecidos, os tecidos mais semelhantes que estruturas maiores.
(Um exemplo seriam as moléculas como hormônios e neurotransmisso-
res que servem de mensageiros no nosso corpo. Estas moléculas são
muito parecidas às moléculas que servem como mensageiros externos
em organismos muito simples como os slime molds (BONNER, 1988)).
No caso do comportamento e da cognição, ocorre o mesmo. Por exem-
plo, os símbolos humanos mais abstratos se baseiam em conceitos mais
elementares parecidos com os conceitos de outros animais. As etimolo-
gias de palavras ilustram muito este processo. O caso dos marcadores
de status humanos é ilustrativo. Considere apenas as expressões mais
elementares (e chulas) usadas para descrever alguém que é submisso
demais ao seu patrão.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis:
EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
268 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
A observação de Thomas (1993) de que a paz entre cães com
hierarquias estáveis se assemelha à convivência de colegas de depar-
tamento pode ser mais do que uma simples analogia. Com efeito, de
Waal (1991) sugere que a aceitação de hierarquias é necessária para a
manutenção da paz e da união. Mudanças hierárquicas criam confli-
tos. De Waal chegou a sugerir que a Igreja Católica conseguiu se man-
ter unida mais tempo que as igrejas protestantes justamente por causa
da maior estabilidade hierárquica desta igreja. O impacto da instabili-
dade de hierarquias pessoais se nota numa série de experiências reali-
zadas por Mendes (1997). Numa destas experiências estudantes mas-
culinos receberam de forma aleatória uma de duas versões de uma
pequena estória em quadrinhos. A estória básica apresentava uma cena
da apresentação de um colega de cela numa penitenciária que os alu-
nos precisavam completar. Um total de 68,5% dos alunos que recebe-
ram estórias com hierarquias pessoais instáveis (com muitas mudan-
ças de companheiro de cela) completaram a estória com uma cena de
estupro (em vez de amizade), enquanto apenas 26,7% dos alunos que
receberam estórias com hierarquias pessoais estáveis (poucas mudan-
ças) deram esta resposta. Mendes explicou que, onde as hierarquias
são estáveis, não há necessidade de esclarecer as hierarquias toda
hora. Mas quando a posição das pessoas na hierarquia é menos clara,
surge a necessidade de esclarecer esta questão via relações homosse-
xuais, nas quais um dos parceiros (o “ativo”) afirma o seu status domi-
nante sobre o outro (o “passivo”).
Em outra pesquisa Silva (1998) entrevistou presos a respeito da
sua atitude quanto ao estupro de outros presos como forma de puni-
ção. Silva descobriu que, independentemente do problema de acesso
às mulheres, foram justamente aqueles presos que mais se preocu-
pavam com a sua posição nas hierarquias pessoais que se mostra-
vam mais favoráveis à prática de estupro contra outros presos. É
interessante observar que os presos normalmente justificavam este
ato como uma maneira de proteger a honra da família e da mulher,
uma vez que a maioria dos estupros foi praticada contra presos con-
denados por estupro. Mas não foram os presos mais preocupados
com a situação da família ou da mulher que mais advogavam o estu-
pro como punição. A sua indignação moral estava mais ligada a pro-
blemas de honra e estima pessoal.
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Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
A ligação entre indignação moral e status se revela ainda em pes-
quisas a respeito do sentimento de ter sido injustiçado. Numa revisão da
literatura sobre o assunto, Miller (2001) citou várias pesquisas mostran-
do que este sentimento está muito ligado ao sentimento de ter sido des-
respeitado. Por exemplo, em processos judiciais sobre a guarda de filhos
os homens quase sempre perdem, mas é a sensação de não ter sido
adequadamente escutado pelo juiz que melhor explica a sensação de
indignação. Da mesma forma, a propensão para entrar com um proces-
so contra um médico está mais relacionada à percepção de ter sido tra-
tado com desrespeito do que com o mérito do caso em si. Miller argu-
menta que a sensação de injustiça tem mais a ver com o processo de
julgamento do que com os resultados (justiça processual versus justiça
distributiva). Mas, mesmo se aceitamos esta explicação, o problema de
status continua. Citando Rawls (1971), Miller argumenta que a justiça
processual é considerada mais importante que a justiça distributiva, jus-
tamente porque é no processo de julgamento que os indivíduos recebem
uma das coisas que mais merecem – “o direito de ser tratado de uma
forma que promove a auto-estima”.
 De qualquer forma, outras pesquisas citadas por Miller (2001) mos-
tram a relação estreita entre raiva e sentimentos de injustiça, e muitas
vezes é a raiva que evoca sentimentos de injustiça e não o contrário. Em
outra revisão, Eisenberg (2000) nota que crianças com personalidades mais
agressivas tendem a externalizar as suas emoções em geral e a culpar os
outros em casos de conflitos. Em contraste, crianças mais medrosas ten-
dem a internalizar as suas emoções e têm maior probabilidade de se senti-
rem culpadas. Como observa Miller (2001), uma das coisas que mais pro-
voca raiva é o insulto, e tanto pesquisas com seres humanos como com
animais (Miller cita de Waal aqui) mostram que a retaliação serve princi-
palmente para preservar a imagem e a honra. Mesmo quando a retaliação
serve para dar uma lição no outro, esta lição, muitas vezes, consiste em
mostrar o status relativo ou o valor moral do outro.
Numa revisão da literatura sobre controle de recursos, agressivi-
dade e moralidade, Hawley (2003) argumentou que os evolucionistas
têm razão em ressaltar a ligação entre “hipocrisia moral” e “dominância
social”, uma vez que o que importa na evolução é aparentar ser moral e
não necessariamente ser moral. Pesquisas compararam as relações en-
tre o controle de recursos via atividades “pró-sociais” (ajuda, persuasão)
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
270 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
com o controle via agressão (tanto física, mais comum nos rapazes, como
verbal – fofoca e exclusão social – mais comum nas meninas). Estes
estudos mostraram que são aqueles que juntam controle via agressão
com controle “pró-social” que mais sobem na hierarquia social – muito
mais que aqueles que usam apenas técnicas agressivas ou apenas técni-
cas pró-sociais ou que nem tentam controlar os outros. Estes indivíduos
dominantes também trapaceiam e, segundo relatos dos pares (mas não
dos professores), são entre os mais agressivos dos adolescentes. Para
os autores, a dominância exige uma capacidade intelectual maquiavéli-
ca, além de uma disposição para agir de forma agressiva. Isto nos leva à
importância das capacidades cognitivas na evolução do nosso senso moral.
Capacidades intelectuais – confusão entre o que é e o que deve ser
Numa comparação entre diferentes espécies de primatas, Byrne
(1995) achou uma correlação forte entre o índice do neocórtex (peso
do neocórtex dividido pelo volume total do cérebro) e o tamanho do
grupo social. Como este índice é também muito correlacionado com a
capacidade que diferentes espécies têm para engodos, Byrne sugeriu
que a inteligência humana resultou de uma “corrida armamentista”
durante a nossa evolução entre a capacidade para enganar e a capaci-
dade para detectar engodos. Seria esta “inteligência maquiavélica”
(BYRNE e WHITEN, 1988) que estaria por trás da maioria das nos-
sas habilidades intelectuais.
Vários pesquisadores mostraram que a nossa capacidade para ra-
ciocínio lógico é muito relacionada à questão de detectar engodos (ver
COSMIDES, 1989; GIGERENZER e HUG, 1992; POLITZER e
NGUYEN-XUAN, 1992). Segundo uma análise que fiz sobre o tema
(Werner, 1997), nós resolvemos muito melhor problemas lógicos quando
estes são apresentados numa forma que levanta suspeitas de trapaça.
Parece que buscamos saber não apenas se uma proposição é “verda-
deira” ou “falsa”, mas também se a pessoa que está apresentando a
proposição é “verdadeira” ou “falsa”. Parece que o nosso senso de “ver-
dadeiro” e “falso” (“certo” ou “errado”) teria evoluído deste fenômeno
social. Não é de se admirar, então, que temos uma tendência tão forte
para confundir o que “é” com o que “deve ser”, o que “explica” com o
que “justifica” e o que “causa” com o que “é culpado por”.
Dennis Werner — 271
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Se o nosso senso de “certo” e “errado” moral está tão estreita-
mente relacionado com a nossa capacidade para detectar contradi-
ções no comportamento dos outros
(para poder detectar engodos), se-
ria de esperar que diferentes indivíduos teriam capacidades diferentes
para distinguir “certo” e “errado”. Com efeito, a Psicologia tem uma
longa tradição de examinar diferenças no desenvolvimento do raciocí-
nio moral. Embora não se baseiem nos princípios de evolução esboça-
dos aqui, as teorias de Piaget e Kohlberg sobre raciocínio moral têm
sido confirmadas em dezenas de pesquisas em diferentes culturas do
mundo (BOYES e WALKER, 1988). Ligações entre raciocínio moral,
inteligência geral e moralidade têm sido confirmadas em algumas pes-
quisas. Por exemplo, Eisenberg (2000) revisou várias pesquisas que
mostram que crianças e adolescentes com maiores dificuldades de
concentração são mais anti-sociais e têm mais problemas no raciocínio
moral. Wilson e Herrnstein (1985) também citam o papel da baixa inte-
ligência (quando combinada com outros fatores) na geração de crimi-
nalidade. O que está em pauta é a capacidade de raciocínio moral, e
não necessariamente a capacidade para sentimentos morais. Ninguém
argumenta que a alta inteligência sozinha previne a imoralidade (aliás a
capacidade de engodo aumentaria com a inteligência) nem que a baixa
inteligência sozinha levaria à imoralidade. Mas as diferenças de capa-
cidade para raciocínio moral deveriam nos alertar para um problema
básico na nossa legislação – o de que um indivíduo pode ser considera-
do culpado pelos seus atos desde que consegue reconhecer a diferen-
ça entre “certo” e “errado”. Quando se trata de diferentes graus de
raciocínio, este princípio deixa de funcionar.
Muitos debates têm surgido a respeito dos esquemas de Piaget e
Kohlberg, mas na maioria das vezes trata-se de questionamentos a
respeito dos critérios usados para avaliar a moral, e não as descober-
tas sobre raciocínio moral em si. Por exemplo, Gilligan e Attanucci
(1988) distinguem entre “orientações para justiça”, que seriam medi-
das pelas etapas de Kohlberg, que são mais típicas nos homens, e “ori-
entações para cuidado”, que seriam medidas por argumentos a respei-
to das necessidades dos outros e que seriam mais típicas nas mulheres.
Não se pode dizer que uma orientação é melhor que a outra. Do ponto
de vista das teorias de evolução apresentadas neste trabalho, estas
diferenças teriam mais a ver com o tipo de grupo que está em pauta.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
272 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
Orientações morais para diferentes tipos de grupo
Olhando o comportamento de chimpanzés e seres humanos de Waal
(1991) sugeriu que existem algumas diferenças básicas nos agrupamen-
tos de machos e fêmeas. Os machos tipicamente se associam em gru-
pos maiores, nos quais as hierarquias são mais marcadas e mais volú-
veis. As coalizões dos machos “[...] são instrumentos para conseguir e
manter um status alto. Há pouco espaço para simpatia ou antipatia em
estratégias tão oportunistas” (DE WAAL, 1991, p. 51). Os machos
estão sempre brigando e se reconciliando. De Waal cita uma frase de
Tancredo Neves como ilustração no caso dos seres humanos. Neves
comentou uma vez que “[...] nunca fiz um amigo de quem não poderia
me separar, e nunca fiz um inimigo que não poderia abordar.” Em con-
traste, as fêmeas se restringem a grupos menores, nos quais as hierar-
quias são mais informais. Nas suas pesquisas com chimpanzés de Waal
observou que as alianças entre fêmeas eram mais duradouras, e as
inimizades, mais irreconciliáveis. Estas diferenças poderiam explicar
as diferentes orientações morais de mulheres e homens observadas
por Gilligan e seus sócios. A simpatia e a preocupação com as neces-
sidades alheias seriam mais adaptadas à convivência em grupos meno-
res (e especialmente de parentes próximos). Embora Gilligan tenha
chamado de “orientação para justiça” o que é medida pelo esquema de
Kohlberg, seria mais correto chamar isto de raciocínio moral, pois “jus-
tiça” não é necessariamente o princípio por trás deste esquema. A
idéia básica de Kohlberg é que a criança, ao amadurecer, consegue
distinguir cada vez melhor o seu mundo do mundo dos outros e racioci-
nar de acordo com as necessidades de um mundo cada vez maior. Do
ponto de vista das teorias de evolução apresentadas aqui, o raciocínio
moral (derivado da capacidade para detectar engodos) seria mais adap-
tado à convivência em grupos maiores caracterizados pela reciproci-
dade e pelas hierarquias de dominância. Num estudo relacionando ori-
entações morais com características de personalidade em homens e
mulheres, Ashton e colaboradores (1998) acharam apoio para este ar-
gumento e ainda esclareceram que traços de personalidade como “es-
tabilidade emocional” e “capacidade para perdoar” estão mais relacio-
nados ao “altruísmo recíproco”, enquanto “empatia e apego” estão mais
relacionados ao “altruísmo de parentesco”.
Dennis Werner — 273
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
Implicações para o que devemos fazer
Comecei este ensaio argumentando que a teoria de evolução
sozinha não pode nos dizer o que devemos fazer. A sua utilidade
consiste essencialmente na sua capacidade de gerar novas idéias para
serem testadas com o método científico. Mas isto não quer dizer que
não podemos aproveitar estas idéias para ajudarmos a tomar deci-
sões sobre o que devemos fazer. Se aceitamos (por outras razões)
que o princípio básico da moral é “aumentar o bem-estar” ou “amar o
vizinho assim como a si mesmo”, podemos usar pesquisas inspiradas
na teoria de evolução (como outras idéias testadas pela ciência) para
esclarecer o que traz bem-estar. As idéias provenientes de uma psi-
cologia evolucionista são especialmente úteis em esclarecer o que é
a natureza humana. Sabendo melhor como lidar com a natureza hu-
mana estaremos em melhores condições para elaborar sistemas mo-
rais e legais adequados ao ser humano, em vez de sistemas mais
adequados para anjos ou para brutos. Ao descartar regras tradicio-
nais inadequadas, substituindo-as com regras melhores, podemos pro-
gredir na nossa tentativa de melhorar o bem-estar geral.
Por exemplo, considere-se o nosso senso de justiça. Chamamos
o sistema judicial de um país de “sistema de justiça”, o que demonstra
o quão enraizada está a idéia de justiça como fundamento para o nosso
sistema legal e moral. Mas uma das questões apontadas pelas pesqui-
sas citadas aqui é justamente a necessidade de ter cautela com este
senso de injustiça. Muitas vezes por trás de nossa indignação está um
desejo egoísta de autopromoção, e não um desejo de melhorar o bem-
estar geral. Precisamos reconhecer, como disse Martinho Lutero, que
“[...] o santo é aquele que sabe que tudo que faz é feito por razões
egoístas” (citado em WRIGHT, 1996), e precisamos questionar se “jus-
tiça” merece um papel tão importante na fundamentação dos nossos
sistemas morais e legais como querem alguns filósofos (RAWLS, 1971).
O questionamento da noção de justiça como embasamento para a
moral e a lei não é nada novo na história. Pelo contrário, foi um dos
temas principais da Reforma Protestante. (Cito a Reforma, não porque
este tema só apareceu naquela época, mas simplesmente porque pes-
soalmente conheço melhor este período devido à minha própria cate-
quese luterana.) Nos ensaios que considerou os seus mais importantes –
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
274 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
Sobre boas obras e O cativeiro do arbítrio – Lutero esclareceu as
suas opiniões a respeito da idéia de justiça. Como milhões de crianças
luteranas aprendem nas suas aulas de catequese, para Lutero, “Deus
nos ama, não por causa de, senão apesar de”. Não somos salvos por-
que merecemos. Somos salvos simplesmente pela graça de Deus. Ba-
seando-se na Epístola de São Paulo aos Romanos (que tanto Lutero
como Calvino consideravam a base da Reforma), Lutero, como São
Paulo, argumentou que a justiça divina não tem nada a ver com qual-
quer coisa que nos humanos poderíamos entender por justiça. Deus
escolhe alguns para salvar, outros não. É uma ilusão achar que nós
temos um livre-arbítrio, quando as nossas vidas são pre-destinadas por
Deus. E é ilusão, então, achar que estamos sendo recompensados pelo
que merecemos por justiça.
Como argumentei em outro lugar (ver www.dennis.floripa.com.br),
tentar fundamentar um sistema moral e legal na idéia de justiça acarreta
alguns problemas conceituais muito problemáticos. Primeiro, diferentes
aspectos da noção de justiça são contraditórios entre si. A noção de
justiça implica igualdade. Mas que tipo de igualdade – igualdade de
bens, igualdade de oportunidades, igualdade perante a lei? Uma vez
que os seres humanos são diferentes em suas capacidades e persona-
lidades, igualdade de um tipo necessariamente implica desigualdade de
outro tipo. Segundo, a noção de justiça implica idéia de que devemos
colher o que semeamos. Mas como conciliar esta idéia com as diferen-
tes idéias de igualdade? Finalmente, uma preocupação com a idéia de
justiça nos leva a remoer mágoas do passado num ciclo sem fim, em
vez de procurar melhorar o futuro.
Em vez de tentar fundamentar a moral na noção de justiça, Lutero,
como Santo Agostinho e São Paulo antes dele, recorreu à resposta de
Jesus, quando indagado sobre qual a lei primordial da qual todas as ou-
tras leis seriam uma conseqüência: “Ame a Deus com todo o seu cora-
ção, toda a sua mente, e toda a sua alma” e o seu corolário “Ame a seu
vizinho assim como a si mesmo”. Na minha catequese luterana, aprendi
que Lutero resumia isto como “Ame a Deus e faça o que quiser”. É a
substituição da idéia de “justiça” pela idéia de “aumentar o bem-estar”.
Muitos filósofos posteriores (como David Hume e John Stuart Mill) de-
senvolveriam estas idéias. Darwin simplesmente deixou claro que o bem-
estar não é equivalente à felicidade como queriam alguns filósofos.
Dennis Werner — 275
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
E outros esclareceram que otimizar o bem-estar não é equivalente a
otimizar o bem-estar material. (Uma grande área de pesquisa hoje em
dia lida com fatores que predizem bem-estar subjetivo e físico.) Isto
não quer dizer que é errado buscar justiça. Simplesmente esclarece
que se a procura de justiça traz mal-estar em vez de bem-estar, é a
busca do bem-estar que deve nos nortear.
Ligada à questão de justiça é a questão do livre-arbítrio, pois sem
livre-arbítrio não há como atribuir responsabilidade, e sem atribuição
de responsabilidade não há como julgar “merecimento” com justiça.
No entanto, um livre-arbítrio não é tão importante num sistema moral
ou legal fundamentado na idéia de aumentar o bem-estar. Lutero e
Calvino ligavam a falta de livre-arbítrio à idéia de predestinação – Deus
fez as escolhas. Muitas pessoas hoje continuam ligando a falta de li-
vre-arbítrio ao equivalente moderno de predestinação – o “determinis-
mo” – e temem a perda de um sistema moral se “caímos” no determi-
nismo. Por exemplo, Edelman (1992) busca na aleatoriedade quântica
dentro dos neurônios uma saída do determinismo e uma salvação para
o livre-arbítrio. Mas o livre-arbítrio não será salvo pelo acaso. Se não
podemos controlar relações de causa e efeito, muito menos poderemos
controlar processos estocásticos.
O grande problema do livre-arbítrio não é o determinismo – é a
dificuldade de achar um “eu”. René Descartes dizia que o “eu” está na
glândula pineal. Hoje, poucos aceitariam a idéia de achar uma parte do
cérebro onde reside o “eu” responsável pelas nossas decisões. Com
efeito, LeDoux (1996) cita pesquisas mostrando conflitos entre diferen-
tes partes do cérebro na hora de tomar uma decisão. Mais claro é o caso
de pacientes epilépticos que sofreram cirurgias que dividem o cérebro e
que às vezes descobrem que as diferentes metades do corpo discordam
sobre qual a ação que deveriam tomar (ORNSTEIN, 1977). O que pen-
sar, então, de gêmeos siameses? Qual parte do cérebro teria que ser
compartilhada para decidir que se trata de uma e não duas pessoas?
Qual parte ou função do cérebro precisa estar morta para decidir que
alguém morreu? Eis algumas questões que ilustram o problema.
Felizmente, como demonstraram Lutero e Calvino, não preci-
samos resgatar o livre-arbítrio para ter um sistema moral. O passa-
do e as intenções das pessoas são importantes apenas na medida
em que predizem comportamentos futuros. Às vezes, também,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.253-281, outubro de 2003
276 — Princípios morais e a evolução de um senso moral
podemos influenciar alguém para o bem recorrendo à ilusão do livre-
arbítrio e a um senso de responsabilidade que muitas pessoas têm. Mas
não devemos nos preocupar demais em decidir se atos passados foram
“certos” ou “errados”. O importante é pensar como melhorar o futuro.
Por exemplo, o castigo só é válido na medida em que corrige o compor-
tamento do culpado ou serve de exemplo para que outros não errem. Em
si só, a idéia de “justa retribuição” não é importante. Pode ser necessário
tirar pessoas perigosas da rua, mas não adianta castigá-los, se isto não
melhora comportamentos futuros (e no caso de muitos crimes, a punição
dada atualmente não ajuda grande coisa) (PAEZ DE GIGENA, 1989).
Seria melhor tentar criar melhor bem-estar para estas pessoas ao mes-
mo tempo em que aumentamos o controle sobre elas (cf. WOOTTON,
1959). Falta de liberdade não é equivalente a mal-estar, da mesma ma-
neira que liberdade nem sempre implica bem-estar (por exemplo, liber-
dade para se suicidar). Á medida que o mundo fica cada vez mais com-
plexo, precisamos reconhecer que conceitos como liberdade, bem-estar
e “justiça” nem sempre implicam um no outro. O mais importante é
esclarecer para diferentes indivíduos e diferentes situações exatamente
quais regras ou leis trazem bem-estar, e tomar cuidado com as palavras
demagógicas da nossa época. Pesquisas inspiradas na teoria de evolu-
ção podem nos ajudar muito a desvendar estas questões.
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Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia*
Resumo
A história da dicotomia inato
versus adquirido nas ciências do
comportamento é longa e controver-
sa, o que se deve particularmente
às intensas reações contrárias ao
lado inato da oposição. A herança
de padrões comportamentais tem
sido severamente subestimada tan-
to pelos behavioristas como por ou-
tras correntes como a piagetiana. A
dicotomia persiste, apesar das ten-
tativas para negá-la, simplesmente
porque parece ser real e necessá-
ria. Não é adequado classificar “uni-
Abstract
The dichotomy innate-ac-
quired has a long and controver-
sial history in the Behavioral
Sciences, particularly because
of strong reactions
against the
innate side of the debate. The
inheritance of behavior has been
severely underest imated by
behaviorists and also by other
traditions like that initiated by
Piaget. In spite of attempts to
deny it, the dichotomy persists
simply because it seems to be
true and necessary. It is not sen-
__________________________________________________
* Innate vs. acquired: the persistence of the dichotomy
1
 Endereço para correspondências: Departamento de Psicologia Experimental, Instituto
de Psicologia, USP, Av. Prof. Mello Moraes, 1721, 05508-900, São Paulo, SP (E-
mails: vsbussab@usp.br, fjlribei@usp.br e emmaotta@ usp.br). Trabalho desenvolvido
com apoio do CNPq.
Emma Otta
Fernando Leite Ribeiro
Vera Sílvia Raad Bussab1
Universidade de São Paulo
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
284 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
dades” inteiras de comportamento
como inatas ou adquiridas, mas o
poder do efeito genético é inquesti-
onável, mesmo quando o foco da
discussão é o homem. Emoções e
outros fenômenos afetivos são tão
importantes quanto os comporta-
mentos através dos quais se mani-
festam. São apresentadas evidên-
cias de que é impossível explicá-los
exclusivamente através de proces-
sos de aprendizagem. Diferentes
áreas de investigação – incluindo o
estudo da cognição – têm mostrado
a importância da genética para a
compreensão de fenômenos psico-
lógicos. Estudos de gêmeos mono-
zigóticos e dizigóticos, criados jun-
tos ou separados, demonstram ine-
quivocamente os efeitos dos genes
sobre comportamentos e caracterís-
ticas psicológicas de um modo ge-
ral. Estudos de Psicopatologia são
particularmente elucidativos da im-
portância e complexidade dos efei-
tos genéticos. Depois de apresen-
tar evidências dos efeitos do genes
sobre comportamentos e processos
psicológicos, são examinadas con-
cepções equivocadas de determina-
ção genética, envolvendo justifica-
tiva de status quo e situações de
iniqüidade social, dominação das mu-
lheres pelos homens e racismo.
Palavras-chave: Cultura, aprendi-
zagem, hereditariedade, gêmeos,
Etologia, Psicologia Evolucionária.
sible to classify whole “units” of
behavior as either innate or ac-
quired, but the powerful gene-
tic effect is unquestionable, even
if the discussion is restricted to
humans. Emotions and other
affective phenomena are just as
important as their overt behavi-
oral displays, and available evi-
dence shows that it is impossi-
ble to explain them exclusively
by learning processes. The im-
portance of genetic determi-
nants of psychological proces-
ses – including cognition – is re-
ceiving growing attention in di-
fferent areas of investigation.
Studies of monozygotic and di-
zygotic twins reared apart and
together, have revealed impres-
sive evidence of genetic effects
on a wide variety of behavioral
and psychological traits. Men-
tal illnesses are substantially he-
ritable. After an examination of
evidence on the magnitude and
complexity of heritability in
behavioral and psychological
processes, some misunderstan-
dings were addressed, such as
the idea that biological determi-
nism is antithetical to social or
political change and justifies se-
xism and racism.
Keywords: Culture, learning, he-
reditarity, twins, Ethology, Evoluti-
onary Psychology.
Emma Otta, Fernando Leite Ribeiro e Vera Sílvia Raad Bussab — 285
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
Introdução
A noção de herança de características físicas e psicológicas, bemcomo a de sua aquisição por influência do ambiente são catego-
rias de pensamento de nossa cultura. Expressões como “tal pai, tal
filho”, “dize-me com quem andas [...]”, “é de pequenino que se torce o
pepino”, “quem puxa aos seus não degenera”, mostram que a idéia de
classificar aspectos psicológicos dos indivíduos, ora como inatos, ora
como adquiridos, faz parte da cultura popular.
A observação informal de animais domésticos e de pessoas cer-
tamente foi o que deu origem à dicotomia, apesar das enormes com-
plexidades, tanto da transmissão genética, quanto dos efeitos do am-
biente. Foram essas mesmas complexidades, no entanto, que impedi-
ram que a observação cotidiana, ainda que interessada e intensa, como
no caso de criadores de animais, agricultores e educadores, chegas-
se a algo mais do que alguns conceitos confusos. Por mais que se
acumule a experiência ingênua, a trama de semelhanças e diferen-
ças entre pais e filhos é um desafio difícil demais para a informalida-
de. Somente quando o assunto foi examinado com um esforço cientí-
fico formal foi possível chegar a uma conceituação coerente da vaga
idéia da herança. E os efeitos do ambiente, não obstante todo o em-
penho científico do século XX, ainda não receberam uma organiza-
ção conceitual equivalente à da genética.
Há cerca de 135, anos Francis Galton (1822-1911), a propósito
destas questões, cunhou a expressão “natureza e criação” ou “natureza
e educação” para se referir às duas principais fontes de diferenças indi-
viduais – genética e ambiente (PLOMIN E MCCLEARN, 1993). Gal-
ton usou os termos da dicotomia, nature versus nurture, parafraseando
Shakespeare, que na obra The tempest usou a expressão nature nurtu-
re para se referir aos elementos que compõem a personalidade, valendo-
se do sugestivo jogo de palavras sugerido pela referida expressão na
língua inglesa2 (RIDLEY, 2003).
O tema “natureza-criação” continua atual na Psicologia; a
dicotomia persiste. Em diferentes áreas recebe diferentes nomes:
a) nativismo vs. empirismo, nas áreas de sensação e percepção;
b) maturação vs. aprendizagem, na psicologia do desenvolvimento;
__________________________________________________
2
 A devil, a born devil, on whose nature nurture can never stick, insulto dirigido por Próspero
a Calibã, no ato 4, cena 1.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
286 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
c) aprendizagem geral vs. aprendizagem preparada, nas áreas de apren-
dizagem e cognição; d) hereditariedade vs. ambiente como determi-
nante da variação humana, na psicologia das diferenças individuais
(KIMBLE, 1993).
No século XX deu-se um confronto entre os dois pólos da dico-
tomia, em grande parte devido à oposição entre etólogos e psicólogos
behavioristas. Os etólogos, por sua formação zoológica, e entusias-
mados com algumas descobertas de grande repercussão, julgaram-
se proprietários do comportamento. Afinal, depois do enorme pro-
gresso do conhecimento biológico de anatomia e fisiologia, teoria da
evolução e outros avanços, o comportamento do animal integral era a
última área a ser submetida ao pensamento científico. Ao chegar a
ela, deram-se conta que os psicólogos a tinham invadido, com estra-
tégia de pensamento e método completamente diferentes do que su-
geria a vitoriosa tradição biológica. É verdade que o Behaviorismo
recebeu do fisiologista russo Ivan P. Pavlov (1849-1936) um impulso
conceitual mais forte, a idéia de condicionamento. No entanto, Pa-
vlov estava longe do Ocidente, e foi fácil superar esse toque bastar-
do e considerar a Psicologia como proprietária do comportamento.
Acresce que o ambiente filosófico predominante favorecia o empi-
rismo, e, assim, o Behaviorismo procurou acomodar todo seu objeto à
noção de aquisição, rejeitando, explicitamente, o pólo oposto da dico-
tomia. E de outras áreas da Psicologia, alheias ou mesmo avessas ao
Behaviorismo, não surgiu nenhum movimento forte de resistência
contra o predomínio do adquirido sobre o inato. Na obra de Piaget,
por exemplo, não obstante sua formação biológica, todo o empenho
conceitual e metodológico voltou-se para a aquisição, e pouco mais
do que algumas estruturas gerais foram concedidas ao inato.
O confronto
era inevitável. Os psicólogos viram nos etólogos uma
certa fragilidade conceitual, em comparação com as discussões internas
da Psicologia, e também uma lassidão metodológica, em contraste com
seus elaborados instrumentos de mensuração e tratamentos estatísticos.
E os etólogos denunciavam a ingenuidade ou a pretensão desmesurada
de uma Psicologia que não observava a natureza e que se restringia a
uma ou duas espécies, colocando-as em ambientes tão artificiais que o
comportamento parecia reduzido a algumas reações de preparações fi-
siológicas, sem dar-lhe oportunidade de exibir toda a sua natureza.
Emma Otta, Fernando Leite Ribeiro e Vera Sílvia Raad Bussab — 287
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
No confronto entre nativistas e ambientalistas, uma parte impor-
tante da questão resulta da complexidade da própria noção de compor-
tamento. Não é fácil descrevê-lo nem medi-lo. Não há unidades ade-
quadas. Nossa linguagem, ao dizermos que este comportamento é inato
ou aquele é adquirido, está carregada de imprecisões. Ao dar como
certo que, se é inato, não é adquirido, e vice-versa, é enorme a proba-
bilidade de estarmos errados a respeito de componentes ou aspectos
do comportamento em questão. Em casos especiais, nos quais estão
implícitos vários pressupostos, esse tipo de afirmação pode ser razoa-
velmente aceito. Ao dizer que o choro de um recém-nascido é inato, ou
que um urso, ao andar de bicicleta, está fazendo algo adquirido, senti-
mo-nos razoavelmente seguros de nossa linguagem. Mesmo assim, pelo
menos no caso do urso, precisamos dar como subentendido que a afir-
mação se refere à montagem do conjunto todo, e não aos seus compo-
nentes (equilíbrio, coordenações, etc.).
Contudo, os casos especiais servem apenas como instrumen-
tos de retórica na discussão sobre a dicotomia. Em muitos outros, o
que se vê é que a escolha entre inato e adquirido não pode ser feita
para o conjunto completo que estiver sendo estudado. Sempre será
possível mostrar que este ou aquele componente escapa à noção ra-
dical de “puramente” inato ou adquirido. Outra ingenuidade, nessa
discussão, é atribuir ao inato características que, teoricamente, ele
não precisa ter: inevitabilidade e imutabilidade. E a contrapartida
disto é que o fato de sofrer alterações resultantes da experiência não
impede que um dado aspecto do comportamento seja inato.
As informações genéticas orientam a construção do sistema
nervoso central, assim como os outros sistemas, dando-lhe uma or-
ganização que é muito mais complexa do que uma simples máquina
de aprender. O estudo do comportamento animal mostra abundante-
mente que é possível nascer já conhecendo um vasto e relevante
conjunto de características ambientais e já sabendo o que fazer dian-
te delas (ALCOCK, 2001).
Nas últimas décadas do século passado, depois de um verda-
deiro confronto entre ambientalistas e nativistas, duas conclusões
importantes, para certos autores, foram: a) a impossibilidade de quali-
ficar o comportamento como inato ou aprendido, na medida em que
ele é sempre produto complexo das duas fontes de determinação;
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
288 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
e b) a necessidade de orientar as pesquisas para a identificação do
processo pelo qual os fatores inatos e adquiridos se integram (ADES,
1986; HINDE, 1973). Esta concepção ainda é atual e vem sendo reite-
radamente afirmada. Entretanto, o que se tem assistido desde a sua
formulação não tem sido uma assimilação efetiva desta idéia, mas sim
sucessivos renascimentos da dicotomia. Há uma forte resistência em
admitir qualquer controle genético sobre o comportamento, especial-
mente o humano, em parte por maus entendimentos do que seja o con-
trole genético. Mata-se a dicotomia e ela ressurge das cinzas, tal qual
Fênix. Os reaquecimentos constantes da polêmica são reveladores da
necessidade de aprimoramentos conceituais. A nossa tese é que a di-
cotomia persiste porque ela é necessária. As tentativas de se abando-
nar um dos lados, especialmente as tentativas de abandonar o inato,
têm se revelado pouco úteis.
Emoções
O terreno das emoções é particularmente propício para a identifi-
cação das determinações genéticas sobre o comportamento e para re-
flexões sobre a dicotomia inato-aprendido. Quem nos ensinou a ficar
alegres ou a sentir tristeza? A própria palavra desperta emoções e re-
mete às emoções reconhecidamente primárias: alegria, tristeza, medo,
raiva, surpresa e repugnância, assim como às consideradas secundárias,
vergonha, ciúme, culpa e orgulho, e ainda às emoções de fundo, como
calma ou tensão. Todas elas universais.
A emoção nos acompanha em nossa vida cotidiana. Tem inspira-
do os escritores, os músicos e os poetas, e também os etólogos e os
psicólogos. Não é por acaso que as emoções estão presentes nos dois
extremos da Etologia, desde sua origem até agora. O nome de Charles
Darwin (1809-1882), criador da teoria da evolução, que foi um etólogo
antes mesmo que a palavra tivesse sido inventada, destaca-se por sua
influência em determinar o modo como se pensa hoje a respeito de emo-
ções. A sua obra The expression of the emotions in man and animals,
publicada em 1872, é um clássico na área.
Darwin sustentou a natureza inata de grande parte da expressão
emocional, baseando suas conclusões em evidências que ainda podem
ser consideradas atuais: o aparecimento precoce em bebês, antes de
haver oportunidade suficiente de aprendizagem; a similaridade de forma,
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contexto e função entre indivíduos com experiências notadamente
diferentes entre si, como entre pessoas cegas e com visão normal, e
entre diferentes grupos culturais humanos, e, finalmente, as homolo-
gias e analogias reveladas pelos estudos comparativos de diferentes
espécies animais. Desse modo, o estudo das emoções foi posto no
contexto evolutivo, e foi colocada a questão funcional: de que forma
uma particular emoção ou um comportamento ajuda na sobrevivên-
cia? Darwin produziu uma série de hipóteses e de observações que
servem de guia para a Etologia até hoje. No entanto, apesar desta
origem tão nobre e antiga do interesse por emoções, a Etologia, da
mesma forma que o Behaviorismo, apegou-se à idéia de comporta-
mento para definir seu objeto. Outros assuntos, tais como sensação,
percepção, emoção, sentimento, cognição, sonhos, que fazem parte
indiscutível desse objeto, ficam na periferia, quando muito, como apên-
dices do núcleo comportamental. Tal distorção se deve, principal-
mente, a dificuldades metodológicas.
Só agora, na ponta mais atual da Etologia e da Psicologia Evolu-
tiva, a emoção reaparece com força total. Há quem diga que o sécu-
lo XX foi o século da razão e que agora estamos recuperando a emo-
ção (DAMÁSIO, 1994, 1999). Talvez seja um exagero, porque em
certo sentido o século XX também foi o século do apego, da expres-
são das emoções, do comportamento não-verbal e da redescoberta
do valor sério da brincadeira (Ribeiro et al., 2004). Mas, de fato, está
em andamento uma releitura das emoções. Novas tentativas de inte-
gração da razão com a emoção também estão sendo ensaiadas (MOR-
RIS, BRAMHAM e ROWE, 2003).
Na moderna Psicologia Evolucionária as emoções têm sido
entendidas como programas superordenados que coordenam mui-
tos outros, ou seja, como soluções de problemas adaptativos de
mecanismos de orquestração; organizam percepções, atenção, in-
ferência, aprendizagem, memória, escolha de objetivos, priorida-
des motivacionais, estruturas conceituais, categorizações, reações
fisiológicas, reflexos, decisões comportamentais, processos de co-
municação, níveis de energia e de alocação de esforços,
coloração
afetiva de eventos e de estímulos, avaliações da situação, valores,
variáveis reguladoras, como auto-estima, e assim por diante
(COSMIDES e TOOBY, 2000).
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290 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
Uma emoção não se reduz a uma categoria de efeitos, como alte-
rações fisiológicas, inclinações comportamentais, avaliações cogniti-
vas, ou sentimentos, pois envolve todos estes níveis, assim como ainda
outros mecanismos distribuídos através da arquitetura física e mental.
A estrutura da atenção é regulada pelas emoções. A preocupação es-
treita a atenção; as emoções positivas alargam-na. O nível de ativação
depende da emoção. As alterações fisiológicas, como mudanças cir-
culatórias, respiratórias, endócrinas, dependem da especificidade da
emoção em jogo. Limiares de contração muscular baixam em certos
casos e aumentam em outros, revelando o valor adaptativo da reação.
Outro exemplo do ajuste funcional das emoções é a alocação de rea-
ções imunológicas no nojo.
Cada emoção atua sobre vários outros programas adaptativos,
desativando alguns, ativando outros e mudando os parâmetros de ter-
ceiros, permitindo que todo o sistema opere de modo eficaz e harmo-
nioso, toda vez que se defrontar com certos tipos de condições. Con-
forme análise de Cosmides e Tooby (2000), numa situação típica de
medo, como quando uma pessoa está sozinha à noite em lugar estra-
nho, ativa-se o circuito de detecção da presença de alguém ameaça-
dor ou de algum animal. Ocorrem mudanças na percepção e na aten-
ção, exemplificáveis pela mudança de limiar aos pequenos ruídos.
Há mais detecção de perigos à custa do aumento de alarmes falsos.
A mudança motivacional é notável; a segurança ganha prioridade
máxima. Não se tem mais fome, não se pensa mais em conquistar
um namorado, ou em treinar nova habilidade. Há um redireciona-
mento de objetivos: onde está meu bebê? Minha mãe? Onde estão
meus amigos? Onde estão os que podem me proteger? Ganham pri-
oridade determinadas categorias, como perigoso ou seguro. As rea-
ções fisiológicas parecem depender da natureza exata da ameaça e
da melhor maneira de enfrentá-la. Convém notar que estas emoções
não são necessariamente conscientes.
No curso da evolução, a lógica funcional das emoções ganhou
sua sofisticada elaboração para resolver problemas ancestrais. Ne-
nhuma máquina já desenvolvida pelo homem conseguiu alcançar a com-
plexidade do maquinário natural. Programas de emoções que levam os
indivíduos a se engajarem em atividades aparentemente sem sentido
em curto prazo, como luto, brincadeira, fascinação, culpa, depressão,
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sentimento de triunfo, devem ser analisados em termos de como mo-
dificam a arquitetura psicológica para benefícios que devem ser ava-
liados estatisticamente e em longo prazo. A função destes estados
emocionais deve ser compreendida com base na análise de suas po-
tenciais conseqüências, como ganhos de conhecimentos, modifica-
ções de prioridades motivacionais e reorganização do conjunto de
escolhas de variáveis.
A hipótese de Cosmides e Tooby (2000) é que emoções especí-
ficas ativam sistemas específicos. A felicidade, por sua vez, sinaliza
oportunidade para brincar e para explorar (FREDERIKSON, 1998).
O processo de memorização é afetado pelas emoções. Os eventos
mais emocionantes podem ser memorizados em detalhes. A suspeita
de traição do marido pode trazer à tona uma torrente de lembranças
de pequenos detalhes que pareciam sem sentido na ocasião. Meca-
nismos altamente especializados de aprendizagem podem ser ativa-
dos, como no exemplo do desenvolvimento típico de aversão alimen-
tar, notável por poder ocorrer após uma única experiência, mesmo
quando os efeitos desagradáveis são sentidos apenas muito tempo
depois da ingestão (GARCIA, 1990), ou como nos bem conhecidos
condicionamentos de medo em primatas, nos quais se verificaram
facilidades marcantes para o desenvolvimento de alguns medos, como
o de cobras, em contraste com dificuldades para a aprendizagem de
outros, como de flores. É muito mais fácil aprender a sentir medo de
cobras do que de flores (LEDOUX, 1995).
A própria coloração afetiva dos eventos pode ser entendida como
uma forma de aprendizagem, ao impregná-los com atributos como
perigoso, doloroso ou alegre. Nesse (1990) considera que a função
do humor é refletir o quanto certo ambiente é propício para a ação. A
suspensão de atividades comportamentais na depressão, acompanhada
de intensa atividade cognitiva, sugere esforço de reconstrução de
modelos do mundo, eliminando as condições que levaram à própria
depressão, muitas vezes associadas a fracassos em investimentos
comportamentais intensos, incapacidade de manter contato afetivo
com uma determinada pessoa ou conservar uma situação social. Por
outro lado, a alegria é uma resposta a um acontecimento inespe-
radamente favorável que amplia as escolhas e acentua o interes-
se, permitindo a liberação de novas energias num rumo confiável.
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292 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
Culpa, luto, depressão, vergonha, gratidão, enternecimento, atração se-
xual são promotores de alterações dos espectros de escolhas e dos graus
de interesse. Por exemplo, reelaborações pós-traumáticas típicas são
constituídas por repetições sucessivas das imagens do evento traumáti-
co. Depois de um estupro, tais reelaborações podem durar de 6 a 18
meses e cessar repentinamente, como se estivessem sendo extraídas,
durante este tempo, todas as informações possíveis, num processo de
aprendizagem complexa e terapêutica.
Importa notar que há um grande inventário de sabedoria de alta
qualidade incluído nestes programas. O cérebro foi projetado pela evolu-
ção para usar informações derivadas do ambiente e do próprio organis-
mo a fim de regular funcionalmente o comportamento e o próprio corpo,
e isto reúne aspectos cognitivos e emocionais. Como reunir aprendiza-
gem com amor, ciúme e nojo? O termo cognição é às vezes usado para
se referir a um tipo de pensamento deliberado, voltado para uma solução
de problema, como na Matemática ou no jogo de xadrez. Um pensamen-
to “frio”, isento de paixão. Este uso aparece na Psicologia, quando se
separa pensamento de sentimento e emoção.
Do ponto de vista da perspectiva evolutiva, o conceito de cognição
tem de servir para todas as atividades cognitivas, “quentes” ou “frias”, e
não para algum subconjunto de operações. Esta visão da perspectiva evo-
lutiva abre novas possibilidades de investigações, obscurecidas por outros
esquemas. Esta perspectiva vem sendo corroborada de diversas maneiras
(por exemplo, MORRIS et al., 2003). Uma descoberta heurística decor-
reu da demonstração de que sem emoção a razão parece não funcionar.
A demonstração clássica veio da descrição do caso de Phineas
Gage, atendido pelo médico Harlow em 1848, cuja análise foi retomada
pelo casal Damásio. Depois de um acidente durante uma etapa de cons-
trução de uma estrada de ferro, na Inglaterra, em que uma explosão de
pólvora fez com que uma barra de ferro trespassasse sua cabeça, pro-
vocando danos no lobo pré-frontal, este paciente apresentou alterações
de natureza específica. Surpreendentemente, ele sobreviveu e retomou
a consciência logo depois do acidente. Preservaram-se as capacidades
de memória, de linguagem e outras capacidades intelectuais. Porém, ele
mostrou profundas mudanças no seu comportamento social, com ines-
peradas ausências de emocionalidade, pela falta de cuidados no trato
com os outros, antes marcantes em sua personalidade, e pela tremenda
dificuldade para tomar decisões.
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A reanálise deste caso antigo e de alguns pacientes atuais levou
Damásio (1994, 1999) ao desenvolvimento de uma teoria de marcadores
somáticos, em que considera que no processo básico de tomada de deci-
sões está envolvida uma pré-seleção emocional; ou seja, sem emoção a
razão não funciona. Através deste raciocínio, cai por terra a idéia de que
a razão nobre, sem emoções, funciona melhor. Por mais que possamos
ter dúvidas quanto à teoria dos marcadores somáticos desenvolvida por
Damásio, que, aliás, aparentemente, não teve o impacto que seria de
esperar nas Neurociências, parece que o princípio do entendimento das
razões da emoção vale a pena. Há, de várias fontes, um entendimento e
uma redescoberta do papel da emoção.
Tudo isso sem contar com o já bem conhecido papel das emoções
na regulação social. Além de cumprir um papel na organização dos
processos psicológicos individuais, as emoções têm reconhecida fun-
ção na organização social. A expressão involuntária de emoções é uma
chave para o entendimento da vida social da espécie, reveladora de
sua ecologia social. Pode-se considerar que o entendimento da impor-
tância adaptativa da comunicação animal e do processo filogenético da
ritualização tenha sido uma das principais contribuições da Etologia
clássica (ver, por exemplo, CARVALHO, 1998). Expressões específi-
cas anunciam as emoções humanas universais, geradas em contextos
semelhantes e associadas a reações padronizadas, conforme tem sido
demonstrado em muitos estudos interculturais (como em EIBL-EIBES-
FELDT, 1989; EKMAN, 1994).
Não é fácil definir emoções, sentimentos, sensações, percepções
e estados de consciência. O que se nota, na história da Psicologia, em
particular na sua evolução recente, é que os investigadores que não se
deixam deter por dificuldades conceituais têm feito descobertas de valor
incontestável. São contribuições inimagináveis em ambientes acadêmi-
cos nos quais, em nome de uma discutível assepsia conceitual, esteriliza-
se grande parte do próprio objeto da Psicologia. É insensato desprezar
os problemas de conceituação. No entanto, é bem possível que o melhor
caminho para promover o progresso teórico seja estudar os fenômenos
mal definidos da melhor maneira possível, em vez de deixá-los no limbo,
ou negar sua própria existência. Tampouco deve levar-nos a ignorá-los a
ausência de modelos de aprendizagem que explique sua origem, reme-
tendo-os ao pólo inato da dicotomia.
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294 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
Os estudos de gêmeos e a dicotomia inato x aprendido
Os nascimentos de gêmeos idênticos nos colocam diante de um
arranjo natural especial para o estudo dos efeitos dos genes sobre os
comportamentos e sobre as características psicológicas de um modo
geral. A natureza nos presenteou com um experimento natural raro ao
produzir um nascimento de gêmeos idênticos a cada 250 partos e um
de gêmeos fraternos a cada 125 partos. Mesmo entre os animais, isso
não é comum; como se sabe, uma ninhada de camundongos ou de cães
não é composta por gêmeos idênticos (RIDLEY, 2003).
Ao traçar a história da controvérsia inato versus aprendido, Ridley
identificou a origem da dicotomia no trabalho clássico de Francis Galton,
justamente num estudo de gêmeos, em 1864. Apesar das limitações
metodológicas deste estudo inicial de 35 gêmeos idênticos e 23 não idên-
ticos, Galton apresentou todos os fundamentos sobre os quais se assen-
tam as pesquisas atuais. Hoje, se dispõe de bases de dados notáveis,
com tamanhos de amostras que chegam a milhares e com representa-
ção de diferentes faixas etárias, da infância à velhice, e de diferentes
países – por exemplo: Estados Unidos, Austrália, Finlândia, Noruega,
Suécia, Holanda e Inglaterra (GOLDSMITH, 1993). Estudos de gême-
os idênticos e fraternos podem ser complementados por estudos de ado-
ção e gêmeos criados em separado. Acumulam-se evidências empíricas
(BOUCHARD et al., 1990, MCGUE et al., 1993) de que efeitos genéti-
cos estáveis explicam aspectos estáveis do temperamento na infância e
da personalidade no início da idade adulta.
Os estudos de gêmeos parecem preencher todos os requisitos
para atender ao raciocínio básico dos estudos de genética do compor-
tamento. A comparação de gêmeos monozigóticos versus gêmeos di-
zigóticos, criados juntos ou separados, tendo ainda como parâmetro
dados de outros irmãos, naturais e adotivos, parece permitir a concre-
tização, em ambiente natural, de todos os controles necessários para o
estudo de efeitos do ambiente e da genética.
Mesmo assim, os estudos de gêmeos ficaram relegados até o final
da década de 70, talvez por causa das possíveis falhas metodológicas e
dos prováveis desvios ideológicos, conforme Ridley (2003) assinala em
revisão do assunto. Nessa ocasião, um reencontro de irmãos gêmeos
depois de 40 anos de separação, Jim Springer e Jim Lewis, anunciado
pela imprensa de Minneapolis, chamou a atenção de Thomas Bouchard.
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O estudo que ele então realizou com os irmãos Jim revelou uma lista
impressionante de semelhanças, quanto a aparência, voz, corpo, histó-
ria de saúde, dor de cabeça, hábito de fumar, pressão alta, hemorrói-
das, gostos e preferências. Ocorreu a Bouchard uma completa inver-
são do raciocínio vigente, na suposição de que gêmeos idênticos cria-
dos em separado poderiam ser ainda mais parecidos do que os criados
juntos, pois na mesma família as diferenças poderiam ser exageradas,
tese que depois se confirmou em vários estudos subseqüentes. Os gê-
meos separados mais cedo eram mais semelhantes entre si que aque-
les separados mais tarde.
Os primeiros estudos de gêmeos feitos por Bouchard, que nos três
anos seguintes conseguiu reunir e examinar 39 pares de gêmeos, ainda
receberam severas críticas, com acusações de ênfase exagerada nas
semelhanças, descuido quanto ao tempo de contato anterior e às seme-
lhanças de educação, o que o levou à realização de pesquisas minucio-
sas, incluindo também gêmeos dizigóticos criados em separado. Ao fa-
zer isso, Bouchard encontrou uma saída brilhante para a armadilha con-
ceitual que impedia qualquer progresso no entendimento dos efeitos ge-
néticos e ambientais; sempre era possível alegar potenciais semelhanças
ambientais para justificar as semelhanças psicológicas e assim anular
qualquer indicação de efeito genético. As características dos gêmeos
monozigóticos passaram a ser analisadas com parâmetro nas semelhan-
ças de gêmeos dizigóticos, outros irmãos e filhos adotivos. Segundo este
raciocínio, as diferenças entre as correlações de gêmeos monozigóticos
e de gêmeos dizigóticos, criados separados nos dois casos, assim como
as diferenças entre os dois tipos de gêmeos criados juntos, podem apon-
tar a magnitude da influência genética, bem como a do ambiente, para a
variação de cada traço psicológico investigado.
O que estava em jogo na época era a hipótese “nada nos ge-
nes”; acreditava-se piamente que existiriam enormes diferenças de
personalidade entre gêmeos idênticos que fossem criados em sepa-
rado. Os estudos de gêmeos produziram uma verdadeira revolução
na compreensão da personalidade.
A pesquisa realizada por Bouchard ficou conhecida como o Estudo
de Minnesota de gêmeos criados em separado (Minnesota Study of Twins
Reared Apart - MISTRA), e trouxe à tona novas questões e compreen-
sões para o entendimento da dicotomia. Por exemplo, Bouchard (1997)
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296 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
reanalisou
os dados da aplicação de um teste vocacional; a medida de
correlação dos gêmeos monozigóticos criados em separado é da or-
dem de 0,50, enquanto a medida de correlação dos gêmeos dizigóticos
também separados é da ordem de 0,07. Considerando-se os dizigóticos
como um grupo de controle, poder-se-ia dizer que a diferença entre os
grupos, da ordem de 0,43, é determinada por efeito genético.
Os dados sobre o desenvolvimento de quociente de inteligên-
cia (QI) também ilustram os efeitos genéticos, ao mesmo tempo em
que se prestam à problematização das questões de desenvolvimen-
to. As semelhanças de QI entre os gêmeos criados à parte não
podem ser explicadas por idade de separação, quantidade de conta-
to entre eles ou características gerais das famílias adotivas. Outra
restrição às comuns superestimativas de efeitos ambientais provém
de estudos sobre indivíduos não aparentados criados juntos, pois
medidas feitas na infância revelam uma influência ambiental da or-
dem de 30%, que cai com o passar do tempo, ao invés de crescer.
Além disso, ao rever os resultados da literatura sobre QI de gêmeos
criados juntos, Bouchard e McGue (1981) mostraram aumento do efeito
da heritabilidade em função da idade. Nos jovens, a influência do am-
biente é de 40%, e nos mais velhos decai rapidamente. A influência
dos genes no QI vai crescendo de 20, para 40, 60 e 80%, em
faixas etárias sucessivas.
A correlação entre inteligência e tamanho do cérebro é de
0,40, o que, literalmente, deixa lugar para gênios de cabeça peque-
na; ainda assim, é uma boa correlação. Recentemente, com o apri-
moramento dos equipamentos de leitura cerebral (scanners), foi
facilitado o acesso às medidas da massa cinzenta, e foi constatada
uma correlação alta com inteligência geral, de 0,89. Além disso, a
correlação de variação da massa cinzenta de gêmeos idênticos al-
cança o patamar de 0,95, enquanto a de fraternos é de 0,50, o que
mostra que a variação deste traço está quase totalmente sob o con-
trole do efeito genético, deixando muito pouco espaço para a influ-
ência ambiental (POSTHUMA et al., 2001).
Estes resultados precisam ser bem entendidos e comportam vá-
rias hipóteses, embora sugiram um prevalecimento do efeito genético
com o passar da idade. O próprio Bouchard parece levar em conta
um conjunto mais geral de indicadores ao apontar, no final do artigo,
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que a conclusão não é negar a influência do ambiente nem negar a exis-
tência de ambientes inadequados e debilitadores, e tampouco minimizar os
efeitos da aprendizagem, mas supor o ser humano como um organismo
criativo dinâmico, para o qual a oportunidade de aprender e a experiência
em novos ambientes amplificam os efeitos do genótipo no fenótipo.
Independentemente das considerações sobre a complexidade
do processo de desenvolvimento, deve estar claro que os estudos de
gêmeos têm produzido uma demonstração inequívoca dos efeitos da
herança (RIBEIRO et al., 2004). A lista de características psicológi-
cas nas quais os gêmeos monozigóticos são significativamente mais
semelhantes entre si é impressionante, a começar pelas característi-
cas relacionadas ao temperamento, como choro, irritabilidade, medo,
impulsividade, sorriso e sociabilidade (GOLDSMITH e CAMPOS,
1982; NEWCOMBE, 1996).
Para se ter uma idéia, mesmo em medidas de traços tidos como
prototipicamente culturais como a religiosidade, a correlação entre gê-
meos idênticos é da ordem de 58%, e entre fraternos, de 27%. Em outro
estudo, comparando-se as chamadas atitudes de direita, através de pes-
quisa de opiniões sobre a pena de morte, sobre os imigrantes e outras, os
gêmeos idênticos criados separados se correlacionaram em 62%, e os
fraternos criados separados, em 21% (BOUCHARD et al., 1999). O mesmo
tipo de resultado foi obtido na análise de uma ampla amostra de gêmeos
feita na Austrália (KIRK et al., 1999). Embora não seja de simples com-
preensão, o efeito dos genes não pode ser desprezado. Não se acredita
que a religiosidade ou a atitude política estejam diretamente representadas
nos genes, mas sim que determinadas características de personalidade
mediadas pelos genes estariam correlacionadas a estas atitudes.
As pessoas diferem mais em personalidade se tiverem genes dife-
rentes do que se tiverem sido criadas em famílias diferentes (RIDLEY,
2003). Para praticamente todas as medidas de personalidade considera-
das, os gêmeos monozigóticos criados separados mostraram-se mais
semelhantes que os dizigóticos criados separados (BOUCHARD, 1999).
A personalidade foi avaliada em cinco grandes dimensões: abertura, cons-
ciência, extroversão, harmonia e neurose. Os resultados obtidos mos-
tram que a variação devida a fatores genéticos é da ordem de 40%, a
influência de fatores ambientais partilhados (como a família), de 10%, as
influências ambientais únicas vividas pelo indivíduo, 25%, finalmente a
variação atribuída a erros de medida é de 25%.
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298 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
Evidentemente a criança tem necessidade de uma família para
se desenvolver.
Mas desde que tenha uma família para se desen-
volver, não importa muito se a família é pequena
ou grande, rica ou pobre, gregária ou solitária,
velha ou jovem. Uma família é um pouco como
vitamina C: você precisa dela ou irá adoecer, mas
desde que a tome, o consumo extra não vai torná-
lo mais saudável (RIDLEY, 2003; p. 86).
Estudos sobre a herança de psicopatologias também podem ser
elucidativos da importância e da complexidade dos efeitos genéticos
(TORREY et al., 1994). A título de ilustração, vejamos alguns estu-
dos sobre a incidência de transtorno bipolar e de autismo. A concor-
dância entre gêmeos para transtorno bipolar é de 67% para monozi-
góticos versus 16% para dizigóticos. Para autismo, as indicações são
ainda mais fortes, pois a correlação é da ordem de 96% para mono-
zigóticos, enquanto para os dizigóticos é de 23% (RITVO et al., 1985).
Diante de dados deste tipo, deve-se imprimir determinado rumo às
pesquisas das síndromes autísticas, levando-se em conta as pesqui-
sas da genética do comportamento.
Uma hipótese que continua sendo investigada é a contribuição
de vírus para o desenvolvimento de psicopatologias. Sabe-se que os
fatores genéticos desempenham um papel em determinar se um vírus
vai ou não infectar o cérebro (ROOS, 1985). Muitos vírus diferentes
podem atingir o cérebro e permanecer latentes por vários anos antes
de causar infecção sintomática. Para o vírus da pólio, que foi cuida-
dosamente estudado no SNC, a taxa de concordância da infecção
em gêmeos monozigóticos é de 36%, e em gêmeos dizigóticos é 6%.
Os dados para peso também são ilustrativos das questões que
podem ser suscitadas na compreensão das relações entre genes e
ambiente (RIDLEY, 2003). Em primeiro lugar, há uma forte indica-
ção da influência do componente hereditário: gêmeos monozigóticos
criados juntos apresentam correlação da ordem de 80%, e os criados
em separado, a correlação também considerável de 72%. O efeito da
herança genética fica ainda mais salientado na comparação com as
correlações entre gêmeos dizigóticos criados juntos, que cai para 43%,
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e entre pais e filhos adotivos, que é de apenas 4%. Conforme Ridley
comenta, embora estes índices sejam notáveis, isto não significa que
as dietas devam ser jogadas fora nem que o ambiente não importe.
O estudo não diz nada diretamente sobre a causa do peso. Ape-
nas revela causas das diferenças de peso numa família particular. Dado
o mesmo acesso a alimento, algumas pessoas vão
ganhar mais peso do
que outras. Deve-se notar também que o efeito do ambiente não é
linear quando são examinadas, por exemplo, pessoas de diversos níveis
socioeconômicos. Num dos extremos, o ambiente pode ter efeito drás-
tico, assim como, no outro, pode prevalecer o efeito genético. Do mes-
mo modo, investigando amostra de 350 pares de gêmeos, Turkheimer e
colaboradores (2001) descobriram que a heritabilidade do QI depende
do status socioeconômico. Nas crianças mais pobres, constatou-se efeito
mais pronunciado do ambiente, ao contrário do verificado no outro ex-
tremo da distribuição.
As principais conclusões dos estudos de gêmeos são contra-intuiti-
vas. Natureza e cultura não competem. Por causa da alimentação, as
novas gerações estão cada vez mais altas, mas ninguém acha que isso
mostra que a estatura é mais determinada por fatores ambientais do que
por fatores hereditários. Ao contrário, porque mais pessoas estão agora
alcançando seu potencial máximo de estatura, a heritabilidade da sua
variação está provavelmente aumentando (RIDLEY, 2003).
Há complexidades adicionais nos entendimentos conceituais propi-
ciados pelos estudos de gêmeos. Em certos casos, ao contrário do que
seria de esperar por uma lógica simplista, quanto mais parecido for o
ambiente de criação, mais vão aparecer a herança e a variabilidade ge-
nética. Por exemplo, se meninos e meninas têm jeitos diferentes de apren-
der e interesses diversos, como tem sido evidenciado nos estudos de
desenvolvimento (como em BJORKLUND e PELLEGRINI, 2000), uma
escola que não levar em conta estas diferenças e oferecer a mesma
estratégia pedagógica para ambos poderá ser inadequada para um deles,
e promover uma diferença maior no desempenho escolar de meninas e
de meninos do que promoveria se respeitasse as diferenças.
Conforme Ridley (2003) observa, importa menos saber se a nature-
za humana é mais inata ou mais aprendida e sim entender o modo preciso
pelo qual a natureza humana é ambas as coisas. Entretanto, convém sali-
entar que ambos os fatores envolvidos na dicotomia realmente importam.
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300 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
Os resultados das comparações de gêmeos apontam a inquestionável
magnitude dos efeitos genéticos. É preciso perceber que estes efeitos
não devem ser escamoteados pela constatação de efeitos ambientais,
dos quais ninguém duvida, nem pela constatação da interação comple-
xa entre os fatores, mesmo porque a ação do ambiente também é con-
trolada pela ação dos genes.
Por outro lado, mesmo quando as variações podem ser total-
mente explicadas pela ação dos genes, isto não significa que o
ambiente não importa. Propositadamente, ora relativizamos o efeito
do ambiente, ora o dos genes. É melhor manter viva a dicotomia
do que, precipitada e inadequadamente, descartar qualquer um de
seus opostos. Melhor ainda é o aprimoramento das concepções
sobre o efeito genético e ambiental, com quebra genuína das con-
cepções estanques. Os genes podem ser considerados como agen-
tes da criação, assim como agentes da natureza. Não é sensato
perder a idéia da definição da origem, que pode dirigir de modo
heurístico os questionamentos.
Por que temer a dicotomia?
Encontra-se, especialmente nas Ciências Humanas, resistência
em reconhecer a importância dos determinantes inatos do comporta-
mento humano. Uma razão importante é ideológica, fundada no re-
ceio de que a noção de determinismo biológico seja usada em defesa
do status quo. Edward Hagen, do Instituto de Biologia Teórica, em
Berlim, no sítio www.anth.ucsb.edu, apresenta perguntas freqüentes
a respeito da Psicologia Evolucionária. Na base da rejeição de algu-
mas pessoas, diz ele, está à suposição de que o determinismo biológi-
co seja contrário à reforma social ou política.
Eu [o crítico] desejo mudança política. Mudan-
ça política requer mudar pessoas. Os psicólo-
gos evolucionários argumentam que as pessoas
têm naturezas inatas e imutáveis. Os psicólogos
evolutivos opõem-se, portanto, à mudança so-
cial ou política, e estão meramente tentando
justificar o status quo.
Emma Otta, Fernando Leite Ribeiro e Vera Sílvia Raad Bussab — 301
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
No seu livro intitulado Blank slate: the modern denial of
human nature, Steven Pinker (2002) argumenta que o conceito
de tabula rasa está na base do Construcionismo Social (MALLON
e STICH, 2000) ou Modelo Padrão das Ciências Sociais (TOO-
BY e COSMIDES, 1992). Este conceito foi formulado pelo filó-
sofo inglês John Locke (1632-1704); ele postulava que, no nas-
cimento, a mente é vazia de conhecimento e que as diferenças en-
tre as pessoas são inteiramente devidas às diferentes experiências
(LOCKE, 1690/1947).
O empirismo apresentou-se como uma teoria epistemológi-
ca e filosófica sobre o funcionamento da mente. Tendo-a como
base, os psicólogos buscaram explicar todo o comportamento, a
cognição e a emoção através de um mecanismo simples de apren-
dizagem. O empirismo também se apresentou como uma filosofia
política, que fundamentou a democracia liberal, uma arma contra
a igreja e as monarquias tirânicas. Locke opunha-se a justificati-
vas dogmáticas para a autoridade da igreja, para a realeza e a
aristocracia hereditárias e para a escravidão. Os escravos não
eram inatamente inferiores, assim como os reis não tinham sabe-
doria ou méritos inatos. Suas mentes eram igualmente vazias de
conhecimento de partida e teriam o mesmo potencial de desenvol-
vimento se tivessem as mesmas oportunidades.
Tendo por base o empirismo, as Ciências Sociais buscaram ex-
plicar todos os costumes e arranjos sociais como produto da socializa-
ção diferencial das crianças. Os psicólogos interpretaram as diferen-
ças entre os indivíduos, entre as raças e entre os sexos, como inven-
ções ou construções sociais. Isto fica claro no Behaviorismo proposto
pelo psicólogo norte-americano John Watson (1878-1958). Esta escola
psicológica baniu da Psicologia talentos, habilidades, desejos e senti-
mentos. John Watson (1924/1998) tem uma declaração, que se tornou
muito conhecida, na qual diz claramente que, se lhe dessem uma dúzia
de bebês saudáveis e a possibilidade de especificar o ambiente de
criação, ele seria capaz de transformar qualquer um deles tomado ao
acaso no que quisesse: médico, advogado, artista, comerciante e até
mendigo e ladrão, independentemente dos seus talentos, habilidades
e da raça dos seus antepassados.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
302 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
Diferença não justifica desigualdade
As diferenças entre os sexos são uma arena de discussão acirra-
da, e muitas feministas condenam pesquisas sobre as bases biológicas
das diferenças sexuais. Dois tipos de feminismo podem ser diferencia-
dos: de eqüidade e de gênero (JAGGAR, 1983; SOMMERS, 1994;
PINKER, 2002). O feminismo de eqüidade se opõe a qualquer forma de
discriminação contra a mulher, mas não se compromete com questões
empíricas na Psicologia ou na Biologia. O feminismo de gênero é uma
doutrina empírica sobre a natureza humana, segundo a qual as diferen-
ças psicológicas entre homens e mulheres são todas socialmente cons-
truídas. Bebês são bissexuais e são transformados, ao longo do processo
de socialização, em personalidades distintas, uma destinada a mandar, e
a outra, a obedecer. O poder é o principal motivo social, e as interações
humanas são compreendidas como interações de grupos e não de pesso-
as lidando umas com as outras como indivíduos. O grupo das mulheres é
dominado pelo grupo dos homens.
O conceito de tabula rasa parece à primeira vista favorecer
as mulheres. Se nada é inato, as diferenças entre os sexos não são
inatas. A desigualdade sexual pode ser
mudada pela mudança das
instituições. No entanto, homens e mulheres não são psicologicamente
idênticos. As diferenças entre meninos e meninas aparecem cedo no
desenvolvimento; sua força e precocidade levam Matt Ridley (2003)
a dizer que o papel dos pais no desenvolvimento da diferença de
gênero dos seus filhos é mais reativo do que causal. Um desenho em
quadrinhos de Bill Griffith é ilustrativo. Um personagem comenta com
outro o fascínio de um garoto de dois anos diante de um caminhão de
lixo, enquanto sua irmã gêmea mal levanta os olhos de sua boneca. E
explica que os homens são programados para certas funções. O
menino de hoje reage do mesmo jeito que seu ancestral remoto. O
caminhão de lixo provavelmente era “um mastodonte para o cérebro
das cavernas do menino”.
Jennifer Connellan e colaboradores (2000) encontraram diferen-
ças entre recém-nascidos de um dia de vida quanto ao interesse por
faces e objetos. As meninas olharam mais para faces do que para os
objetos. Os meninos, por sua vez, interessaram-se mais por objetos. Sve-
tlana Lutchmaya e colaboradores (2002) verificaram que, com um ano,
Emma Otta, Fernando Leite Ribeiro e Vera Sílvia Raad Bussab — 303
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
os bebês de sexo feminino olhavam mais para o rosto das mães que os
bebês de sexo masculino. As pesquisadoras dispunham de amostras de
líquido amniótico extraídas no primeiro trimestre de gravidez. Analisan-
do estas amostras, encontraram uma correlação surpreendente. Quanto
maior o nível de testosterona durante o período fetal, menor o contato
visual de meninos de um ano com suas mães. Esta diferença precoce de
gênero pode transformar-se mais tarde numa preferência diferencial por
relações sociais. Baron-Cohen (2002) desenvolveu uma hipótese segun-
do a qual o autismo seria uma versão extrema do cérebro masculino. A
masculinização do cérebro pode ter ido longe demais nos autistas. Crian-
ças com Síndrome de Asperger, uma forma menos severa de autismo,
têm dificuldade de ter empatia com o pensamento das pessoas, mas são
fascinadas pelo funcionamento de objetos (BARON-COHEN, 1995).
Esta síndrome atinge predominantemente os meninos (razão menino/
menina 4:1) (OZBAYRAK, 2004).
Um volume crescente de pesquisas vêm documentando diferen-
ças sexuais que certamente se originam na biologia humana. Contrari-
am, portanto, a suposição das feministas de gênero de que todas as dife-
renças sexuais que não são anatômicas resultam de expectativas dos
pais e da sociedade. Como diz Pinker (2002), as diferenças sexuais não
são características arbitrárias da cultura ocidental. Em todas as culturas
humanas, as mulheres são mais responsáveis pelo cuidado das crianças,
e os homens, por atividades que pertencem ao domínio público. Isto tam-
bém ocorre nos kibutzim israelenses, apesar do comprometimento ideo-
lógico dos seus membros com a eliminação das diferenças sexuais (VAN
DEN BERGHE, 1974). Os homens têm uma maior tendência a se expor
a risco, a agir violentamente e, conseqüentemente, têm uma chance maior
de morrer jovens (RIDLEY, 2003). Há diferenças anatômicas visíveis
em estruturas cerebrais entre os sexos (GEARY, 1998; KIMURA, 1999).
No cérebro masculino os núcleos intersticiais e o núcleo do stria termi-
nalis no hipotálamo são maiores. Estas regiões estão implicadas em com-
portamento sexual e agressão. As comissuras que ligam os hemisférios
cerebrais são maiores nas mulheres.
Do ponto de vista de um gene, estar no corpo de
um homem e estar no corpo de uma mulher são
estratégias igualmente boas [...] É melhor para
um babuíno ter o tamanho de um macho e ter
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
304 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
dentes caninos com seis polegadas ou ter o ta-
manho de uma fêmea e não os possuir? A per-
gunta não tem sentido. Um biólogo diria que é
melhor ter adaptações masculinas para lidar
com problemas masculinos e adaptações femi-
ninas para lidar com problemas femininos. As-
sim, os homens não são de Marte, nem as mulhe-
res são de Vênus. Homens e mulheres são da
África, o berço da nossa evolução, onde evolu-
íram juntos como uma única espécie (Pinker,
2002, p. 343-344).
Raça e racismo
A Biologia poderia servir como justificativa para o racismo, recei-
am os críticos da Etologia e da Psicologia Evolutiva. Racismo é um sis-
tema de crenças ou ideologia, estruturado em torno de três idéias bási-
cas (MARGER, 1994): a) os seres humanos dividem-se naturalmente
em diferentes tipos físicos; b) estas características físicas estão intrinse-
camente relacionadas com sua cultura, personalidade e inteligência; c)
com base na sua herança genética, alguns grupos são inatamente supe-
riores a outros. Usando o próprio grupo como padrão, os outros são
julgados inferiores.
O racismo é manifestação de uma síndrome mais ampla: a xeno-
fobia ou medo/ódio em relação aos que são estrangeiros ou diferentes
(CAVALLI-SFORZA e CAVALLI-SFORZA, 1993; QUEIROZ, 1996;
QUEIROZ e SCHWARCZ, 1996). Pode ter uma motivação utilitária,
quando um trabalhador teme que seu emprego seja ameaçado pela
chegada de imigrantes, ou assumir uma forma irracional (Cashmore,
1994). Em vários países europeus encontra-se hoje uma intensificação
de ações xenofóbicas, com uma motivação racista subjacente, que se
manifesta contra a imigração de pessoas de outros grupos raciais ou
étnicos. Segundo Cavalli-Sforza e Cavalli-Sforza (1993), os seres hu-
manos têm uma tendência inata a considerar o grupo a que pertencem
como uma entidade (NÓS) em oposição aos que não pertencem ao
grupo (ELES). “Nós” pode ser a família, o time de futebol ou o grupo
racial/étnico. “Nós” é uma extensão do eu e ajuda a construir uma
barreira protetora ao nosso redor.
Emma Otta, Fernando Leite Ribeiro e Vera Sílvia Raad Bussab — 305
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
Região GC1 GC2
Europa 72 28
África 88 12
Índia 75 25
Extremo Oriente 76 24
América do Sul 73 27
Austrália 83 17
O conde de Gobineau (1816-1882), diplomata francês, desenvol-
veu uma teoria racista que inspirou o nazismo. De acordo com essa
teoria, os alemães, descendentes de um povo mítico, os arianos, eram a
raça suprema. Mesclas étnicas seriam responsáveis pela decadência
das civilizações. Hoje, sabemos que não existem raças puras. Qualquer
sistema genético apresenta um grau elevado de polimorfismo ou varia-
ção genética; ou seja, um gene é encontrado em diferentes formas. De
maneira geral, as diferenças entre indivíduos são mais importantes que
as diferenças entre grupos raciais.
Criadores de animais que, almejando um resultado mais puro, exage-
rem no cruzamento de animais com parentesco muito próximo correm o
risco de perder a raça, por aumento de esterilidade e queda de vitalidade.
Diferenças externas visíveis de cor da pele entre as raças podem
nos levar a supor que por baixo da superfície existem diferenças de igual
magnitude na nossa constituição genética. Isto não é verdade. As dife-
renças que existem são limitadas, e mais quantitativas que qualitativas
em diferentes continentes e em regiões distantes de um mesmo conti-
nente. A Tabela 1 mostra a freqüência de um gene (GC) que codifica
uma proteína que regula a distribuição de vitamina D no corpo. Este
gene aparece em duas formas principais: GC1 e GC2. A similaridade é
notável. Portanto, “quem vê cor da pele não vê GC”.
Tabela 1
Distribuição (%) dos genes GC1 e GC2 em diferentes
regiões do mundo
Fonte: Baseado em Cavalli-Sforza e Cavalli-Sforza, 1993.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311, outubro de 2003
306 — Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia
A despeito de diferenças de cor de pele, somos muito parecidos
de forma geral no nosso patrimônio
genético. Cavalli-Sforza e Cavalli-
Sforza (1993) comentam, a partir deste prisma e inspirados em Macbe-
th, personagem criado por William Shakespeare, que a miséria e a cruel-
dade causadas pelas diferenças raciais entre os homens são uma histó-
ria contada por um idiota, cheia de som e fúria, que nada significa.
Conclusão
Concluímos citando Ernst Mayr ( 1963):
Igualdade apesar de evidente falta de identidade
é um conceito algo sofisticado que requer uma
estatura moral que muitos indivíduos parecem
incapazes de atingir. Eles negam a variabilidade
humana e equiparam igualdade com identidade.
Ou afirmam que a espécie humana é excepcional
no mundo orgânico, na medida em que conside-
ram que apenas caracteres morfológicos são con-
trolados por genes e todas as outras característi-
cas da mente ou da personalidade são devidas a
“condicionamento” ou outros fatores não genéti-
cos. Estes autores convenientemente ignoram os
resultados de estudos com gêmeos e das análises
genéticas de traços não morfológicos em animais.
Uma ideologia baseada em premissas tão eviden-
temente erradas só pode ser desastrosa. Sua defe-
sa da igualdade humana baseia-se numa afirma-
ção de identidade humana. Assim que se prove
que a identidade não existe, o suporte para a
igualdade se perde (p. 649).
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Bases biológicas e influências culturais relaciona-
das ao comportamento parental*
Alessandra Bonassoli Prado1
Mauro Luís Vieira2
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
Pai e mãe interagem de for-
ma diferente com seus filhos e fi-
lhas. Com o objetivo de identificar
fatores que modulam o comporta-
mento parental e a repercussão
deste na dinâmica familiar, foi rea-
lizada uma revisão de pesquisas
teóricas e empíricas sobre o assun-
to, com ênfase na teoria da Evolu-
ção. Constata-se que: a) existem
diferenças de gênero em relação
aos papéis dos genitores no cuida-
__________________________________________________
*
 Biological basis and culture factors underlying parental behavior
1
 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de
Santa Catarina.
2
 Professor do Departamento de Psicologia. Endereço para correspondências: Departamento
de Psicologia, CFH, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 88040-900
(E-mail: mvieira@cfh.ufsc.br).
Abstract
Mothers and fathers interact
in different ways in relation to
sons and daughters. With the aim
of identifying which factors mo-
dulate parental behaviors and their
repercussions in family dynamics,
a review of theoretical and empi-
rical studies on the subject was
carried out, with emphasis on the
Theory of Evolution. Critical re-
flections on published debates
make it clear: a) that gender di-
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
314 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
Introdução
A discussão natureza versus cultura vem de longa data e é clássicaem diferentes disciplinas como Psicologia, Sociologia, Antropolo-
gia, Biologia, entre outras; esta discussão pode adquirir um tom ideológi-
co, político, filosófico, mas dificilmente conclusivo. Um dos motivos é a
dificuldade em atribuir a um elemento da personalidade uma “causa”
que seja unicamente biológica ou aprendida. A principal razão é que
mesmo o mais simples reflexo necessita de um contexto para se mani-
festar, que apresenta conseqüências positivas ou negativas que vão
estabelecer diferentes relações condicionadas para um organismo e,
do dos filhos e que podem ser con-
siderados complementares; b) o pai
tem papel relevante no desenvolvi-
mento infantil; c) existe relação
entre sistemas de acasalamento e
investimento parental (o cuidado
dos descendentes em mamíferos de
modo geral está interligado com a
possibilidade de vinculação afetiva
e sexual com a fêmea); e por fim;
e) há necessidade de criar e defi-
nir termos que procurem refletir
diferentes dimensões do compor-
tamento parental. Conclui-se que o
comportamento parental é um sis-
tema motivacional multidetermina-
do e que a abordagem evolucio-
nista pode trazer contribuições sig-
nificativas para se ter uma com-
preensão mais holística e heurísti-
ca sobre o assunto.
Palavras-chave: Comportamento
parental, sistema de acasalamento,
Psicologia Evolucionista, investimen-
to parental, responsividade parental.
fferences in the care of children
exist and the role of parents can
be considered complementary; b)
that the father has an important
role in child development; c) that
there exists a relationship betwe-
en mating systems and parental
investment (mammalian care for
descendants is generally linked to
the possibility of emotional and
sexual bonding with the female)
and finally, e) that it is necessary
to create and to define terms that
reflect different dimensions of pa-
rental behavior. In conclusion, pa-
rental behavior is a multi-determi-
ned motivational system and an
evolutionary perspective can bring
significant contributions toward a
more holistic and heuristic unders-
tanding of the subject.
Keywords: Parental behavior,
mating system, Evolutionary
Psychology, parental investment,
parental responsiveness.
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igualmente, qualquer habilidade socialmente aprendida possui uma base
biológica. Dessa forma, não se pretende esgotar o tema ou buscar todas
as facetas desta contenda e sim apresentar os principais pontos e princí-
pios relacionados aos cuidados parentais e ao desenvolvimento infantil
congruentes com a perspectiva teórica da Psicologia Evolucionista.
A perspectiva evolucionista admite a complexidade do comporta-
mento humano como resultado do desenvolvimento histórico que se ini-
ciou na filogênese e na ontogênese, que para o ser humano se desenvol-
veu do mesmo modo na história da cultura (LORENZ, 1973). A cultura
se apresenta assim como usos e costumes que são transmitidos pelos
ancestrais (ambiente social) ou pela educação institucional e que procu-
ra também sua melhor forma, ou seja, o incremento cultural é resultado
de uma tentativa de adaptação do ser humano às dificuldades do meio.
Skinner (1998) nos auxilia neste sentido quando afirma que:
Assim como as características genéticas que sur-
gem como mutações são selecionadas ou rejeita-
das por suas conseqüências, também as novas for-
mas de comportamento são selecionadas ou
rejei-
tadas pelo reforço. [...] O grupo adota um dado
procedimento – um costume, um uso, um instru-
mento controlador – seja planejadamente ou atra-
vés de algum evento que, na medida em que se
refira ao efeito sobre o grupo, pode ser inteira-
mente acidental. Como características do ambi-
ente social essa prática pode afetar o sucesso do
grupo na competição com outros grupos ou com o
ambiente não social (Skinner, 1998, p. 467-468).
Para este renomado pesquisador do comportamento animal e hu-
mano, a cultura é composta de todas as variáveis que afetam o indiví-
duo e que são dispostas pelas outras pessoas. O ambiente social, em
parte, é o resultado dos procedimentos do grupo para solucionar difi-
culdades do ambiente inanimado e social que geram comportamento
ético, e a extensão destes aos usos e costumes. O indivíduo, ao entrar
em contato com grupos ou instituições (escolas, governos e religiões,
por exemplo) que reproduzem estes procedimentos, passa a desempe-
nhá-los, uma vez que os padrões comportamentais de uma dada comu-
nidade são mais prováveis de serem reforçados, se deixarem passar
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sem reforço ou serem punidos. Dessa forma, o efeito de um ambiente
social no comportamento pode ser inferido por meio da análise do con-
texto em que o indivíduo se encontra.
A família, em geral, é o primeiro ambiente social em que uma pes-
soa é inserida, e muitas vezes é através dela que a criança, inicialmente,
entra em contato com diferentes grupos e instituições sociais. Durante o
desenvolvimento físico e psicológico, para atingir a idade adulta, o ser
humano, por ser dependente e imaturo em seu estágio inicial, necessita
de cuidados e da presença de adultos que forneçam as condições de
sobrevivência. Isto é geralmente propiciado pela família, que pode apre-
sentar diferentes disposições, sendo que cada membro daquela apresen-
ta peculiaridades no modo de agir.
Comparados com outros primatas, o ser humano leva uma quan-
tidade desproporcional de tempo para atingir a maturidade reprodutiva.
Passa mais tempo sendo dependente dos adultos do que qualquer outro
animal e é a única espécie que continua a cuidar da alimentação de
seus descendentes até mesmo após o período de imaturidade, como
por exemplo, durante a adolescência (BJORKLUND, 1997). O bene-
fício associado com o alto custo de um longo período de imaturidade
pode ser um artifício necessário para o efetivo domínio das complexi-
dades da comunidade social humana. À medida que a duração e a
quantidade dos cuidados parentais aumentam, o comportamento pode
ser cada vez mais desenvolvido por meio da aprendizagem. No período
de infância, em que a criança não possui grandes responsabilidades e é
tutelada por um adulto, ela tem a liberdade para explorar o ambiente,
experimentar papéis, adquirir habilidades e conhecimentos que a auxi-
liará quando não houver ninguém para observá-la ou ajudá-la. Este
conhecimento e a experiência adquiridos podem representar o quão
adaptada e hábil a criança será para interagir em uma sociedade com-
plexa (LINTON, 1976; BJORKLUND, 1997).
Na sociedade ocidental do final do século XX e início do século
XXI ocorreram grandes modificações na organização familiar. Além
da família nuclear, constituída de mãe, pai e filhos, os membros desta
passaram a assumir diferentes atribuições e responsabilidades que an-
tes eram compreendidas como normativas do comportamento de um
dos progenitores somente, como o cuidado com higiene e alimentação,
atividade exercida essencialmente pela mãe. Em termos de legislação,
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Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
a partir de 11 de janeiro de 2003 entrou em vigor no Brasil o novo Código
Civil, que procura adequar a legislação às transformações sociais e polí-
ticas. A compreensão de família presente no novo Código modificou-se
significativamente, o objetivo destas alterações foram no sentido de re-
fletir a igualdade entre homens e mulheres, o que já vem ocorrendo no
cotidiano. Por exemplo, no novo Código a mulher não terá prioridade
para ficar com a guarda dos filhos em caso de separação ou divórcio; a
custódia dos filhos será atribuída ao membro do casal que revelar melho-
res condições de exercê-la. Contudo, esta igualdade de direitos é por
vezes entendida como igualdade de papéis. Fica subentendido que o pai
deveria agir da mesma forma que a mãe – e vice e versa – no papel de
cuidador. Exigem-se dos progenitores comportamentos e responsividade
semelhantes em relação aos filhos. No entanto, a modificação de uma lei
não altera a forma de interação entre as pessoas e a compreensão que
elas possuem sobre a dinâmica familiar.
Segundo Klaus e colaboradores (2000), seria errôneo pensar que
pais e mães possuem papéis iguais. Apesar das mudanças em nossa
sociedade, as atribuições de pai e mãe são distintas. Os esforços dos
progenitores teriam que ser no sentido de “combinar” responsabilida-
des em relação aos filhos buscando uma “co-paternidade”. Ou seja, as
diferenças deveriam ser encaradas como complementares. O pai me-
rece atenção especial para investigação científica, não como reflexo
ou substituição da mãe, mas sim como relevante para o desenvolvi-
mento da criança. Nessa perspectiva, o que se espera do estudo do
comportamento parental é uma análise da complementaridade entre
pai e mãe, pois sem esta precaução não será obtida uma imagem ade-
quada da dinâmica familiar.
Pai, mãe e desenvolvimento infantil
O estudo sobre a importância do pai no desenvolvimento da crian-
ça teve um impulso especial com a publicação do livro de Michael E.
Lamb, em 1976, intitulado: Papel do pai no desenvolvimento infantil3.
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3
 Tradução do título do livro organizado por Michael E. Lamb The role of the father in child
development publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1976 e que foi reeditado
mais duas vezes, sendo a última em 1997, na qual conta com novas pesquisas sobre a
atuação do pai no desenvolvimento infantil e na dinâmica familiar.
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318 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
Os autores que participaram da primeira edição do livro abordaram a
relação pai-criança e a influência paterna no desenvolvimento infantil.
Quando o livro foi publicado, segundo Lamb (1997a), cientistas sociais
em geral, e alguns psicólogos do desenvolvimento, em particular, duvida-
vam que o pai tivesse um papel significativo para as experiências e o
desenvolvimento da criança, especialmente para as filhas. Até então o
pai era considerado somente relevante como modelo do papel de gêne-
ro4 para o filho homem (LAMB, 1997a; ROHNER e VENEZIANO,
2001), o que poderia ser substituído por modelos sociais apresentados na
mídia ou na observação do outros homens adultos. O objetivo dos auto-
res do livro era demonstrar que o pai: a) tem papel importante no desen-
volvimento infantil; b) é freqüentemente relevante na vida das crianças;
e c) afeta o curso do desenvolvimento de suas crianças tanto de forma
positiva como negativa (Lamb, 1997a).
A segunda edição do livro, publicada em 1981, possui como princi-
pal contribuição o reconhecimento da complexidade do comportamento
do pai, ser este multideterminado, e de muitos dos modelos de influência
paterna serem indiretos além da construção social da paternidade variar
entre épocas históricas, contextos e subculturas. A terceira edição se
diferencia das anteriores quando procura, além de estudar a díade pai-
criança, investigar o lugar do pai no contexto do sistema familiar e nos
subsistemas no
qual este se relaciona, como sua atitude com a mãe e
parentes, que são também de importância crucial para o desenvolvimen-
to infantil (LAMB, 1997a).
O pai pode atuar em múltiplos papéis significativos para sua crian-
ça, assim como para o sistema familiar por meio de funções como: com-
panheiro, cuidador, provedor financeiro, cônjuge, modelo, guia moral e
professor. Em todos estes papéis o pai possui uma relativa importância e
impacto sobre o desenvolvimento infantil. Contudo, ao longo da história o
pai assumiu, a cada período ou época, um papel proeminente (LAMB,
1997a). No início, o pai era visto como o patriarca que exercia enorme
poder sobre a família e vestígios desta noção têm sobrevivido até muito
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4
 O ser humano, de modo geral, adquire um firme senso de si mesmo como sendo homem ou
mulher; este desenvolvimento é chamado de identidade de gênero. Na maioria das culturas
existe um conceito sobre a diferença biológica entre masculino e feminino, que é expandido
por uma série de crenças e práticas de como devem se comportar homens e mulheres, que
papéis devem assumir, ou características de personalidade devem possuir “apropriadamente”.
Estas características são adquiridas por identificação, segundo a Psicanálise, ou por recom-
pensas e punições, segundo a teoria da aprendizagem social (ATKINSON et al., 1995).
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recentemente (PLECK e PLECK 1997). De acordo com esses autores,
durante a fase colonial da história da América do Norte, o pai era perce-
bido, principalmente, como guia moral (professor).
No senso comum, o pai era responsável por assegurar que suas
crianças crescessem com um senso apropriado de valores, adquirissem
o estudo da Bíblia ou outros textos espirituais. Com a industrialização,
entretanto, o primeiro foco de mudança, do original chefe da moral, foi
para o de suporte econômico da família. Por conseguinte, talvez como
resultado da Grande Depressão ou quebra da bolsa de valores nos Esta-
dos Unidos, que causou grande recessão econômica – o qual mostrou
que muitos homens poderiam ser provedores pobres –, os cientistas so-
ciais passaram a descrever o pai como modelo do papel sexual. Daí em
diante passou-se, também, a expressar interesse sobre a falha de muitos
homens como modelo de comportamento masculino para seus filhos.
Durante todo século XX os pais eram questionados a serem mais envol-
vidos com suas crianças. Assim, no segmento feminista que estudava
sobre masculinidade e feminilidade emergiu, na década de 1970, uma
nova atribuição para o pai, o de educador que teria um papel ativo na
vida, tanto de filhas como de filhos (LAMB 1997a,b).
Cada papel está associado com um ou mais modos distintos de
influência sobre a criança. Seguramente, o suporte financeiro é visto
como elemento-chave e como o principal papel atribuído ao pai em mui-
tos segmentos sociais (BARNETT e BARUCH, 1998); mesmo onde os
dois progenitores contribuem financeiramente para o sustento da família,
ele é percebido como o principal provedor, o que é confirmado ao cons-
tatarmos a contínua disparidade entre o salário de trabalhadores homens
e mulheres. O suporte econômico da família constitui um indireto, porém
importante meio no qual o pai contribui para a criação e saúde emocional
de suas crianças (LAMB 1997a).
Uma segunda, mas importante, fonte indireta de interferência é o
papel do pai como suporte emocional para outras pessoas, principalmen-
te a mãe, que se mantém envolvida no cuidado direto com a criança
(PARKE et al., 1979 apud LAMB, 1997a,b). Quando o pai funciona
como fonte de suporte emocional, ele tende a aumentar a qualidade de
relação mãe-criança e, dessa forma, facilitar o ajustamento social “posi-
tivo” em oposição, quando o pai não atua como suporte, e há alto grau de
conflito conjugal, as crianças podem sofrer de desajuste social (CUM-
MINGS e O’REILLY, 1997).
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320 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
A disponibilidade física do pai pode, segundo Veneziano (2003),
servir para a proximidade e a qualidade da relação pai-criança. Contu-
do, o comportamento “caloroso” é que vai influenciar de forma dife-
renciada o desenvolvimento infantil. O autor investigou diferentes cul-
turas ocidentais, e, ainda que a socialização para agressão estivesse
significativamente relacionada como baixo nível de afeto e calor pater-
no, houve uma correlação negativa quando havia interação afetuosa e
calorosa do pai com a criança, e a expressão de comportamentos agres-
sivos e delinqüentes.
O envolvimento paterno ou a participação do pai no desenvolvi-
mento infantil não é somente definido em termos de contato físico dire-
to, mas é conceituado em termos de: (1) interação, ou seja, o tempo
que o pai gasta com suas crianças; (2) acessibilidade, que é o tempo
gasto em atividades que possuam implicações para a criança, como
trabalho doméstico; (3) responsabilidade, ou seja, o quanto o pai se
envolve e assume o encargo de atividades que fazem parte da rotina
da criança, como levar ou buscar na escola (LAMB, 1997b; PLECK,
1997; LEWIS e DESSEN, 1999).
O desenvolvimento do conceito de envolvimento paterno esteve
relacionado com sua operacionalização, elaboração e divulgação meto-
dológica e conceitual, o qual refletiu as mudanças sociais e metodo-
lógicas que ocorreram durante sua elaboração. As mudanças sociais
se referem às pressões sobre a paternidade que emergiram nos anos
de 1980 e contextualizaram pesquisas que tinham como propósito ve-
rificar se crianças estavam obtendo suficiente paternagem5 e se pais
estavam reduzindo suficientemente a sobrecarga do cuidado das crian-
ças sobre as mães trabalhadoras. As mudanças metodológicas eram
fornecidas pela disponibilidade de um novo tipo de dado: provenien-
tes de “diários” no qual a coleta de informações se restringe à passa-
gem do tempo ou a uma amostra de extensão de um tempo provável.
Esta metodologia caiu em desuso e outros pesquisadores começaram
a coletar informações do uso do tempo simplesmente solicitando aos
respondentes para estimarem o seu tempo em cuidado das crianças e
outras atividades (PLECK, 1997).
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 O conceito de paternagem pode ser definido como um conjunto de respostas dos pais diante
da solicitação da criança; são respostas carregadas de afeição, como conduzir a criança à
escola ou conduzi-la para a cama na hora de dormir.
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Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
Os estudos sobre a estimativa de engajamento e disponibilidade
variam amplamente porque cada um destes componentes pode ser
operacionalizado de forma minuciosa ou ampla, mensurar a relação exis-
tente entre o envolvimento do paterno e o envolvimento materno ou o
envolvimento paterno em termos absolutos e, ainda, distinguir as horas
nas quais o pai está disponível ou engajado em dias de semana e de final
de semana (PLECK, 1997). Segundo este autor, os estudos apontam
que os pais são mais engajados e disponíveis com crianças pequenas do
que com adolescentes, sendo as horas de final de semana privilegiadas
para a interação pai-criança.
A responsabilidade é compreendida como “disposição para cuidar
da criança” ao compartilhar as tarefas como: cuidados centrados na
criança e tarefas pré-escolares, atividades de cuidado da casa, etc. Os
estudos sobre responsabilidade indicam que o pai tem baixos níveis de
responsabilidade comparados com a mãe, e quando esta exerce ativida-
de remunerada, o pai apresenta maior disposição para o cuidado, sendo
mais provavelmente eleito para
assumir a responsabilidade pelas crian-
ças quando comparado com os avós (PLECK, 1997).
O estudo do envolvimento paterno tem demonstrado que diferen-
tes comportamentos expressos pelo progenitor masculino têm benefí-
cios diferenciados para o desenvolvimento infantil e para o sistema
familiar como um todo. O engajamento paterno positivo tem benefícios
para a criança e o pai, enquanto a disponibilidade e a responsabilidade
oferecem benefícios para a mãe, principalmente aquelas que exercem
atividade remunerada fora do domicílio (LAMB, 1997b; PLECK, 1997).
Assim sendo, ao propor investigar como pais e mães avaliam o com-
portamento de fato expresso de paternagem e aquele que é desejado
que ocorra, estaremos investigando também em quais aspectos os pro-
genitores sentem maior satisfação ao engajar-se no cuidado e na par-
ticipação no desenvolvimento da criança, no caso do pai, e maior su-
porte, no caso da mãe.
Em função dessa relação dinâmica entre a mãe e o pai, e a influ-
ência de um sobre o outro, pode-se supor que, em termos evolucioná-
rios, surgiram alguns mecanismos para fazer com que ambos os geni-
tores participassem do cuidado das crianças, uma vez que existem dife-
rentes interesses entre estes genitores ou cuidadores. Para a mulher, o
dispêndio para gerar novos descendentes é bem maior do que o homem,
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322 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
em função da gestação interna e da amamentação. Além disso, o perío-
do fértil da mulher está centrado na juventude, enquanto no homem não
existe um período tão demarcado. O próximo item procura explicar as
conseqüências dessa situação para os cuidados parentais.
Estratégias reprodutivas e investimento parental
Charles Darwin (1809-1882) propôs, por meio de seu livro A
origem das espécies, publicado pela primeira vez em 1871, a teoria
da descendência com modificação através da seleção natural, ou seja,
que os organismos vivos apresentam variações. Essa variabilidade é
transmissível por herança genética e selecionada pelas pressões
ambientais, o que resulta na sobrevivência dos organismos mais bem
preparados para interagir com o lugar onde vivem. Segundo o criador
da teoria da evolução: “A luta pela existência, [...] resultado determi-
na a preservação de cada desvio de estrutura ou de instinto que seja
útil para seu possuidor” (DARWIN, 1871/1985; p.347). Essa situa-
ção tem como conseqüência a busca constante por transmitir a carga
genética para o maior número de descendentes possíveis e a luta
pela sobrevivência da espécie.
Uma das formas de sobrevivência e de garantia de perpetuação
da espécie é gerar descendentes. As estratégias que o organismo uti-
liza para esta tarefa são descritas também por Darwin quando este
estabelece a dinâmica da reprodução sexual entre as espécies. A sele-
ção sexual, ao contrário da seleção natural, em que os indivíduos lutam
pela sobrevivência em si, vai depender das vantagens que certos indi-
víduos têm sobre outros indivíduos da mesma espécie e sexo em res-
tringir as relações para a reprodução. Assim, a seleção sexual é restri-
ta às características que estão diretamente ligadas e influenciadas pela
escolha por acasalamentos competição entre coespecíficos, sendo as
mais discutidas a competição macho-macho e a escolha da fêmea por
parceiros para acasalar (GEARY, 2000). Contudo, gerar descenden-
tes não é sinônimo de sucesso reprodutivo, pois, para garantir que um
certo número de descendentes sobreviva para a próxima geração, é
necessário algum dispêndio de energia, ou investimento de tempo, de-
dicação, recursos materiais, físicos e psicológicos dos progenitores no
cuidado e desenvolvimento da prole.
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O nível de desenvolvimento da prole ao nascer e o quanto esta
exigirá de energia durante o estágio inicial de seus progenitores são
uma relação complexa que foi analisada e discutida por Trivers (1972)
em sua teoria do investimento parental. O autor fundamentou suas
idéias na teoria da seleção sexual de Charles Darwin. A principal idéia
presente na teoria é que machos e fêmeas se comportam de maneira
distinta quanto ao investimento na progênie ou na procura por parcei-
ros, com o objetivo de promover seu sucesso reprodutivo individual,
dependendo de características físicas da dinâmica sexual reprodutiva
de casa espécie como: tempo para início e término de um ciclo repro-
dutivo, número e tamanho das células reprodutivas, postura dos ovos,
tempo de gestação ou incubação, número de embriões por gestação,
etc. Deste modo, existiria um equilíbrio entre investimento parental e
estado inicial de desenvolvimento, assim como entre o esforço no aca-
salamento, que compreende todo dispêndio de tempo na procura de
oportunidades reprodutivas e, esforço no cuidado da prole, ou seja,
toda forma de cuidado direcionada para a descendência, o qual exige
um custo energético aos progenitores (TRIVERS, 1972; BJORKLUND,
1997; MARLOWE, 2000; HRDY, 2001).
O investimento parental subtrai energia disponível de outro foco,
inclusive uma gestação futura, sendo que tal dispêndio de energia no
desenvolvimento dos filhotes subtrai do esforço no acasalamento. Assim
sendo, o quanto é investido no acasalamento versus cuidado parental irá
variar entre espécies e entre fêmeas e machos dentro de cada espécie,
dependendo das características de desenvolvimento dos filhotes, das
condições ecológicas presentes no ambiente. (TRIVERS, 1972;
BJORKLUND, 1997; MARLOWE, 2000; HRDY, 2001). Quando um
animal apresenta maior investimento de energia no cuidado da sua prole,
possui uma estratégia reprodutiva chamada de esforço no cuidado da
prole ou investimento parental. Por outro lado, se os gastos energéti-
cos forem alocados somente na procura por um parceiro, este é chama-
do esforço no acasalamento.
O comportamento parental inicia-se no momento da fertilização,
sendo seqüência do comportamento reprodutivo, que inclui estabelecer e
definir território, o cortejamento e a cópula, e continua na gestação, segue
com o nascimento, modifica-se ao longo do desenvolvimento e inclui vários
comportamentos como: produção de gametas (com reservas nutritivas),
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324 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
transferência de nutrientes aos embriões, preparação de locais apropria-
dos para postura, defesa contra predadores, regulação térmica, alimen-
tação (antes e após o nascimento), e cuidados durante a infância e a
adolescência, como a defesa contra membros da mesma espécie e ga-
rantir aos filhotes acesso a fontes de alimentos (BROWN, 1998; TOKU-
MARU, 1998). Dessa forma, o cuidado parental pode ser realizado por
qualquer um ou ambos os pais, e vai variar de acordo com o sistema de
acasalamento de cada espécie.
A estratégia reprodutiva de um indivíduo e como este procura
sobreviver às pressões ambientais evolvem diferentes elementos que
devem estar em equilíbrio. Para compreender este ponto de equilí-
brio se deve, segundo os teóricos evolucionistas, buscar os funda-
mentados na teoria da evolução (DARWIN, 1871/1985). Estes con-
sistem em: a) ganhar acesso e controle de recursos que sustentam a
vida, ou seja, garantir a integridade física6 por meio do esforço so-
mático, que compreende todo investimento de um organismo para
seu crescimento, desenvolvimento e manutenção e, deste modo, acu-
mular potencial reprodutivo; b) a procura e a disputa por parceiros
reprodutivos aptos a procriar em um esforço no acasalamento7; e
ainda c) o esforço parental necessário para a progênie atingir a
maturidade suficiente para sobreviver sozinha, o
que está relaciona-
do com o tamanho da prole, já que uma progênie grande aumentaria
o sucesso reprodutivo, desde que não esteja acima das condições
físicas do progenitor ou dos recursos oferecidos pelo ambiente; uma
prole pequena e de boa qualidade seria mais adequada quando as
condições do progenitor e os recursos do ambiente fossem limitadas
(VOLAND, 1998; GEARY e FLINN, 2001; HRDY, 2001). Todos
estes aspectos recaem sobre a boa forma (fitness) e o sucesso re-
produtivo de um indivíduo, que por vezes deve realizar trocas, ou
seja, avaliar o custo e o benefício de investir maior energia em um
aspecto do que em outro para manter o equilíbrio e sobreviver às
pressões ambientais (falta de recursos, processo degenerativo do
organismo, variações climáticas, variações sociais, etc.).
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 Princípio da seleção natural – sobrevivência do melhor adaptado às pressões
ambientais atuais.
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 Princípio da seleção sexual – consiste em o quanto certos indivíduos obtêm vantagens sobre
outros da mesma espécie e sexo, seja através de dominância, seja da competição, cujo
objetivo é restringir as relações para a reprodução.
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O principal benefício de muitas formas de cuidado parental para
o progenitor que cuida consiste na criação, no crescimento e na sobre-
vivência da prole. Entre os mamíferos existe uma grande variedade de
padrões de comportamento parental, que podem ser classificados em
função do grau de desenvolvimento dos filhotes ao nascer (ROSEN-
BLATT, 1992). Em algumas espécies de mamíferos o período de ges-
tação é curto, e o filhote nasce bastante prematuro, com o sistema
termo-regulador e sensorial pouco desenvolvido, sendo incapaz de se
alimentar sozinho. Essas espécies são chamadas de altriciais e incluem
roedores, primatas e marsupiais. Nestes casos, os cuidados parentais
são de vital importância para a sobrevivência dos filhotes. Por outro
lado, há espécies em que o período de gestação é longo e os filhotes
nascem com visão, audição, sistema termo-regulador e motor bem de-
senvolvidos (por exemplo, eqüinos e bovinos), sendo chamados de pre-
cociais. Nestes, os cuidados parentais são importantes, embora com
menor dispêndio de energia do que em relação ao grupo anterior.
O nível de desenvolvimento do filhote ao nascer (altricial ou
precocial) pode também estar correlacionado com diferentes siste-
mas de acasalamento (ZEVELOFF e BOYCE, 1980). Para estes
autores, a monogamia, em mamíferos, estaria correlacionada como o
modelo altricial por apresentar maiores oportunidades de o macho
investir em indivíduos aparentados geneticamente. Neste sistema de
acasalamento o macho poderia contribuir para a sobrevivência da
prole por desenvolver sua habilidade nesta tarefa. Por outro lado, a
poliginia estaria correlacionada ao modelo precoce e alto investimen-
to maternal. Os autores argumentam que, no caso do ser humano,
embora o sistema matrimonial não seja claramente definido, decor-
rente da grande variedade de costumes, do dimorfismo sexual e da
grande variedade do sucesso reprodutivo do macho, eles o classifi-
cam como monogâmico e altricial. Isso pode ser devido à tentativa
de equiparar investimento parental do homem e da mulher, assim como
o esforço para garantir a paternidade.
O investimento parental tem sido considerado responsável pela
evolução do casamento monogâmico (MARLOWE, 2000). Contudo,
preservar o acasalamento pode ser uma variável importante para a ex-
pressão do investimento paterno, o que resulta, por sua vez, em um siste-
ma monogâmico socialmente imposto. Para espécies de mamíferos,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
326 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
a gestação interna e o período de amamentação resultam em uma menor
taxa reprodutiva para fêmeas comparadas com os machos. As fêmeas
nem sempre estão sexualmente disponíveis ou aptas para uma gestação.
Logo, os machos podem se beneficiar, reprodutivamente, procurando e
obtendo acasalamentos adicionais.
O esforço no acasalamento envolve competição física para o esta-
belecimento da dominância social e, através desta, o acesso a múltiplos
parceiros. Deste modo, o macho mais dominante aumenta seu sucesso
reprodutivo comparado com um subordinado. O tamanho físico é um
indicador de competição macho-macho e de um sistema de acasalamen-
tos poligínico, no qual um macho monopoliza o maior número de fêmeas
possíveis. O reduzido ou moderado dimorfismo sexual sugere mudanças
na natureza da competição macho-macho (por exemplo: competição entre
“coligações” relacionadas através de laços de parentesco), decréscimo
em acasalamentos poligínicos e correspondente aumento no investimen-
to paterno (GEARY, 2000; MARLOWE, 2000; GEARY e FLINN, 2001).
O panorama evolucionista apresentado sobre estratégias reprodu-
tivas e investimento parental indica que existe algum grau de determina-
ção biológica nesses sistemas motivacionais para que pudessem ser se-
lecionados. Além da influência genética, mecanismos neuroendócrinos
também estão presentes no comportamento parental, sem, no entanto,
deconsiderar o ambiente onde o animal ou o ser humano está inserido.
Regulação neuroendócrina e ambiental do cuidado parental
Os mecanismos envolvidos no comportamento paterno, segundo
Brown (1993), podem envolver mudanças neuroendócrinas ativadas
por estímulos vindos da fêmea e dos filhotes. Segundo o autor citado
anteriormente, estudos com roedores sugerem que a cópula pode indu-
zir mudanças hormonais que alteram respostas do macho aos filhotes,
mesmo na ausência da fêmea. Se o macho coabita com a fêmea que
acasalou durante a gestação, os odores e o comportamento agressivos
advindos dela podem produzir mudanças neuroendócrinas que inibem
a agressão do macho aos filhotes e facilitam o comportamento pater-
no. No parto, a ativação do cuidado paterno pode ser estimulada pela
copulação com fêmeas durante o estro pós-parto e continuada exposi-
ção a estímulos olfativos da fêmea e dos filhotes.
Alessandra Bonassoli Prado e Mauro Luís Vieira — 327
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
Gray e colaboradores (2002) estudaram correlatos hormonais do
ajuste entre esforço no acasalamento e no cuidado parental em homens.
Os autores examinaram o nível de testosterona na saliva e investigaram,
por meio de questionário, aspectos sobre moradia, relações conjugais e
organização do cuidado parental, de 58 homens divididos em três grupos:
solteiros, casados sem filhos e casados com filhos. Não foram encontra-
das diferenças significativas entre os três grupos estudados. Entretanto,
verificou-se que homens que despendiam mais tempo “investindo nas
esposas”, ao final do dia de trabalho, tinham baixos níveis de testostero-
na. Assim, os autores sugerem que o baixo nível de testosterona pode
facilitar o cuidado paternal humano e diminuir a probabilidade que ho-
mens se engajem em comportamentos de acasalamento competitivo.
Storey e colaboradores (2000) procuraram verificar se a proximi-
dade física de casais “grávidos” poderia “preparar o homem para a pa-
ternidade”, já que sintomas de gravidez em homens (couvade) são co-
muns em culturas que apresentam cuidado parental e alto nível de intimi-
dade entre casais. Os autores mediram, em pais recentes e candidatos a
pai que viviam com suas parceiras, a concentração hormonal e as res-
postas a figuras de bebês e pistas auditivas, visuais e olfativas de bebês
recém-nascidos (teste de estimulação de reatividade). Foi notado que
homens e mulheres tinham diferenças similares em níveis hormonais,
incluindo aumento da concentração de prolactina e diminuição na con-
centração
de esteróides sexuais (testosterona e estradiol). Do mesmo
modo, os homens que apresentavam mais sintomas grávidos (couvade)
e os homens que eram mais afetados pelo teste de reatividade a bebês
tinham alto nível de prolactina e reduções maiores de testosterona.
A influência exercida pela proximidade com uma mulher foi estu-
dada por Anderson e colaboradores (1999), que investigaram se existe
correlação entre a situação conjugal atual de homens e a quantidade de
investimento paterno. Os autores sugerem que fornecer cuidado para a
criança pode ser considerado uma forma de esforço no acasalamento,
se aumentar a probabilidade que o homem tem de permanecer com a
mãe das crianças ou aumentar a qualidade de seu relacionamento. No
estudo foi mensurado o investimento em educação formal, “mesadas” e
horas semanais em contato com a criança. Os testes realizados foram,
segundo os autores, consistentes com o papel do “esforço na relação”
atual para o cuidado paterno. Os homens investiram mais em crianças
de seu casamento atual.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
328 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
Hrdy (2001) apresenta uma série de estudos culturais e compara-
tivos para demonstrar que o comportamento parental não é automatica-
mente desencadeado. Assim sendo, o contexto histórico e ecológico tem
uma importante implicação sobre o modo como as mães avaliam quais
as perspectivas de seus bebês e as alternativas que ela deve escolher.
O abandono está, antes, num dos extremos de um
contínuo que se estende entre o fim do investimen-
to e o compromisso total de uma mãe que carrega
seu bebê para todo o lado e o amamenta toda vez
que ele pede. O abandono é, por assim dizer, o
modo de uma mãe terminar o seu investimento por
omissão ou deserção (HRDY, 2001, p.317).
Apesar dos aspectos biológicos do cuidado parental, assinalado
durante o século XIX e começo do século XX como um “instinto natu-
ral” de dedicação dos pais ser apresentado, em alguns momentos, como
um discurso coercivo para cuidar dos seus bebês, a autora anteriormen-
te citada argumenta que entender as bases biológicas da ativação do
comportamento parental é essencial para compreender a expressão ou a
deserção deste. Por outro lado, embora existam diferentes orientações
teórico-metodológicas para explicar o comportamento parental, uma das
necessidades básicas na área de estudo é a definição de termos.
Responsividade parental e outros termos
O conceito de responsividade tem sido destaque na Psicologia
principalmente, para o estudo do desenvolvimento infantil, e é, em ge-
ral, associado ao estilo de cuidado materno. O termo responsividade
não é consenso entre os autores. Ribas e colaboradores (2003), com o
propósito de apresentar um panorama de como este conceito é apre-
sentado, realizaram um levantamento bibliográfico com base em dados
nacionais e internacionais. Os autores verificaram que este tema vem
sendo investigado principalmente nos campos da Psicologia do Desen-
volvimento e da Psicobiologia, e 38% dos estudos foram conduzidos
com animais e procuraram avaliar aspectos biológicos (níveis hormo-
nais, lesões celebrais e efeito de drogas, etc.) e da experiência anterior
(efeitos do contato e da separação mãe-filhote e gestações anteriores);
Alessandra Bonassoli Prado e Mauro Luís Vieira — 329
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
os outros 62% foram realizados com seres humanos e vinculados ao
estudo de diferentes aspectos que podem intervir na responsividade
materna, entre eles, “apego e cultura”.
A teoria de apego tem sido freqüentemente associada ao estudo
sobre responsividade (RIBAS et al., 2003). BOWLBY (1990) postulou
que os primatas, mais especificamente os bebês humanos, possuem uma
necessidade inata de apegar-se a uma figura primária nos três primeiros
anos de vida, da qual o bebê se esforça para permanecer perto o tempo
todo. O apego seguro, necessário para um adequado desenvolvimento,
irá dependerá da responsividade (ou sensibilidade) contingente dos pais
em relação ao bebê, que é compreendida como a capacidade de o adulto
cuidar e mostrar-se sensível aos sinais e gestos do bebê. Hrdy (2001)
questiona a “natureza inata” da formação do apego e a incondicional
disponibilidade da mãe em fornecer os cuidados primários, apresentando
aspectos da teoria evolucionista referentes às leis de Hamilton, e o poten-
cial conflito entre os interesses entre investimento paterno e o investimen-
to reprodutivo proposto por Trivers, como foi apresentado anteriormente.
A discussão sobre responsividade inclui, dessa forma, alguns as-
pectos como a ação das crianças, a ação dos pais e o reflexo desta sobre
a criança. O que envolve, segundo Ribas e colaboradores (2003), duas
principais dimensões, uma temporal e outra qualitativa. Na primeira é
considerada a contingência de resposta, ou seja, o quanto as ações do
bebê vão ser contingentes da resposta de cuidado apresentada pelos
pais. No caso da dimensão qualitativa estão incluídas características como
calor afetivo, proximidade e intimidade, as quais em geral remetem ao
afeto. Os autores ressaltam que estas duas dimensões podem ser retra-
tadas tanto como dependentes quanto independentes. A independência
entre os diferentes comportamentos parentais, o que define responsivi-
dade, pode, segundo Keller e colaboradores (1999, apud RIBAS et al.,
2003), favorecer uma melhor compreensão das variações transculturais
e individuais do comportamento parental.
Os pesquisadores de abordagem evolucionista apresentam especi-
al atenção ao estudar a estrutura de um comportamento para a forma
como este é apresentado e a sua função. Assim, os cuidados parentais
podem estar diretamente relacionados com a ação da criança (por exemplo,
em resposta ao choro), ou ainda, não estar diretamente relacionados ao
comportamento da criança, mas promover o seu bem-estar (por exemplo,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
330 — Bases biológicas e influências culturais relacionadas ao comportamento parental
atentar para o ambiente físico em que ela se encontra colocando um
anteparo para protegê-la do Sol). Além disso, diferir de uma outra classe
de comportamentos que caracterizam como interação social, que pode
ser lúdica, carinhosa, instrutiva, entre outras.
Entretanto, é necessário esclarecer a diferença entre cuidado
parental e investimento parental. O primeiro se refere às ações es-
pecificamente a “[...] qualquer comportamento que aumente a aptidão
dos filhotes” (CLUTTON-BROCK, 1991), sendo aptidão entendida
por aumento da sobrevida dos filhotes. Ao passo que o investimento
parental é considerado todo dispêndio de energia na reprodução, consi-
derando não apenas o comportamento, mas todos os custos para o
organismo (TOKUMARU, 1998).
A sensibilidade e a responsividade para os sinais da criança se
apresentam de forma distinta entre homens e mulheres. Esta diferen-
ça, segundo Lamb (1997), não se explica exclusivamente com base
nas diferenças biológicas, mas emerge das pressões e expectativas
sociais. Principalmente aquelas advindas da mãe, uma vez que os pais
são considerados mais envolvidos na interação com seus bebês quan-
do eles são altamente engajados na interação com seus pares. O en-
volvimento do pai com o cuidado da criança depende de como o confli-
to de interesses, ou as expectativas entre pais e mães são coincidentes
ou não. O estudo de como pais e mães avaliam o cuidado paterno pode
auxiliar na compreensão do que homens e mulheres atribuem ser ca-
racterístico do papel do pai e de onde se apresentam mais evidentes as
divergências deste.
Considerações finais
Através do que foi apresentado ao longo desse texto, procurou-
se apresentar evidências científicas sobre a multideterminação
dos cui-
dados parentais, de modo geral e, do comportamento paterno, de modo
específico. Tanto as influências históricas e sociais como as bases bioló-
gicas (estas devem ser entendidas como predisposições ou manifesta-
ções físicas de um comportamento) são importantes para modular o
comportamento do pai em relação aos seus filhos, em curto e em longo
prazo. É importante salientar que não estamos propondo criar um
modelo de pai com base nas evidências apresentadas e discutidas.
Alessandra Bonassoli Prado e Mauro Luís Vieira — 331
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.313-334, outubro de 2003
Na perspectiva evolucionista pode-se argumentar que é natural o distan-
ciamento do pai e da criança, pelo fato de que nem sempre é possível
determinar com exatidão quem é pai. Também em termos históricos po-
der-se-ia argumentar que o papel mais preponderante do pai é o de pro-
vedor da família e que a vinculação afetiva teria papel secundário.
No entanto, por meio dos estudos mencionados aqui, constata-se
que o pai pode ter papel decisivo no desenvolvimento infantil e que
existe relação entre o comportamento materno e o paterno. Um mode-
lo para explicar como ocorre essa dinâmica entre mãe, pai e filhotes
em roedores é apresentado por Vieira (2003). A modulação do com-
portamento materno está mais vinculada com as pistas somatossenso-
riais advindas dos filhotes. O comportamento do pai em relação aos
filhotes sofre interferência da mãe, o que comprova a ligação entre
cuidados parentais e vinculação sexual com a fêmea. No caso do ser
humano, essa relação foi apresentada no item sobre sistemas de aca-
salamento e investimento parental.
Esse raciocínio tem como pressuposto básico a teoria da evolução,
que explica a sobrevivência diferencial dos indivíduos e, conseqüente-
mente, da espécie. Contudo, fatores psicológicos e socioculturais tam-
bém devem ser considerados para explicar diferenças individuais no cui-
dado em relação aos filhos. Portanto, o mérito da abordagem evolucio-
nista é apresentar uma proposta original e diferente em comparação
com a tradição em Psicologia (que está centrada no indivíduo localizado
num momento histórico, social e cultural). Ao considerar a espécie, não
está se negando o indivíduo. Pelo contrário. A espécie tem sua expres-
são concreta no indivíduo. A integração entre as predisposições filoge-
néticas e as experiências individuais é o caminho que deve ser percorri-
do para que tenhamos uma compreensão mais ampla sobre por que e
como o comportamento parental se manifesta.
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(Recebido em janeiro de 2004 e aceito para
publicação em abril de 2004)
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias
reprodutivas dos pequenos primatas neotropicais*
Resumo
O sistema monogâmico de aca-
salamento é raro entre os mamífe-
ros. Entretanto, os calitriquídeos têm
sido considerados monógamos devi-
do à exibição de um conjunto de com-
portamentos que caracterizam este
sistema social. Vários estudos des-
critos neste artigo mostram que os
comportamentos exibidos pelo casal
modificam-se diante de três situa-
ções: tempo de pareamento, período
periovulatório da fêmea e nascimen-
to dos filhotes. Essas alterações com-
portamentais têm sido interpretadas
como formas alternativas de asse-
__________________________________________________
* Monogamous mating system and reproductive strategies of small Neotropical primates
1
 Endereço para correspondências: Rod. Haroldo Soares Glavan, 3522, casa 20, Cacupé,
88050-005, Florianópolis, SC (E-mail: sagui@cfh.ufsc.br).
Cristina Valéria Santos1
Universidade do Sul de Santa Catarina
Abstract
Monogamy is not common
in mammals, but some callithri-
chd species are regarded as mo-
nogamous due to behavioral dis-
plays of animals. In fact, many
findings reveal that the behavior
of male and female changes in
accordance to the pair-bond
time, ovulation and parturition.
The increased frequency of affi-
liative and sexual behavioral dis-
plays by recently paired animals
and between male and female
during the periovulatory phase
are essential for the formation of
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
336 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
gurar o sucesso reprodutivo do ca-
sal. A alta freqüência na exibição de
comportamentos afiliativos e sexuais
em casais recém-formados e duran-
te a fase periovulatória é essencial
para a formação da ligação do par e
garantir a fecundação da fêmea. As
relações sociossexuais modificam-se
também no final da gestação e ime-
diatamente após o nascimento dos
filhotes. O estreitamento das relações
afiliativas durante estas fases pode
assegurar a permanência e a assis-
tência do macho no cuidado paren-
tal, enquanto os machos aumentari-
am suas chances de uma nova re-
produção com sua parceira reprodu-
tiva. Como vários estudos têm suge-
rido que diferentes situações repro-
dutivas podem influenciar na expres-
são do comportamento do casal. É
proposto que tais variáveis devam ser
consideradas e controladas, principal-
mente naquelas pesquisas realizadas
com primatas criados em cativeiro.
Palavras-chave: Monogamia,
comportamento reprodutivo, cuida-
do cooperativo, calitriquídeos.
monogamous pairs and fecunda-
tion. Sociosexual relations chan-
ge at the end of gestation and im-
mediately after parturition. The
consolidation of the pair-bond re-
lations makes males more sus-
ceptible to exhibit parental care;
monogamous pair bond also fa-
vors males, since their reproduc-
tive performances may be incre-
ased due to new copulatory
opportunities. On the whole, may
studies have been demonstrated
that the behavior of male and fe-
male may be affected by many
types of variables; it has bee ar-
gued that such factors should be
taken in consideration in the stu-
dies of the behavior or primates
in captivity.
Keywords: Monogamy, reproduc-
tive behavior, cooperative infant
care, callitrichids.
Introdução
O sistema monogâmico de acasalamento ou o acasalamento entreum macho e uma fêmea durante uma ou várias estações
reprodutivas é extremamente raro entre os mamíferos. A observa-
ção de casais monógamos foi registrada em apenas algumas espéci-
es de roedores, canídeos e primatas (SNOWDON, 1990; CARTER
et al., 1993; ASA, 1997).
Cristina Valéria Santos — 337
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
Nas espécies de mamíferos nas quais a monogamia ocorre, de-
terminadas características comportamentais são normalmente obser-
vadas (KLEIMAN, 1977a). Podem ser citadas: a) constante proximi-
dade espacial do par, independente da condição reprodutiva da fêmea;
b) preferência por determinado (a) parceiro (a) durante a estação de
acasalamento; c) ausência de adultos não parentes no território defen-
dido pelo casal; d) exibição de agressão do par direcionado a adultos
que tentam imigrar para o grupo; d) reprodução de apenas um casal no
grupo familiar, resultando em muitos casos em famílias estendidas; e)
exibição da corte envolvendo pouco gasto energético do macho; f) pouco
ou nenhum dimorfismo sexual; g) participação ativa do macho repro-
dutor no cuidado com a prole.
Entretanto, Dewsbury (1987) apontou dificuldades na definição e
nacaracterização da monogamia entre os vertebrados, sugerindo que
dificilmente poderíamos provar sua existência nos animais. Para Dews-
bury (op. cit.) a monogamia pode ser identificada a partir de três crité-
rios: a exclusividade no acasalamento, a associação do par e a união
dos esforços do casal no cuidado parental. Entretanto, para Dewsbury
(op. cit.), a exclusividade no acasalamento abrange dois aspectos difí-
ceis de serem investigados. O primeiro é a certeza de que o par inves-
tigado mantém exclusividade sexual, pois cópulas furtivas muitas ve-
zes deixam de ser registradas, devido às dificuldades na observação de
determinadas espécies tanto na natureza como no semicativeiro. O
segundo aspecto refere-se à certeza da paternidade em relação à pro-
le. Quando se tem a possibilidade de utilizar marcadores genéticos,
muitas vezes o macho identificado como parceiro constante da fêmea
não é o pai genético de todos os filhotes.
O segundo critério, que define a monogamia – a associação “
prediz a existência de prolongada co-habitação entre um macho e
uma fêmea em particular, na qual ambos são normalmente observa-
dos utilizando o mesmo ninho ou toca, deslocam-se juntos e defen-
dem o território de forma conjunta. O terceiro e último critério prevê
que a união do par no cuidado parental ocorre quando a criação dos
filhotes se dá pelo casal.
Estudos com um pequeno roedor descrito como monógamo – o
vole-da-pradaria (Microtus ochrogaster) – têm mostrado, através da
utilização de testes de DNA, que em casais observados utilizando a
mesma área e com ativa participação do macho na criação dos filhotes,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
338 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
o macho muitas vezes não é o pai genético de todos os filhotes da ninha-
da (CARTER e GETZ, 1993). Assim, estudos que investigaram o com-
portamento sociossexual de espécies monógamas têm considerado a co-
habitação do par (ou a exclusividade social) como critério mais impor-
tante para a caracterização da monogamia, em vez da exclusividade no
acasalamento (CARTER e GETZ, 1993; DIXSON, 1997).
Entre os primatas do Velho Mundo o acasalamento de um único
par durante a estação de acasalamento parece se restringir às espécies
do gênero Hylobates (gibões e siamangos) e às espécies Cercopithe-
cus neglectus e Presbytis potenziani (macaco-de-Brazza e macaco-
do-peito-vermelho, respectivamente) (EVANS e POOLE, 1984; VAN
SCHAIK e DUNBAR, 1990; PALOMBIT, 1996).
Já pequenos primatas neotropicais – os calitriquídeos2 – além de
alguns Cebidae (Aotus spp:
macaco-da-noite e Callicebus spp: sauás),
têm sido considerados monógamos em função da exibição de um con-
junto de comportamentos característicos do sistema monogâmico de
acasalamento. Por exemplo, exibição de um padrão de ligação sociosse-
xual de longo prazo (EVANS e POOLE, 1984; SAVAGE et al., 1988;
SNOWDON, 1990; SCHAFFNER et al., 1995); cuidado cooperativo
dos filhotes, com participação ativa do macho reprodutivo (TARDIF et
al., 1990; PRICE, 1992; TARDIF, 1994; SANTOS et al., 1997; SAN-
TOS, 1998); agressividade dos dominantes em relação aos demais mem-
bros do grupo, especialmente entre fêmeas ou indivíduos que imigram
para o grupo (FRENCH e SNOWDON, 1981; ANZENBERGER, 1985;
FRENCH e INGLETT, 1989, 1991; EPPLE, 1990).
A ligação do casal na manutenção do bem estar–social do par
Se, por um lado, a co-habitação favorece a ligação sociossexual
do casal, a separação proporciona mudanças drásticas, tanto com-
portamentais como fisiológicas. Por exemplo, Smith e colaboradores
(1998) observaram que o estresse causado pela separação física do
casal no sagüi-de-tufo-preto-de-Wied (Callithrix kuhlii) poderia ser
menor caso um dos parceiros mantivesse contato visual com o outro.
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2
 A família dos primatas calitriquídeos compõe os menores representantes dos primatas
neotropicais e possui quatro gêneros: Leontopithecus (os micos-leões), Saguinus (os micos
Amazônicos), Callithrix (os sagüis) e o Cebuella (o saguizinho-leãozinho-da-Amazônia).
Cristina Valéria Santos — 339
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
Quando um dos sagüis era colocado em uma gaiola menor, mas com
visualização total do parceiro, os níveis de cortisol (hormônio utiliza-
do para medir o estresse) e de agitação do animal separado eram
menores que do animal colocado numa outra sala (em um novo am-
biente e sem a visualização do parceiro). Após a reunião, os casais
que foram privados do contato visual exibiram freqüências mais altas
de contato físico que aqueles que mantiveram contato visual durante
a separação.
Resultados semelhantes foram obtidos por Hennessy e colabo-
radores (1995) em um experimento bastante similar com Callicebus
moloch (macaco-do-crepúsculo). Além do aumento dos níveis de cor-
tisol, foi observado, ainda, que a separação física dos parceiros no
macaco-do-crepúsculo pode causar o aumento dos batimentos cardía-
cos no animal separado (CUBICCIOTTI e MASON, 1975). Esses
estudos sugerem a participação de mecanismos fisiológicos e com-
portamentais, que são disparados em função de alterações no ambi-
ente social – separação e reunião do casal – o que poder estar direta-
mente relacionado com a manutenção da ligação do par após situações
de estresse (ANZENBERGER, 1992; SMITH et al., 1998).
Os mecanismos fisiológicos e comportamentais para a manu-
tenção da reprodução de uma única fêmea no grupo
Estudos com primatas calitriquídeos têm tentado estabelecer uma
relação entre os altos custos reprodutivos da fêmea e aos fatores que
permitiram a evolução da monogamia. A grande proporção de nasci-
mentos de gêmeos, a alta relação de peso filhote/mãe (podendo che-
gar a 21% o peso dos gêmeos do sagüi-do-Nordeste , C. jacchus), e
a ausência de supressão da ovulação durante a lactação (que possibi-
lita uma nova gravidez poucos dias após o nascimento dos filhotes)
são alguns fatores que contribuem para os altos custos da reprodu-
ção nos calitriquídeos (LEUTENEGGER, 1973, 1979; HEARN, 1983;
TARDIF et al., 1984; SNOWDON et al., 1985; TARDIF, 1994).
Nos calitriquídeos, por exemplo, a fêmea reprodutiva amamen-
ta mais freqüentemente seus filhotes comparado às mães dos gêne-
ros Aotus (macaco-da-noite), Callicebus (sauá) e Callimico (ma-
caco-de-Goeldi), devido ao rápido desenvolvimento das crias, o que,
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
340 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
conseqüentemente, acarreta um aumento das taxas de transporte por
ela (TARDIF, 1994; GARBER e LEIGH, 1997). Estes autores pro-
põem que o rápido crescimento dos filhotes, em relação ao tamanho e ao
peso da mãe, tenha propiciado a evolução de um sistema social, no qual
vários indivíduos participariam na alimentação e no transporte da prole.
Assim, é provável que o sistema monogâmico de acasalamento e o
cuidado cooperativo dos filhotes (pelo pai e demais indivíduos do grupo)
tenham co-evoluído a partir do elevado custo energético dos cuidados
parentais. O sistema cooperativo propicia uma diminuição gradual do
transporte dos filhotes pela fêmea e na partilha de alimento pelos dife-
rentes indivíduos do grupo (SANTOS et al., 1997; observação pessoal).
A contribuição no cuidado dos filhotes pelos ajudantes tem sido
explicada com base na aptidão abrangente e seleção de parentesco (HA-
MILTON, 1964). Quando um indivíduo auxilia seus pais no cuidado paren-
tal de um irmão mais jovem, este pode estar garantindo tanto a sobrevi-
vência como o sucesso reprodutivo de indivíduos que possuem metade
de seus próprios genes, o que representaria um ganho indireto. Por outro
lado, quando um indivíduo passa pela experiência da aprendizagem do
cuidado, há um beneficio que pode ser medido pelo seu próprio sucesso
reprodutivo ou um ganho direto (CLEVELAND e SNOWDON, 1984;
TARDIF et al., 1984; SANTOS et al., 1997). Enquanto permanece no
grupo, o ajudante tem a chance de participar do cuidado dos filhotes em
sucessivas parturições.
A presença de filhotes recém-nascidos também parece ser res-
ponsável por provocar estimulação hormonal no macho reprodutivo, que,
por sua vez, influencia na expressão do cuidado parental (DIXSON e
GEORGE, 1982; ZIEGLER et al., 1996; SOUSA e MOTA, 1998; NU-
NES et al., 2000, 2001; ZIEGLER e SNOWDON, 2000). Entretanto,
quais mecanismos estariam atuando no adiamento da reprodução das
demais fêmeas do grupo? Ou quais estratégias são utilizadas pela fêmea
reprodutiva para garantir apenas sua própria reprodução?
Uma característica marcante dos primatas calitriquídeos é a su-
pressão hormonal ou inibição da reprodução das demais fêmeas do gru-
po imposta pela fêmea reprodutora. A inibição da ovulação ou a exibição
de ciclos ovarianos irregulares parece ser importante fator para a manu-
tenção de uma única fêmea reprodutiva no grupo. A supressão da ferti-
lidade das fêmeas filhas ou subordinadas já foi observada, por exemplo,
Cristina Valéria Santos — 341
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
em alguns gêneros de calitriquídeos: Saguinus oedipus (FRENCH et
al., 1984; ZIEGLER et al., 1987; SAVAGE et al., 1988), S. fuscicollis
(EPPLE e KATZ, 1983), S. labiatus (KUDERLING et al., 1995), Calli-
thrix jacchus (ABBOTT e HEARN, 1978; ABBOTT 1984, 1987;
ABBOTT et al., 1981; ABBOTT e GEORGE, 1991; ABBOTT et al.,
1992; SMITH et al., 1995), C. kuhlii (SMITH et al., 1997) e Cebuella
pygmaea (CARLSON et al., 1997).
Entretanto, em grupos estritamente familiares de espécies do gênero
Callithrix existem evidências de que uma das fêmeas, geralmente a filha
mais velha, exiba ciclos ovarianos (ABBOTT e GEORGE, 1991; SALTZ-
MAN et al., 1997; SMITH et al., 1997). Embora a filha mais velha ovule,
ela não interage sexualmente com os machos adultos do grupo. Várias
hipóteses têm sido formuladas a respeito dos mecanismos pelos quais a
fêmea dominante poderia provocar mudanças fisiológicas nas demais fê-
meas, tendo sido citada na literatura a influência de fatores feromonais3,
sociais e a “barreira da endogamia”. Entretanto, não poderíamos descar-
tar a possibilidade de esses fatores atuarem conjuntamente.
Um dos mecanismos que poderia atuar na supressão da fertilida-
de das fêmeas do grupo seria resultado das pistas químicas emitidas
pela dominante (ou reprodutiva). Existem evidências de que
estímulos
feromonais, emitidos através de marcações anogenitais ou circungeni-
tais de cheiro, poderiam resultar em mudanças drásticas na fertilidade
das demais fêmeas. No caso do sagüi-do-Nordeste (Callithrix jac-
chus), a falha reprodutiva nas fêmeas subordinadas parece ser resul-
tado de uma insuficiência de hormônios produzidos pelo hipotálamo e
pela hipófise (ABBOTT et al., 1990). Esta espécie possui vestígios do
órgão vomeronasal, e odores recebidos através das marcações de cheiro
podem ser importantes na regulação da fisiologia reprodutiva das fê-
meas (KEVERNE, 1987; ZIEGLER et al., 1990; SMITH et al., 1994;
TANAGUCHI et al., 1992).
Além dos mecanismos fisiológicos citados acima, contatos físicos
e visuais, com a fêmea dominante – ou o estresse social – também têm
sido apontados como responsáveis pela inibição da atividade reprodutiva
das demais fêmeas e a manutenção de uma única fêmea reprodutiva.
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3 Feromônios são mensagens químicas voláteis que agem em outros indivíduos, normalmente
da mesma espécie, através de receptores olfativos ou gustativos, alterando o comporta-
mento ou o sistema neuroendócrino (BROWN, 1994).
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
342 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
O estresse social parece ser um importante mecanismo para inibição da
reprodução de fêmeas de mico-leão-dourado. Nesta espécie a supres-
são de hormônios ovarianos das filhas adultas ou subordinadas parece
estar ausente (FRENCH, 1997).
Não apenas no mico-leão-dourado, mas também em outras espéci-
es de primatas calitriquídeos, o estresse social é resultado da constante e
incansável agressividade emitida pela fêmea reprodutiva do grupo (FREN-
CH, 1997). Tanto em grupos alojados em cativeiro como os observados em
seu ambiente natural, é praticamente impossível a entrada de uma fêmea
adulta desconhecida, devido à alta agressividade emitida pela dominante atra-
vés de comportamentos específicos (perseguição e vocalização).
Anzenberger e colaboradores (1996) levantaram uma terceira hi-
pótese para a manutenção da fertilidade de uma única fêmea no grupo,
que seria a evitação da procriação consangüínea entre parentes ou a
“barreira da endogamia”. Por exemplo, estes autores formaram dois gru-
pos de fêmeas de sagüi-do-Nordeste . No primeiro elas foram separa-
das do grupo e alojadas com o irmão ou com o pai. No segundo grupo as
fêmeas foram alojadas com um macho não parente. Os resultados reve-
laram que nenhuma das fêmeas pareada com machos parentes exibiu
ciclos ovarianos normais, enquanto cinco das sete pareadas com ma-
chos desconhecidos ovularam e conceberam em apenas dez dias. An-
zenberger e colaboradores (op. cit.) sugerem que, dentro do grupo fami-
liar, o reconhecimento do odor dos machos parentes pode contribuir para
a supressão da fertilidade das fêmeas não dominantes. Esses resultados
tendem a concordar com outros estudos em que fêmeas anovulatórias
iniciaram ciclos ovarianos normais e copularam ativamente logo após
terem sido separadas do grupo familiar e pareadas com machos não
parentes (S. oedipus: FRENCH et al., 1984; WIDOWSKI et al., 1990;
C. jacchus: ABBOTT e GEORGE, 1991).
Identificação de outras formas mais flexíveis de acasalamento nos
calitriquídeos
Se, por um lado, à monogamia é freqüentemente observada em cali-
triquídeos criados em cativeiro, na natureza formas mais flexíveis de aca-
salamento, como a poliginia (acasalamento de um macho com duas ou três
fêmeas) e a poliandria (acasalamento da fêmea com dois ou três machos),
Cristina Valéria Santos — 343
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
já foram identificadas. Digby e Ferrari (1994), por exemplo, identifi-
caram a poliginia em três grupos de sagüi-do-Nordeste na Estação
Florestal Experimental em Nísia Floresta (RN). O grau de parentes-
co entre machos e fêmeas que foram observados copulando não foi
identificado. Para estes autores fatores, demográficos como a alta
densidade populacional na área estudada e grupos com muitos indiví-
duos, além do fatores ecológicos como a alta disponibilidade de ali-
mento, especialmente gomas e exsudatos, poderiam ter colaborado
para o surgimento e manutenção da poliginia.
Goldizen e colaboradores (1996), após treze anos de pesqui-
sas com onze grupos de S. fuscicollis na Amazônia peruana, suge-
riram que o mais comum na área estudada era a reprodução de
uma única fêmea durante as estações de acasalamento. Entretanto,
estes autores confirmaram a ocorrência de reprodução simultânea
de duas fêmeas (em alguns casos mãe e filha) em seis situações
diferentes. Dessas seis situações, em quatro casos em que uma
segunda fêmea conseguiu se reproduzir (geralmente mais nova que
a dominante) elas desapareceram ou deixaram o grupo cerca de
um ano após o nascimento da sua cria. É possível que a tentativa da
reprodução tenha resultado na possível emigração ou expulsão da
fêmea de menor status social.
Na Amazônia colombiana Savage e colaboradores (1997) reali-
zaram dosagens hormonais em fêmeas S. oedipus na tentativa de
correlacionar a emigração de fêmeas com possíveis mudanças hor-
monais. Foi verificado que, em um dos grupos, a expulsão de uma
das fêmeas (filha) pela fêmea dominante ocorreu quando a filha en-
gravidou. As dosagens hormonais realizadas neste estudo revelaram,
ainda, que todas as fêmeas filhas do grupo não exibiam ciclo ovaria-
no. Ao que parece, assim como tem sido descrito nos trabalhos rea-
lizados com calitriquídeos criados no cativeiro, fatores que podem
estar relacionados com o baixo sucesso reprodutivo das fêmeas não
dominantes, tais como a redução da expressão dos hormônios ovari-
anos e a agressividade da fêmea dominante direcionada às demais
fêmeas podem também ser disparados em grupos selvagens.
No mico-leão-dourado a poliginia foi registrada em cerca de
10% dos grupos estudados ao longo de oito anos de pesquisas na
Reserva Biológica de Poço das Antas, RJ (DIETZ e BAKER, 1993).
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
344 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
Os nascimentos, em sua grande maioria, ocorreram em grupos em que
as fêmeas eram aparentadas (mãe e filha, ou entre irmãs). Entretanto,
em apenas poucos grupos houve sobrevida dos filhotes da fêmea não
dominante. O baixo sucesso reprodutivo destas fêmeas poderia estar
associado à inexperiência reprodutiva. Outros aspectos, tais como, a
saturação de micos e o isolamento da mata, seriam fatores que tende-
riam a reduzir a dispersão e aumentar a incidência de poliginia. Dietz e
Baker (op. cit.) especularam que a reprodução de fêmeas parentes
com um macho sem parentesco pode ser positiva para o grupo, uma
vez que proporciona um aumento da aptidão abrangente.
Em cativeiro a ocorrência de acasalamentos de duas fêmeas de
calitriquídeos com um mesmo macho também foi registrada em C.
jacchus, C. kuhlii e S. oedipus, e estaria relacionada, principal-
mente, com a introdução de um macho não aparentado no grupo (KO-
ENIG e ROTHE, 1991; PRICE e MCGREW, 1991; ALONSO e
PORFÍRIO, 1993). Saltzman e colaboradores (1996) realizaram um
experimento testando esta hipótese. O objetivo desta pesquisa foi o
de investigar a relação entre a retirada do pai e a introdução de um
macho estranho ao grupo com mudanças hormonais em filhas adul-
tas de C. jacchus. Os resultados das dosagens da progesterona no
plasma sangüíneo mostraram que, em todos os grupos estudados, uma
das filhas começou a ovular logo após a introdução do macho estra-
nho. Paralelamente ao início da atividade ovariana, as filhas se torna-
ram dominantes em relação à mãe. Estas fêmeas também interagi-
ram sexualmente com os machos introduzidos, e a concepção foi iden-
tificada
na maior parte das filhas estudadas.
Algumas pesquisas de campo têm revelado que dois ou três
machos podem copular com a fêmea reprodutiva do grupo, mostran-
do que em algumas situações os calitriquídeos podem exibir o siste-
ma poliândrico de acasalamento. Estudos com aves têm sugerido uma
correlação positiva entre a ocorrência da poliandria e os altos custos
da criação dos filhotes (EMLEN e ORING, 1977). Em algumas es-
pécies de calitriquídeos, esta parece ser também uma possível expli-
cação para o surgimento da poliandria. O alto custo do transporte dos
filhotes, normalmente gêmeos, e os grandes deslocamentos para o
forrageamento parecem ser as principais pressões para o surgimento
de um sistema de acasalamento poliândrico (GOLDIZEN et al., 1996).
Cristina Valéria Santos — 345
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
Sussman e Garber (1987) apontam que, na Amazônia, dificilmente
casais sozinhos de S. fuscicollis e S. mystax se reproduzem ou alcan-
çam sucesso reprodutivo, sugerindo que a taxa de sobrevivência dos
filhotes parece se tornar maior a partir da imigração de mais um macho
para o grupo. Freqüentemente, os machos dos grupos poliândricos exi-
bem uma alta participação no transporte dos filhotes (SUSSMAN e
GARBER, 1987). A ocorrência da poliandria, somada a uma maior taxa
da sobrevivência dos filhotes, em situações nas quais não existem ainda
ajudantes presentes (animais nascidos ou que tenham imigrado para o
grupo), beneficiaria tanto os machos como a fêmea (TERBORGH e
GOLDIZEN, 1985; GARBER et al., 1993; GOLDIZEN et al., 1996).
Com o aumento do número de indivíduos no grupo, proveniente do nasci-
mento de proles sucessivas, a monogamia tornar-se-ia, então, um siste-
ma de acasalamento viável, para que o sucesso reprodutivo pudesse ser
igualmente alcançado (GOLDIZEN, 1987).
Em um estudo de campo, com C. humeralifer, Rylands (1985)
verificou que, apesar de os três machos do grupo estudado terem monta-
do na fêmea reprodutiva, não foi possível confirmar se dois deles exibi-
ram intromissão e ejaculação. Entretanto, o transporte dos três pares de
filhotes nascidos durante a pesquisa foi principalmente observado por
dois dos três machos que foram vistos montando a fêmea. Rylands (1985),
e Terborgh e Goldizen (1985) apresentaram a hipótese de que a incerte-
za da paternidade, gerada pelo sistema poliândrico de acasalamento,
poderia induzir uma participação ativa destes machos no cuidado dos
filhotes. Nos calitriquídeos, os gêmeos gerados são dizigóticos, o que
possibilita a paternidade genética de um ou dois machos (BERNIRS-
CHKE e LAYTON, 1969, apud SUSSMAN e KINZEY, 1984).
Um padrão diferente de poliandria foi observado por Baker (1991)
em L. rosalia na natureza. Em grupos com dois ou três machos adultos,
apenas um dos machos foi observado copulando com a fêmea reprodu-
tiva. Este macho era também bastante agressivo com os demais machos
do grupo, monopolizando a fêmea durante os períodos de cópula. Passa-
do o período em que um dos machos adultos a monopolizava, os outros,
então, copulavam com ela. Neste caso, a monopolização da fêmea pare-
ce estar intimamente ligada ao seu momento reprodutivo, o que poderia
resultar na fertilização dos óvulos por apenas um macho. Dietz e Baker
(1996) apontam que estes grupos podem ser caracterizados como soci-
almente poliândricos, mas geneticamente monogâmicos.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
346 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
Schaffner (1996) investigou como a poliandria poderia afetar as
relações entre machos e fêmeas de C. kuhlii. Grupos contendo dois
machos e uma fêmea foram artificialmente formados e monitorados. Os
resultados revelaram que a fêmea não exibiu preferência entre os ma-
chos na manutenção do contato e demais interações sociais. Além disso,
ambos os machos foram observados exibindo comportamentos sociais e
sexuais com a fêmea. A autora sugere que a fêmea Callithrix seria
capaz de exibir comportamentos afiliativos com mais de um macho no
grupo. Tal comportamento poderia lhe conferir vantagens, uma vez que
ambos os machos poderiam ser os pais das crias e participarem ativa-
mente no cuidado parental.
Alterações no repertório comportamental do par em função de
variáveis sociais e biológicas
Estudos mais detalhados sobre o repertório comportamental de
casais de calitriquídeos, realizados em cativeiro, têm revelado que as
relações afiliativas (sociais e sociossexuais) podem ser influenciadas por
três fatores: duração da formação do casal ou do acasalamento, mo-
mento do ciclo ovariano da fêmea e nascimento dos filhotes.
a) A influência do tempo de pareamento
Estudos que compararam casais recém-formados com aque-
les acasalados já há algumas semanas ou meses mostraram que
casais que estão há pouco tempo vivendo juntos exibem altos níveis
de interação sexual durante as primeiras semanas após o parea-
mento. Nesses casais as cópulas são mais freqüentes, e as iniciati-
vas do macho em manter proximidade espacial com a fêmea tam-
bém são maiores (C. jacchus: WOODCOCK, 1982; EVANS e
POOLE, 1984; L. rosalia: STRIBLEY et al., 1987; C. kuhlii:
SCHAFFNER et al., 1995; C. geoffroyi: YOUNG, 1994). Compa-
rações feitas em pares de calitriquídeos acasalados por poucas se-
manas ou meses com aqueles acasalados há mais de um ano reve-
laram que as fêmeas cujos casais tinham menor tempo de parea-
mento, ficavam mais tempo em contato e catavam mais seus par-
ceiros (SAVAGE et al., 1988; RUIZ, 1990).
Cristina Valéria Santos — 347
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
A exibição de comportamentos afiliativos e sexuais em casais re-
cém-formados tem sido descrita como essencial para a formação da
ligação do par (KLEIMAN, 1977b; EPPLE, 1977). Schaffner e colabo-
radores (1995) sugerem, ainda, que as altas freqüências de interações
sexuais combinadas com uma maior responsabilidade do macho nas apro-
ximações, logo após o pareamento, são padrões comportamentais que
demonstram uma possível estratégia reprodutiva que resultaria em mai-
ores chances de fertilização da fêmea. Em situações em que os acasala-
mentos são feitos de forma artificial, ou seja, quando a escolha do macho
e da fêmea para o pareamento é feita por quem os maneja, é possível
que haja certa variabilidade comportamental possibilitando a ocorrência
de casais com diferentes características. Assim, para Silva e Sousa (1997)
um maior investimento do macho e da fêmea na exibição dos comporta-
mentos afiliativos em casais recém-pareados pode ser um indicativo do
futuro sucesso reprodutivo do casal.
Em um estudo com C. kuhlii, Santos (1998) observou que casais
com até seis meses de pareamento realizavam mais marcações de chei-
ro (glândulas localizadas nas áreas anogenitais) e monitoravam mais os
substratos do viveiro (cheirar e/ou lamber os poleiros) que aqueles pare-
ados há mais de sete meses. Estudos já realizados com várias espécies
de calitriquídeos têm mostrado que os indivíduos do grupo que mais rea-
lizam marcações de cheiro são o casal reprodutivo do grupo (EPPLE et
al., 1993). Baseando-se na premissa de que casais realizam mais marca-
ções de cheiro que os demais indivíduos do grupo e que os sinais quími-
cos emitidos por eles podem ter importante papel comunicativo, há a
possibilidade de o casal ser capaz de discriminar vários aspectos indivi-
duais do grupo através de informações químicas. Assim, é possível que a
maior manifestação da marcação de cheiro em casais recém-pareados
possa ser importante tanto na ligação do par como no reconhecimento
interespecífico.
b) A influência do ciclo ovariano
As fêmeas de calitriquídeos não menstruam nem exibem sinais visu-
ais na genitália que indiquem seu momento de receptividade sexual. Entre-
tanto, muitas
pesquisas têm mostrado a ocorrência de alterações no com-
portamento afiliativo e sexual entre o casal ao longo do ciclo ovariano.
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
348 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
Kendrick e Dixson (1983), por exemplo, observaram que, durante a fase
periovulatória (dias que circundam a ovulação), machos e fêmeas de C.
jacchus exibiram com maior freqüência expressões faciais específicas
(projeção da língua para fora e para dentro, interpretada como convite
sexual) antes (proceptive tongue-flicks) e durante (receptive tongue-
flicks) a cópula. Coincidindo com as expressões faciais, as montas e
cópulas também foram mais freqüentes durante a fase periovulatória
que na fase não ovulatória. Estudos com C. jacchus e C. kuhlii (RO-
THE, 1975; KENDRICK e DIXSON, 1983; SANTOS, 1998) e S. oedi-
pus (BRAND e MARTIN, 1983) sugerem que os convites sexuais exi-
bidos entre machos e fêmeas, durante o período periovulatório, estariam
associados com o aumento do número de cópulas.
Schaffner e colaboradores (1995) verificaram que em C. kuhlii a
cópula (interação sexual bem-sucedida), a monta e a tentativa de monta
(interações sexuais malsucedidas) estavam associadas com a exibição
de convites sexuais. Assim, as interações sexuais bem-sucedidas – as
cópulas – ocorreram sempre com maiores freqüências quando precedi-
das pelo convite sexual, enquanto as interações sexuais malsucedidas
(tentativas de monta e monta) estavam associadas com a ausência de
convite sexual entre macho e fêmea. Fêmeas também foram observa-
das emitindo mais convites sexuais que os machos. Assim, parece que a
exibição de convites sexuais pelas fêmeas, especificamente durante o
período periovulatório, poderia estar associada à motivação da fêmea
em interagir sexualmente com seu parceiro.
O papel das informações químicas também parece ser responsável
pelo aumento das interações sociossexuais. As fêmeas são mais atrati-
vas para os machos durante o período periovulatório que durante o não
ovulatório. Em um estudo realizado com casais de C. pygmaea, criados
em cativeiro, foi observado que os machos lamberam e cheiraram mais
a região anogenital das fêmeas e suas marcações de cheiro durante este
período. As montas também ocorreram com maior freqüência durante a
fase periovulatória em comparação com a não ovulatória (CONVERSE
et al., 1995; SANTOS, 1998).
A fim de testar a capacidade de ambos os sexos em discriminar
possíveis sinais feromonais emitidos pelas fêmeas ao longo do ciclo ova-
riano, Ziegler e colaboradores (1993) delinearam um interessante expe-
rimento com S. oedipus. Amostras de marcações de cheiro e de urina
de fêmeas desconhecidas foram coletadas no interior dos viveiros,
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e através de dosagens do hormônio luteinizante (LH) foram determinados
os períodos não ovulatórios e periovulatório. Neste estudo foi estipulado
que a fase periovulatória seriam os três dias que circundaram o pico de
secreção do LH, o que caracteriza a ovulação. Os autores observaram
diferentes reações comportamentais do par, quando as amostras coletadas
de marcação de cheiro foram introduzidas em locais estratégicos dentro
dos viveiros. As amostras contendo informações do período periovulatório
de uma fêmea desconhecida foram significativamente mais investigadas
pelas fêmeas que as amostras provenientes de outros dias do ciclo ovaria-
no. Os machos, por sua vez, copularam com suas parceiras e exibiram
ereções do pênis quando estiveram expostos a marcações de cheiro e
urina provenientes dessas amostras periovulatórias. Através desse experi-
mento, Ziegler e colaboradores propuseram que a fêmea poderia ser ca-
paz de emitir pistas olfativas, através de feromônios produzidos durante a
ovulação, que informariam ao macho sua condição reprodutiva.
Ao que tudo indica, a estimulação dos hormônios ovariano e hipo-
talâmico pode possibilitar a emissão de pistas comportamentais e fero-
monais pelas fêmeas. Juntas essas pistas poderiam tornar a fêmea mais
atrativa para o macho, resultando em um aumento na freqüência das
montas e cópulas. Por outro lado, o período periovulatório da fêmea tam-
bém pode ser caracterizado por uma maior intensidade na performance
das interações afiliativas pelo macho. Em C. kuhlii, por exemplo, o ma-
cho é o principal responsável pela proximidade espacial do casal, resul-
tando em maiores períodos de contato físico durante o período de fertili-
dade máxima da fêmea (SANTOS, 1998). A manutenção da proximida-
de espacial exibida pelo parceiro, durante o período periovulatório da
fêmea, estaria de acordo com a estratégia reprodutiva do macho, no que
diz respeito a guardá-la e monopolizá-la. O comportamento do macho,
em associação com o aumento do número de cópulas, poderia maximi-
zar as chances de fertilização da parceira.
c) A influência do nascimento dos filhotes
As relações afiliativas e sociossexuais do casal podem, ainda,
modificar-se em função de dois períodos: no final da gestação e imedi-
atamente após o nascimento dos filhotes. Price (1992), baseando-se
na perspectiva evolutiva, propôs que diferentes formas de investimento,
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tanto do macho como da fêmea, poucas semanas antes e após o parto,
poderiam promover o estreitamento das relações do par. Segundo esta
autora, esse estreitamento beneficiaria a fêmea no sentido de assegu-
rar a permanência e, conseqüentemente, a assistência do macho no
cuidado parental, enquanto os machos aumentariam suas chances de
reproduzir novamente com a fêmea. Price (op. cit.) chegou a esta con-
clusão observando casais de S. oedipus durante 24 semanas, doze
semanas antes e doze após o parto. Os resultados de seu estudo mos-
traram que as fêmeas foram as principais responsáveis pela manuten-
ção da proximidade espacial, além de catarem mais o parceiro antes
do nascimento dos filhotes. Os machos, por outro lado, foram os res-
ponsáveis pela manutenção da proximidade espacial e exibição de com-
portamentos afiliativos (cheirar e lamber o pêlo da fêmea) durante o
primeiro mês após o parto. Mota e colaboradores (1995) obtiveram
resultados semelhantes aos de Price em estudos com casais de C.
jacchus no que diz respeito às aproximações do macho e da fêmea e
às catações exibidas pelas fêmeas antes do parto.
Observações realizadas por Santos (1998) com casais de C.
kuhlii revelaram que as relações tanto sociais como sociossexuais
do par tornaram-se mais intensas após o nascimento dos filhotes.
Machos e fêmeas ficaram significativamente mais em contato físico
durante as semanas após o parto. Durante esse mesmo período, o
macho também seguiu e copulou com a fêmea significativamente mais,
enquanto as fêmeas exibiram mais o convite sexual. Antes do nasci-
mento dos filhotes, a fêmea foi responsável pela manutenção da pro-
ximidade espacial entre parceiros, enquanto que após o parto o ma-
cho foi o principal responsável.
A estratégia reprodutiva do par poderia estar intimamente rela-
cionada ao fato de a fêmea gerar gêmeos e da fundamental partici-
pação do macho no transporte dos filhotes (PRICE, 1992). Sendo
assim, com o investimento da fêmea no estreitamento das relações
do par antes do nascimento dos filhotes, é provável que haja um au-
mento na tendência de o macho permanecer e cuidar dos filhotes. O
macho, por outro lado, além de exibir cuidado paterno, tenderia a
investir mais na fêmea durante o período pós-parto (período, tam-
bém, da provável ovulação), maximizando, assim, suas chances de
ser o pai da próxima geração de filhotes.
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Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.335-363, outubro de 2003
Considerações finais
Resultados obtidos através de experimentações em cativeiro têm
revelado que vários mecanismos podem estar envolvidos na manuten-
ção da reprodução de uma única fêmea no grupo. Entretanto, até o
momento, esses estudos têm se concentrado em poucas espécies. Por
outro lado, o aumento do número de trabalhos realizados em ambiente
natural, especialmente na última década, tem revelado que o sistema
monogâmico de acasalamento não é uma regra. Entretanto, embora
existam estudos revelando a possibilidade de diferentes sistemas de
acasalamento, investigações com mais espécies de primatas calitriquí-
deos ainda são necessárias.
Também foram apresentados resultados que demonstram a flexibi-
lidade do comportamento reprodutivo, sugerindo que tanto o macho como
a fêmea exibem estratégias comportamentais que tendem a resultar no
sucesso reprodutivo do casal. Foi exposto que as relações sociossexuais
do casal podem se modificar diante de três situações: o tempo de parea-
mento do casal, a ovulação da fêmea e o nascimento dos filhotes. Assim,
estudos, principalmente os realizados em primatas criados em cativeiro,
devem dispor de mecanismos para controlar tais variáveis.
Dentre as variáveis citadas acima, o tempo de pareamento e a
presença de filhotes seriam as de mais fácil controle por parte do pesqui-
sador, uma vez que a determinação do período periovulatório da fêmea
exige a coleta de material biológico e dosagens hormonais. Entretanto,
sabendo-se a duração da gestação e da média em dias da ovulação pós-
parto da espécie estudada, muitos pesquisadores têm utilizado o interva-
lo entre os partos para obtenção do provável período da ovulação.
Uma vez que vários estudos têm sugerido que a experiência
reprodutiva prévia e a duração da co-habitação do par podem influ-
enciar a expressão do comportamento do casal, tais variáveis devem
ser consideradas quando se pretende realizar uma pesquisa que en-
volve a compreensão de comportamentos sociossexuais. É possível
que mudanças comportamentais específicas, como as cópulas e a
proximidade espacial, cuja função está relacionada com a formação
da ligação do par, ocorram com maiores freqüências durante as pri-
meiras semanas após o pareamento. Após vários meses de acasa-
lamento, o comportamento social ou sociossexual pode se estabilizar,
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352 — Sistema monogâmico de acasalamento e estratégias reprodutivas...
e a elevação das respostas pode estar relacionada com a ovulação das
fêmeas. Assim, para que se identifiquem possíveis modificações entre
os comportamentos a serem estudados, é necessário o acompanhamen-
to dos pares desde os primeiros dias de co-habitação, envolvendo ainda,
quando possível, a determinação dos períodos periovulatórios das fême-
as. Comparações entre casais que estão acasalados há semanas ou meses
com casais recém-pareados, sem que haja o controle destas variáveis,
podem levar à obtenção de resultados não conclusivos sobre a expres-
são de comportamentos sociais e sexuais.
Estudos que enfocam o comportamento afiliativo de casais recém-
pareados devem também levar em consideração que os acasalamentos
em cativeiro são realizados pelo pesquisador, nos quais não há nenhuma
participação dos primatas na escolha pelo parceiro(a). Acasalamentos
artificiais podem, em muitas situações, resultar na demora da reprodu-
ção, visto que muitas vezes há pouca expressão de comportamentos
afiliativos e sexuais pelo casal (observação pessoal).
De maneira geral, a privação do contato social por um longo perío-
do resulta, em muitos casos, na ativação da secreção de cortisol pela
hipófise, propiciando o surgimento de várias conseqüências deletérias à
saúde do primata. Assim, é importante considerar que a garantia do bem-
estar é resultado do conhecimento das características da espécie e de
um manejo adequado.
Agradecimentos
Parte dos resultados apresentados são de pesquisas realizadas
pela autora no Centro de Primatologia do Rio de Janeiro/CPRJ-FEE-
MA, com financiamentos concedidos pela CAPES, pelo CNPq e pela
FAPESP. Agradeço ao Prof. Adelmar Faria Coimbra-Filho e ao Dr.
Alcides Pissinatti pelo apoio e no fornecimento de condições logísticas,
o que tornou possível a coleta de dados comportamentais e material
biológico dos calitriquídeos.
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(Recebido em outubro de 2003 e aceito para
publicação em março de 2004)
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Enriquecimento ambiental, privação social e mani-
pulação neonatal*
Resumo
Muitos estudos têm demons-
trado os efeitos do enriquecimento
ambiental, privação social e mani-
pulação neonatal sobre o desenvol-
vimento do comportamento e aqui-
sição de habilidades cognitivas. De
fato, as intervenções precoces po-
dem afetar a sociabilidade, apren-
dizagem, desenvolvimento físico e
neurogênese em algumas espécies
de roedores. A despeito das difi-
Abstract
Many studies have de-
monstrated the effects of envi-
ronmental enrichment, social de-
privation and neonatal handling
on behavioral development and
acquisition of cognitive skills. In
fact, early manipulations may
affect sociability, learning perfor-
mances, physical development
and neurogenesis in some rodent
species. Despite the methodolo-
__________________________________________________
*
 Environmental enrichment, social deprivation and neonatal handling
1
 Endereço para correspondências: Departamento de Psicologia, Universidade Regional de
Blumenau, Blumenau, SC, 89010-971 (E-mail: cnunes@furb.br).
2
 Endereço para correspondências: Departamento de Psicologia, CFH, Universidade Federal
de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 88040-900 (E-mail: rfguerra@cfh.ufsc.br).
3
 Endereço para correspondências: Departamento de Psicologia Experimental, Instituto de
Psicologia, USP, São Paulo, SP, 05508-900 (E-mail: vsbussab@usp.br).
Carlos Roberto de Oliveira Nunes1
Universidade Regional de Blumenau
Rogério F. Guerra2
Universidade Federal de Santa Catarina
Vera Sílvia Raad Bussab3
Universidade de São Paulo
366 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
culdades metodológicas nos proce-
dimentos experimentais, estes es-
tudos promovem uma nova com-
preensão a respeito da organização
do comportamento e plasticidade
cerebral. Foram analisados os pa-
péis de diferentes tipos de estimu-
lação ambiental para a compreen-
são da organização cerebral e com-
portamento humano.
Palavras-chave: Enriquecimento
ambiental, manipulação neonatal, pri-
vação social, plasticidade cerebral.
gical difficulties in the experi-
mental procedures, these studi-
es provide a new comprehensi-
on about the organization of
behavior and brain plasticity. In
this review, it has been analyzed
the role of different types of en-
vironmental stimulation for un-
derstanding brain organization
and human behavior.
Keywords: Environmental enrich-
ment, neonatal handling, social de-
privation, brain plasticity.
Introdução
N o que se refere aos mamíferos e às aves, as pressões cotidianasenfrentadas pelos indivíduos são tão diferenciadas, que seria im-
possível, por mecanismos de seleção natural, o pre-estabelecimento de
um repertório comportamental adaptativo e completo, capaz de garantir
a sobrevivência e a reprodução. Parece que a seleção natural favoreceu
a plasticidade cognitiva e comportamental, tornando os indivíduos funci-
onalmente adaptados às contingências ambientais que enfrentam duran-
te o desenvolvimento ontogenético. Este pressuposto leva às deduções
de que a experiência interfere sobre o comportamento futuro e de que a
variabilidade nos tipos de situações enfrentadas por animais, incluindo-
se os humanos, acarreta diferenças psicológicas intra e interespecíficas.
De fato, as experiências precoces de um animal podem influenciar seu
comportamento adulto em uma série de tarefas; por exemplo, ratos
criados em ambientes grandes e complexos apresentam habilidades
superiores de resolução de problemas em relação a conspecíficos criados
em condições mais restritas (ROSENZWEIG, 1966).
A maior parte dos padrões comportamentais emitidos pelos
animais acarreta consequências que podem interferir sobre (a) as
probabilidades futuras de emissões dos padrões de comportamen-
to e (b) as propriedades do ambiente no qual estão submetidos.
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 367
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Neste sentido, os animais não são passivos em relação às pressões do
ambiente. De qualquer modo, elas fazem parte dos fatores determinan-
tes do comportamento, principalmente do período do nascimento até o
início da vida adulta, quando o sistema nervoso parece mais sensível à
adaptação às pressões ambientais. Por esta razão, as pesquisas sobre
enriquecimento ambiental freqüentemente têm sido focadas no sentido
de investigar os impactos de diferentes condições ambientais de criação
sobre a organização comportamental e/ou do sistema nervoso dos ani-
mais estudados (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002, NAKA et al., 2002).
Os objetivos deste trabalho são: a) expor evidências experimentais
que especificam as conseqüências de três diferentes modelos de estimu-
lação ambiental aplicados em pesquisas comportamentais e neurocientí-
ficas, desenvolvidos para elucidar os mecanismos subjacentes à variabi-
lidade do desenvolvimento do comportamento; e b) sugerir indicações de
como a aplicação destes modelos - o enriquecimento ambiental, a mani-
pulação neonatal e a privação social – pode contribuir para a compreen-
são do comportamento humano e de seus processos subjacentes.
Implicações do ambiente de criação sobre o comportamento
Nos estudos com animais, os efeitos das variáveis ambientais so-
bre a aprendizagem, isto é, as mudanças duráveis do comportamento
decorrentes de experiências específicas, têm sido feitos através de di-
versos métodos, como a privação materna (ANISMAN et al., 1998), os
condicionamentos operante e respondente (CATANIA, 1999), o enri-
quecimento ambiental, a manipulação neonatal (FERNÁNDEZ-TERU-
EL et al., 2002) e o isolamento social (WÜRBEL, 2001), e cada um
destes modelos de estimulação tem implicações diferentes sobre o com-
portamento, a fisiologia e a qualidade de vida dos sujeitos.
O enriquecimento ambiental consiste na exposição de animais ca-
tivos jovens e adultos a ambientes ricos em estimulação sensorial, gera-
da por alimento escondido, objetos inanimados, como rodas de ativida-
des, canos e brinquedos, e/ou caixas com infra-estrutura mais comple-
xas, contendo tocas, galerias de túneis e/ou plataformas com diferentes
níveis de acesso (ver Chamove, 1989; ZIMMERMANN et al., 2001;
MELLEN e MACPHEE, 2001). A manipulação neonatal é a forma mais
comum de estimulação precoce (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002),
368 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
e tipicamente consiste, em ratos, por exemplo, no manuseio cuidadoso
do filhote pelos experimentadores, diariamente, por alguns minutos, durante
as primeiras duas semanas de vida (ver LUCION et al., 2003). Os efeitos
da estimulação social têm sido investigados através da comparação, em
diversos tipos de testes, entre sujeitos criados em grupos de conspecíficos e
outros criados isoladamente (ver WÜRBEL, 2001); apesar de que diversas
pesquisas têm trabalhado conjuntamente com os efeitos do enriquecimento
ambiental e social, em contraposição à privação de estímulos inanimados e
sociais (ver ROSENZWEIG et al., 1978; SMITH et al., 2003).
O psicólogo canadense Donald O. Hebb foi, nos anos 40 do século
passado, o primeiro pesquisador a se interessar pelos efeitos do enrique-
cimento ambiental sobre o comportamento. Ele descobriu que animais
criados em ambientes maiores e com mais variedade de objetos e confi-
gurações espaciais do que aqueles então normalmente impostos em cri-
adouros e laboratórios posteriormente apresentavam habilidade superior
de aprendizagem, comparativamente em relação a outros animais cria-
dos em ambientes menores e não enriquecidos (FERNÁNDEZ-TERU-
EL et al., 2002). Krech e colaboradores (1962) submeteram ratos por
um período de um mês a ambientes enriquecidos ou não enriquecidos,
depois testaram-nos numa seqüência de reversões de problemas de dis-
criminação. No procedimento de discriminação de luz-escuro, os grupos
não diferiram, mas quando foram realizadas as reversões, e o problema
tornou-se mais complexo, os animais criados em ambiente enriquecido
passaram a desempenhar de forma bastante superior aos demais.
Os ambientes enriquecidos, isto é, aqueles que provêm ao animal
mais oportunidades para experiências perceptuais e padrões comporta-
mentais variados (SCHWARTZ, 1964), habilitam-nos a desempenhar me-
lhor sobre uma variedade de tarefas, quando comparados a animais
criados em ambientes mais pobres (ROSENZWEIG, 1966). Em ratos, o
enriquecimento ambiental, independentemente das experiências sociais
anteriores, melhora principalmente a aprendizagem e a memória espa-
cial (VAN PRAAG, 2000; SCHRIJVER et al., 2002), e acelera a ha-
bituação à novidade (ZIMMERMANN et al., 2001), sem necessaria-
mente gerar potencialização de comportamento exploratório (SCHRIJVER
et al., 2002). Em síntese, aparentemente os animais criados em ambientes
enriquecidos parecem apresentar uma organização do comportamento ex-
ploratório mais complexa e diversificada do que os animais criados em
ambientes não enriquecidos (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002).
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 369
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Num procedimento de teste de discriminação, camundongos eram
inseridos num labirinto aquático e deviam nadar até um estímulo não
discriminativo (SD) ou um discriminativo (SD) indicados por padrões
de tela escolhidos pelos experimentadores e apresentados em dois
monitores de computador. As apresentações de SD e SD, entre os
dois monitores, eram aleatoriamente alternadas, e cada monitor, por
tentativa, apresentava apenas um dos padrões. SD indicava a exis-
tência, próxima do monitor em questão, de uma plataforma invisível
ao nível da água, onde os sujeitos podiam subir. Foi verificado que,
em geral, os camundongos criados em ambiente enriquecido e não
enriquecido aprenderam a discriminar os padrões, nadando até o
monitor com o estímulo discriminativo. Porém, uma vez alcançado
um nível equivalente e assintótico de acertos entre os grupos, os ex-
perimentadores começaram a aproximar, ao longo das tentativas, a
gradação de diferença entre os padrões de estímulos, e verificaram
que os camundongos criados sob condição enriquecida foram capa-
zes de responder funcionalmente a estímulos discriminativos e não
discriminativos mais semelhantes entre si do que os sujeitos do gru-
po-controle, criados em ambientes não enriquecidos, sugerindo que o
enriquecimento ambiental pode desenvolver as funções visuais dos
camundongos (PRUSKY et al., 2002).
O labirinto de Hebb e Williams é um recurso utilizado para testar
as habilidades de aprendizagem e memória espacial. Por exemplo, po-
dem ser colocados alimentos em partes específicas, que os sujeitos
experimentais aprendem a encontrar para comer. Pode-se também
modificar os caminhos do labirinto para acesso aos reforçadores, abrin-
do-se e fechando-se passagens. Os ratos criados em ambientes enri-
quecidos têm melhor desempenho do que os criados em ambiente não
enriquecido, alcançando mais rapidamente o alimento e entrando me-
nos freqüentemente em braços errados do labirinto. Os animais com
cérebro intacto apresentam melhor desempenho do que os que sofre-
ram lesão cerebral pós-natal. Além disso, os animais lesionados cria-
dos em ambiente enriquecido apresentam desempenho superior aos
lesionados criados em ambiente-padrão, e o efeito potencializador do
enriquecimento sobre o desempenho no labirinto dos animais lesiona-
dos é proporcionalmente superior ao efeito potencializador exercido
sobre os animais não lesionados (SCHWARTZ, 1964).
370 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
O enriquecimento ambiental influencia o desempenho de ratos
em tarefas de condicionamento aversivo. Os animais criados em am-
bientes enriquecidos, quando submetidos a situações estressantes,
apresentam-se menos sensíveis às condições aversivas impostas do
que animais criados em ambientes-padrão de laboratório, exibindo
maior capacidade de adaptar-se e responder funcionalmente a estas
situações (ESCORIHUELA et al., 1994). Uma exceção interessante
foi encontrada por Klein e colaboradores (1994), cujos sujeitos expe-
rimentais, ratos criados em ambientes enriquecidos, expunham-se mais
freqüentemente aos potenciais predadores apresentados, uma condi-
ção normalmente aversiva, do que os sujeitos do grupo controle.
O cuidado parental influencia o desenvolvimento cognitivo. Ra-
tos que receberam altos níveis de cuidado materno – avaliado atra-
vés da limpeza de filhotes e da permanência em agachamento sobre
a ninhada exibem, posteriormente, melhor desempenho em testes de
aprendizagem e memória espacial do que outros sujeitos que recebe-
ram baixos níveis de cuidado (LIU et al., 2000). Entretanto, através
da exposição dos sujeitos que receberam poucos cuidados maternais
a ambientes enriquecidos, do período de desmame, 21 dias, até 70
dias, as diferenças de desempenho entre os dois grupos de sujeitos,
pouco cuidados e muito cuidados, podem ser minimizadas a ponto de
tornarem-se equivalentes (BREDY et al., 2003). Além disso, parece
não haver efeito cumulativo entre o enriquecimento ambiental e os
níveis altos de cuidado maternal.
Os estudos dos efeitos do enriquecimento ambiental sobre a emo-
cionalidade de ratos parecem obter resultados inconsistentes (FER-
NÁNDEZ-TERUEL et al., 2002); ainda assim, os efeitos constata-
dos dos vários tipos de ambiente sobre esta característica são suges-
tivos, e convidam à consideração de que os efeitos gerais da experi-
ência no desenvolvimento subseqüente podem, pelo menos parcial-
mente, se processar via alterações na reatividade emocional. Ratos
criados em ambientes enriquecidos defecam menos em testes em
campo aberto (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 1992) e entram mais
freqüentemente em braços abertos de labirintos em cruz elevado do
que os sujeitos controle,
criados em ambientes não enriquecidos, isto
é, contendo apenas material de ninho, alimento e água (FERNÁN-
DEZ-TERUEL et al., 1997). De outro lado, enquanto Huck e Price (1975)
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 371
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
apontam que ratos criados em ambientes enriquecidos são mais ati-
vos em campo aberto, Pham e colaboradores (1999) não encontra-
ram diferenças destes em relação aos sujeitos criados em ambiente
não enriquecido.
Chamove (1989) deduziu que os camundongos seriam menos rea-
tivos ou menos “emocionáveis”, se fossem criados em caixas que se
assemelhassem a tocas, isto é, ambientes que exibem características
próximas do ambiente natural e parecendo psicologicamente maiores,
em função da maior complexidade de estímulos presentes, e requeren-
do mais atividades locomotoras para que o animal se deslocasse dentro
delas. Neste sentido, o autor criou diferentes quantidades de partições
transparentes, horizontais e verticais, dentro das caixas dos diferentes
grupos experimentais, variando entre zero (controle) e dez partições,
com vias de acesso entre elas. Através dos testes comportamentais e
fisiológicos, o autor concluiu que a presença de partições na caixas de
camundongos reduziu a estressabilidade dos animais, o que foi inferido
em função de que aqueles criados em caixas com as partições se loco-
moveram mais em suas caixas do que o grupo-controle – caixa sem
partições –, ganharam mais peso corporal, apresentaram glândulas
adrenais menores, exploraram mais o ambiente novo em teste de cam-
po aberto, e ainda, neste teste, defecaram e limparam-se menos.
Em condições naturais, gerbilos da Mongólia (Meriones ungui-
culatus) são bastante esquivos, evitando a aproximação de humanos,
além de poderem tornar-se agressivos e eriçarem os pêlos quando cap-
turados. De outro lado, os animais criados em cativeiro são extrema-
mente dóceis e de fácil manipulação. Clark e Galef (1977) desenvolve-
ram uma seqüência de seis experimentos tentando identificar as variá-
veis ambientais que causariam a feralização dos gerbilos isto é, a alta
emocionalidade observada em espécimes selvagens quando manipula-
dos por seres humanos, e acabaram estudando efeitos de enriqueci-
mento ambiental sobre o comportamento. Os autores descobriram que,
para animais muito pouco manipulados, apenas a presença de uma co-
bertura em parte da caixa-viveiro durante o período de desenvolvimento
dos filhotes, que os permitisse se esconder espontaneamente, poderia
produzir as mesmas características comportamentais geradas pelo cres-
cimento em tocas. Além disso, os gerbilos criados com acesso a um
abrigo apresentaram glândulas adrenais proporcionalmente maiores,
372 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
menores órgãos reprodutivos e glândulas pituitárias mais pesadas do que
animais criados em ambiente-padrão de laboratório, que continha apenas
material de ninho, alimento e água, o que sugere maior estressabilidade.
No primeiro experimento descrito no artigo de Clark e Galef (1977),
os autores acondicionaram casais de sujeitos adultos em viveiros fechados
cheios de terra, onde eles puderam construir galerias de túneis. De acordo
com Galef (1999), estes animais se mantiveram dóceis e de fácil captura,
inclusive saindo para os acessos das galerias quando pessoas entravam no
biotério; porém, os filhotes nascidos neste ambiente se tornaram difíceis
de manuseio. Quando eles estavam com aproximadamente 60 dias de
vida, Clark e Galef (1977) os colocaram num ambiente aberto onde havia
um abrigo num dos cantos da caixa. Depois da habituação dos sujeitos ao
ambiente, foram realizados testes, através de apresentação súbita de um
estímulo semelhante a uma face humana. Os filhotes criados nos viveiros
fechados com túneis fugiam mais rapidamente para os abrigos do que os
sujeitos-controle criados em caixas-padrão; além disso, após a apresenta-
ção do estímulo, permaneciam mais tempo nos abrigos.
Em ratos, a manipulação neonatal parece gerar seus principais
efeitos sobre os limiares de excitação emocional dos sujeitos experi-
mentais. Os animais manipulados no período neonatal adaptam-se mais
eficientemente a condições estressantes e desafiadoras em diversos
testes experimentais (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002). Por exem-
plo, em testes de campo aberto, apresentam freqüências mais altas de
comportamento exploratório e mais baixas de defecação (FERNÁN-
DEZ-TERUEL et al., 1992), sendo estes critérios de avaliação de rea-
tividade emocional. Além disso, ratos submetidos à manipulação neo-
natal, quando adultos, exibem desempenho superior em testes de es-
quiva condicionada, em relação a outros não submetidos à manipula-
ção (FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002). Provavelmente esta su-
perioridade no desempenho é relacionada, pelo menos em sua fase
inicial, ao melhor controle das respostas emocionais de ansiedade pe-
los sujeitos pré-manipulados (ver Aguilar et al., 2002).
A criação em isolamento social, a partir do período de desmame
até a fase adulta, gera diversas alterações comportamentais nos sujeitos
de pesquisa, quando comparados a outros que foram criados em grupos
de conspecíficos. Por exemplo, ratos criados em isolamento exibem di-
versos tipos de estereotipias comportamentais (SCHRIJVER et al., 2002),
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 373
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
exibem menos atividades nos braços abertos de labirintos em cruz
elevada (PARKER e MORINAN, 1986), e demoram mais tempo
para entrar em ambientes novos (ZIMMERMANN et al., 2001).
Além disso, os animais criados isolados tornam-se hiperativos em
ambientes novos e demoram mais tempo para se habituarem
(SCHRIJVER et al., 2002). Entretanto, em relação a estas duas
últimas afirmações, há estudos que chegaram a resultados contra-
ditórios, isto é, com os ratos criados isolados apresentando-se me-
nos ativos em campo aberto (GENTSCH et al., 1981), ou não se
diferenciando quanto ao tempo necessário para habituação em am-
bientes novos (ZIMMERMANN et al., 2001).
A privação social parece afetar as respostas à novidade atra-
vés de fatores emocionais, isto é, ela parece ter efeito ansiogênico
(SCHRIJVER et al., 2002), gerando prejuízos no controle inibitório
do comportamento, e, em especial, na seleção de estímulos de aten-
ção (WÜRBEL, 2001; ZIMMERMANN et al., 2001). Deve-se ter
em mente que os efeitos das variáveis sociais sobre o comportamen-
to transcendem os resultados obtidos nas manipulações de privação
social, em função: a) dos fatores motivacionais e dos processos de
aprendizagem relacionados às interações com diferentes parceiros;
e b) das competições por recursos.
Filhotes de hamster-dourado (Mesocricetus auratus) que são
agudamente privados de contato físico e brincadeira com outros indiví-
duos, isto é, por 48 horas, exibem níveis de brincadeira e locomoção
mais elevados quando são colocados juntos de parceiros com mesma
idade, quando comparados a indivíduos não privados. Entretanto, se
um filhote de hamster é criado sozinho pela mãe, sem parceiros de
mesma idade, mas sem passar por um período de privação de contato
físico com um conspecífico, ele também apresenta aumento no tempo
despendido em brincadeira quando é colocado com outro filhote. Em
qualquer dos casos, se mantidos juntos, as freqüências de brincadeira
das díades tendem a retornar a níveis similares aos apresentados por
díades de animais que não foram privados de brincadeira (GUERRA
et al., 1999). Estes resultados sugerem que os filhotes que são criados
pela mãe, sem irmãos na ninhada, apesar de não serem privados de
vários tipos
de interação social, incluindo vários tipos de contatos físi-
cos, parecem crescer privados cronicamente de brincadeira.
374 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
 O meio social também está associado à disponibilidade de recur-
sos. Os filhotes de hamster-dourado são bastante dependentes de leite
materno no décimo quinto dia de vida. Neste período, os filhotes de ni-
nhadas muito grandes (nove filhotes) e muito pequenas (um filhote) são
mais leves do que os filhotes de ninhadas intermediárias (três e seis
filhotes) (GUERRA e NUNES, 2001). Este padrão de resultados indica
menor transferência de nutrientes da mãe para o filhote. Provavelmente
isto ocorre por razões diferentes para as ninhadas grandes e as peque-
nas, o que deve ter conseqüências sobre os padrões comportamentais a
serem emitidos pelos filhotes no futuro. No primeiro caso, de ninhadas
muito pequenas, provavelmente um único filhote precisa esforçar-se muito
na sucção para gerar a ejeção de leite e manter sua produção. No se-
gundo caso, de ninhadas muito grandes, além de provavelmente haver
menor disponibilidade de leite por filhote, eles precisam competir muito
entre si para terem acesso às melhores tetas.
Os modelos de estimulação ambiental discutidos geram, indepen-
dentemente, alterações de longo prazo no comportamento (ZIMMER-
MANN et al., 2001; WÜRBEL, 2001; FERNÁNDEZ-TERUEL et al.,
2002). As diferenças de repertório comportamental implicam, necessa-
riamente, e diferenças das estruturas fisiológicas subjacentes, pois o cé-
rebro se adapta anatômica e quimicamente às exigências de diferentes
ambientes. Daí surge a necessidade de identificar as propriedades do
ambiente que seriam responsáveis pelas adaptações do SNC, bem como
os detalhes anatômicos e fisiológicos relacionados. Neste sentido, as
manipulações ambientais têm sido tradicionalmente utilizadas como fer-
ramentas para a identificação das modificações bioquímicas e estrutu-
rais associadas às mudanças comportamentais (SCHRIJVER et al., 2002).
Plasticidade cerebral e modelos de experiência
M. V. Malacarne, entre o final do século XVIII e início do século
XIX, foi o primeiro pesquisador que investigou a influência do enriqueci-
mento ambiental sobre o sistema nervoso, tendo descoberto que pássa-
ros treinados sobre condições enriquecidas apresentaram aumentos de
volume do sistema nervoso central, principalmente no cerebelo, em rela-
ção a outros pássaros que não experienciaram a situação de enriqueci-
mento (RENNER e ROSENZWEIG, 1987, apud FERNÁNDEZ-TE-
RUEL et al., 2002).
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 375
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Lashley (1929, apud SMITH, 1959), analisando os efeitos de le-
sões cerebrais sobre os comportamentos emitidos por ratos em labirin-
tos, concluiu que, nos processos de aprendizagem dos caminhos, o cé-
rebro dos sujeitos experimentais seguia o princípio de ação global de
massa, isto é, quanto maior a quantidade de tecido cerebral destruído,
maior era o prejuízo no desempenho observado, e a variação do local
da lesão no manto cerebral parecia não modificar de modo significati-
vo os resultados obtidos. Lansdell (1953), por sua vez, relatou que as
lesões no córtex posterior resultam em padrões diferentes de respos-
tas no labirinto de Hebb e Williams, em relação a sujeitos com lesão no
córtex anterior. Smith (1959), também analisando os desempenhos no
labirinto de sujeitos experimentais com lesões cerebrais nas regiões
anterior e posterior do córtex, verificou que os sujeitos criados em
ambiente-padrão, que apresentavam lesão na parte anterior, tiveram
desempenho ligeiramente inferior àqueles com lesão na parte poste-
rior, e entre os sujeitos criados em ambiente enriquecido ocorreu um
efeito inverso e mais potente.
A exposição de ratos criados em grupo a ambientes enriquecidos
com escadas, rodas de atividade, caixas, plataformas e outros tipos mais
de estímulos resulta em aumento do peso cerebral. Em especial, os ratos
criados em ambientes enriquecidos desenvolvem mais massa cortical do
que seus irmãos criados em ambientes pobres – isto é, um ambiente
contendo apenas alimento, água e material de ninho (ROSENZWEIG et
al., 1962). Os córtices dos ratos criados em ambientes enriquecidos têm
seu peso aumentado em torno de 4% mais do que aqueles criados restri-
tos, e quatro quintos dos pares de irmãos comparados apresentam ten-
dência nesta direção (ROSENZWEIG, 1966).
Ratos criados em ambientes enriquecidos exibem maior volume do
córtex cerebral, mas apresentam em torno de 7% menos massa corporal
do que os criados em ambientes-padrão, de modo que, se os resultados
forem comparados em termos de proporção de peso do cérebro em rela-
ção ao peso corporal, os efeitos são mais evidentes. Se for considerada a
razão do peso do córtex em relação ao peso do resto do cérebro, os ani-
mais criados em ambiente enriquecido apresentam córtices proporcional-
mente maiores do que os criados em ambiente-padrão. O peso maior do
córtex dos ratos estimulados reflete maior espessura da camada cortical.
Além disso, também o hipocampo dos ratos parece tornar-se mais espesso
como conseqüência da experiência enriquecida (ROSENZWEIG, 1966).
376 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
As regiões do córtex não reagem igualmente em relação a diferen-
tes padrões de experiências. As situações de enriquecimento e empo-
brecimento ambiental resultam em diferenças superiores no córtex occi-
pital em relação à área somestésica. No entanto, Rosenzweig (1966)
aponta que é possível modificar seletivamente uma ou outra região do
córtex, dependendo do programa utilizado de estimulação. Por exemplo,
ratos criados em ambientes escuros apresentam redução considerável
do córtex visual, mas de outro lado desenvolvem as áreas somestésicas
de forma mais pronunciada do que irmãos criados em ambiente ilumina-
do, gerando efeitos opostos entre os córtices visual e somestésico em
relação aos procedimentos de enriquecimento ambiental (ROSENZWEIG,
1966). A vascularização cerebral também pode responder adaptativa-
mente à demanda aumentada de estimulação, pois os diâmetros dos ca-
pilares do córtex de ratos criados em ambientes enriquecidos são maio-
res do que aqueles dos ratos criados em ambientes não enriquecidos
(DIAMOND et al., 1964).
Rosenzweig (1966) acreditava que o número de neurônios que um
indivíduo tinha era fixado ao nascimento, ou pouco tempo depois, e que
as diferenças anatômicas encontradas entre os cérebros de sujeitos
criados em diferentes ambientes se deviam à migração de neurônios e
à proliferação de células da glia. Ele sabia da necessidade de investiga-
ção da regulação bioquímica do cérebro para a identificação dos fatores
subjacentes à plasticidade comportamental associada aos ambientes de
criação. Neste sentido, ele investigou as atividades das enzimas acetil-
colinesterase e colinesterase nos cérebros de ratos criados em ambien-
tes enriquecidos e não enriquecidos. Seus resultados não foram conclu-
sivos, mas ele sugeriu que as diferenças nos cérebros daqueles indivídu-
os devem estar relacionadas às atividades destas enzimas.
Os animais criados em extremo empobrecimento, isto é, ambiente
empobrecido e isolamento social, diferem mais dos animais criados em
grupo em ambientes enriquecidos do que os criados em ambientes em-
pobrecidos e em grupo. Ou seja, quanto maiores as diferenças entre os
ambientes, maiores as diferenças resultantes na anatomia e na química
do cérebro. Além disso, o córtex cerebral do rato adulto é capaz de
crescimento adaptativo, como é o córtex dos animais jovens, e estas
mudanças cerebrais devem refletir aprendizagem e acúmulo de infor-
mações na memória (ROSENZWEIG, 1966).
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 377
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
As primeiras publicações de mudanças mensuráveis no cérebro, como
conseqüência da experiência, foram recebidas com certo ceticismo (RO-
SENZWEIG, 1966). Entretanto, atualmente já se sabe que o enriqueci-
mento ambiental aprimora a cognição através da plasticidade neuronal. Os
ambientes enriquecidos de estimulação sensorial e de situações que exi-
gem soluções de problemas, como localização de alimentos, são associa-
dos a grandes mudanças morfológicas nas vias sensoriais primárias, nas
áreas de associação e no hipocampo (ROSENZWEIG et al., 1972).
Animais expostos a ambientes enriquecidos apresentam razões mais
altas de neurônios para células de glia, botões pré-sinápticos maiores
(ver ROSENZWEIG et al., 1972; SCHROTT, 1997; NAKA et al., 2002),
aumento da densidade de ramos dendríticos e sinapses (RAMPON et
al., 2000), diminuição de mortes de neurônios por apoptose (YOUNG et
al., 1999) e mais formações de novos neurônios, isto é, neurogênese,
inclusive em indivíduos adultos (GROSS, 2000).
A ação dos genes nas modificações fenotípicas relacionadas à
plasticidade cerebral tem importância, por exemplo, na produção dos
fatores neurotróficos. Estes são proteínas que regulam o crescimento
e a maturação dos neurônios, bem como as conexões entre eles. Ani-
mais expostos a ambientes enriquecidos apresentam níveis elevados
de fatores neurotróficos, como o fator neurotrófico derivado do cére-
bro (BDNF, brain derived neurotrophic factor), um fator implicado
na sobrevivência e no crescimento de neurônios, na regulação das co-
nexões neuronais e na plasticidade cerebral (FALKENBERG et al.,
1992). O ambiente enriquecido também está relacionado com o au-
mento da atividade do fator de crescimento neuronal (NGF, nerve gro-
wth factor), fator provavelmente associado às alterações plásticas do
sistema nervoso central (PINAUD et al., 2002).
Em ratos adultos, a aprendizagem e a memória espacial dependem
da integridade das funções do hipocampo (MORRIS et al., 1982). O
hipocampo de ratos expostos a ambientes enriquecidos exibe níveis au-
mentados de NGF e acentuada expressão de RNA mensageiro do gene
NGFI-A, um fator de transcrição dependente de atividade (PHAM et
al., 1999); isto é, o fator de transcrição responsável pela produção do
NGF, cuja expressão é regulada pelo nível de ativação dos neurônios
(PINAUD et al., 2002). Além disso, o enriquecimento ambiental tam-
bém potencializa a proliferação de neurônios no giro dentado do hipo-
campo em ratos e camundongos (NILSSON et al., 1999).
378 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Em ratos, os filhotes das mães que exibiram freqüências mais
altas de limpeza de filhotes e permaneceram grandes proporções de
tempo em postura de agachamento sobre eles (crouching over pups)
exibem, posteriormente, como resultado dos níveis de cuidado recebi-
dos, memória e aprendizagem espacial potencializadas, bem como al-
terações no hipocampo caracterizadas por elevada expressão dos RNAs
mensageiros para a codificação dos subtipos NR1, NR2A e NR2B de
receptores NMDA (N-methyl-aspartato), e aumento de receptores
NMDA (LIU et al., 2000). Os ratos que receberam poucos cuidados
maternos, mas que permaneceram em ambiente enriquecido do des-
mame até 70 dias, exibem níveis equivalentes de respostas nos testes
de reconhecimento de objetos, e de memória e aprendizagem espacial,
em relação aos sujeitos que receberam níveis altos de cuidados mater-
nais (BREDY et al., 2003).
Os mecanismos fisiológicos subjacentes aos padrões equiva-
lentes de respostas dos sujeitos muito cuidados e dos sujeitos pouco
cuidados, mas enriquecidos, parecem diferir; isto é, o enriqueci-
mento ambiental não reverte os efeitos do baixo cuidado maternal
sobre os receptores de NMDA, mas, como forma compensativa,
parece alterar os níveis de resposta dos animais enriquecidos atra-
vés da atividade dos receptores de AMPA (ácido a-amino-3-hydro-
xy-5-methyl-4-isoxazolepropiônico) (BREDY et al., 2003). Além
disso, estes autores também consideraram a possibilidade de atua-
ção do sistema serotonérgico no hipocampo, como participante des-
ta compensação. Em síntese, os resultados combinados de Bredy e
colaboradores (2003), e Liu e colaboradores (2000) sugerem a pos-
sibilidade de padrões de respostas equivalentes associadas a meca-
nismos fisiológicos distintos.
As experiências precoces podem alterar o desenvolvimento
das respostas do eixo hipotalâmico - hipofisário - supra-renal aos
eventos estressores (LUCION et al., 2003). O número de recepto-
res de glucorticóides no hipotálamo aumenta como resultado da
manipulação neonatal, acarretando respostas mais eficientes e es-
táveis em relação aos estressores (MEANEY et al., 1993). Por
conseqüência, os sistemas imunológicos destes ratos manipulados
ficariam protegidos dos efeitos deletérios dos esteróides supra-re-
nais (HUFF et al., 2003).
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 379
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
A criação em isolamento tem sido principalmente associada à
potencialização da função dopaminérgica no estriato (ver HALL et
al., 1998). Aparentemente, a privação social precoce também po-
tencializa a ação das vias dopaminérgicas de ligação do córtex pré-
frontal com o estriato (WÜRBEL, 2001). Por conseguinte, estas
alterações do sistema dopaminérgico no cérebro dos ratos isolados
têm acarretado o desenvolvimento de pesquisas visando ao aprimo-
ramento da compreensão de desordens psiquiátricas em humanos,
nas quais é assumido paralelismo entre os sintomas apresentados
por aqueles animais e os apresentados por pacientes esquizofrêni-
cos (SCHRIJVER et al., 2002).
A manipulação neonatal parece também estar associada à redu-
ção de neurônios no locus coerulus (LUCION et al., 2003), que é um
agrupamento de neurônios noradrenérgicos que possuem ação excitató-
ria sobre o eixo hipotalâmico-hipofisário-supra-renal. Provavelmente esta
é a razão que faz com que ratos expostos à manipulação neonatal apre-
sentem redução das secreções de corticosterona, ACTH e prolactina
diante de diversos estressores, e também apresentem retorno mais rápi-
do aos níveis hormonais basais presentes antes da situação estressora
(FERNÁNDEZ-TERUEL et al., 2002).
Implicações dos tipos de ambiente de criação sobre os resulta-
dos das pesquisas
Os procedimentos de enriquecimento ambiental para a criação/
manutenção de animais têm sido utilizados com os objetivos de: a) de-
senvolvimento de repertório comportamental mais “natural”, com a ma-
nutenção de padrões comportamentais típicos da espécies, como as
taxas de reprodução, e redução de comportamentos anormais, como a
supressão de padrões comportamentais autodestrutivos e estereotipias;
b) a melhora das condições de saúde dos animais, com aumento da
resistência dos organismos a doenças, aumento de longevidade e redu-
ção de níveis de cortisol; c) e aprimoramento do bem-estar psicológico
dos animais, através da possibilidade de busca de “presas”, da impre-
visibilidade e novidade no ambiente, das oportunidades para explorar e
ganhar informações sobre o ambiente, bem como das oportunidades
para interação social (GALEF , 1999).
380 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Os padrões de estimulação oferecidos pelos ambientes nos quais
os animais são mantidos geram alterações nas respostas observadas em
testes
de aprendizagem, memória, ansiedade e outros. Por esta razão,
Würbel (2001) chegou a questionar a validade externa das pesquisas
sobre as funções cerebrais complexas nas quais os animais são manti-
dos em ambientes empobrecidos, sugerindo que pelo menos parte dos
resultados obtidos nestes experimentos poderia representar idiossincra-
sias associadas às situações empobrecidas, mas não generalizáveis para
outras mais complexas.
Nas pesquisas com roedores submetidos a ambientes enriqueci-
dos, há grande variação nos padrões de ambiente, incluindo-se aí as dife-
renças nas composições dos grupos de animais. O ambiente enriquecido
normalmente contém: a) objetos, que os autores chamam de brinquedos,
que serviriam para manipulação pelos animais (PRUSKY et al., 2000);
b) túneis e abrigos, que serviriam como “locais seguros” para descanso,
locomoção, alimentação e interações sociais (CHAMOVE, 1989; CLA-
RK e GALEF , 1977; ZIMMERMANN et al., 2001); rampas de acesso,
ou objetos equivalentes, que serviriam para locomoção tridimensional
(ver CHAMOVE, 1989); e rodas de atividade. Além disto: a) as caixas-
viveiro têm tamanhos diferentes em diferentes estudos; b) os brinquedos
podem ser ciclicamente substituídos ou mantidos durante todo o período
em que os animais estão em investigação; c) a quantidade e os “tipos”
de brinquedos podem variar, apesar de que eles normalmente não são
bem descritos na literatura; d) os túneis e abrigos apresentados têm dife-
rentes formas e tamanhos em diferentes estudos; e e) as rodas de ativi-
dade podem ter diferentes diâmetros, larguras e ainda exigir diferentes
intensidades de força para se movimentarem.
As diferenças ambientais indicadas podem gerar importantes di-
ferenças nos resultados obtidos por pesquisas sobre enriquecimento
ambiental, como foi observado por Zimmermann e colaboradores (2001),
porém evitam os riscos das idiossincrasias. Neste sentido, estes auto-
res defendem que, à medida que evoluírem as teorias explicativas dos
efeitos do enriquecimento ambiental sobre o comportamento e a fisio-
logia, estas deverão se tornar capazes de explicar as diferenças obser-
vadas entre os estudos.
Os modelos de enriquecimento hoje apresentados têm sido efi-
cazes para o desenvolvimento teórico do campo de pesquisas, apesar
de que uma parte considerável deles é construída sob bases intuitivas
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 381
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
e econômicas, sem testes experimentais da funcionalidade dos estímu-
los de enriquecimento (WÜRBEL, 2001). Neste sentido, seria interes-
sante a produção de modelos de enriquecimento fundamentados em cri-
térios biológicos válidos para as espécies cativas, o que aprimoraria a
validade externa dos estudos, e provavelmente melhoraria a qualidade
de vida dos animais.
Implicações dos tipos de ambiente de criação sobre a qualidade
de vida dos animais
A importância dos efeitos dos ambientes físicos e sociais, bem
como dos procedimentos de manejo, sobre o bem-estar dos animais ca-
tivos foi reconhecida pela primeira vez pelo psicólogo Robert M. Yerkes
(1876-1956), em 1925. O campo de pesquisas sobre enriquecimento
ambiental tem sido influenciado, principalmente, pela Etologia, pela Zoo-
logia e pela Psicologia, no sentido da identificação de propriedades dos
ambientes de cativeiro que podem ter influência sobre as motivações
dos animais, a incidência de estereotipias e a emissão de comportamen-
tos adequados para a espécie (MELLEN e MACPHEE, 2001).
O trabalho clássico de Breland e Breland (1961) indica limitações
dos procedimentos de condicionamento operante para a obtenção de
padrões comportamentais desejados pelos experimentadores, e aponta
para a necessidade de reconhecimento da história natural das espécies
dos animais cativos na implementação de programas de pesquisa com-
portamental, de manejo e de enriquecimento ambiental. Ou seja, as pes-
quisas sobre enriquecimento ambiental desenvolvidas tendo-se por base
os conhecimentos da história natural da espécie podem mais facilmente
prover os animais com adequadas oportunidades espécie específicas de
interação com o ambiente e, conseqüentemente, contribuir para seu bem-
estar (MELLEN e MACPHEE, 2001).
Os animais cativos podem, muitas vezes, apresentar necessi-
dades inesperadas para os profissionais que os manejam, de modo
que a inserção de um animal num ambiente adequadamente cons-
truído sob um “olhar humano” pode não ser tão adequado para as exi-
gências dos animais da respectiva espécie (ver MELLEN e MACPHEE,
2001). Além disso, diferentes espécies de animais cativos possuem dife-
rentes necessidades.
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Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
No que se refere aos roedores de laboratório, há, espontanea-
mente, seleção de traços de docilidade, que de fato deve ser conside-
rada como um viés necessário, pois os espécimes selvagens, das espé-
cies normalmente manipuladas, exibem níveis elevados de estresse em
procedimentos comuns nestes ambientes, além de mostrarem-se peri-
gosos e difíceis de manuseio, pois mordem, urinam, vocalizam e defe-
cam muito (GALEF , 1999).
Não há acordo sobre as medidas de avaliação de saúde psicológica
de roedores, visto que: a) a menos que os animais se tornem agressivos, é
difícil a identificação de perturbação psicológica; b) eles apresentam uma
taxa reprodutiva normalmente superior a de outras espécies mantidas em
cativeiro; e c) é difícil a determinação de quais mudanças no ambiente de
manutenção dos animais contribuem para sua qualidade de vida, pois eles
não apresentam expressões faciais, vocalizações ou posturas indicativas
de estados psicológicos positivos. Em síntese, há as necessidades de medi-
das e critérios objetivos de saúde psicológica para a implementação de
programas de enriquecimento para roedores, bem como do desenvolvi-
mento de pesquisas investigando os efeitos de diferentes procedimentos
de enriquecimento sobre sua qualidade de vida (GALEF , 1999).
Galef (1999) questiona a funcionalidade do aumento das caixas-
viveiro como estratégia de enriquecimento ambiental para criação de
roedores, relatando que alguns anos antes de escrever seu artigo, o Ca-
nadian Council on Animal Care determinou um aumento do padrão da
altura das caixas para ratos de 16,8 cm para 20 cm, o que geraria gran-
des custos financeiros. Entretanto, uma questão-chave persistia: os ra-
tos ficariam mais confortáveis nas caixas novas ou nas antigas?
Os ratos noruegueses selvagens vivem em galerias formadas por
túneis com 7,5 cm de altura em média, que conectam câmaras de ninho
com 14,5 cm de altura (CALHOUN, 1962; apud GALEF, 1999). Galef
(1999) argumentou que os ratos de laboratório derivam de ratos selva-
gens, e que, portanto, talvez as caixas de 16,8cm de altura fossem dema-
siado altas para o bem-estar psicológico dos animais, e não baixas, como
supunham os membros do conselho canadense.
Assim, Galef e Clark, citados por Galef (1999), produziram um
experimento que permitiu aos ratos escolherem a proporção de tempo
que permaneciam em cada uma das caixas. Os autores simplesmente
ligaram as duas caixas comparadas por um túnel de 7,5cm de diâmetro,
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 383
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
esperaram cinco a seis dias para que os sujeitos se habituassem ao am-
biente e depois filmaram as caixas para testar em quais eles prefeririam
permanecer. A distribuição de permanência foi similar ao acaso.
Galef (1999) inseriu tubos de PVC de 15 cm de comprimento por
7,5cm de diâmetro em caixas com ratos acondicionados sozinhos ou em
pares. De 125 observações dos ratos
isolados, apenas cinco animais
estavam nos tubos de PVC; de 76 observações de sujeitos colocados em
pares, apenas em 13 havia animais nos tubos. A partir dos resultados de
seu pequeno experimento, ele concluiu que a freqüência de observações
dos animais nos tubos foi bastante inferior ao que seria esperado pela
distribuição casual dos animais nas várias partes das caixas. Aparente-
mente eles esquivavam-se do abrigo, e o uso mais freqüente dos canos
pelos animais colocados em duplas foi interpretado como uma tentativa
dos subordinados de permanecerem distantes dos focos de atenção dos
dominantes. O autor apontou que não há argumentos e evidências con-
sistentes de que roedores acondicionados com conespecíficos estariam
sempre em condições melhores do que outros acondicionados sozinhos.
Ele também argumenta que, quando dois ratos são colocados juntos, for-
mam uma hierarquia de dominância na qual um será o dominante, e o
outro, o subordinado, e o dominante provavelmente estaria numa condi-
ção melhor do que se estivesse sozinho, porém o mesmo não poderia ser
dito em relação ao subordinado.
Mesmo que a hipótese do uso do cano com instrumento de esquiva
pelos animais, sugerida por Galef (1999), esteja correta, não pode ser
considerada como um argumento de que o isolamento social seria uma
opção melhor de acondicionamento de roedores. O resultado sugere que,
na melhor das opções, os ambientes de acondicionamento deveriam pos-
sibilitar aos animais subordinados a opção de controle da proximidade
física e do contato sensorial com os dominantes, pois, em ambiente natu-
ral, os ratos vivem em grupos, em territórios com sistemas de galerias,
onde há esta possibilidade. Além disso, a criação em isolamento social
gera uma série de alterações comportamentais em ratos, que podem ser
inferidas como associadas à redução de qualidade de vida.
O enriquecimento social pode gerar diferentes efeitos entre es-
pécies, sexos e idades dos animais. Em condições de laboratório, o
acondicionamento em grupos formados somente por machos ou fê-
meas não prejudica o sistema imunológico de indivíduos da espécie
384 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Microtus ochrogaster, nem de fêmeas de M. pennsylvanicus, porém
gera prejuízos para os machos desta última (KLEIN e NELSON, 1999).
Gerbilos da Mongólia (Meriones unguiculatus) formam, em ambiente
natural, agrupamentos familiares (ÅGREN et al., 1989), de modo que,
se são mantidos neste tipo de agrupamento no laboratório, as agres-
sões intra-específicas são muito raras. Em comparação com gerbilos
mantidos em família, os animais mantidos solitários apresentam au-
mento da freqüência cardíaca, da massa e volume das glândulas adre-
nais, e dos níveis circulantes de glucorticóides, o que indica que a situ-
ação solitária é estressante para eles (GATTERMANN e WEINAN-
DY, 1997). Deste modo, a composição dos grupos em laboratório deve
ser feita de acordo com critérios ecologicamente válidos para a espé-
cie, sob risco, no caso de não consideração da sua história natural, de
impor-lhes condições de sofrimento.
Os gerbilos são sensíveis aos padrões de estimulação sensorial ofe-
recidos nos laboratórios. Eles tendem a permanecer mais tempo em cai-
xas mais escuras, se tiverem a possibilidade de escolher entre caixas
idênticas com diferentes níveis de luminosidade, variando entre 0 e 75%
de escurecimento da área da caixa, isto é, 375, 175, 120 e 40 lux na
altura do ninho (VAN DEN BROEK et al., 1995). Estes estudos auxili-
am na identificação das propriedades do ambiente que seriam associa-
das ao aprimoramento da qualidade de vida dos sujeitos experimentais.
Gerbilos criados sob condições-padrão de laboratório crescem e se
desenvolvem mais rapidamente, alcançam maturidade sexual mais cedo,
são menos reativos à estimulação – isto é, novidade, apresentam glându-
las adrenais mais leves, e glândulas pituitárias e órgãos reprodutivos mais
pesados do que gerbilos criados em ambientes que permitem acesso a
sistemas de abrigo tipo túnel. As taxas de desenvolvimento, e os pesos
dos órgãos reprodutivos e da glândula pituitária são resultados da redu-
ção de iluminação, enquanto os pesos corporais e das glândulas adrenais
parecem resultar da combinação da redução de exposição à luz e do
acesso ao túnel (CLARK e GALEF, 1981).
O enriquecimento ambiental imposto aos gerbilos (inclusão de sis-
temas de túneis) aumenta o nível de perturbação psicológica exibido pe-
los filhotes quando estes precisaram ser manipulados pelos experimen-
tadores, de forma que este procedimento pode ter efeitos negativos, con-
trário ao que poderíamos esperar à primeira vista (GALEF, 1999).
Carlos Roberto de Oliveira Nunes, Rogério F. Guerra e Vera Sílvia Raad Bussab — 385
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
O efeito ansiogênico provocado pelo sistema de galerias de
túneis em gerbilos é um bom exemplo do desafio imposto quando
equipes de pesquisa propõem criar condições de enriquecimento a
seus animais. Primeiramente por causa das diferenças inter-espe-
cíficas, pois camundongos mantidos em ambientes que se asseme-
lhavam mais às condições naturais das tocas se tornam menos ex-
citáveis (CHAMOVE, 1989). Em segundo lugar, com a alteração
da infra-estrutura ambiental podem surgir efeitos colaterais inespe-
rados, que a equipe terá de administrar. Em terceiro lugar, este é
um exemplo de que a situação de escolha livre pelos animais pode
gerar problemas, não sendo critério suficiente para seleção do mo-
delo de enriquecimento.
A manipulação neonatal apresenta efeitos mais complexos do que
aparentam. A redução da reatividade emocional dos sujeitos experi-
mentais deveria resultar em aumento da resistência imunológica, pela
redução da estressabilidade. Entretanto, a manipulação, dependendo
dos procedimentos específicos utilizados, pode estar associada à redu-
ção de resistência a doenças (MOYNIHAN et al., 1992). Além disso,
ela é associada à redução do potencial reprodutivo das fêmeas adultas
que durante o início de seu desenvolvimento neonatal foram submeti-
das a este procedimento, porque elas apresentam mais ciclos estrais
anovulatórios (LUCION et al., 2003), sem contar ainda que a manipu-
lação neonatal é um método completamente artificial de estimulação
dos filhotes, porque, em ambiente natural, eles muito dificilmente seriam
submetidos a intervenções deste tipo por humanos.
Diante das dificuldades de definição operacional exata do que é
“enriquecimento ambiental”, Mellen e MacPhee (2001) sugerem que
os ambientes impostos aos animais cativos, respeitadas as característi-
cas comportamentais e fisiológicas das diversas espécies e ordens,
devem: a) oferecer condições adequadas para a reprodução – isto é,
acasalamento e cuidados parentais –; b) minimizar o estresse crônico;
c) permitir que os animais lidem adequadamente com situações gera-
doras de estresse agudo; e d) proporcionar condições para que os ani-
mais exibam padrões comportamentais típicos da espécie e menos fre-
qüentemente possível as respostas aberrantes. O pressuposto dos au-
tores é de que estas diretrizes, conduzidas em conjunto, deveriam ele-
var a qualidade de vida dos animais cativos.
386 — Enriquecimento ambiental, privação social e manipulação neonatal
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.365-394, outubro de 2003
Em relação aos roedores de laboratório, um conjunto mais especí-
fico de critérios, a serem observados conjuntamente pode ser definido:
a) o nível de excitabilidade dos animais diante dos procedimentos de
manipulação no laboratório (GALEF, 1999); b) as condições gerais de
saúde; c) os níveis de agressão intra-específica; d) os níveis circulantes
de hormônios supra-renais associados a estresse; d) a freqüência

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