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Aula 1: apresentação do módulo No módulo do semestre anterior, nós estudamos a filosofia em geral. Tratava-se de um módulo de introdução à filosofia, e por isso nós passamos por algumas das grandes escolas filosóficas, representantes dos principais períodos históricos da filosofia. Agora, neste segundo semestre, nosso trabalho é o de estudar as influências de certas escolas filosóficas ou de certos pensamentos filosóficos sobre a teoria e a prática profissional do serviço social. Trata-se então de estudar os pressupostos filosóficos, teóricos, que estão na base do serviço social no Brasil; pressupostos explícitos ou implícitos, assumidos ou não, e que estiveram na base da constituição do serviço social, na sua origem, e que ainda se fazem presentes; trata-se de estudar, ainda, matrizes filosóficas que penetraram o campo do serviço social, enquanto posições teóricas explicitamente assumidas como ferramenta na luta contra antigos pressupostos: é o caso do marxismo, a partir (sobretudo) dos anos 70. Todos vocês sabem: o serviço social nasce sob a égide das práticas religiosas católicas. Ele tem sua origem no assistencialismo religioso da Igreja, sobretudo a partir dos inícios do século XX. Poderíamos chamá-lo de “assistencialismo social católico” E por que esse serviço é social? Porque a prática da caridade nos séculos XIX (segunda metade) e XX não pôde permanecer indiferente aos efeitos maléficos e necessários do capitalismo contemporâneo. E, portanto, a ajuda ao próximo leva em conta não Maria ou José, este ou aquele indivíduo, mas toda uma coletividade. O “próximo” é um coletivo de pessoas na mesma situação. Essa nova situação exige uma nova organização da caridade; por isso se pode falar em assistencialismo social. Neste contexto, são criadas instituições de caridade católicas, no seio mesmo da Igreja, mas por assim dizer paralelas às igrejas. Nestas instituições, o fiéis leigos realizam sua obra caridosa. A direção é da Igreja e seus mandatários, mas o trabalho grosso é do laicato. Que instituições são essas? São hospitais, sanatórios, asilos, grandes restaurantes etc. As escolas não: os colégios católicos são uma outra história... Mas o que é que embasa toda essa prática caridosa, em termos ideológicos? Nós sabemos: São Tomás de Aquino, isto é, o tomismo. De fato, nos veremos que, dentre as três virtudes teologais, a caridade, em Tomás, é a principal. A fé, é claro, é muito importante, mas apenas como ponto de partida. A esperança liga-se diretamente à fé: é a espera da redenção e da salvação final, a espera da volta de Jesus, é espera de muita coisa boa... Mas sem a caridade, nada feito. Nisto Tomás é um fiel seguidor da Bíblia. Vocês lembram? “...ainda que eu falasse a língua dos homens, e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria” (Renato Russo, 13:4...) – esse “amor” é traduzido, principalmente nas Bíblias católicas, por caridade. Esse trecho é uma passagem da Primeira Carta de Paulo aos coríntios. Na Vulgata: “caritas patiens est benigna est caritas non aemulatur non agit perperam non inflatur...”. O termo grego é agaph, ágape. Em todo caso, em Cor. I, 13:13 é dito que a caridade é mais importante do que a fé e a esperança... Portanto, dizer que Tomás é o pano de fundo ideológico das práticas do serviço social nas primeiras décadas do século XX é dizer que o elemento central dessa ideologia é a noção de Caritas. Contudo, a influência de Tomás sobre o serviço social da Igreja nãoé direta: ela se dá através no neotomismo, isto é, do tomismo lido pelos contemporâneos. Dentre os neotomistas, destaca-se antes de tudo Jacques Maritain, e este enfatiza, não a caridade, mas a ideia de um “humanismo integral” e de “dignidade da pessoa humana”, conceitos que ele afirma encontrar embasamentos teológicos e filosóficos em Tomás. Mas talvez a caridade tenha sido subestimada, quando se fala das relações entre esse neotomismo de Maritain e o serviço social. Notem: o Doutor Angelicus é o grande nome da Igreja, e esse “grande nome” tem a caridade como virtude central de sua teologia. Se, portanto, o legado de Tomás é retomado no século XX, é evidente que a caridade deve ter um papel central - sobretudo quando se considera que a influência do novo tomismo, aqui, é sobre o serviço social. Se nós considerarmos, além disso, o contexto religioso brasileiro da primeira metade do século XX, veremos o papel ainda mais importante da caridade. É que é nesse período que se dá a ascensão do espiritismo kardecista no Brasil. O Brasil é o maior país kardecista do mundo. Se há um país em que a doutrina de Allan Kardec deu certo, esse país é o Brasil. Os números falam em 3 milhões e poucos, mas há muitos simpatizantes e praticantes esporádicos. De modo que universo kardecista no Brasil deve girar em torno dos 10 milhões de adeptos diretos e indiretos. O que importa é que o surgimento e o crescimento do kardecismo no Brasil trouxe uma concorrência no campo religioso e, neste caso, no campo das práticas de assistência social, que era quase monopólio da Igreja. Não se pode desprezar esse fator. Isso implica que a prática caridosa ganha uma importância maior ainda: a Igreja agora tem que fazer um “serviço social” com mais afinco para não perder fieis. Mas, curiosamente, no que se refere à caridade, o kardecismo é muito mais católico do que os próprios católicos, se considerarmos o preceito paulino e a sistematização teológica de Tomás. De fato, ainda hoje há uma “grande” rede de assistência social espírita, mantida com trabalhos realizados sob o preceito da caridade. É que no kardecismo a caridade é uma das grandes vias de aperfeiçoamento, progresso e evolução espiritual. O evolucionismo kardecista talvez explique o sucesso do espiritismo no Brasil. Porque esse elemento é um ponto em comum que o kardecismo tem com uma doutrina filosófica que também ira influenciar o serviço social: o positivismo. Nós sabemos que as forças armadas no Brasil eram e são positivistas. Qual é mesmo o lema inscrito na bandeira brasileira? “Ordem e progresso”. Essa expressão é do próprio Comte, que a considerava uma síntese do seu pensamento. Comte dizia que, com ela, ele combatia tanto os conservadores quanto os revolucionários: os conservadores eram considerados um atraso social; os revolucionários, uma bagunça social, a própria desordem, o caos, a anarquia. Comte queria superar ambos: os conservadores não queriam sair do lugar – quando na verdade a sociedade é desde sempre progresso, movimento rumo ao melhor e à superação das formas atrasadas e obsoletas de organização e convivência; os revolucionários desejavam mudar a sociedade, mas sem ordem (até sem o Estado, no caso dos anarquistas), sem organização, levando portanto a sociedade ao caos. Em vez disso, Comte pregava que a sociedade devia evoluir, progredir, mas com ordem, com organização. Portanto: ordem e progresso. Daí a importância das ciências, e sobretudo de uma ciência social em particular – a sociologia, termo que ele próprio criou. A sociologia é a principal ciência, em Comte, porque, para ele, se o homem não evolui, nada progride, nada vai bem, e portanto as outras áreas também não evoluem. Mas o progresso do homem é social, isto é, ele não faz nada sozinho. Todo o progresso humano é fruto de um trabalho coletivo. O próprio fato de o homem ser tão especial face aos outros animais deve-se ao fato de ele viver em sociedade. Como dizia Aristóteles, o homem é um “animal político” – isto é, social. Enquanto ciência, a sociologia é o estudo da organização e do funcionamento da sociedade, e enquanto tal é ela mesma um instrumento de aperfeiçoamento do social, uma ferramenta teórica que tem implicações práticas. Vem daí a ideia difusa do sociólogo como “médico do social”: a sociedade apresenta certas patologias, que o sociólogo diagnostica e tenta curar. O sociólogo deve antes de tudo verificar os distúrbios ou disfunções sociais. Nessa visão, os elementos revolucionários são vistos como sintomas de algo que não vai bem. Organizada, a sociedade deve progredir por si só, sem forçamento de barra. Se há elementos de descontentamento, ela não está funcionando como deveria estar. Organização e funcionamento: duas ideias centrais da visão positivista da sociedade. Significa que os elementos que compõem o mundo social devem cada um cumprir uma certa função, seja para a conservação, seja para o progresso ordenado do social. É o funcionlaismo. Portanto, a visão funcionalista de mundo (que nós veremos muito pouco em nosso módulo) vai de par com a visão positivista. Na verdade, poderíamos dizer que, enquanto o positivismo constitui-se numa teoria social e numa visão de mundo ampla, o funcionalismo acaba sendo quase que o método do positivista. Vejam: se sou positivista, acredito num evolucionismo e num progresso social; mas se é assim, as coisas caminham ou deveriam caminhar sempre rumo a um estado ou estágio melhor, superior (daí “positivismo”); e, neste caso, as coisas são e existem com vista a um fim, a uma finalidade. o positivismo é, assim, teleológico. Se as coisas existem para, conhecê-las é perguntar e responder a pergunta sobre o “para quê” elas servem, qual a sua função, enquanto parte de um todo – donde a visão funcionalista logo, o funcionalismo, neste caso, é um método de abordagem positivista de um determinado objeto. Dentro dessa visão positivista-funcionalista, que lugar ocupa a prática da assistência social? A resposta é evidente: ela deve cumprir uma função social de conservação do social, ao mesmo tempo em que ela deve permitir o seu progresso organizado, ordenado. Além disso, a assistência social deve corrigir ou eliminar os efeitos maléficos do capitalismo; mas estes efeitos não são vistos ou compreendidos como tais, isto é, como efeitos necessários de um sistema ou modo de produção sócio-econômico determinado E por que não o são? Porque a assistência social é pensada e praticada num âmbito religioso e positivista, e por isso mesmo moralista. Deve-se ajudar “o próximo”, porque “o próximo” encontra-se numa situação cuja causa é depositada nele mesmo: trata-se, quase sempre, de um problema de culpa, de pecado, de desvio espiritual. O importante, nessa visão, é que as causas do efeito que se combate não são conhecidas, ou não são assumidas, seja por conta de uma ideologia religiosa que tem em seu centro a noção de caridade, seja por conta de uma ideologia positivista-funcionalista, que tem em seu centro a noção de progresso ordenado. Trata-se portanto de uma visão e de uma prática assistencialista e conservadora. Essa visão e essa prática têm como base filosófica, de um lado, o neotomismo; de outro, o positivismo e seu método funcionalista. Uma observação. A relação entre neotomismo e positivismo não é exatamente harmônica: eles têm em comum a inspiração aristotélica (coerência entre as partes do todo; finalismo; o homem como “animal social”); mas de certa forma o neotomismo é uma reação ao positivismo cientificista Contra a visão positivista, mas não necessariamente contra a visão neotomista, emergirá no serviço social a abordagem fenomenológica. Nós já vimos um pouco no semestre passado, mas retomaremos agora a ideia de que a apropriação da fenomenologia é antes de tudo metodológica: É o método fenomenológico que interessa à prática do serviço social, não a filosofia em si. Mas justamente aí – numa abordagem fenomenológica – é que reside o maior problema: Será que esse método é apropriado? Pois, talvez, ele necessariamente tem de ser individualista, já que lida com o fenômeno da consciência individual (algo que na filosofia fenomenológica de Husserl não trazia nenhum problema, já que o sujeito, aí, é o sujeito transcendental, não este ou aquele indivíduo) Nesse sentido, a entrada em cena da visão marxista no serviço social é desde o início uma crítica a essas três grandes bases filosóficas do serviço social no Brasil Como é que essa visão marxista alcança o serviço social? Há várias causas. Nós vimos que o serviço social das igrejas era e é praticado pelo laicato, parte do qual será atingido pela visão marxista inclusive parte do clero, no Brasil e na América Latina, adotará uma religiosidade de esquerda. Mas o mais importante é que, antes disso, esse serviço social, essencialmente caridoso, não dá conta do recado; ele é insuficiente diante dos efeitos crescentes do capitalismo. Na Europa, nós sabemos o que ocorrerá: o Welfare State, com a social-democracia. No Brasil, de certa forma, também, a partir de Vargas, nos anos 30, mas sempre de forma incompleta, precária, insuficiente. Significa, lá como aqui, que o Estado assume certas demandas sociais, diante de determinadas pressões (lutas, movimentos sociais). E é nesse movimento que entra o serviço social propriamente leigo. Mas essa laicização é ainda mais “agravada”, quando, nos anos 60, a universidade brasileira começa a se transformar – e essa transformação é inseparável do movimento geral de transformação das universidades mundo afora. Um dos elementos centrais dessas mudanças é a entrada em cena do marxismo científico nas universidades – algo que na Europa começa logo após 1945. Antes disso, o marxismo era apenas uma arma teórica de partidos e sindicatos – não era assunto de acadêmicos. Mas no Brasil é já nos anos 60, sobretudo, que o marxismo científico alcança as universidades – incluindo as católicas. Quando, em 64, há o golpe, daí o processo esquenta. E o serviço social não poderá permanecer alheio a tudo isso. E não ficará. É por isso que uma ala importante do serviço social – mas não em sua totalidade – será atingida por essas transformações, por meio das mudanças, não só políticas, mas também, digamos, acadêmicas. Mas o marxismo é uma teoria crítica, e como tal, nós veremos, ele coloca questões ao próprio serviço social enquanto tal, no jogo de relações de produção e reprodução do capital. Pode o serviço social ser marxista? O serviço social pode adotar a teoria marxista, como pode, em princípio, adotar qualquer teoria. Mas ele pode adotar a prática marxista? Ele pode adotar a ciência marxiana; mas será que ele pode adotar a revolução marxiana? Será que, para o serviço social, adotar a práxis revolucionária não significa superar-se a si mesmo? Pois, neste caso, o serviço social se empenharia em combater e eliminar a causa dos efeitos com os quais ele lida e que constituem o núcleo do sentido de sua dimensão prática.