Logo Passei Direto
Buscar

Crítica _ Para que serve o ensino_

User badge image

Enviado por Nathalia Valle em

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

A Escola do Silêncio, de Jean Delville (1867-1953) 2 de Fevereiro de 2007 · Ensino da filosofia
Para que serve o ensino?
Desidério Murcho
O valor intrínseco do conhecimento é o princípio central que deve orientar não apenas a política educativa
como qualquer intervenção que se faça no ensino. O ensino, ainda que tenha valor instrumental por outras
razões, serve primariamente para pôr os estudantes em contacto com o conhecimento, nas suas mais
diversas áreas. Estas são as ideias fundamentais que orientam o presente trabalho. Para argumentar a seu
favor, iremos esclarecer o seu significado e consequências. Este esclarecimento permite mostrar que as
objecções e posições contrárias resultam de incompreensão ou de doutrinas que ninguém quererá defender
explícita e claramente, pois são incompatíveis com o interesse educativo nacional e, muitas vezes, com as
próprias finalidades que tais doutrinas supostamente pretenderiam alcançar.
Valor intrínseco e instrumental
Não precisamos de uma teoria sofisticada sobre o valor para distinguir com algum rigor o valor
instrumental do intrínseco. Uma vacina tem valor meramente instrumental, por exemplo, porque permite
prevenir doenças; mas ter uma vida feliz é algo que tem valor intrínseco, dado que não queremos ter uma
vida feliz por causa de outra coisa qualquer, mas pelos seus méritos intrínsecos.
Afirmar que o conhecimento tem valor intrínseco é afirmar que o conhecimento tem valor por si, e não
unicamente por causa de outros valores que o conhecimento possibilita. Contudo, afirmar que o
conhecimento tem valor intrínseco não é incompatível com o reconhecimento do valor instrumental do
conhecimento. O conhecimento da química e da biologia, por exemplo, tem valor intrínseco — mas também
tem valor instrumental, dado que nos permite, por exemplo, produzir fármacos e vacinas muitíssimo
eficazes contra doenças terríveis.
Poderá defender-se que nada tem valor intrínseco porque o valor é apenas o valorizar de alguém. Mas este
argumento revela uma incompreensão da distinção entre valor intrínseco e absoluto. Defender que o valor
é apenas o valorizar de alguém é defender que o valor não é absoluto: é relativo aos agentes que valorizam
coisas. Mas podemos perfeitamente aceitar que o valor é relativo e continuar a argumentar que há valores
intrínsecos. Nesse caso, o valor intrínseco será, precisamente, o que um agente valoriza por si e em si, e não
por causa de outra coisa qualquer.
Afirmar que o conhecimento tem valor intrínseco é outra maneira de dizer que a verdade é um valor
intrínseco. Pois conhecer é conhecer verdades — não há conhecimento de falsidades. Claro que há crenças
falsas e claro que por vezes pensamos que sabemos algo que não sabemos. Mas é impossível saber uma
falsidade — ninguém pode saber que a língua oficial de Portugal é o castelhano, porque não é, mas algumas
pessoas poderão pensar, erradamente, que é. Não basta acreditar que algo é verdade para que seja
realmente verdade; e não há processos automáticos para saber o que é ou não verdade. As verdades
descobrem-se de diversas maneiras, em função do tipo de verdade em causa — por exemplo, os métodos
particulares de prova na matemática não são adequados na história, os métodos da história não são
adequados na física e os métodos da física não são adequados na filosofia. Claro que há zonas de contacto em
todos estes casos; poderá ser possível usar a matemática para provar um certo aspecto de pormenor da
história do antigo Egipto, por exemplo, mas não é em geral possível demonstrar matematicamente
resultados históricos importantes.
A verdade é um mito?
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
1 de 17 29/10/2012 03:43
A verdade é um valor intrínseco porque sem a verdade nenhuma outra atribuição de valor faz sentido.
Valorizar a felicidade, por exemplo, pressupõe que é verdade que a felicidade tem valor.
A verdade não é um conceito que possamos abandonar, como se pode abandonar o conceito de flogisto ou do
deus Apolo. A verdade não é uma ilusão da "modernidade", pelo simples facto de que até para afirmar tal
coisa temos de pressupor a noção de verdade — caso contrário, não estaríamos a dizer uma verdade ao
declarar que a verdade é uma ilusão. É, pois, incoerente abandonar o conceito de verdade.
Daqui não se segue que seja o que for que alguém, ou algum grupo, pensa que é verdade é realmente
verdade. Assim, os colonizadores europeus do séc. XVI podiam pensar que era verdade que os indígenas
americanos eram inferiores e não tinham direitos. Mas daí não se segue que tal coisa fosse realmente
verdade. E hoje sabemos que não é verdade. Nem é possível criticar o colonialismo se abandonarmos o
conceito de verdade, pois nesse caso não poderemos dizer que é falso que os indígenas americanos eram
inferiores e não tinham direitos.
A doutrina de que todas as verdades são relativas é insustentável por duas razões. Em primeiro lugar,
porque é incoerente: se todas as verdades são relativas, também essa doutrina é uma verdade relativa. E se é
uma verdade relativa, significa que é falsa para algumas pessoas, nomeadamente para quem não aceita a
doutrina. Em segundo lugar, porque é uma confusão entre as noções de verdade e de crença1. Claro que os
colonizadores europeus do séc. XVI acreditavam que os índios e os negros não tinham direitos. Mas do facto
de acreditarem em tal coisa não se segue que era realmente verdade; só se as pessoas fossem omniscientes é
que todas as suas crenças seriam verdadeiras — mas as pessoas não são omniscientes. Assim, nunca foi
verdade que a Terra esteve no centro do universo — mas durante muito tempo algumas pessoas pensavam
que isso era verdade. Dizer que foi verdade que a Terra estava no centro do universo e que depois deixou de
o ser é uma forma confusa e incorrecta de falar. Correctamente falando, o que se quer dizer é que as pessoas
acreditavam que a Terra estava no centro do universo, mas depois descobriram que estavam enganadas.
Por outro lado, do facto de algo ser verdade não se segue que alguém tenha o direito de o impor a outra
pessoa, violando os seus direitos básicos. Se alguém quer acreditar que o Pai Natal existe, deve ter a
liberdade de o fazer, desde que não aja de modo a prejudicar outras pessoas2. Uma motivação para
abandonar a noção de verdade é uma incompreensão da noção de tolerância. Quem é incapaz de
compreender correctamente o que é a tolerância, pensa que não se pode tolerar o que se sabe ou se acredita
que é falso. Desse ponto de vista, teremos de abandonar a ideia de que há realmente falsidades objectivas,
para podermos dizer que as perspectivas diferentes das nossas não são realmente falsas — são apenas
perspectivas diferentes — e, como tal, podem ser toleradas. Mas se tolerar fosse apenas tolerar o que
sabemos que não é falso, a tolerância não seria tolerância. Tolerar é tolerar que os outros pensem e façam o
que consideramos errado e incorrecto. Tolerar é reconhecer o direito a estar errado e não eliminar a
própria possibilidade de estar errado, declarando que não há verdades.
Estas observações sucintas sobre a verdade são necessárias porque pode haver a tentação de orientar a
política educativa por doutrinas "pós-modernas", que declaram que a verdade é um mito3. Ora, a primeira
vítima da ideia de que a verdade é um conceito obsoleto é a excelência do ensino. Pois se pensarmos que não
há verdades, não iremos valorizar as provas4 nem a argumentação. E quando isso acontece, o ensino
transmite ao estudante técnicas de supressão de provas e de argumentos como se fossem técnicas de
investigação legítimas: o estudante aprende a citar e parafrasear os autores que foi sub-repticiamente
motivado a encarar como autoridades indiscutíveis, não aprendendo a discutir com rigor e autonomia as
ideias desses autores. Não se pode esperar que este tipo de ensino prepare os estudantes para discutir ideias
antagónicas com imparcialidade, rigor e honestidade intelectual.
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
2 de 17 29/10/2012 03:43
Para se valorizar o esforço do estudo objectivo das coisas é preciso não se aceitar a ideia de que a verdade é
um conceito obsoleto. Pois se a verdade é um conceito obsoleto, tudo vale. E quando tudo vale, ganha quem
tem mais poder — político, económico ou retórico. Nesse caso, o debate nacional, tanto público como
escolar e académico, torna-se um mero jogo de forças. Só vale a pena o esforço do estudo e do debate
imparcial e objectivo quando concordamos todos que a verdade e o conhecimento não são posse de
ninguém; quando concordamos que do facto de pensarmos que algo é verdade não se segue que é realmente
verdade. Ora, abandonar o conceito de verdade por ser pretensamente obsoleto é equivalente a declarar que
seja o que for que alguém pensa é verdade — pois se nada há que faça o pensamento de alguém ser
verdadeiro ou falso, o que cada pessoa pensa é verdade, pois "verdade" passa a querer dizer "o que cada
pessoa pensa" e é óbvio que o que cada pessoa pensa é o que cada pessoa pensa.
Estas ideias são óbvias quando as articulamos claramente. Mas se não o fizermos, corre-se o risco de
defender que nada há para discutir, a menos que aceitemos que a verdade é um mito. Assim, o defensor da
discussão na sala de aula sentir-se-ia na obrigação de defender que a verdade é um mito, precisamente para
argumentar contra o ensino dogmático, meramente expositivo. Esta posição é incoerente, pois significaria
que não seria verdade que um ensino menos dogmático é preferível a um ensino dogmático; não seria
verdade precisamente por não haver verdades. Além de incoerente, esta posição baseia-se na confusão entre
a verdade e o nosso conhecimento dela. Do facto de termos de admitir que há verdades, sob pena de
incoerência, não se segue que saibamos automaticamente quais das nossas crenças são verdadeiras — afinal,
não somos omniscientes. Pelo contrário, é precisamente porque pensamos que a verdade não é um mero
acordo de cavalheiros que nos damos ao trabalho de procurar provas e argumentos. Se pensarmos que a
verdade é um mero acordo, concluiremos que toda a discussão e procura de provas é uma perda de tempo,
pois basta que alguém decida o que é a verdade para que seja verdade e portanto acabar a discussão. Pior,
quem achar que o que alguém decidiu que é verdade não é realmente verdade, com base em quê poderá
defender a sua posição? Se não há verdades para serem conhecidas imparcialmente por nós, as provas e os
argumentos não têm razão de ser. E sem provas nem argumentos, a discussão passa a ser uma gritaria
irracional.
Em conclusão, se queremos um ensino criativo e que não se limite a ser expositivo e dogmático, temos de
aceitar que a verdade não é um mito. Mas também devemos evitar a ideia radical de que vale a pena discutir
tudo; para que o estudante possa mais tarde discutir os resultados científicos mais fundamentais, tem de os
dominar. E em muitos casos o ensino expositivo de algumas matérias é a melhor maneira de o estudante as
dominar. O importante é escolher tais matérias em função da sua centralidade cognitiva.
A desvalorização do conhecimento
Sem uma concepção forte do valor intrínseco do conhecimento este tem tendência para ser prostituído,
sendo usado como instrumento de dominação e diferenciação social. O conhecimento é por vezes usado
instrumentalmente pela escola e pela sociedade, como marca de distinção das classes favorecidas; uma
citação de um autor prestigiado e difícil pode ser marca de distinção social, um pouco como exibir um
telemóvel caro. Quando a escola e a sociedade usam o conhecimento instrumentalmente do modo descrito,
o professor pode ser opaco, obnóxio, quase ininteligível — mas o estudante esforça-se por aprender porque
o seu meio social valoriza instrumentalmente o conhecimento. As crianças e adolescentes são
particularmente vulneráveis às pressões sociais; para agradar aos adultos e para se integrarem
socialmente, as crianças e adolescentes são capazes de se esforçar por memorizar fórmulas, datas históricas
e outros conteúdos para elas intrinsecamente desinteressantes, mas que são instrumentalmente
importantes.
Contudo, se o conhecimento perder o único valor que lhe é atribuído, o valor instrumental, o esforço
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
3 de 17 29/10/2012 03:43
escolar deixa de fazer sentido para a criança e para o adolescente — a não ser que o conhecimento seja
valorizado intrinsecamente, ou por qualquer outro factor instrumental. Isto acontece mesmo que a escola e
a universidade continuem a garantir melhores empregos, desde que a sua família, a sociedade no seu todo e
a própria escola transmitam à criança e ao adolescente a ideia oposta, empiricamente falsa5. É previsível
que as crianças e adolescentes mais vulneráveis à desvalorização do conhecimento serão as oriundas de
famílias que, por algum motivo (nomeadamente, pobreza cultural), não atribuem qualquer valor
intrínseco ou instrumental à escola. As crianças e adolescentes das famílias que continuam a valorizar o
conhecimento irão esforçar-se na escola, porque para elas o esforço faz sentido — mais que não seja, para
agradar aos pais, ou para os imitar, ou para se integrarem no seu grupo social. Consequentemente, é
previsível que os fossos culturais se aprofundem, quando a sociedade no seu todo e o sistema de ensino não
valorizam o conhecimento. As crianças e adolescentes das famílias culturalmente favorecidas serão
privilegiadas não por terem maiores capacidades cognitivas, mas porque a escola e a sociedade enganou as
outras crianças e adolescentes, dando-lhes a falsa impressão de que o conhecimento e a escola não têm
qualquer valor6.
Quem tem por ideal uma sociedade mais justa ficará obviamente indignado com esta situação. Quem
pertencer às classes privilegiadas poderá querer proteger os seus filhos da concorrência que eles teriam de
enfrentar caso todas as crianças e adolescentes fossem estimulados a esforçar-se na escola. Mas mesmo
quem pertence às classes privilegiadas tem muito a perder com uma escola que não valoriza o
conhecimento e consequentemente não estimula todas as crianças e adolescentes a conhecer. Isto porque a
consequência previsível de uma sociedade baseada numa escola deste género é uma sociedade com maior
incidência de incompetência profissional. Todos temos a perder com a situação, pois todos queremos, por
exemplo, engenheiros, políticos e médicos competentes, independentemente da sua origem social.
Preferimos engenheiros, políticos e médicos de elevadíssima competência, capazes de resolver os
problemas mais difíceis que compete às suas profissões resolver, a profissionais dessas áreas menos
competentes, mas unicamente oriundos de famílias culturalmente favorecidas.
Além disso, é previsível que uma sociedade baseada numa escola que não valoriza o conhecimento produza
uma percentagem muito elevada de pessoas frustradas e que dedicam bastante mais atenção e energia
cognitiva aos seus interesses não profissionais do que aos profissionais, porque as profissões foram
escolhidas não em função dos talentos de cada um, mas da sua origem social. Um professor que o é só
porque não teve de concorrer com pessoas que teriam mais talento do que ele para desempenhar essa
função seria provavelmente mais feliz se tivesse outra profissão; ao passo que um taxista com um perfil
cognitivo adequado seria mais feliz, e seria um professor mais competente, se lhe tivesse sido dada essa
oportunidade quando era criança e adolescente.
Um círculo vicioso
Perante a percepção pública de que o conhecimento não tem valor instrumental, uma estratégia errada do
sistema educativo seria aceitar que o conhecimento não tem valor intrínseco. Quando o sistema
educativo
não valoriza o conhecimento, é natural que abandone as disciplinas centrais do conhecimento, e respectivos
conteúdos, precisamente porque não lhes atribui valor. Em vez de se estudar seriamente física, geografia,
matemática ou filosofia, por exemplo, afastam-se os conteúdos tradicionais destas disciplinas, assim como
as próprias disciplinas, substituindo-os por "competências" vagamente definidas, leitura de jornais,
conversas informais com o professor, brincadeiras sem valor cognitivo, "visitas de estudo" sem estudo,
"actividades educativas" sem conteúdo cognitivo, etc. Os filhos das famílias culturalmente favorecidas, e
com suficiente poder de compra, serão compensados com aulas privadas, incluindo música e artes, além de
serem ensinadas pelos próprios pais; as outras crianças e adolescentes ficarão culturalmente depauperadas
e sem acesso aos conteúdos centrais do património cognitivo e artístico da humanidade, conhecendo apenas
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
4 de 17 29/10/2012 03:43
a realidade imediata da televisão ou do que ouvem na rua.
Por outro lado, a ausência de conteúdos bem delimitados, rigorosos e sérios, torna mais difícil um ganho
cognitivo visível. Quem já não valorizava a escola nem o conhecimento verá assim reforçada a sua crença no
desvalor da escola: afinal, para que serve a escola, se nada realmente importante se aprende nela? Nasce
assim, previsivelmente, um círculo vicioso pernicioso: precisamente porque as crianças e os adolescentes
das famílias culturalmente desfavorecidas não contactam fora da escola com conteúdos cognitivos
importantes, não os valorizam; mas porque na escola também não contactam com tais conteúdos, não
aprendem a valorizá-los; e porque não aprenderam a valorizá-los, não valorizam a escola — o que reforça a
desvalorização do conhecimento.
Linguagem e valor
Parece legítimo concluir preliminarmente que o sistema de ensino tem de apostar seriamente nos
conteúdos cognitivos centrais, ao invés de os abandonar. Contudo, a estratégia anteriormente delineada,
que procura afastar da escola os conteúdos cognitivos centrais, pode ser entendida como uma resposta ao
problema da falta de motivação dos estudantes oriundos de famílias culturalmente desfavorecidas7. A
estratégia pode ser errada, e até desastrosa, mas bem intencionada. Quem aceitar que esta estratégia está
errada, tem por obrigação propor uma alternativa que procure resolver o problema da motivação.
É irónico que empresas que vendem produtos sem qualquer valor intrínseco, como a Coca-Cola, tenham
imenso sucesso a motivar as pessoas para o seu produto, falhando o estado na tarefa de motivar as famílias
culturalmente mais carenciadas para um produto que tem valor intrínseco — o conhecimento e a escola.
Mas não é difícil compreender porquê. Por um lado, as empresas como a Coca-Cola sabem que o seu
produto só pode ser comercializado associando-o psicologicamente a algo que as pessoas valorizem muito
— a popularidade, a alegria, o sentimento de pertença. Consequentemente, estas empresas montam
campanhas publicitárias caras e constantes, que são cuidadosamente concebidas para associar o produto em
causa aos valores que farão as pessoas comprar o produto. Mas o estado não faz campanhas publicitárias
para promover o conhecimento, o estudo e a escola. Um observador cínico poderia observar que a solução
talvez passe por colocar no Ministério da Educação bons técnicos de publicidade, em vez dos técnicos
habituais, precisamente com a missão de promover o conhecimento como quem promove a Coca-Cola.
Por outro lado, qualquer campanha nacional de promoção da leitura, da escola ou do estudo, da ciência ou
de quaisquer outros conteúdos cognitivos sérios, poderá estar condenada à partida a falhar, "pregando"
apenas para os "convertidos". Uma sociedade elitista usará palavras, expressões e construções gramaticais
praticamente ininteligíveis para as famílias culturalmente desfavorecidas. Fazer uma campanha nacional a
favor da ciência ou da leitura usando uma linguagem opaca, que exclui desde logo as famílias culturalmente
mais carenciadas, é como fazer publicidade à Coca-Cola com base nas cores vivas das suas garrafas quando o
público-alvo da campanha é cego. Assim, o primeiro passo para promover o valor do conhecimento junto
das famílias culturalmente mais carenciadas é abandonar a linguagem opaca no discurso cultural, escolar e
académico.
A linguagem opaca8 não tem apenas as consequências políticas e sociais nefastas denunciadas por Orwell
(1946); tem também consequências escolares tão ou mais nefastas. É imperativo que clarifiquemos e
simplifiquemos a linguagem, se queremos uma escola que cative para o conhecimento os filhos das famílias
culturalmente mais desfavorecidas. Se o manual escolar, o professor ou os programas das disciplinas não
procurarem simplificar a linguagem (o que não implica simplificar os conteúdos cognitivos), tal desígnio
não poderá ser alcançado. E se, em vez de se simplificar a linguagem, mantendo os conteúdos, se fizer o
inverso (eliminando ou desvirtuando os conteúdos cognitivos centrais, mantendo todavia uma linguagem
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
5 de 17 29/10/2012 03:43
falsamente académica e falsamente culta), é previsível que o resultado seja bastante mais desastroso do que
prevê Orwell a nível político.
Uma linguagem falsamente académica é sinal de academias fracas. Um professor que pratica o terrorismo
linguístico, fazendo alusões a obras, conteúdos e autores que os estudantes desconhecem, está obviamente
mais preocupado em assinalar cuidadosamente a sua imaginada superioridade social do que em ensinar. O
mesmo se pode dizer do professor que complica desnecessariamente os conteúdos, ou que não os apresenta
de forma didacticamente adequada, que não pressuponha da parte do estudante conhecimentos que ele
ainda não tem. Uma universidade marcada por um ensino deste género terá um elevado índice de insucesso
escolar, porventura superior ou idêntico aos piores índices do ensino secundário. E os estudantes acabarão
quase todos por concluir os seus cursos com um domínio frágil ou inexistente dos conteúdos e
competências fundamentais. Mais grave, sairão da universidade sem qualquer curiosidade intelectual, sem
gosto pelo conhecimento nem pelo ensino. Aqueles que se tornarem por sua vez professores, tenderão a
repetir o único modelo de ensino que conhecem, baseado na linguagem opaca, concebida para exibir
superioridade social.
Em suma, parece razoável defender que enquanto o conhecimento for entendido como meio para exibir
superioridades sociais, a linguagem usada será opaca, constituindo um poderoso obstáculo ao ensino de
qualidade. Ora, não é possível tentar estimular as famílias culturalmente desfavorecidas a valorizar o
conhecimento usando uma linguagem originalmente concebida para as excluir e discriminar. Logo, sem
eliminar tal linguagem opaca das universidades, dos meios culturais e da escola, não é possível fazer uma
campanha eficaz junto das famílias mais desfavorecidas, que as faça valorizar o conhecimento.
Uma estratégia errada seria eliminar da escola, a pouco e pouco, os conteúdos cognitivos centrais, por se
reconhecer que a linguagem escolar e académica tradicional é opaca para os estudantes das famílias
culturalmente mais carenciadas. Isto seria deitar fora o bebé com a água do banho. O que há que eliminar é
a linguagem opaca, concebida para marcar territórios hierárquicos, e não os conteúdos veiculados por tal
linguagem. Seguir a estratégia errada teria aliás previsivelmente a consequência de se ficar com o pior das
duas coisas: uma escola anémica em termos de conteúdos cognitivos e com uma linguagem opaca — seja
para exprimir os poucos conteúdos cognitivos que sobreviveram, seja para exprimir banalidades.
Mill,
Sócrates e porcos
Uma compreensão errada da ideia de que o conhecimento tem valor intrínseco parte da confusão entre
valor intrínseco e instrumental. Pode-se interpretar a defesa do valor intrínseco do conhecimento como
uma perspectiva elitista do ensino. Segundo esta interpretação, valorizar o conhecimento no ensino, com a
consequente valorização das disciplinas e conteúdos centrais do conhecimento, seria elitista porque
excluiria à partida os estudantes das famílias culturalmente desfavorecidas; o resultado de tal ensino seria
aprofundar as diferenças sociais. Uma versão radical desta crítica propõe, como alternativa, que na escola
se coloque ao mesmo nível o jogo do pau e a física quântica — para dar dois exemplos extremos.
A confusão aqui em causa devia ser óbvia. Dizer que a física quântica é cognitivamente superior ao jogo do
pau não implica aceitar que quem domina a física quântica é socialmente superior a quem domina apenas o
jogo do pau. A associação entre valor cognitivo e hierarquia social poderá ser psicologicamente irresistível,
mas é um erro. Pois pode-se perfeitamente defender que socialmente não deve haver qualquer diferença de
hierarquia entre o jogo do pau e a física quântica, ao mesmo tempo que se defende que, cognitivamente, a
diferença é abissal. Analogamente, não faz sentido defender a superioridade social de quem é mais
inteligente. Na verdade, quem sofre de atraso mental profundo, por exemplo, até é socialmente superior a
quem não sofre de tal problema, num certo sentido — no sentido em que tem mais direitos, pelo menos
numa sociedade justa, que apoie os seus deficientes. Assim, a defesa do valor intrínseco do conhecimento, e
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
6 de 17 29/10/2012 03:43
a defesa de uma escola fundamentalmente orientada por este princípio, não é necessariamente elitista.
Uma acusação radical de elitismo pode partir da seguinte pergunta retórica: "Quem disse que o jogo do pau
é inferior à física quântica?" A motivação para esta pergunta será muito provavelmente a confusão que
acabámos de expor. Mas vale a pena responder-lhe directamente, o que Mill fez numa passagem famosa:
"É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; um Sócrates insatisfeito
do que um idiota satisfeito. E se o idiota, ou o porco, têm opinião diferente, é porque apenas
conhecem o seu lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados." (Mill,
1861, p. 54)
O que Mill queria dizer é que o valor de actividades com uma forte componente cognitiva só pode ser
comparado com o valor de actividades que não têm tal componente por quem conhece as duas. É por esta
razão que uma escola orientada pelo valor intrínseco do conhecimento é libertadora: tal escola dá aos
estudantes a experiência que lhes permite comparar o jogo do pau com a física quântica. E com base nessa
experiência poderão escolher livremente. Mas se a escola não lhes der essa experiência, serão vítimas do
meio social em que por acaso nasceram. Se a escola não contemplar os conteúdos cognitivos centrais, só as
famílias privilegiadas poderão proporcionar tais conteúdos aos seus filhos. Os outros, conhecerão apenas o
jogo do pau, não porque o tenham escolhido livremente, mas porque alguém decidiu que, por serem de
famílias culturalmente desfavorecidas, não têm direito a ser maestros, filósofos, matemáticos ou
historiadores.
Talvez associada a esta ideia esteja o pensamento de que o talento e a inteligência são hereditários, de modo
que só os filhos dos médicos podem ser médicos ou arquitectos — os filhos das famílias culturalmente mais
desfavorecidas não podem ser médicos ou arquitectos. Esta ideia falha mesmo que a inteligência seja
realmente, em alto grau, hereditária. Falha porque pressupõe que quem pertence às elites tem mais talento
e inteligência do que os outros. Mas numa sociedade que reservou cuidadosamente a cultura e o ensino de
alta qualificação para as elites isso não acontece. Se uma sociedade não for meritocrática, quem domina as
profissões cognitivamente mais exigentes não é necessariamente quem tem maiores capacidades cognitivas
para as desempenhar. Consequentemente, os seus descendentes não são necessariamente mais dotados
cognitivamente do que os descendentes das famílias culturalmente desfavorecidas.
É assim falacioso argumentar que as crianças culturalmente desfavorecidas não podem ter interesse pelos
conteúdos cognitivos centrais por serem cognitivamente deficitárias. Duas razões fundamentais pelas quais
não têm tal interesse são previsivelmente o facto de os desconhecerem, como argumenta Mill, e o facto de a
escola e a sociedade usarem uma linguagem concebida para os excluir. O que não se pode é argumentar que
tais crianças e adolescentes não têm interesse por tais conteúdos por serem cognitivamente deficitárias. E
portanto também não se pode tratá-las como se fossem cognitivamente deficitárias — é aliás previsível que
tratar as crianças como se fossem cognitivamente deficitárias, retirando-lhes o acesso a conteúdos
cognitivos centrais, as torne realmente cognitivamente deficitárias. Por isso, o problema não se resolve
eliminando os conteúdos cognitivos que representam maiores dificuldades para os estudantes das famílias
culturalmente mais desfavorecidas. Tal estratégia limita-se a proteger uma elite que o é historicamente
mas não por mérito cognitivo. Ao invés, a estratégia terá de consistir em ensinar quem não sabe e em
motivar para o estudo quem não tem motivação para estudar.
Exames e avaliação subjectiva
Imagine-se um sistema de ensino que não reconhece valor intrínseco ao conhecimento; e que, além disso,
pressupõe que as crianças e adolescentes das famílias culturalmente desfavorecidas não podem
intrinsecamente ter nem ganhar qualquer interesse pelos conteúdos cognitivos centrais. Que tipo de
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
7 de 17 29/10/2012 03:43
concepção da avaliação é previsível que tal sistema de ensino promova?
Em primeiro lugar, tal sistema de ensino procurará eliminar toda a avaliação externa de âmbito nacional.
Muitas razões para tal podem ser invocadas, mas a fundamental é que pela sua própria natureza a avaliação
nacional externa tende a concentrar-se em conteúdos com alguma relevância cognitiva — seria algo
escandaloso a nível nacional fazer exames falhos de dignidade escolar, sem conteúdos dignos desse nome.
Como num tal sistema de ensino se procura que a escola se afaste cada vez mais dos conteúdos cognitivos, a
avaliação nacional externa é vista como uma intromissão e uma ameaça. Quem não quer que os estudantes
aprendam física ou história porque não reconhece nos conteúdos destas disciplinas qualquer valor
intrínseco também não quer que os estudantes sejam avaliados quanto a esses mesmos conteúdos. Acresce
que os exames nacionais influenciam directamente os professores, que passam a dar mais atenção à
leccionação dos conteúdos cognitivos, afastando-se do ideal de uma escola sem conteúdos cognitivos
relevantes.
Em segundo lugar, é previsível que tal sistema de ensino substitua a avaliação de conteúdos precisos pela
avaliação vaga, subjectiva e iniciática, avaliando-se a personalidade dos próprios estudantes e não o que
mostram saber. A avaliação dos estudantes no domínio dos valores e das atitudes consistirá previsivelmente
em avaliar a capacidade do estudante para reproduzir os valores que foram objecto de doutrinação, mais ou
menos explícita, na sala de aula. Tal sistema de ensino quererá avaliar pessoas, e não o domínio de
conteúdos pública e objectivamente controlável. Terá tendência para valorizar a falsa criatividade, baseada
na natural inventividade do estudante, mas sem qualquer domínio dos conteúdos nem das competências
cognitivas centrais que poderiam tornar essa criatividade realmente profícua.
O desastre educativo deste tipo de sistema educativo é previsível. Porque mais cedo ou mais tarde os
estudantes serão avaliados quanto a conteúdos cognitivos, e não quanto a fantasias inventadas para os
substituir, os filhos das famílias culturalmente favorecidas terão sempre melhor desempenho — seja em
testes para um emprego seja em exames para entrar no ensino superior. Isto acontecerá porque os
estudantes das famílias culturalmente mais desfavorecidas nunca se esforçaram mais do que o próprio
sistema educativo lhes pede; como lhes pede pouco ou nenhum esforço, pouco ou nada se esforçam. Mas
isto significa que ao longo de vários anos de escolaridade tais crianças irão acumulando incompetências
cognitivas fundamentais, muitas das quais poderão ser irrecuperáveis. Quando tais estudantes forem
confrontados com a realidade dos exames para ingresso no mundo empresarial ou no ensino superior, terão
sempre prestações muito inferiores às dos estudantes que, por influência familiar, se esforçaram
cognitivamente, foram ensinadas em casa e em escolas particulares. A ausência de exames nacionais
externos agrava as desigualdades sociais que um sistema de ensino que despreza o conhecimento já de si
provoca.
Por outro lado, a inexistência de exames nacionais externos, rigorosos e claramente centrados em
conteúdos cognitivos centrais, terá previsivelmente a consequência de reforçar a crença falsa, junto das
famílias culturalmente desfavorecidas, de que a escola não tem qualquer valor — não merecendo portanto
qualquer respeito nem qualquer esforço por parte do estudante. A escola será encarada como uma
ocupação de tempos livres, onde também se fala de umas coisas vagas e se fazem umas actividades lúdicas.
Não haverá qualquer associação psicológica entre a escola e o rigor cognitivo ou o esforço. Os próprios
familiares das crianças culturalmente mais desfavorecidas tenderão a ver as crianças e os adolescentes
como uns preguiçosos que nada fazem de importante, passando o tempo na escola em alegre cavaqueira.
Neste ambiente familiar, é previsível que o estudante seja estimulado a abandonar a escola para ingressar
no mundo do trabalho tão cedo quanto possível, de modo a tornar-se produtivo. Isto é particularmente
grave do ponto de vista social porque, correctamente concebido, o sistema educativo deveria dar novas
oportunidades de vida e de carreira aos estudantes socialmente mais desfavorecidos. É previsível que a
mobilidade social seja menor nas sociedades que adoptem um sistema educativo que despreze o valor
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
8 de 17 29/10/2012 03:43
intrínseco do conhecimento, em comparação com sociedades análogas cujos sistemas educativos valorizem
o conhecimento.
O estudante cidadão
Uma sociedade que não reconhece o valor intrínseco do conhecimento terá previsivelmente tendência para
instrumentalizar a escola. A escola como veículo de "educação para a cidadania" ou de "preparação para a
vida activa" são dois exemplos comuns. Em ambos os casos, está em causa a desconsideração do valor
intrínseco do conhecimento. A ideia é que a escola tem de servir para alguma coisa mais do que para
ensinar matemática, física, história ou música; e esta ideia faz sentido quando não se reconhece o valor
intrínseco do conteúdo cognitivo dessas disciplinas.
Uma confusão significativa parece envolver a noção de educação para a cidadania. Este conceito de educação
opõe-se primariamente à instrumentalização da escola como preparação para a vida activa. Ao invés de se
conceber a escola como uma espécie de formação profissional, a ideia seria conceber a escola no mesmo
sentido da chamada "educação liberal". Ora, a educação liberal baseia-se precisamente na ideia de que os
conteúdos cognitivos centrais das ciências, das letras e das artes são intrinsecamente valiosos, cabendo à
escola o papel de dar a conhecê-los a todos os estudantes, independentemente do valor instrumental
imediato que tais conteúdos tenham ou deixem de ter para o chamado "mundo do trabalho". É previsível
que numa sociedade que não reconheça valor intrínseco ao conhecimento se transfigure o conceito de
educação para a cidadania, transformando-a em instrumento ideológico do estado e transformando o
Ministério da Educação em Ministério da Propaganda.
Defensores do ensino universal9, como Mill e Condorcet, tiveram o cuidado de procurar garantir que o
ensino para todos não se transformasse em doutrinação para todos10. Condorcet chama "instrução" ao que a
escola deve ensinar, deixando a educação para os pais; e Mill defende que a escola não deve ensinar mais do
que "factos positivos", para não doutrinar as crianças num sentido ou noutro. Mas o rosto transfigurado da
educação para a cidadania transforma precisamente o ensino em doutrinação — ainda que seja doutrinação
de valores eventualmente louváveis, como a responsabilidade ecológica e cívica, a democracia, a
participação política, o respeito pelas minorias, o pensamento igualitário, etc. Contudo, esta transfiguração
da instrução ou ensino em doutrinação ou educação num sentido amplo, por mais louváveis que sejam as
atitudes que se pretende inculcar nas crianças e adolescentes, é inaceitável precisamente porque é
sub-reptício, tolhe as liberdades e não valoriza o conhecimento em si11. Na ânsia de instilar valores que são
alheios à natureza própria da escola, a transfigurada educação para a cidadania impossibilita os valores que
são próprios da escola: o gosto pelo conhecimento e pela precisão, o amor pela verdade e pela
objectividade, a valorização das provas e da argumentação cuidada, o gosto pela discussão crítica e
imparcial de todas as opiniões — o que implica também colocar em causa a democracia e os valores
ecológicos, por exemplo.
Quem acredita realmente que os valores da democracia e da ecologia, por exemplo, são verdadeiros e
racionais, não pode ter medo de permitir a sua discussão aberta, nem pode desejar que tais valores sejam
sub-repticiamente inculcados. Como argumenta Mill (1859), uma opinião, "por mais verdadeira que seja, se
não for frequentemente discutida por inteiro e sem medos, será mantida como um dogma morto, e não
como uma verdade viva" (p. 76). E assim corre o risco de sucumbir aos primeiros argumentos contrários,
por mais fracos que sejam. Logo, o importante não é incutir ideais democráticos no estudante, mas sim
ensinar conteúdos e competências que lhe permitam mais tarde defender os ideais que, pela sua reflexão
informada e cuidadosa, ele considere correctos. Se consideramos que os ideais democráticos são racionais e
verdadeiros, não podemos deixar de pensar que essa será precisamente a conclusão a que o estudante
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
9 de 17 29/10/2012 03:43
chegará, se souber pensar correctamente e se estiver na posse dos dados relevantes. Donde se conclui que
provavelmente quem deseja inculcar tais valores não acredita muito neles.
O ensino objectivo e de excelência, não doutrinário, dos conteúdos cognitivos centrais é, em si, a melhor
preparação para a cidadania que podemos oferecer aos estudantes. Mas uma sociedade que não reconheça
valor intrínseco ao conhecimento vê na escola o instrumento para condicionar a personalidade, os valores e
as atitudes das crianças e adolescentes, fazendo lembrar um pouco o pesadelo do Admirável Mundo Novo
(1932), de Huxley. Tal sociedade não concebe que a formação cognitiva sólida nas disciplinas centrais do
conhecimento possa ter efeitos desejáveis. Mas a verdade é que uma formação cognitiva sólida nas
disciplinas centrais do conhecimento tem não só valor intrínseco, mas também instrumental. Uma
sociedade de pessoas solidamente formadas cognitivamente será mais tolerante, mais rica e terá mais
bem-estar; saberá, além disso, resolver os seus desafios (económicos, sociais, políticos,
ecológicos e outros)
com criatividade e rigor; e a discussão pública será informada, rigorosa e exigente, e não um combate
retórico baseada na ignorância e no preconceito. Mas numa sociedade em que o conhecimento for
primariamente usado como adorno social, será difícil conceber que o conhecimento tenha qualquer tipo de
valor instrumental desejável; o conhecimento será visto apenas como um instrumento de poder das classes
privilegiadas, ou que se julgam privilegiadas.
Outra maneira de instrumentalizar a escola é fazer dela instrumento de mudança ou de retenção de
mentalidades, e presumivelmente esta atitude tanto poderá resultar de não se valorizar o conhecimento em
si como da percepção de que se a escola não doutrinar a população de certa maneira, a sociedade não irá
aceitar os valores ou preconceitos que determinados grupos sociais valorizam. A escola será
instrumentalizada, transmitindo acriticamente modos de ver o mundo e de viver a vida que a escola tinha
por obrigação ensinar a pôr em causa e a discutir racionalmente, recorrendo a toda a informação relevante.
A educação sexual, por exemplo, será vista não como o ensino de factos e conhecimentos sólidos sobre a
sexualidade humana, do mesmo modo que se ensina matemática ou história, mas como doutrinação a favor
de um certo tipo de sexualidade, defendida por certos grupos sociais que querem impor o seu modo de
viver ao resto da sociedade sem passar pelo incómodo da discussão aberta, crítica e pública. Esta é a
diferença fundamental entre ensinar e educar. Ensinar é dar a conhecer a verdade biológica, histórica,
psicológica e social sobre a sexualidade, por exemplo; educar é fazer campanha sub-repticiamente a favor
da castidade, por exemplo, para garantir que a sociedade no seu todo irá reter um valor que sem a
protecção do preconceito terá tendência a desaparecer naturalmente.
O problema deste tipo de instrumentalização da escola não é apenas o facto de revelar um profundo
desprezo pela verdade, pelas provas e pelo valor do conhecimento. O problema é que uma escola que
atropela estes valores fundamentais produzirá previsivelmente uma sociedade preconceituosa,
obscurantista, dogmática e acrítica, que, perante modos de vida e perspectivas diferentes, responde não
com a reflexão cuidada mas com a rejeição epidérmica e histérica do desconhecido. Daí que seja
ironicamente incoerente pretender usar a escola para doutrinar as crianças e os adolescentes, mesmo que o
objecto da doutrinação sejam valores perfeitamente respeitáveis e claramente defensáveis como o
anti-racismo. Ser irreflectida e dogmaticamente anti-racista é tão mau como ser irreflectida e
dogmaticamente racista, como Mill insiste na obra citada — pois uma boa ideia acriticamente transmitida e
dogmaticamente aceite torna-se rapidamente numa péssima ideia, que dará inevitavelmente origem aos
maiores disparates de que os seres humanos são capazes. Não há substituto automático e instintivo para a
reflexão cuidada e crítica, solidamente ancorada na melhor informação disponível e na abertura à discussão
pública racional e tolerante.
O estudante operário
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
10 de 17 29/10/2012 03:43
Uma consequência previsível do esvaziamento cognitivo dos programas e dos currículos, substituindo-os
por actividades e áreas curriculares de fraco valor cognitivo, é que muitos pais e observadores ficarão com a
ideia de que a escola falha porque não prepara os estudantes para a "vida activa". Em resposta a esta
inquietação, a solução não menos previsível é querer transformar a escola em escola profissional. Isso
poderá ser feito criando "vias profissionalizantes". Se isso for feito, dois resultados são previsíveis.
Primeiro, os filhos das famílias culturalmente mais carenciadas serão estimulados a ingressar em tais vias.
Segundo, o insucesso escolar dos estudantes de tais vias será superior ao insucesso escolar dos estudantes da
via "normal".
Contudo, uma solução mais prometedora para a percepção de que a escola não prepara os estudantes para
coisa alguma de valor é a reintrodução dos conteúdos cognitivos centrais. O estudante que desenvolver na
escola competências cognitivas centrais e que adquirir um conhecimento aprofundado e rigoroso da
realidade estará mais bem preparado para desempenhar qualquer profissão. Para que o valor instrumental
do conhecimento dê os seus frutos é preciso apostar fortemente no valor intrínseco do conhecimento. Esta
perspectiva não é incompatível com a existência de "vias profissionalizantes" nas escolas, mas obriga a que
tais vias não desprezem os conteúdos cognitivos centrais.
Em qualquer caso, a formação geral que a escola dá aos estudantes tem de ter em conta a diversidade de
actividades que os estudantes, depois de adultos, irão desempenhar. Este objectivo, todavia, parecerá
utópico se não se tiver uma noção clara do valor intrínseco do conhecimento, pois nesse caso a tentação
será procurar incluir no ensino básico e secundário o tipo de conhecimentos e competências que se julga
terem hoje muita procura no mercado de trabalho. Mas isto é um erro porque, muitas vezes, o que tem hoje
procura no mercado de trabalho deixa de o ter alguns anos depois — a sociedade contemporânea está em
mudança constante acelerada. Não é possível prever o tipo de competências profissionalmente úteis que
serão necessárias uma década depois, se pensarmos em competências muito directamente ligadas a
actividades profissionais concretas.
Por outro lado, da escola não sairão apenas técnicos de uma ou outra área; sairão também, inevitavelmente,
músicos e físicos, por exemplo. Se a escola não formar cognitivamente os estudantes mais carenciados
desde cedo, fornecendo-lhes os instrumentos e conteúdos para poderem enveredar por essas profissões
mais tarde, se quiserem, nunca poderão vir a fazê-lo — por mais que o estado invista depois dinheiro em
bolsas, subsídios e incentivos à investigação. Se for dada ênfase apenas aos técnicos de informática,
estaremos a impedir os estudantes mais carenciados de conceber sequer uma carreira na investigação, que
permanecerá uma coutada de elites que, precisamente por essa razão, serão elites meramente sociais e não
de mérito cognitivo.
Se, ao invés, a escola se concentrar no desenvolvimento dos conteúdos cognitivos fundamentais e
respectivas competências, estará a dar algo que terá valor e aplicação seja qual for a profissão que o
estudante venha a ter. E estará a dar a possibilidade a qualquer estudante, independentemente da sua
origem social, de se tornar mais tarde investigador de ponta, por exemplo, e não apenas electricista.
Uma escola de excelência
Que se poderá fazer para elevar a qualidade do ensino? Evidentemente, não basta dizer que é preciso
reintroduzir os conteúdos cognitivos centrais, reintroduzir exames nacionais externos e promover o valor
intrínseco do conhecimento. Estes são os princípios gerais para uma escola de excelência. As medidas
concretas têm de ser bastante mais pormenorizadas.
Não há soluções mágicas, de curto prazo e por via legislativa apenas. As leis (incluindo os programas
curriculares) podem ser melhoradas, mas se um professor de história, por exemplo, tem graves deficiências
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
11 de 17 29/10/2012 03:43
no domínio dos conteúdos que tem por obrigação leccionar, o problema não se resolve unicamente com leis
melhores. Logo, qualquer intervenção terá de apostar fortemente na formação contínua de professores, no
estímulo para que melhorem as suas prestações e na produção intensa de livros de qualidade para
professores e estudantes.
Se os professores não forem apoiados cientificamente, não poderão fazer um trabalho melhor. Esse apoio
implica o seguinte:
Publicar bons livros que expliquem, numa linguagem clara e acessível,
os conteúdos científicos
centrais que os professores têm de leccionar.
1.
Estimular a tradução dos melhores livros introdutórios estrangeiros, que orientarão os professores
nas suas aulas, assim como os autores de manuais escolares. Este trabalho de tradução é essencial —
mais importante do que quaisquer reformas do sistema de ensino, pois estes livros apresentam não
apenas os conteúdos centrais das disciplinas numa linguagem clara e despretensiosa, mas também o
modo didacticamente correcto de os leccionar.
2.
Aprovar programas curriculares didacticamente sensatos e cientificamente sólidos que orientem
efectivamente os professores e promovam a excelência educativa, centrando-se nos conteúdos
cognitivos fundamentais da disciplina em causa.
3.
Promover acções de formação de professores, que sejam verdadeiramente úteis, informativas,
cientificamente sólidas e didacticamente sensatas, exclusivamente na área que o professor lecciona.
4.
Estimular a criação de espaços na Internet que promovam a cooperação escolar e intelectual entre os
professores, de modo a que os que têm melhor formação e informação possam ajudar os outros.
5.
Em todas estas actividades, a cooperação e boa-vontade são fundamentais. Nenhuma instituição ou pessoa
privada pode arvorar-se em autoridade inquestionável e pretender, autoritariamente, impor aos
professores a sua própria concepção das coisas — ainda que esteja correcta. Tem de ser através do diálogo e
da formação científica paciente que, ao longo dos anos, se poderá ir constituindo um corpo docente
responsável, competente, dinâmico e informado.
A reintrodução de conteúdos científicos centrais nos programas das disciplinas terá de ser gradual, tendo
em conta as deficiências formativas dos professores. Não pode ceder a modas, nem pode transformar a
escola num campo de batalha público, que só iria desprestigiá-la ainda mais. Terão de ser os profissionais
de cada área científica a coordenar entre eles, em articulação com o Ministério da Educação, a reintrodução
dos conteúdos científicos centrais. Para fazer este trabalho será necessário bastante bom senso e
boa-vontade, e não há regras de aplicação automática que garantam o sucesso. Mas é possível delinear dez
princípios gerais que devem presidir a este trabalho:
Nenhuns conteúdos devem ser introduzidos nos programas se os professores não os dominam, não
têm bons livros que abordem esses conteúdos ou não têm com quem esclarecer dúvidas científicas
legítimas. É preciso partir do que é a real formação dos professores, e não a formação que
gostaríamos que eles tivessem. Contudo, em articulação com a formação contínua de professores, e
com a publicação e tradução de livros introdutórios, será possível corrigir gradualmente os
programas, ao longo do tempo.
1.
Não deve haver mudanças radicais nos programas das disciplinas. Tais mudanças têm como resultado
piores aulas — porque os professores não dominam os novos conteúdos adequadamente. As mudanças
devem ser graduais.
2.
Os conteúdos devem orientar-se pela sua importância para a compreensão dos aspectos fundamentais
das disciplinas centrais. Devem ser estruturantes, fornecendo as bases importantes para que os
estudantes possam compreender outras matérias e raciocinar correctamente sobre problemas
centrais.
3.
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
12 de 17 29/10/2012 03:43
Os conteúdos devem ser didacticamente adequados aos estudantes, simplificando-se quando
necessário aspectos mais complexos cuja compreensão não representa qualquer ganho cognitivo
substancial para o estudante.
4.
Os conteúdos devem ser apresentados ao estudante numa ordem intuitiva, do mais simples para o
mais sofisticado, e do mais central e relevante para o menos. Não se deve escolher os conteúdos em
função de serem mais facilmente avaliáveis, porque são mais "objectivos"; quaisquer listas de factos
são mais facilmente avaliáveis do que teorias científicas importantes, por exemplo, mas nem por isso
se deve privilegiar as primeiras em detrimento das segundas.
5.
A memorização não pode ser desprezada, pois constitui um factor importante para o desempenho
cognitivo dos estudantes. Mas não se pode reduzir o ensino à memorização. É imperativo ensinar a
raciocinar e treinar o raciocínio.
6.
Os programas devem ser genuinamente informativos para os professores e autores de manuais,
explicando conteúdos, indicando bibliografia introdutória adequada, esclarecendo dúvidas e
orientando o trabalho didáctico.
7.
Os programas devem ser independentes de quaisquer directrizes ideológicas, religiosas, políticas ou
outras, que os tornem tendenciosos. Não devem igualmente reflectir as preferências arbitrárias dos
seus autores, do Ministério da Educação ou de qualquer outra entidade ou indivíduo. Devem ser
imparciais e guiar-se por critérios exclusivamente científicos e didácticos, sem perder de vista o
estudante e a excelência do ensino a que ele tem direito.
8.
Os programas devem ser curtos, para não obrigar o professor a fazer uma leccionação apressada, e
para lhe permitir abordar outras matérias que julgue importantes. Mas tais matérias serão da inteira
responsabilidade da escola ou do professor, não devendo ser consagradas nos próprios programas
como "opções".
9.
Os autores dos programas têm de ter um conhecimento aprofundado e amplo da mais importante
bibliografia introdutória internacional da sua área, e têm de ouvir os professores com espírito de
abertura, aceitando sugestões e críticas, e estando inteiramente dispostos a melhorar as suas
propostas em função das sugestões recebidas.
10.
Contudo, por melhores programas que se proponham, o ensino não poderá melhorar se nem os professores
nem os estudantes tiverem uma motivação para se esforçarem em direcção a um objectivo bem definido: os
exames no final de cada ciclo de ensino. Estes terão de ser cientificamente rigorosos e didacticamente
adequados, exigindo memorização, raciocínio e capacidade de debate racional. Tais exames terão ainda a
vantagem de detectar de forma directa as deficiências do sistema. Se, comparativamente às notas internas,
os estudantes de um determinado professor obtêm consistentemente notas muito inferiores em exames
nacionais externos de qualidade, isso significa que algo estará errado com a formação científica e didáctica
desse professor, que precisará urgentemente de formação na sua área.
Sem exames, nenhuma intervenção no ensino, no sentido de estimular a sua qualidade, poderá dar mais do
que alguns frutos isolados — naquelas escolas em que os professores decidirem seguir com mais cuidado os
programas e bibliografias propostos. Sem exames, é previsível que as escolas e os professores não mudem
as suas práticas erradas nem cumpram adequadamente os programas, leccionando apenas de passagem
conteúdos cognitivamente estruturantes12. Fazer isso é hipotecar o sucesso escolar e profissional futuro dos
estudantes — que, sem alternativa, serão vítimas indefesas dessa formação deficiente.
Numa escola de excelência, orientada para os conteúdos cognitivos centrais, os estudantes adquirirão um
conjunto de valores que não são explicitamente leccionados, nem sub-repticiamente "sugeridos", mas que
são constitutivos da própria actividade cognitiva de excelência. Esses valores são os seguintes:
Espírito crítico: valorização das provas e da argumentação, distinguindo-as cuidadosamente da
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
13 de 17 29/10/2012 03:43
tradição e da autoridade.
Valorização do estudo cuidadoso, informado, imparcial e objectivo, distinguindo-o da opinião avulsa,
desinformada, parcial e aleatória.
Honestidade intelectual.
Aceitação das regras da discussão racional de ideias.
Amor pela verdade e pela precisão.
Curiosidade intelectual.
Criatividade.
Estes são valores constitutivos da actividade cognitiva de excelência. Mas não são valores desta ou daquela
perspectiva — não são valores como a ecologia ou o respeito pelas minorias. São valores fundamentais, mais
básicos. Valores cuja observância permite descobrir os outros valores, se pensarmos e estudarmos
correctamente. É por isso algo irónico que uma escola que pretenda preparar para a cidadania tenha como
primeiras vítimas estes mesmos valores fundamentais, ao abandonar a orientação fundamentalmente
cognitiva do ensino, transformando-o em doutrinação — ainda que bem intencionada.
Quando a escola falha, são os próprios professores que não pautam a sua actuação profissional por estes
valores, e portanto não os transmitem implicitamente aos estudantes. Quando alguns dos seus estudantes se
tornarem por sua vez professores, gera-se um círculo vicioso deletério, com efeitos gravíssimos para a
solidez cognitiva de uma sociedade. Será difícil romper este círculo, mas não impossível.
Se partirmos do reconhecimento do valor intrínseco do conhecimento, quereremos contemplar no desenho
curricular as áreas cognitivas centrais e estruturantes, eliminando as actividades que procuram fazer da
escola uma mera ocupação de tempos livres. Podemos distinguir oito áreas cognitivas centrais:
Artes (literatura, artes plásticas e música);1.
Ciências da natureza (física, química, biologia e outras);2.
Ciências humanas (economia, sociologia e outras);3.
Filosofia;4.
História;5.
Línguas (portuguesa e estrangeira);6.
Matemática;7.
Religiões.8.
O estudo de algumas destas áreas pode estar integrado noutras. Por exemplo, o estudo da história das
religiões pode estar integrado na disciplina de História. Evidentemente, o estudo das religiões será
rigorosamente objectivo e imparcial, apresentando a história das religiões mais importantes, assim como
as suas características centrais. O importante é que os estudantes contactem com todas as áreas
fundamentais do conhecimento.
Uma sociedade que encare o conhecimento como mero adereço social terá previsivelmente tendência para
eliminar do ensino público aquelas áreas que, nesse entendimento distorcido das coisas, não será do
interesse das famílias culturalmente menos favorecidas. A música erudita, por exemplo, estará ausente da
escola pública, por se considerar que os filhos das famílias culturalmente desfavorecidas não poderão
interessar-se por tal coisa; e o ensino das línguas estrangeiras colocará toda a ênfase na oralidade
quotidiana, útil para um empregado de mesa ou para um turista, e não na língua culta, tal como ocorre em
ensaios de história, ciência ou filosofia. Mas numa escola de excelência a música deve estar presente como
componente fundamental; e as línguas estrangeiras serão ensinadas colocando a ênfase não apenas a
oralidade, mas também na produção cognitiva sofisticada dessa língua.
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
14 de 17 29/10/2012 03:43
Naquelas áreas onde não há resultados científicos estabelecidos, deve seguir-se o preceito de Mill,
leccionando-se objectiva e imparcialmente as teorias opostas dos mais importantes especialistas da área,
tendo o cuidado de se contrastar teorias rivais representativas — e não aquelas que o professor ou o autor de
manuais ou de programas prefere. Em todas as áreas científicas há zonas de disputa entre os especialistas,
mas geralmente tais zonas encontram-se nas fronteiras dessas áreas, não contactando o estudante com elas
excepto nos estudos avançados, nomeadamente universitários. O caso da filosofia, contudo, é diferente, pois
esta é uma área fundamentalmente especulativa, que poucos resultados consensuais apresenta. A didáctica
correcta desta disciplina consiste em apresentar alguns dos problemas centrais mais importantes e mais
intuitivos, das diferentes áreas da filosofia, apresentando as teorias rivais mais representativas que
procuram resolver esses problemas, e os argumentos em que se apoiam — juntamente com as objecções que
enfrentam. Sobretudo numa sociedade que não reconhece o valor intrínseco do conhecimento, o ensino
correcto da filosofia é crucial porque nesta disciplina se aprende a pensar de maneira autónoma, imparcial,
objectiva e fundamentada em argumentos sólidos. Dado que estas competências cognitivas centrais,
fundamentais em todas as outras disciplinas13, estão entre as primeiras vítimas de um ensino concebido por
quem não atribui valor intrínseco ao conhecimento, o ensino explícito da filosofia tem um papel
instrumental importante a desempenhar: permite o desenvolvimento de competências sem as quais será
mais difícil valorizar o próprio conhecimento.
Conclusão
Este artigo deu muita atenção às consequências da instrumentalização do conhecimento. Isso poderá
parecer estranho, pois o objectivo foi defender o valor intrínseco do conhecimento. Contudo, nenhuma
defesa do valor intrínseco do conhecimento terá qualquer efeito enquanto os seus detractores não
compreenderem exactamente as razões e consequências do que defendem, assim como as razões e
consequências da posição oposta. Este debate tornou-se ideológico precisamente nesse sentido:
independentemente dos argumentos usados por quem defende o valor intrínseco do conhecimento, os seus
detractores não se deixam persuadir, pois para eles a escola tem uma "missão" social e política a cumprir.
Daí que seja necessário mostrar-lhes claramente que a sua "missão" não pode ser cumprida porque as suas
ideias, quando postas em prática, têm o efeito oposto ao que pretendem.
Claro que podemos perguntar-nos se o valor intrínseco do conhecimento seria ainda defensável caso
provocasse precisamente os efeitos que os seus detractores pensam que provoca. A pergunta é meramente
hipotética, pois na realidade tal coisa não acontece. Caso provocasse tais efeitos, só nos restaria tomar
medidas para os contrariar, continuando todavia a defender o valor intrínseco do conhecimento. É um
pouco como os transplantes de coração: têm muitos efeitos colaterais negativos, mas não estamos dispostos
a deixar de fazê-los só por causa disso; limitamo-nos a tomar medidas que combatem esses efeitos colaterais
negativos. Contudo, quando defendemos uma posição exclusivamente por causa das suas consequências e
essas consequências se revelam ilusórias, só nos resta abandonar essa posição e mudar de ideias. É
precisamente o que acontece com quem pretende usar o conhecimento e a escola exclusivamente como
instrumento para outra coisa qualquer que não o conhecimento em si.
Para quem pensa que a defesa do valor intrínseco do conhecimento e portanto das disciplinas centrais é
uma atitude elitista, será talvez surpreendente descobrir que a sua própria posição tem previsivelmente
resultados genuinamente elitistas, eventualmente indesejados. Mas esta é uma situação que ocorre muito
frequentemente na história do pensamento: uma teoria bem intencionada produz os resultados
precisamente opostos ao que se pretendia. Se tivermos uma abordagem racional, e não meramente
ideológica, ou de defesa corporativista de interesses ilegítimos, teremos de abandonar tais ideias.
Não se pode cair na tentação de pensar que à escola só compete ensinar quem vem ensinado e motivado de
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
15 de 17 29/10/2012 03:43
casa. Na realidade, historicamente, não foi para essas crianças que se criou a escola universal.
Historicamente, quem vem ensinado e motivado de casa sempre recebeu instrução, privada, por meio de
tutores, ou directamente dos pais, e não precisa da escola universal; essas crianças e adolescentes receberão
instrução em qualquer caso. Foi para as crianças e adolescentes que em casa não têm qualquer contacto com
conteúdos cognitivos fundamentais que se criou a escola universal. Negar-lhes esses conteúdos é uma
perversidade
que distorce o papel histórico da escola universal. Não é muito sensato ter uma escola para
todos que só sabe ensinar quem não precisa da escola para todos. Mas é ainda menos sensato fazer a escola
abandonar os conteúdos cognitivos centrais com o argumento de que as crianças mais carenciadas não
chegam à escola motivadas para os estudar14.
Desidério Murcho
Notas
Usa-se o termo "crença", em filosofia, não no sentido religioso de fé, mas no sentido aproximado de
opinião: o que uma pessoa pensa que é verdade, a representação que alguém faz das coisas.
1.
Esta é a posição clássica de quem defende a liberdade de expressão e opinião, tal como foi
desenvolvida por Mill (1859).
2.
Veja-se Haack (1999) e Searle (1993).3.
Uso o termo "provas" no sentido do termo inglês evidence. Outros termos possíveis seriam "dados",
"indícios" ou "informação empírica". Usa-se por vezes o termo "experiência", em contextos nos quais
se contrasta, por exemplo, a ciência medieval, que não se apoiava fortemente na experimentação
nem na experiência, mas antes na tradição e na autoridade.
4.
Veja-se Ferreira e de Lima (2006).5.
É implausível que um estudante culturalmente carenciado afirme explicitamente algo como "Não
vale a pena estudar porque não reconheço valor ao conhecimento", apesar de, provavelmente, alguns
estudantes afirmarem coisas como "A escola não serve para nada". Mas não será difícil fazer estudos
empíricos que testem as hipóteses aqui avançadas: implicitamente, os estudantes culturalmente mais
carenciados não se esforçam na escola porque não reconhecem qualquer valor ao conhecimento, mas
serão perfeitamente capazes de se esforçar nas muitas actividades não escolares que desenvolvem; os
outros reconhecem valor ao conhecimento porque isso lhes é transmitido pelo meio familiar em que
vivem, e não pela escola.
6.
Veja-se a citação de Ana Benavente em Crato (2006), p. 31.7.
Um exemplo drástico é dado por Andreski (1972), Cap. 6: "Para aqueles cujos papéis envolviam
primariamente a execução de serviços, por oposição com a assunção de responsabilidades de
liderança, o padrão básico parece ter sido uma resposta às obrigações invocadas pela liderança que
eram concomitantes ao estatuto de membro na comunidade societal e em várias das suas unidades
segmentadas. A analogia moderna mais próxima é o serviço militar executado por um cidadão
comum, excepto que o líder da burocracia egípcia não precisava de uma emergência especial para
evocar obrigações legítimas." Esta complicada passagem quer dizer apenas que no antigo Egipto as
pessoas comuns podiam ser recrutadas para trabalhar.
8.
O ensino universal não deve ser confundido como ensino público, e este não deve ser confundido com
o ensino gratuito. O ensino pode ser universal mas ser inteiramente privado, como Mill defendia, e
não ser gratuito — recebendo as famílias mais carenciadas subsídios que lhes permitam pagar na
totalidade o ensino dos seus filhos. Na verdade, o dinheiro que se poderia poupar obrigando as
famílias mais ricas a pagar os custos reais do ensino permitiria dar subsídios às famílias mais pobres
que ultrapassassem o valor necessário para pagar os estudos dos seus filhos — uma forma simples de
fazer as famílias mais carenciadas valorizar a escola e o estudo.
9.
Cf. Mill (1859), pp. 175-178, e Maamari (2006), especialmente pp. 50-51.10.
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
16 de 17 29/10/2012 03:43
É também inconstitucional. Cf. o art. 43.º, número 2, da Constituição da República Portuguesa (VII
Revisão Constitucional, 2005).
11.
É igualmente previsível que o nível de abstenção dos professores seja substancialmente inferior nos
níveis de ensino em que houver exames nacionais obrigatórios do que nos outros.
12.
Não terá sido por acaso que a matemática, a história e a astronomia, para dar apenas alguns
exemplos, foram desenvolvidas de forma sistemática e científica precisamente na Grécia antiga, onde
nasceu a filosofia. Aquelas disciplinas não são mais do que a aplicação, a áreas delimitadas de
problemas, das metodologias de investigação racional introduzidas pelos filósofos. Cf. Lloyd (1989), p.
153.
13.
Agradeço a Aires Almeida, Luís Gottschalk, Pedro Santos e Célia Teixeira os comentários e críticas que
fizeram a uma versão anterior deste artigo. Os erros que persistirem são da minha responsabilidade.
14.
Copyright © 1997–2007 criticanarede.com · ISSN 1749-8457
Direitos reservados. Não reproduza sem citar a fonte.
Termos de utilização: http://criticanarede.com/termos.html.
92 visitas · · Imprimir
Direitos reservados. Não reproduza sem citar a fonte. Termos de utilização.
Contacto · Sobre nós · Mais lidos
Copyright © 1997–2007 criticanarede.com · ISSN 1749-8457
Crítica | Para que serve o ensino? http://ead06.proj.ufsm.br/moodle/pluginfile.php/107397/mod_resour...
17 de 17 29/10/2012 03:43

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?